Os Povos Bárbaros

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iNCiROO Maria Saoaies Professora-Adjunta de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro cerou , J }

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de Maria Sonsoles Guerras

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Maria Saoaies Professora-Adjunta de História

da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Direção Benjamin Abdala Júnior

Samira Youssef Campedelli Preparação de texto Mário Tadeu Bruço

Arte Direção e

projeto gráfico/miolo António do Amaral Rocha

Coordenação de composição (Produção/Paginação em vídeo)

Neide Hiromi Toyota Capa

Ary Normanha António Ubirajara Domiencio

ISBN 85 08 01859 2

1987 Todos os direitos reservados

Editora Ática S.A. — Rua Barão de Iguape, 110 Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegráfico "Bomlivro" — São Paulo

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1. Introdução 5

2. Os "bárbaros germânicos" 9 Conceituação. , __ 9 Assentamentos e agrupamentos 10

3. A civilização dos "bárbaros" 14 Aspecto social __ 15 Aspecto político 16 Aspecto económico 19 Aspecto religioso 21 Aspecto cultural 23

4. O Império Romano e o mundo germânico , 25 Primeiros contatos 25

Formação do limes [ 27 Processo de romanização 28

Relações príncipes germanos—Roma, 29; Os "bárbaros" e as legiões romanas 29; Importân­cia econõmico-militar do limes, 29; Tratados de ajuda militar, 30

Alterações na política romana 31 Alterações no mundo germânico 32

A crise do século III e os "bárbaros" 33 Política restritiva do Império 33 Reorganização política dos germanos 33 Movimentos migratórios dos germanos 34 Confronto bárbaro-romano 35

No Ocidente, 35; No Oriente, 36 Recuperação romana 37

Período de trégua 37 Relações comerciais 38

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Relações culturais 38 Política religiosa 38 Relações militares 39

As grandes invasões germânicas do século V 41 A pressão dos hunos 41 Ostrogodos e visigodos 42 Teodósio e o pacto de federação 43 Generais "bárbaros" no governo do Império 44 Os visigodos na Itália 44 Novas investidas "bárbaras" no Ocidente 45 O saque de Roma de 410 . 47 Visigodos entre as Gálias e a Hispânia . 48 Desmembramento do Ocidente 51

Perda da Gália , 52 Visigodos, 52; Burgundios, 53; Francos, 54; Alamanos, 55; Hunos, 56

Vândalos na Africa , 61 Desembarque e conquista da Africa, 61; Con­solidação dos vândalos, 63;

Germanos na Britânia 64 Ponto de partida: norte da Europa, 64; Ponto de chegada: Britânia, 65;

Bretões na Armórica 67 Relações com Bizâncio 68

ê. Os reinos germânicos 70 Sociedade germano-romana 70 Estados monárquicos 71 O campo e a cidade 73 O costume e a lei escrita 75 Cultura clássica e Igreja 76

7. Conclusão: "bárbaros"? 7®

8. Vocabulário crítico 81

9. Bibliografia comentada

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1 Introdução

O estudo dos "povos bárbaros" exige certas considera­ções iniciais. A primeira é definir o conceito e suas implica­ções, inseridos no contexto histórico.

O termo bárbaro é uma herança grega. Segundo Heró­doto, os_egípcios chamavam de "bárbaros" todos os que fa­lavam uma língua diferente da sua. É provável que o autor estivesse atribuindo aos egípcios uma prática realmente ori­ginária da Grécia. Em grego, "bárbaro" designava inicial­mente aquele que possuía uma língua incompreensível, que não compartilhava nem os costumes nem a civilização dos helenos.

Esta concepção foi adotada pelos romanos em relação aos povos estabelecidos fora de suas fronteiras, sejam Esta­dos estruturados na Ásia, como a Pérsia, ou populações me­nos organizadas na África e Europa, contra as quais era necessário se defender. Portanto, "bárbaros" compj^ejidiam os estrangeiros não-assimilados, os "outros".

A atribuição de novas acepções ao termo, tais como in­culto, selvagem, bruto ou grosseiro, liga-se à noção das dife­renças fundamentais entre povos distintos. "Bárbaros" e "civilizados" são conceitos complementares: a "civilização", egocêntrica por natureza, não se concebe sem a contraposi-

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ção da "barbárie". Na oposição "nós—eles", forja-se a au­toconsciência de sua unidade e superioridade. Geralmente, não se considera o grupo "estrangeiro", em seu conjunto, como uma entidade coerente. "Bárbaro" equivaleria então à gente de um nível cultural inferior.

Este sentido pejorativo foi difundido no Renascimento para designar os povos que, puseram fim ao Império Roma­no e iniciaram a "Idade das Trevas". Os homens do Renas­cimento concebiam sua época como uma revalorização do mundo clássico, momento de apogeu da cultura humana. As­sim, a Idade Média também se revestiria de um caráter nega­tivo: um período de barbárie no qual a humanidade alcançou o estado mais baixo de cultura. Este mundo obscuro e inter­mediário entre duas épocas de esplendor foi o produto de "in­vasões" de populações semi-selvagens que destruíram a antiga civilização clássica. A própria palavra invasão implicava uma ideia de violência, de choque militar. Este tipo de postura foi reafirmado pelo movimento de ilustração no século XVIII.

Com o Romantismo do século XIX, resgatou-se a Ida­de Média. Os povos "bárbaros" passaram a ser o sopro de vitalidade frente à civilização decadente do Império Roma­no. Neste quadro, as "invasões" não tiveram consequências catastróficas, como se alardeava, e nem se caracterizaram pela irrupção brusca no limes imperial. O deslocamento desses po­vos resultou de um movimento de maior amplitude e, frequen­temente, pacífico, visando ao assentamento. Daí alguns autores preferirem adotar o termo migrações. A crise roma­na, de natureza interna, tornou-se o elemento decisivo que pôs fim ao mundo antigo. O Império Romano não fora as­sassinado, como afirmou Piganiol, mas, sim, morrera de mor­te natural, como defendeu Lot.

Assim chega-se a uma outra consideração. Os "bárba­ros", até recentemente, eram estudados em função de sua re­lação antagónica com o Império Romano e não vistos em sua individualidade, como portadores de uma cultura própria,

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que, por ser distinta dos padrões clássicos, não deixa de pos­suir o seu valor. Em parte, compreende-se esta lacuna ao se considerar a escassez e obscuridade das fontes que impedem um estudo mais aprofundado sobre a civilização "bárbara". Falta ainda ao historiador os instrumentos necessários para tal. Tornou-se imprescindível empreender um esforço no sen^ tido.de congregar as contribuições de diversas áreas do co­nhecimento que possam elucidar esse assunto, tais como: epigrafia, paleografia, arqueologia, literatura, hageografia, toponímia, linguística e iconografia. Porém, uma das maio­res dificuldades encontra-se ainda na atitude mental herda­da da Antiguidade.

Um último aspecto liga-se à extensão do teraiojwrfra-rojjlíilizaâp, como já vimos, iMistintamente para os diver­sos povos que habitavam além das fronteiras do mundo romano. Lot fixou cinco categorias de povos que, de forma sucessiva, surgiram na pars occidentalis do Império Roma­no, espaço no qual se desenvolverá a sociedade europeia. Es­ses povos não se restringem apenas ao momento de transição da Antiguidade para a Idade Média, pois, durante o período medieval, o ocidente europeu sofreria movimentos de igual natureza. Os povos seriam: germanos, eslavos, escandinavos, árabes e mouros, mongóis e turcos.

Em vista da amplitude do tema "povos bárbaros", optou-se por privilegiar os germanos devido à sua importân­cia na génese da sociedade europeia. Preocupou-se especial­mente com a sua atuação e desenvolvimento nos cinco primeiros séculos da nossa era, quando então ocorreu a pe­netração dos germanos na parte ocidental do mundo roma­no e construíram-se os fundamentos dos reinos bárbaros.

Distantemente da maioria das obras em que se destaca o processo de desintegração do Império Romano, presente­mente este foi abordado enquanto se relacionava com o mun­do germânico, excluindo uma análise da situação interna romana em favor de um maior aprofundamento sobre os ger-

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manos. A historiografia, talvez devido à existência de pou­cas fontes, tende a relegar o estudo dos germanos durante este período. Evidencia-se o interesse em relação à transição da Antiguidade para a Idade Média, contudo seguindo a óti-ca "romana" ou então a partir da consolidação e transfor­mação de alguns reinos "bárbaros", sobretudo o franco e o visigodo. Mesmo estando ciente da importância e comple­xidade desta última problemática, optou-se por apresentá-la sucintamente, oferecendo uma visão geral que fornecesse sub­sídios iniciais para um desenvolvimento posterior mais apro­fundado, com o espaço que tal assunto merece. Intencio­nalmente, não houve esta pretensão, mas, sim, a de estimu­lar o começo de uma reflexão sobre o tema. Este livro, por ser considerado como um primeiro contato; direcionou-se pa­ra uma análise mais descritiva e didática, objetivando assim desvelar um outro mundo fascinante e diferente, porém fre­quentemente menosprezado e desconhecido.

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Os "bárbaros, germânicos

Conceituação

Por volta de 320 a.C., Píteas de Marselha empreendeu um périplo de exploração comercial em busca de âmbar e de estanho. Traçou sua rota até o mar Báltico e a embocadura de Ems, entrando, pela primeira vez, em contato com o mun­do germânico. Logo estabeleceram-se outros contatos com as vanguardas das primeiras migrações no mar Negro (fins do século III a.C.) e na Gália, Nórica, Espanha e Itália (113 a 101 a.C).

Os romanos até então desconheciam que, na retaguar­da de seus inimigos celtas, encontravam-se os povos germâ­nicos. Celta e galo eram termos utilizados indistintamente para nomear os habitantes do norte e centro da Europa. O mundo celta, efémero senhor desta região, apenas proviso­riamente, impedia a expansão germânica. Os galos gozaram de um tal prestígio que suas instituições foram imitadas pe­los germanos até na Escandinávia.

O historiador grego Posidônio publicou, nas vésperas da conquista romana da Gália (século I a.C.), o relato de suas viagens através do Ocidente: dele se originou a teoria segun­do a qual a palavra germano designava o conjunto de povos

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instalados entre os rios Reno e Vístula. Estrabão, geógrafo dTorigem grega (século I), julgou que o termo era um vocá­bulo latino advindo de gérmen. Germani indicaria aqueles que

i i ! estavam unidos pelo sangue. Modernamente, Lot considerou germano como um ter­

mo céltico empregado pelos remenses em relação a seus vizi­nhos do leste. Para Mítre, parece que a palavra era estranha à própria língua germânica, sendo aplicada, em princípio, pe­los romanos aos galos. Musset também concorda com essa opinião ao assegurar que o termo não era de origem germâ­nica e se referia às tribos semi-celtas da margem esquerda do Reno, os germani cisrhenani, aumentando assim a possibili­dade do vocábulo ser céltico. A distinção entre os povos ga­lo e germânico apresentou-se entre os romanos nas obras de César, Estrabão, Plínio, O Velho, Tácito e Ptolomeu. Os qua­tro últimos autores tentaram elaborar algumas sínteses, fa­vorecidos após um século de guerras e contatos comerciais.

Ajangem dos germanos é incerta. Basicamente existem três hipóteses. Alguns estudiosos alemães acreditam que os germanos sejam indo^êuropeus vindos da Rússia oriental. Ou- íFoTcOTsideram-nõs como nórdicos que ocupavam as regiões escandinavas e bálticas e estavam isolados pela floresta ger­mânica. Na Idade do Bronze, estes povos receberam o apor­te de outros povos, dos quais adotaram a língua indo-européia. A civilização germânica estaria influenciada pelos celtas e ilírios, e até pelos povos mediterrâneos. Esta hipótese é a mais aceitável pela historiografia. A última foi formulada por Tácito, que os vê como autóctones.

Assentamentos e agrupamentos

Os autores latinos elaboraram diversas classificações dos germanos: Plínio adotou o critério topográfico — vandili (compreende os burgundiones, os varini, os charini e os gu-

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tones), istaeones (povo único de nome modificado, os sicam-brios), ingaevones (compreende os cimbri, os teutones e os chauci), hermiones (compreende os suebi, os hermunduri, os chetti e os cherusci) e peucini ou basternae. Por sua vez, Tá­cito seguiu a genealogia mítica: o progemtor comum, inanuus (homem), e seus três filhos, antepassados dos ingaevones, her­miones e istaevones.

A maioria das tentativas de classificação das tribos baseou-se na origem genealógica, efetuadas por historiado­res interessados, principalmente, no aspecto etnológico, des­de Estrabão até Tácito. Porém, diferem entre si na deno­minação das tribos e nem coincidem nos grandes grupos. Es­tas divergências expressam talvez as sucessivas fases do de­senvolvimento histórico.

A historiografia moderna utiliza-se de duas categorias: geográfica e linguística. Riché e Lot, apesar de adotarem a geo­gráfica, diferem nas suas classificações. O primeiro analisa o momento da invasão do século V e divide os povos germâni­cos em três grupos. No leste, os godos, vindos do Báltico, na Ucrânia, no século III, repartem-se em visigodos (godos "sá­bios"), a oeste do Dnieper, e em ostrogodos (godos "brilhan­tes"), a leste do mesmo rio. Há ainda os gépidos, que-descem do Báltico e se instalam sobre a Thiza, não longe dos vânda­los hasdings. Os vândalos silings, por sua vez, ocupam a Silé-sia e comprimem os marcomanos na Baviera. Os burgundios, originários talvez da ilha báltica de Bornholm (borghundar-holrri), empurrados pelos gépidos, encaminham-se do Oder em direção ao Reno. No outro grupo, a oeste, estão os alama-nos, congregando diversos povos {ali manrí), que se estabele­cem sobre o Main. Os francos absorvem os sicambrios, chamavos, bructeros, chattos etc. e dividem-se em dois seg­mentos: ripuários, sobre a margem do Reno, de Bonn a Co­lónia, e sálios, entre o Reno e o Escalda. O último grupo, localizado ao norte, seria o dos escandinavos, anglos, varnes e jutos. Entre a foz do Elba e do Weser, instalam-se os saxões e frísios, e, mais a leste, entre o Elba e o Oder, os lombardos.

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Lot opta por uma bipartição: germanos ocidentais e os setentrionais e orientais. Os primeiros se subdividiriam em ingaevones (cimbrios, teutões, anglos, varnes, saxões e frí-sios), na península da Jutlândia; istaeones (francos: sicam-brios, chamavos, sálios...), no sul da Jutlândia e parte das costas do mar do Norte, hermiones (batavos, cheruscos, chat-tos), ao sul dos istaeones; suevos (marcomanos, quados, tu-ringios e alamanos), no centro da Alemanha e Bohemia. No segundo grupo há lugues, no Báltico (século I), dos quais os vândalos constituem um ramo; borgonheses, na foz do Oder e Vístula; godos e gépidos, no Baixo Vístula, Cárpatos e mar Neg.r,o (século II); rugios, na Pomerânia (século II); lombar­dos, no Baixo Elba; bastamos e sciros, no Olbia (século II); hérulos, vizinhos dos rugios.

A distinção pela língua desenvolveu-se a partir da gra­mática comparada, no começo do século XIX. Tradicional­mente, divide-se em três dialetos: nórdico (escandinavo antigo e línguas modernas surgidas a partir dele), ósticos (burgun-dio, vândalo, rugio, bastarno, todos desaparecidos) e vésti-cos (francos, alamanos, bávaros, lombardos, anglos, saxões, frísios; alemão, holandês e inglês modernos). Contudo, esta classificação está sofrendo uma revisão, em vista da proxi­midade relativa do nórdico com o gótico e dialetos afins, ori­ginando o seguinte esquema: germânico continental (francos, alamanos, bávaros, lombardos...); germânico do mar do Nor­te (anglo-saxão, frísio) e talvez um germânico do Elba; por fim, godo-escandinavo (dialetos nórdicos e ósticos na classi­ficação tradicional).

Apesar de tudo, continua ainda em questão quais eram os povos que estavam compreendidos nos diversos grupos existentes. Sobre isto é difícil chegar a um acordo nas circuns­tâncias atuais, pois as grandes divisões, que da literatura an­tiga surgiram, fundamentaram-se em princípios distintos e compreendiam somente uma parte de toda a Germânia. De fato, existem muitas possibilidades de classificação segundo

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a importância que se concedeu, e ainda se concede, ao idio­ma, origem, tradição tribal, determinadas instituições da vi­da social e do culto, e, sobretudo também, à própria ordenação dos grupos. Somente quando a transmissão de da­dos da tradição se realizou sob condições muito favoráveis é que foi possível incorporar com exatidão a um mapa mo­derno o catálogo de povos da Antiguidade e combiná-los com os estudos de classificação arqueológica.

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A civilização dos "bárbaros'

É na obra de Tácito, Germânia, que se obtém uma vi­são mais detalhada dos costumes e da vida dos povos germâ­nicos. O autor nasceu em 55, foi questor e pretor em 88, sob a dinastia Flávia, cônsul nos tempos de Nerva, alcançou seu mais alto posto oficial sob Trajano, com a administração da Ásia. Em Germânia, a manifesta simpatia de Tácito pelos ger­manos e seu conhecimento deste povo fazem crer que fora filho do procurador equestre da província dos belgas. É bem possível que Tácito tenha desempenhado um cargo próximo à Germânia, na Bélgica, durante sua ausência de quatro anos de Roma, o que facilitou o relato sobre aquele território e seu povo, adversário temível do Império Romano. Porém, não é como um inimigo que ele o descreve nos seus mais di­versos aspectos. Ainda que a Germânia tenha se baseado, em parte, nos antigos relatos, Tácito também empregou mate­rial contemporâneo, daí a vigência de sua obra. Caso se con­siderem as fontes arqueológicas, que em muitas ocasiões completam e melhoram o relato de Tácito, tem-se a possibi­lidade, pouco frequente para outros povos, de obter um cor­te transversal dessa região até fins do século I. Este período é um momento considerado fundamental no processo de for­mação dos diferentes povos, que se constituíram naquele

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conjunto histórico e cuja organização interna pode se distin­guir da dos vizinhos com toda a nitidez. A obra de Tácito torna-se, portanto, imprescindível para a compreensão da "ci­vilização bárbara", que é complexa e variada. Porém, ater--se-á às características mais gerais dos germanos.

