Os partidos políticos no Portugal oitocentista (discursos...

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  • Jos Miguel Sardica* Anlise Social, vol. xxxii(142), 1997 (3.), 557-601

    Os partidos polticos no Portugal oitocentista(discursos historiogrficos e opiniescontemporneas)* *

    1. OS DISCURSOS HISTORIOGRFICOS E OS MITOS A REVER

    Do cruzamento dos pressupostos tericos estabelecidos pela cincia polticapara a definio ideal-tpica dos partidos polticos do sculo xix apura-se, deum modo geral, que as formaes partidrias do liberalismo monrquicooitocentista reproduziam o clssico modelo weberiano do partido de not-veis1. Entre as suas caractersticas mais genricas conta-se a prioridade da

    * Faculdade de Cincias Humanas da Universidade Catlica Portuguesa (UCP).** O presente texto corresponde a um resumo, com alteraes e aditamentos, da i parte da

    dissertao de mestrado do autor, intitulada A Regenerao sob o Signo do Consenso (A Polticae os Partidos entre 1851 e 1861) e defendida na FCSH da Universidade Nova de Lisboa em Maiode 1997. Em relao ao original, condensou-se o captulo i (Anlises historiogrfcas sobre ospartidos polticos) em algumas linhas introdutrias e reproduziu-se na ntegra a parte central docaptulo II, que justamente deu o ttulo ao artigo que agora se publica.

    1 Max Weber, Le mtier et la vocation de l`homme politique, in Le Savant et lepolitique, Paris, Librairie Plon, 1959, pp. 99-185. Neste texto, o conhecido socilogo estabe-lecia a dicotomia entre partido de notveis (sculo xix) e partido de massas (sculo xx).Mais tarde, numa outra obra sua (Economy and Society. An Outline of Interpretative Sociology,Berkeley, University of California Press, 1978), falaria de partidos de patrocinato versuspartidos ideolgicos. O vocabulrio e a anlise de Weber fizeram escola, estabelecendo umamatriz dicotmica ainda hoje vlida, sucessivamente retomada e retocada por autores poste-riores, como Sigmund Neumann (partido de representao individual versus partido deintegrao social), Maurice Duverger (partido de quadros versus partido de massas),Giovanni Sartori (in-group, parliamentary, vote-collecting parties versus out-group,electoral, vote-seeking parties) ou Stein Rokkan e Martin Lipset (partidos de regimecensitrio versus partidos de classe inferion). Para uma abordagem geral acerca da litera-tura sobre os partidos, v., sobretudo, Joseph Lapalombara e M. Weiner, Political Parties and 557

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    aco centrada na luta eleitoral e parlamentar, e no na mediao entre ocolectivo da sociedade e a esfera do governo, a organizao interna geralmenteamadorstica, rudimentar e informal, a fluidez dos contedos programticos,a disciplina e unidade internas tnues e a aposta numa lgica personalista efechada de caciquismo, com o fito de autopreservar no restrito crculo do poderuma tambm restrita elite de notabilidades.

    Em rigor, at ao advento da democracia de massas, na transio para osculo xx, os agrupamentos de aco poltica no passavam de partidosrudimentares ou protopartidos, testemunhos de uma poca de construodo constitucionalismo ainda muito marcada por alguns vectores culturais quedificultavam a estruturao e aceitao de clivagens partidrias. Na realida-de, fosse a fundamentao filosfica iluminista unitria do primeiro libe-ralismo2, fossem os traumas da pulverizao scio-poltica vividos na eradas revolues, o facto que o imaginrio liberal s a custo se libertou deuma difusa repulsa pela ideia de partido. A generalidade dos pensadoresliberais do sculo passado no convivia bem com a fragmentao partidriados sistemas polticos e s a custo entrevia que substanciais diferenas po-deriam existir entre a realidade dos partidos, enquanto partes constitutivasde um todo, e a realidade, unanimemente condenada, das faces, enquanto

    Political Development, New Jersey, Princeton, 1966, Jean Charlot, Os Partidos Polticos,Lisboa, Parceria Antnio Maria Pereira, 1974, Maurice Duverger, Os Partidos Polticos,Rio de Janeiro, Zahar Editores/Braslia, 1980, Giovanni Sartori, Parties and Party Systems.A Framework for Analysis, Cambridge University Press, 1979, e Angelo Panebianco, PoliticalParties. Organization and Power, Cambridge University Press, 1988.

    2 Para l do espectculo das amplas liberdades, o liberalismo tinha, antes de mais, umafundamentao filosfica que mergulhava as suas razes no que de mais slido e duradourohavia na herana recebida do iluminismo: a lgica da unicidade da razo, isto , a crena deque, por definio, s havia uma racionalidade, obrigando a que o que era racional para unstivesse de o ser para todos os restantes, na medida em que a razo, sendo o nico, uniformee superior guia de aco para os homens, era universal, isto , fundamentalmente una, emtodos operando da mesma maneira e por essa via permitindo que todos convivessem emsociedade e se organizassem eficazmente do ponto de vista poltico. Seguia-se que, s haven-do uma racionalidade, s haveria uma verdade, um conceito de bem pblico e uma forma deo concretizar politicamente. Logo, a existncia de vrios partidos, cada um deles portador deuma racionalidade poltica particular, de uma verdade prpria e parcelar, de um projectoespecfico, seria, no mnimo, filosoficamente injustificvel, no mximo, um pernicioso sinto-ma patolgico. a Isaiah Berlin que se devem as mais completas reflexes acerca destaoriginalidade da cultura ocidental ps-iluminista: a recorrente ideia de que a verdade podia edevia ser uma e una e que, portanto, todas as verdades parciais teriam de ser reconduzidas unidade. Acresce que desta unicidade da razo Voltaire derivava a unicidade da nao Rousseau, somando, assim, ao preconceito antipartidrio filosfico um preconceito antiparti-drio de cariz socio-poltico (cf. Isaiah Berlin, The Age of Enlightment. The EighteenthCentury Philosophers, Oxford University Press, 1979, e Vico and the idea of enlightment,in Against the Current. Essays in the History of Ideas, Oxford, Clarendon Press, 1989,

    558 PP- 120-129).

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    fragmentos dissolventes desse mesmo todo. Por conseguinte, a persistenteindiferenciao entre partido e faco atrasou consideravelmente o reconhe-cimento histrico do primeiro, fazendo da realidade partidria de Oitocentosalgo sempre olhado de vis, quanto mais no fosse em virtude da sua origemextraconstitucional.

    O padro caracterstico dos partidos oitocentistas atrs definido podeaplicar-se genericamente realidade portuguesa da Regenerao, porquanto,pelo menos at transio para o sculo xx, o sistema poltico-partidrioportugus acompanhou o modelo da poltica dos notveis. S a partir da podecomear a falar-se de uma tendencial singularidade e arcasmo nas prticaspoltico-partidrias portuguesas, em virtude de o pas ter revelado dificuldadesem acompanhar o processo de modernizao e abertura que a maioria dosEstados europeus ento imprimiram s respectivas vidas polticas3.

    Neste sentido, tambm em Portugal a realidade partidria permaneceudurante muito tempo desprovida de qualquer enquadramento legal e consti-tucional; tambm em Portugal foi lenta e problemtica a distino entrepartido e faco, e o reconhecimento do primeiro como elemento necessrioe positivo entre as componentes do sistema poltico; tambm em Portugal opanorama partidrio oitocentista, mais propriamente do perodo da Regene-rao, foi dominado por esses partidos de notveis, prprios de uma so-ciedade liberal censitria e oligrquica; finalmente, tambm em Portugal opartido de massas, smbolo da abertura democratizante do liberalismoclssico, a ter existido, um produto do sculo xx, embora as suas maisremotas razes se liguem adopo do sufrgio universal e presso exte-rior, antimonrquica, exercida pelo militantismo revolucionrio republicanonos anos 80 e 90 do sculo xix. No entanto, necessrio acrescentar que, emrigor, um sistema de partidos e de governo responsivo face aos inputs daopinio pblica s surgiu verdadeiramente em Portugal aps 1974, uma vezsuperado o interregno apartidrio do Estado Novo, e dando por adquiridoque antes a Repblica, por inmeras razes, entre as quais avulta a crnicainstabilidade dos anos 1910-1926, no chegou nunca a constru-lo.

    Fosse a importao acrtica dos modelos de anlise histrica dos partidosem vigor noutros pases, fosse a tentativa, muitas vezes inconsciente, deproduzir quadros de resumo da evoluo partidria portuguesa, cronologica-mente arrumados, o facto que a historiografia produzida sobre os partidospolticos do sculo passado revela bastantes ideias preconcebidas e interpre-taes que empobrecem a realidade, quer no que toca diferenciao con-creta dos vrios tipos de partido da segunda metade do sculo xix, quer,sobretudo, no que toca ao estabelecimento de balizas cronolgicas das dife-rentes fases da sua evoluo.

    3 Pedro Tavares de Almeida, Eleies e Caciquismo no Portugal Oitocentista (1868--1890), Lisboa, Ed. Difel, col. Memria e Sociedade, 1991, p. 12. 559

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    A historiografia portuguesa acerca dos partidos polticos , alis, muitoescassa. No h nenhum estudo de conjunto sobre o sistema partidrio por-tugus oitocentista. As abordagens que existem so normalmente parcelares,ou seja, relativamente laterais problemtica especfica dos partidos, apare-cendo as referncias a estes diludas, como objecto secundrio de livros oucaptulos de histria poltica, de histria das ideias, de sociologia eleitoral oude literatura sobre o caciquismo. No que estes ngulos de abordagem sejamdispensveis para o estudo dos partidos: o problema est no facto de abibliografia com enfoque especfico nestes ser muito reduzida. parte pe-quenos artigos, muitas vezes pioneiros e, por isso mesmo, muito ensasticose sintticos, as nicas anlises com flego de longa durao foram produzi-das por juristas, com particular destaque para o livro de Marcelo Rebelo deSousa sobre os partidos polticos no direito constitucional portugus4. Forado campo do direito, e dentro do campo da histria sem que com istodeva inferir-se que um e outro so esferas separadas , continua a serincontornvel recorrer s magras menes que sobre o tema as histrias dePortugal vo fazendo.

    Sucede que sobre aquilo que est escrito h um trabalho de aprofunda-mento e reviso que necessrio fazer para desmontar mitos que a evidnciaemprica e a lgica histrica, quando vistas mais de perto, no permitemsustentar. De entre todos os mitos ou lugares-comuns h um cuja simplesdesmontagem permite entrever consequncias importantes para qualquer tra-balho de investigao acerca da segunda metade do sculo xix aquele quepoderia designar-se pelo mito da Regenerao unitria, ou seja, a recorrenteideia feita de que o perodo que medeia entre 1851 e 1890 pode ser consi-derado um todo uniforme, que se desenvolve sempre da mesma maneira,num quadro institucional e poltico genericamente imutvel. Ora esta ima-gem no corresponde verdade histrica e tem sido a responsvel por nopoucos equvocos, que, por sua vez, originam uma deficiente e superficialpercepo do que foram essas quatro dcadas, que se estendem desde opronunciamento saldanhista de 1851 crise do ultimato em 1890.

