OS MAIAS - CAP XV

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    OS MAIAS

    Cap tulo XVMaria Eduarda e Carlos, que ficara essa noite nos Olivais na sua casinhola, acabavam de

    almo ar. O Domingos servira o caf , e antes de sair deixara ao lado de Carlos a caixa decigarretes e o Figaro. As duas janelas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesadoda manh encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe noscampos. No banco de corti a, sob as rvores, miss Sarah costurava pregui osamente; Rosa aolado brincava na relva. E Carlos, que viera numa intimidade conjugal, com uma simples camisade seda e um jaquet o de flanela, chegou ent o a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a m o, brincando-lhe com os an is, numa lenta car cia:

    - Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?Nessa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ela mostrara o desejo enternecido de

    no alterar o plano da It lia e dum ninho rom ntico entre as flores da Isola-bela: somente agorano iam esconder a inquieta o duma felicidade culpada, mas gozar o repouso duma felicidadelegtima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em quecruzara Maria Eduarda no Aterro, Carlos anelava tamb m pelo momento de se instalar enfimno conforto dum amor sem d vidas e sem sobressaltos:

    - Eu por mim abalava amanh . Estou sfrego de paz. Estou at sfrego de pregui a... Mastu, dize, quando queres?

    Maria n o respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, semretirar a m o que a longa car cia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa atrav s da janela.

    - Mam, espera, j vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardais que ainda n oalmo aram...

    - No, vem c.Quando ela apareceu porta, toda de branco, corada, com uma das ultimas rosas de ver o

    metida no cinto - Maria qui-la mais perto, entre eles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabelo, perguntou, muito s ria, muito comovida, se ela gostaria que Carlosviesse viver ver com elas de todo e ficar ali na Toca. Os olhos da pequena encheram-se desurpresa e de riso:

    - O qu! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suasmalas, as suas coisas?...

    Ambos murmuraram - sim.Rosa ent o pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse j , j, buscar as

    suas malas e as suas coisas...

    - Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elefosse como o pap , e que, andasse sempre conosco, e que lhe obedec ssemos ambas, e quegost ssemos muito dele?

    Rosa ergueu para a m e uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagara.- Mas eu n o posso gostar mais dele do que gosto!...Ambos a beijaram, num enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda,

    pela primeira vez diante de Rosa debru ando-se sobre ela, beijou de leve a testa de Carlos. Apequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a m e. E pareceu compreender tudo;escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

    - Queres que te chame pap , s a ti?- S a mim, disse ele, fechando-a toda nos bra os.E assim obtiveram o consentimento de Rosa que fugiu, atirando a porta, com as m os

    cheias de bolos para os pardais.

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    Carlos levantou-se, tomou a cabe a de Maria entre as m os, e contemplando-aprofundamente, at alma, murmurou num enlevo:

    - s perfeita!Ela desprendeu-se, com melancolia, daquela adora o que a perturbava.- Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso

    quiosque... Tu n o tens nada que fazer, n o? E que tenhas, hoje s meu... Vou j ter contigo.Leva as tuas cigarretes.

    Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a do ura velada do c u cinzento... E avida pareceu-lhe ador vel, duma poesia fina e triste, assim envolta naquela n voa macia ondenada resplandecia e nada cantava, e que t o favor vel era para que dois cora es,desinteressados do mundo e em desarmonia com ele, se abandonassem juntos ao cont nuoencanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.

    - Vamos ter chuva, tio Andr , disse ele, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.

    O tio Andr , atarantado, arrancou o chap u. Ah! uma gota de gua era bem necess ria,depois da estiagem! O torr osinho j estava com sede! E em casa todos bons? A senhora? Amenina?

    - Tudo bom, tio Andr , obrigado.E no seu desejo de ver todos em torno de si felizes como ele e como a terra sequiosa que iaser consolada - Carlos meteu uma libra na m o do tio Andr , que ficou deslumbrado, sem ousarfechar os dedos sobre aquele ouro extraordin rio que reluziu.

    Quando Maria entrou no quiosque trazia um cofre de s ndalo. Atirou-o para o div : fezsentar Carlos ao lado, bem confort vel, entre almofadas: acendeu-lhe uma cigarrete. Depoisagachou-se aos seus p s, sobre o tapete, como na humildade de uma confiss o.

    - Ests bem assim? Queres que o Domingos te traga gua e cognac?... N o? Ento ouveagora, quero-te contar tudo...

    Era toda a sua exist ncia que ela desejava contar. Pensara mesmo em lha escrever numacarta intermin vel, como nos romances. Mas decidira antes tagarelar ali uma manh inteira,aninhada aos seus p s.

    - Ests bem, n o ests?Carlos esperava, comovido. Sabia que aqueles l bios amados iam fazer revela es

    pungentes para o seu cora o e amargas para o seu orgulho. Mas a confid ncia da sua vidacompletava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado senti-la-hia maissua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaci vel dessas coisas que o deviampungir e que o deviam humilhar.

    - Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Ondenasceste tu por fim?

    Nascera em Viena: mas pouco se recordava dos tempos de crian a, quasi nada sabia dopap , a no ser a sua grande nobreza e a sua grande beleza. Tivera uma irm sinha que morrerade dois anos e que se chamava Heloisa. A mam , mais tarde, quando ela era j rapariga, n otolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a mem ria das coisasantigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Viena apenasrecordava confusamente largos passeios de rvores, militares vestidos de branco, e uma casaespelhada e dourada onde se dan ava: s vezes durante tempos ela ficava l s com o av , umvelhinho triste e t mido, metido pelos cantos, que lhe contara hist rias de navios. Depois tinhamido a Inglaterra: mas lembrava-se somente de ter atravessado um grande rumor de ruas, numdia de chuva, embrulhada em peles, sobre os joelhos dum escudeiro. As suas primeirasmem rias mais n tidas datavam de Paris; a mam , j viva, andava de luto pelo av ; e ela tinhauma aia italiana que a levava todas as manh s, com um arco e com uma p la, brincar aosCampos El seos. A noite costumava ver a mam decotada, num quarto cheio de cetins e deluzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sof s, trazia-lhede vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoisele Triste-coeur por causa do seu

    arzinho sisudo. Enfim a mam metera-a num convento ao p de Tours - porque nessa idade,apesar de cantar j ao piano as valsas da Bele Hel ne, ainda n o sabia soletrar. Fora nos jardins

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    do convento, onde havia lindos lilases, que a mam se separara dela numa paix o de lgrimas; eao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, aquem a Madre Superiora falara com venera o.

    A mam ao principio vinha v -la todos os meses, demorando-se em Tours dois, tr s dias;trazia-lhe uma profus o de presentes, bonecas, bombons, len os bordados, vestidos ricos, quelhe no permitia usar a regra severa do convento. Davam ent o passeios de carruagem pelosarredores de Tours: e havia sempre oficiais a cavalo, que escoltavam a caleche - e tratavam amam por tu. No convento as mestras, a Madre Superiora n o gostavam destas sa das - nemmesmo que a mam viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ru do das suassedas; ao mesmo tempo pareciam teme-la; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mam eramuito amiga do general que comandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quandovinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e aludia risonhamente a son excelentemre. Depois a mam come ou a aparecer menos em Tours. Esteve um ano longe, quasi semescrever, viajando na Alemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manh abra ada a ela a chorar.

    Mas na visita seguinte vinha mais mo a, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandesgalgos brancos, anunciando uma romagem po tica Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ela

    tinha ent o quasi dezasseis anos: pela sua aplica o, os seus modos doces e graves, ganhara aafeio da Madre Superiora - que s vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabelocado em duas tran as segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seulado. Le monde, dizia ela, ne vous sera bon rien, mon enfant!... Um dia, por m, apareceu paraa levar para Paris, para a mam , uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de carac is brancos,que era como uma estampa de severidade e de virtude.

    O que ela chorara ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que a encontrar emParis!

    A casa da mam , no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo - mas recoberta deum luxo s rio e fino. Os escudeiros tinham meias de seda; os convidados, com grandes nomesno Nobili rio de Fran a, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e asmesas de jogo armavam-se depois como uma distrac o mais picante. Ela recolhia sempre aoseu quarto s dez horas: Madame de Chavigny, que ficara como sua dama de companhia, iacom ela cedo ao Bois num coup estufo de douairi re. Pouco a pouco, por m, este grandeverniz come ou a estalar. A pobre mam cara sob o jugo dum Mr. de Trevernes, homemperigoso pela sua sedu o pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casadescaiu rapidamente numa bo mia mal dourada e ruidosa. Quando ela madrugava, com osseus h bitos saud veis do convento, encontrava palet s de homens por cima dos sof s: nomrmore das consoles restavam pontas de charuto entre n doas de champagne; e nalgumquarto mais retirado ainda tinia o dinheiro dum bacarat talhado claridade do sol. Depois umanoite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veioencontrar a mam estirada no tapete, desmaiada; ela dissera-lhe apenas mais tarde, alagada emlgrimas, que tinha havido uma desgra a...

    Mudaram ent o para um terceiro andar da Chauss e-d'Antin. A come ou a aparecer umagente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantesfalsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados...Por vezes entre esta malta vinha algum gentleman que n o tirava o palet , como num caf -concerto. Um desses foi um irland s, muito mo o, Mac-Gren... Madame de Champigny deixara-as desde que faltara o coup severo, acolchoado de cetim; e ela, s com a m e, insensivelmente,fatalmente, fora-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de bacarat.