Aspecto social

Os germanos desconheciam Estado e cidade. Sua vida social estava centrada na comunidade, na tribo, no clã, en­fim, na família, em que o indivíduo encontrava sua razão de ser. A base de toda a estrutura social estava na sippe (comu­nidade de linhagem que assegurava a proteção ao grupo de pessoas sob sua autoridade). Numa posição superior estava a centena (fundamentada no distrito ou gau), organismo com funções judiciais e de recrutamento militar.

Dentro da família, o pai exercia autoridade absoluta so­bre esposa e filhos: a infidelidade feminina era castigada com a morte e repúdio, já que a mulher era a guardiã da pureza; as filhas, sempre tuteladas, passavam da autoridade paterna para a do marido através da venda e em troca de um dote (animais ou armas); os filhos encontravam-se, até os dez ou quinze anos, sob a autoridade do pai e ocupados com tare­fas domésticas e o cultivo da terra, quando então eram ar­mados como guerreiros pelo seu progenitor para integrarem a corte do chefe. Mesmo assim, o jovem continuava juridi­camente na sua família, que era responsável por suas faltas, dívidas e vingança. A mulher participava intensamente da vida do marido. Quando do casamento, a esposa tornava-se en­carregada da transmissão ao filho do seu dote em armas e animais e dava uma arma ao esposo para mostrar que estava pronta a dividir o perigo da ocupação de guerreiro.

A solidariedade familiar era também comprovada pelo pagamento das dívidas, liquidação do wergeld (preço do

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sangue) ou compensação pecuniária, quando eram crimino­sos, e vingança, quando eram vítimas, através da guerra pri­vada ifaida). O wergeld foi criado para diminuir os excessos da vingança privada e restabelecer a ordem desejada pelos deuses. Para isso, estipulava-se uma quantia proporcional à importância do delito ou à posição social da vítima. Podia inclusive haver transmissão de dívidas, como ocorria com os sálios (chrenecrudà).

O elemento social fundamental eram os homens livres, os guerreiros, cuja morte implicava uma indenização eleva­da. Além de portarem armas, tinham o direito de expor nas assembleias sua opinião. Em um escalão inferior, estavam os semilivres, oriundos de povos vencidos. Eram numerosos, mas lai vez não constituíssem maioria em todos os lugares. Por último havia os escravos, domésticos ou dedicados ao culti­vo das terras. Eram cativos, prisioneiros de guerra ou deve­dores insolventes, que estavam ligados à cultura do solo. Podiam ser resgatados, tornando-se semilivres; porém, não faziam parte do povo germânico, pois somente uma família dava ao germano possibilidade de ser livre. Riché acrescenta uma aristocracia de nascimento (linhagem) ou de valor, pro­prietária da maior parte das terras que dirigiria a tribo (ada-lingi). Este grupo tinha a prerrogativa de servir nas tropas de cavalaria, influência da vizinhança dos povos iranianos que faziam grande uso do cavalo. O considerável grau de in­fluência da nobreza germânica pelo viver daquele povo de ginetes pode ser evidenciado pela situação que se apresentou na época das grandes "invasões bárbaras". Porém, Musset considera duvidosa a existência, em muitos povos, de uma nobreza estranha às famílias reais.

Aspecto político

O caráter militar é o traço mais típico da sociedade ger­mânica.' A guerra era a razão de ser do germano, que devia

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sempre estar preparado para o ataque. Suas armas eram prin­cipalmente ofensivas: lanças, espadas longas com duplo cor­te e machados. A organização dos exércitos "bárbaros" descansava no serviço de todos os homens livres em estado de combater, equipar-se e alimentar-se, pelo menos, para uma curta expedição. As mulheres também davam sua contribui­ção, incentivando os guerreiros. Estes, caso fossem vencidos, se matavam no campo de batalha ou se entrincheiravam nas fortalezas da floresta, esperando uma nova ocasião. Os acha­dos arqueológicos confirmaram toda essa belicosidade, pois nos túmulos encontraram-se grandes quantidades de armas.

Uma das principais atividades dos germanos estava li­gada à guerra: a metalurgia das armas, arte na qual eram in­superáveis. Esta superioridade técnica proporcionava uma vantagem garantida aos germanos nas guerras que empreen­diam. Somada à técnica, havia também a estratégia. Tácito, ao se referir aos chattos, revela que possuíam um autêntico exército profissional provido de um corpo de engenheiros e dotado de perícia para manobrar, fortificar-se sobre o pró­prio terreno e escolher os chefes mais capazes.

Os objetivos fundamentais eram de ordem militar, e as únicas subdivisões sólidas encontravam-se no exército. A base da hierarquia social caracterizava-se por urna instituição es­sencialmente guerreira, o séquito (comitatus), formado pe­los chefes que congregavam grupos de jovens guerreiros que haviam prestado juramento e cuja fidelidade tinha sido pro­vada. Os chefes e seus jovens companheiros eram organiza­dos para o combate por tribos. Posteriormente, adotaram-se as divisões territoriais. O mando estava nas mãos de chefes hereditários ou dos ricos que se achavam à cabeça de um im­portante comitatus. Criava-se assim um setor de pessoas de­pendentes e um grupo de homens livres para o serviço de armas na guerra e nas expedições de botim. O enriquecimen­to dos chefes favoreceu sua transformação em proprietários. Deste setor, surgiu o grupo dirigente da formação política,

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seja em uma espécie de principado ou em forma de monar­quia. Foi desta nobreza que saíram os chefes do exército da época tardia.

Em tempo de paz, os poderosos somente tinham a au­toridade que lhe conferiam sua influência social e número de fiéis. Os reis acrescentavam à sua autoridade o prestígio reli­gioso. Porém, o verdadeiro poder pertencia à assembleia lo­cal de homens livres (mallus), que era celebrada periodi­camente ao ar livre. Uma vez por ano, os grupos se reuniam em um lugar sagrado, perto de uma árvore ou montanha, para discutir a eleição do chefe, empreender a guerra ou julgar con­tendas entre as tribos.

Em tempo de guerra, os chefes hereditários ou escolhi­dos (duces) tinham um poder quase absoluto, exceto no que diz respeito aos direitos elementares, como o botim. A riva­lidade entre os clãs originou-se dos esforços em obter influên­cia na direção dos grupos políticos, o que ocasionava duradouras guerras.

Na época das invasões, os povos germânicos apresenta-vam-se distintamente do que retratou Tácito. Alguns consti-tuíram-se em células elementares muito coerentes, mas pouco numerosas, enquanto outros formavam vastas confedera­ções, constantemente sujeitas à absorção ou dissolução. Havia também graus intermediários. Nessas associações maiores entravam vários elementos aglutinadores: socio­lógicos (comunidade de antepassados, matrimónios mis­tos), religiosos (comunidade de culto), geográficos (região habitada), linguísticos (particularidades dialetais), econó­micos (botim) e étnicos. Contudo, na maioria das vezes, o determinante era político. Quase todos os povos que divi­diram o saque do Império tiveram como agregador uma rea­leza dinástica, o que não era um traço primitivo dos germanos segundo Tácito e César. Estes falavam em suas obras de nu­merosos povos ' 'republicanos". A monarquia era uma insti­tuição que dominava na parte oriental do limes imperial.

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A luta com Roma e a divisão dos despojos favoreceram a rea­leza. Esta tinha um duplo caráter: religioso e militar, cuja intensidade de cada tipo de poder variava de acordo com o povo.

A sobrevivência das confederações, sobretudo as maio­res, dependia do sucesso que obtinham. Repetidos fracassos acarretavam a dissolução e o desaparecimento de seu nome. Seus componentes ganhavam sua liberdade ou entravam pa­ra outros agrupamentos. Estes podiam ser de dois tipos: um grupo reduzido, que defendia o seu nome e a dinastia, e ou­tro composto de camadas externas supostas. O primeiro, por sua extensão, era mais fácil de ser aniquilado; porém, enquan­to subsistia, era dotado de forte "consciência étnica".

Aspecto económico

Os germanos eram simultaneamente guerreiros e cam­poneses, situação esta figurada no seu instrumento, a frânci-ca, que não era apenas uma lança, pois servia igualmente para o arroteamento. As guerras tinham frequentemente como ob-jetivo a conquista de novas terras e a aquisição de mão-de--obra servil. Na época das colheitas, interrompiam-se as guerras.

A vida económica era muito diversa segundo a região. Os saxões e frísios, habitantes das planícies úmidas, pratica­vam a pecuária bovina. Os germanos dos bosques faziam, em áreas queimadas, um cultivo mais ou menos intermiten­te, organizado pela coletividade; os das estepes concediam grande importância à criação equestre. Assim, os germanos viviam da pecuária (bois, cavalos e ovelhas) e agricultura, jun­tamente com a pesca e a caça.

O rebanho (uma espécie de bem da comuna) pastava na terra em pousio. De acordo com a. região, cultivava-se, com

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''|!l| uma técnica rudimentar , tr igo, aveia ou linho, a cada dois • : , ( " ou três anos . As condições de solo não ajudavam. Os germa-;&!., nos instalavam-se em clareiras por alguns anos, onde arro-1 teavam o terreno com pesadas charruas. Esgotadas as terras,

procuravam novas. Riché vê este seminomadismo como uma explicação para o fracasso de os germanos formarem um Es­tado estável. A existência de ricas terras ul trapassando o li­mes imperial (Reno e Danúbio) foi uma motivação para as invasões. Pa ra cultivar o solo, empregavam-se os antigos prí-~ sioneiros de guerra, transformados em escravos ou semilivres. Nessa atividade, deve-se destacar ainda a participação da mu­lher, que se ocupava desse afazer enquanto os homens esta­vam nas guerras. Apenas os homens livres possuíam a te r ra / Apesar da existência da propriedade individual, a explora­ção das terras era sempre coletiva, devido às condições da agricultura, que exigiam um acordo de alternância da pecuá­ria com o cultivo. Da terra os germanos tiravam os meios para sua alimentação, habitação (barro ou madeira) e vestimenta.

O artesanato era modesto , principalmente a cerâmica e a tecelagem. Desenvolveu-se a atividade de metalurgia, por ser essencial à guerra para confecção de armas, carros de com­bate e barcos. Os germanos t inham u m a técnica apurada, em que empregavam o endurecimento do aço pelo azote. Havia inclusive façanhas lendárias envolvendo ferreiros (Mimir e ' Wieland).

A ourivesaria era out ra atividade em que os germanos se destacaram devido ao seu caráter decorativo. Fíbulas, pla­cas de cinturões e outros artefatos possuíam suas superfícies totalmente decoradas com figuras de animais estilizados ou com abstrações geométricas (círculos, cruz gamada e t c ) . A ilustração zoomórfica era característica da "ar te das estepes" t ransmit ida aos godos e, depois, aos outros germanos, pelos sármatas.

:j As atividades comerciais existiam, há longo tempo, en-' tre os povos nórdicos e mediterrâneos, e, cada vez mais, se

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voltavam para o Império Romano. Apesar da penetração de moedas romanas em grande quantidade na Germânia e Es­candinávia, elas não foram utilizadas para troca, pois o pa­drão era ainda o gado ou as barras ou argolas de metal precioso. Essa região continuava refratária à vida urbana.

Aspecto religioso

É difícil afirmar se houve uma unidade religiosa entre os germanos. Ignora-se o culto de alguns povos essenciais,

-* como os godos. As fontes escasseiam no período entre Táci­to e as missões cristãs. Assim, há informações muito antigas (César e Tácito) ou mais recentes (Edda escandinava). Con­tudo, os trabalhos arqueológicos ajudam na elucidação des­te quadro.

De uma primeira época, César mostra a grande diferen­ça entre os galos e os germanos ao se referir à existência de um corpo sacerdotal entre os primeiros (druidas). Os germa­nos não tinham uma casta sacerdotal; entretanto, alguns de­les podiam ter a função de "padre", o que não durou muito tempo. Estes foram substituídos pelos pais de família ou che­fes cie tribo quando das assembleias ou libações rituais de vi­nho. Eram os chefes das famílias que dirigiam os sacrifícios domésticos. Ãs mulheres tinham um papel de destaque co­mo profetisas (por exemplo, Véleda) ou mágicas. Tanto os "padres" como essas mulheres conheciam o caráter secreto das runas (escritura germânica). Parece que tinham um va­lor decorativo e mágico para a proteção dos guerreiros. Es­ses sinais eram gravados em madeira, armas, jóias ou pedras, resguardando seus portadores.

Não havia templos. Os rituais ocorriam nos bosques sa­grados, picos de montanhas ou próximos de fpntes ou árvo­res, em certas datas (solstício, lua nova). Praticavam-se então sacrifícios animais ou humanos, presididos pelos."padres".

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Havia três reuniões anuais para obter boa colheita, cresci­mento das plantas e vitórias nas guerras. Estas também po­diam ser comemoradas com sacrifícios de armas e prisioneiros. Faziam-se procissões com carros de combate, bem como algumas práticas adivinhatórias.

Os germanos adoravam essencialmente a natureza e suas forças, que atuavam como em um campo de batalha, em que se defrontavam os deuses. O espírito belicista desse povo não poderia estar ausente da sua religião. Encontravam-se no pan­teão germânico grandes figuras divinas, tais como: Wotan (ou Odin), que preside o comércio, combates e tempestades — deus aristocrático por excelência; Tiwaz, que dirige o céu e protege as assembleias; Donar (ou Thor), senhor dos raios e que é invocado antes de ir à guerra; Nerthus, a deusa da fecundidade, festejada na primavera (sempre presente nas so­ciedades agrárias); Freya, divindade do amor e do fogo. Al­guns desses nomes estão presentes no calendário: terça-feira é o dia de Tiwaz (Tuesday), quinta-feira, de Donar (Thurs-day) e sexta-feira de Freya (Friday). Igualmente existem nu­merosos seres invisíveis, espíritos e gigantes, expressos na literatura germânica. Entre os espíritos malignos, sobressai Loki, que, com a ajuda dos deuses, criou o homem, dotando--o assim de uma parte boa e outra má. Tácito revelou a exis­tência de poemas, cantos heróicos e mitológicos, invocando alguns heróis em relação direta com os deuses: Tuisto, Buri, Marin e Ingo.

, A religião germânica caracterizava-se por quatro elemen­tos: o caráter escatológico, pois tudo foi criado e, portanto, devia terminar, sejam deuses ou homens; o pensamento fa­talista, ao prever que a grande batalha entre os deuses e os espíritos malignos aniquilaria a todos; a crença em uma vida após a morte (Walhalla e Hei), expressa na incineração ou inumação com os utensílios, armas e adornos dos mortos; o espírito bélico, próprio de uma aristocracia guerreira, que privilegia os sentimentos de honra e fidelidade, recompen-

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sando-se os guerreiros, quando mortos em batalha, com uma vida entre os deuses no Walhalla, levados pelas valquírias — donzelas guerreiras, filhas de Wotan. O referido fatalismo foi atenuado com a esperança de surgir um mundo de paz, após a guerra.final, rio qual ressuscitariam os filhos dos deu­ses e os homens. Contudo, nesta existência predorniriàva a guerra e a morte.

Aspecto cultural

A produção artística e cultural dos germanos estava pro­fundamente interligada ao seu espírito guerreiro. No decor­rer dos banquetes, os cantores improvisavam poemas épicos em honra aos heróis germânicos. A epopeia e a lenda dos he­róis germânicos vinculavam-se à mitologia germânica acima descrita. Os cantos épicos constituíam uma manifestação das virtudes valorizadas por esse povo. No centro desta epopeia, ressaltava-se o herói, descendente de um personagem divino.

_Cada tribo ou clã tinha sua saga, espécie de lenda, em que se fazia uma recordação gloriosa dos antepassados. Era a expressão literária mais elementar. Mitre cita a tipologia elaborada por Gonzague Reynold para classificar essas ma­nifestações poéticas centradas nos heróis. Assim, apresenta-ram-se cinco ciclos: ostrogóticos (Ermanarico e Teodoríco); franco (Sigfrido); burgundio (Gunther e seus irmãos e a he­roína Kriemhild); lombardo (rei Rothari, Ortmit, Hugdietrich e sua filha Woldfdietrich); aquitânio (Walter ou Gouthier). Estes compõem os ciclos da Germânia do continente. Faltam, contudo, os ciclos da Germânia do mar, com os poemas de Kudrun e Boewulf, os dois de origem danesa. O poema dos nibelungos, expressão significativa da epopeia germânica, foi imortalizado e popularizado pela orquestração do composi­tor alemão Wagner, no século XIX.

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Os caracteres rúnicos, originados na Dinamarca, no sé­culo II, e por influência mediterrânea, possuíam muito mais uma função mágica do que de escrita. Sem prestar grandes serviços à vida intelectual, subsistiu no continente até o sé­culo VII, na Inglaterra até o IX e na Escandinávia até o XV. Com a conversão dos godos ao arianismo, no século IV, sur­giu um tipo de alfabeto inspirado no grego e no rúnico. Este foi criado pelo bispo ariano Ulfilas ou Wulfila (311-383), que traduziu a Bíblia em língua gótica, facilitando assim a sua tarefa religiosa.

A ourivesaria, como exposto anteriormente, teve seu pa­pel de destaque como uma das mais importantes manifesta­ções artísticas dos germanos. A destreza e o gosto germânicos se revelam com grande esplendor nessa arte, na qual foram mestres.

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O Iinpéno Romano e o mundo germânico

Primeiros contatos

A primeira confrontação entre as legiões romanas e os germanos teve como protagonista Mário, vencedor dos teu­tões em Aix e dos cimbrios em Vercelli (102 a 101 a.C). Ro­ma tomava assim consciência do nascente perigo germânico. Porém, alguns historiadores, como Lot, consideram esse mo­vimento como a última mostra da ' 'barbárie celta'', baseando--se nos nomes celtas dos seus chefes.