    Sobretudo o que interessa rever a alegada unidade cronolgica doperodo, no que toca ao processo de estruturao poltico-partidria da Re-generao. Na efectivao prtica do modelo de funcionamento do sistemapoltico regenerador h nuances e especificidades que retalham o perodo de1851-1890 em microperodos dotados de identidade prpria. H, alis, umgeral defeito de ptica na historiografia portuguesa que consiste em trabalharos anos 70 e 80 do sculo xix, alargando, retrospectivamente, as conclusesobtidas ao perodo dos anos 50-60. por isso que os primeiros anos da

    4 Marcelo Rebelo de Sousa, Os Partidos Polticos no Direito Constitucional Portugus,560 Braga, Livraria Cruz, 1983.

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    Regenerao so um subperodo praticamente ignorado, porque exactamentese supe analisado atravs dos conhecimentos obtidos para a fase final dasquatro dcadas ureas da Regenerao. Mesmo quando se recortam doisperodos a Regenerao antes da Fuso (1851-1865) e a Regeneraodepois da Fuso (1868-1890) , no se exploram as razes e as consequn-cias dessa diviso, menosprezando as alteraes registadas de um perodopara o outro.

    A anlise das imagens produzidas sobre os partidos ajuda a concretizar oque fica dito. D-se por adquirido que existem diferenas entre os sistemaspolticos (e a natureza das unidades de base que os compem) do perodoanterior e posterior Regenerao. De facto, a lgica poltico-partidria dosanos 1834-1851 bastante diferente da dos anos posteriores a 1851: uma eoutra tm diferentes pressupostos, diferentes objectivos, diferentes prticas,diferentes instituies, em suma, diferentes configuraes. Entre o modelo deum e de outro perodo h, portanto, um processo de transio, que exactamen-te o que constitui a especificidade e o desafio historiogrfico do estudo dosanos 50-60.

    O problema que essa transio, que se cristalizar, do ponto de vistapoltico-partidrio, no conhecido sistema do rotativismo monrquico, s perceptvel depois de se ter consumado. Ou seja, uma apreciao rigorosa dosistema partidrio oitocentista obriga a reconhecer que a conjuntura dosprimeiros anos da Regenerao foi dominada por um tipo de agrupamentopartidrio e por uma lgica poltica algures (perdoe-se a palavra poucocientfica) entre as faces e o intransigentismo exclusivista, tpicos dos anos34-51, e os partidos de notveis clssicos, com a sua mecnica de alternn-cia, tpicos do rotativismo dos anos 70 e 80. Do ponto de vista da nomen-clatura, quase inescapvel chamar s formaes dessa fase inicial da Re-generao partidos de notveis. Mas o rigor recomenda que eles sejamperspectivados ainda numa fase embrionria de construo.

    Na realidade, talvez fosse melhor falar, para os anos 50-60, de macrofac-es, de protopartidos ou de parcialidades. Os politlogos hesitam bastantenas palavras a utilizar para estes perodos de transio entre o faccionalismoe a vigncia dos partidos de notveis clssicos, mas a opo a fazer possvel e historicamente justificvel. No que toca aplicao do termoprotopartido, pode questionar-se que especificidade designa ele, aplicadoaos anos 50, se o mesmo recorrentemente utilizado para retratar aheterogeneidade de faces em que se dividiam os blocos cartista e setem-brista at 1851. No ser, por isso, um protopartido uma macrofaco?E no parecer desajustado utilizar este ltimo termo nos anos 50, uma vezque se trata de uma poca que muito mais um ponto de partida para umfuturo status quo de partidos de notveis do que uma mera continuao domodus vivendi poltico dos anos 40? Resta o termo parcialidade, o vocbuloque melhor retrata o estado dos partidos na dcada de 50 e que melhor

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    remete para a percepo, que crucial manter, de que os agrupamentos dafase inicial da Regenerao so ainda diferentes dos clssicos partidos denotveis que se cristalizaro apenas depois do fracasso da experinciafusionista de 1865-1868. No ter em mente esta nuance, insistir em ver nosanos 1851-1890 um todo uniforme, significa no perceber o erro simplistaque subjaz ao mito da Regenerao cronologicamente unitria.

    Ora h um argumento histrico a favor do uso do termo parcialidade era a palavra que os prprios contemporneos mais usavam na imprensa, noparlamento, nos seus escritos, num claro testemunho de que sentiam estarema viver uma poca de mudana e de indefinio partidria. Os anos 50 e 60funcionaram, assim, como um perodo de experimentao, de clarificao, deadaptao, de depurao partidria, preparatrio da consolidao dos verda-deiros partidos de notveis o Regenerador, de Fontes Pereira de Melo, eo Progressista, de Anselmo Braamcamp e Jos Luciano de Castro. Tivessea historiografia dado a devida ateno a este termo parcialidade eseguramente a aplicao retrospectiva das concluses acerca dos anos 70 e80 aos anos 50-60 teria encontrado reservas e impossibilidades, motivandouma pesquisa autnoma a essas dcadas centrais do sculo, at hoje porfazer.

    A recusa dessa aplicao retrospectiva e a busca da identidade prpriados anos iniciais da Regenerao so as preocupaes deste artigo, demons-trando como historicamente incorrecto, em termos de anlise do sistemapoltico portugus, tratar como um todo uniforme o perodo de 1851-1890.Daqui decorrem consequncias importantes. Por exemplo, possvel afirmar,a partir dos testemunhos dos contemporneos e da investigao factolgica,que a omnicitada imagem do rotativismo bipartidrio regenerador um mitoabusivamente aplicado aos anos 50 e 60.

    O mecanismo de uma alternncia ritmada e regular entre uma esquerdae uma direita monrquicas, claramente definidas e estruturadas, pertenceu,durante os anos iniciais da Regenerao, mais ao plano das especulaes doque ao plano dos factos. Existiram, certo, sinais de demarcaoorganizativa e tentativas de diferenciao programtica entre as parcialidadesem cena. Contudo, abundam os sinais de que se estava ainda numa faseembrionria e experimental, numa fase de transio entre o faccionalismoanrquico, caracterstico do perodo anterior Regenerao, e a realinstitucionalizao de um modelo de rotativismo partidrio.

    A plena efectivao deste implica a existncia de dois, e idealmente sdois, partidos que, de forma clara e diferenciada, representem duas famliasde opinio, com os seus valores e com o seu espao prprio, mas que, apesardas suas diferenas, se pem de acordo acerca de um fundo ideolgicocomum, facto que lhes permite institurem entre si um informal pacto para

    562 a partilha do poder, num esquema de rotao e alternncia ritmado, coorde-

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    nado pelas respectivas chefias margem ou independentemente de ingern-cias exteriores5.

    Ora isto, pura e simplesmente, no existia nos primeiros anos da Rege-nerao. Desde logo, pelo facto de durante a dcada de 50 as duas parcia-lidades regeneradora e histrica nunca terem esgotado o espao total dosistema poltico monrquico. Foras minoritrias, mas inequivocamente actu-antes, como os cartistas e os legitimistas (j para no falar nos radicais deextrema-esquerda), sobreviveram de forma mais ou menos autnoma, comos seus rgos de imprensa e os seus comits eleitorais, embora aparecessemnormalmente em cena coligadas com, e mais ou menos manietadas por,regeneradores e histricos. Significa isto que at arrumao partidria daesquerda nos anos 70 (isto , a juno de histricos e reformistas num nicoPartido Progressista) a vida poltica portuguesa no se fez a dois, mas aquatro; no configurou um rotativismo de partidos, quando muito umpluripartidarismo de parcialidades.

    Acresce que, mesmo deixando de parte as parcialidades minoritrias,situadas normalmente nas franjas do regime, os dois comparsas do centro--direita e do centro-esquerda patinaram constantemente no seu processo dediferenciao: peridicos planos de aproximao e/ou reconciliao entreregeneradores e histricos vocbulos que, alis, s lentamente se voimpondo testemunham a persistncia tenaz da ideia da utilidade e neces-sidade de um grande bloco nacional apartidrio. Ora o rotativismo supeacordo para a partilha diferenciada e bipartidria do poder; no supesobreposio, fuso ou miscigenao.

    Um outro obstculo aplicao da imagem do rotativismo aos anos 50--60 reside nos prprios processos de formao e substituio dos governos.Mais do que em virtude de uma dinmica de acordos partidrios previsveis,as transies ministeriais eram processos casusticos, normalmentedespoletados por agentes exteriores as pretensas presses do pariato e,sobretudo, a ingerncia pessoal do arbtrio rgio. invisible hand que teo-ricamente faz alternar os governos no rotativismo substituiu-se, nos anos 50,a muito visible hand do rei D. Pedro V. Finalmente, a esta ressalva soma--se ainda uma ltima. Os governos do rotativismo dos anos 70 e 80 soinequivocamente governos tirados de um ou outro partido; nos anos 50 e 60so governos menos coesos, porque formados a partir de vrias parcialida-des e, muitas vezes, com uma explcita retrica de superao dessas mesmasparcialidades: entre 1851 e 1856, de progressistas pr-Regenerao oriundos

    5 Esta mecnica tem, de acordo com os tericos, uma evidente influncia estabilizadora:a linha que demarca os dois partidos traa um bipartidarismo tcnico, e no umbipartidarismo metafsico, ou seja, separa os partidos em torno de objectivos prticos emeios de realizao da obra poltica, e no em torno de divergncias ideolgicas que atinjama prpria natureza do regime (cf. Maurice Duverger, Os Partidos Polticos, p. 250). 563

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    de diversos quadrantes polticos e unidos pelo dio a Cabral; entre 1856 e1859, de loulelistas, avilistas e progressistas histricos; entre 1859 e1860, de regeneradores e cartistas; finalmente, de 1860 em diante, de novode avilistas e histricos. Eram, portanto, governos multipartidrios ouapartidrios que baralhavam as foras polticas em cena, dificultando os que(e no eram muitos) teorizavam as excelncias de um esquema rotativista departidos claramente diferenciados.

    O difuso progressismo centrista e reconciliador emprestava primeiraRegenerao uma lgica centrpeta que atropelava quaisquer divises for-mais. Era isto que exasperava os puristas e deliciava os transformistas,forjando, no discurso da cultura poltica, uma imagem ainda bem poucoabonatria dos, ou no mnimo desconfiada em relao aos, partidos polticos,diferente do optimismo com que os mesmos lentamente comearam a serolhados nos anos posteriores.

    Em suma, a ideia de que a Regenerao forma um perodo unitrio, debipartidarismo perfeito e de pleno e cordato rotativismo, revela uma imagemmitolgica que no corresponde verdade histrica6. Fundamentalmente, necessrio desmistificar a unidade cronolgica do perodo: at finais dos anos70 no est superada a confuso partidria, porquanto o golpe da Regeneraono implicou, automaticamente, nem o agrupamento das foras polticas emdois grandes partidos, representantes de duas diferentes filosofias polticas,liberal e conservadora, nem to-pouco a paz poltica e a estabilidadegovernativa que o permitissem. Os anos 50 e 60 foram anos de paz poltica,ou pelo menos de pacificao, mas combinada com perodos de instabilidadegovernativa, o que tambm um alerta para os exageros que rodeiam a ideiada pacificao regeneradora: por debaixo da realizao de um consenso bas-tante alargado acerca dos desgnios genricos a cumprir nunca deixou deexistir um grau de conflitualidade poltico-parlamentar no despiciendo.

    s depois da muito conturbada dcada de 60 iniciada com as agi-taes populares da Associao Patritica e com a desagregao interna doPartido Histrico, em 1861-1862 que o sistema partidrio portugus inicia

    6 H uns anos atrs, num curioso artigo do jornal O Independente, no qual se solicitavaa diversos historiadores portugueses que desmistificassem outros tantos mitos da histria dePortugal, Vasco Pulido Valente escreveu, a propsito do rotativismo: A ideia de que a partirde 1851 existiram apenas dois partidos de peso, um supostamente de esquerda (os Histri-cos e, depois, os Progressistas) e outro supostamente de direita (os Regeneradores), quese sucediam cordatamente no poder e entre os quais no havia autnticas diferenas trsvezes falsa. Em primeiro lugar, a confuso partidria s desapareceu em 1876. Em segundolugar, houve apreciveis diferenas entre o radicalismo progressista e o conservadorismoregenerador at, pelo menos, 1886-1891. Em terceiro lugar, a esquerda e a direita nuncapartilharam com regularidade o poder em turnos de quatro anos, como quer a lenda

    564 (O Independente de 20-9-1991, caderno iii, p. 11).