    A mam chamava a Mac-Gren o beb . Era com efeito uma crian a estouvada e feliz.Namorara-se dela logo com o ardor, a efus o, o mpeto dum irland s; e prometeu-lhe faze-lasua esposa apenas se emancipasse - porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo dasliberalidades de uma av excntrica e rica que o adorava, e que habitava a Proven a numa vastaquinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com ele,

    desesperado de a ver entre aqueles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leva-lapara Fontainebleau, para um cotage com trepadeiras de que falava sempre, e esperar a

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    tranquilamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situa ofalsa: mas prefer vel a permanecer naquele meio depravado e brutal onde ela a cada instantecorava... A esse tempo a mam parcela ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasiirrespons vel. As dificuldades crescentes estonteavam-na; brigava com as criadas; bebiachampagne pour s' tourdir. Para satisfazer as exig ncias de Mr. de Trevernes empenhara assuas jias, e quasi todos os dias chorava com ci mes dele. Por fim houve uma penhora: umanoite tiveram de enfardelar pressa roupa num saco, e ir dormir a um hotel. E, pior, pior quetudo! Mr. de Trevernes come ava a olhar para ela dum modo que a assustava...

    - Minha pobre Maria! murmurou Carlos, p lido, agarrando-lhe as m os.Ela permaneceu um momento sufocada, com o rosto ca do nos joelhos dele. Depois

    limpando as l grimas que a enevoavam:- A esto as cartas de Mac-Gren, nesse cofre... Tenho-as guardado sempre para me

    justificar a mim mesma, se me poss vel... Pede-me em todas que v para Fontainebleau;chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da av , obter a suaindulg ncia... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mam uma manh partiu com uma s cia para Baden. Fiquei em Paris s , num hotel... Tinha um palpite, um terrorque Trevernes aparecia... E eu s ! Estava to transtornada que pensei em comprar um

    rev lver... Mas quem veio foi Mac-Gren.E partira com ele, sem precipita o, como sua esposa, levando todas as suas malas. Amam de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tr gica, amaldi oando Mac-Gren,amea ando-o com a pris o de Mazas, querendo esbofete -lo; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um beb , agarrou-se a ela aos beijos, chorando tamb m. A mam terminou por osapertar a ambos contra o cora o, j rendida, perdoando tudo, chamando-lhes filhos da suaalma. Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando a patuscada de Baden, j com oplano de vir instalar-se no cotage, viver junto deles numa felicidade calma e nobre deavsinha... Era em maio; Mac-Gren, noite, deitou um fogo preso no jardim.

    Come ou um ano quieto e f cil. O seu nico desejo era que a mam vivesse com elessossegadamente. Diante das suas suplicas ela ficava pensativa, dizia: Tens raz o, veremos!Depois remergulhava no torvelinho de Paris, de onde ressurgia uma manh , num fiacre,estremunhada e aflita, com uma rica peli a sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Porfim nascera Rosa. Toda a sua ansiedade desde ent o fora legitimar a sua uni o. Mas Mac-Grenadiava, levianamente, com um medo pueril da av . Era um perfeito beb ! Entretinha as manh sa caar p ssaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ela pouco a poucoperdera-lhe todo o respeito. No come o da primavera a mam um dia apareceu emFontainebleau com as suas malas, sucumbida, enojada da vida. Rompera enfim com Trevernes.Mas quasi imediatamente se consolou: e come ou da a adorar Mac-Gren com uma t o largaefus o de car cias, e achando-o t o lindo, que era s vezes embara adora. Os dois passavam odia, com copinhos de cognac, jogando o besigue.

    De repente rebentou a guerra com a Pr ssia. Mac-Gren entusiasmado, e apesar dassuplicas delas, correra a alistar-se no batalh o de Zuavos de Charete; a av de resto aprovaraeste rasgo de amor pela Fran a, e fizera-lhe numa carta em verso, em que celebrava Jeane d'Arc,uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ela, sem lhe largar oleito, mal atendia s noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhasperdidas na fronteira. Uma manh a mam rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: oexercito capitulara em S dan, o imperador estava prisioneiro! o fim de tudo, o fim detudo! dizia a mam espavorida. Ela veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royaleteve de se refugiar num port o, diante do tumulto dum povo em del rio, aclamando, cantando aMarselhesa, em torno de uma caleche onde ia um homem, p lido como cera, com um cache-nezescarlate ao pesco o. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fora buscar Rochefort pris o e que estava, proclamada a Rep blica.

    Nada soubera de Mac-Gren. Come aram ent o dias de infinito sobressalto. FelizmenteRosa convalescia. Mas a pobre mam causava d , envelhecida de repente, sombria, prostrada

    numa cadeira, murmurando apenas: o fim de tudo, o fim de tudo! E parecia na verdade ofim da Fran a. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de

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    gado, internados a todo o vapor para os pres dios da Alemanha; os prussianos marchandosobre Paris... N o podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno come ava; e com oque venderam pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixara, partiram para Londres.

    Fora uma exig ncia da mam . E em Londres ela, desorientada na enorme e estranhacidade, doente tamb m, deixara-se levar pelas tontas ideias da m e. Tomaram uma casamobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao p de Mayfair. A mam falava em organizar ali ocentro de resist ncia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgra ada pensava em criaruma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imp rio, no jogavam j o bacarat. E elas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achadocom aquela dispendiosa casa, tr s criados, contas colossais e uma nota de cinco libras no fundoduma gaveta. E Mac-Gren metido dentro de Paris, com meio milh o de prussianos em redor.Foi necess rio vender todas as j ias, vestidos, at as peli as. Alugaram ent o, no bairro pobre deSoho, tr s quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solit riatristeza; uma criadita nica, enfarruscada como um trapo; alguns carv es hmidos fumegandomal na chamin ; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltaramesmo o escasso shiling para pagar o lodging. A mam no saia do catre, doente, sucumbida,chorando. Ela s vezes ao anoitecer, escondida num water-proof, levava ao prego embrulhos de

    roupa (at roupa branca, at camisas!) para que ao menos n o faltasse a Rosa a sua x caradeleite. As cartas que a mam escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d'Orficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada num bocado de papel, alguma meia-libraque tinha o pavoroso sabor duma esmola. Uma noite, um s bado de grande nevoeiro, indoempenhar um chambre de rendas da mam , perdera-se, errara na vasta Londres numa trevaamarelada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro dum cab que a levou a casa. Mas n o tinha um penypara pagar ao cocheiro; e a patroa roncava no seu cacifro, b beda. O homem resmungou; ela,sucumbida, ali mesmo na porta rompeu a chorar. Ent o o cocheiro desceu da almofada,comovido, ofereceu-se para a levar de gra a ao prego, onde ajustariam as suas contas. Foi; opobre homem s aceitou um shiling; at mesmo supondo-a francesa grunhiu blasf mias contraos prussianos, e teimou em lhe oferecer uma bebida.

    Ela no entanto procurava uma ocupa o qualquer costura, bordados, tradu es, cpias demanuscritos... N o achava nada. Naquele duro inverno o trabalho escasseava em Londres;surgira uma multid o de franceses, pobres como ela, lutando pelo p o... A mam no cessavade chorar; e havia alguma coisa mais terr vel que as suas l grimas - eram as suas alus esconstantes facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se nova e se bonita...

    - Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ela, apertando as m os amargamente.Carlos beijou-a em sil ncio, com os olhos humedecidos.- Enfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cerco acabou. Paris estava

    de novo aberto... Somente a dificuldade era voltar.- Como voltaste?Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrara um amigo de Mac-Gren, outro irland s,

    que muitas vezes jantara com eles em Fontainebleau. Veio v -las a Soho; diante daquelamisria, do bule de ch aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tr s brasas mortas,come ou, como bom irland s, por acusar o governo de Inglaterra e jurar uma desforra desangue. Depois ofereceu, com os bei os j a tremer, toda a sua dedica o. O pobre rapaz batiatamb m o lagedo numa luta tormentosa pela vida. Mas era irland s; e partiu logogenerosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar atrav s de Londres o pouco queelas necessitavam para recolher a Fran a. Com efeito apareceu nessa mesma noite, derreado etriunfante, brandindo tr s notas de banco e uma garrafa de champagne. A mam ao ver, depoisde tantos meses de ch preto, a garrafa de Clicquot encarapu ada de ouro - quasi desmaiou, deenternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na esta o de Charing-Cross, o irland slevou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha

    morrido na batalha de Saint-Privat...

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    tinham arrastado Maria. Se lhos contasse miudamente o av veria ali um romance confuso efrgil, antip tico sua natureza forte e c ndida. A fealdade das culpas feri-lo-hia,exclusivamente; e n o lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Paraperceber este caso dum car cter nobre apanhado dentro duma implac vel rede de fatalidades,seria necess rio um esp rito mais d ctil, mais mundano que o do av ... O velho Afonso era um bloco de granito: n o se podiam esperar dele as subtis discrimina es dum casu sta moderno.Da exist ncia de Maria s veria o facto tang vel: - cara sucessivamente nos bra os de doishomens. E da decorreria toda a sua atitude de chefe de fam lia. Para que havia ele pois de fazerao velho uma confiss o, que necessariamente originaria um conflito de sentimentos e umairrepar vel separa o domestica?...

    - Pois no te parece, Ega?- Fala mais baixo, olha o cocheiro.- No percebe bem o portugu s, sobretudo o nosso estilo... Pois n o te parece?Ega raspava f sforos na sola para acender o charuto. E resmungava:- Sim, o velho Afonso gran tico...Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao av o passado

    de Maria - e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em It lia.

    Regressavam: ela para a rua de S. Francisco, ele filialmente para o Ramalhete. Depois Carloslevava o av a casa da sua boa amiga, que conhecera em It lia, M. de Mac-Gren. Para o prenderlogo l estavam os encantos de Maria, todas as gra as dum interior delicado e s rio, jantarinhosperfeitos, ideias justas, Chopin, Beetoven, etc. E, para completar a conquista de quem t oenternecidamente adorava crian as, l estava Rosa... Enfim, quando o av estivesse namoradode Maria, da pequena, de tudo - ele, uma manh , dizia-lhe francamente: Esta criatura superiore ador vel teve uma queda no seu passado; mas eu casei com ela; e, sendo tal como , no fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa? E o av , perante esta terr velirremediabilidade do facto consumado, com toda a sua indulg ncia de velho enternecido adefender Maria - seria o primeiro a pensar que, se esse casamento n o era o melhor segundo asregras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do cora o...