A ocupação das Gálias por César colocou os romanos em contato com os suevos de Ariovisto, em 58 a.C. Este tra­tava de ganhar terreno na Europa central, em detrimento dos celtas, então em plena decadência. A conquista romana li­mitou a expansão germânica (bastamos, cimbrios, teutões), primeiro pelo oeste (campanha da Gália, 58 a 51 a.C.) e logo no sul (organização de novas províncias). A expansão somente pôde continuar algum tempo até o leste através dos espaços mal delimitados no istmo formado entre o Báltico e o Ne­gro. Musset levanta várias hipóteses para esse movimento mi­gratório: péssimas condições climáticas na Escandinávia e região báltica, aventura, pilhagem e obrigação ritual de os jovens de cada geração buscar fortuna no exterior pelas

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armas. Seja como for, os celtas, sentindo-se ameaçados pe­los germanos, pediram auxílio aos romanos, que derrotaram os suevos de Ariovisto nas margens do Reno, junto a Be-sançon.

As tentativas posteriores de Augusto (27 a.C. a 14).e.Ti­bério (14 a 37) ocuparem a zona entre o Reno e o Elba não tiveram êxito, e algumas campanhas acabaram em completo fracasso. Uma delas foi a de Quintílio Varo, em 9, quando foram aniquiladas três legiões. Segundo o relato de Dion Cas-sio, Varo assumiu o governo da Germânia e, intervindo em seus assuntos apoiado em sua autoridade, tentou converter os germanos de repente em outros homens, dando-lhes or­dens, como se já houvessem sido dominados, e pretendendo inclusive o pagamento de tributos, como se fossem súditos. A sublevação partiu dos territórios já possuídos, como re­sultado de uma política de ocupação equivocada.

Havia entre os germanos diferentes opiniões sobre a ati­tude a ser tomada em relação aos romanos: alguns estavam contra o conquistador; outros queriam aproveitar sua posi­ção e boas relações com Roma para fins hegemónicos; por fim, uns eram partidários do levantamento, ainda que antes' estivessem a serviço do Império e tivessem sido convertidos em cidadãos romanos. Um exemplo foi o querusco Armínio, antigo aliado das tropas imperiais e que se sublevou do jugo romano, talvez alentando o sonho de criar um Estado ger­mânico rival de Roma. Este ideal também foi perseguido por outros germanos. Armínio sofreu um sério revés pelas legiões de Germânico, sobrinho do imperador Tibério, que empreen­deu campanhas vitoriosas até alcançar o vale de Weser. O destino não lhe foi favorável, acabando por ser assassinado pelos próprios germanos.

Com Marbodo, começou-se a formar entre os marco-manos, na Bohemia, um centro de poder que era um foco de perigo para o domínio romano. Os marcomanos eram um ramo dos suevos, instalados inicialmente no curso do Main,

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que emigraram para Bohemia. Marbodo assumiu de fato o poder real e submeteu todos õs seus vizinhos pela força ou vinculou-os por tratados.

A formação de tal unidade foi possível em contraposi­ção a ocupação romana, que, justamente por ser diferente e estrangeira, favoreceu entre õs germanos a ideia de irman-j dade ou, ao menos, o sentimento de ter interesses comuns.: Contudo, as rivalidades continuavam a existir. Os romanos souberam aproveitar essas discórdias através;da diplomacia e intriga, acabando por ajudar na derrubada de Marbodo. Não permitiram ao seu sucessor manter por inteiro o reino e criaram um novo domínio para outro de seus protegidos, Vannio, que atuou como uma espécie de rei vassalo de Roma.

Se o Império soube explorar as divisões entre os "bár­baros", estes aproveitaram-se igualmente das dissensões ro­manas advindas com a morte de Nero, em 68. O movimento de insurreição partiu dos batavos, um grupo dos chattos que se havia instalado entre o antigo Reno e o Wall e que tinha várias cortes de tropas auxiliares, cujo mando estava nas mãos da nobreza tribal germânica. Surgiu, neste contexto, Júlio Ci­vil, nascido nas fronteiras setentrionais do Império, Batávia (atual Holanda), e que serviu vários anos no exército de Ro­ma. Consciente da impopularidade dos romanos nas fron­teiras do Reno, conseguiu unir em uma sublevação comum os galos, germanos e batavos. No princípio, fingiu tomar par­tido por um dos grupos que disputavam o poder em Roma. Contudo, Vespasiano, uma vez na direção do Império, em­preendeu uma séria campanha para sufocar a rebelião e assi­nou tratados de paz.

Formação do limes

Percebe-se então que desde Augusto a política romana em relação aos germanos passou por várias,estratégias. Ape-

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sar da derrota de Varo não ter sido tão catastrófica que im­pedisse a expansão na Germânia, Augusto não a concluiu. Conseguiu-se chegar até o Elba, organizando-se as novas pro­víncias de Récia e Nórica (16-15 a.C). Entretanto, a revolta de Armínio inquietou o governo imperial, e apesar das vitó­rias (14 a 16) de Germânico, decidiu-se abandonar a região da margem direita do Reno. Alguns autores, como Mitre, acham que Roma desdenhou a ocupação da Germânia, mes­mo quando tal ocupação era empresa fácil, por considerar essa região tão pobre como a Irlanda e Escócia.

Roma optou por organizar solidamente as suas frontei­ras, aproveitando-se das condições geográficas que serviriam como limites naturais. Assim, o Reno e o Danúbio tornaram--se marcos para o estabelecimento do famoso limes, que, par­tindo de Bonn, terminava sobre o Danúbio, em Ratisbonne. Roma também protegia as regiões dos Campos Decumates ou Decimates (atuais zonas de Baden e Wúrttemberg, no su­doeste da Alemanha). Constituíram-se postos fortificados ocupados pelos soldados acampados nas duas províncias di­tas de Germânia.

Processo de romanização

Desde o século I, portanto, abandonou-se uma política ofensiva, preferindo-se ou uma defesa estática {limes) ou uma diplomacia de apoio dos chefes romanizados dos germanos independentes, concomitantemente a demonstrações esporá­dicas de força. Estas ações integraram-se em uma estratégia maior de penetração pacífica através da romanização dos ger­manos. Em quatro pontos residiam as bases desse processo: as relações dos chefes germânicos com Roma, como exem­plificado anteriormente; a integração dos "bárbaros" nas le­giões romanas; os contatos económicos entre Roma e Germânia através do limes; os tratados de ajuda militar.

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Relações príncipes germanos—Roma

O primeiro elemento já evidencia a penetração romana no espírito dos germanos, desde Ariovisto — que mais que romanizado era celtizado — até Vannio. O contato com o Império havia se intensificado depois do avanço romano até o Reno e o Danúbio e, sobretudo, na época de formação do limes. Os serviços prestados pela nobreza germânica foram muito importantes ao Estado romano. O contato com a civi­lização romana já havia permitido, em muitas ocasiões no ambiente "Bárbaro", o acesso das famílias principais a pos­tos especiais em Roma.

. Os "bárbaros" e as legiões romanas

A penetração dos "bárbaros" no exército imperial verificòú-sé em"quatro momentos. Inicialmente, participavam de forma esporádica e, em geral, eram recrutados entre os povos das margens do Reno para os destacamentos de cava­laria durante uma campanha (mercenários). Em outra fase, formavam corpos recrutados por tratados de forma perma­nente, mas não integrados dentro das legiões, com cada uma de suas unidades constituída por um povo "bárbaro" deter­minado. O perigo de sublevações nacionais levou ao recruta­mento "por províncias inteiras, enviando-se os recrutados a lugares afastados de seu lugar de procedência. Com Vespa-siano (69 a 79) e seus sucessores, cresceu o número de tropas auxiliares e alguns "bárbaros" chegaram a cargos de chefia (por exemplo, Estilicão).

Importância econômico-militar do limes

O limes não era uma muralha contínua, mas um amplo caminho em que, a intervalos regulares, se construíam torres de madeira, com uma pequena guarnição para vigiar possí­veis movimentos inimigos. Atrás delas estabeleciam-se os

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acampamentos. No princípio, eram essencialmente mercados nos quais os germanos levavam seus produtos, tais como âm­bar, trigo, madeira e peles, para trocar por outros, romanos, de baixa qualidade. Portanto, era um mercado compensató­rio para o Império. Em meados do século II, Roma tinha ne­cessidade de contratar soldados "bárbaros", que custavam dinheiro, o que diminuía as vantagens até então conseguidas pelos romanos. Logo, iniciou-se a colonização das zonas de fronteiras, com o estabelecimento de pequenos arrendatários, seguida da implantação nesses novos territórios da adminis­tração provincial e da organização municipal. A colonização civil deveu-se, em grande parte, às necessidades das tropas, pois a distância do limes encarecia os produtos, que necessi­tavam ser transportados, obrigando a criação de uma indús­tria, própria próximo à fronteira.

A necessidade de soldados e de mão-de-obra agrícola por parte de Roma acarretou, portanto, uma infiltração pacífica dos germanos no limes — região entre o rio Reno e o rio Da­núbio, perto do lago de Constança —, que cultivavam os cha­mados Campos Decumates ocupados em comum acordo com o governo imperial, o qual recebia por isso um dízimo. As_-sim, os laeti, acantonados com suas famílias perto da fron­teira renana, contribuíram para a formação de comunidades rurais. Os estabelecimentos fronteiriços rodearam-se, em cer­tas ocasiões, de muralhas, o que deu ao limes seu duplo ca-ráter militar e económico.

''• Tratados de ajuda militar

O último elemento do processo de romanização eram os tratados de ajuda militar entre Roma e os reis das tribos mais próximas às fronteiras. Visava-se formar uma linha defensi­va composta pelos próprios germanos, que defenderiam a in­tegridade do Império. Os pactos de fidelidade concluídos com a maioria dos povos germânicos na zona do limes tiveram validade até a segunda metade do século I.

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Esta situação se manteve até a época dos Flávios (anos 70 do século I). Com Domiciano (81 a 96), iniciou-se uma campanha contra os quados e marcomanos, que se negaram a facilitar ao imperador o contingente militar a que estavam obrigados. Simultaneamente, travavam-se outras frentes de batalha com os dácios, suevos e sármatas, o que tornava mais difícil a empreitada. A pressão de outros povos' 'bárbaros", desde o norte, punha em sério risco a fronteira do Danúbio e do Reno, o que tendia a aumentar no transcurso do tempo. Além disso, a existência do Império foi sem dúvida uma das causas das migrações "bárbaras", pela atração que exerciam suas terras e riquezas.

Alterações na política romana

A política defensiva do limes começou a mostrar suas falhas com a chegada de outros povos mais belicosos do in­terior da Germânia. Assim, Trajano (98 a 117) iniciou uma ofensiva no Danúbio contra os dácios, que haviam consegui­do, no governo de Domiciano, uma situação vantajosa. O imperador arrematou suas conquistas com uma série de vi­tórias contra os partos, fazendo com que o Império alcan­çasse sua máxima extensão. Porém, seu sucessor, Adriano (117 a 138), devolveu a Mesopotâmia aos partos e adotou co­mo estratégia defensiva do Império a constituição de princi­pados vassalos. A política militar, ficou reduzida ao fortalecimento das fronteiras e ao adestramento do exército. No. governo de Marco Aurélio (161 a 180), renasceram os pro­blemas fronteiriços com os partos, quados e marcomanos. Estes dois últimos haviam aberto uma brecha no limes e pe­netrado até o Danúbio. Conseguiu-se rechaçá-los com muito esforço, o que durou de 169 a 174.

Assim, as campanhas de alguns imperadores do século II não tinham um obietivo estritamente expansionista, más

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de simples consolidação do. limes ou.de redução das linhas defensivas. As operações militares de Trajano na Dácia (101 a ip7) ou a luta de Marco Aurélio na bacia central danubia-na contra os marcomanos e quados respondiam em boa me­dida a essa pauta.

Alterações no mundo germânico

O mundo germânico do final do século II e, princi­palmente, do século III já não eia o descrito por Tácito. Neste período teve lugar o surgimento daqueles grandes agrupa­mentos políticos constituídos por distintos subgrupos, cujo destino determinou a história da época das invasões. Alguns deles apareceram sob um novo nome, sobretudo aqueles que, com novas maneiras de organização, sobreviveram em sua forma étnica através dos tempos. Outros apareceram com nomes antigos de tribos, mas que, apesar de conservarem suas próprias tradições, sofreram grandes transformações no seu aspecto étnico devido às múltiplas uniões ocorridas com as migrações.

A partir de Marco Aurélio, outros povos entraram no cenário e foram se escalonando desde a Dinamarca até o del­ta do Reno: procedentes da península Escandinava, havia os godos, burgundios, lombardos, gépidos, hérulos e lugues, e, a oeste, apoiados sobre o mar do Norte, os saxões, frísios, jutos, francos e alamanos. A calma relativa que reinava até a segunda metade do século II terminou definitivamente. O aumento da densidade da população na Europa central pres­sionou fortemente o limes — sobretudo na parte oriental do mundo germânico —, com a migração dos godos, que acar­retou uma série de reações em cadeia. Um novo quadro de "bárbaros", a partir do século III, vai hostilizar o Império Romano.

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A crise cio século 911 e os "bárbaros"

No decorrer do século III, as guerras civis, que confron­taram as diversas facções do exército romano, converteram o limes desguarnecido em uma linha defensiva facilmente vul­nerável. As tropas das fronteiras foram frequentemente reti­radas, a fim de obter soldados para as campanhas no leste "do Império (partos e sassânidas) e combater os anticésares. Assim, debilitou-se enormemente a capacidade defensiva do império. Em todas as frentes, sentia-se a ameaça ao poderio romano, desde a região da Mesopotâmia — Síria, com os per­sas sassânidas, até o Baixo Danúbio, com os godos, e o Oci­dente, com os franco-alamanos. Este movimento por parte dos germanos explica-se por três séries de acontecimentos.

Política restritiva do império

Mediante uma política de intercâmbios de todo tipo, Ro­ma exercia sua influência nas regiões fronteiriças. Havia um duplo jogo político e económico para incrementar as relações mercantis e militares, como exposto anteriormente, e restri­ções vexatórias impostas às tribos ribeirinhas renanas e danu-bianas, tais como: obrigação de manter inculta uma extensão de terra mais além do limes e proibição de navegar pelos rios ou fazê-lo com graves limitações. Além disso, a arbitrarieda­de romana na fixação do tipo de entrega para o imposto era um outro foco de desordem desde o século I, exemplificado no caso dos frísios (Baixo Reno), que se revoltaram e infligi­ram perdas aos romanos, em 28. Tudo levou a uma insatisfa­ção dos germanos, que se sentiam atraídos pelas terras mais ricas ao sul, tanto a nível de pilhagem como de cultivo.

Reorganização política dos germanos

Outro fator é de ordem interna: a transformação da or­ganização política • das tribos germânicas. Antes, estas

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constituíam-se em unidades muito numerosas que conserva­vam uma forte individualidade. À partir de fins do século"II e começos do seguinte, ocorreu o agrupamento dessas enti-~ dades particularizadas. As confederações, mais culturais que políticas, citadas por Plínio e Tácito se desagregaram e, pos­teriormente, surgiram novas formações, de caráter mais mi­litar. Estas unidades proporcionaram aos germanos nova força para pressionar com mais êxito as fronteiras do Império.

Os ribeirinhos do mar do Norte renunciaram ao nome de chaucos pelo de saxões e descobriram sua vocação maríti­ma, começando suas incursões. Na Alemanha central do sé­culo III, alguns povos agruparam-se sob o nome de alamanos. Logo, as tribos opostas ao limes do curso inferior ao Reno formaram os francos. No século IV, os hermúnduros foram substituídos pelos turíngios. Até o século seguinte nasciam os bávaros. As antigas tribos da Jutlândia (cimbrios, teutões e charudos) desapareceram e os hérulos emigraram, apare­cendo em seu lugar os jutos e daneses. Mas foi entre os go­dos que este processo se destacou. Com a sua chegada à região da desembocadura do Vístula, em princípios do século I e de­pois da queda do reino dos marcomanos, sob Marbodo, do qual faziam parte também os lugues, segundo Estrabão, se desfez a antiga ordem, começando a ser agrupados às distin­tas tribos de forma nova. O resultado somente pôde ser sen­tido no século II, na época das guerras dos marcomanos, quando os vândalos e godos surgiram como dois grandes gru­pos ante o sistema defensivo do Império Romano.

Movimentos migratórios dos germanos

Aliados a esses dois tipos de acontecimentos, ocorriam movimentos confusos na Europa.central, advindos tanto do aumento populacional, em detrirnento das pgssibilidades.de subsistência dos germanos, como das pressões de outros po-

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vos mais longínquos. Desde começos do século II, os germa­nos orientais (godos, vândalos, burgundios, lombardos) aban­donaram seus assentamentos no litoral báltico e orientaram-se para o sul. Sua migração provocou a retração dos povos ins­talados desde algum tempo na Germânia. Gradativamente, a pressão se estendia em diversas direções. Por fim, os povos estabelecidos noJimes se viram obrigados alhãrchar, pondo em xeque a política defensiva do Império.

Confronto "bárbaro"-romano

No Ocidente

No Ocidente, desde 213 tiveram-se notícias sobre os ala-manos, derrotados por Caracala na Récia e Germânia supe­rior. Entre 233 e 260 atacaram o limes e conseguiram um profundo avanço. Porém, foi a partir da anarquia militar (235 a 285), que se seguiu aos Severos, que se aceleraram as inva­sões. Em 243 e, sobretudo, em 254, os francos e alamanos rom­piam o limes da Germânia superior, cruzando a Gália, Espanha e Itália do norte, saqueando e destruindo. As consequências dessas incursões espelharam-se no. grande, número de cidades desaparecidas no Ocidente, enquanto outras adotaram medi­das, como construção de muralhas para se defenderem, que condicionaram sua futura evolução económica e social. Nas províncias da Gália, a invasão de meados do século III signi­ficou uma ruptura mais profunda que a do século V.

A linha defensiva retrocedeu até o Reno, lago de Cons­tança, curso do Iller e Danúbio, sendo consolidada mais tar­de por Probo (276 a 282) e Diocleciano (285 a 305).

Por sua vez, os saxões, junto com os francos sálios, tam­bém faziam incursões na Inglaterra e costa norte da França e da Espanha, em 286. Os vândalos silings, junto com os bor­gonheses, invadiram desde a Silésia o vale do Meno, em 278, por onde penetraram na Récia. Porém, foram derrotados por Probo.