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    o seu perodo de consolidao, vindo, ento sim, a dar consistncia a umnico partido de direita liberal monrquica o Regenerador e a umnico partido de esquerda liberal monrquica o Progressista. E mesmoafirmar isto implica algum simplismo, j que o rotativismo que se praticouem Portugal a partir da no revelou nem a regularidade nem a credibilidadepblicas que permitam falar de um bipartidarismo perfeito. A existnciade pequenos grupsculos de presso dentro do leque monrquico comoos avilistas, os constituintes de Dias Ferreira, ou a esquerda dinstica deBarjona de Freitas e a ameaa que representavam os partidos exterio-res, socialista e, sobretudo, republicano, fundados, respectivamente, em1875 e 1876, autorizam, quando muito, a falar de um tendencial bipartida-rismo, ou bipartidarismo imperfeito, de parceria com a institucionalizao deuma alternncia mais em termos de possibilidade ou de expectativa do quede real efectivao. S a espaos os partidos portugueses partilharam o podercompletamente sozinhos e em turnos ritmados de quatro anos tanto quePulido Valente afirma que o rotativismo propriamente dito posterior ao anode 1890, quando a durao dos perodos de governo tendeu de facto a teralguma homogeneidade7 , assemelhando-se mais a realidade com o mode-lo de um partido dominante: os regeneradores dominando o vintnio de1870-1890, como que encarnando o fontismo de D. Lus, tal como acon-tecera com os histricos na primeira fase da Regenerao, encarnando oesquerdismo de D. Pedro V.

    Vale a pena, a propsito da questo do rotativismo em Portugal, citar orecente apontamento historiogrfico de Rui Ramos pelo que de desmistificadorcontm: o rotativismo tem sido uma perene fonte de confuses nahistoriografia portuguesa. Historiadores ingnuos tendem a descrever a vidapoltica de 1851 a 1910 como dominada pela pacfica e rotineira rotao dedois partidos, o Partido Regenerador (de Fontes) e o partido da esquerda (oPartido Histrico, do duque de Loul, e depois o Partido Progressista, deAnselmo Braamcamp e Jos Luciano). Esta buclica viso no resiste maiselementar anlise [...] A rotao dos partidos era um mecanismo conhecido eaceite pelos liberais portugueses, mas muito pouco usado. Descrevia no umreal roulement no governo, mas apenas a possibilidade de uma alternnciapacfica ao presente gabinete, baseado na existncia na oposio de um partidoque, sendo candidato ao poder, respeitaria a Constituio. Na realidade, apoltica portuguesa descreve-se mais exactamente em termos da ascendnciade um partido ou chefe partidrio8 sensivelmente Saldanha, primeiro,Loul, depois, Fontes, por ltimo (at finais dos anos 80).

    7 Vasco Pulido Valente, ibid., p. 11.8 Rui Ramos, A Segunda Fundao (1890-1926), 6. vol. da Histria de Portugal (dir. de

    Jos Mattoso), Lisboa, Crculo de Leitores, 1993, p. 249. J Giovanni Sartori escrevera quea alternncia deve ser entendida de maneira ampla, de forma a implicar a expectativa, e no 565

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    O rotativismo est, portanto, claramente sobrevalorizado na escrita dahistria poltica portuguesa oitocentista, mascarando, mais do que explicando,o que foi a intriga poltica do tempo, bem como as especificidades e deficin-cias dos partidos portugueses face ao paradigma ingls. Sobrevalorizado nosentido em que quando era referido e elogiado e virtualmente no o ter sidoat ao fracasso da Fuso na segunda metade dos anos 60 era-o no tantocomo descrio verdadeira da realidade partidria, mas como projecto oureferencial de organizao dessa mesma realidade. Mais do que a constataodo existente, a bandeira do rotativismo era a aspirao utpica de criar emPortugal uma matriz de hbitos polticos para a qual o pas estava manifesta-mente impreparado.

    O rotativismo e o bipartidarismo, que muitos polticos portugueses sehabituaram a pedir, mas que nenhum praticou Ia lettre, foi apenas uminvlucro ideolgico com que o sistema monrquico mascarou as suas crisesde legitimidade. A prova disso que todos os inovadores polticos, dentroou fora da monarquia, estabeleceram cartaz discursando contra as insuficin-cias do modelo pseudo-rotativista. As suas crticas incidiam no facto de orotativismo, tal como era praticado em Portugal, no fazer alternar no poderorientaes ideolgicas distintas, nas quais, vez, toda ou quase toda anao se sentisse representada, mas meros expedientes de governo e clien-telas elitistas. O resultado final era restringir o acesso cpula do sistema aum punhado de notveis, um ludbrio (como lhe chamaria Joo Franco)que reduzia o to propalado rotativismo, no a um jogo de alternativaspolticas, mas apenas a um jogo de alternncias pessoais.

    necessrio, portanto, rever as divises cronolgicas do sculo xix e, depar com isso, ser especialmente prudente no emprego de modelos tericoselaborados pela cincia poltica actual na anlise da realidade portuguesaoitocentista.

    A historiografia portuguesa, com algumas excepes, no revelou estescuidados, simplificando, aceite-se que de forma involuntria, o processo deevoluo e estruturao do sistema partidrio monrquico. Isso mesmo comprovvel atravs de uma passagem de vista sobre as principais obrasonde aparece focado este tema.

    O paradigma jurdico sobre os partidos portugueses foi traado sobretudoa partir das obras de Marcelo Caetano. Segundo este autor, na histria dobipartidarismo monrquico distinguiam-se apenas trs perodos: o da lutacivil, de 1834 a 1851, o do rotativismo, de 1851 a 1891, e o da desa-

    somente a ocorrncia real do turno poltico [...] por outras palavras, a noo de alternnciaconfunde-se com a noo de competitividade. Em resultado, conclui o autor, obipartidarismo sustenta-se, se no na existncia, pelo menos na expectativa de alternncia no

    566 governo (Parties and Party Systems. A Framework for Analysis, pp. 186 e 192).

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    gregao partidria, de 1891 a 19109. A transio de 1851 fizera-se, na suaanlise, pela agregao do Partido Regenerador em torno do progressismofomentador, ficando a outra parte fiel s tradies partidrias (setembristas),com a designao de Histricos, sob a chefia do duque de Loul10. Consi-derando o rotativismo criado em Portugal logo a partir de 1851, Caetanodesenvolve uma descrio dos partidos polticos donde releva um excessivooptimismo organizativo afirmando que, no parlamento, os partidos seorganizavam sob lderes efectivos, que os supervisionavam e os conduziama votarem segundo as suas orientaes, disciplina que emprestava represen-tao nacional uma maioria segura (o partido governamental) e uma mino-ria onde preponderava o partido rotativo que ficara na oposio11. A issose juntava, por efeito da aplicao do esquema rotativo, uma viso dema-siado simplista e mecnica das transies governamentais, sobretudodesajustada para a realidade factolgica dos anos 50 e 60: Quando o chefede um partido pensava que j se encontrava h bastante tempo no governo,dirigia-se ao monarca e dizia-lhe que era altura de chamar o outro partido.Assim se revezavam os partidos no poder, por mero acordo dos chefes12.

    As coordenadas de Marcelo Caetano influenciaram sobremaneira o livro deMarcelo Rebelo de Sousa. Este autor comea por salientar que o panoramapartidrio portugus revela uma indiscutvel continuidade ao nvel dos princ-pios e, sobretudo, das prticas entre a Monarquia e a Repblica. No seu todo,o perodo de 1820 a 1926 corresponde a uma fase de constitucionalismoparlamentar liberal, marcado pela existncia de dois ou mais partidos, semespecial orientao doutrinria, correspondendo a grupos formados em tornode pessoas. Eram partidos de origem interna ou parlamentar, centrando a suaactividade na luta eleitoral, com escassa ou inexistente implantao social edefinio de rgos ou instituies internas, donde derivava um consequenteartificialismo, enquanto instrumentos de representao poltica e social13.

    Neste perodo de caractersticas unitrias, Rebelo de Sousa recorta crono-logicamente quatro subperodos: a fase da gnese dos partidos (1820-1851); a

    9 Marcelo Caetano, Manual de Cincia Poltica e Direito Constitucional, 6.a ed. (revistae ampliada por Miguel Galvo Teles), Lisboa, 1972, t. ii, p. 445. Caetano retoma nesta obrao que j escrevera na Histria Breve das Constituies Portuguesas, Lisboa, Editorial Verbo,1965.

    10 Id., ibid., p. 447. Aqui reside j um duplo erro: segundo Caetano, os histricos ter-se--iam colocado parte do movimento regenerador; ora a retrica da reconciliao nacional eo facto de, nas suas grandes linhas, o programa histrico ser substancialmente idntico aoregenerador provam exactamente o contrrio. Alm disso, Loul s muito depois de 1851assumiu a direco do Partido Histrico.

    11 Id., ibid., pp. 450 e 466. A indisciplina de voto e o erratismo das maiorias e minoriasnos parlamentos oitocentistas, portanto ainda na primeira fase da Regenerao, invalidam estaimagem.

    12 Id, ibid., p. 461.13 Marcelo Rebelo de Sousa, Os Partidos Polticos no Direito Constitucional Portugus,

    Braga, Livraria Cruz, 1983, pp. 140-149. 567

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    fase do bipartidarismo perfeito, ou rotativismo (1851-1890); a fase do multipar-tidarismo perfeito, ou pulverizao partidria (1890-1910); finalmente, a fasedo multidarismo imperfeito de partido dominante (1910-1926)14. Dos perodosque aqui mais interessam, a primeira fase teria sido marcada pelo anrquicodigladiar de faces ou tendncias, apostadas na conquista do poder pela fora,no existindo qualquer consenso possvel em torno dos prprios princpiosconstitucionais nem, por arrastamento, qualquer possibilidade de arbitragementre as vrias foras polticas em presena. Na segunda fase, iniciada com ogolpe da Regenerao, ter-se-ia estabelecido um ncleo de princpios consti-tucionais, facto que permitiu que as correntes liberais alcan[assem] ummnimo de diferenciao programtica e de estruturao orgnica quecorrresponde formao de verdadeiros partidos polticos15. Ter-se-ia, assim,construdo um rotativismo em torno de dois grandes partidos de notveis, quecorrespondem fielmente s linhas liberal-conservadora e liberal-progressista,cujo afrontamento fora bem vivo na fase anterior a 185116.