    - Pois no te parece, Ega?Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adoptara

    para com o av a complicada combina o que Maria Eduarda tentara para com ele - e imitavasem o sentir os subtis racioc nios dela.

    - E acabou-se, continuava Carlos. Se ele na sua indulg ncia aceitar tudo, bravo! d -se umagrande festa no Ramalhete... Sen o, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado, fazendoambos prevalecer a superioridade de duas coisas excelentes: o av as tradi es do sangue, eu osdireitos do cora o.

    E, vendo o Ega ainda silencioso:- Que te parece? Dize l . Tu andas t o falto de ideias, homem!O outro sacudiu a cabe a, como despertando.- Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, n s somos dois homens

    falando como homens!... Ent o aqui est : teu av tem quasi oitenta anos, tu tens vinte e sete ouo quer que seja... doloroso dize-lo, ningu m o diz com mais dor que eu, mas teu av h demorrer... Pois bem, espera at l. No cases. Sup e que ela tem um pai muito velho, teimoso ecaturra, que detesta o Sr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continua a vir Toca, natip ia do Mulato; e deixa teu av acabar a sua velhice calma, sem desilus es e sem desgostos...

    Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da vit ria. Nunca, nesses dias deinquieta o, lhe acudira ideia t o sensata, t o f cil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever doque poupar ao pobre av toda a dor?... Maria de certo, como mulher, estava desejandoansiosamente a convers o do amante no marido pelo la o de estola que tudo purifica enenhuma for a desata. Mas ela mesma preferiria uma consagra o legal - que n o fosse assimprecipitada, dissimulada... Depois, t o recta e generosa, compreenderia bem a obriga osuprema de n o mortificar aquele santo velho. De resto, n o conhecia ela a sua lealdade s lida e

    pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavam casados, n o

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    diante do sacr rio e nos registos da sacristia - mas diante da honra e na inabal vel comunh odos seus cora es...

    - Tens raz o! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens imensamente raz o! Essa ideia genial! Devo esperar... E enquanto espero?...

    - Como, enquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso n o comigo!E mais srio:- Enquanto esperas tens esse metal vil que faz a exist ncia nobre. Instalas tua mulher,

    porque desde hoje tua mulher, aqui nos Olivais ou noutro s tio, com o gosto, o conforto e adignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que fa ais essa viagemnupcial Itlia... Voltas, continuas a fumar a tua cigarrete e a deixar-te ir. Este o bom senso: assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu naquele embrulho que cheirato bem?

    - Um anan s... Pois isso, querido: esperar, deixar-me ir. uma ideia!Uma ideia! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com efeito enredar-se

    numa meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo rom ntico? Mariaconfiava nele; era rico, era mo o; o mundo abria-se ante eles f cil e cheio de indulg ncias. N otinha sen o a deixar-se ir.

    - Tens raz o, Ega! E Maria a primeira a achar isto cheio de senso e de oportunismo. Eutenho uma certa pena em adiar a instala o da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se!Antes de tudo que o av seja feliz... E para celebrar o advento desta ideia, Deus queira queMaria nos tenha um bom jantar!

    Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda.Incomodava-o esse enleio, esse rubor que ela n o poderia ocultar - certa que, como confidentede Carlos, ele conhecia a sua vida, as suas mis rias, as suas rela es com Castro Gomes. Por issohesitara em vir Toca. Mas tamb m, no aparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com umrelevo quasi ofensivo o desejo caridoso de n o molestar o seu pudor... Por isso decidira dar omergulho duma vez. Quem, sen o ele, deveria ser o mais apressado em estender a m o noiva de Carlos?... Al m disso tinha uma infinita curiosidade de ver no seu interior, sua mesa,essa criatura t o bela, com a sua gra a nobre de Deusa moderna! Mas saltou da vit ria muitoembara ado.

    Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degrausdo jardim. Teve um sobressalto, corou toda, com efeito, ao avistar o Ega que procuravaatarantadamente o mon culo: o aperto de m o que trocaram foi mudo e t mido: mas Carlos,alegremente, desembrulhara o anan s - e na admira o dele todo o constrangimento sedissipou.

    - Oh! magn fico!- Que cor, que luxo de tons!- E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.Ega no voltara Toca desde a noite fatal da soir e dos Cohens em que ele ali tanto bebera

    e delirara tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo dum temporal,o grog do Craft, a ceia de peru...

    - J aqui sofri muito, minha senhora, vestido de Mefist feles!...- Por causa de Margarida?- Por quem se h de sofrer neste apaixonado mundo, minha senhora, sen o por Margarida

    ou por Fausto?Mas Carlos quis que ele admirasse os esplendores novos da Toca. E foi j com

    familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que s viesse assim Toca no fim dover o e no fim das flores. Ega xtaseou-se ruidosamente. Enfim, perdera a Toca o seu arregelado e triste de museu! J ali se podia palrar livremente!

    - Isto um b rbara, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror arte! um Ibero, umSemita...

    Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Ariano! E por isso mesmo n o podia viver

    numa casa, em que cada cadeira tinha a solenidade sorumb tica de antepassados comcabeleira...

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    - Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do s culo dezoito lembram antes aligeireza, o esp rito, a gra a de maneiras...

    - V. Exc. acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, essesrococs lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! n s vivemos numaDemocracia! E n o h para exprimir a alegria simples, s lida e bonacheirona da Democracia,como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...

    Assim numa risonha, ligeira discuss o sobre bric- -brac, desceram ao jardim.Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na m o. Ega, que

    conhecia j os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sofregamente o mon culo; e enquanto Mariase abaixara a cortar um ger nio, exprimiu a Carlos num gesto mudo a sua admira o por aquele beicinho escarlate, aquele seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto docaramanch o, encontraram Rosa que se balou ava. Ega pareceu deslumbrado com a sua beleza,a sua frescura mate de cam lia branca. Pediu-lhe um beijo. Ela exigiu primeiro, muito s ria, queela tirasse o vidro do olho.

    - Mas para te ver melhor! para te ver melhor!...- Ento porque n o trazes um em cada olho? Assim s me v s metade...Encantadora! Encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e

    impudente. Maria resplandecia.E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo sopa, falando-se de campo edum chalet que ele desejava construir em Sintra, nos Capuchos, dissera - quando noscasarmos. E Ega aludiu a esse futuro do modo mais grato ao cora o de Maria. Agora queCarlos se instalava para sempre numa felicidade est vel (dizia ele) era necess rio trabalhar! Erelembrou ent o a sua velha ideia do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse aliteratura, educasse o gosto, elevasse a pol tica, fizesse a civiliza o, remo asse o carunchosoPortugal... Carlos, pelo seu esp rito, pela sua fortuna (at pela sua figura, ajuntava o Ega rindo)devia tomar a direc o deste movimento. E que profunda alegria para o velho Afonso da Maia!

    Maria escutava, presa e s ria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelig nciae de actividade, reabilitaria supremamente aquela uni o mostrando-lhe a influ ncia fecunda epurificadora.

    - Tem raz o, tem bem raz o! exclamava ela com ardor.- Sem contar, acrescentava o Ega, que o pa s precisa de n s! Como muito bem diz o nosso

    querido e imbecilissimo Gouvarinho, o pa s no tem pessoal... Como h de te-lo, se n s, quepossu mos as aptid es, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vidaintima dos tomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biografia dumtomo!... No fim, este diletantismo absurdo. Clamamos por ai, em botequins e livros, que opa s uma choldra. Mas que diabo! Porque que n o trabalhamos para o refundir, o refazerao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas ideias?... V. Exc. n o conhece este pa s, minhasenhora. admir vel! uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A quest o toda est em quem a trabalha. At aqui a cera tem estado em m os brutas, banais, toscas, reles,rotineiras... necess rio p -la em m os de artistas, nas nossas. Vamos fazer disto um bijou!...

    Carlos ria, preparando numa travessa o anan s com sumo de laranja e vinho da Madeira.Mas Maria n o queria que ele risse. A ideia do Ega parecia-lhe superior, inspirada num altodever. Quasi tinha remorsos, dizia ela, daquela pregui a de Carlos. E agora, que ia ser cerradode afei o serena, queria-o ver trabalhar, mostrar-se, dominar...

    - Com efeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...Mas o Domingos servia o anan s. E o Ega provou e rompeu em clamores de entusiasmo.

    Oh que maravilha! Oh que del cia!- Como fazes tu isto? Com Madeira...- E gnio! exclamou Carlos. Delicioso, n o verdade? Ora digam-me se tudo o que eu

    pudesse fazer pela civiliza o valeria este prato de anan s! para estas coisas que eu vivo! Euno nasci para fazer civiliza o...

    - Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flores dessa planta da civiliza o que a multid o

    rega com o seu suor! No fundo tamb m eu, menino!No, no! Maria n o queria que falassem assim!

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    - Esses ditos estragam tudo. E o Sr. Ega, em lugar de corromper Carlos, devia inspira-lo...Ega protestou requebrando o olho, j lnguido. Se Carlos necessitava uma musa

    inspiradota e ben fica no podia ser ele, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estavatoute trouv e!

    - Ah, com efeito!... Quantas paginas belas, quantas nobres ideias se n o podem produzirnum para so destes!...

    E o seu gesto mole e acariciador indicava a Toca, a quieta o dos arvoredos, a beleza deMaria. Depois na sala, enquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e ele acabavamos charutos porta do jardim vendo nascer a lua - Ega declarou que, desde o come o do jantar,estava com ideias de casar!... Realmente n o havia nada como o casamento, o interior, o ninho...

    - Quando penso, menino, murmurou ele mordendo sombriamente o charuto, que quasitodo um ano da minha vida foi dado quela israelita devassa que gosta de levar bordoada...