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Tudo isso foi simultâneo ao momento dos godos nas pro­víncias balcânicas. Até 230, eles tinham concluído seu pro­cesso de formação. Pouco depois da metade do século, produziu-se a divisão em dois reinos: visigodos e ostrogodos, sendo que este último gozava de certa primazia.

Um primeiro contato entre os godos e o Império se ve­rificara na Dácia, durante o governo de Gordiano III (238 a 244). Já em 238, tinha-se conhecimento de uma incursão na Trácia. Cedo, os godos descobriram o mar e, igualmente como os hérulos, começaram a saquear as costas do mar Ne­gro e os Bálcãs. Porém, continuaram com as empresas ter­restres.

Até 270, a Dácia havia sido ocupada e colonizada em parte pelos visigodos. Ao lado destes, na Dácia, estavam os vândalos hasdings, que em 171 pediram para ser incluídos no Império. Não sendo aceitos, estabeleceram-se no norte da Hungria, como vizinhos dos quados. Permaneceram ali até que se chocaram com os sármatas e visigodos ao tentarem se expandir para os territórios abandonados pelos romanos, em 275.

Os romanos já não podiam manter-se na província de­pois que os "bárbaros" atravessaram, em rápida sucessão, o Danúbio, saqueando e arrasando as cidades costeiras e as fortalezas fronteiriças, ameaçando Mésia e pondo em perigo a Trácia e Macedónia. A Ásia Menor ficava indefesa e ex­posta ao botim. Em 271, Aureliano cedeu a Dácia. Durante um século, seus domínios confinaram com os de Roma ao largo de todo o Danúbio, sem que houvesse um incidente no­tável. Como todos os vizinhos do Império, os godos forne­ciam soldados e tributos.

Ao mesmo tempo, chegaram novos grupos do norte: os hérulos, que se estabeleceram perto do Don, em 267, e os gé~ pidos, ao norte da Dácia, tornando-se vizinhos dos visigo-

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dos, em 269. Esta avalanche pôde ser contida em parte pelo exército e dinheiro pago aos "bárbaros". Em fins do século III, o Danúbio voltava a ser a fronteira do Império, como na época de Augusto. A colonização e a soberania dos ger­manos haviam alcançado sua maior expansão nessa parte da Europa. Somente com a vitória de Cláudio II em Nisch, em 269, salvou-se o domínio do Império, mas a Dácia, conquis­tada por Trajano devido à sua riqueza aurífera e melhor de­fesa do Danúbio, foi abandonada.

Recuperação romana

Com os imperadores Triboniano Galo (251 a 253), Au-reliano (270 a 275) e Probo (276 a 282), os invasores foram repelidos. O mundo romano sobrevivera; porém, exigia uma i série de reformas que seriam empreendidas por Diocleciano:

(285 a 305) e Constantino (306 a 337). Reorganizou-se então o sistema defensivo em torno das novas capitais (Milão, Tro­ves e Constantinopla), já que as legiões dispostas nas fron­teiras não haviam conseguido frear as invasões. Instalaram-se igualmente soldados-lavradores nos fortes das fronteiras e modificou-se a estrutura das legiões, introduzindo-se a cava­laria "bárbara", bem como dando a chefia militar a oficiais saídos das fileiras do exército e, nas regiões limítrofes, aos duces. "Estas reformas permitiram aos sucessores de Constan­tino obter respeito dos "bárbaros".

Período de trégua

O século IV começava sob bons auspícios para o Impé­rio. Réstabéíecia-se o equilíbrio entregas, forças, romanas e ^b_árbaras". Roma.se abria aos elementos.germânicos e os acolhia, visando melhor se proteger. Essa aproximação pa-

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cífica se dava em quatro níveis: comercial, cultural, religioso e econômico-militar.

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Relações comerciais

As relações comerciais entre germanos e romanos foram comprovadas pelas descobertas arqueológicas nas tumbas dos "bárbaros", onde se encontraram solidi (moedas) imperiais e objetos usuais de origem romana. As vias de troca eram o vale do Reno, Mosela, Ródano e Vístula, e o mar Negro. Comerciavam-se âmbar, peles, gado e escravos por metais preciosos, vinho, tecidos, utensílios domésticos ou de enfei­te fabricados principalmente nas cidades do Império do Oriente.

Relações culturais

Em termos culturais, destacou-se a influência no alfa­beto rúnico e nas artes. Quanto a este último aspecto, Riché posiciona os germanos como intermediários "artísticos" en­tre a arte decorativa sármata, ela própria inspirada na arte persa, e alguns elementos da arte romana do século IV, no domínio da ourivesaria e da esmaltagem.

Política religiosa

Uma outra via de penetração romana em relação aos go­dos foi o arianismo. O Império começou a evangelizar os "bárbaros" mais próximos. Desde o século III, prisioneiros capadocianos, levados ao reino dos godos, transmitiram os primeiros fundamentos. Este trabalho prosseguiu com um dos seus descendentes, Ulfila, consagrado bispo dos godos, em 341. O arianismo nessa região conseguiu notável êxito, gra-

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ças ao trabalho desse bispo, que chegou a criar uma escrita e língua góticas para traduzir o Novo Testamento. Além dis­so, alguns autores, como Mitre, colocam que a maior sim­plicidade do dogma ariano, em contraposição à Trindade do catolicismo, foi um fator favorável para sua aceitação. Por Outro lado, deve-se destacar que o arianismo serviu como ele­mento diferenciador em relação ao catolicismo do Império. Apesar de sofrer inicialmente perseguições, a fé ariana foi mantida pela aristocracia ' 'bárbara'' até a formação dos rei­nos. A partir dos godos, difundiu-se entre os gépidos, talvez vândalos, alamanos e lombardos.

Relações militares

Sob q_p.ont.o_de vis.ta..militar,-houve_.duas atiyidades: a abertura do exército aos "bárbaros" e a instalação de povos g^m^nõsTõbíe seu território. O uso de tropas auxiliares de "bárbaros" e também de elementos na guarda pessoal do im­perador eram práticas advindas desde Augusto. Com a pro­fissionalização do exército, recorreu-se cada vez mais aos mercenários, agrupados inicialmente em corpos complemen­tares {nationes). Após o decreto de Caracala, que amiplia ó direito de cidadania a todos os habitantes do Império, em 212, ocorreu uma reforma militar. O número de oficiais de ori­gem "bárbara" tendia a aumentar. A palavra barbarus tornou-se sinónimo de miles (soldados). No governo de Cons­tantino (306 a 337), os germanos, em especial os francos, do­minavam a hierarquia militar; sob Teodósio (379 a 395), eram os godos que exerciam tal domínio. Alguns "bárbaros" che­garam até o consulado e entraram na família imperial, como Estilicão. O Império confiava, assim, sua proteção aos "bárbaros".

Uma outra política mostrou-se mais perigosa para a in­tegridade do Império': a instalação de povos inteiros, organi-

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• i • > ii.iD assimilados cm território romano; era o chama-tUi /.«'(//«. Através de um contrato com Roma,.os povos "luiibnros" ocupavam as terras romanas e, em troca, forne­ciam ao governo imperial um certo número de soldados. Po­rém, esses povos mantinham seus costumes, organização social c política, o que no futuro trouxe consequências~de=-sastrosas para o Império. Inicialmente, era tripíamente van­tajosa lai prática: cultivavam-se as terras, criava-se um listudo-tampão entre as nações germânicas e a România e dispunha-se de uma reserva de soldados nos momentos de crise política. Nesse status, encontravam-se os godos, que ;ipós uma derrota, em 332, pelo imperador Constantino tornnram-se auxiliares na defesa da fronteira oriental. Ante­riormente, o mesmo fora feito com os francos de Gennoband, fiu 110, sobre o Reno. No decurso do século IV e, depois, do V, os imperadores multiplicaram os acordos com os "bar­bai os federados", objetivando assim resolver a questão "bar­ba i a ". I ira uma solução vantajosa para todos, imprescindível, seus dúvida; a melhor que os responsáveis pelo Império po­diam desejar naquela época: de inimigos, os "bárbaros" lornaram-se aliados, mas esta situação sofreria radical trans­formação no século V.

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As grandes invasões ;ermânieas do século V

A pressão dos hunos

Em meados do século IV, os godos ocupavam o espaço compreendido entre o curso do Danúbio e a bacia do Don. O aparecimento, nesses anos, dos hunos na planície russa pro­vocou fortes pressões sobre os povos germânicos.

Mas quem eram os hunos? Pertencentes à raça mongó-. liça, formavam tribos nómades, cujas atividades principais -eram ã caça, o pastoreio e a rapinagem. Era um povo guer­reiro por excelência e sua força estava na cavalaria. As des­crições dos hunos, sobretudo a do contemporâneo Amiano Marcelino, não lhes eram favoráveis. Sua maneira de viver, diametralmente oposta à dos romanos, chocou o Império. Eis o retrato realizado por Amiano Marcelino:

Os hunos excedem em ferocidade e barbárie tudo quanto é pos­sível imaginar de bárbaro e feroz. Sob uma forma humana, vi­vem em estado de animais. Aiimentam-se de raízes de plantas silvestres e de carne meio crua, macerada entre suas coxas e o lombo de suas cavalgaduras. Suas vestimentas consistem em uma túnica de linho e Jaqueta de peles de ratazana selva­gem. A túnica é de cor escura e apodrece no corpo. Cobrern--se com um gorro e envolvem as pernas com peles de bode.

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Quando cavalgam, acredita-se estarem pregados em suas mon­tarias, pequenas e feias, mas infatigáveis e rápidas como re­lâmpagos. Passam sua vida a cavalo; a cavalo se reúnem em assembleias, compram, vendem, bebem, comem e até dormem às vezes. Nada se iguala à destreza com que lançam, a dis­tância prodigiosa, suas flechas armadas de ossos afiados, tão duros e mortíferos como o ferro.

{Res gestae, XXXI, 2.)

Ostrogodos e wisigoctes

O irresistível avanço dos hunos teve como primeira con­sequência o fim do reino dos ostrogodos, em 375. Sobre este episódio há a lenda de Ermanarico, que se suicidou após a derrota infligida pelos hunos. Uma mmoria dos ostrogodos se refugiou com os visigodos, enquanto os outros se subme-liaru aos hunos, como os sármatas e alanos, e poucos ruma­ram para o oeste, além do Dnieper.

'A seguir foi a vez dos visigodos, que, no outono de 376, pediram asilo ao imperador do Oriente, Valente. Riché res­salta a diferença de raça, língua e, principalmente, género de vida que existia entre godos e hunos. Os primeiros eram cam­poneses, sedentários vivendo dos produtos da terra e do co­mercio. Em oposição, os hunos eram cavaleiros nómades, guiados pelas exigências da tropa e pela paixão da aventura. Daí o pedido de asilo, que foi aceito pelo imperador. Este os recebeu como soldados-lavradores, ou seja, como tropas acantonadas.

A penetração foi pacífica, caracterizando-se mais como uma migração do que como uma invasão. Foram instalados na Trácia, onde os romanos exploraram sua miséria. Era di­fícil alimentar toda aquela massa. Os funcionários imperiais exigiam, em troca de víveres, elevadas quantidades de ouro c, inclusive, a deposição das armas. Os visigodos se rebela­ram em 377 contra as condições impostas na Trácia, atacan­do as províncias orientais.

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O perigo cresceu de tal forma que o próprio imperador Valente comandou as legiões contra os visigodos. Na bata­lha de Adrianópolis (agosto de 378), o exército imperial amar­gou uma séria derrota, na qual faleceu o seu chefe. Não era a primeira vez que um imperador morria nas mãos dos "bár­baros" e nem o primeiro triunfo da cavalaria germânica so­bre as legiões romanas. A vitória permitiu aos visigodos expandirem-se pelos Bálcãs, além de sitiarem Constantino­pla. Não havia um interesse dos godos em empreender uma campanha sistemática para o aniquilamento do Império. Atehdià-se à uma necessidade mais elementar: sobreviver.

Teodósio e o pacto de federação

Teodósio, general espanhol, foi associado ao poder pe­lo imperador do Ocidente, Graciano. Logo, começou a com­bater os visigodos e fortificou o Danúbio. Concebeu a ideia de dar nova vida ao Império através da aceitação pacífica des­se povo, com ofoedus, em 382, concedendo-lhe terras ha Mé-sia, província arruinada pelas invasões. Legalizava-se pois a penetração,. Assim, os visigodos foram admitidos em massa no Império como povo, mantendo todas as suas instituições. Teodósio procurava revitalizar as debilitadas forças romanas. Porém, havia o perigo de se formar um corpo obediente so­mente aos chefes de sua raça, aos seus costumes e direitos. Criava-se um Estado dentro do Estado,. romano^Pjfjrente^ mente dós "bárbaros" submissos assentados pacificamente em certas zonas da Gália, os visigodos estavam cientes de sua força militar, principalmente após Adrianópolis. Seria mais prudente admitir somente pequenas unidades e colocá-las mi­litarmente sob o mando de prefeitos romanos.

Temporariamente, a política de amizade de Teodósio com os godos deu bons resultados. O filogoticismo do impe­rador manifestou-se na abertura dos quadros do exército e

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dos altos postos da administração aos "bárbaros", o que ge­rou um ambiente hostil em Constantinopla. Através do apoio dos visigodos, Teodósio conseguira dominar "séús competi­dores do Ocidente (Eugênio) e unificar, pela última vez, o Império. Porém, esta aliança tinha um caráter personalista. A fidelidade dos godos ficava vinculada não ao Império co­mo instituição, mas à pessoa de Teodósio, o que era uma ca­racterística tipicamente germânica. Assim, quando faleceu o imperador, a situação tornou a se agravar.

Generais "bárbaros" no governo do Império

Tanto no Oriente como no Ocidente, durante o século V, foi prática comum existirem generais "bárbaros" que cons­tituíam os homens fortes do governo. Pode-se citar: Estili-cão, com Honório (395 a 423), Ricimer, com os últimos imperadores do Ocidente (455 a 472) e Odoacro, com Rómulo Augusto (475 a 476). Este estado de coisas fez nascer um sen­timento crescente de antigermanismo nos círculos romanos do governo imperial.

Periodicamente, ocorriam reações antigermânicas, so­bretudo na parte oriental do Império. Um primeiro exemplo foi no reinado de Arcádio, em Constantinopla, em 400, quan­do foram assassinados vários auxiliares godos. Assim, rompeu-se o tratado entre visigodos e o Império do Oriente. Os visigodos iniciam suas incursões, chefiados por Alarico. O governo pagou uma elevada quantia para afastá-los de Constantinopla, substituindo-os no exército pelos isaurianos da Ásia Menor. Os visigodos rumaram então para a Ilíria, não antes de assolar a Grécia no transcurso.

Os visigodos na Itália

Estilic.ão, general "bárbaro" do imperador ocidental Honório, queria anexar a Ilíria kpars occidentalis. Vândalo

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de origem e amigo pessoal de Teodósio, considerava os visi­godos como colaboradores militares do Império, o que lhe angariou desconfiança de certos setores romanos. De qual­quer forma, Alarico soube se aproveitar da rivalidade entre Ocidente e Oriente. Estilicão, por sua vez, tentava manter um sentimento de lealdade pessoal para com o chefe dos visigo­dos e instalá-lo na Ilíria, para assim subtraí-la da influência do Império do Oriente. Como primeira medida, nomeou-o magister militum (chefe do exército). Contudo, estes planos sofriam sérios obstáculos: hostilidade entre romanos e ger­manos e indisposição dos "bárbaros" permanecerem fiéis a Roma.

Alarico começou a dirigir-se à Itália em 401. Quase sem combates, instalou-se na região de Veneza (inverno de 401-402), marchando depois para Milão, onde residia Honó­rio, que se refugia em Ravena. Esse avanço foi contido por Estilicão, que chamou as legiões que combatiam em outras regiões do Império do Ocidente. Com isso, facilitou a con­quista dessas regiões (por exemplo, Inglaterra e Gália) por outros "bárbaros", além de permitir a penetração de vânda­los e alanos na Récia e Nórica através do Alto Danúbio, em 402. Esse esforço valeu a vitória de Pollentia, em 402. Po­rém, apesar de poder aniquilar os visigodos, Estilicão prefe­riu voltar a instalá-los na sua antiga região (Ilíria), demonstrando que pretendia prosseguir na sua política de aproximação visando usar os visigodos na destruição de ou­tros povos "bárbaros". A benevolência do general vândalo veio fortalecer os sentimentos antigermânicos.

No¥as inwestieias "bárbaras" no Ocidente

Se, por um lado, temporariamente o perigo visigodo es­tava afastado do Ocidente, logo se manifestou uma ameaça maior com Radagaiso, em 406. Este comandava uma massa

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heterogénea de suevos, vândalos e burgundios que, partindo das margens do Vístula e Danúbio pela pressão dos hunos, avançava para a Itália. Atravessou os Alpes e devastou a Al­ta Itália. Novamente, Honório refugiou-se em Ravena, en­quanto Estilicão enfrentava vitoriosamente Radagaiso perto de Florença.

Este acontecimento foi apenas um pequeno entreato. A retirada de tropas na defesa da fronteira renana para defen­der a Itália e a substituição da sede da prefeitura das Gálias de Trèves para Aries constituíram-se em fatores negativos pa­ra a manutenção da região. Confiava-se na fidelidade dos fe­derados francos e alamanos instalados na margem direita do Reno. Porém, em 406, suevos, vândalos silings e hasdings (po­vos germânicos), bem como os alanos (povo de origem ira­niana), empurrados pelos hunos, penetraram, na altura de Mayence, pelo Reno, chegando à Gália. Anteriormente, eles haviam tentado cruzar o Danúbio, sendo rechaçados por Es­tilicão. Visando às fronteiras desguarnecidas do Reno, subi­ram o Danúbio e depois desceram o Main. Em vão os francos esforçaram-se em pará-los. Devastaram Mayence, Trèves, Reims, Tournai, Amiens e Arras.