    Com a terceira fase, despoletada pela crise do binio 1890-1892, inicia-sea realidade das cises nos grandes partidos, acentuando-se paralelamente, e porparadoxal que parea, a indiferenciao programtica entre ambos. Por outrolado, e em face de um sistema monrquico enfraquecido pelas experincias ditasextrapartidrias e sob crescente contestao, afirmam-se os partidos exteriores,como o Republicano, com o seu inovador militantismo de base. Finalmente,com o advento da Repblica, a grande novidade veio a ser, dentro de um sistemapoltico pulverizado, a figura do partido dominante (o Democrtico, de AfonsoCosta), virtualmente o nico a exibir sinais de significativa implantao nacio-nal em termos regionais17, uma vez que os restantes herdaram da Monarquiao informalismo que os fazia sobrepor aos enunciados programticos e funode representao popular a luta parlamentar e a centralidade dos interesses decpula. De tudo isto resulta a concluso parcelar traada pelo autor: a realidadepartidria do liberalismo portugus no derivava de uma dinmica social debase, mas dos interesses particulares das elites polticas, cujo monoplio era, deresto, protegido pelos sistemas eleitorais vigentes18.

    Na literatura jurdica inscreve-se ainda a sumria anlise de JorgeMiranda. Para este autor, os partidos da Monarquia seriam agrupamentoscriados de cima para baixo, pouco definidos tanto do ponto de vista ideo-lgico como organizativo. de novo do ponto de vista da cronologia que

    14 Id, ibid., pp. 152-167.15 Id, ibid., p. 158.16 Id, ibid., p. 159. Marcelo Rebelo de Sousa preconiza, portanto, uma continuidade entre

    o perodo pr-1851 e ps-1851, dando por adquirida uma clivagem estrutural entre uma linhaliberal-conservadora e uma linha liberal-progressista. Ora, o modelo centrista da Regeneraoteve como efeito imediato exactamente a diluio dessa clivagem, supondo que ela sejahistoricamente identificvel antes de 1851.

    17 Id, ibid, p. 171.568 18 Id, ibid., p. 218.

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    podem levantar-se reservas. O autor fala de um rotativismo subsequente Regenerao, embora mencionando a salutar ressalva de que o mesmo di-ficilmente se aparenta com o do sistema britnico, quanto mais no seja pelarecorrncia da interveno rgia ao abrigo do poder moderador19.

    Indubitavelmente mais numerosas, mas no menos incertas, revelam-se asabordagens especificamente histricas. Dentro deste campo, a anlise da bi-bliografia disponvel revela uma tendncia espervel e uma ironia inesperada.

    Quanto primeira, nas obras cujo enfoque mais especificamentepoltico que se encontram apreciaes mais pormenorizadas e mais rigorosassobre o processo partidrio portugus, traadas margem, ou independente-mente, de sobredeterminaes scio-econmicas. Quanto segunda, consti-tuiu uma homenagem aos clssicos constatar que so as obras mais antigas,muitas vezes erradamente colocadas margem precisamente por serem an-tigas, as que melhor traam a periodizao e as caractersticas especficas decada subperodo da Regenerao. Infelizmente, poucos se deram ao trabalhode as relerem com ateno, no que teria sido um bom exerccio preliminarde preveno contra excessivos esquematismos.

    Comece-se ento pelos clssicos. Na conhecida Histria de Portugalredigida nos anos 30 sob a direco de Damio Peres couberam ao directorgeral da obra e ao historiador republicano Joaquim de Carvalho os captulosreservados histria poltico-partidria portuguesa dos anos 1851-1890. Oranesses textos, a periodizao da Regenerao e, sobretudo, a ideia dainaplicabilidade do rotativismo s dcadas de 50 e 60 so correctamentecompreendidas e explicadas. Damio Peres, no captulo intitulado Da 'rege-nerao' ao 'reformismo': 1851-1869, apesar de salientar que 1851 signifi-cou uma profunda arrumao das foras polticas da qual surgem dois novospartidos, e apesar de cometer a imperfeio de escrever que, em 1856, oshistricos substituram os regeneradores (quando o governo de Loul aindano era um governo do Partido Histrico)20, tem o cuidado de no retratar oprocesso poltico desses anos a partir de um preconcebido rotativismo21.

    19 Jorge Miranda, Cincia Poltica. Formas de Governo, Lisboa, Faculdade de Direito daUnivers idade de Lisboa, 1992, p . 285.

    20 Damio Peres no dava a devida relevncia ao carcter misto dos governos da pr imeirafase da Regenerao, isto , ao facto de haver presenas cartistas quer nos executivos de Loul ,quer no execut ivo de Terceira. Isto porque, alertando que no deveria falar-se de rotat ivismoj para os anos 50-60, no ia ao ponto de reconhecer que havia mais foras poltico-partid-rias do que os dois partidos Regenerador e Histrico que menciona e que, segundo ele,ter iam formado, at 1865, cada um, dois governos os regeneradores de 1851 a 1856 e de1859 a 1860 e os histricos de 1856 a 1859 e de 1860 a 1865. V., para este autor, a notaseguinte e t a m b m u m trabalho posterior, A transformao poltica, econmica e religiosa dasociedade portuguesa operada pela gerao de 70, in Vencidos da Vida. I Ciclo de Confe-rncias Promovido pelo Sculo, Lisboa, 1941, pp . 229-249.

    21 Damio Peres , Da ' regenerao ' ao ' re formismo' : 1851-1869, in Histria de Portu-gal, ed. Barcelos, vol. vii, pp . 331-379, maxime pp . 331-332 e 340. 569

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    A transio para a dcada de 70 pertence j a Joaquim de Carvalho. Numcaptulo bem intitulado de Regime poltico dos pequenos partidos o his-toriador acompanha as contradanas ministeriais de 1869 a 1871, dandoparticular nfase tnica de instabilidade e pulverizao momentneas dosistema poltico, visveis quer na fragmentao e reagrupamento do PartidoHistrico, quer na fermentao ideolgica que ops o conservadorismo dostatus quo, partilhado solidariamente por regeneradores, histricos eavilistas, nova intelectualidade dos excludos, patente na questo dasconferncias do Casino22. S provada a inutilidade do regime, confuso einstvel, dos pequenos partidos, o sistema poltico se orientou, nos alvoresda dcada de 70, para o estabelecimento do rotativismo, ttulo do captuloque cobre o perodo de 1871 a 1890. Para Joaquim de Carvalho, o rotativis-mo , portanto, a novidade especfica dos anos 70. A sua gnese e razes deefectivao so claramente identificadas: tratou-se de uma reaco de sanea-mento e reforo do establishment monrquico, que, enfraquecido pelas suasmltiplas divises internas, no conseguia a produtividade e a credibilidadenecessrias para cooptar presses exteriores. A pica saldanhada de 1870foi o sinal de alarme. Como tentativa frustrada de reorganizao das foraspoltico-partidrias, ela ter suscitado uma indignao geral, que levou ospublicistas polticos a tentarem reproduzir em Portugal os equilbrios dobipartidarismo rotativo que lhes chegavam da Blgica, da Inglaterra e, embreve, do turno espanhol da Restaurao.

    Perspectivado em 1870-1871, o rotativismo ter-se-ia estabelecido fran-camente (expresso do autor) a partir de finais dos anos 70, depois doprocesso preliminar de unificao da esquerda monrquica no Partido Pro-gressista, completado em 1876, como resposta ao monoplio regenerador dopoder e tambm militncia esquerdista dos republicanos. O primeiro gabi-nete da esquerda homognea teria, assim, sido o de Braamcamp, em 1879.Durante os anos 80 o rotativismo entraria na cultura e na prtica polticasportuguesas, com a particular e inovadora consequncia de assim se conse-guir uma clara demarcao das bancadas parlamentares dos dois partidos,efeito que fora impossvel obter, justamente, at ao esforo disciplinadorintroduzido pelo esquema rotativista23.

    Nenhuma obra historiogrfica posterior se revelou to nuance naperiodizao poltica da Regenerao nem to cuidadosa na demarcaopartidria do rotativismo face s dcadas de 50 e 60. Na maioria das vezesensaiaram-se esquemas genricos de interpretao e descrio (salvaguar-dando-se uma fronteira divisria na transio para a dcada de 70), mas maissuperficiais e, por vezes mesmo, com contradies.

    22 Joaquim de Carvalho, Regime poltico dos pequenos partidos, ibid., pp. 380-400.23 Id., Estabelecimento do rotativismo, ibid., pp. 401-411, maxime pp. 401-402, 406 e

    570 409.

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    No final dos anos 60, Jos Tengarrinha definiu o rotativismo portugusno clssico artigo elaborado para o Dicionrio de Histria de Portugal.Segundo a sua viso, o rotativismo teria sido o resultado da nova arrumaodas foras polticas operada em 1851. Aos antagonismos do perodo histricoanterior sucedera uma concentrao em grandes blocos do centromonrquico: um mais ou menos conservador, outro mais ou menos avana-do. O rotativismo teria sido assim o padro, de inspirao belga e inglesa,que domina a segunda metade do sculo xix, subdivisvel em trs fases:de 1851-1865 (alternncia regular entre regeneradores e histricos); de 1878a 1890 (alternncia regular de progressistas e regeneradores, configurando afase urea do rotativismo); de 1893 a 1906 (regresso alternncia entreprogressistas e regeneradores).

    O artigo de Tengarrinha estabelecia pontos que ainda hoje merecem acei-tao: o caso dos limites a que o prprio rotativismo esteve sujeito na suaaplicao em Portugal devido falta de homogeneidade dos partidos, quese reflectia na indisciplina e na precria unidade das suas representaes noparlamento , bem como as suas consequncias prticas a alternnciano poder de dois partidos seguindo uma linha distinta, mas no diametralmenteoposta, permitiria, ao mesmo tempo que uma estabilidade poltica, uma maiorgarantia de defesa da legtima linha constitucional. O problema especfico daapreciao de Tengarrinha o de estender o arco temporal do rotativismo atodo o perodo da Regenerao, bem como o facto de exagerar na distncia quemediaria entre regeneradores (os conservadores) e histricos e progressistas(os avanados), para j no falar no lugar-comum, tpico da historiografiamarxizante da poca, de considerar que este esquema consumava no planopartidrio a ruptura decisiva entre a burguesia e o proletariado24.

    Nos anos 70, a Histria de Portugal de Oliveira Marques no veio adiantarsubstancialmente em matria de partidos monrquicos e rotativismo. Na pers-pectiva do autor, que deve salientar-se propositadamente genrica, dada anatureza sinttica da obra, tudo se resume a um sumrio, que, na realidade,esconde mais do que revela: regeneradores e histricos primeiro,regeneradores e progressistas depois, este sistema bipartidrio, que procuravaimitar o rotativismo ingls, tomou conta do poder durante quase cinquentaanos, geralmente pacficos, com alguns breves interldios em perodos decrise25.

    24 Jos Tengarrinha, Rotativismo, in Dicionrio de Histria de Portugal (dir. de JoelSerro), Porto, Livraria Figueirinhas, 1984, vol. v, pp. 392-394 (l.a ed., 1968).

    25 A. H. de Oliveira Marques, Histria de Portugal, vol. ii (Das Revolues Liberais aosNossos Dias), 5.a ed., Lisboa, Palas Editores, 1978, vol. ii, p. 77 (l.a ed., 1974). Explicitamen-te, 0 autor afirma que regeneradores e histricos alternaram-se no poder e enfrentaram-se nascmaras durante mais de quinze anos, constituindo essa sucesso o primeiro perodo dochamado rotativismo partidrio (p. 76) (itlico meu). 571

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    Dos anos 70 so tambm os artigos exploratrios da autoria de AntnioPinto Ravara. So textos naturalmente mais pormenorizados do que os dashistrias gerais, onde o autor procura sumariar a evoluo das foras polti-co-partidrias e dos seus alinhamentos entre 1851 e 1865, centrando-se, numsegundo momento, apenas nos anos 1851-185626. Todavia, trata-se, infeliz-mente, de contributos pioneiros, excessivamente sintticos, com mais hip-teses de trabalho do que narrao contnua, s quais Pinto Ravara, que sesaiba, no voltou. Ficou, no entanto, registado, dos seus escritos, um alertapara a natureza especial dos primeiros anos da Regenerao, quando se lque o perodo de 1851-1865 no corresponde verdadeiramente a uma pri-meira fase de rotativismo parlamentar no nosso pas, quer devido fluidezdas parcialidades polticas de ento, quer devido sua impreciso program-tica, quer devido sua tendncia para aproximaes e reunificaes,bem justificadas pela sua comum origem progressista em 1851. Por outrolado, tambm este autor um dos poucos a darem a devida ateno pre-sena cartista na sua dupla aliana com histricos e/ou regeneradores na cena poltica portuguesa dos anos 50 e 60.