    - Que faz ela em Sintra? perguntou Carlos.- Ensopa-se na cr pula. N o h a menor d vida que d todo o seu cora o ao Dmaso... Tu

    sabes o que nestes casos significa o termo cora o... Viste j imund cie igual? simplesmenteobscena!

    - E tu adora-la, disse Carlos.

    O outro n o respondeu. Depois, dentro, num dio repentino da bo mia e do romantismo,entoou louvores sonoros fam lia, ao trabalho, aos altos deveres humanos - bebendo copinhosde cognac. meia noite, ao sair, trope ou duas vezes na rua de ac cias, j vago, citandoProudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a vit ria, que ele quis descoberta para ircomunicado com a lua, Ega ainda lhe agarrou o bra o para lhe falar da Revista, dum forte ventode espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o pa s... Por fim, j estiradono assento, tirando o chap u aragem da noite:

    - E outra coisa, Carlinhos. V se me arranjas a inglesa... H vcios deliciosos naquelaspestanas baixas... V se ma arranjas... V l, bate l, cocheiro! Caramba, que beleza de noite!

    Carlos ficara encantado com este primeiro jantar de amizade na Toca. Ele tencionava n oapresentar Maria aos seus ntimos sen o depois de casado e volta de It lia. Mas agora auni o legal estava j no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como diziao Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no entanto, Maria e ele n o poderiam isolar-se ali todo umlongo inverno, sem o calor soci vel de alguns amigos em redor. Por isso uma manh ,encontrando o Cruges, que fora o vizinho de Maria e outrora lhe dava noticias da ladyinglesa, pediu-lhe para vir jantar Toca no domingo.

    O maestro apareceu numa tip ia, tardinha, de la o branco e de casaca: e os fatos claros decampo com que encontrou Carlos e Ega come aram logo a enche-lo de mal-estar. Toda amulher, al m das Lolas e Conchas, o atarantava, o emudecia: Maria, com o seu porte degrande-dame, como ele dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante dela, sem uma palavra,escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembran a de Carlos, foram-lhemostrar a quinta. O pobre maestro, ro ando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, faziaesfor os ansiosos por murmurar algum elogio beleza do s tio; mas escapavam-lhe ent oinexplicavelmente coisas reles, em cal o: vista catita! pitada! Depois ficava furioso,coberto de suor, sem compreender como se lhe babavam dos l bios esses ditos abomin veis, tocontr rios ao seu gosto fino de artista. Quando se sentou mesa sofria um negr ssimo acesso despleen e mudez! Nem uma controv rsia que Maria arranjara caridosamente para ele sobreWagner e Verdi p de descerrar-lhe os l bios empedernidos. Carlos ainda tentou envolve-lo naalegria da mesa - contando a ida a Sintra, quando ele procurava Maria na Lawrence, e em vezdela achara uma matrona obesa, de bigode, de c osinho ao colo, ralhando com o homem emespanhol. Mas a cada exclama o de Carlos - Lembras-te, Cruges?, N o verdade, Cruges?- o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar ali, ao lado de Maria,como um trambolho f nebre. Estragou o jantar. Combinara-se para depois do caf um passeiopelos arredores, num break. E Carlos j tomara as guias, Maria na almofada acabava de abotoaras luvas - quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o palet .

    Nesse mesmo momento sentiram um trote de cavalo na estrada - e apareceu o marqu s.

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    Foi uma surpresa para Carlos, que o n o vira durante esse ver o. O marqu s parou logo,tirando profundamente, ao ver Maria, o seu largo chap u desabado.

    - Imaginava-o pela Goleg ! exclamou Carlos. Foi at o Cruges que me disse... Quandochegou voss ?

    chegara na v spera. La fora ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivais ver umdos Vargas que tinha casado, se instalara ali perto, a passar o noivado...

    - Quem, o gordo, o das corridas?- No, o magro, o das regatas.Carlos, debru ado da almofada, examinava a guasita do marqu s, pequena, bem

    estampada, dum baio escuro e bonito.- Isso novo?- Uma facasita do Darque... Quer-ma voss comprar? Sou j um pouco pesado para ela, e

    isto mete-se a um dog-cart...- D l uma volta.O marqu s deu a volta, bem posto na sela, avantajando a gua. Carlos achou-lhe boas

    aces. Maria murmurou - Muito bonita, uma cabe a fina... Ent o Carlos apresentou omarqu s de Souzela a madame Mac-Gren. Ele chegou a gua roda, descoberto, para apertar a

    mo a Maria: e espera do Ega que se eternizava l dentro, ficaram falando do ver o, de SantaOlavia, dos Olivais, da Toca... H que tempos o marqu s ali no passava! A ultima vez foravtima da excentricidade do Craft...

    - Imagine V. Exc., disse ele a Maria Eduarda, que esse Craft me convida a almo ar. Venho,e o hortel o diz-me que o Sr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o Sr.Craft deixara um cartaz na sala... Vou sala, e vejo dependurado ao pesco o dum dolo japon suma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: O deus Tchi tem a honra deconvidar o Sr. marqu s, em nome de seu amo ausente, a passar sala de jantar onde encontrar ,num aparador, queijo e vinho, que o almo o que basta ao homem forte. E foi com efeito omeu almo o... Para n o estar s , partilhei-o com o hortel o.

    - Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.- Pode crer, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando ele apareceu, vindo daqui da

    Toca, o meu guarda-port o disse-lhe que o Sr. marqu s fora para longe, e que n o havia nempo nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma d zia de magn ficas garrafas deChambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a ver...

    O deus Tchi la estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou omarqu s a revisitar nessa noite, volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.

    O marqu s veio, s dez horas - e foi um ser o encantador. Conseguiu sacudir logo amelancolia do Cruges, arrastando-o com m o de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-secom gra a; e aquele esconderijo de amor ficou alumiado at tarde, na sua primeira festa deamizade.

    Estas reuni es alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicais: mas o outonoarrefecia, bem depressa se despiriam as rvores da Toca, e Carlos acumulou-as duas vezes porsemana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto umaadmir vel cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradi es, que servira o bispo deStrasburgo, e a quem as extravag ncias dum filho e outras desgra as tinham arrojado a Lisboa.Maria, de resto, punha na composi o dos seus jantares uma ci ncia delicada: o dia de vir Toca era considerado pelo marqu s dia de civiliza o.

    A mesa resplandecia; e as tape arias representando massas de arvoredos punham emredor como a sombra escura dum retiro silvestre onde por um capricho se tivessem acendidocandelabros de prata. Os vinhos saiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisasda terra e do c u se grulhava com fantasia - menos de pol tica portuguesa, consideradaconversa indecorosa entre pessoas de gosto.

    Rosa aparecia ao caf , exalando do seu sorriso, dos bracinhos n s, dos vestidos brancostufados sobre as meias de seda preta, um bom aroma de flor. O marqu s adorava-a,

    disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo

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    um soneto. Ela preferia o marqu s: achava o Ega muito... - e completava o seu pensamentocom um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega era muito retorcido.

    - A est! exclamava ele. Porque eu sou mais civilizado que o outro! a simplicidade n ocompreendendo o requinte.

    - No, desgra ado! exclamavam do lado. porque s impresso!... a natureza repelindo aconven o!...

    Bebia-se sade de Maria: ela sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bela,quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incompar vel esplendor doseu colo.

    Depois organizaram-se solenidades. Num domingo, em que os sinos repicavam e adist ncia foguetes esfuziavam no ar - Ega lamentou que os seus austeros princ pios filos ficos oimpedissem de festejar tamb m aquele santo de aldeia, que fora decerto em vida um caturraencantador, cheio de ilus es e doura... Mas de resto, acrescentou, n o teria sido num dia assim,fino e seco, sob um grande c u cheio de sol, que se feriu a batalha das Term pilas? Porque n ose atiraria uma gir ndola de foguetes em honra de Le nidas e dos trezentos? E atirou-se agirndola pela eterna gloria de Esparta.

    Depois celebraram-se outras datas hist ricas. O aniversario da descoberta da V nus de

    Milo foi comemorado com um bal o que ardeu. Noutra ocasi o o marqu s trouxe de Lisboa,apinhados numa tip ia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, at tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.

    Quando estavam s s, Carlos e Maria passavam as suas manh s no quiosque japon s -afeioados quele primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus cora es batiam mais perto um do outro. Em lugar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suasformosas colchas da ndia, cor de palha e cor de p rola. Um dos maiores cuidados dele, agora,era embelezar a Toca: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, ummarfim, uma faian a, como noivo feliz que aperfei oa o seu ninho.

    Maria no entanto n o cessava de lembrar os planos intelectuais do Ega: queria que eletrabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho ntimo dela, e sobretudo a alegria supremado av . Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades de esp rito) Carlosrecome ara a compor alguns dos seus artigos de medicina liter ria para a Gazeta Medica.Trabalhava no quiosque, de manh . Trouxera para l rascunhos, livros, o seu famosomanuscrito da Medicina antiga e moderna. E por fim achara um grande encanto em estar ali,com um leve casaco de seda, as suas cigarretes ao lado, um fresco murm rio de arvoredo emredor - cinzelando as suas frases, enquanto ela ao lado bordava silenciosa. As suas ideiassurgiam com mais originalidade, a sua forma ganhava em colorido, naquele estreito quiosqueacetinado que ela perfumava com a sua presen a. Maria respeitava este trabalho como coisanobre e sagrada. De manh , ela mesma espanejava os livros do leve p que a aragem sopravapela janela; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente penas novas; e andava bordandouma almofada de penas e cetim para que o trabalhador estivesse mais confort vel na sua vastacadeira de couro lavrado.

    Um dia oferecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, entusiasmado com a letra dela,quasi compar vel lend ria letra do D maso, ocupava-a agora incessantemente como copista,sentindo mais amor por um trabalho a que ela se associava. Quantos cuidados se dava a docecriatura! Tinha para isso um papel especial, dum tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar,ia desenrolando as pesadas considera es de Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo nagra a delicada duma renda... Um beijo pagava-a de tudo.