Depois de semearem destruição na Gália, cruzaram os Pirinéus em 409. Durante dois anos, repetiu-se o mesmo es-petáculo nas terras a oeste e ao sul da Espanha. O terror sen­tido por essas incursões foi expresso por Hidácio. Poste­riormente, conseguiu-se um acordo precário com as autori­dades romanas, que permitiram repartir o território hispâni­co entre os invasores, com. exceção da rica região de Tarraconense. Esta, porém, sofria com a bagauda dos bas­cos que desceram pelo vale do Ebro. Mesmo apesar do pac­to, alanos, vândalos e suevos depredaram a região. Isto demonstrava a debilidade do Império, que dependia cada vez mais da diplomacia, em detrimento da "força militar.

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O saque de Roma de 410

Em 408 reapareceu o problema visigodo. Aproveitando--se de uma série de fatores, Alarico foi mais feliz no seu in­tento. A penetração de outros "bárbaros" na Gália preocu­pava as autoridades. Estilicão somente tinha forças para defender a Itália. Inicialmente vacilou, projetando contratar Alarico para combater na Gália, o que reavivou o antiger-manismo na corte, já descontente com os últimos reveses. A isto somou-se outra intriga palaciana, que levou ao fim de Estilicão: sua oposição a que Honório mandasse, em pessoa, as forças de apoio ao sucessor de Arcádio no Oriente (Teo­dósio II). Suajnaior preocupação com a sucessão oriental o fazia descuidar dos visigodos, o que acabou revoltando as tropas romanas acantonadas em Pavia. O general foi assas­sinado pelo imperador Honório ern Ravena, assim como vá­rios auxiliares "bárbaros". Desta forma, ficava eliminado um sério obstáculo para Alarico conquistar a Itália.

Chegando à Itália, Alarico exigiu a enorme soma de qua­tro mil libras de ouro. Sitiando Roma, conseguiu parte de seu pagamento em estátuas de ouro e prata dos templos pa­gãos. Retirou-se então para Toscana, onde prosseguiu as ne­gociações. Desgostoso com a atitude do imperador, assediou novamente Roma e forçou o Senado a eleger um novo impe­rador, Atalo. Este foi mantido durante pouco tempo no po­der devido à sua tentativa de independência para com Alarico. Roma estava em péssimas condições para resistir, principal­mente com o corte do fornecimento africano de trigo e azei­te, devido à sublevação do conde da África, Heracliano.

Alarico impôs novo resgate a uma lista de reivindica­ções: armas para seu exército, sua nomeação como magister militum e estabelecimento na Nórica (nordeste italiano). A recusa de Honório levou ao conhecido saque de Roma, de 24 de agosto de 410. A Cidade Eterna caíra, sofrendo pilha­gem dos "bárbaros" durante três dias. Livraram-se apenas

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as basílicas de São Pedro e São Paulo, declaradas como asi­lo pelo ariano Alarico.

Este trágico acontecimento teve repercussões em todo o mundo romano. São Jerónimo, em Belém, expressou a in­credulidade e estarrecimento perante o fato. Procuravam-se as causas que levaram a tamanho desastre, só comparável à invasão gálica no século IV a.C. Os pagãos acusavam o cris­tianismo, pois enquanto Roma fora pagã, ela não havia sido conquistada. O triunfalismo cristão, advindo desde Constan­tino, estava seriamente ameaçado pelo revigoraménto do pa­ganismo. O choque moral foi pior que os danos materiais é perdas humanas, apesar de estas serem consideráveis. Levantando-se em defesa do cristianismo, destacou-se Santo Agostinho de Hipona com sua obra A cidade de Deus, na qual procurou amenizar esse acontecimento, introduzindo-o no providencialismo divino.

A 27 de agosto, os visigodos partiram para o sul da Itá­lia, levando o botim e reféns, dentre eles a irmã do impera­dor,! Gala Placídia. Alguns historiadores, como Mitre, defendem que o desejo inicial de Alarico sempre fora atra­vessar o Mediterrâneo e instalar-se no norte da África, onde disporia de ricas terras cerealíferas. Empreendeu uma cami­nhada até o estreito de Messina, na Sicília, destruindo Cá-pua e Nola, esta última defendida por seu bispo, Paulino. Porém, uma tempestade, que dispersou a frota, e a morte im­prevista de Alarico selaram esse projeto, em 410.

¥Ssigodos entre as GáSias e a Hispânia

Assumiu a chefia dos visigodos o cunhado de Alarico, Ataulfo. Este decidiu, no inverno de 411-412, penetrar na Gá­lia, onde acreditava conseguir maior riqueza. Mais político que conquistador, entrou em acordo com Honório, tornando--se federado. Sua primeira tarefa foi combater o novo usur-

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pador Jovino, em 413, que se proclamou imperador com o apoio dos "bárbaros", em Mayence. Como recompensa por seu serviço, Roma permitiu a instalação dos visigodos na an­tiga província Narbonnaise, em 413: planície de Aquitânia e o Languedoc. No ano seguinte, Ataulfo contraiu casamen­to com Gala Placídia, respeitando o cerimonial da Corte Im­perial.

Para Roma, a aliança com os germanos tornara-se im­prescindível à sua sobrevivência. O Império era incapaz de expulsar de seu território os povos "bárbaros" que haviam se instalado como "hóspedes". Concomitantemente, encon­trava dificuldade em assegurar-lhes regularmente sua subsis­tência, como o estabelecido no acordo com os federados. Houve uma mudança radical na maneira como os "bárba­ros" foram estabelecidos no Império. Antes, eles deviam pa­gai" umlngrèsso é um vale em víveres.para^obter o direito a uma vivenda e à retirada de sua alimentação nos armazéns do exército. Com os novos federados, dividiam-se a terra e seus meios de exploração. Desconhecem-se as bases jurídi­cas da repartição e o grau em que se aplicou. Porém, estima--se que um ou dois terços das terras, incluindo gado, escra­vos e colonos, era cedido em regime de hospitalidade aos "bárbaros". Bosques e prados seriam desfrutados igualmen­te, sem que houvesse necessidade de divisão. Com isso, o do­mínio romano sobre seu território tendia cada vez mais a se tornar uma mera ficção.

Era ainda cedo para que ocorresse a fusão entre a civili­zação romana e a força "bárbara", situação esta que se cris­talizará nos reinos "bárbaros" do século VI. Por enquanto, Roma ainda se recusava a aceitar a dura realidade. A tenta­tiva do visigodo Ataulfo esbarrou na oposição do imperador Honório e na reação germanista frente ao espírito romani-zante de seu chefe. Com o assassinato de Ataulfo, em 415, os planos de uma aliança mais duradoura e completa entre visigodos e romanos se desfizeram, juntamente com seu idea-

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lizador. Este pelo menos conseguira estender o domínio go­do até a Espanha, talvez não pela pressão militar do general romano Constâncio, mas pela precariedade dos víveres e na esperança de alcançar o norte da África, celeiro do Mediter­râneo ocidental, juntamente com a Sicília.

Algumas autoridades imperiais esperavam ainda recons­truir seu domínio de fato, aproveitando-se das rivalidades en­tre os "bárbaros", que ocupavam em quase sua totalidade o território romano. Um desses homens era o general Cons­tâncio, casado já com Gala Placídia, devolvida aos romanos pelo novo rei visigodo, Walia.

Inicialmente, Walia pretendia chegar à África; porém, fracassou.no seu intento devido a uma tempestade. Em con­sequência disso, assinou um acordo em 418, comprometendo--se como federado a serviço do Império. Era a última e efé­mera tentativa de ressuscitar a política de concórdia preten­dida por Ataulfo. Em troca de provisões dadas pelo imperador ao povo visigodo, estes deviam limpar a penínsu­la Ibérica dos povos "bárbaros", presentes na região desde 409, e que romperam o acordo com Roma. Havia os vânda­los hasdings e suevos no norte do Douro, vândalos silings na região de Sevilha, mais tarde chamada de Andaluzia (advém de Vandaluzia), e, por fim, os alanos, espalhados no planal­to central. Em dois anos de campanha, os alanos quase de­sapareceram como povo; os vândalos silings da Bética foram aniquilados; os vândalos hasdings e suevos, confinados na Galícia. Somente no reinado de Leovigildo, na segunda me­tade do século VI, é que os visigodos controlarão completa­mente a península Ibérica.

A eficiência de Walia assustou o imperador Honório, que temeroso mandou chamar os visigodos à Gália. Instalou--se a sudoeste (entre Toulouse e o oceano), visando afastá-los do Mediterrâneo e colocá-los como uma defesa contra a pira­taria saxónica nas costas. Nesta época, não havia mais condi­ções de instalar os visigodos na fronteira para defendê-làT

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Eles eram necessários nas, províncias do interior. .Os.romarios esforçavam-se apenas em mantê-losr.à distância do Mediterrâ­neo"," ò Maré Nostrum da antiga Roma.

Assim, o Império conseguiu, aparentemente, recuperar a Gália e a Hispânia. Os "bárbaros", considerados..cqmojrp-pas regulares, ocupavam o território romanp.,^requisitavam le­galmente parte, das moradias e recebiam víveres, além de terras e escravos. Roma pretendia evitar as incursões e conservar sua administração e sistema fiscal. O usurpador Honório conse­guira, portanto, legar ao seu sucessor o estabelecimento lega­lizado dos "bárbaros", além de acabar com os usurpadores e reerguer a Itália. O Império estava enfraquecido, mas não dividido.

Desmembramento do Ocidente

A guerra civil que se seguiu à sucessão de Honório colo­cou em oposição o menor Valentiniano III, filho de Constân­cio e Gala Placídia, e João, apoiado por Bizâncio. Este último perdeu a disputa, assumindo Valentiniano III (424 a 455).

No governo de Valentiniano III, a figura-chave foi o pa­trício Aécio. Personagem suigeneris, pois, diferentemente de Estilicão, Ricimer ou Odoacro, que eram "bárbaros roma­nizados", ele era um romano com uma educação "bárbara". Cedo foi dado como refém a Alarico, que o formou militar­mente. Posteriormente, passou um tempo na corte do Khan dos hunos, onde travou amizade com o jovem Átila, seu fu­turo adversário. Esta vivência lhe forneceu conhecimentos so­bre os povos "bárbaros", sua força e rivalidades internas, que foram utilizados na sua atuação como autoridade romana.

Apesar do esforço de Aécio e de algumas vitórias, o des­membramento do Ocidente era um processo irreversível. O Império sofria reveses em várias frentes: Gália (visigodos,

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burgundios, francos, alamanos e hunos), África (vândalos), Inglaterra (saxões, jutos, frísios, anglos) e Armórica (bretões). A isto tudo se somava a relação problemática com Bizâncio.

Perda da Gália

Visigodos

Walia foi um dos últimos reis visigodos que se compor­tou como um federado de Roma. Seus sucessores empreen­deram uma política independente e, algumas vezes, tencionaram substituir o Império Romano. Como federados, ocupavam de fato o território, apesar de. continuar, subsis­tindo teoricamente a máquina administrativa romana, seus. juizes e funcionários fiscais.

Em 418, Teodorico sucedeu Walia no comando do-rei­no visigótico de Toulouse, na Gália. Descendente de Alari-co, sua política oscilou entre a amizade e o afastamento de Roma. Rompeu o foedus com o Império e,. em 425, sitiou Aries; Aécio, à frente de seus mercenários asiáticos, impediu que os visigodos chegassem ao litoral mediterrâneo, repelindo--os de Aries e Narbonna em 436. O rei de Toulouse foi obri­gado a renovar o tratado de foedus e o respeitou, ajudando várias vezes os romanos, principalmente na luta contra Áti­la, onde morreu.

Com seu filho Teodorico II (453 a 466), educado na cul­tura clássica, o regime de governo foi conciliador. Renovou o foedus e pôs-se a serviço do Império para combater as ba-gaudas hispânicas e eliminar o perigo suevo. Tentou, de 455 "a 456, colocar no trono imperial seu protegido, Avito, sogro de Sidónio Apolinário. O fracasso de seu intento custou-lhe a devolução de todos os benefícios obtidos na Espanha ao imperador Mayoriano (457 a 461). Com a morte deste impe­rador, recuperou-se, ocupando a Novempopulânia e Septi-mânia, em 462. Teodorico II foi assassinado em 466, e seu

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irmão Eurico (466 a 484) conduziu o reino de Toulouse ao seu apogeu.

Burgundios

Desde meados do século III, juntamente com os alama-nos, os burgundios tentaram sem êxito penetrar no limes dos Campos Decumates. Seu território estendia-se do Rhõn à Suá-bia central, onde se estabilizou, sendo reconhecido pelos ro­manos. Esse contato levou ao desenvolvimento de certa atividade económica. Porém, quando das invasões de 406, os burgundios encontravam-se entre os povos "bárbaros" que penetraram no Império. Seguiram pelo oeste do Reno.

Diferentemente dos suevos, vândalos e alanos, os bur­gundios preferem uma instalação legal, de caráter pacífico, "no território imperial. Em 413, o imperador Honório cedeu--Ihes a parte da Gália mais próxima do Reno, em regime de federados. Formou-se então um reino burgundio na margem esquerda do Reno e com capital em Worms. Um exemplo de sua romanização foi a aceitação do cristianismo. É"motivo dFcontrovérsia a sua conversão do arianismo ao catolicismo em 415, pois, mesmo após esta data, os reis burgundios con­tinuaram arianos. Provavelmente, tratava-se de um proces­so superficial, flutuando entre a ortodoxia e a heresia.

Na tentativa de expansão para a Bélgica, em 435, cho-caram-se com os romanos em 436. Talvez este movimento fosse resultante de uma pressão demográfica. Aécio, com seu exército de mercenários hunos, logo deslocou-se para a Gá­lia e infligiu uma séria derrota ao rei Gunther, extinguindo esta casa real e obrigando os burgundios a se transladarem para o sul. A epopeia germânica dos nibelungos, escrita pos­teriormente ao fato e com algumas alterações, retratou a der­rota do rei Gunther, que no poema foi chamado de Gun-dahar.

Os burgundios foram reduzidos a um pequeno número. Aécio, qúéhãodesejáva seu aniquilamento, ássehtou-os na

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Sapaudia, atual Suíça. Era do interesse do general romano mantê-los como reserva militar, como aconteceu no enfren-tamento com Átila. Por isso, instalou-os como federados ém 443. A lei dos burgundios refletia este status. Com os bur-gundios, a separação legal entre as duas populações..não_s.ig;. nificõu-ã'èxclúsão da influência romana, pois estavam abertos à romanização. Esta situação facilitou a relação entre a po­pulação galo-romana e os burgundios. Em muitas regiões, a boa aceitação dos "invasores" foi decorrente da insatisfa­ção com a pesada carga fiscal, exigida pelo Império, e da coe­xistência do arianismo com o catolicismo.

A existência dos burgundios serviu como retaguarda da população galo-romana frente a outros povos "bárbaros" não tão assimilados pela romanidade como os burgundios: godos ao sul e alamanos a leste. Contudo, a considerável im­portância estratégica e económica da região, bem como sua base étnica estreita para rechaçar seus competidores (fran­cos, alamanos e godos), eram fatores desfavoráveis à sobre­vivência do reino burgundio. Com a divisão da família real, por motivos religiosos, a situação tornou-se insustentável (iní­cio do século VI) e o reino foi ocupado pelos francos, que respeitaram as instituições e a nacionalidade burgundias.

Francos

O surgimento dos francos no cenário romano foi tardio em relação aos outros povos "bárbaros". Têm-se notícias de seus movimentos a partir de meados do século III, com a gran­de invasão da Gália. Chegaram inclusive à Espanha. Em 286, Caráusio foi encarregado de defender Calais dos piratas sa­xões e francos. As incursões terrestres e marítimas partiam de algum ponto do curso inferior do Reno.

O avanço franco pelo Império se deu por dois proces­sos: integração ao exército desde final do século III (inclusi­ve com chefes francos chegando a postos de mando) e lenta

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colonização nas fronteiras quase abandonadas do Império. O primeiro modo se acentuou na tetrarquiá, com á forrna-ção de numerosas tropas auxiliares francas, e, no período "en­tre 370 e 390, evidenciou-se o domínio de oficiais francos'. O segundo processo iniciou-se com a introdução de prisio­neiros francos (laetí) para repovoar os campos. Esta política foi consequência dos desastres do século III, que ocasiona­ram o abandono da margem do Reno e a construção de for­tes dispersos perto do rio, protegendo a rota comercial que partia de Colónia. No século IV, não se encontravam vestí­gios romanos na região, o que levou a uma expansão inde­pendente dos francos. Isto pode ser comprovado pela expedição de castigo dirigida por Juliano, em 358, contra o estabelecimento dos sálios em território dito romano (Bra-bante holandês). No final, acabou-se por assinar a paz, concedendo-se aterra aos sálios, como federados. Os ripuá-rios continuavam hostis e refratários aos romanos. Até prin­cípios do século V, parecia que a pressão dos francos havia relaxado, desde a ocupação de territórios considerados de pouco interesse para Roma.

Após o assalto de 406, alguns grupos de francos segui­ram o exemplo de outros "bárbaros" que atravessaram o Re­no. Até 411, Trèves sofreu dois ataques. Os ripuários tomaram novamente esta cidade, juntamente com Colónia; porém, foram rechaçados por Aécio para o sul da margem direita do Reno. Por sua vez, os sálios expandiram-se para o sul e chegaram a Cambrai em 425. Aécio, outra vez, con­seguiu derrotá-los em Bouchain, fazendo-os aliados.

Alamanos

Já em meados do século III, os alamanos foram consi­derados como ameaça ao limes. Em 260, atravessaram os Al­pes, chegando a Milão. A derrota infligida por Probo, em 277, diminuiu-lhes o ritmo, mas não os impediu. Domina-

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ram a região de Neckar e direcionaram-se até o Reno alsa-ciano, lago de Constança e rio Iller. No século IV, multipli­caram suas tentativas de se estabelecerem na margem esquerda do Reno, mas foram repelidos por Constâncio em 350, Ju­liano em 357 e Graciano em 378.