    Em 1980, Lus Filipe Colao Antunes elaborou um trabalho, onde aptica histrica se interliga com a ptica sociolgica, acerca da imagem dospartidos e do conceito de programa poltico no perodo de gnese do cons-titucionalismo portugus, entre 1820 e 1850. Depois de algumas pginasintrodutrias, onde traa a origem dos partidos enquanto fenmenoconstitutivo dos sistemas liberais modernos, o autor passa a abordar a hist-ria do constitucionalismo liberal no perodo at 1851. F-lo num quadrointerpretativo que hoje j no pode aceitar-se sem reservas: a estrutura dospartidos ter-se-ia desenvolvido, logo a partir de 1820 e com continuidadeaps 1850, de acordo com dois eixos fundamentais, correspondentes a doistipos sucessivos de oposio ou fraces de classe. At 1850, o sistemapartidrio teria reproduzido a oposio burguesia-aristocracia, politicamentevertida na oposio vintistas-absolutistas; depois de 1850, a clivagem socialter-se-ia transformado na oposio burguesia conservadora-burguesia liberal,ou seja, do ponto de vista poltico, na configurao bipolar entreregeneradores e progressistas27. Este tipo de leitura sociolgica ou classistarevela-se, obviamente, desajustado na descrio do processo partidrio

    26 Antnio Pinto Ravara, Os partidos polticos liberais na primeira fase do rotativismoparlamentar (1851-1865), in Anlise Social, n. 46, Lisboa, 1976, pp. 363-367, e Notas paraa histria dos partidos polticos em Portugal no perodo do Ministrio da Regenerao (1851--1856), in Clio Revista do Centro de Histria da Universidade de Lisboa, vol. i, Lisboa,1979, pp. 91-96.

    27 Lus Filipe Colao Antunes, Partido e programa no constitucionalismo portugus572 (1820-1850), in Economia e Sociologia, n.os 29-30, vora, 1980, pp. 78-79.

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    portugus, cujas coordenadas determinantes devem achar-se mais no planoespecificamente poltico do que social.

    As duas histrias de Portugal elaboradas na dcada de 80 trouxeramcontributos muito sintticos e, num caso mesmo, algo contraditrios para aanlise da evoluo do fenmeno partidrio oitocentista. A de Jos HermanoSaraiva, datada de 1983, , no mnimo, inconclusiva quanto periodizaoa adoptar na descrio da problemtica dos partidos. Comea por detectar osurgimento dos Partidos Regenerador e Histrico (este representante dasforas do passado, que o autor no explica quais sejam), no imediatoseguimento do pronunciamento militar de 1851, o que constitui uma simpli-ficao de todo o clima partidrio de indefinio pasteleira que se arrasta,no mnimo, at 185628. Por outro lado, certo que o autor lembra, correc-tamente, que com D. Lus que vai institucionalizar-se de facto o rotativis-mo poltico; todavia, antecipa a efectivao desse modelo j para os anos60, perspectivando a Fuso de 1865-1868 como um efeito ou uma reacode defesa contra a mecnica falsificadora e empobrecedora do sistema repre-sentativo a que o rotativismo conduzia29. Ora, ao invs, a problemtica daFuso anterior efectivao do rotativismo; em muitos aspectos, essemodelo s definitivamente aceite em Portugal, e levado prtica, justa-mente porque a estratgia de defesa do establishment monrquico atravs daFuso se revelou demasiado estreita e exclusivista para conter a contestaoexterior ao sistema, avolumada nos anos 60.

    J no caso de Joaquim Verssimo Serro, a sua Histria de Portugalreproduz, em escassas linhas, a ideia de Joaquim de Carvalho de que orotativismo e a consolidao do sistema partidrio oitocentista surgem norescaldo dos anos de 1865-1871, como tentativa de resoluo e superao dainstabilidade e da agitao anti-sistema da dcada de 6030.

    Um dos poucos livros disponveis na bibliografia portuguesa especifica-mente dedicados Regenerao o estudo de Vtor Srgio Quaresma, da-tado de 1988. No captulo dedicado ao Estado sob o liberalismo, o autorprocede a uma caracterizao til da natureza genrica dos partidos liberaisoitocentistas, de resto bem integrada na recenso que faz s prprias insu-ficincias estruturais do funcionamento da mquina poltica do tempo. Con-

    28 Jos Hermano Saraiva, Regenerao e rotativismo, in Histria de Portugal (dir. deJos Hermano Saraiva), vol. iii (1640 Actualidade), Lisboa, Publicaes Alfa, 1983, p. 465:[Em 1851] constituiu-se imediatamente um Partido Regenerador, cujo ncleo pensante eramos defensores da estabilidade, das obras pblicas e dos emprstimos externos como fonte definanciamento [...] Do lado oposto ficavam todos os que pertenciam ao passado e que adop-taram uma denominao que exprimia isso mesmo: histricos (itlico meu).

    29 Id., ibid,, p . 468 .30 Joaquim Verss imo Serro, Histria de Portugal, vol. ix (1851-1890) , Lisboa, Editorial

    Verbo , 1986, p . 56. 573

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    tudo, e reproduzindo o lugar-comum dominante, o autor no tem dvidasem afirmar lapidarmente: a Regenerao v aparecer dois partidos polticos.O Partido Regenerador, herdeiro do cartismo puro, e o Partido Histrico,com razes no setembrismo longnquo. Alternam-se no poder at que, em1865, se unem num partido de fuso31. Descontando a implcita aplicaoanacrnica da ideia de rotativismo ao perodo inicial da Regenerao, estaapreciao contm dois erros com implicaes polticas relevantes: em pri-meiro lugar, o Partido Regenerador no poderia ser herdeiro do cartismopuro, porquanto cartistas puros eram, com o seu intransigentismo doutrinal,os cabralistas; em segundo lugar, nunca houve um partido de fuso, emboraa retrica fusionista tenha alimentado o sonho de o construir durante largosanos. O que houve foi um governo de fuso que tentou, demasiado tarde,restaurar a unidade perdida no bloco central progressista, dominante a partirde 1851 e fragmentado durante os anos de 1851 a 1856.

    Substancialmente evocativo do modelo traado por Rebelo de Sousa como surge um trabalho de Fernando Farelo Lopes do incio da dcada de90. O seu objecto de estudo no so especificamente os partidos, mas aquesto do caciquismo e das suas implicaes prticas a desideologizaoda poltica, a corrupo eleitoral e a subcompetitividade ou falsa competiti-vidade do sistema. Acerca dos partidos, traa um quadro cronolgico unit-rio simplista de acordo com o qual, entre 1851 e os finais do sculo xix, teriahavido uma constante prtica do acordo a dois: a maioria dos assentosparlamentares alternadamente partilhada pelos regeneradores e histricos,depois pelos regeneradores e progressistas, dando lugar ao bipartidarismoperfeito. Por contraposio a este idlio de acalmia, ter-se-ia posteriormenteseguido, a partir de 1890, uma nova fase de multipartidarismo perfeito32.

    Pela mesma altura, Maria Cndida Proena e Antnio Pedro Maniquedeclaravam que com o movimento regenerador se assistira primeiraedificao de um sistema bipartidrio, situando o seu nascimento concreto em1852, ano em que a dissoluo parlamentar teria de imediato fragmentado ocampo poltico da Regenerao entre o Partido Regenerador e o PartidoHistrico33. certo que existiriam diferenas entre Portugal e os exemplosclssicos da Inglaterra e da Blgica no que toca prtica da alternncia nopoder de dois partidos do centro monrquico. Mas o que conta, da imagem

    31 Vtor Srgio Quaresma, A Regenerao, in Economia e Sociedade, Lisboa, Publica-es D. Quixote, 1988, p. 103.

    32 Fernando Farelo Lopes, Caciquismo e poltica em Portugal. Uma perspectiva sobre amonarquia e a I Repblica, in Sociologia. Problemas e Prticas, n. 9, Lisboa, ISCTE, 1991,p. 133.

    33 Maria Cndida Proena e Antnio Pedro Manique, Da reconciliao queda da mo-narquia, in Portugal Contemporneo (dir. de Antnio Reis), vol. 2 (1851-1910), Lisboa,

    574 Publicaes Alfa, 1989, pp. 30-31.

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    produzida por estes dois historiadores, que, apesar de os partidos portu-gueses da 1 .a Regenerao no terem ainda atingido uma estrutura slida, issono invalida que se tenha verificado, no perodo compreendido entre 1851e 1865, um primeiro esboo do rotativismo parlamentar34 da que osautores logo falem de um restabelecimento do rotativismo a partir da dcadade 1870.

    Mais recentemente, a temtica dos partidos polticos voltou a ser aborda-da em duas novas histrias de Portugal, publicadas quase simultaneamente.

    Jlio Rodrigues da Silva o autor do captulo dedicado aos problemas dorotativismo monrquico-constitucional, das eleies e do caciquismo na se-gunda metade do sculo xix integrado na Histria de Portugal dirigida porJoo Medina. O autor detecta bem a transformao da lgica de funciona-mento da poltica operada a partir de 1851, descrevendo o modelo regene-rador como uma forma de jogo poltico mais aberto alternncia de foraspartidrias mais ou menos homogneas, baseado no requisito prvio de umamaior plasticidade de compromissos e de ajustamentos subtis nos equilbriosde foras35. O rotativismo, localiza-o tambm correctamente como uma con-solidao do sistema regenerador, surgindo como inovao poltica no in-cio dos anos 70, aps a superao de uma fase anterior de estrutura par-tidria muito fluida e rotao no poder imperfeita36.

    Sucede que esta viso quadra mal com a apreciao que se lhe segue: aideia de que os partidos polticos at aos anos 70, ainda que no apresentas-sem uma estrutura homognea, dando azo a mltiplas combinaes de gover-no de parceria com foras minoritrias, no deixam, mesmo assim, de pro-duzir situaes de constante alternncia a nvel do poder, criando condiesde estabilidade poltico-social37. A periodizao do rotativismo acaba porsurgir, assim, com algumas imprecises. Por um lado, afirma-se que umanovidade dos anos 70; por outro lado, ele aplicado retrospectivamente aoperodo anterior, quando regeneradores de centro-direita e histricos decentro-esquerda, chefiados, respectivamente, por Fontes Pereira de Melo epelo duque de Loul, se vo sucedendo no poder, conforme as conjunturaseconmicas e polticas, sem porem em causa os progressos materiais, assu-mindo, porm, tendencialmente, o Partido Histrico a carga das reformasmais democratizantes38.

    34 Id, ibid., p. 43.35 Jlio Rodrigues da Silva, O rotativismo monrquico-constitucional. Eleies,

    caciquismo e sufrgio, in Histria de Portugal (dir. de Joo Medina), vol. ix (A MonarquiaConstitucional), Lisboa, Ediclube, 1993, pp. 47 e 50.