    As vezes Carlos dava li es a Rosa - ora de hist ria, contando-lha familiarmente como umconto de fadas; ora de geografia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelosvelhos rios que correm entre as ru nas dos santu rios. Isto era o prazer mais alto de Maria.Sria, muda, cheia de religi o, escutava aquele ser bem-amado ensinando sua filha. Deixavaescapar das m os o trabalho - e o interesse de Carlos, a enlevada aten o de Rosa sentada aosps dele, bebendo aquelas belas hist rias de Joana d'Arc ou das caravelas que foram ndia,

    fazia resplandecer nos seus olhos uma n voa de l grimas felizes...

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    Desde o meado de outubro Afonso da Maia falava da sua partida de Santa Olavia,retardada apenas por algumas obras que come ara na parte velha da casa e nas cocheiras:porque ultimamente invadira-o a paix o de edificar - sentindo-se remo ar, como ele dizia, nocontacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tamb m emabandonar os Olivais. Carlos n o poderia por dever dom stico permanecer ali instalado desdeque o av recolhesse ao Ramalhete. Al m disso aquele fim de outono ia escuro e agreste; e aToca era agora pouco buc lica, com a quinta desfolhada e alagada, uma n voa sobre o rio, e umfogo nico no gabinete de cretones - al m da sumptuosa chamin da sala de jantar, que, porentre os seus N bios de olhos de cristal, soltava uma fumara a odiosa quando o Domingos atentava acender.

    Numa dessas manh s, Carlos, que ficara at tarde com Maria, e depois no seu delgadocasebre mal pudera dormir com um temporal de vento e gua desencadeado de madrugada -ergueu-se s nove horas, veio Toca. As janelas do quarto de Maria conservavam-se aindacerradas; a manh clareara; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda esilenciosa gra a de inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os cris ntemos floriam,quando retiniu a sineta do port o. Era o toque do carteiro. Justamente ele escrevera dias antesao Cruges, perguntando se estaria desocupado para os primeiros frios de dezembro o andar da

    rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por Niniche. Mas ocorreio, nessa manh , consistia apenas numa carta do Ega e dois n meros de jornal cintados -um para ele, outro para Madame Castro Gomes, na quinta do Sr. Craft, aos Olivais.

    Caminhando sob as ac cias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da v spera, com a data noite, pressa. E dizia: - L , nesse trapo que te mando, esse superior peda o de prosa quelembra T cito. Mas n o te assustes; eu suprimi, mediante pec nia, toda a tiragem, comexcep o de dois n meros mais que foram, um para a Toca, outro (oh l gica suprema dosh bitos constitucionais!) para o Pa o, para o chefe do Estado!... Mas esse mesmo n o chegar ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgoto saiu esse enxurro e precisamosprovidenciar! Vem j ! Espero-te at s duas. E, como Iago dizia a Cassio - mete dinheiro na bolsa.

    Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e na impress o, nopapel, na abundancia dos it licos, no tipo gasto, todo ele revelava imund cie e malandrice. Logona primeira pagina duas cruzes a l pis marcavam um artigo que Carlos, num relance, viusalpicado com o seu nome. E leu isto: - Ora viva, s Maia! Ent o j se no vai ao consult rio,nem se v em os doentes do bairro, s janota? - Esta piada era botada no Chiado, porta daHavaneza, ao Maia, ao Maia dos cavalos ingleses, um tal Maia do Ramalhete, que abarrotapor a de catita; e o pai Paulino que tem olho e que passava nessa ocasi o ouviu a seguintecornetada: - que o s Maia acha que mais quente viver nas fraldas duma brasileira casada,que nem brasileira nem casada, e a quem o papalvo p s casa, a para o lado dos Olivais,para estar ao fresco! Sempre os h neste mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e c arapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer n o so os lindos olhos, s o as lindaslouras... O simpl rio, que bate a pilecas bifes, que nem que fosse o marqu s, o verdadeiroMarqu s, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do chic, e do boulevard deParis, e casada, e titular!... E no fim (n o, esta para a gente deixar estoirar o bandulho a rir!)no fim descobre-se que a tipa era uma cocote safada, que trouxe para a um brasileiro j fartodela para a passar c , aos belos lusitanos... E caiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Aindaassim o s Maia s apanhou os restos de outro, porque a tipa j antes dele se enfeitar, tinhapandegado larga, a para a rua de S. Francisco com um rapaz da fina, que se safou tamb m,porque c como n s s aprecia a bela espanhola. Mas n o obsta a que o s Maia seja traste! -Pois se assim , dissemos n s, cautelinha, porque o diabo c tem a sua Corneta preparadapara cornetear por esse mundo as fa anhas do Maia das conquistas. Ora viva, s Maia!

    Carlos ficou im vel entre as ac cias, com o jornal na m o, no espanto furioso e mudo dumhomem que subitamente recebe na face uma grossa chapada de lodo! N o era a clera de ver oseu amor assim aviltado na publicidade chula dum jornal s rdido: era o horror de sentir

    aquelas frases em cal o, pandilhas, afadistadas, como s Lisboa as pode criar, pingandof tidamente, maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paix o... Sentia-

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    se todo emporcalhado. E uma nica ideia surgiu atrav s da sua confus o matar o bruto queescrevera aquilo.

    Mata-lo! Ega sustara a tiragem da folha, Ega pois conhecia o folicul rio. Nada importavaque aqueles n meros, que tinha na m o, fossem os nicos impressos. Recebera lama na face.Que a injuria fosse espalhada nas pra as numa profusa publicidade ou lhe fosse atirada s a eleescondidamente num papel nico, era igual... Quem tanto ousara tinha de cair, esmagado!

    Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos janela da cozinha areava pratas, assobiando.Mas quando Carlos lhe falou de ir buscar um calhambeque aos Olivais, o bom Domingosconsultou o rel gio:

    - V. Exc. tem s onze horas a caleche do Torto que a senhora mandou c estar para ir aLisboa...

    Carlos, com efeito, recordou-se que Maria na v spera planeara ir Aline e aos livreiros.Uma contrariedade, justamente nesse dia em que ele precisava ficar livre - ele e a sua bengala!Mas Melanie, passando ent o com um jarro de gua quente, disse que a senhora ainda se n ovestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recome ou a passear, no tapete de relva, entreas nogueiras.

    Sentou-se por fim no banco de corti a, descintou a Corneta sobrescritada para Maria, releu

    lentamente a prosa imunda: e, nesse n mero que lhe fora destinado a ela, todo aquele cal o lhepareceu mais ultrajante, intoler vel, pun vel s com sangue. Era monstruoso, na verdade, quesobre uma mulher, quieta, inofensiva no sil ncio da sua casa, algu m ousasse t o brutalmentearremessar esse lodo s mos cheias! E a sua indigna o alargava-se do folicul rio que babaraaquilo - at sociedade que, na sua decomposi o, produzira o folicul rio. Decerto toda acidade sofria a sua vermina... Mas s Lisboa, s a horr vel Lisboa, com o seu apodrecimentomoral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bomgosto, a sua pulhice e o seu cal o, podia produzir uma Corneta do Diabo.

    E, no meio desta alta c lera de moralista, uma dor perpassava, precisa e dilacerante. Sim,toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo s rdido neste canto do mundo - mas, em suma,havia no artigo da Corneta uma calunia? N o. Era o passado de Maria, que ela arrancara de sicomo um vestido roto e sujo, que ele mesmo enterrara muito fundo, deitando-lhe por cima oseu amor e o seu nome - e que algu m desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suasmanchas e os seus rasg es... E isto agora amea ava para sempre a sua vida como um terrorsobre ela suspenso. Debalde ele perdoara, debalde ele esquecera. O mundo em redor sabia. E atodo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.

    Ergueu-se, abalado. E ent o ali, sob essas rvores desfolhadas, onde durante o ver o,quando elas se enchiam de sombra e de murm rio, ele passeara com Maria, esposa eleita da suavida - Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, apureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que dele descendessem lhepermitiam em verdade casar com ela...

    Dedicar-lhe toda a sua afei o, toda a sua fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse umfilho? O seu filho, j homem, altivo e puro, poderia um dia ler numa Corneta do Diabo que suame fora amante dum brasileiro, depois de ser amante dum irland s. E se seu filho lhe viessegritar, numa bela indigna o, uma calunia? - ele teria de baixar a cabe a, murmurar - uma verdade! E seu filho veria para sempre colada a si aquela m e de quem o mundoignorava os mart rios e os encantos - mas de quem conhecia cruelmente os erros.

    E ela mesma! Se ele apelasse para a sua raz o, alta e to recta, mostrando-lhe as zombariase as afrontas de que uma vil Corneta do Diabo poderia um dia trespassar o filho que delesnascesse - ela mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhetepela escadinha secreta forrada de veludo cor de cereja, contanto que em cima a esperasse umamor constante e forte... Nunca ela tornara, em todo o ver o, a aludir a uma uni o diferentedessa em que os seus cora es viviam t o lealmente, t o confortavelmente. N o, Maria n o erauma devota, preocupada do pecado mortal! Que lhe podia importar a estola banal dopadre?...

    Sim; mas ele que lhe pedira essa consagra o na hora mais comovida do seu longo amor,iria dizer-lhe agora - foi uma criancice, n o pensemos mais nisso, desculpa? N o; nem o seu

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    cora o o desejava! Antes pendia todo para ela... Pendia todo para ela, num enternecimentomais generoso e mais quente - enquanto a sua raz o assim arengava, cautelosa e austera. Eletinha naquela alma o seu culto perfeito, naqueles bra os a sua voluptuosidade magn fica; foradali n o havia felicidade; a nica sabedoria era prender-se a ela pelo derradeiro elo, o maisforte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo atroassem todo o ar. E assim afrontaria omundo numa soberba revolta, afirmando a omnipot ncia, o reino nico da Paix o... Masprimeiro mataria o folicul rio! - Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos seresolviam por fim em f ria contra o infame que babara sobre o seu amor, e durante um instanteintroduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!