O constante conflito com Roma favoreceu o surgimen­to de uma unidade política forte nos séculos IV e V. Sua for­ça militar baseava-se na cavalaria armada, utilizada para conseguir homens e terras nas suas incursões. A principal de­las foi a de 406, quando então se estabeleceram na Alsácia e Palatinado. Porém, somente se consolidaram depois da ofensiva de Aécio, ou seja, por volta de 455. A partir desta base, começaram a se expandir para o norte e noroeste, des­cendo o Reno. Neste movimento, se chocaram com os fran­cos, seus inimigos figadais, que impediram a continuação por essa direção. O noroeste do domínio alamano foi assimilado rapidamente pelos francos. Os alamanos iniciaram então um avanço para o sul que, no início, era apenas visando ao sa­que. Em 457, penetraram outra vez na Itália. No período de 470 a 480, empreenderam uma série de incursões em várias direções. Com a queda do reino burgundio, os alamanos pu­deram prosseguir no seu movimento para a Suíça.

Hunos

• No Oriente Os hunos que invadiram a Europa em meados do sécu­

lo V distinguiam-se dos descritos por Amiano Marcelino. O cronista e embaixador grego Priscos forneceu-nos uma ima­gem da requintada corte de Átila através de um banquete ofe­recido pelo Khan, comparando-o ao luxo e arranjo das refeições de Constantinopla. Somente o chefe dos hunos res­peitava a simplicidade de seus ancestrais e a gravidade que convinha a um guerreiro. As relações comerciais e contatos com outros povos mais romanizados "suavizaram a barba-

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rie dos hunos". Na corte de Átila havia godos, gépidos e até romanos e gregos. Os hunos eram minoria frente aos germa­nos, que eram integrados ao império huno na medida em que aceitavam as premissas que isto acarretava: fidelidade abso­luta ao chefe, vida pastoril e guerreira.

Após terem destruído o reino ostrogodo, em 375, e em­purrado os visigodos contra o Império, em 376, os hunos se dirigiram para o oeste e, aproximadamente em 405, fixaram-se na bacia danubiana, a Panônia (atual Hungria). Este estabe­lecimento provocou a grande invasão de 406 e, internamen­te, favoreceu a unidade da nação húnica com o Khan Rua. Em 435 morria Rua, deixando dois sobrinhos como sucesso­res: Átila e Beda. O primeiro se impõe como chefe em 439. Sob Átila, a dominação dos hunos chegou a alcançar um vasto espaço: do Volga ao Reno. A extensão de seu império, for­mado por uma composição de povos heterogéneos, permitiu que entrasse em contato com as duas partes do Império Ro­mano. Inicialmente, voltou-se para o Oriente, Bizâncio.

As relações com Bizâncio, em um primeiro momento, foram conciliadoras. Já havia um intercâmbio comercial e cultural, como evidenciado na visita do embaixador Priscos. No campo da diplomacia, Teodósio II, imperador do Orien­te (408 a 450), esforçava-se em manter com os hunos um mo-dus vivendi que assegurasse a integridade do Império. Assim sendo, se comprometeu a pagar um tributo anual e reconhe­ceu Átila como magister militum. Durante algum tempo, es­ta situação se manteve.

Em 441, as tropas hunas alcançaram Nísia e obrigaram Teodósio II a aceitar um pacto, no qual se estabelecia, a tí­tulo de subvenção, um tributo de 350 libras de ouro anual. Átila, ciente da rivalidade entre as duas partes do Império, procurava tirar vantagem. É provável que o Ocidente esti­mulasse o enfraquecimento do Oriente desta forma. Para is­to, Aécio desenvolveu uma política hunófila, possivelmente

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devidoA_s.ua-estadia .entr.e..QsJju_n_os e: comprovada em várias ocasiões pela utilização de^tropas mercenárias de hunos para resolver problemas no Ocidente. Outros acontecimentos con­firmaram essa boa relação entre Aécio e os hunos: quando Aécio foi derrotado inicialmente por Bonifácio, procurou re­fúgio entre os hunos; entrega da Panônia ocidental, em 439, aos hunos. Havia interesse por parte, destes em assegurar a benevolência ocidental, enquanto se formavam o império das estepes na região danubiana e territórios germânicos recém--conquistados.

Nos anos seguintes, o tributo exigido de Constantino­pla foi aumentando desmesuradamente, pois gradativamen­te os hunos penetravam nos Bálcãs. A corte bizantina, incapaz de lutar militarmente contra Átila, apelou para outros meios. Em 448, subornou alguns dos auxiliares do chefe huno para que o assassinassem. O fracasso da tentativa agravou as im­posições hunas, pois, além de aumentar o tributo, exigiu a concessão de uma zona desértica ao sul do Danúbio e de uma região, rica em pastagens, entre os Cárpatos e o Danúbio. A negociação destes termos foi efetuada na embaixada de Priscos, em 449. Era o auge do poder de Átila no Império do Oriente.

No ano seguinte, Átila mudou bruscamente de política, voltando-se para o Ocidente. Havia vários fatorésqúè influen­ciaram nesta decisão. O império huno estava cristalizado com Átila e podia fazer frente ao enfraquecido Império dó Oci­dente. A necessidade de "espaço vital" o fez redireciótíar seu interesse para as terras europeias, cuja penetração pelas fron-t ;iras desguarnecidas mostrava-se mais fácil do que em rela-c ão aos territórios orientais. Em 449, Átila acolheu Eudóxio, chefe dos bagaudos galos, que o informou das debilidades do regime romano.

Por outro lado, de Bizâncio nada mais podia-se espe­rar. A crescente pressão económica, que se tornou insusten­tável, conjugou-se com a ascensão de Marciano (450 a 457),

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que se posicionou energicamente frente aos hunos. Assim, o Oriente perdia sua atração para Átila. De tudo isso, conclui--se que a invasão dos hunos foi resultado de uma preparação planejada e notavelmente informada, apesar de manter o ca-ráter das_expe.dições orientais, ou seja, recolher o máximo de botim possível, com menos riscos. ""'

O pretexto alegado foi o pedido de auxilio de Honória em 449, que foi interpretado por Átila como compromisso matrimonial. A recusa de Valentiniano III a tal pretensão, que era acompanhada da exigência de um dote equivalente à metade do Império, serviu para finalizar as boas relações entre Roma e Átila, bem como iniciar uma nova guerra de consequências terríveis para o Império.

• No Ocidente Átila seguiu para o oeste, subindo o Danúbio pela mar­

gem esquerda, e cruzou o Reno perto de Magúncia em 451. A rota empreendida assemelhava-se à dos vândalos em 406. A sua marcha foi pontuada pela destruição de várias cidades (Metz, Reims e Troyes). Reafirmava-se cada vez mais a im­piedade de Átila, que passou a ser conhecido como o Flagelo de Deus. Sobre sua pessoa, construiu-se uma lenda de selva-geria e violência, exemplificada na expressão: "por onde seu cavalo passava, não voltava a crescer grama".

A cavalaria huna assolou a Gália setentrional (atual Bél­gica). Direcionou-se para Orleans, defendida por seu bispo, Amiano. A resistência desta cidade deu tempo a Aécio para reunir um exército. O término da pacificação da Gália favo­receu a formação de uma confederação de reinos germâni­cos romanizados (alanos, francos, burgundios, saxões, e, principalmente, visigodos) para se opor à grande invasão, hu­na. O perigo huno representava muito mais uma ameaça, não para o Império Romano, que era apenas uma ficção, mas para uma série de povos "bárbaros" mais ou menos romaniza­dos, que eram a realidade do ocidente europeu.

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Orleans conseguiu ser salva e o exército de Átila teve que retroceder até as planícies a leste de Troyes, lugar favorável para o estabelecimento de uma numerosa cavalaria. Foi no Campus Mauricus, e não nos Campos Cataláunicos, junto a Chãlons-sur-Marne, que ocorreu a grande batalha opondo os hunos e um exército romano-"bárbaro". Nesta violenta contenda, os germanos faziam parte das tropas dos dois la­dos: visigodos, francos, burgundios, saxões e alanos estavam com Roma e ostrogodos, gépidos, hérulos, rutíngios, qua-dos e alguns francos com Átila. A vitória sorriu para Roma e seus aliados, que constituíam o grosso dos combatentes. Áti­la teve que se retirar para além do Reno, voltando para as planícies da Europa central.

Existem diversas interpretações sobre o que representou essa batalha. Riché a considera como a primeira tentativa frustrada de os "bárbaros" asiáticos conquistarem a civili­zação europeia, iniciando o antagonismo milenar entre a Eu­ropa e a Ásia. Porém, a ideia de que se lutava por uma Europa devia ser estranha àqueles povos "bárbaros" que compunham o Ocidente na época. O próprio Aécio não visava a uma Eu­ropa, mas esforçava-se em manter de qualquer forma o Im­pério Romano do Ocidente. Uma outra corrente de historiadores defende que a batalha representou o confronto de duas mentalidades: a nómade, com os hunos, e a sedentá­ria, com Roma e seus aliados "bárbaros romanizados". Al­guns ainda levantam a possibilidade de a luta ser resultante de um hábil jogo político de Aécio. O enfrentamento de di­ferentes povos "bárbaros" serviria como uma batalha de ex­termínio, permitindo a manutenção de um equilíbrio entre eles, o que favoreceria o Império. Daí o não-aniquilamento dos hunos, que poderia dar um excessivo poder aos visigodos.

Átila, voltando da Panônia, refez suas forças. Em 452 iniciou seu ataque, tendo como alvo a Itália. Apesar da aju­da do Oriente, o Império do Ocidente não tinha condições suficientes para defender a península Itálica, cuja região

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norte sofreu uma sistemática devastação. Aquiléia foi toma­da e destruída; seus habitantes fugiram para o bosque ou se refugiaram nas ilhas do delta do Pó, dando origem a Vene­za. Na sua marcha, caíram Milão, Pavia e Ravena. O pânico se generalizou, enquanto os hunos se dirigiam para Roma. Corno o Senado de Roma hão podia mandar exércitos, ape­lou para a intercessão do papa Leão I. Este conseguiu que Átila não atacasse a cidade e evacuasse a Itália em troca de um compromisso de Valentiniano II de pagar-lhe um tributo anual. Deve-se acrescentar ainda outros fatores que favore­ceram os romanos: a fadiga e as enfermidades que atingiam o exército huno; um certo temor supersticioso sobre Roma devido a morte de Alaricò pouco tempo após o saque da ci­dade; o ataque de Marciano do Oriente à Panônia, quartel--general "de Átila. Ás negociações, que livraram os romanos de um novo saque, aumentaram a autoridade do pontífice em detrimento dos poderes civis de Roma. A incapacidade de defesa militar de Aécio significou a sua desgraça ante a Corte Imperial, já insatisfeita com suas intrigas para elevar seu filho Gaudêncio como sucessor de Valentiniano III.

Os hunos também não tiveram muita sorte, pois, logo depois de retornarem, seu chefe morreu. Com a morte de Áti­la, o império huno se desagregou devido à luta entre seus fi­lhos, em 454. A maior parte dos povos submetidos reco­braram sua independência, tais como os gépidos e ostrogo­dos. A coalização das tribos e a solidez do Império deviam--se apenas ao prestígio e carisma pessoal do chefe. Desapa­recido este, estava o Império condenado à dissolução.

Vândalos na África

Desembarque e conquista da África

Os vândalos se sentiam atraídos pelo sul da Espanha e acabaram por romper o tratado com Roma. Em 428, após

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derrotar o exército romano, tomaram Sevilha e Cartagena. Depois, ocupando Baleares, desenvolveram sua,vocação.-ma.-_ rítima e se voltaram para a África, terra rica e onde podiam escapar do ataque romano. O.revés da tentativa visigótica de passar para a Africa tornou os vândalos prudentes. Porém, a direção enérgica do rei Genserico deu um novo alento à em­presa africana, sonhada desde Alarico.

Sua travessia do estreito de Gibraltar ocorrera devido a dois fatores: pressão do rei visigótico Teodorico II na.Es­panha e a guerra civil entre Aécio e o conde Bonifácio da Áfri­ca. Este Convidou os vândalos, que já dispunham, de uma frota competente para chegar à África. ,Em 430, Genserico conduziu seu povo à África, onde desembarcou próximo a Tânger. Bonifácio percebeu sua..imprudência e, diante do avanço vândalo na Mauritânia cesariana (calcula-sé em 8 km/dia), acabou declarando esta parte ocidental dò' norte da África como estrangeira. Genserico não se deteve e conti­nuou siia rápida marcha, devastando a Numídia.

Parte da população aceitou e ajudou os invasores. A ro­manização da África fora precária, principalmente no inte­rior, onde desde o século I eram frequentes levantes berberes contra a dominação romana. Além disso, a dissenção reli­giosa exclusivamente africana entre donatistas e católicos e o movimento dos circuncilíões contra os latifundiários for­neceram elementos que engrossaram as fileiras inimigas. Par­ticularmente, foi contra os católicos que se dirigiu a violência dos vândalos, seguidores do arianismo. Está atitude dos vân­dalos originou o sentido pejorativo que atualmente impreg­na o termo vandalismo, sinónimo de destruição do que é respeitável pelas suas tradições, antiguidade ou beleza (cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975. p. 1440). A violência foi denunciada principalmente por dois porta-vozes da Igreja nessa região e que armaram a resistên­cia de suas cidades: Santo Agostinho, bispo de Hipona, e Quodvultdeus, bispo de Cartago.

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A rápida conquista também pode ser atribuída à péssi­ma e fraca defesa romana da África. Mitfé questiona a gúár-híçãõWqúãFenta mil homens, aventando a possibilidade de que esta cifra existisse somente no papel, como fruto da cor­rupção romana. Esse mesmo autor, baseado no testemunho do contemporâneo Salviano, levanta ainda a hipótese de fra­queza e corrupção morais do mundo africano.

Seja como for, apesar da rèsistênciáde algumas cidades como Hipona, que sofreu cerco durante quase um ano, Gen-serico não encontrou muita oposição. Bonifácio tentou um esforço supremo com o auxílio chegado de Roma e Constan­tinopla. Porém, foi derrotado em 432 e regressou à Itália.

Consolidação dos vândalos

Incapazes de rechaçar os vândalos, que em cinco anos de campanha dominaram o território entre o estreito de Gi­braltar e Túnis, os romanos propuseram mnfoedus. Em 435, Valentiniano III reconhecia, em um acordo, a possessão das zonas ocupadas (norte da Numídia, província proconsular oci­dental, e quase a totalidade da Mauritânia sitifiana) e se com­prometia a pagar um tributo anual. Durante este período de trégua, Genserico aproveitou para descansar suas tropas e re­forçar sua esquadra. Em 19 de outubro de 439, lançou-se so­bre Cartago, que logo capitulou e foi saqueada. Por fim, conquistou territórios até a Tripolitânia.

O Império perdia uma das mais ricas províncias em tri­go e azeite que abastecia a Itália, e, concomitantemente, a autoridade sobre o Mediterrâneo ocidental. Uma vez conquis­tada Cartago, Genserico atacou e ocupou a Sicília em 440, região estratégica e grande produtora cerealífera.

A ocupação vândala da Sicília, além de ser um sério re­vés para o abastecimento de Roma e para o domínio impe­rial no Mediterrâneo, servia como cabeça-de-pohte para á invasão da Itália pela retaguarda, pelo sul. Em contra-

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-ofensiva, os navios do Império Romano do Oriente expul­saram os vândalos de Palermo. Uniram-se as forças do Im­pério em uma esquadra de mais de mil navios nas águas da Sicília. Porém, não se chegou a uma operação definitiva, pois os contingentes orientais abandonaram Valentiniano III e logo o perigo dos hunos na Gália redirecionou o interesse roma­no para um perigo mais grave. Por isso, Valentiniano III ofe­receu aos vândalos um novo acordo em 442, estabelecendo-os na proconsular, Bizancena e numa parte da Tripolitânia e da Numídia, territórios definitivos do reino vândalo. Assim, a África romana, desde o Atlântico à fronteira de Cirenaica, ficava sob domínio vândalo.

Até 455, foi a vez da Córsega, Sardenha e Baleares, uti­lizadas como colónias de exploração e deportação. Paralela­mente, ocorreram incursões nas costas espanholas, italianas e gregas, que culminaram no saque de Roma, em 455, facili­tado pelo pedido de auxílio da imperatriz Eudóxia, após a morte de seu esposo, Valentiniano III, neste mesmo ano, con­tra o usurpador Máximo. Esta atitude agressiva foi mantida até a morte de Genserico, em 477.

A pirataria vândala se fazia sentir com mais força e o tradicional eixo comercial mediterrânico foi profundamente. abalado. As autoridades imperiais sempre temeram que os "bárbaros" ocupassem o litoral do Mediterrâneo, o que_é exemplificado em duas ocasiões: na repartição dos "bárba­ros' ' na Espanha, quando reservaram Tarraconense para si, em 411, e nos esforços em instalar os.visigodos na.parte oci­dental da Gália, não importando abandonar as costas.do ca­nal da Mancha e do Atlântico, perdidas de fato já há algum tempo, contanto que o Mediterrâneo fosse salvaguardado.

Germanos na Britânia

Ponto de partida: norte da Europa

O historiador Musset separa as migrações terrestres das marítimas, que caracterizaram a Europa do noroeste. Estes

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movimentos partiram da Escandinávia meridional, Alema­nha do mar Báltico e Países Baixos.

Até meados do século III, os jutos, anglos, saxões e frí-sios estavam em uma posição secundária, quando então fo­ram, juntamente com os francos, alvo de uma expedição punitiva de Roma por sua pirataria, em 286. Há várias hipó­teses para essa expansão. Entre elas, aventa-se a geológica, que situa o período entre os séculos I e VI como de trans­gressão marinha e de importantes submersões, provocando a elevação contínua dos povoados costeiros, com- a forma­ção de um habitat sobre as dunas. Aliados a este fator, estu­dos arqueológicos em cemitérios confirmaram uma certa superpopulação na área, mas não em toda a sua extensão. Musset ainda cita o êxito das primeiras incursões, que incen­tivou as seguintes, e.o desenvolvimento da construção náutica.

Ponto de chegada: Brítânia

Para todos esses povos houve um destino comum: Bri-tânia. Em um primeiro momento, eram apenas incursões. De­pois, instalaram-se definitivamente. Com Marco Aurélio (161 a 180), surgiram os indícios iniciais de sua presença no leste da Inglaterra. No governo de Caracala (211 a 217), construíram-se fortificações costeiras nessa mesma área. Já em meados do século III, o usurpador Caráusio coordenou uma espécie de limes de defesa visando atender a dois objeti-vos: a pirataria e o imperador legítimo Maximiano (235 a 238). O litoral da Saxônia, desde as costas do leste ao sul da ilha, manteve-se até o século IV, quando sofre o revés em 364.