    36 Id., ibid,, p . 5 1 .37 Id., ibid., p . 51 (itlico meu) .38 Id, ibid, p. 52. 575

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    Este ltimo excerto merece, alis, alguns comentrios. Ao contrrio do quese supe, Fontes e Loul no foram os lderes dos Partidos Regenerador eHistrico durante os anos 50. Fontes sucedeu a Joaquim Antnio de Aguiarnesse cargo apenas no final dos anos 60; Loul s assumiu formalmente aquelafuno em Dezembro de 1859. Por outro lado, Rodrigues da Silva d poradquirida uma ligao entre a rotao no poder poltico e a rotao dasconjunturas econmicas, sugerindo uma leitura de sobredeterminao do po-ltico pelo econmico, dificilmente sustentvel quando empiricamente con-frontada com a autonomia relativa do processo poltico face aos ritmos daevoluo scio-econmica. Por ltimo, tambm mais um mito do que umaverdade, pelo menos para os anos 50, a ideia de que haveria uma distintivainclinao democratizante no Partido Histrico. Como facilmente se detectapela anlise das fontes, a contiguidade programtica entre regeneradores ehistricos foi norma nessa dcada, s havendo tendncia para a romper, emesmo assim de forma sempre descontinuada e tnue, e para puxar oshistricos para um maior radicalismo centrfuga de esquerda nos anos 60.A democracia s a espaos foi patrimnio dos partidos do sistema monrquico.

    Ainda segundo Rodrigues da Silva, o clima de instabilidade que se instalouaps o fracasso do governo da Fuso, em 1868, inviabilizou, de imediato,qualquer regresso ao esquema j clssico da alternncia no poder das duasforas dominantes do sistema39. Ora, se o padro da alternncia era jclssico, dificilmente poder sustentar-se que o rotativismo constituiu umanovidade dos anos 70... Talvez por isso o autor como que corrige o seumodelo, falando numa segunda fase do rotativismo, que se abre com ogoverno fontista de 1871. H, contudo, um apontamento acerca deste governoimportante e correcto ele demonstra a viabilidade de ministrios monopar-tidrios e, portanto, a possibilidade de partidos polticos fortes e coerentes40.Justamente, aqui reside de facto uma novidade importante, j atrs referida: oexecutivo de Fontes Pereira de Melo , em rigor, o primeiro governo daRegenerao indubitvel e directamente sado de um s partido monrquico.

    A ltima Histria de Portugal a considerar a recentemente dirigida porJos Mattoso, na qual os captulos referentes histria poltica e partidria dosculo xix pertencem a Maria Manuela Tavares Ribeiro e Isabel NobreVargues.

    O sumrio final das 4 (!) pginas dedicadas ao processo poltico portu-gus entre 1850 e 1870, da autoria da primeira daquelas autoras, estabelece

    39 Id , ibid, p. 52.40 Id., ibid, p. 57. A periodizao do rotativismo terminaria, de acordo com este autor, com

    o consensual terceiro perodo, entre 1893 regresso dos regeneradores, de Hintze Ribeiro, aopoder, aps as solues governativas extrapartidrias do binio 1890-1892 e 1906 cons-

    576 tituio do governo pluripartidrio de concentrao liberal de Joo Franco (p. 58).

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    pontos correctos e importantes: no quadro poltico em que se desenrola aactividade partidria de 1851 a 1868 no h um rotativismo partidrio pro-priamente dito. H indefinies programticas e insuficiente foraorganizativa, razes impeditivas de uma perfeita alternncia no exerccio dopoder. Demonstram-no tambm as vrias coligaes entre regeneradores ehistricos e as alianas com cartistas e legitimistas41.

    Acontece que, confrontados com esta concluso, h durante a exposioum ou outro ponto que resulta ambguo, contraditrio, ou mesmo errado.Assim, e comeando pelo ltimo caso, indica-se que o governo empossadoem Maio de 1851 j inclua os ministros Rodrigo e Fontes42, quando, narealidade, estes dois progressistas conservadores de centro-direita s entra-ram para o executivo na sequncia da remodelao ministerial de 7 de Julhode 1851 (no mencionada), um momento crucial na fragmentao e definiopartidria do bloco de apoio Regenerao. Quanto s ambiguidades e con-tradies, elas resultam de uma deficiente definio da estratgia e dos ali-nhamentos dos cartistas ao longo da dcada de 50, bem como de uma incor-recta apreciao dos blocos concorrentes s eleies de Dezembro de 185243.H tambm afirmaes que quadram mal com os comentrios finais, comoa de que no Outono de 1852, com a ciso do bloco progressista nas duas alasregeneradora e dissidente, [se] constitui ento o sistema bipartidrio44.

    Num captulo parte, diferente do referente ao processo poltico, apareceento um estudo sobre as estruturas da poltica no Portugal oitocentista parlamentos, eleies, partidos e maonarias. No que em particular concerneaos partidos, e na opinio expressa pelas autoras do texto Maria ManuelaTavares Ribeiro e Isabel Nobre Vargues , com a Regenerao assistimos instaurao de um sistema bipartidrio os progressistas formam doisblocos: o Partido Regenerador e o Partido Histrico45. Mais uma vez seregista aqui um desencontro entre a afirmao de existncia de um sistema

    41 Maria Manuela Tavares Ribeiro, A Regenerao e o seu significado, in Histria dePortugal (dir. de Jos Mattoso), vol. v (O Liberalismo), Lisboa, Crculo de Leitores, 1993,p. 124. Registe-se que patente a presena dos trabalhos de Antnio Pinto Ravara comoprincipal fonte de inspirao para a exposio da autora.

    42 Id, ibid., p. 121.De acordo com a autora, s eleies de 1852 teriam concorrido regeneradores e

    cartistas, de um lado, face a histricos, cartistas e miguelistas, do outro (p. 123). Ora, o quese passou na realidade foi a diviso entre progressistas regeneradores, como fora governa-mental, por um lado, e progressistas dissidentes, contando com a colaborao do cartismomais avilista, por outro. O miguelismo, pura e simplesmente, no esteve presente, dada aabsteno do Partido Legitimista.

    44 Id, ibid., p. 121 (itlico meu).45 Maria Manuela Tavares Ribeiro e Isabel Nobre Vargues, Estruturas polticas: parla-

    mentos, eleies, partidos polticos e maonarias, in Histria de Portugal (dir. de JosMattoso), vol. v, p. 202.

  • Jos Miguel Sardica

    bipartidrio e a ressalva de que at 1868, pelo menos, no pode falar-se deum rotativismo. Segue-se uma considerao social tambm algo contradit-ria, a saber, que os partidos mantm o carcter elitista, todavia assumindo--se como instrumento mobilizador do eleitorado46!

    A recenso das vrias imagens historiogrfcas disponveis acerca dospartidos polticos no Portugal oitocentista aqui feita destina-se a estabeleceros principais lugares-comuns e ideias feitas sobre essa temtica. Fundamen-talmente, e para l da escassez do material disponvel, o que salta vista uma tenaz persistncia ou insistncia num quadro histrico da Regeneraodemasiado unitrio e, por isso, abusivamente identificado, de 1851 em dian-te, com um modelo terico de rotativismo bipartidrio e alternnciacordatamente acordada no poder, de aceitao evidentemente cmoda, masde aplicao emprica complicada.

    Quando assim no , ou seja, nas anlises mais detalhadas e conseguidas,a imagem que se apura a de uma fronteira localizada nos anos 60-70 queestabelece uma divisria num modelo geral vigente de partidos de not-veis como se os verdadeiros partidos de notveis pertencessem aosanos 70-80, conjuntamente com o verdadeiro rotativismo, e os anos 50-60fossem uma espcie de preparao, de ensaio, com os seus partidos flui-dos, as suas indefinies programticas, as suas deficincias organizativas,as suas dificuldades de demarcao, a sua ambgua convivncia com osoutsiders cartista e legitimista como se, em suma, a primeira fase daRegenerao tivesse significado o lanamento de uma forma de sistemapoltico, a que os anos subsequentes teriam dado mais palpvel contedo.

    Ora esta impresso apenas meia verdade. Est certo que h uma dife-rena em grau entre os partidos, ou, mais correctamente, as parcialidades,dos anos 50 e 60 e os clssicos partidos de notveis da segunda fase daRegenerao. O que falta explicar que essa diferena de grau supe umadiferena de substncia, ou seja, explicvel e sobretudo focvel desde quese perceba qual a lgica de funcionamento do perodo inicial da Regenera-o. Mais concretamente, preciso explicar e perceber que a dcada de 50tem uma especificidade poltico-partidria prpria, diferente da dos anos 60

    46 Id, ibid., p. 202 (itlico meu). De passagem, refira-se o diagrama esquemtico daevoluo partidria portuguesa, da autoria de Manuel Pinto dos Santos, reproduzido nessap. 202. O original aparece em apndice obra deste autor, Monarquia Constitucional. Orga-nizao e Relaes do Poder Governamental com a Cmara dos Deputados (1834-1910),Lisboa, Assembleia da Repblica, 1986. Segundo o esquema, o cabralismo, quer o da facoJos Bernardo, quer o da faco conde de Tomar, ter-se-ia integrado no Partido ProgressistaRegenerador, formado em 1851. Trata-se de um claro erro, desde logo e antes de mais, porqueSaldanha e Cabral jamais alinhariam juntos em 1851, uma vez que o golpe da Regenerao

    578 foi exactamente a deposio do segundo pelo primeiro!

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    e da dos anos 70-80. No quer isto dizer que no haja traos comuns. Existe,de facto, um modelo estrutural ao longo dos anos de 1851-1890 e cujascoordenadas so a reconciliao regeneradora, a geral desideologizao dapoltica e o elogio do progresso fomentador, desgnios que politicamenteobrigaram a uma aposta nas virtudes do centrismo e num consequente sis-tema partidrio centrpeta.

    O que se passa que este modelo genrico admitiu submodelos deconcretizao, que ditaram ou ajudaram a configurar submodelos de sistemapartidrio. Nos anos 50, uma determinante aposta na realizao do consensoverteu-se num genrico desejo de reconciliar todos os partidos, superardivises e concretizar o que 1851 prometera, mas nunca cumpriu efectiva-mente: a reconciliao de toda a famlia liberal portuguesa num nico blococentrista apartidrio. em virtude desta substncia, prpria dos anos iniciaisda Regenerao, que as parcialidades demoraram a autonomizar-se do pontode vista organizativo, hesitaram em diferenciar-se do ponto de vistaprogramtico, vaguearam do ponto de vista das alianas e alinhamentos. Osanos 50 foram inequivocamente marcados pela retrica da fuso, da amal-gamao, do pastel, do consenso, sobre tudo, sobre todos e a qualquerpreo.

    S depois de provada a inexequibilidade desse plano, com a irreversvelfragmentao do campo poltico-partidrio operada nos anos 60 e com adecorrente falncia, por estreiteza e deslocamento, do governo da Fuso de1865-1868, o modelo regenerador mudou a sua lgica prtica de funciona-mento, mas para manter os seus desgnios gerais. Compreendendo que, forado establishment, medravam cada vez mais foras centrfugas e potencial-mente desestabilizadoras, empreendeu uma reviso do seu sistema partidriono sentido de o tornar mais malevel e plstico. Renunciando ao discurso dobloco central, apartidrio e fusionista, apostou no desdobramento definitivodesse bloco em dois partidos mais estruturados, encarregados de gerirem, vez, o modelo reconciliador e centrista que sempre presidiu Regenerao.Eis por que, de um perodo ao outro, talvez possa mesmo falar-se no s deuma diferena em grau (de desenvolvimento dos partidos), mas tambm deuma diferena em substncia: onde antes se advogava a fuso apartidria dafamlia liberal (valha a verdade, sem que alguma vez a mesma tenha sidoefectivamente conseguida na prtica), passou a defender-se o acordo bipar-tidrio rotativo.