    Maria ao lado abriu a janela. Estava vestida de escuro para sair; e bastou o brilho terno doseu sorriso, aqueles ombros a que o estofo justo modelava a beleza cheia e quente - para queCarlos detestasse logo as d vidas desleais e covardes, a que se abandonara um momento sob asrvores desfolhadas... Correu para ela. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildadedum perd o que se implora.

    - Que tens tu, que est s to srio?Ele sorriu. S rio, no sentido de solene, n o estava. Talvez secado. Recebera uma carta do

    Ega, uma das eternas complica es do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar l naturalmente toda a

    noite...- Toda a noite? exclamou ela com um desapontamento, pousando-lhe as m os sobre osombros.

    - Sim, bem poss vel, um horror! Nos neg cios do Ega h fatalmente o inesperado... Tucom efeito vais a Lisboa?

    - Agora, com mais raz o... Se me queres.- O dia esta bonito... Mas h de fazer frio na estrada.Maria justamente gostava desses dias de inverno, cheios de sol, com um arzinho vivo e

    arrepiado. Tornavam-na mais leve, mais esperta.- Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almo o, minha filha... O pobre Ega

    deve estar a uivar de impaci ncia.Enquanto Maria correra a apressar o Domingos - Carlos, atrav s da relva h mida, foi ainda

    lentamente at ao renque baixo de arbustos que daquele lado fechava a Toca como uma sebe. A a colina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chamin de fabrica quefumegava: para al m era o azul fino e frio do rio: depois os montes, dum azul mais carregado,com a casaria branca da povoa o aninhada beira da gua, n tida e suave na transpar ncia doar macio. Parou um momento, olhando. E aquela aldeia de que nunca soubera o nome, t oquieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de sossego e de obscuridade, num cantoassim do mundo, beira de gua, onde ningu m o conhecesse nem houvesse Cornetas doDiabo, e ele pudesse ter a paz dum simples e dum pobre debaixo de quatro telhas, no seio dequem amava...

    Maria gritou por ele da janela da sala de jantar, onde se debru ara a apanhar uma dasultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.

    - Que lindo tempo para viajar, Maria! - disse Carlos chegando, atrav s da relva.- Lisboa tamb m muito linda, agora, havendo sol...- Pois sim, mas o Chiado, a coscuvilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A

    mim est -me positivamente a apetecer uma cubata na frica!O almo o, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do Torto come ou a

    rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da vila, na descida,cruzaram um coup que trepava num trote esfalfado. Maria julgou avistar nele de relance ochap u branco e o mon culo do Ega... Pararam. E era com efeito o Ega, que reconheceratamb m a caleche da Toca, vinha j saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha,chamando por Carlos.

    Ao ver Maria ficou atrapalhado:- Que bela surpresa! Eu ia para l ... Vi o dia to bonito disse comigo...

    - Bem, paga a tua tip ia, vem conosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhosinquietos, querendo adivinhar o motivo daquela brusca chegada aos Olivais.

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    Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embara ado, sem poderdesabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, come ou, sob os olhos de Carlos que o n odeixavam, a falar do inverno, das inunda es do Riba-Tejo... Maria lera. Uma desgra a, duascrian as afogadas nos ber os, gados perdidos, uma grande mis ria! Por fim Carlos n o seconteve:

    - Eu l recebi a tua carta...Ega acudiu:- Arranja-se tudo! Est tudo combinado! E com efeito eu n o vim sen o por um sentimento

    buclico...Muito discretamente Maria olhara para o rio. Ega fez ent o um gesto r pido com os dedos

    significando dinheiro, s quest o de dinheiro. Carlos sossegou: e Ega voltou a falar dosinundados do Riba-Tejo e do sarau liter rio e art stico que em beneficio deles se ia cometer nosalo da Trindade... Era uma vasta solenidade oficial. Tenores do parlamento, rouxin is daliteratura, pianistas ornados com o habito de S. Tiago, todo o pessoal canoro e sentimental doconstitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, j se teciam grinaldas de cam lias parapendurar na sala. Ele, apesar de demagogo, fora convidado para ler um epis dio das Mem riasdum tomo: recusara-se, por mod stia, por n o encontrar nas Mem rias nada t o

    suficientemente palerma que agradasse capital. Mas lembrara o Cruges; e o maestro iaribombar ou arrulhar uma das suas Medita es. Alm disso havia uma poesia social peloAlencar. Enfim, tudo prenunciava uma imensa orgia...

    - E a Sr. D. Maria, acrescentou ele, devia ir!... sumamente pitoresco. Tinha V. Exc.ocasio de ver todo o Portugal rom ntico e liberal, la besogne, engravatado de branco, dandotudo que tem na alma!

    - Com efeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencarrecita, uma festa nossa...

    - Pois est claro! gritou Ega, procurando o mon culo, j excitado. H duas coisas que necess rio ver em Lisboa... Uma prociss o do Senhor dos Passos e um sarau po tico!

    Rolavam ent o pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no come oda rua do Alecrim: eles apeavam-se e tomavam de l o Americano para o Ramalhete.

    Mas a tip ia estacou antes da cal ada, rente ao passeio, em frente duma loja de alfaiate. Enesse instante achava-se a parado, cal ando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas de ap stolo, todo vestido de luto. Ao ver Maria, que se inclinara portinhola, o homempareceu assombrado; depois, com uma leve cor na face larga e p lida, fitou gravemente ochap u, um imenso chap u de abas recurvas, moda de 1830, carregado de crepe.

    - Quem ? perguntou Carlos.- o tio do D maso, o Guimar es, disse Maria, que corara tamb m. , curioso, ele aqui!Ah, sim! o famoso Mr. Guimar es, o do Rapel, o ntimo de Gambeta! Carlos recordava-se

    de ter j encontrado aquele patriarca no Price com o Alencar. Cumprimentou-o tamb m; o outroergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chap u de carbon rio. Ega entalaravivamente o mon culo para examinar esse lend rio tio do D maso, que ajudava a governar aFran a: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche j subia a rua do Alecrim e elesatravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aqueles modos, aquelas barbas austeras de revolucion rio...

    - Bom tipo! E que magn fico chap u, hein! Donde diabo o conhece a Sr. D. Maria?- De Paris... Este Mr. Guimar es era muito da m e dela. A Maria j me tinha falado nele.

    um pobre diabo. Nem amigo de Gambeta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornaisespanh is para o Rapel, e morre de fome...

    - Mas ent o, o Dmaso?- O Dmaso um trapalh o. Vamos n s ao nosso caso... Essa imund cie que me mandaste,

    a Corneta Dize l .Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a hist ria da imund cie. Fora na v spera tarde

    que recebera no Ramalhete a Corneta?. Ele j conhecia o papelucho, j privara mesmo com o

    propriet rio e redactor - o Palma, chamado Palma Caval o para se distinguir de outro benem rito chamado Palma Cavalinho. Compreendeu logo que se a prosa era do Palma a

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    inspira o era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S.Francisco, nem da Toca... N o era natural que escrevesse por deleite intelectual um documentoque s lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fora-lhe simplesmenteencomendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por esteslido principio correra a procurar o Palma Caval o no seu antro.

    - Tamb m lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.Tanto n o... Fui perguntar secretaria da Justi a a um sujeito que esteve associado com ele

    num neg cio de Almanaques religiosos...Fora pois ao antro. E encontrara as coisas dispostas pelas m os h beis duma Providencia

    amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis n meros, a m quina, esfalfada napratica daquelas maroteiras, desmanchara-se. Al m disso o bom Palma estava furioso com ocavalheiro que lhe encomendara o artigo, por diverg ncia na seriissima quest o de pec nia. Desorte que apenas ele prop s comprar a tiragem do jornal - o jornalista estendeu logo a m olarga, de unhas ro das, tremendo de reconhecimento e de esperan a. Dera-lhe cinco libras quetinha, e a promessa de mais dez...

    - caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, n o regateei bastante... Eenquanto a dizer quem o cavalheiro que encomendou o artigo, o Palma, coitado, afirma que

    tem uma rapariga espanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, queLisboa est carssima, que a literatura neste desgra ado pa s...- Quanto quer ele?- Cem mil reis. Mas, amea ando-o com a pol cia, talvez des a a quarenta.- Promete os cem, promete tudo, contanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja?Ega encolheu os ombros, deu um risco lento no ch o com a bengala. E mais lentamente

    ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia ser algu m familiar com CastroGomes; algu m frequentador da rua de S. Francisco; algu m conhecedor da Toca; algu m quetinha, por ci me ou vingan a, um desejo ferrenho de magoar Carlos; algu m que sabia ahist ria de Maria; e enfim algu m que era um covarde...

    - Ests a descrever o D maso! exclamou Carlos, p lido e parando.Ega encolheu de novo os ombros, tornou a riscar o ch o:- Talvez n o... Quem sabe! Enfim, n s vamos averigua-lo com certeza, porque, para

    terminar a negocia o, fiquei de me ir encontrar com o Palma s trs horas no Lisbonense... E omelhor vires tamb m. Trazes tu dinheiro?

    - Se for o Dmaso, mato-o! murmurou Carlos.E no trazia suficiente dinheiro. Tomaram uma tip ia para correr ao escrit rio do Vila a. O

    procurador fora a Mafra, a um baptizado. Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez,alfaiate do av . Quando perto das quatro horas se apearam entrada do Lisbonense, no largode Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquet o de veludo co ado e cal a de casimira claracolado coxa, acendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a m o a Carlos - que lhe n otocou. E Palma Caval o, sem se ofender, com a m o abandonada no ar, declarou que ia justamente sair, cansado j de esperar em cima diante dum grog frio. De resto sentia que o Sr.Maia se incomodasse em vir ali...