Os pictos da Escócia penetraram no muro de Adriano (aproximadamente em 376). O muro foi construído no sécu­lo II para assegurar o domínio romano da parte inglesa, pcu-pada desde o século I a.C, sob César. Era uma obra indicativa da irredutibilidade do povo picto ao controle ro­mano. Depois, por mar, a Inglaterra sofreu ainda o assédio

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dos escotos da Irlanda, que se instalaram na costa ocidental da ilha. A defesa do território insular estava a cargo de tro­pas mercenárias, como era costume no Baixo Império, com­postas, segundo dados arqueológicos, por povos saxões aliados. Assim, os primeiros germanos instalados na Ingla­terra o foram não na condição de conquistadores, mas de fe­derados. Nesta ocasião, era mais grave para a população indígena de origem celta o problema com os pictos e escotos. Nas guarnições, encontravam-se também francos e alamanos, estes estabelecidos por Valentiniano III (424 a 455).

Em 395, Estilicão havia restaurado as defesas da ilha. Porém, a vaga de invasões continentais de 406 desguarneceu e isolou a Inglaterra do governo central em Ravena. Desde fins do século IV, havia uma tendência à recessão, em parte fruto das invasões dos pictos e escotos e, por outro lado, oriunda de um declínio da vida urbana e da retomada das formas indígenas. Tudo isso traduziu-se em uma maior au­tonomia provincial, em detrimento da autoridade estatal ro­mana. Assim, elegeram-se sucessivamente três usurpadores. Um deles, Constantino III, ainda tentou defender a Gália, sem sucesso, em 407. Disto aproveitaram-se os saxões para invadir a ilha, que estava sem proteção. Após combates obs­curos, as tropas romanas evacuaram definitivamente por volta de 442. Este abandono colocou fim a uma dominação já an­tiga e a uma romanização muito superficial.

A fixação dos povos germânicos começou a se verificar em meados do século V, chegando o grosso do contingente apenas no século seguinte. A entrada dos saxões adveio de uma chamada dos próprios bretões, que estavam em luta in­terna. Os mercenários se sublevaram em 455, iniciando en­tão a verdadeira conquista da ilha. Desembarcando em três pontos (estuários do Tamisa e Kent, Fenz e estuário do Hurn-ber), ocuparam logo o terço oriental da Inglaterra. As auto­ridades imperiais estavam mais preocupadas com os hunos no coração da Gália. Os bretões, em um processo de auto-

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nomia e independência em relação ao Império, não foram capazes de resistir ao avanço por falta de organização políti­ca. Uma parte deles atravessou o canal da Mancha para se refugiar na Armórica.

Bretões na Armórica

O início da instalação dos bretões na Armórica, em 401, foi consequência direta da ocupação da Inglaterra pelos po­vos "bárbaros" que já vinham infestando suas costas há al­gum tempo: anglos, frísios, jutos e saxões, advindos do norte da Europa.

A população celta da Inglaterra, perdendo o amparo das legiões em 407, viu-se reduzida às zonas mais ocidentais da ilha, País de Gales. Talvez os primeiros grupos de invasores tenham partido do sudeste, diretamente ameaçado pelos sa­xões, mas o essencial veio do sudoeste, possivelmente devido à pressão dos escotos.

As investidas dos germanos do norte no século IV leva­ram enfim à necessidade de cruzar o canal da Mancha e à instalação na Armórica (costa da Gália). Esta região lem­brava as paisagens da Cornuália. Os bretões deram-lhe o nome de seu país de origem, ou seja, Bretanha. Chegaram em pequenos grupos e assentaram-se inicialmente entre o Dol e Vanes, incluindo o arquipélago anglo-normando. Um pe­queno destacamento da migração bretã alcançou a Galícia. A população se dispersou no campo, havendo poucas e in­significantes cidades. A migração alcançou seu apogeu entre 550 e 600 e terminou em começos do século VII, coinci­dindo com a parada dos saxões nas portas da Cornuália in­glesa e do País de Gales. Assim, Gales e Bretanha cons-tituíram-se nos dois redutos da população celta. Sua instala­ção na Armórica formou uma nova frente "bárbara" con­tra as forças romanas.

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Relações com Bizâncio

O Império Romano do Oriente, Bizâncio, conseguira recuperar-se e manter-se melhor que o do Ocidente, que so­fria com os constantes ataques "bárbaros". Várias dessas in­cursões, originárias do Oriente, tais como ás dos visigodos e ostrogodos, foram direcionadas por Bizâncio ao Ocidente, aliviando a pressão de suas fronteiras.

No tempo de Valentiniano III, Aécio acreditava ainda na possibilidade de recuperação da totalidade do Império. Pa­ra concretizar este projeto, devolveu a Dalmácia, região liti­giosa há algum tempo, em troca de recursos marítimos contra os vândalos no Mediterrâneo ocidental. Por este mesmo mo­tivo, tentaram-se outras empresas conjuntas.

Porém, as diferenças, não apenas políticas, mas também económicas, culturais e religiosas, contrapunham-se à unifi­cação do Império. O Oriente, com sua concepção de monar­quia helenística, sua vida económica urbana, sua cultura greco-oriental e suas heresias religiosas (monofisismo e nes-torianismo, dentre outras), distanciava-se cada vez mais do Ocidente, com seus reinos "bárbaros", sua ruralização, sua cultura germano-romana e seu catolicismo ortodoxo.

O Império Romano do Ocidente deixou de existir no sé­culo V, enquanto o do Oriente, passando por uma série de transformações, subsistiu até o século XV".'O último impera­dor do Ocidente, Rómulo Augusto, foi destronado pelo mer­cenário hérulo Odoacro, que assumiu o governo da Itália em 476, pois o resto há muito encontrava-se fragmentado em. uni­dades autónomas. Odoacro mandou as insígnias imperiais a Constantinopla e colocou-se como representante do Império Romano do Oriente-. Foi uma trágica coincidência que o úl­timo imperador tivesse o mesmo nome daquele que foi con­siderado o fundador de Roma, Rómulo. Assim, colocou-se um fim a uma série de imperadores-fantoches que se suce­diam desde o século V sob o domínio de militares "bár-

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baros". Os imperadores do Oriente, vistos como únicas au­toridades de direito, ainda imiscuíram-se nos assuntos oci­dentais, tentando em vão manter a integridade do Império. Contudo, o Ocidente já se encontrava diluído em um mosai­co de reinos "bárbaros".

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Os reinos germânicos

Os reinos germânicos tiveram entre si semelhanças e di­ferenças. Possuíram, em relação ao Antigo Império Roma­no, caracteres comuns (elementos de permanência), bem como outros que os individualizaram (elementos de ruptura). Houve coexistência entre o germano e o romano. Se é verdade que conservaram alguns elementos ou caracteres romanos, tam­bém o é que outros foram inovados, modificados, alterados ou interpretados diferentemente.

Sociedade germano-romana

Os germanos eram pouco numerosos. Foram se insta­lando progressivamente, nas diversas províncias do Império, e, concomitantemente, sofreram um processo de romaniza­ção. O latim foi um grande fator de aproximação por ser a língua administrativa, aquela em que se redigiam as leis.

Houve também outros elementos romanos indicadores da importante influência da antiga civilização: os germanos adquirem a noção de propriedade imobiliária individual ou particular, vendendo seus bens de acordo com as normas ro­manas. Além disso, a conversão dos povos germânicos ao

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catolicismo contribuiu, em grande escala, para a fusão das duas populações. Por outro lado, os romanos aceitaram cos­tumes germanos. Encontram-se,.por exemplo, nomes como Gertrudes, Roberto, Godofredo, Elvira e Gonzalo entre a po­pulação romana.

Estados monárquicos

Pouco tempo de vida tiveram alguns reinos "bárbaros", como por exemplo o vândalo na África, criado por Genseri-co, ou o ostrogodo na Itália, governado por Teodorico. As tentativas de criação de verdadeiros Estados fracassaram após a morte de seus líderes.

Os reinos germânicos da Inglaterra foram pequenos quanto ao território, pouco poderosos e muito numerosos. A tradição nos fala na heptarquia anglo-saxônica. No entan­to, acredita-se que foram mais de sete os reinos que se con­solidaram nos séculos VI e VII e, mais tarde, sofreram com as invasões escandinavas e dinamarquesas.

Os visigodos, finalmente instalados na península Ibéri­ca, estabeleceram sua capital em Toledo. Tiveram institui­ções próprias, como os concílios de Toledo, destacaram-se pelo alto nível cultural, chegando a codificar um direito. Po­rém, não conseguiram resolver o problema sucessório e su­cumbiram diante da força do mundo muçulmano em pleno auge de sua expansão, em 711.

Os francos formaram um reino que, atravessando a Ida­de Média, chegou até a Idade Moderna..Foi o mais longo, na ordem da temporalidade, de todos, os reinos ''bárbaros": Clóvis unificou o território; Pepino tomou o título de rei, com a aprovação do papa; Carlos Martel lutou contra os muçul­manos, cortando sua expansão, e Carlos Magno foi coroado imperador em 800.

De maneira geral, dentro destas novas estruturas políti­cas, que foram as monarquias "bárbaras'.'.,, manteve-se a ideia

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imperial. O imperador do Oriente, aos olhos dos "bárbaros", era a única autoridade reconhecida. Com Odoacro nada mu­dou: nem no Senado, nem na administração romana e pro­vincial. Aceitou o imperador de Constantinopla, e os romanos, por sua vez, viram no chefe hérulo um simples ge­neral "bárbaro" como tantos outros que já formaram parte dos quadros do exército romano. Parecia, para os contem­porâneos, que se restabelecia a unidade do Império, desapa­recida definitivamente desde os tempos de Teodósio e seus dois filhos, Arcádio e Honório.

Junto à manutenção da ideia imperial, encontram-se Es­tados monárquicos com espírito germânico. Os reis foram, fundamentalmente, chefes militares, e sua realeza teve um çà-ráter singular que a diferenciou da monarquia imperial ro­mana. Os monarcas consideravam seus Estados como uma propriedade pessoal (patrimonialismo). Seu governo não era uma magistratura, como na antiga Roma. Cada um se con­siderava com pleno direito a repartir o território entre seus filhos. O rei na França, por exemplo, não era rei de França e, sim, rei dos Francos (rex franco rum).

Também, diferentemente, do. que acontecia em Roma, não havia uma lei única para todo o território e para todos os súditos. As leis eram pessoais e não territoriais. Neste pon­to, o reinos "bárbaros" continuavam o costume romano, que, desde os mais remotos tempos, reconhecia e acolhia a existência de outros direitos que não o romano. Chamava--se, de forma genérica, o direito do peregrino.

Os reinos "bárbaros" não conheciam a autoridade de base territorial. A estrutura se apoiava sobre os laços de re­lações pessoais entre os indivíduos. Com esta rede de laços sociais supria-se a falta dos mecanismos institucionais, que eram muito fracos nos povos germânicos.

Convertidos ao cristianismo, a cerimónia da unção real conferiu aos reis a sacralidade, ou seja, sua pessoa era supe­rior aos outros e tinha um caráter ou selo distintivo. Era um

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elemento cristão que se juntava aos caracteres germânicos pa­ra dignificar a realeza.

Os reis se rodeavam de uma guarda pessoal composta por homens de sua confiança que se uniam a eles por um ju­ramento especial de fidelidade, os:quais..íoram_ehamados de clientes. Viviam em torno do. soberano, comiam com ele e exerciam tanto serviços domésticos como ocupavam os mais altos cargos da administração.

Os impostos eram pagos apenas pelos romanos, enquan­to osl?CTmánòlTi¥ò~pá^ territoriais. De acordo com a legislação romana, a proprie­dade germânica da terra era o seu pagamento pelo serviço militar prestado na defesa da fronteira ou da região em que viviam, " •••''

Todos os reis "bárbaros" cunhavam moedas, inicialmen­te cohrefígiès e símbolos imperiais,.imitando principalmente os bizantinos. Já na metade do século VII encontram-se moe­das com nomes e efígies dos reis "bárbaros".

A organização militar respondia a esquemas eminente­mente germânicos. O rei era o chefe supremo, embora,às ve­zes delegasse parte da sua autoridade. As obrigações militares, que no início afetavam só os germanos, se fizeram com p tem­po extensivas a todos os súditos. A originalidade germânica advinha da degeneração das estruturas militares, com a pri­vatização do serviço militar, que antes era público.

O campo e a cidade

A economia nos reinos "bárbaros" era essencialmente a agropecuária. A transformação da estrutura económica efetuava-se já há algum tempo. Gradativamente, destacava--se o papel cada vez mais fundamental das grandes proprie­dades (villas), exploradas através das prestações pessoais dos colonos. Os latifundiários não criaram novos métodos de

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administração económica nem renovaram técnicas agrícolas. As atividades mais lucrativas centravam-se na propriedade agrária principal. A cultura dos cereais ficava nas mãos do colonato, que aplicava as técnicas tradicionais de cultivos nas pequenas explorações agrárias, as quais sustentavam sua fa­mília. Estes lotes ocupavam grande parte da propriedade e eram perpétuos e hereditários. Em troca, exigiam-se do co­lonato trabalho na reserva do proprietário e parte da produ­ção de seu lote; assim, a vinculação à terra era ao mesmo tempo uma necessidade e um dever.

O regime económico da villa tendia à auto-suficiência, de modo a obter todos os produtos básicos para a vida das pessoas e dos animais.

Encontrava-se também a pequena propriedade livre. Junto ao colonato, uma herança romana, subsistiu um nú­mero considerável de população escrava, empregada especial­mente para as tarefas mais duras do campo e para os serviços domésticos.

I As cidades, que no Império Romano desempenharam um importante papel como centros administrativos, perde-

i ram, na época dos reinos "bárbaros", a sua tradição enquan-!' to se desintegrava o aparelho institucional. A .nova função

desempenhada pela cidade foi, antes de mais nada, militar. Por outro lado, o fator religioso criou uma nova imagem da cidade medieval: sede episcopal. As atividades industriais e mercantis, outrora tão importantes, eram cada vez maisFTi-mitadas e reduzidas.

Como na época do Império, nas cidades existiam asso­ciações de artesãos livres. Estes trabalhavam com madeira, tecidos e metais, além de produtos agrícolas, dos quais ma-nufaturavam a farinha, o vinho e a cerveja.

As transações mercantis entre as diversas regiões ou pro­víncias do Império sofreram, já nos séculos anteriores, uma grande regressão. Aproveitavam-se como vias de transporte as calçadas romanas, os rios e as rotas tradicionais do Medi-

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terrâneo, quando não até mesmo os portos orientais ou norte--africanos. O nível das transações era baixo e os mercado­res, que dominavam ou tinham a supremacia nestes negócios comerciais, compunham-se geralmente de sírios ou gregos.

Em essência, pode-se afirmar que a vida económica dos reinos "bárbaros" acentuava os caracteres típicos da econo­mia romana tardia. A vida urbana não chegou a desaparecer totalmente; porém, a "base do sistema estava no campo.

O costume e a Sei escrita

A lei germânica era, nas suas origens, uma série de nor­mas provenientes das decisões aprovadas ...na Assembleia e transmitidas oralmente. Este fato explica que cada povo "bár­baro" tenha a sua própria lei. Os "bárbaros", constituídos depois em reinos, mantiveram inicialmente seus costumes e leis. Mas é.necessário entender, como afirma Musset, que so­bre a base de um antagonismo inicial entre romanos e ger­manos se construiu, mais tarde, uma única legislação escrita para ambas as populações. Este caminho foi percorrido em diferentes ritmos e com níveis de intensidade de romaniza­ção variados nos reinos germânicos.

Na Itália, os ostrogodos viveram sob Teodorico cuida­dosamente separados da população romana. Não havia ne­nhuma lei especial. O edito de Teodorico era totalmente romano e se aplicava igualmente para toda a população, o que não obsta que os ostrogodos, como soldados, não ficas­sem; submetidos à jurisdição ordinária e, sim, a tribunais mi­litares integrados exclusivamente por godos.

•, O primeiro reino "bárbaro" que escreveu sua lei, até então consuetudinária, foi o visigodo, na época do rei Euri­co. Poucos anos depois, seu filho, Alaríco II, publicou a no­va legislação com fortes influências romanas. Foi o chamado

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breviário de Alarico. Processo semelhante sofreram os bur-gundios na codificação de suas leis no início do século Vi.

Diferente foi o caso dos francos. Sua legislação, com características bem arcaicas, estava totalmente livre de in­fluências romanas. A lei sálica é atribuída ao rei Clóvis.

Os germanos usaram comumente o latim para redigir e codificar seus usos e costumes, com exceção dos ingleses, que preferiram a própria língua germânica. Por todas as suas es­pecificidades, a lei de Etelberto, de Kent, ocupou um lugar próprio.

Até o século VIII, aproximadamente, pode-se afirmar que os reinos "bárbaros" chegaram a constituir uma nova sociedade estabelecida sobre bases jurídicas novas.

Segundo ainda Musset, considera-se que em toda a le­gislação "bárbara" houve um "espírito" comum germano em interação com o direito romano.

Neste campo da legislação, não é possível esquecer as influências exercidas nos países ocidentais pela reconquista de Justiniano, no século VI. Tropas bizantinas se instalaram no Ocidente e foram centros ativos de difusão da cultura clás­sica oriental e do próprio código de direito romano, revisto e reorganizado na época pelo imperador Justiniano.

Cultora (clássica e Igreja

Nos séculos IV e V, época de crises e invasões, a Igreja formou aos poucos, dentro do Império, uma espécie de so­ciedade autónoma. Na medida em que desaparecia o poder romano das instituições imperiais, os bispos das diferentes cidades converteram-se na única autoridade com a que po­diam tratar os "bárbaros". Também se apropriaram da fun­ção de defender os interesses dos cidadãos. O pontífice Leão I conseguiu a retirada de Átila e o respeito do vândalo Gèn-serico para com a vida dos romanos. Era um novo poder

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que surgia frente à decadente máquina romana. Assim, o cris­tianismo, nascido no mundo clássico, se afirmava, no perío­do das invasões e dos reinos "bárbaros", como o único refúgio da cultura.