    Neste sentido, tentadora e pertinente a comparao entre os percursospoltico-partidrios de Portugal e Espanha na segunda metade do sculo xix,dada a patente simultaneidade de orientaes. No pas vizinho, s experin-cias da Unio Liberal dos anos 50 e 60 sucedeu o sexnio revolucion-rio, o equivalente ao furor contestado e inusitada instabilidade polticados finais da dcada de 60 em Portugal, para a partir de 1874 se iniciar a 579

  • Jos Miguel Sardica

    Restaurao e, com ela, o turno espanhol rotativista entre o Partido Conser-vador (de Cnovas del Castillo) e o Partido Liberal (de Praxedes Sagasta).Donde se conclui que o fontismo no foi seno a verso caseira e simul-tnea do canovismo espanhol.

    2. OS DISCURSOS CONTEMPORNEOS E AS IMAGENSA PROBLEMATIZAR: O FENMENO PARTIDRIOENTRE A CRTICA E A UTOPIA

    Os simplismos e lugares-comuns com que muita da historiografia por-tuguesa se tem referido ao fenmeno partidrio tm que ver com o facto deo trabalho de investigao ter sido pouco norteado para a reconstruoemprica do funcionamento do sistema poltico oitocentista. um trusmodizer-se que a compreenso do passado exige uma viagem no tempo porparte do observador e que necessrio, muitas vezes, deixar o passadofalar por si, formulando o discurso historiogrfico numa relao directacom o que os prprios contemporneos disseram, a fim de se evitar oanacronismo.

    Tal tarefa implica que se reconstrua a imagem que os partidos evocavamno universo da cultura poltica ento vigente. Dado que o passado no ,obviamente, to prdigo em testemunhos como o presente, isso pressupedar predominante espao s opinies produzidas por um limitado nmero dehomens o pequeno crculo a que, na poltica, Garrett chamava a partepensante da nao. Os puristas podero argumentar que um exagero desimplificao afirmar que o conjunto de imagens e de opinies de umareduzida elite constitui uma reproduo fiel do universo mental e de prticasde toda uma sociedade. A estes preciso lembrar que partir da obra daintelligentzia poltica do passado recorrer s fontes que verdadeiramenteformavam a opinio pblica e que verbalizavam o que muitos intuam erepetiam.

    Daqui resulta que um estudo dos partidos polticos no Portugal oitocentista,partindo do trabalho historiogrfico disponvel com o objectivo de saber o quesobre a temtica j se disse no presente, deve, num segundo momento, procurarsaber o que sobre a mesma temtica se disse no passado dado que so asopinies deste mesmo passado que devem constituir o material de base paraos discursos historiogrficos do presente47.

    47 Empregando os termos de Gertrude Himmelfarb, the values of the past are the historiansfacts. He should make the most of them [The New History and the Old. Critical Essays and

    580 Reappraisals, Cambridge (Massachusetts), Harvard University Press, 1987, p. 69].

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    Em conformidade, as pginas que se seguem constituem uma incursosumria naquilo a que poderia chamar-se a imagem dos partidos polticos edo fenmeno partidrio em geral na cultura poltica portuguesa de Oitocen-tos. Dada a vastido do tema, recensearam-se apenas algumas de entre asmais significativas. O objectivo traar um quadro geral da imagem hist-rica que o problema dos partidos evocava para os contemporneos, o qualpermite tornar mais compreensveis as vicissitudes e dificuldades reveladasna estruturao isto , diferenciao, organizao e aceitao dosvrios partidos ou parcialidades que ocuparam o espao poltico oitocentista.

    O mnimo que pode dizer-se acerca das apreciaes feitas realidadepartidria portuguesa no sculo passado que as mesmas eram geralmentemais negativas do que positivas, como se no universo da cultura poltica ospartidos constitussem, na melhor das hipteses, um mal necessrio, na pior,um elemento perigosamente disruptivo do normal funcionamento da mqui-na poltica. Durante toda a monarquia constitucional portuguesa o problemados partidos, das suas virtudes e defeitos, foi uma temtica mal-amada, comoque traduzindo um estrutural preconceito antipartidrio que cruzava aintelectualidade portuguesa de ento. Paralelamente, detecta-se tambm quefoi bastante lento e sinuoso o prprio processo de definio daquilo queconstituiria um partido poltico e de qual seria o seu verdadeiro lugar efuno no interior do sistema poltico, como se durante dcadas, e reprodu-zindo um dilema comum Europa liberal do tempo, poucos soubessem o quefazer com os, ou dos, partidos, embora todos soubessem reconhecer que osditos partidos eram constitutivos do prprio constitucionalismo liberal.

    A noo de partido entrou definitivamente no vocabulrio poltico portu-gus a partir de 1820, quando a revoluo liberal rompeu irremediavelmenteo monopoliticismo tradicional48 de Antigo Regime. O vocabulrio dovintismo deu assinalvel publicidade a palavras prenunciadoras do partida-rismo, como causa, faco, seita, partido, designadoras de posies ideol-gicas ou alinhamentos tcticos, que expressavam, simultaneamente, diver-gncia e gregarismo numa poca nova de redefinio da poltica. Contudo,o vocbulo partido no iniciava sob boas cores a sua carreira: tinha, aotempo, uma significao pejorativa, no sentido de bando, faco, fautoriade pessoas que seguem e favorecem a opinio de algum ou de alguns empoltica49. Significando essencialmente a introduo da diviso num projec-

    48 Telmo dos Santos Verdelho, As Palavras e as Ideias na Revoluo Liberal de 1820,Coimbra, INIC, 1981, p. 325.

    Antnio de Morais Silva, Dicionrio da Lngua Portuguesa, Lisboa, Impresso Rgia,4.a ed., 1831, t. II, p. 420. Num outro dicionrio de consulta corrente na poca o do P.e

    Rafael Bluteau os vocbulos faco, parcialidade e partido eram solidariamente sinnimosde bando, partes, opinio e unies (cf. ed. de 1789, Lisboa, Oficina de Simo Tadeu Ferreira,t. i, p. 592, e t. II, pp. 158 e 163). 581

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    to revolucionrio eminentemente nacional, no sentido de colectivamente c-vico Rousseau, o esprito de partido caa na alada da j referida con-denao filosfica e sociolgica, por ameaar arruinar a unidade do que ovintismo concebia, em termos quase msticos, como a sagrada causa danossa Regenerao poltica50.

    Tal como aconteceria em 1851, o fenmeno partidrio era visto comoalgo prejudicial, faccioso, contrrio ao proclamado desejo de concrdia na-cional em torno de um desgnio comum. O esprito de partido, escreviamos jornais do primeiro trinio constitucional, era uma espcie de esprito decontradio [...] a expresso do esprito preconceituoso que reduz os hori-zontes amplos da razo e das luzes por motivos mesquinhos51. Da que, nosanos 20, partido e faco fossem algo indistinto: ambos deformavam e pre-judicavam a compreenso do esprito do sculo o progresso atravs deum liberalismo regenerador nacionalista. Cada partido, ou cada faco, cons-titua um elemento de perturbao pblica, porque no e[ra] uma parte dotodo, participante na vontade geral, [mas] antes um grupo que se descompro-mete do conjunto, que menospreza e contraria o interesse geral em seuprprio benefcio. Seguia-se que o faccioso ou partidrio era o agente dodivisionismo que perturbava a tranquilidade nacional52. Conexa com ostermos partido e faco andava, durante o vintismo, a palavra seita, a queos contemporneos atribuam, para estabelecerem a diferena com aqueles,uma maior heterodoxia doutrinria e coeso de estrutura, normalmentecerrada e esotrica53.

    Em geral, portanto, a pluralidade de vocbulos do vintismo que traduziama necessidade, ou a inevitabilidade, de agregar e classificar os agentes pol-ticos consoante os seus alinhamentos denota uma disperso e polarizao[...] [que] constitui um sintoma do partidarismo nascente54 e, ao mesmotempo, uma implcita crtica pulverizao do campo poltico, que cada umdos dois blocos ideolgicos em confronto os realistas ou absolutistase os liberais ou constitucionais sonhou manter coesos e unidos.

    O que sobretudo interessa salientar que as palavras e as ideias queexpressavam a emergncia do fenmeno partidrio em 1820-1823 criaramum padro que persistentemente se prolongou por todo o constitucionalismomonrquico: o de que a diviso partidria era mais um mal, necessrio ouinevitvel para uns, corrigvel ou supervel para outros, do que um bem. Eispor que tambm em Portugal o liberalismo viveu de um paradoxo oscriadores da liberdade poltica teriam preferido viv-la debaixo de um

    50 Telmo Verdelho, op. cit., pp. 325-326.51 Id, ibid., p. 327.52 Id., ibid., p. 329. Num texto de 1823 lia-se mesmo que era condio dos facciosos serem

    grosseiros, incivis e malcriados (ibid.).53 Id., ibid., p. 329.

    582 54Id, ibid., p. 331.

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    consensualismo de opinies, na medida em que sempre a julgaram ameaadapelo pluralismo dessas mesmas opinies.

    Esta questo ganha um outro significado se se anotar que no eram sdesconhecidos periodistas de uma poca revolucionariamente fundadora,como a do vintismo, que escreviam contra os partidos. Penas to ilustres e toopinion makers como a de Almeida Garrett reproduziam exactamente o pre-conceito liberal clssico contra o fenmeno de diviso e disperso partidria.

    No Vero de 1827, na altura em que cartistas e miguelistas disputavamo futuro do pas, Garrett dedicou-se a escrever uma srie de textos doutrin-rios sobre temas to genricos como a formao da opinio pblica, a ascen-so da classe mdia ou as incompatibilidades entre o esprito pblico e oesprito de partido. Para o conhecido escritor no havia a sombra de umadvida: O esprito pblico e o esprito de partido so duas coisas to dis-tintas como a verdade e a mentira; e todavia poucas coisas h que to fcile to quotidianamente se confundam55. Isto porque a verdadeira expressodo esprito pblico supunha rigorosa justia e estrita imparcialidade,benefcios que Garrett estimava inviabilizados sempre que havia colisocalculada entre diversas fraces de interesses opostos. Sobre os partidos,se no mesmo contra os partidos, era preciso salvaguardar a harmoniageral, obtida quando a massa geral concorda espontaneamente na aprova-o dos actos polticos e administrativos56. particularmente pitoresca earrasadora a descrio que Garrett faz do esprito de partido: Homens no-toriamente conhecidos vociferam impunemente, propagam doutrinas subver-sivas, espalham boatos os mais subversivos e os mais falsos, do notciasaterradoras, vomitam calnias com o maior descomedimento e insultam atpessoas augustas e cidados respeitveis. Por este modo se corrompe a opi-nio, relaxa-se o respeito ao governo, semeia-se a ciznia, fomenta-se adiscrdia, entibia-se o amor lei [...] o esprito de partido uma espcie defuror que, preocupando o homem com uma s ideia, faz que ele no possaver os objectos que o cercam, enquanto deslumbrado por seu sentir v uni-camente aquele objecto a que se prope57. Premonitoriamente, e visto otriste espectculo da diviso partidria, o autor apelava j reconciliao detoda a famlia portuguesa, que fizesse triunfar o esprito pblico sobre oesprito de partido, mediante o esquecimento das ofensas, o sacrifcio detodos os ressentimentos pessoais, o repouso e a estabilidade geral58.