    - Eu arranjava c o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhoresquerem, vamos l para cima para um gabinete, que se est mais vontade, e toma-se outra bebida.

    Subindo a escada l brega, Carlos recordava-se de ter j visto aquela luneta de vidrosgrossos, aquela cara balofa cor de cidra... Sim, fora em Sintra, com o Euzebiosinho e duasespanholas, nesse dia em que ele farejara pelas estradas silenciosas, como um c o abandonado,procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o Sr. Palma. Em cima entraram num cub culo,com uma janela gradeada por onde resvalava uma luz suja de sagu o. Na toalha da mesa,salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas noazeite. O Sr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande pux o scalas:

    - Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu j disse c ao amigo Ega, emtodo este neg cio...

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    Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda damesa.

    - Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o Sr. Palma por me dizer quem lhe encomendouo artigo da Corneta?

    - Dizer quem o encomendou, e prova-lo! acudiu o Ega, que examinava na parede umagravura onde havia mulheres nuas beira de gua. N o nos basta o nome... O amigo Palma,est claro, de toda a confian a... Mas enfim, que diabo, n o natural que n s acredit ssemosse o amigo nos dissesse que tinha sido o Sr. D. Lu s de Bragan a!

    Palma encolheu os ombros. Est visto que havia de dar provas. Ele podia ter outrosdefeitos, trapalh o no! Em negcios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, ali asentregava logo, essas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e de escachar!Tinha a carta do amigo que lhe encomendara a piada: a lista das pessoas a quem se deviamandar a Corneta: o rascunho do artigo a l pis...

    - Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.O Palma ficou um momento indeciso, ajeitando as lunetas com os dedos moles. Mas o

    criado veio trazer a garrafa da genebra: e ent o o redactor da Corneta ofereceu a bebidarasgadamente, puxou mesmo cadeiras para aqueles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram -

    Carlos de p junto da mesa onde terminara por pousar a bengala, Ega passando a outra gravuraonde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado saiu, Ega acercou-se, tocou com bonomia no ombro do jornalista:

    - Cem mil reis s o uma linda soma, Palma amigo! E olhe que se lhe oferecem pordelicadeza consigo. Porque artiguinhos como este da Corneta apresentados na Boa-Hora, levam grilheta!... Est claro, este caso outro, voss no teve inten o de ofender; mas levam grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a frica. Ali no por osinho dum navio, comrao de marujo e chibatadas. Desagrad vel, muito desagrad vel. Por isso eu quis quetrat ssemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.

    Palma, com a cabe a baixa, desfazia torr es de acar dentro do copo de genebra. Esuspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e comamizade, que aceitava os cem mil reis...

    Imediatamente Carlos tirou da algibeira das cal as um punhado de libras, que come ou adeixar cair em sil ncio uma a uma dentro dum prato. E Palma Caval o, agitado com o tinir doouro, desabotoou logo o jaquet o, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monograma deprata sob uma enorme coroa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeutrs pap is sobre a mesa. Ega, que esperava, com o mon culo sfrego, teve um brado de triunfo.Reconhecera a letra do D maso!

    Carlos examinou os pap is lentamente. Era uma carta do D maso ao Palma, curta e emcalo, remetendo o artigo, recomendando-lhe que o apimentasse. Era o rascunho do artigo,laboriosamente trabalhado pelo D maso, com entrelinhas. Era a lista, escrita pelo D maso, daspessoas que deviam receber a Corneta: vinha l a Gouvarinho, o ministro do Brasil, D. Maria daCunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias autoridades, e a Fanceli prima-dona...

    Palma no entanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato ondereluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos porcima do ombro de Carlos:

    - Recolha o bago, amigo Palma! Neg cios so neg cios, e o baguinho est a a arrefecer!Ento, ao palpar o ouro, Palma Caval o comoveu-se. Palavra, caramba, se soubesse que se

    tratava dum cavalheiro como o Sr. Maia n o tinha aceitado o artigo! Mas ent o!... Fora oEuz bio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera falar. Depois o Salcede. E ambos com muitas l rias,e que era uma brincadeira, e que o Maia n o se importava, e isto e aquilo, e muita promessa...Enfim deixara-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente.

    - Foi uma sorte que se escangalhasse a m quina! Sen o estava agora entalado, irra! E tinhadesgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal n o foi grande, e sempre se

    fez alguma coisa pela porca da vida.

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    Vivamente, com um olhar, recontara o dinheiro na palma da m o: depois esvaziou agenebra, dum trago consolado e ruidoso. Carlos guardara as cartas do D maso, levantava j ofecho da porta. Mas voltou-se ainda, numa derradeira averigua o:

    - Ento esse meu amigo Euz bio Silveira tamb m se meteu no neg cio?...O Sr. Palma, muito lealmente, afian ou que o Euz bio lhe falara apenas em nome do

    Dmaso!- O Euz bio, coitado, veio s como embaixador... Que o D maso e eu n o vamos muito na

    mesma bola. Fic mos esquisitos, desde uma pega em casa da Biscainha. Aqui para n s, euprometi-lhe dois estalos na cara, e ele embuchou. Passados tempos torn mos a falar, quando eufazia o High-life na Verdade. Ele veio-me pedir com bons modos, em nome do conde deLandim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile de anos... Depois, quando o D masofez tamb m anos, eu dei outra piadita. Ele pagou a ceia, fic mos mais calhados... Mas traste...E l o Euzebiosinho, coitado, veio s de embaixador.

    Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cub culo. Oredactor da Corneta ainda baixou a cabe a para a porta; depois, sem se ofender, voltoualegremente genebra, dando outro pux o s calas. Ega no entanto acendia devagar o charuto.

    - Voss agora que redige o jornal todo, Palma?

    - O Silvestre, tamb m...- Que Silvestre?- O que est com a Pingada. Voss no conhece, creio eu. Um rapazola magro, que n o

    feio... Sensabor o, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo coma viscondessa de Gabelas, que ele chama a sua cabeluda... Que o Silvestre s vezes tem gra a! Esabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amiga es, pulhices... Voss nuncaleu nada dele? Chocho. Tenho sempre de lhe arranjar o estilo... Neste n mero que havia umfolhetinzito meu, catita, c moderna, como eu gosto, ali com a piadinha realista a bater...Enfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agrade o. Quando quiser, eu e aCorneta s ordens!

    Ega estendeu-lhe a m o:- Obrigado, digno Palma! E adi s!- Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benem rito homem com infinito

    salero.Em baixo Carlos esperava, dentro do coup .- E agora? perguntou Ega, portinhola.- Agora salta para dentro e vamos liquidar com o D maso...Carlos j esbo ara sumariamente o plano dessa liquida o. Queria mandar desafiar o

    Dmaso como autor comprovado dum artigo de jornal que o injuriava. O duelo devia ser espada ou ao florete, um desses ferros cujo lampejo, na sala de armas do Ramalhete, faziaempalidecer o D maso. Se contra toda a verosimilhan a ele se batesse, Carlos fazia-lhe algures,entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse meses na cama. Sen o a nica explica oque Carlos aceitaria do Sr. Salcede seria um documento em que ele escrevesse esta coisasimples: Eu abaixo assinado declaro que sou um infame. E para estes servi os Carlos contavacom o Ega.

    - Agrade o! agrade o! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as m os, faiscando de jubilo.

    No entanto, dizia ele, a etiqueta f nebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges,mo o passivo e male vel. Mas era imposs vel encontrar o maestro, porque invariavelmente acriada afirmava que o menino Victorino n o estava em casa... Decidiram ir ao Gr mio, mandarde l um bilhete chamando o Cruges - para um caso urgente de amizade e de arte.

    - Com qu , dizia o Ega continuando a esfregar as m os enquanto a tip ia trotava para a ruade S. Francisco, com qu , demolir o nosso D maso?

    - Sim, necess rio acabar com esta persegui o. Chega a ser rid culo... E com umaestocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada.

    Seno deixo-te a ti arranjar os termos duma carta forte...- Hs de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.

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    No Gr mio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por ele na sala dasIlustra es. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de p , no vo duma janela. Efoi uma surpresa. O ministro da Finl ndia abriu os bra os para o cher Maia, que ele n o viradesde a partida de Afonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente,reatando uma certa camaradagem que entre eles se formara nesse ver o, em Sintra: mas oaperto de m o a Carlos foi seco e curto. J dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, oGouvarinho murmurara de leve e de passagem um como est , Maia? em que se sentiaarrefecimento. Ah! j no eram essas efus es, essas palmadas enternecidas pelos ombros, dostempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarretes na cama da titi em Santa Isabel. Agoraque Carlos abandonara a Sr. condessa de Gouvarinho, a rua de S. Mar al e o cmodo sof emque ela caia com um rumor de saias amarrotadas - o marido amuava, como abandonadotamb m.

    - Tenho tido saudade das nossas belas discuss es em Sintra! disse ele, dando ao Ega apalmada carinhosa nas costas que outrora pertencia ao Maia. Tivemo-las de primeira ordem!

    Eram realmente pegas tremendas no p tio do Victor sobre literatura, sobre religi o,sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus.

    - verdade! acudiu o Ega. Voss nessa noite parecia ter s costas uma opa de irm o do

    Senhor dos Passos!O conde sorriu. Irm o do Senhor dos Passos n o, gra as a Deus! Ningu m melhor do queele sabia que nesses sublimes epis dios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas enfim eramlendas que serviam para consolar a alma humana. o que ele objectara nessa noite ao amigoEga... Sentiam-se a filosofia e o racionalismo capazes de consolar a m e que chora? N o. Ento...

    -Em todo o caso, tivemo-las brilhantes! concluiu ele olhando o rel gio. E, eu confesso, umadiscuss o elevada sobre religi o, sobre metaf sica, encanta-me... Se a pol tica me deixassevagares dedicava-me filosofia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.