Aprender a ler e a escrever não era fato inédito nos rei­nos "bárbaros". Sabe-se que a aristocracia germânica pro­curava o mestre de retórica (retor) e o de gramática (gra­maticais) para completar sua instrução.

Até aproximadamente o começo do século VI, as esco­las clássicas perduraram, e, na medida em que estas dimi­nuíam, a Igreja foi criando outras novas. Os aspirantes ao sacerdócio deveriam estudar as sete artes liberais antes de en­trar na filosofia e na teologia. Assim, as escolas episcopais e monacais começavam a ser focos de cultura. Os monasté-rios também possuíam, frequentemente, bibliotecas com cen­tenas de volumes de obras clássicas e de autores cristãos, além de escritórios (scriptoria) para copiar manuscritos. Desta for­ma, salvou-se grande parte dos clássicos. A Igreja se conver­tia em receptora e depositária da cultura antiga, que nos diversos reinos "bárbaros" se reformulou seguindo a ótica cristã.

Esta foi a tarefa de Boécio no reino ostrogodo, de Mar­tin de Dumio entre os suevos, de Beda, O Venerável, na In­glaterra, de Alcuino na corte de Carlos Magno e, fundamentalmente, de Isidoro de Sevilha entre os visigodos. Boécio, chamado o último dos clássicos, estudou Aristóte­les, Porfírio, Ptolomeu e Cícero, entre outros. Isidoro de Se­vilha compilou, nas Etimologias, todo o saber da época. Os vinte livros que compõem a obra serviram de referência até o século XIII, através das numerosíssimas cópias manuscri­tas que foram feitas em toda a Europa ocidental,

Agostinho de Hipona foi mais longe que os anteriores que pretendiam salvar a cultura clássica, conseguindo con­jugar as bases da cultura antiga com o pensamento cristão. Assim, inaugura uma nova época na história do pensamento.

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7 Conclusão: "bárbaros"?

Os capítulos anteriores nos levam obrigatoriamente a nos colocarmos diante de uma série de questões difíceis de re­solver.

Em primeiro lugar, constata-se que a temática específi­ca de "bárbaros" não é objeto das preferências da historio­grafia contemporânea. Atualmente existe um grande número de medievalistas; contudo, suas pesquisas e enfoques histó­ricos não privilegiam os primeiros séculos da Alta Idade Média.

Por outro lado, há uma ampla produção sobre o fim do Império Romano. Discute-se, desde diferentes óticas, se o Im­pério caiu, se desapareceu ou não, quais as causas e os mo­mentos que marcaram a passagem da Antiguidade para a Idade Média. Este problema da decadência do mundo anti­go e o início de uma nova era na História faz parte das preo­cupações do homem atual, que, possivelmente, procura marcos na Antiguidade para recompor ou, ao menos, enten­der parte da problemática contemporânea.

O mito de Roma é uma constante na história da Euro­pa. Na Idade Média tenta-se, ainda, reviver as glórias do Im­pério Romano: Justiniano reconquista o Ocidente, Carlos Magno se coroou imperador e, mais tarde, na Alemanha, se

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"batiza" o Império de Sacro Império Romano-Germânico. Na Idade Moderna, já não se tentou a reconstrução mate­rial. O homem se interessa em analisar o fenómeno em si mes­mo. Uma das primeiras obras escritas obedecendo a este critério foi a intitulada Considerações sobre as causas da gran^ deza e decadência dos romanos, de Montesquieu. Outros tra­balhos foram publicados nesta mesma perspectiva até os nossos dias.

Diferentemente da historiografia tradicional, os "bár­baros", do outro lado do limes, nem sempre foram violen­tos, nem tão "bárbaros", como se pode entender corren­temente por esta palavra, carregada de sentido pejorativo. Eles não se propunham destruir o Império. Antes, pelo con­trário, o respeitaram, estabeleceram pactos de federação, se integraram primeiro no exército e depois na totalidade da vi­da do Império. Romanizaram-se ao mesmo tempo que ocor­ria a germanização dos romanos. Odoacro não destruiu o Império, pois reconheceu sua existência na pessoa do impe­rador do Oriente, remetendo-lhe as insígnias imperiais. Os visigodos lutaram na península Ibérica contra suevos e vân­dalos na qualidade de aliados de Roma.

Romanos e "bárbaros" viveram em simbiose desde o século III, e assim continuaram, mais tarde, na época dos rei­nos "bárbaros". Sobreviveram as instituições romanas, estudavam-se as sete artes liberais, expressavam-se em latim, continuou o processo de ruralização, já iniciado no Império, bem como o abandono das cidades e a decadência do comér­cio. Os romanos continuaram nos altos postos do governo. Não se registraram graves perturbações sociais: as magistra­turas estavam nas mãos dos romanos, assim como os pode­res militares nas dos "bárbaros". Isto é uma constante que se repetiu desde o século IV até o VII, ou mais tarde ainda. Como exemplos, basta citar Aécio e Estilicão, entre outros. Se na época do Império o Mediterrâneo era a coexistência de um mundo oriental com um ocidental, ambos rotulados

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m de romanos, agora dava-se a convivência no Mediterrâneo ocidental de uma civilização romana com uma germano--"bárbara".

É necessário aceitar, como ponto de partida para um me­lhor conhecimento desse fenómeno coletivo — as invasões "bárbaras" —, que se está diante de um processo, do qual deve-se destacar as permanências, heranças e sobrevivências dos germanos e romanos, assim como as rupturas sofridas por estas duas civilizações, devido aos diversos fatores de­terminantes em cada momento e circunstâncias respectivas de cada povo.

, A primeira etapa desse processo histórico, pelo qual pas­saram as migrações "bárbaras", foi a criação real e efetiva dos reinos germânicos, com sua cultura, leis, instituições, cos­tumes e até religião própria. Daí surgiriam as nacionalida­des: nascia a Europa. Europa não era mais o Império Romano e, sim, a combinação da herança romana com a germânica.

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Vocabulário crítico

Anarquia militar: período crítico da história romana com­preendido entre 235 e 285. A inexistência de uma fórmula sucessória estável para a transmissão do poder levou a uma crise de autoridade derivada da pouca legitimidade do po­der do imperador e do exército. Evidencia-se o aumento da importância da força militar devido à crescente neces­sidade do exército na manutenção e defesa do Império, ameaçado pelas invasões "bárbaras".

Arianismo: doutrina de Ário, heresiarca de Alexandria (280 a 336), contra a Trindade do catolicismo. Nega a divinda­de substancial de Cristo ao defender a tese de que o logos, como criatura do Pai, não era de sua mesma essência, mas, sim, de essência semelhante. A conversão das tribos ger­mânicas a este credo, graças ao trabalho do bispo Ulfilas, constituiu-se em um elemento antagónico à ortodoxia do Império Romano do Ocidente.

Circunciliões: nome latino de etimologia incerta. Provavel­mente, indica trabalhadores agrícolas sem terras que pro­curavam ocupação. Organizaram-se em esquadrões armados e adotaram táticas de guerrilha com incursões nos latifúndios isolados da África do Norte, fossem leigos ou eclesiásticos. Aliaram-se aos vândalos.

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Comitatus: séquito de jovens guerreiros em torno de um chefe para o serviço de armas na guerra e nas expedições de bo­tim. Os companheiros do chefe eram homens livres que, voluntariamente, se associavam a ele e recebiam recom­pensas por sua fidelidade. Esta pequena tropa era a força de seu chefe na guerra e nas vendetas, além de garantir sua autoridade nas assembleias locais de homens livres imallus). Foi um dos elementos constitutivos das institui­ções feudais.

Donatismo: cisma religioso tipicamente africano iniciado por Donato. Reação contra a indulgência das autoridades ecle­siásticas, ao aceitar a validade dos sacramentos conferi­dos pelos apóstatas. Foi um movimento de contestação da Igreja Católica africana e serviu também, para alguns gru­pos radicais, como oposição à autoridade romana. Os do­natistas engrossaram as fileiras vândalas.

Exército romano: um dos agentes mais eficazes da "barbari-zação" progressiva do Baixo Império. Sua composição ini­cial restringia-se aos pequenos e médios agricultores da Itália. Com Augusto, ocorreu a profissionalização, estendendo-se às províncias mais romanizadas. Passou-se então a recrutar entre as províncias novas não-assimiladas e finalmente chegou-se aos "bárbaros".

Foedus: pacto entre o Império Romano e os povos "bárba­ros" para ocupação das terras imperiais sem impostos, em troca de um certo número de soldados. Esses povos tinham completa autonomia, mantendo suas próprias instituições. Objetivava-se neutralizar o perigo "bárbaro" mediante a aceitação de germanos na defesa do Império. Porém, no século V, os foederati constituíram-se em ameaça à sobre­vivência do próprio Império, pois era um corpo estranho do qual surgiram os reinos "bárbaros".

Laeti: designação aos colonos adscritos à terra e assentados sob vigilância militar, no interior da Gália, pelos impera-

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dores. Eram prisioneiros francos destinados a repovoar os campos abandonados após os desastres do século III. For­mavam grupos fechados, pois lhes era proibido o matri­mónio com cidadãos romanos. Tiveram papel decisivo na formação da civilização merovíngia.

Limes: limites do Império Romano. No Ocidente, tradicio­nalmente, estabeleceram-se como marcos naturais os rios Reno e Danúbio. Construíram-se a intervalos regulares postos fortificados com soldados acantonados e, mais tar­de, instalaram-se foederati "bárbaros". Além de seu ca-ráter militar, teve funções económicas ao incentivar o comércio entre Roma e os "bárbaros" bem como a colo­nização civil para atender às necessidades das tropas. As "invasões bárbaras" transgrediram o limes.

Sippe: grupo de pessoas que possuem um antepassado co­mum. A linhagem era a instituição fundamental que de­terminava a posição do indivíduo na comunidade, além de lhe assegurar as condições de existência, dado seu ca-ráter produtivo e protetor. Alguns autores consideram-na como uma célula básica do exército, em vista do edito de Rotário, de 643. Marc Bloch vê a linhagem como um dos elementos primordiais da primeira idade feudal.

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9 Bibliografia comentada

BANNIARD, Michel. A Alta Idade Média ocidental. Lisboa, Europa-América, s.d. (Col. Saber.) O Autor pretende definir Antiguidade e Idade Média e apontar os critérios utilizados no momento da passagem de um mundo para outro.

BONNASSIE, Pierre. Vocabulário básico de la historia medie­val. Barcelona, Crítica, 1983.

Como seu nome indica, é uma coletânea comentada de cin­quenta palavras que o Autor considera essenciais para o estudo da história medieval.

ELLUL, Jacques. Histoire des institutions; institutions grec-ques, romaines, byzantines, francques. Paris, PUF, 1955. Embora um pouco antiga, esta obra conserva ainda gran­de valor. Interessa, especialmente, o capítulo dedicado às invasões e instituições "bárbaras".

FOURNIER, Gabriel. L'Occident de lafin du Vsiècle à lafin du IX siècle. Paris, Armand Colin, 1970. (Série Histoire Médiévale, dir. Georges Duby.) Manual que orienta para o estudo e a pesquisa dentro do campo da Idade Média. Abarca em sua perspectiva a Eu-

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ropa ocidental e dedica boa parte da obra à instalação dos "bárbaros".

LOT, Ferdinand. O fim do mundo antigo e o princípio da Idade Média. Lisboa, Ed. 70, 1980. O Autor traça uma perspectiva geral da passagem da Ida­de Antiga para a Média. Estuda toda a área mediterrânea e principalmente a instalação dos "bárbaros".

MAIER, Franz Georg. Las transformaciones dei mundo me­diterrâneo; siglos III-VIII. Madrid, Siglo XXI, 1972. (Col. Historia Universal.) Muito útil para o estudo aprofundado do período históri­co. Obra rica em notas, mapas, bibliografia e índices.

MARROU, Henri-Irénée. Saint Augustin et lafin de la cultu-re antique. Paris, Boccard, 1938. Obra essencial para a compreensão da situação cultural da Antiguidade tardia, tomando como paradigma Santo Agostinho. Possui um levantamento bibliográfico minu­cioso das obras publicadas até o momento em que se edi­tou o livro.

MILLAR, Fergus. El Império Romano y sus pueblos limítro­fes. Madrid, Siglo XXI, 1973. (Col. Historia Universal.) Estuda, além do Império Romano, os germanos na sua ori­gem e evolução até o século III, dentro do contexto da his­tória universal. Obra muito rica em notas, mapas, bibliografia e índices.

MITREFERNANDEZ, Emilio. Panoramas de la historia univer­sal; los germanos y las grandes invasiones. Bilbao, More-ton, 1968. A obra começa estudando a evolução do conceito bárba­ro através dos tempos. Define os "bárbaros", as invasões e sua transcendência na história e na formação da Euro­pa. Obra de importância capital. '

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MUSSET, Lucien. Les invasions; les vaques germaniques. Pa­ris, PUF, 1965. (Col. Nouvelle Clio.) Esta obra, como todas as da mesma coleção, tem abun­dante bibliografia e um levantamento de fontes, além do estudo crítico de questões que estão em reelaboração ou a nível de hipóteses. Esta é a parte mais rica do livro. Obra fundamental.

NUNES, Ruy Afonso da Costa. História da educação na Ida­de Média. São Paulo, EDPU/Edusp, 1979. Obra feita especialmente para alunos da Faculdade de Edu­cação, torna-se também um bom manual para o conheci­mento da época das invasões e reinos "bárbaros".

RicriÉ, Pierre. Les invasions barbares. 4. ed. Paris, PUF, 1968. (Col. Que sais-je?) Livro clássico e fundamental para o estudo das invasões dos povos germânicos. Acompanha a obra um bom qua­dro cronológico.

—. Grandes invasões e impérios; séculos V ao X. Lisboa, Dom Quixote, 1980. Obra básica e fundamental para o estudo do período. O Autor consegue profundidade no tema, ao mesmo tempo que claridade na exposição. Quadros cronológicos, índi­ces, mapas e bibliografia são um bom subsídio.

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1. Paródia, paráfrase & Cia. — Affonso Romano de SanfAnna ir 2. Teoria do conto — Nádia Batteíla Gotlib * 3. A personagem — Beth Brait ir 4. O foco narrativo — Lígia Chiappini Mo­raes Leite TAT 5. A crónica — Jorge de Sá ir 6. Versos, sons, ritmos — Norma Goldstein ir 7. Erotismo e lite­ratura — Jesus António Durigan ir 8. Semântica — Rodolfo llarl & João Wanderley Geraldi ir 9. Â pesquisa sociolinguística — Fernando Tarai lo •fr 10. Pronúncia do inglês norte-ame-ricano — Martha Steinberg ^r 11. Rumos da literatura inglesa — Maria Elisa Cevasco & Valter Leilis Siqueira •jír 12. Técnicas de comunicação es­crita — Izidoro Biikstein -Ar 13. O caráter social da ficção do Brasil — Fábio Lucas ir 14. Best-seller: a lite­ratura de mercado — Muniz Sodré ir 15. O signo — Isaac Epstein ir 16. A dança — Míriam Garcia Mendes ir 17. Linguagem e persuasão — Adilson Citeiií "jír 18. Para uma nova gramá­tica do Português — Mário A. Perini ir 19. A telenovela — Samira Youssef Campedelli ir 20. A poesia lírica — Salete de Almeida Cara ir 21. Perío­dos literários — Lígia Cademartori ir 22. Informática e sociedade — Antó­nio Nicolau Youssef & Vicente Paz Fernandez ir 23. Espaço e romance — António Dimas ir 24. O herói — Flá­vio R. Kothe ir 25. Sonho e loucura — José Roberto Wolff ir 26. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? — Evanildo Bechara ir 27. Morfologia in­glesa — noções introdutórias — Mar­tha Steinberg ir 28. Iniciação à mú­sica popular brasileira — Waldényr Caldas ir 29. Estrutura da notícia — Nilson Lage ir 30. Conceito de psi­quiatria — Adilson Grandino & Durval

Nogueira "A- 31. O inconsciente — um estudo crítico — Alfredo Naffah Neto ir 32. A histeria — Zacaría Borge Al Ramadam ir 33. O trabalho na Amé rica Latina colonial — Ciro Flamarion S. Cardoso ir 34. Umbanda — Jo; Guilherme Cantor Magnani ir 35. Teo­ria da informação — Isaac Epstein ir 36. O enredo — Samira Nahid de Mes quita ir 37. Linguagem jornalística — Nilson Lage ir 38. O feudalismo: eco> nomia e sociedade — Hamilton M Monteiro ir 39. A cidade-estado antiga — Ciro Flamarion S. Cardoso ir 40 Negritude — usos e sentidos — Ka bengele Munanga ir 41 . Imprensa fe­minina — Dulcília Schroeder Buiton •k 42. Sexo e adolescência — Içam Tiba ir 43. Magia e pensamento má gico — Paula Montem ir 44. A meta* linguagem — Samira Chalhub ir 45 Psicanálise e linguagem — Eliana de Moura Castro ir 46. Teoria da litera tura — Roberto Acfzelo de Souza ir 47. Sociedades do Antigo Oriente Pró> ximo — Ciro Flamarion S. Cardoso ir 48. Lutas camponesas no Nordeste — Manuel Correia de Andrade ir 49. A linguagem literária — Domício Proen­ça Filho ir 50. Brasil Império — Ha­milton M. Monteiro ir 51. Perspectivas históricas da educação — Eliane Marta Teixeira Lopes ir. 52. Camponeses — Margarida Maria Moura ir 53. Região e organização espacial — Roberto Lo­bato Corrêa ir 54. Despotismo escla­recido •— Francisco José Calazans Fal-con ir 55. Concordância verbal — Ma­ria Aparecida Baccega ir 56. Comuni­cação e cultura brasileira — Virgílio Noya Pinto ir 57. Conceito de poesia — Pedro Lyra ir 58. Literatura com­parada — Tânia Franco Carvalhal ir 59. Sociedades indígenas — Alcida