    55 Almeida Garrett, Formao da opinio pblica, in O Portugus de 23-4-27, cit. inAlmeida Garrett, Doutrinao Liberal, Lisboa, Publicaes Alfa, 1990, p. 105.

    56 Id., ibid., p . 106.57 Id., (Wrf., p, 107, e A nova era da classe mdia, in 0 Portugus de 23-7-27, cit. in

    op. cit., p. 151.58 Id., Formao da opinio pblica, op. cit., p. 109. 583

  • Jos Miguel Sardica

    A identidade estabelecida entre esprito pblico e reconciliao supra-partidria a nota dominante das intervenes de Garrett. E bastante in-teressante, no que toca futura caracterizao de um modelo polticocentrista, que, na sua anlise, o esprito pblico seja o garante do meio termoconciliador, a um tempo activo e ilustrado e radicalmente incompatvel como esprito de partido, que o repele de si como uma mescla montona, e semcor decidida59. Numa palavra, o Garrett centrista e ordeiro do final dos anos30 aparecia j aqui, antepondo as vantagens apartidrias do centro aos pre-juzos partidrios dos extremos. Os extremos eram os radicalismos, e osradicalismos eram sempre o fruto a proibir oriundo do esprito de partido essa mscara embusteira que em seus desvarios a mais violenta emelindrosa de todas as paixes60.

    Os bons polticos (leia-se os bons liberais e os bons patriotas) deveriamerguer-se acima dos partidos, dando provas daquela cordura diplomtica emoderao ilustrada (leia-se a plasticidade 'transformista') que em tudocontrastava com o partidrio, execrvel criatura entregue continuadamen-te fria da exagerao [que] no conhece meio-termo entre o delrio dofuror e o estpido entusiasmo61. Em suma, os partidos eram para Garrett umflagelo poltico e um incorrigvel detonador de instabilidades e inseguranas.Seguia-se, portanto, a decorrente recomendao final: Todo o governo quesinceramente deseja chegar ao conhecimento do esprito pblico deve pri-meiro que tudo preservar-se do esprito de partido [...] porque, se no escapardeste lao, nem ter estabilidade nem segurana em suas operaes, perden-do nele todo o nervo de sua administrao, e talvez a sua prpria existn-cia62.

    A tnica da irresponsabilidade poltica dos partidos e dos partidriostornou-se um verdadeiro leitmotiv dos discursos contemporneos sobre aquesto. Em 1842, o prncipe Lichnowsky constatava que o clima deendmica guerra civil em que Portugal ainda vivia no era para estranhar,pois raras vezes se resignam os chefes de partido a comprometerem-sepessoalmente (ou seja, a comportarem-se de acordo com uma mecnicapoltica e uma base de legalidade por todos aceite e praticada) e a tornarem--se, assim, responsveis63. Os partidos representavam, assim, fraces

    59 Id., Espri to pblico e esprito de part ido, in O Portugus de 10-8-27, cit. in op. cit,p . 157.

    60 Id., ibid., p . 156.61 Id., ibid., p . 158.62 Id., Opinio pblica e sistemas de governo, in O Portugus de 21-8-27, cit. in op. cit,

    p. 164.63 Prncipe Lichnowsky, Portugal. Recordaes do Ano de 1842, Lisboa, Imprensa Nacio-

    584 nal, 1845, p. 65.

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    polticas com eminente potencial subversivo e representando um cenriode lutas polticas a que o povo, e particularmente fora das grandes povoa-es, quase totalmente indiferentista64.

    Partidos e faces, indistintamente depreciados como bandos polticos,eram, na opinio de D. Joo de Azevedo, os responsveis pelas contnuasrevolues de Portugal. maneira de Garrett, Azevedo deplorava apermeabilidade do Estado ao esprito de partido, por contrrio que era auma escolha imparcial e meritocrtica dos funcionrios pblicos e adopode uma linha poltica publicamente aceite por todos65. O opsculo desteautor data de 1847: para trs estavam j treze anos de instabilidade e anar-quia; para a frente queriam-se anos de reconciliao e estabilidade; queria--se um saneamento do sistema poltico que em breve a Regenerao viriaoperar que superasse os excessos do partidarismo ou, pelo menos, oseducasse constitucionalmente para uma prtica qualitativamente diferente dadas faces.

    D. Joo de Azevedo pedia o impossvel, na medida em que as unidadesde base do funcionamento poltico do perodo de 1834-1851 no eram aindapartidos de notveis, mas simplesmente faces em aberto confrontomtuo. Ora era inevitvel, em virtude da vigente indistino entre os doistermos, que a crtica destas gerasse, acto contnuo, a condenao daqueles.Segundo a sua opinio, os partidos polticos do Portugal de ento no pas-savam de faces oligarquicamente dominadas por um punhado de indiv-duos que semelhana de escuma [sic] andam sempre na superfcie dosmesmos partidos, para aparecerem em quase todos os seus actos, conquantoessa apario seja, de per si, bastante para afugentar deles muita gente dig-na66. Daqui resultava um grave mal: que o antagonismo das relaesentre estes elementos era tal que, quando um partido se apossava do Estado,os outros, na oposio, logo conspiravam e revolucionavam, mantendo cer-ta aparncia de legalidade, para o derrubarem67.

    Eis o que fundamental desde j assentar, quer para perceber a rejeiogeneralizada dos partidos, quer, em particular, a lgica de funcionamento dapoca da frase e do tiro, como chamava Oliveira Martins aos anos 1834--1851: os partidos, ou faces, dificilmente governavam na mira do bempblico, pois nem sequer um acordo constitucional estava conseguido e norevelavam qualquer sinal de cultura de alternncia; ao invs, patrimonializa-

    64 Id, ibid., p. 67.65 D. Joo de Azevedo, Autpsia dos Partidos Polticos e Guarda-Quedas dos Governos

    ou Ensaio sobre as Contnuas Revolues de Portugal, Lisboa, 1847, passim, por exemplo,p. 31.

    66 Id, ibid., p. 78.67 Id, ibid., p. 21. 585

  • Jos Miguel Sardica

    vam o Estado em proveito prprio, exibindo uma cultura de exclusivismoque os levava a tentarem aniquilar todos os potenciais rivais.

    Deste ponto de vista, a Regenerao introduziu um corte inovador, sal-dando-se por um salto qualitativo na organizao das parcialidades polticase na prpria consolidao do sistema poltico liberal. Sucede que, na medidaem que as mentalidades mudam mais lentamente do que as polticas, essaalterao demorou a ser compreendida, pelo que o antipartidarismo da cul-tura liberal continuou a ser a nota dominante, embora de permeio, como sinaldos tempos ps-1851, com sinais de uma nova atitude de maior benevolnciae, sobretudo, esperana, no que os partidos, progressivamente distinguveisdas faces, poderiam vir a significar na mquina poltica.

    por isso que vlido dizer-se que, a partir da Regenerao, o discursodos contemporneos sobre o fenmeno partidrio oscilou entre a crtica e autopia a crtica dos males que o preconceito liberal antipartidrio nuncadeixou de lhes assacar e a utopia de que seria possvel corrigir esses malese fazer dos partidos as agncias coordenadoras da opinio pblica e forma-doras das correntes de governo, como a teoria prescrevia e como a prticade outros pases mais desenvolvidos parecia exemplificar.

    O pronunciamento militar de Saldanha, em 1851, respondendo a um desejoaudvel de regenerao que atravessava vrios quadrantes polticos nos anos40, determinou um reagrupamento das foras polticas em presena, superandoo perodo do simples faccionalismo e abrindo espao a um novo posiciona-mento face ao fenmeno partidrio. evidente, e nunca de mais insistir nesteponto, que errada a assumpo de que em 1851 se teria inaugurado umsistema de partidos definitivamente estvel, de parceria com a ideia de umaalternncia poltica cordatamente rotativa. As faces continuaram a existircomo subunidades polticas, mas o facto que a Regenerao superou o climade crnica anarquia na vida poltica. Mesmo que as parcialidades em cenaestivessem ainda longe de constiturem verdadeiros partidos de notveis,revelando fluidez de contornos, fidelidades pessoalistas, indefiniesprogramticas e erratismo no voto parlamentar, eram j agrupamentos umpouco mais disciplinados, no incio de um processo de estruturao que oshaveria de levar, nos anos posteriores, a cristalizarem-se nos partidosmonrquicos, tal como o terceiro tero do sculo xix os conheceu.

    Os primeiros anos da Regenerao foram, portanto, uma poca de tran-sio e de incerteza, em que o antigo e o novo, tanto no discurso como naprtica poltica, se misturaram e coexistiram. A imagem dos partidos nacultura poltica apresenta assim sinais contraditrios, em que a rejeio e acrtica figuram j lado a lado com consideraes sobre os meios de regenerare tornar teis esses mesmos partidos, numa tenso de opinies que jamais oliberalismo oitocentista conseguiria resolver.

    Do ponto de vista da separao entre as noes de partido e de faco,586 Alexandre Herculano deu o mote, na sua qualidade de pedagogo da nova

  • Os partidos polticos no Portugal oitocentista

    Regenerao, logo em 1851: os partidos, escrevia, vivem pelas ideias, aopasso que as faces vivem pelo interesse e pela paixo68. Aqui estava umconselho para o novel governo Saldanhista: havia que patrocinar partidosque vivessem de ideias, por elas se entendendo elementos de vitalidade,isto , grandes planos de rasgado fomento progressista nacional, e no am-bies mopes de vinganas eleitorais, empregos ou benesses.

    sabido que Herculano viveu esperanado, romntico, talvez por issomorrendo cptico, vencido da vida. Mais racionalistas e realistas eram oshomens da pragmtica Revoluo de Setembro, para quem a ideia de partidosuscitava algumas inovadoras esperanas, mas ainda bastantes reservas. Em1851, quando os benefcios do modelo reconciliador e pacificador da Rege-nerao no eram ainda visveis, Rodrigues Sampaio confessava-se um cr-tico: No h entre ns nenhuma educao constitucional. Os partidos jogamcom o povo como jogariam com as pedras de um gamo. No h poltica deprincpios, h poltica pessoal [...] o povo quer bom governo e este o seupartido. Nem tem outro, nem lhe convm t-lo69. Por contraposio, em1853, Lopes de Mendona j revelava alguma evoluo, ao teorizar que ograu de desenvolvimento de um pas se media, entre outras coisas, pelaforma como as lutas dos partidos se elevavam acima do mero espectculodegradante das pretenses individuais70. Supor esta evoluo possvel era jum salto em frente e uma medida das esperanas de melhoramento que aRegenerao alimentava. Da a utopia de Lopes de Mendona: Quandocada partido valer pelo nmero de ideias teis que consubstancia, ento quepodero desaparecer essas parcialidades (note-se aqui a utilizao especficadesta palavra) que se gladiam menos pela diferena dos seus sistemas do quepela ambio do poder71.

    Semelhante desejo de regenerao partidria fora j exposto por JosEstvo Coelho de Magalhes numa carta aberta aos eleitores de Aveiro emOutubro de 1852. Estvo comeava por reconhecer que os partidos entrens tm vivido mais numa luta de poder do que numa luta de princpios72.Ora, assente que o verdadeiro princpio de governo era o princpio progres-sista, seguia-se que