    Steinbroken no entanto, esticado na sua sobre-casaca azul, com um raminho de alecrim aopeito, tomara as m os de Carlos:

    - Mais vous tes encore devenu plus fort!... Et Afonso da Maia, toujours dans ses terres?...Est-ce qu'on ne va pas le voir un peu cet hiver?

    E imediatamente lamentou n o ter visitado Santa Olavia. Mas qu ! a famlia real instalara-se em Sintra; ele fora for ado a acompanha-la, fazer a sua corte... Depois necessitara ir de fugidaa Inglaterra de onde acabava de chegar, havia dias.

    Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Ilustrada...- Vous avez lu a? Oh oui, on a t trs aimable, tr s aimable pour moi la Gazete...Tinham-lhe anunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade

    particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta afei o sincera que ligaPortugal e a Finl ndia... Mais enfin on avait t charmant, charmant!...

    - Seulement- ajuntou ele, sorrindo com finura e voltando-se tamb m para o Gouvarinho -on a fait une petite erreur... On a dit que j' tais venu de Southampton par le Royal Mail... Cen'est pas vrai, non! Je me suis embarqu Bordeaux dans les Messageries. J'ai m me pens crire Mr. Pinto, redacteur de la Gazete, qui est un charmant gar on... Puis, j'ai reflechi, je mesuis dit: Mon Dieu, on va croire que je veux doner une le on de exactitude la Gazete c'est tr sgrave... Alors, voil , trs prudement, j'ai gard le silence... Mais enfin c'est une erreur: je mesuis embarqu Bordeaux.

    Ega murmurou que a Hist ria se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministrosorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a Hist ria seno incomodasse. E ent o o Gouvarinho, que acendera o charuto, espreitara outra vez o rel gio,perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do minist rio e da crise.

    Foi uma surpresa para ambos, que n o tinham lido os jornais... Mas, exclamou logo o Ega,crise porqu , assim em pleno remanso, com as c maras fechadas, tudo contente, um t o lindotempo de outono?

    O Gouvarinho encolheu os ombros com reserva. Houvera na v spera, noitinha, uma

    reuni o de ministros; nessa manh o presidente do conselho fora ao pa o, fardado, determinadoa largar o poder... N o sabia mais. N o conferenciara com os seus amigos, nem mesmo fora

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    ao seu Centro. Como noutras ocasi es de crise, conservara-se retirado, calado, esperando... Aliestivera toda a manh , com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.

    Isto parecia a Carlos uma absten o pouco patri tica...- Porque enfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...- Exactamente por isso, acudiu o conde com uma cor viva na face, n o desejo p r-me em

    evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experi ncia, a minhapalavra, o meu nome s o necess rios, os meus correligion rios sabem onde eu estou, venhampedir-mos...

    Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas pol ticas,come ou logo a retrair-se para o fundo da janela, limpando os vidros da luneta, recolhido, j impenetr vel, no grande recato neutral que competia Finlndia. Ega no entanto n o saia doseu espanto. Mas porque caia, porque caia assim um governo com maioria nas c maras, sossegono pa s, o apoio do exercito, a ben o da Igreja, a protec o do Comptoir d'Escompte?...

    O Gouvarinho correu devagar os dedos pela p ra, e murmurou esta raz o:- O minist rio estava gasto.- Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.O conde hesitou. Como uma vela de sebo n o diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora

    neste minist rio sobrava o talento. Incontestavelmente havia l talentos pujantes...- Essa outra! gritou Ega atirando os bra os ao ar. extraordin rio! Neste aben oado pa stodos os pol ticos tm imenso talento. A oposi o confessa sempre que os ministros, que elacobre de injurias, t m, parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Poroutro lado a maioria admite que a oposi o, a quem ela constantemente recrimina pelosdisparates que fez, est cheia de robust ssimos talentos! De resto todo o mundo concorda que opa s uma choldra. E resulta portanto este facto supra-c mico: um pa s governado com imensotalento, que de todos na Europa, segundo o consenso un nime, o mais estupidamentegovernado! Eu proponho isto, a ver: que como os talentos sempre falham, se experimentemuma vez os imbecis!

    O conde sorria com bonomia e superioridade a estes exageros de fantasista. E Carlos,ansioso por ser am vel, atalhou, acendendo o charuto no dele:

    - Que pasta preferiria voc , Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros,est claro...

    O conde fez um largo gesto de abnega o. Era pouco natural que os seus amigosnecessitassem da sua experi ncia pol tica. Ele tornara-se sobretudo um homem de estudo e deteoria. Al m disso n o sabia bem se as ocupa es da sua casa, a sua sa de, os seus h bitos lhepermitiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros n o otentava...

    - Essa, nunca! prosseguiu ele, muito compenetrado. Para se poder falar de alto na Europa,como ministro dos Estrangeiros, necess rio ter por traz um exercito de duzentos mil homens euma esquadra com torpedos. N s, infelizmente, somos fracos... E eu, para pap is subalternos,para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me h de ser assim, n o estou!... Pois n oacha, Steinbroken?

    O ministro tossiu, balbuciou:- Certainement... C'est tr s grave... C'est excessivement grave...Ega ent o afirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interesse geogr fico pela frica,

    faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.- Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas col nias todas as coisas belas, todas

    as coisas grandes est o feitas. Libertaram-se j os escravos; deu-se-lhes j uma suficiente no oda moral crist ; organizaram-se j os servi os aduaneiros... Enfim o melhor est feito. Em todo ocaso h ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Luanda... Menciono istoapenas como um pormenor, um retoque mais de progresso soa dar. Em Luanda precisava-se bem um teatro normal como elemento civilizador!

    Nesse momento um criado veio anunciar a Carlos - que o Sr. Cruges estava em baixo, noportal, espera. Imediatamente os dois amigos desceram.

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    - Extraordin rio, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.- E este, observou Carlos com um imenso desd m de mundano, um dos melhores que h

    na pol tica. Pensando mesmo bem, e metendo a roupa branca em linha de conta, este talvez omelhor.

    Acharam o Cruges porta, de jaquet o claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhelogo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.

    - jantar?- enterro.E rapidamente, sem aludir a Maria, contaram ao maestro que o D maso publicara num

    jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem eles tinham suprimido, n o sendo poss vel por issomostrar o n mero imundo) um artigo em que a coisa mais doce que se chamava a Carlos erapulha. Portanto Ega e ele Cruges iam a casa do D maso pedir-lhe a honra ou a vida.

    - Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu dessas coisas n o entendo.- Tens, explicou Ega, de ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobrolho. Depois vir

    comigo; n o dizer nada; tratar o D maso por V. Exc.; assentar em tudo o que eu propuser; enunca desfranzir o sobrolho nem despir a sobrecasaca...

    Sem outra observa o, Cruges partiu a cobrir-se de cerim nia e de negro. Mas no meio da

    rua retrocedeu:- Carlos, olha que eu falei l em casa. Os quartos do primeiro andar est o livres, eforrados de papel novo...

    - Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!... O maestro abalara, quando diante do Gr mioestacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Teles da Gama que, ainda com a m o nofecho da portinhola, gritou aos dois amigos:

    - O Gouvarinho? est l em cima?- Est... Novidade fresca?- Os homens ca ram. Foi chamado o S Nunes!E enfiou pelo p tio, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar at ao port o do Cruges.

    As janelas do primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para l os olhos,pensava nessa tarde das corridas em que ele viera no faeton, de Bel m, para ver aquelas janelas:ia ent o escurecendo, por traz dos stores fechados surgira uma luz, ele contemplara-a comouma estrela inacess vel... Como tudo passa!

    Retrocederam para o Gr mio. Justamente o Gouvarinho e Teles atiravam-se pressa paradentro da caleche que esperara. Ega parou, deixou cair os bra os:

    - L vai o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a Dama das Cam liasno sert o! Deus se amerceie de n s!

    Mas o Cruges apareceu enfim de chap u alto, entalado numa sobrecasaca solene, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tip ia estreita e dura. Carlos ia leva-los a casa doDmaso. E como queria ainda jantar nos Olivais, esperaria por eles, para saber o resultado dochinfrin, no jardim da Estrela, junto ao coreto.

    - Sede rpidos e medonhos!A casa do D maso, velha e dum andar s tinha um enorme port o verde, com um arame

    pendente que fez ressoar dentro uma sineta triste de convento e os dois amigos esperarammuito antes que aparecesse, arrastando as chinelas, o galego achavascado que o D maso (agoralivre de Carlos e das suas pompas) j no trazia torturado em botins cru is de verniz. A umcanto do p tio uma portinha abria sobre a luz dum quintal, que parecia ser um deposito decaixotes, de garrafas vazias e de lixo.

    O galego, que reconhecera o Sr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a umcorredor largo, escuro, com cheiro a mofo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, ondealvejava a claridade duma porta entreaberta. Quasi imediatamente D maso gritou de l :

    - Ega, voc? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...Embara ado com estes brados de intimidade e tanta efus o, Ega ergueu a voz da sombra

    do corredor, gravemente:

    - No tem d vida, n s esperamos...O Dmaso insistia, porta, em mangas de camisa, cruzando os suspens rios:

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    - Venha voc , homem! Que diabo, eu n o tenho vergonha, j estou de cal as!- H aqui uma pessoa de cerim nia, gritou o Ega para findar.A porta ao fundo cerrou-se, o galego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos

    dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vest gios da antiga amizadecom o Maia: o retrato de Carlos a cavalo, num vistoso caixilho de flores em faian a: uma dascolchas da ndia das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada porCarlos com alfinetes: e sobre um contador espanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de cetimde mulher, novo, que o D maso comprara no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que emtodo o quarto de rapaz deve aparecer, discretamente disposta, alguma rel quia de amor...

    Sob estes retoques de chic, dados pressa sob a influ ncia do Maia, impertigava-se a s lidamob lia do pai Salcede, de mogno e veludo azul; a console de m rmore, com um rel gio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendio