OS SONHOS DE PEDRO

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Benvinda narra, com alma, coração e realidade, a saga de seu pai e de sua própria família, correndo atrás de um sonho e lutando para realizá-lo.

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2ª Edição Eletrônica

BENVINDA ANA BAÇANAUTORA

Capa e Edição Eletrônica: L P BaçanOutubro de 2009

Direitos exclusivos para língua portuguesa:Copyright © 2009 da Autora

Autorizadas a reprodução e distribuição gratuita desde que sejampreservadas as características originais da obra.

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SUMÁRIO

A AUTORAPREFÁCIOA COBRA E O CÃOO MONJOLO E A PROFECIAA PEROBA E A CASAO FEIJÃO E O MUTIRÃOOS CAÇADORES SEM CAÇA EZÉ-SEM-MEDOCASAMENTOS E DECEPÇÕESCASAS GRANDES E SEGREDOSSONHOS E REALIDADEA GEADA, A REVOLTA E ASANTAA BROCA E A GEADAFANTASMAS DO PASSADOO FIM DOS SONHOS

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BENVINDA ANA BAÇAN

Nasceu em 21/03/19... Viúva, aposentada, criou 5 filhos e 2 netos.Escreve desde 1962, quando fez seu primeiro poema, dedicado ao pai. Resideem Uraí, Paraná, Brasil. Já publicou os seguintes livros virtuais: "Os Sonhosde Pedro", "O Baú de Minhas Lembranças", "O Contador de Histórias" e "APonte Caída". Participou da I Antologia do Portal CEN, em 2004.

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TALVEZ SEJA GENÉTICO...

Não sei... Nunca vi nada escrito a esse respeito... Mas tenho motivos paracrer que a atividade artística seja transmitida geneticamente. Em último caso,por osmose... Ou até por contágio, não sei. Meu pai tinha uma criatividadeimensa e um jeito todo especial de contar histórias. Ele nos fazia rir, quando sepunha a contar suas aventuras de caçador, os causos do Joaquim Bentinho emuitos outros que ainda hoje me lembro. Meu filho é músico. Aprendeu atocar a guitarra, coisa que nunca consegui, a não ser arranhar as posiçõesbásicas do Além disso, também é escritor e palestrante de mão cheia. Minhafilha é fotógrafa, com uma rara sensibilidade e um talento todo especial comsua câmera. A última e grata surpresa é minha mãe, capaz de criar histórias efábulas surpreendentes e, de memória, registrar uma parte da história dafamília: os sonhos de seu pai, meu avô.

Os Sonhos de Pedro talvez sejam os sonhos de todos nós. Mas, como ele,poucos temos a coragem de persegui-los, a despeito de todos os obstáculos.Há, nesses corajosos, uma audácia egoísta que somente tarde, muito tarde, éreconhecida. Esta é a história de meus avós... e de minha mãe e de meu paitambém. O resgate histórico contido nessa narrativa vai além de meu alcance ede minha compreensão, pois se inicia num tempo muito distante: um tempo demistérios, crueldade, dramas e, principalmente, amor. O amor de um homempor seus sonhos e o amor de uma mulher por ele.

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OS SONHOS DE PEDRO

Esta narrativa é feita por uma das personagens desta história.Os personagens são reais.

Os fatos são verídicos.

A COBRA E O CÃO

A fazenda fora de um senhor de engenho e nos seus grandes canaviais sótrabalhavam escravos. Quando o pai de Pedro a comprou, não havia maisescravos, mas viviam na fazenda muitos filhos deles, trabalhando agora comoempregados. Contavam que seus pais muitas vezes foram chicoteados pelofeitor. Ainda se viam, desgastados pelo tempo, a senzala e o tronco onde osescravos eram chicoteados, às vezes até a morte, ou presos às enormescorrentes como castigo. Havia também uma mesa de tortura chamada debacalhau, onde os escravos eram atados com grossos talos de couro. O feitorligava uma engenhoca movida a água e uma prancha subia e descia comviolência, abatendo-se sobre o corpo do escravo, deixando-o achatado comoum bacalhau.

O porão da casa da fazenda era usado como sala de castigo para escravosque eram pegos escondidos ou fugindo do trabalho forçado. O velho Patrício,já cego, mas lúcido, fora escravo nessa fazenda e contava com tristeza comotodos eram tratados e como morriam de fome e sede, acorrentados ao tronco.Contava ele que em noites sem luar ouviam-se gritos de dor perdidos naescuridão dos canaviais.

A fazenda foi comprada por Lúcio José de Andrade, pai de Pedro, em1890. Lúcio era mineiro de Ouro Preto. Foi garimpeiro muitos anos, juntoumuito dinheiro e comprou a fazenda. Depois casou-se com Ana Bernardini,um ano depois da compra da fazenda. Mulher frágil e de pouca saúde, veio afalecer depois que Pedro nasceu. Seus dois irmãos, bem mais velhos, jáestavam crescidos, quando a mãe morreu.

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O pai havia ficado viúvo, com um filho pequeno, por isso voltou a casar-se. Dinha, mulher má e rancorosa, não gostava do enteado porque ele eramuito parecido com o pai.

A casa da fazenda era construída com a máxima segurança, de madeira,com duas paredes em forma de caixa. Suas janelas enormes tinham grades defuros como proteção. Suas paredes serviam de cofre e foram construídas comessa finalidade. Havia uma espécie de segredo na parede. Para abrir o cofre,era preciso apertar um ponto da parede. Eram vários os cofres que havia nacasa, ocultos, em sua maioria, nas paredes.

Dinha, egoísta e ambiciosa, começou a esconder dentro dos cofres dasparedes moedas de ouro, libras esterlinas e moedas de prata. Escondeu todoouro que encontrou na velha casa da família. Os irmãos de Pedro se casaram eele ficou morando com o pai e a madrasta.

Dinha maltratava o enteado, escondendo a comida, que era muito farta.Não satisfeita, porque o garoto nada dizia ao pai, inventou um motivo eexpulsou-o da casa. Com apenas quatorze anos Pedro foi viver sozinho.Arrumou um trabalho no pequeno engenho de Ezaías, pai de Márcia. Eles jáse conheciam, eram vizinhos há cinco anos, e brincavam juntos, correndopelos campos, colhendo flores e frutos silvestres.

No engenho ele fazia de tudo: cortava cana nos canaviais e ajudava nafabricação de açúcar e aguardente. Era serviço para gente grande, mas Pedrodava conta. Ele sonhava ter sua própria família, como seus irmãos. Ezaíasgostava muito do pequeno Pedro, como ele o chamava. Márcia em seus diasde folga, passou a cuidar das poucas roupas que Pedro tinha, apesar de seu paiser um fazendeiro de muitas posses. Ele deixou de fazer sua comida e lavarsuas roupas, ganhando um quartinho junto ao engenho.

Pedro sonhava com a casa grande da fazenda do pai, com os muitosempregados que viviam trabalhando no engenho dele. Com tristeza dizia parasi mesmo:

— Aqui sou feliz, todos me ajudam e ensinam os serviços e sou muitobem tratado.

Recordava o quanto havia sofrido, quando tivera que cortar cana nafazenda do pai como um simples empregado. Muitas vezes ele passava o diasem comer, porque a madrasta não o deixava entrar em sua própria casa. Eramos empregados que lhe davam restos de comida, escondidos da patroa.

Já fazia dois anos que Pedro estava trabalhando no engenho de Ezaías.Ele não gastava o que recebia e guardava tudo, já que tinha casa e comida,botas e facão que seu patrão lhe dava. Pedro e Márcia já se olhavam commuito carinho e o pai dela conversava muito com ele.

Certo dia, disse-lhe:

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— Você precisa se casar, meu rapaz!Tinha ele dezesseis anos e Márcia, quinze. Ela trabalhava no engenho e,

tendo um pequeno ganho, guardava o que sobrava. Certo dia, Pedro falou comMárcia:

— Eu gosto muito de você. Gostaria de me casar com você, se o seu paideixar.

Ela não esquecera o dia em que eles estavam brincando no campo e eledisse a ela:

— Quando eu crescer, vou me casar com você.Agora ele estava falando sério. Cresceu e cumpriu o prometido. Márcia

falou com a mãe, que falou com o pai. Os dois conversaram muito edecidiram.

— Pedro é um bom rapaz, trabalhador, honesto e decidido. Ele pode secasar com nossa filha. Os dois tem muito em comum.

Ao receber a notícia Pedro ficou muito feliz, pois teria uma família deverdade, como seus irmãos. Mostraria à madrasta que estava vencendo navida.

Os preparativos para o casamento foram rápidos. Não havia muito o quepreparar. O vestido seria feito pela mãe de Márcia. Quanto ao restante, dava-se um jeito. Um ano depois os dois se casaram. Ezaías deu uma pequena casajunto à casa grande. Pedro comprou tudo que era necessário para sua queridaesposa e ainda lhe sobrou dinheiro para guardar.

Ele adorava Márcia e fazia de tudo para fazê-la feliz. Seu jeito de meninocativou os parentes da esposa e todos o tinham como um filho muito querido.Pedro sonhava em ter suas próprias terras. Não queria muito, só o que pudessecuidar sozinho.

Pedro não visitava o pai, mas sabia de tudo que se passava com ele,doente e maltratado pela mulher. Dinha, esperta como era, aplicou o golpe dobaú no rico fazendeiro. Com a ajuda dos filhos do primeiro casamento, passoua vender o rebanho de gado e esconder todo o dinheiro, para depois trocar pormoedas de ouro.

O tempo passou e Pedro já era pai de dois filhos, Ana e Lúcio.Continuava sonhando e guardando o que sobrava do seu dinheiro. Sonhava emcomprar um pequeno sítio. Até procurou pelas redondezas, mas nãoencontrou. Acabou comprando suas terras em São Pedro do Turvo, lugar ruim,distante de onde eles moravam.

Pedro e Márcia foram morar em seu primeiro sítio, mas ele sempre dizia:— Ainda vou comprar a terra dos meus sonhos e nós iremos embora

deste lugar.

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Pedro continuou sonhando, enquanto plantava milho, arroz e feijão. Umde seus irmãos veio lhe fazer uma visita, olhou suas roças e disse:

— Você aqui não tem futuro. Suas terras não produzem nem milho.Feijão e arroz nem pensar. A mandioca nem brotou. Você está perdendo o seutempo. Por que vocês não saem deste buraco? Lá perto do Lajeado tem umasterras que estão a venda. Ficam perto das terras da família da Márcia.

Pedro Sonhador, como Márcia passou a chamá-lo, disse a ele, certo dia:— Não estou gostando de sua cara. Você nem olha mais para mim e nem

brinca com as crianças.— Estou pensando, Márcia, estou pensando — ele respondeu.— Você está é sonhando, como sempre. Essa ruga em sua testa apareceu

depois que seu irmão conversou com você.Pedro decidiu contar tudo a esposa.— Eu vou ao Lajeado ver umas terras que meu irmão me indicou.— Com que dinheiro você vai comparar estas terras, homem? Eu não

gosto quando você começa a falar assim. Parece que não está feliz aqui.— Eu estou é preocupado com as nossas plantações. Não vamos colher

nem para os gastos da nossa família. É por isso que eu vou ver aquelas terras.Nós não temos dinheiro para comprar nada, por isso não se preocupe, mulher,com pagamentos. Eu ainda nem fechei o negócio. Vou ver as terras primeiro.Se gostar, vou propor uma troca. Nossa terra é três vezes maior que a outra,mas só presta mesmo para invernada.

— Você não desiste mesmo dos seus sonhos malucos. Acha mesmo queo dono das terras vai aceitar uma troca?

— Nossa terra tem vinte alqueires e a dele, só cinco alqueires. Adiferença é grande. Tenho certeza que vou fechar o negócio sem ter que disporde nem um conto de réu.

Dias depois, Pedro foi ver as terras do Lajeado, boas e produtivas, masestava tudo abandonado. A casa era confortável e tinha uma cozinha até maisou menos, um bom poço de água por perto e um pequeno córrego na divisa dosítio.

Pedro gostou das terras. Tinha uma pequena área de pasto, cercada dearame farpado. Seriam necessários alguns reparos nas cercas e nos mourões,mas a porteira estava perfeita.

O dono das terras estava decidido a fazer qualquer negócio. Pedro propôsa troca das terras, uma pela outra, sem dispor de dinheiro. O dono do sítioconhecia as terras de Pedro, pois tinha um bom lote que fazia divisa com elas.

— Eu aceito a troca, seu Pedro. Vou plantar um bom canavial naquelasterras. Assim o meu gado terá um bom reforço na época das secas, quando

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pastos estiverem faltando. Vamos fazer um ótimo negócio. A minha escrituraestá a sua disposição — disse a Pedro.

— A minha também está aqui — respondeu Pedro.— Você tem filhos, Pedro?— Sim, tenho dois, um casal.— Então eu vou lhe dar uma vaca com bezerro novo. Ela dá dez litros de

leite. Vai dar para fazer um queijo por dia.O sonho de Pedro tinha se realizado. Ao chegar em casa, contou para a

mulher, dizendo:— Eu fiz a troca das terras, uma pela outra, e ainda ganhamos uma vaca

leiteira. Ela vai se chamar Fartura.Márcia ficou tão feliz que começou a chorar. Pedro soltou seus cabelos

num gesto de carinho, deixando-a encabulada.Um vizinho ofereceu para fazer a mudança em seu carro de boi. Os

pertences do casal foram colocados no carro, que seguiu chorando pela estradacheia de poeira. A casa estava muito suja, mas era uma boa casa. A limpezafoi rápida. Os dois, em pouco tempo, lavaram tudo e arrumaram seuspertences.

Pedro tinha muito trabalho pela frente. Precisava preparar a terra para oplantio e foi necessário fazer uma roçada, para depois fazer a capina. Mesmoassim, foi impossível limpar tudo a tempo de fazer o plantio. Ficou um bompedaço de terra sem preparar.

Sua lavoura logo estava muito bonita, prometendo uma boa colheita demilho, feijão e arroz. Quando isso ocorreu, Pedro vendeu os cereais e comproualguns porcos para criar e engordar. O quintal já estava povoado de galinha efrangos.

Márcia fazia um queijo todos os dias. A família do casal já tinhaaumentado com o nascimento de mais uma menina, Maria, que veio aumentara felicidade do casal. No segundo ano, Pedro preparou mais um pedaço daterra que tinha ficado para trás, mas ainda não deu para preparar tudo, ficandoum bom pedaço para limpar. Com isso sua colheita iria ser bem maior. Eletinha aumentado a área da plantação.

Márcia cuidava da casa e dos filhos e ainda ajudava o marido na lavoura,na época do plantio e da colheita. As terras do sítio eram muito férteis, tantoquanto Márcia, que ganhou mais uma menina, por nome Benvinda, onzemeses depois de Maria.

Agora a família já estava bem grande e as despesas também. A casa ficoupequena para tanta gente. Pedro teria de fazer mais um quarto para as crianças,além de limpar o restante das terras para aumentar sua plantação. Ele já haviacomprado mais duas vacas leiteiras e Márcia fazia três queijos por dia,

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vendidos no Lajeado todas as semanas. Já era uma renda a mais que o casaltinha para o sustento da família.

Pedro decidiu, então, preparar o restante das terras. Amolou muito bemsua foice e começou a roçar o mato. Já estava no final do serviço quando foipicado por uma cobra cascavel.

A picada foi em sua perna esquerda. Ele estava de bota de cano longo,mas a cobra perfurou a bota e atingiu sua perna. Ele ainda matou a cobra elevou para mostrar para a Márcia. Quando ela viu a cobra e soube que elahavia picado seu marido, desesperou-se.

Ele foi retirar a bota, mas sua perna já estava muito inchada. Foi precisocortar o cano da bota para retirá-la. Márcia não sabia o que fazer, mas oinstinto feminino falou mais alto. No seu desespero, ela pegou a navalha, fezum pequenino corte no lugar da picada e sugou com a boca o sangueenvenenado. Depois aplicou uma compressa de querosene, enfaixando a pernado marido com muito carinho, rezando a Deus que ele ficasse bom.

No outro dia, Pedro estava tão inchado que mais parecia uma bola. Nãotinha como pôr uma roupa nele. Ele pedia para a esposa abrir a janela, poisnada enxergava, dizendo;

— Está muito escuro aqui dentro. Por favor abra a janela.Márcia chorava desesperadamente. Avisou os vizinhos e parentes e pediu

ajuda. Quando Ezaías ficou sabendo, mandou um portador falar com ManoelOzires, um benzedor em quem todos tinham muita fé. Esse enviado levou trêsdias para retornar, trazendo notícias. Assim que chegou, foi perguntando o quehavia acontecido nesses três dias.

Márcia respondeu:— Ele vomitou uma espécie de clara de ovo, que guardei para quem

quiser ver.Respondeu o portador:— Graças a Deus ele está salvo e foi você quem o salvou, quando fez o

corte em cima da picada da cobra e sugou o sangue envenenado com sua boca.O Seu Ozires disse que era isso que tinha de ser feito e você fez, sem saberque estava salvando a vida de seu marido.

Márcia continuou rezando e pedindo a Deus pela saúde do marido. Osdias se passaram e Pedro continuava cego. Ela pedia de joelho para que Deuslevasse um de seus filhos, mas não lhe tirasse o marido. Sem um filho elapodia viver, mas sem Pedro, não.

Durante vinte dias ela repetiu o pedido com muita fé e sem remorso,entregando a Deus um dos filhos que tanto amava. No vigésimo primeiro dia,qual não foi a sua surpresa ao ouvir o marido dizer:

— Até que enfim você abriu a janela do quarto!

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Ele já não estava mais inchado e queria se levantar, dizendo que já nãoagüentava mais ficar na cama. Depois de vinte e um dias Pedro voltou aenxergar novamente e ficou completamente curado.

Márcia foi agradecer a Deus por ter recebido tão grande benção, dizendo:— Senhor eu vos prometi, aqui estou. Não me arrependo de ter

prometido um de meus quatro filhos em troca da vida de meu marido. Queseja feita a vossa vontade. Faço isso de coração limpo, sem remorsos e semlágrimas.

O pedido de Márcia, porém, não foi atendido. Deus não levou um de seusfilhos, após devolver a vida de seu marido. Dias depois, no entanto, o cão deguarda da casa amanheceu morto, Márcia entendeu a resposta de Deus. O cãoera muito estimado por todos da casa e as crianças choraram muito. Márciadisse aos filhos:

— Vamos enterrar o cão. Ele merece ser por nós enterrado.Pedro, depois de trinta dias, voltou ao trabalho e foi terminar o serviço

que havia sido interrompido. A terra deveria ficar preparada para a plantação.O pai de Márcia vendeu suas terras e foi morar perto da filha. Já não

tinha quem o ajudasse no engenho. Márcia guardou segredo de seu pedido aDeus e só muitos anos depois ela contou aos filhos. Pedro nunca ficousabendo que a esposa havia recebido aquela benção.

Ela sempre dizia:— A fé é o que nos salva. Devemos pedir a Deus em todas as situações

difíceis. Se tivermos fé, podem ter certeza de que somos atendidos.Pedro estava progredindo, agora as terras estavam todas cultivadas.

Márcia o ajudava na roça e cuidava das crianças. Ela já estava esperando umoutro filho e, mesmo grávida, não deixava de ir trabalhar.

Algum tempo depois nasceu um lindo menino, que recebeu a nome deJosé. Agora eram cinco filhos. Pedro dava duro na lavoura, pois a esposa jánão podia ajudá-lo no trabalho. Ele trabalhava por todos sem reclamar.

Pedro nunca mais visitou o pai, mas tinha notícias dele diariamente.Sabia que ele estava doente e quase na miséria. Certo dia, porém, veio anotícia de que o pai havia falecido e os irmãos o chamavam para osepultamento. Depois de dez anos ele voltava àquela casa que fora sua e quecontinha um grande mistério, que um dia seria revelado.

Pedro viu a madrasta toda vestida de preto, com o rosto coberto por umvéu preto, mais parecendo uma dama antiga. Ela não deixou cair a máscara deboazinha, fingida e esperta. Chorava a morte do marido dizendo:

— O que será da minha vida agora que perdemos tudo que tínhamos.Quem vai ajudar uma pobre viúva como eu.

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Dinha, a madrasta fingida e esperta, tinha escondido todo o ouro que erados filhos. Vendeu toda a boiada e o engenho, só deixando as terras paraserem divididas entre ela e os herdeiros. Se Dinha era esperta, seus filhos erammuito mais. Pegaram tudo que a mãe havia tirado.

Pedro, depois da morte do pai, voltou à casa grande, por várias vezes.Quando Márcia perguntava porque ele andava tão triste ele não dizia averdade.

— Nós estamos vendendo a fazenda e é por isso que tenho voltado lá.Vamos fechar o negócio por esses dias. Os compradores darão a resposta até ofinal de semana. Apesar de ser muita terra, o dinheiro será pouco.

— Seu pai tinha muito gado. Deve dar um bom valor.— Você disse certo: tinha, agora não tem nem um bezerro. Você não

sabe da verdade. Nós só temos as terras para serem vendidas.— E o que foi feito de tudo que era do seu pai?— Eu não sei e nem meus irmãos. Lá na fazenda não tem mais nada, a

não ser as terras.Quando Pedro recebeu sua parte da herança, tomou uma decisão. Falou

com a esposa que iria vender o pequeno sítio e que gostaria de comprar umbem maior em uma outra região. Andava triste, com uma profunda ruga emsua testa. Márcia andava também preocupada com a tristeza do marido eachou melhor concordar com ele, esperando que com isso a tristeza passasse.

Pedro saiu num final de semana para procurar um bom sítio paracomprar. Encontrou vários que estavam a venda, mas gostou de um bomterreno, com uma casa bem grande, com vários quartos. Era uma belapropriedade e o preço estava ao seu alcance. Deixou o negócio feito e pediuum prazo para fechar o negócio. Queria falar com a esposa e vender o seusítio, para depois fechar a compra das terras.

Márcia gostou do sítio, assim que viu as terras e a casa. Ela disse: —Vamos comprar. Eu gostei muito de tudo.

Eles já haviam vendido seu pequeno sítio e tinham todo o dinheiro para opagamento. O segundo sítio de Pedro era numa localidade chamada Douradãoe suas terras faziam divisa com um rico fazendeiro, que morava em São Paulo.A fazenda tinha seu nome, Luiz Pinto, próxima de Ipauçu, só de café. Alémdesta, havia também muitas fazendas de gado, do Garcia, do Tonão, doAlcalezes, do Gallos, do Cabral e muitos outros, com gado e café em suasterras.

A mudança para o novo sítio não foi de carro de boi, como as outras duasque já haviam feito. Pedro alugou dois caminhões para levarem tudo. Em umfoi a mudança e a família. No outro foram as vacas de leite, os bezerros e os

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porcos. Depois de instalados, Pedro disse a Márcia que não eram aquelas asterras que ele queria. Ele sonhava mais alto e queria conhecer novos lugares.

Márcia ficou furiosa e disse a ele:— Deixe de sonhar, homem, e vamos cuidar das terras que temos!Pedro coçou a cabeça, calçou suas botas e botou o chapéu. E a ruga em

sua testa voltou a aparecer.

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O MONJOLO E A PROFECIA

Algum tempo depois, a mãe de Márcia faleceu e seu pai ficou morandocom a irmã dele, Dora. Apesar da tristeza, Márcia estava decidida e queriaplantar milho, arroz, feijão e tudo o mais. Márcia também começou a sonhar.

— Quero que você faça também um monjolo, vamos fazer farinha paravender. Aqui todos os vizinhos tem um monjolo e fazem farinha para osgastos da casa e só a de milho amarelo. Nós vamos fazer a de milho branco.Farinha de milho branco.

— De onde você tirou esta idéia, Márcia?— Tem milho branco, não tem? Então nós vamos plantar milho branco

para fazer farinha e vender na cidade e em Ipauçu, Piraju e outras. São cidadesgrandes e têm bom comércio.

O idéia de Márcia deixou Pedro preocupado e, sempre que isso acontecia,a ruga em sua testa voltava a aparecer. Ele saiu decidido a realizar o desejo daesposa, porém, indo procurar alguém que pudesse explicar como fazer o talmonjolo, o que não foi difícil, pois havia alguém na região que se dedicava aesse ofício.

O mais difícil mesmo foi fazer o pequeno açude para a queda de águaque movimentaria o monjolo. Quando tudo ficou pronto, o milho branco jáestava pronto para ser colhido. O monjolo havia sido instalado num barracão àbeira da queda da água. A grande fornalha estava pronta, o tacho instalado, aslinhas preparadas e tudo pronto. A pequena fábrica de farinha foi entregue àdona, que ficou muito orgulhosa. Ela pensava que, com a nova atividade,Pedro não mais falaria em conhecer novas terras e deixaria de sonhar comsuas lavouras de café.

Com o milho colhido, começou a produção de farinha. Márcia era umamulher decidida e tinha que se desdobrar para enfrentar tanto trabalho.Começava com a preparação do milho, que era debulhado em uma máquinamanual, para depois ser socado no monjolo e retirado o farelo. O milho ficavacomo o da canjica.

Após isso, ficava de molho em grandes cochos de madeira por oito dias,lavado todos os dias com água corrente. Depois disso, o milho era retirado empequeno cestos de bambu. Depois de escorrida toda a água, ia para o monjolonovamente para fazer o fubá e, com ele, a farinha.

Márcia sabia fazer a farinha. Aprendera com uma vizinha, quandomorava no segundo sítio no Lajeado. Ela começou a sua fabricação com

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apenas cinco sacas de milho. Depois de pronta, lá foi Pedro para a cidade, comuma amostra, visitar os comerciantes para tirar pedidos.

O comentário foi geral. Eles nunca haviam visto uma farinha comoaquela, de milho branco, que era uma novidade, segundo eles. Pedro visitoudez comerciantes e cada um encomendou uma saca de trinta quilos da famosafarinha branca e ficou com uma amostra.

Assim que Pedro entregou os pedidos, os comerciantes disseram que afarinha já era famosa na cidade. Os pedidos foram de dez sacas por mês paracada um, sendo cinco sacas a cada quinze dias. Pedro ficou de boca aberta aoconstatar que Márcia tinha razão e que a tal fábrica de farinha dava mesmodinheiro.

Márcia ficou ainda mais atarefada, no meio de tantos pedidos, mascumprindo direitinho o prazo das entregas. Estava satisfeita, julgando que comisso Pedro não mais iria querer conhecer novas terras nem sonhar em serprodutor de café. Pedro, no entanto, não tinha deixado de sonhar. Ele só nãotinha era tempo para sonhar, pois sempre que ia jogar três-sete com seusamigos italianos, vinha com novas idéias e novos sonhos.

Um dia ele tocou no assunto com a esposa:— Aqui nós não temos futuro. Até quando você vai ficar trabalhando

dessa maneira? As meninas são pequenas para ajudar e você acabará ficandodoente de tanto trabalhar. Estou com umas idéias.

Márcia não esperou ele terminar e foi logo dizendo:— Lá vem você com suas idéias malucas. Deixe de sonhar! Bota seus pés

no chão e tire de sua cabeça esses seus sonhos. Você só pode estar brincandocomigo! Aqui nós somos felizes e nada nos falta. Temos nossas terras e afábrica de farinha. Por que você sempre quer mais? Eu faço queijo todos osdias e você vende todos os meses até cinqüenta queijos. Você está guardandodinheiro por quê? Você é um sonhador!

— Eu sonho com novas terras, sim. Aqui não dá para plantar minhalavoura de café.

Márcia sentia um aperto no coração. Sabia que ele jamais iria desistir.Foi logo dizendo:

— Lá vem você outra vez com a mesma ladainha. Eu já sei de cor tudoque você tem a dizer. Quando é que você vai deixar de sonhar? Olhe seusfilhos! Já estão crescendo e um outro que vai chegar em breve.

Pedro arregalou seus lindos olhos azuis e a voz não saía. Com um nó nagarganta, abraçou sua esposa e chorou.

— É por isso, Márcia, que eu quero conhecer outras terras. Eu não voudesistir. Muito em breve eu irei fazer uma viagem.

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Ela se calou. Sabia que seu marido jamais iria desistir dos seus sonhosmalucos de conhecer novas terras e de ter sua lavoura de café.

— Pedro sonhador — assim Márcia o chamava carinhosamente, — tomecuidado, homem, para não quebrar a cara, trocando o certo pelo duvidoso!Você parece uma criança teimosa quando fala de sua lavoura de café. Quer serum lavrador bem sucedido, mas você já é bem sucedido, pai de cinco filhos ede outro que vai chegar. Tome juízo e deixe esses seus sonhos malucos.

Pedro respondeu:— Jamais deixarei, jamais! Você terá uma grande surpresa em breve.

Aguarde! Aqui, na época da colheita do feijão, você sabe muito bem que asformigas saúvas carregam uma boa parte da safra. Não temos meio de acabarcom elas. Estão em toda parte. Por isso eu estou decidido a conhecer novasterras.

Ele tinha razão, pois era isso mesmo que acontecia. Márcia, muitopreocupada, resolveu procurar uma vidente, uma bruxa, conhecida comobenzedeira. Todos acreditavam em suas profecias. Ela morava num casarãoamarelo, temido por toda a vizinhança. Esse casarão fora de um senhor deengenho e ela se dizia neta desse senhor, dono do casarão. Era uma construçãocom mais de trinta cômodos. Na sala havia enormes mesas e cadeiras cobertasde veludo vermelho, vinte e quatro ao todo. Tapetes cobriam todo o assoalho.Os móveis eram os mesmos do antigo dono da casa. Suas cortinas de rendas,feita por escravos, gastas pelo tempo, ainda era impecavelmente brancas comdetalhes vermelhos, dando um toque de bom gosto naquela aposento sombrio.

Na sala de oração, como ela dizia, todos deviam tirar os sapatos e passarpor uma outra sala para ser purificado. Tinham ainda que lavar as mãos e ospés, antes de entrar na sala de oração, onde os visitantes recebiam uma rosavermelha, colhida no jardim do casarão, muito bem cuidado, demonstrando obom gosto de quem o tratava. Ali tudo era misterioso e o mistério queenvolvia o casarão era conhecido de poucos. Por isso ele era temido por toda avizinhança.

O temido casarão tinha uma enorme escadaria de mármore branca, commais de cinqüenta degraus na entrada principal. Diziam os mais antigos queem seus porões haviam ossadas de escravos presos nas correntes. Em suasportas ainda se via enormes cadeados, presos a correntes enferrujadas. O velhoengenho estava abandonado havia muitos anos e coberto pelas matas. Lá haviacasas velhas, caindo aos pedaços. Também ainda estava em pé o tronco e osrestos da senzala. No tronco, ainda havia correntes presas com enormescadeados, como os dos porões. Contavam as pessoas que nos seus grandesbananais e nos restos de canaviais ao redor do velho engenho se ouviam, em

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noites escuras sem luar, choros e gargalhadas. Diziam que eram as almaspenadas dos escravos mortos e dos feitores do engenho.

Muitos visitantes vinham em seus cadilaques reluzentes. Eram as esposasdos coronéis da região. Todos acreditavam nas previsões da benzedeira, porisso Márcia foi fazer uma consulta. Depois dos rituais, ela e uma das filhasentraram na sala de oração.

Havia um grande altar com toalhas de renda branca, várias imagens desantos e retratos dos antigos donos do casarão. As duas foram apresentadas atodas as imagens, uma por uma, e também aos retratos que ali estavam,citando nome por nome. Depois foram convidadas a se sentar. Havia uma filade cadeiras, com duas delas colocadas mais à frente, em destaque. Parecia queela já estava esperando as duas visitantes.

A benzedeira ajoelhou-se em frente ao altar e começou a falar.— Eu sei porque você veio aqui. A mudança vai acontecer. Não adianta

você falar. Está escrito no livro do destino da família. Eu ouvi de todos ospresentes neste altar e foi esta a resposta. Vocês terão muito trabalho e vãosofrer muito. Nem todos os seus filhos serão felizes. Um outro filho vainascer, além desse que você está esperando. Ele vai chegar na nova terra,naquela que vocês vão comprar. Vai ser um garoto, não vai ter boa saúde, masvai ter vida longa. Vocês vão vencer. Seu marido terá sua lavoura de café eserá bem sucedido. Vai demorar alguns anos, mas a mudança será em breve.

Márcia não havia feito nenhuma pergunta. A benzedeira respondeu tudoque ela queria sem que ela tivesse perguntado. Impressionada com asprofecias, Márcia pediu para a filha não contar nada para ninguém. Seria umsegredo das duas.

A imagem da benzedeira jamais foi esquecida por Márcia. Suas vesteseram brancas, com uma saia longa de renda e um turbante branco na cabeça.Ela se vestia assim para seu ritual de orações.

Ela continuou a trabalhar na fábrica de farinha, três dias por semana.Fazia dez sacas por dia e assim podia fazer as entregas dos pedidos, que erammuitos. Para ela, o monjolo era o seu patrão. Ele tinha pressa de triturar omilho e fazer o fubá, que depois ia para o grande forno. Ela era rápida aopeneirar uma fina camada de fubá sobre o tacho quente e retirar em seguida,no tempo certo, para não queimar a farinha. Uma das filhas controlava o fogoda fornalha para que a temperatura fosse constante.

Com o tempo, ela teve que diminuir a produção. Sua barriga estava cadavez maior e tinha muitas dores nas costas. O calor da fornalha podia prejudicaro bebê, por isso Maria foi trabalhar no lugar da mãe. Ana tinha que lavar omilho e pôr no pilão do monjolo para socá-lo. Benvinda cuidava do fogo,mantendo sempre a temperatura controlada.

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Depois que o bebê nasceu, Márcia assumiu de novo o comando dafabricação de farinha. Tinha muitos pedidos atrasados e teve que pôr em diatodas as entregas. Pedro andava com aquela ruga na testa, preocupado com aquantidade de trabalho da esposa.

Um dia voltou a tocar no assunto.— Eu vou conhecer novas terras!Márcia não esquecia da profecia da benzedeira, e, muito preocupada com

o bebê, foi logo dizendo:— O que está acontecendo com você? Eu dou um duro no trabalho e

você ainda não esqueceu dessas benditas terras. Se você não esquecer dessasidéias de conhecer novas terras, eu deixo de trabalhar no monjolo. Você podeescrever! Principalmente agora que entraram no mercado novos fabricantes,que não fazem como nós fazemos. Usam fábricas elétricas, sem tanto trabalho.

A partir de então, Márcia diminuiu ainda mais a produção e passou afabricar a farinha só para fregueses especiais e cuidava dos filhos com maisatenção. Pedro decidiu que aquela era a hora de resolver o assunto de uma vezpor todas. Esperou mais alguns dias, até que ela ficasse mais calma, mas antespreparou tudo para depois lhe contar.

Márcia foi se acalmando, mas não conseguia esquecer as palavras dabenzedeira. Sabia que a mudança iria acontecer. Estava escrito e não podia sermudado.

Certo dia, inesperadamente, Pedro disse à esposa:— Eu vou viajar por estes dias e não adianta você dizer que é loucura

minha.— Para onde você vai, assim de uma hora para outra? Pense bem no que

você vai fazer. Eu já lhe disse mil vezes, mas você é mais teimoso que umamula.

Ele abraçou sua esposa e pediu:— Me deseje boa viagem!— Está bem, faça o que você quiser e que Deus o acompanhe!Pedro rapidamente soltou seus cabelos, deixando-a toda despenteada.

Ele, abraçado a esposa, disse-lhe com muito carinho:— Vou conhecer o sertão do Paraná. Dizem que suas terras são muito

férteis e produtivas. Lá nós teremos futuro e nossos filhos terão mais fartura.Eu vou plantar minha lavoura de café tão sonhada.

— Está bem! — respondeu Márcia.Ela via, nos olhos azuis do marido, um brilho estranho e aquela ruga já

não estava mais na sua testa. Na semana seguinte, lá ia Pedro sonhador, comseus sonhos em sua bagagem, para a tão sonhada viagem ao sertão do Paraná.Ele, um pequeno lavrador sem grande futuro, nas terras cheias de formigas

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saúva, ia conhecer a terra prometida. Agarrado aos seus sonhos ele iriaconhecer novas terras. Havia muito ele sonhava em fazer essa viagem.

Pedro não tinha pressa. Ele iria escolher suas terras e, para isso, teriamuito tempo para fazer a escolha certa. A viagem foi num trem lento ebarulhento. Quando passou o rio Paranapanema, ele ficou encantado com asmatas que ladeavam a ferrovia. Era seu grande sonho conhecer aquelas terras.Chegou em Bandeirantes, desceu na estação e pediu informações. Tinha umamigo, que morava na região. Percorreu várias fazendas, mas sem sucesso.Conheceu a fazenda Dois Irmãos, onde o amigo havia morado. Ali elearrumou um trabalho para a família, na colheita do café.

Seguiu em frente, então, tomando outra vez o trem que o levaria a umlugarejo perdido, dentro do sertão paranaense. Quando ele desceu na estação,leu em uma placa de madeira: Pirianito!

— Cidade dos sonhos dos imigrantes! — disse um senhor nordestino.Pedro conversou com ele e ficou sabendo que era nordestino, que viera

para fazer derrubada de matas. Disse que era muito bom de machado e foice eque sabia usar o facão e a espingarda.

Pedro foi até uma pensão para guardar as malas e descansar um pouco. Adona da pensão serviu um almoço a base de carne seca, feijão e farinha demandioca. Ele perguntou onde ficava a companhia que vendia terras, foiinformado pela dona da pensão. Lá ele foi muito bem recebido pelo SenhorNambei Tochi, que deu todas as informações que ele queria saber, mostrandoum mapa completo, com as terras já vendidas e as que estavam à venda.

Depois, em um jipe da companhia, percorreu toda a região. Pedro ficouencantado quando pisou naquelas terras vermelhas. Ele escolheu o seu lote deterra e fechou o negócio. Deu uma entrada e o restante seria pago com seismeses de prazo. Assinou os papéis necessários, pegou o recibo comprovando acompra das terras e agradeceu a Deus por ter realizado seu grande sonho.

Depois de quinze dias, ele voltou para a casa. Já tinha arrumado uma casana fazenda Dois Irmãos. Era um rancho de palmito, coberto por tabuinhas, dechão batido, sem conforto algum, mas era um teto, o único disponível nafazenda. Era igual a todas as outras casas da fazenda.

Márcia iria reclamar, ele tinha certeza. A casa onde eles moravam erauma mansão, com todo o conforto. O que ele podia fazer tinha feito. Nocomeço seria difícil, isso ele sabia.

Já de volta, Pedro foi logo dizendo:— Comprei as nossas terras. Eu sou o homem mais feliz deste mundo.

Vamos mudar em trinta dias.Márcia disse:— Você está maluco! Acorda homem, deixe de sonhar!

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Pedro abraçou a esposa e disse:— Não estou sonhando, estou falando sério.— Como vamos mudar? E as nossas coisas, o nosso gado e tudo que

temos? Como vai fazer esta mudança? Você só pode estar sonhando!Pedro guardou o chapéu, retirou o paletó e a velha guaiaca surrada que

ele tinha orgulho de usá-la, presente do seu falecido irmão. Sentou-se em suacadeira de balanço, tirou suas botas de cano longo e disse:

— Vou vender tudo de porteira fechada. Só vamos retirar a mudança e aégua Faceira. O resto será tudo vendido.

Márcia começou a chorar, abraçou os filhos e disse:— O pai de vocês endoidou de vez!Ele não estava doido. Tinha começado uma nova etapa da sua vida e da

família. Márcia tinha que aceitar. Pensava na profecia da benzedeira e sabiaque a mudança iria acontecer, porque estava escrito em seus destinos.

Entre soluços, Pedro disse:— Lá as terras são vermelhas, não é areia como a nossa aqui. Lá é a terra

dos meus sonhos. Não faça isso comigo. Eu estou lhe pedindo! Eu nunca fizum mau negócio, você sabe muito bem. Eu só quero o melhor para nós e paranossos filhos.

Márcia, ainda chorando, falou:— Lá deve ter até onças.— E tem mesmo — respondeu Pedro, abraçando a esposa, cobrindo-a de

beijos e desfazendo seus cabelos.Era o que fazia quando estava feliz.— Então, você vai? — insistiu ele.— Vamos! — respondeu Márcia, ainda chorando. — Não tem perigo

mesmo? Você tem certeza?— É claro que tenho. Lá mora muita gente e tem muitas lavouras de café.A conversa se prolongou até tarde da noite. Ele deu todos os detalhes

sobre a compra e sobre a terra onde iriam morar. Márcia não dormiu naquelanoite. Na manhã seguinte, levantou-se muito cedo, fez café e levou para omarido na cama.

Pedro tomou o café e disse a esposa:— Eu vou procurar o Seu Garcia. Tenho certeza que ele vai comprar

tudo, de porteira fechada.Não foi difícil fazer a venda das terras. Seu Garcia aceitou tudo como

Pedro queria e ainda pagou mais do que Pedro esperava. Com isso poderiapagar o restante de suas novas terras, fazer a mudança e ainda sobrariadinheiro para começar uma vida nova nas terras dos seus sonhos.

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Havia pouco tempo para encaixotar tudo, porque a mudança seriadespachada de trem. Quando estavam prontos para partir, os filhos estavammuito assustados, agarrados à saia da mãe, que chorava sem parar. Ela seculpava por ter deixado de trabalhar no monjolo, fazendo a famosa farinha demilho branco. Por outro lado, as palavras da benzedeira não lhe saíam dacabeça. Tinha muita fé em Deus, mas Márcia chorava sem parar. Pedrotentava consolar a esposa, mas ela só chorava e dizia:

— Como vamos fazer em um lugar estranho, onde tem até onça?Pedro dizia:— Não tem perigo! Você vai gostar, tenho certeza. No começo vai ser

difícil, as crianças vão estranhar. Lá o clima é diferente daqui, é bem maisfrio, mas nosso sítio é lindo. É uma grande mata virgem, sem nenhuma árvorederrubada.

O medo e a insegurança nublavam os olhos vermelhos de Márcia. Eassim foram eles, ao encontro da profecia.

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A PEROBA E A CASA

As crianças ficaram encantadas. Nunca haviam viajado de trem e paraelas foi uma aventura fantástica. As matas que ladeavam a linha de trem nãotinham fim. A viagem correu bem. Pedro estava tão feliz que não parava defalar no sítio e na mata.

— Mas lá tem onças? — perguntou um dos filhos.— Sim — respondeu o pai.— É verdade que elas comem gente?— Não é verdade. São histórias de gente boba, que gosta de inventar

coisas só para amedrontar as crianças. No nosso sítio não tem onças, mas lápor perto deve ter alguma onça pintada e jaguatiricas, mas elas não comemgente. Vocês podem ficar sossegados, não há perigo.

Pedro e a família chegaram em Bandeirantes. Num caminhão, levou amudança para a fazenda Dois Irmãos. Era dia doze de junho de mil novecentose quarenta e dois. Foi nesse ano a grande geada no Paraná. Grande foi asurpresa de Márcia ao ver a casa em que iriam morar. Chorando muito, eladisse ao marido:

— Isto aqui você chama de casa? Mais parece uma choupana de índios.Nunca vi coisa igual. Se isto aqui é casa, o nosso paiol lá do outro sítio erauma mansão.

Ela chorou o dia inteiro, sentindo aquele frio insuportável e vendo orancho sujo, cheio de palhas de milho e de tranqueiras velhas. Chorando, diziaque não ficaria ali e queria ir embora. A noite chegou e depois de uma refeiçãoquente, todos foram dormir. Márcia chorou a noite toda. O frio era demais e acama não esquentava. Ela foi olhar os filhos. Ao ver Lúcio enrolado numpequeno cobertor, todo branco da geada, começou a gritar, dizendo que o filhomorrera congelado.

Lúcio retirou o cobertor e disse:— Eu estou com frio, mas não estou morto.Márcia não tinha cobertores para agasalhar os filhos. Na região onde

haviam morado, o frio não era intenso, o clima era temperado e ninguémconhecia as geadas. Desesperada, ela disse ao marido:

— Eu aqui não vou ficar. Trate de procurar uma outra fazenda que tenhauma casa melhor, cercada de tábuas e coberta com telhas.

Sem outra alternativa, Pedro saiu à procura de uma outra fazenda. Logona primeira, encontrou Seu João e Dona Carola. Explicou a situação ao

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fazendeiro, que ficou penalizado, cedendo uma de suas casas na grandecolônia que ele tinha na fazenda de café.

A geada provocou grandes perdas, para todos os fazendeiros. A fazendado Seu João estava seca, o cafezal, queimado até no tronco. Foi perda total noscafezais.

Mudaram-se novamente. Agora Márcia não mais chorava, mascontinuava pensando nas palavras da benzedeira, que dissera que iriam sofrermuito, venceriam, mas nem todos os seus filhos seriam felizes. Ela sofriarecordando a casa grande do outro sítio, o paiol, a cachoeira, o estábulo e omonjolo. Quanta saudade!

Pedro e a família ficaram naquela fazenda apenas oito meses. Seu João ea esposa eram gente muito boa e ajudaram muito a Pedro e Márcia, levandoem seu próprio caminhão a mudança do casal, para ser despachado no trem decarga de Bandeirantes para Pirianito.

Pedro já havia arrumado uma casa na fazenda do Seu Luiz, filho deimigrantes japoneses. A família de Pedro seguiu rumo a terra prometida.Passaram pela balsa do rio cinza e seguiram.

Pedro sonhador não queria acordar, ao chegar na terra escolhida. Márcia,então, disse ao marido:

— Vamos lutar juntos. Com fé e coragem nós vamos vencer, se Deusquiser. Você tinha razão. Nesta terra vermelha vamos trabalhar juntos e criaros nosso filhos. Plantaremos sua tão sonhada lavoura de café.

Chegando na fazenda do Seu Luiz, foi um choque para Márcia. A casaera igual a primeira em que tinham morado, cercada de palmito e coberta detábuas. Ela começou a reclamar da casa. Pedro pedia paciência, até construir acasa do sítio.

— A casa vai ser igual a esta? — perguntou Márcia, aflita.— Não vai ser igual a esta. Vai ser cercada de tábuas e coberta com

telhas. Fique tranqüila, vai ser uma casa decente.Pedro ficou receoso, vendo os moradores da fazenda enrolados em

cobertores, sentado ao sol, tremendo de frio. Era a terrível maleita. Ele tevemedo que a família pegasse a doença. Esse medo era maior do que os seussonhos.

Márcia lutou junto com o marido e os filhos, dando força e coragem.Com muita fé dizia que iriam vencer, mas chorava escondido, recordando ooutro sítio, a casa grande, o pomar e a fábrica de farinha. Ela se culpava porter deixado de trabalhar e por não ter tido forças para tirar da cabeça dele seussonhos malucos de conhecer novas terras. Agora tinha que enfrentar tudo,morando numa casa que mais parecia uma tapera. Nem os índios moravam

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numa casa assim. Acha que a culpa de tudo era dela. Se fosse mais exigente,não estaria numa casa como esta.

Pedro sempre foi um homem honesto. Cumpriu com o contrato, fazendoo pagamento do restante da dívida no dia certo. Foi, então, falar com oengenheiro para providenciar a marcação das divisas, fazendo a picada ecolocando as marcas, para as terras serem liberadas. Tomou todas asprovidências para escritura definitiva das terras e em dois meses ele estavacom as terras legalmente suas.

Outro compromisso foi contratar peões com prática em desmatamento,providenciar as ferramentas, foice, machado e o trançador, um serrote comdois metros de comprimento, manejado por duas pessoas, uma em cadaextremidade. Providenciada as ferramentas, não foi difícil reunir o pessoalcom prática na derrubada de matas. Depois contratou um bom cozinheiro, quetinha suas panelas de ferro, enormes caldeirões e todos os utensíliosnecessários. Foi feita a lista de mantimentos: feijão, arroz, farinha demandioca, sal, açúcar, banha, sabão e muita carne seca, o jabá.

Compra feita, tudo pronto, os peões foram fazer o rancho. Tinha que serbem grande para abrigar todos os peões e guardar os alimentos. Seria cobertode sapé até o chão, para proteger da chuva e do vento. Em dois dias ele estavapronto. Os peões se mudaram para lá, levando seus galos de briga e suasroupas em sacos.

O rancho era perto do riacho, onde tiravam a água para beber e cozinhar.O banho era tomado no rio, quando dava coragem. A rotina ali era trabalhar,comer e dormir.

Pedro sonhador não tinha tempo de sonhar. Márcia rezava e pedia a Deusque os protegesse, porque o trabalho era muito perigoso. Havia casos de peõesque ficaram presos debaixo das árvores ao cair e morreram sem ser socorridosa tempo.

Começou, então, a derrubada. Em uma pequena clareira foi cortada aprimeira árvore. Pedro reservou uma pequena área da mata, junto ao riacho,até hoje intocável. O trabalho era difícil e todos tinham que tomar muitocuidado para que não ocorressem acidentes. O serviço seguiu em ritmo lento.

Os peões diziam:— É assim mesmo Pedro. Temos que tomar cuidado. O senhor sabe, o

trabalho é perigoso.Após dois meses derrubando a mata, chegavam à parte mais fechada.

Quando Pedro chegou em casa, disse à esposa com um nó na garganta,— Hoje eu realmente fiquei triste, Márcia.— O que foi que aconteceu? Alguém se machucou? Pedro, pelo amor de

Deus, fale, homem!

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— Nada disse aconteceu, mulher. É que hoje foi derrubada a maiorárvore que havia na mata. Era uma peroba com mais de cinqüenta metros dealtura. Devia ter mais de cem anos. Depois de cortada, ela caiu com umgrande gemido de dor, levando junto dezenas de árvores pequenas. Márcia,Márcia, me ajude! Eu jamais irei esquecer o gemido daquela árvore.

Pedro abraçou a esposa e chorou. Chorou muito naquela noite. Dormiu enão sonhou. No outro dia ele foi ver a árvore cortada e ficou em pé, junto aotronco, que era mais alto do que ele. E Pedro tinha quase dois metros de altura.

— Que pena! — disse ele.A derrubada foi terminada, agora era hora de atear fogo em tudo. Estava

tudo seco. Não havia chovido. Era a hora certa. Com a ajuda dos peões aqueimada foi feita, mas ficaram muitos galhos sem queimar.

As dificuldades foram muitas. Márcia foi uma mulher de grande força devontade, com muita fé em Deus. Lutava junto com o marido, mas aindahaviam muitas outras etapas para serem vencidas. Pedro sonhador nãosonhava mais. Não tinha mais tempo. Agora ele vivia a realidade e a realidadeera dura e cansativa. A ajuda de Márcia, seu amor, seu carinho e sua coragemlhe davam forças para continuar.

Márcia disse ao marido:— Você não vai desistir agora, depois de tanto trabalho, continue

sonhando Pedro. Eu me sinto mais forte com seus sonhos. Vamos em frente,vamos continuar a lutar juntos, por nós e por nossos filhos. Com fé em Deusnós vamos vencer.

Nessa noite, Pedro dormiu como uma criança. Pela manhã, quandoacordou, chamou pela esposa:

— Perdi a hora mulher. Por que não me acordou?— Hoje é domingo, dia de descanso. Continue na cama. Está frio e as

crianças estão dormindo. Fique sossegado. Durma mais um pouquinho, eu voufazer café.

Márcia preparou o café e levou para o marido na cama. Ele tomou aquelecafé gostoso que só ela sabia fazer e disse:

— Nós vamos vencer.— Você ainda tem dúvida disso? Onde está aquele homem cheio de

sonhos, coragem e fé? Sonha Pedro. Nunca deixe de sonhar. Seus sonhosserão todos realizados. Eu acredito em Deus.

Carinhosamente abraçou o marido e beijou sua face. Como era lindoaquele amor de Pedro e Márcia! A coragem e fé faziam de Pedro sonhador umguerreiro.

Depois de três meses de muito trabalho, Pedro foi até a serraria e vendeutoda a madeira grossa, as toras. A madeira fina foi vendida para o lenheiro,

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que a entregava nas olarias da região. Pedro não derrubou toda a mata do sítio,deixou uma parte da mata como reserva.

Os peões ainda tinham muito serviço pela frente. Eram, em sua maioria,nordestinos que deixaram sua terra natal para tentar a vida no Paraná. Pararetirar a madeira, Pedro e os peões improvisaram uma estrada para ocaminhão. Era um serviço muito perigoso. Os cabos de aço que prendiam astoras de madeira tinham de estar sempre bem presos para que elas não sesoltassem e provocassem um acidente.

Depois da queimada e da retirada da madeira, ficaram ainda muitosentulhos. A terra tinha que estar limpa para a plantação dos cereais. O serviçoduro foi feito a machado e foice. Os peões voltaram a trabalhar para Pedro,cortando os restos de madeira, amontoando tudo e ateando fogo. Pedro e seusfilhos, mais o empregado João Américo, vulgo Baiano, prepararam o terrenopara a construção da casa do novo sítio.

Pedro, ao vender as toras, já comprou a madeira para a casa. Como elenão entendia nada de construção, procurou um vizinho e recebeu algumasexplicações detalhadas. A contração exigia muito cuidado para não cortar omadeiramento errado. Inexperiente, ele cometeu alguns erros, mas seguiu emfrente. A casa era grande, com cômodos e área de serviço. Na hora de colocaras telhas, ele chamou o vizinho para ajudá-lo. O serviço foi rápido.

A essa altura, Márcia e a família participavam. Todos se levantavam àscinco da manhã e para a longa caminhada até o sítio. Eram mais de trêsquilômetros para chegar até lá. A estrada era uma picada improvisada porPedro. Márcia punha as panelas no fogo para preparar o almoço. A carne seca,o jabá, era indispensável na alimentação. Entravam também no cardápio acarne de porco ou a de frango e a farinha de mandioca, muito usada na região.

Quando tudo estava pronto, era levado em caldeirões de alumínio. Emuma sacola iam os pratos de louça, que depois foram substituídos pelos deesmalte, porque as crianças quebraram todos, deixando a sacola cair no chão.José e Benvinda eram os encarregados de levarem a comida para todos. Erauma longa caminhada até o sítio, carregando os caldeirões pesados, cheios decomida. Quando chegavam, a bóia já estava fria.

O percurso era feito com muito medo. Na picada que cortava a matahavia manadas de catetos, antas, queixadas, onças, capivaras, jaguatiricas,veados e quatis. Os veados tinham o porte de um bezerro, mas não eramperigosos. Transitavam livremente, sem causar medo à ninguém. Os gatos domato já eram de dar medo. Eram muito grandes e quando um deles via ascrianças, parava e se arrepiava todo, abrindo a boca e fazendo um ruído dedeixar qualquer um arrepiado.

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Pedro levava o café, que depois era aquecido no fogão de pedra dospeões. O feijão e a carne também eram esquentados ali. Enquanto os peõeslimpavam a terra, queimando os entulhos, Pedro e os filhos, mais o Baiano,levantavam a casa, que ficou pronta depois de três meses. Pedro arrumou umcaminhão de puxar toras para levar a mudança.

No último dia, quando terminou a casa, Benvinda e José tinham levado oalmoço e, como estava muito frio, ficaram para voltar juntos com todos. Sófaltava recolher as sobras da construção e guardar as ferramentas. A casaestava pronta, com as chaves nas portas e as janelas com trancas tramelas.Começou um vento frio e uma garoa gelada. Em pouco tempo todos estavamduros de frio.

Era a tal geada negra. Foi uma provação terrível para Pedro e para afamília chegar em casa. Já passava das três horas da tarde, quando issoaconteceu e Márcia já os esperava com muita água quente para o banho detodos e uma suculenta sopa de mandioca, reforçada com lombinho de porco ecostelinha defumada.

Depois do banho e da sopa quente, os filhos foram para a cama. Pedro eMárcia ficaram se aquecendo no grande fogão de lenha, que mais parecia umalareira. O vento entrava dentro da casa pelos buracos na parede. Pedro diziaque a geada mataria os mosquitos da maleita.

Não foi possível mudar-se no dia seguinte. O frio era intenso e o vento,muito forte. O grande fogão da casa nova tinha de secar ainda o cimento e, porisso, o fogo não poderia ser acendido. Três dias depois, a mudança foirealizada. Márcia ainda não havia visto a casa nova. Assim que chegaram, elacomeçou a chorar.

Pedro perguntou a ela:— Você não gostou da nova casa?— Sim, eu gostei — respondeu ela chorando e abraçou o marido. —

Estamos vencendo.Pedro sonhador agradeceu a esposa:— Devo tudo a você. É meu anjo da guarda. Sem você jamais iria chegar

até aqui.Márcia disse ao marido:— Agradeça a Deus, Pedro. Foi Ele que realizou mais esse sonho. Ainda

faltam muitos outros, até que você seja um bom lavrador e dono de suaplantação de café.

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O FEIJÃO E O MUTIRÃO

Pedro tinha feito um poço, que ficava uns cinqüenta metros longe dacasa, com água muito boa. Ele descobriu uma nascente de água cristalina parao uso da casa e o poço era só para lavar as roupas da família. Construiu umoutro cômodo para guardar as ferramentas. Assim, finalmente, a família estavabem instalada. Chegava a hora de preparar a terra para plantar milho, arroz efeijão.

Havia sobrado muita madeira, que seria aproveitada para fazer mourões epalanques para as cercas de arame farpado, onde seriam guardados os animais.O restante era para o consumo do fogão.

Pedro, ao vender a madeira, recebeu uma grande soma em dinheiro eassim pôde pagar todas as despesas com os peões. Retirou a escrituradefinitiva da sua propriedade e o que sobrou foi o primeiro lucro. O trabalhode toda a família não tinha preço.

Pedro tinha agora que comprar as máquinas manuais para plantar o milhoe o feijão. Além disso, os troncos das árvores cortadas brotavam e tinham queser cortados com enxadas ou facão. Depois da terra preparada, caiu uma boachuva. Começaram a plantação. Um vizinho lhe vendeu as sementes do milhoque tinha sobrado da sua plantação e ensinou como manejar a máquina. Era demadeira e, para plantar, tinha de ser bem rápido, batendo na terra, abrindo efechando e deixando as sementes na pequena cova feita.

O milho foi plantado e precisavam ser cuidado, capinando o mato quebrotava. Era serviço que não acabava mais. Chegou, em seguida, a época deplantar o feijão, mas antes era preciso dobrar os pés de milho, i, trabalhoextremamente cansativo, mas tudo foi feito na época certa.

Todos já tinham um pouco de prática em manejar as máquinas, mas,mesmo assim, ainda batiam-na sobre os dedos dos pés, sem ferimentos graves,porque todos usavam as botinas protetoras. No fim da tarde, Pedro, olhava asterras que tinham recebido as sementes, e dizia:

— Hoje plantamos um pouco mais que ontem. Amanhã vai ser aindamais e logo todo o feijão estará plantado.

Foi a maior plantação que Pedro já havia feito, graças à ajuda dos filhos.Em pouco tempo o feijão cresceu e era preciso continuar a cortar as plantasnativas que cresciam junto com ele. O serviço era cansativo, mas todos ofaziam com muito prazer.

Pedro sonhador esquecia de sonhar. Era tanto serviço que ele só pensavaem vencer. Márcia vivia atarefada e com tantas surpresas agradáveis. Todos os

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dias, na hora da janta, era narrado a ela tudo o que tinha acontecido durante odia no trabalho da roça.

Um dia aconteceu um fato interessante com Lúcio, o filho mais velho dePedro. Ele estava capinando quando apareceu um enorme lagarto. Ele tentouacertá-lo com a enxada, mas o lagarto correu muito e Lúcio correu atrás. Olagarto, então, inesperadamente mordeu o próprio rabo, aparando-o quase pelametade e desapareceu no meio do mato. Lúcio pegou o rabo do animal e levoupara mostrar a todos. Contou o que havia acontecido e essa façanha ninguémesqueceu.

São Pedro mandou chuva suficiente para o feijão crescer e pegar umacarga de vagens nunca visto por Pedro e Márcia. Ela, todo final de tarde, iajuntar-se a família e admirar a lavoura de feijão. Quando chegou a colheita,Pedro, sua família e o Baiano o arrancaram em uma semana. Márcia e uma dasfilhas preparavam a comida para todos e levavam na roça o almoço da família.Já deixava sobre o fogão o feijão cozinhando para o jantar.

Márcia agora não chorava mais escondido. Ao ver o marido sujo de terravermelha, chorava limpando seu rosto, dizendo:

— Valeu a pena tanto trabalho!As lágrimas corriam em seu rosto e Pedro as enxugava com carinho,

deixando em sua face a marca da terra vermelha.Um dia Márcia o abraçou e disse:— Você não sonha mais, Pedro.— Sim — disse ele, — é claro que eu sonho. Eu sou um sonhador, é você

que sempre me diz. Ainda falta muito. Vamos ter que trabalhar muito ainda.Agora vamos ter que bater todo esse feijão.

Ele havia calculado sua produção em duzentas sacas. Antes de mais nada,precisava de uma carroça para transportar sua primeira safra de feijão.Comprou uma, feita em Ourinhos, recém-saida da fábrica. Adquiriu tambémum cavalo, que foi batizado de Paxola.

Restava bater o feijão. Após consultar seus vizinhos, Pedro decidiu o quefazer e avisou a esposa.

— Vamos fazer um mutirão. Já falei com os vizinhos e eles me deramessa idéia. Já está tudo combinado. Em dois dias nós bateremos todo essefeijão.

Márcia nunca tinha lidado com essa situação, mas as vizinhas já estavamacostumadas com essas reuniões. Todas se prontificaram a ajudá-la a fazer acomida para os homens. Foi feita uma lista de tudo que seria consumido e ospreparativos foram encerrados. O sol já havia secado todo o feijão que foraarrancado e preso em cima dos pés de milho. O sol estava bom. Foram doisdias de muito trabalho sério para trinta homens adultos. Uns carregavam o

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feijão em grandes feixes preso por uma corda, outros colocavam em cima dosencerados, outros batiam com varas e cambaus, outros abanavam e outrosensacavam.

Era um trabalho como o das formigas. Todos juntos fazendo cada um asua parte e ninguém cobrava nada pelo serviço. E, assim, todos juntosajudavam um vizinho apurado, principalmente na colheita do feijão. Foramdois dias de festa, muito trabalho e muita comida e alegria para todos queparticiparam do mutirão.

Ao contar as sacas, Pedro não acreditou na quantidade. Foram colhidastrezentas sacas de feijão abanados e de sessenta quilos cada. O rancho que elehavia construído no meio do sítio não deu para guardar nem a metade da safrade feijão. O restante foi guardado em mais dois ranchos dos vizinhos. Lúcio eBaiano transportaram com a carroça, puxada por Paxola. O trabalho começouna quinta-feira e terminou na sexta-feira. No sábado, foram todos convidadospara uma grande reunião de encerramento, uma festa para todas as famíliasque participaram do mutirão, com os filhos e parentes.

As vizinhas ajudaram na preparação do grande almoço. Márcia cuidavado grande fogão a lenha. Era comida que não tinha fim. Nos grandes tachosforam feitos frango ensopado, lombo recheado, frango com macarrão emacarronada, além de leitões e frangos assados no forno a lenha e muitasalada e farofa.

Foi uma reunião inesquecível. À noite, houve a famosa catira do interiorde São Paulo, rodadas de truco e escopa. O três-sete ninguém sabia jogar. Paraos mais jovens, houve baile numa grande barraca de lona. Foi uma festa muitoespecial para a família de Pedro.

No domingo amanheceu chovendo e choveu durante uma semana. Pedrodeu graças a Deus e aos vizinhos pelo feijão estar todo guardado nos ranchos.Ele havia gasto na alimentação de todos, em três dias, vinte leitões, cinqüentafrangos, carne de um porco gordo inteiro, um saco de feijão, dois sacos dearroz e um saco de farinha de mandioca, dois sacos de macarrão e váriosgarrafões de vinho. Com dez sacas do feijão vendido deu para ele pagar toda adespesa do mutirão.

Pedro comprou vários porcos de cria e engorda. Leitões já eram criadosno mangueirão e frangos caipiras povoavam o terreiro da casa. Pedro tinha detudo em grande quantidade. Ele se lembrava da casa do pai com tristeza,quando a madrasta escondia comida e ele passava o dia sem comer. Não sentiasaudades desse tempo. Ele só tinha muita tristeza. Dizia ele a esposa:

— Eu jamais terei coragem de negar um prato de comida a um estranho.Dinha me negava o direito de entrar na minha própria casa e de falar com meupai. Dele, sim, eu tenho saudade. Que Deus o tenha em sua santa Glória. Ele

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sofreu muito com a mulher, mas ela foi muito infeliz depois que meu paifaleceu. Seus filhos a abandonaram e tiraram tudo que ela tomou de meu pai.Ela foi castigada por Deus.

Márcia vivia atarefada com tanto trabalho, mas a profecia da benzedeirasempre lhe voltava a mente. Ela dizia para si mesma:

— Ela disse a verdade. Até agora deu tudo certo. O filho que vai chegarnão terá boa saúde, mas terá vida longa. Eu só vou ter certeza de tudo, quandoos fatos acontecerem. Tenho medo até de pensar.

Pedro a chamou, trazendo-a de volta a realidade. Encabulada disse:— O que você quer, homem. Você me deu um susto!— Estava sonhando mulher?— Eu não! — respondeu — Só faltava essa agora. Eu sonhando.Ele tinha razão. Pedro a chamou para avisar que iria a cidade, vender o

feijão. Selou sua égua Faceira, colocou sua guaiaca nova e lá foi ele à cidade,vender sua grande safra de feijão. Só tinha um cerealista comprador.Combinaram o preço e acertaram a venda. O pagamento era feito só depois daentrega.

— E quando é que seu feijão vai ser colhido? — perguntou o comprador.— Com essa semana de chuva, seu feijão deve estar todo brotado, seu Pedro.

— O feijão já está colhido, Seu Martins, e está guardado nos ranchos. Osenhor pode ir buscá-lo hoje mesmo.

— Pedro, você é um homem de sorte. Esta compra é a primeira que façoeste ano. Está de parabéns.

Foram vendidas trezentas sacas de feijão. Pedro reservou quinze sacaspara o gasto da família e o restante para o novo plantio. Seu Martins fez trêsviagens em seu caminhãozinho. A estrada estava muito enlameada eescorregadia. Pedro deixou sua égua Faceira e foi junto com o caminhãobuscar a primeira parte do feijão. Não deu para dar as três viagens no mesmodia. No outro dia foram buscar as outras duas.

Pedro recebeu o dinheiro e separou um pouco dele. Com o restante abriuuma conta bancária. Foi até a Casa Alves, uma loja de tecidos, e fez uma boacompra.

Alves era o nome do dono da loja. Perguntou a Pedro:— O senhor é novo aqui na cidade, não?— Vai fazer dois anos que estou morando aqui perto, no meu sítio.— Onde fica o seu sítio?Pedro respondeu:— É no Maticanã. Lá é tudo mata ainda, senhor. Meu nome é Pedro, a

suas ordens.

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Foi uma festa ao chegar em casa. Pedro trazia enormes pacotes de tecidose roupas para toda a família. Ele não havia comprado roupas de frio para ascrianças. Márcia recriminou-o por isso.

— Eu não esqueci, Márcia. Vai chegar na loja do Cavali uns casacos defrio. Assim que chegar, eu vou buscá-los e levarei os meninos para escolher.

De fato, quando a mercadoria chegou, Pedro comprou casacões de lã paraas filhas e para a esposa. Comprou também agasalhos de frio para ele, Lúcio eJosé, e blusinha de frio para Lurdes. Márcia ficou feliz com o casaco. Foi umpresente inesquecível.

Márcia queria uma máquina para costurar todos aqueles tecidos que omarido havia comprado. Pedro sempre fazia os gostos da esposa e prometeu acompra da máquina de pé, assim que chegasse na loja de Seu Dantas. Ele acomprou logo na semana seguinte. Márcia não tinha prática, mas logo pegou ojeito e foi uma festa só entregar os vestidos de seda para as filhas, muito bembordados.

Quando foi preciso colher o milho de novo, Pedro arrumou uns peões,mais o Baiano e os filhos para a quebra. Ele fez um paiol bem grande, empoucos dias. Lúcio era quem transportava o milho até o paiol. O serviço eracansativo e demorado e tinha que ser feito o mais depressa possível. A terraprecisava ser preparada para nova plantação.

Foram plantados, então, arroz, mandioca, batata-doce, cará e abóboras. Opomar foi tarefa de Lúcio, que se saiu muito bem. Tinham também uma boahorta e os filhos ajudavam a cuidar. Com tanto serviço, Márcia andava muitodistraída. Pedro notou logo de início, pensou que fosse apenas cansaço e faloucom a esposa.

— O que está acontecendo? Você anda triste, pensativa. Está doente ounão está feliz?

— Não é nada disso. Deixe para lá. Não fique preocupado, eu estou bem.— Você tem trabalhado demais. Eu vejo uma sombra de tristeza em seus

olhos. Me diga o que a está atormentando.Márcia respondeu:— Eu queria voltar lá onde nós morávamos. Quero rever o sítio, ver meu

pai, fazer uma visita ao túmulo de minha falecida mãe. Eu tenho tantasaudades de tudo que deixamos lá, você me leva até lá para matar a saudade erever o monjolo.

— Sim, nós iremos rever tudo.Márcia abraçou o marido e continuou:— Eu estou morrendo de saudade. Quero rever minhas irmãs.Pedro não sabia dizer não a ela.

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— Nós iremos rever seus parentes, os meus e os amigos. Vou dar umaordem para os filhos e para o Baiano. Assim nós dois vamos descansar umpouco. Uma semana ou duas serão suficientes para visitarmos todos.

Márcia abraçou o marido como uma adolescente e disse:— Eu sem você não viveria.Ele respondeu:— Eu que o digo. Sem você é o mesmo que se o mundo acabasse —

afirmou ele e ficaram abraçados por longo tempo.Márcia fez vários vestidos, saias e blusas para ela. Para o marido, calças

e camisas. Pedro comprou um par de botas para ele e dois pares de sapatospara a esposa. Dois dias depois, saíram de viagem para rever sua terra natal.Levaram a filha Lurdes, que tinha dois ou três anos de idade. A viagem correubem. Márcia, porém, estava enganada, pensando que iria encontrar o antigosítio como haviam deixado. Já em seu destino, Pedro alugou um carro paralevá-los até o sítio.

Ao chegar na entrada das terras que tinham sido suas, ela não conteve aslágrimas, ao ver tudo sem nada. A casa grande não estava mais em seu lugar.O monjolo simplesmente havia desaparecido, tudo havia sido destruído e emseu lugar só havia pastagem. Márcia chorou muito e disse ao marido:

— Que tristeza! Quanto me arrependo de ter vindo. Eu tinha o grandesonho de ver tudo no mesmo lugar. O que fizeram com a nossa casa? E o meumonjolo? Destruíram sem dó este lugar tão querido e onde fomos tão felizes.

Pedro abraçou a esposa e tentou dizer alguma coisa, mas ele tambémestava emocionado.

— Vamos embora daqui. Chega de tristeza. Nós lá no nosso sítio somosmuito felizes. Lá não tem lugar para a tristeza. Vamos visitar nossos parentese o túmulo da sua mãe.

Ezaías, ao ver Pedro e Márcia, não acreditou que eram eles. Choravacomo uma criança dizendo:

— Agora eu vou com vocês e não tem desculpas.Já com duas semanas de passeio, decidiram voltar para casa. Ezaías

arrumou sua pequena maleta, com suas roupas e tudo que ele tinha, resolvidoa passar uns tempos com eles.

— Quero conhecer seu novo sítio e a casa grande. Há um cantinho paramim, pequeno Pedro?

Márcia disse:— Agora ele não é mais tão pequeno pai. Tem quase dois metros. Será

uma grande alegria ter o senhor conosco por um bom tempo.Ezaías vivia com sua filha Dora e não saia de casa para viajar. Só visitava

os parentes da cidade. Foi com grande alegria que viajou de trem junto com

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sua filha e Pedro, para ele um filho muito querido. Ao chegar ao Paraná, eleindagou.

— Este lugar existe mesmo ou eu estou sonhando?Ezaías ainda não tinha visto nada. Quando chegou no sítio de Pedro, ele

se encantou com tudo que viu e disse ao genro:— Eu acreditei em você, tinha certeza que iriam vencer.As palavras da benzedeira voltaram a mente de Márcia. Ela não esquecia.Lúcio e os irmãos haviam cumprido todas as ordens do pai e ainda

tinham plantado mamonas e amendoim. Os netos ficaram muito felizes com achegada do vovô, que iria passar uma temporada com eles.

Um dia, porém, o vô Ezaías chegou perto de um dos netos e meio tonto,queixou-se de uma terrível dor do lado direito. O neto aflito perguntou:

— O vô está doente?— Não, estou só com essa dor forte. Ela tem nome. Chama-se dor-de-

bolso.— O que é isso vô? Eu nunca ouvi falar dessa dor.— É que eu não tenho nem um réu no bolso — explicou o velho e os dois

deram uma gostosa gargalhada.O neto deu a ele uma boa porção de moedas. Só assim ele sararia daquela

terrível dor.

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OS CAÇADORES SEM CAÇA E ZÉ-SEM-MEDO

Pedro fez uma reunião com os filhos e anunciou:— Este ano vamos plantar o café. Temos que fazer as covas e arrumar a

madeira para cobri-las.Ele já havia conversado com os vizinhos, que já tinham plantado o café.

Eles explicaram como fazer as covas e como medir a distância, o espaçamentoentre elas. Em uma corda fina eram feitos nós a uma distância regular. Era adistância entre uma cova de café e outra. Duas pessoas seguravam nas pontasda corda, outras duas, com um enxadão, faziam as marcas e outros já faziamos buracos. O serviço era uma nova experiência para todos, pois ninguémsabia fazer aquele tipo de trabalho. Com alguns erros, que eram corrigidossem perda de tempo, as covas deveriam estar prontas antes do plantio.

Foram dez dias de muito trabalho. Com garra e muito amor pela terraPedro plantou oito mil pés de café. Essa terra vermelha era orgulho de Pedro.Quanto ele sonhou e ainda sonhava com sua lavoura de café. Ele não desistiade seus sonhos de ser um produtor de café.

Márcia, além de cuidar da comida no seu fogão a lenha, ainda costuravapara toda a família. Uma das filhas ajudava lavando toda a roupa da família etirando água do poço. O trabalho era uma rotina para todos. Assim quesentiam o cheirinho de café coado, todos pulavam da cama sem preguiça. Coma maior boa vontade ia todos, com suas ferramentas nas costas, encarar maisum dia de trabalho.

Depois das covas do café estarem todas prontas, a terra já capinada, omilho já plantado, as sementes do café escolhidas, foi plantado o feijão, destavez um pouco menos. Faltava plantar o arroz.

— Quem trabalha com a terra tem que plantar de tudo — dizia Pedro.Começou a plantação do café. Em cada cova eram colocado oito grãos.

Depois de nascido, era necessário retirar as mudas que não tinha crescido. Sóficariam de três a quatro pés em cada cova. A madeira já estava preparada,para que todas as covas de café fossem cobertas por elas. Assim que o cafécomeçou a brotar, Pedro não cansava de olhar sua lavoura, agradecendo aDeus por ter vencido mais uma etapa.

Márcia, agora refeita da decepção de não ver sua antiga casa, tinha aalegria de seu velho pai estar junto dela, Pedro estava feliz da vida, o seu caféjá plantado. O milho já estava embonecando, o feijão nascido, o arrozcrescendo. As chuvas vinham na hora certa e eram uma benção de Deus.

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Lúcio pediu ao pai permissão para fazer uma caçada num domingo. O paia deu e quis saber quem iria junto:

— Vamos eu, o Baiano e mais quatro amigos.— Tome muito cuidado! — recomendou o pai.— Vamos levar sua espingarda e um facão. Os outros também vão levar

espingardas, facões e munição.Márcia preparou uma panela de carne, uma boa farofa, café e água. Cada

um levou de casa a sua comida. Estavam todos felizes da vida, prometendoestar de volta antes do jantar. De manhã bem cedinho, os seis amigos fizerama tal caçada.

Não era meio-dia, quando eles chegaram. Nem haviam comido o quetinham levado. Pedro quis saber o que tinha acontecido. Todos, muitoenvergonhados, sentaram-se no chão junto a porta da sala e começaram afalar.

— O senhor não imagina o que nos aconteceu.— Não encontraram caças — perguntou o pai.— Encontramos muitas.— Por que não caçaram nenhuma?— Não tivemos coragem.— Como não tiveram coragem?— Seu Pedro eram tantas que não deu para atirar em nenhuma delas.Toda a família estava esperando uma explicação dos caçadores. —

Explique melhor — disse Pedro.— As queixadas mais pareciam bezerros e eram tantas que tivemos de

subir em uma árvore e ficar olhando elas passarem. Logo atrás veio umamanada de catetos, uns enormes porcos, bem maiores do que temos nochiqueiro. Os quatis se jogavam de cima das árvores. Ao caírem maispareciam uma bola de futebol. Encontramos muitas pacas, que se escondiamdentro dos buracos, nos troncos das árvores. E os veados pareciam que tinhamasas. Eles não corriam, voavam. As capivaras nadavam melhor que muitoshomens. Até parecia que estavam praticando esportes, coisa de louco. Os uruse os jacus mais pareciam galos caipiras, bem maiores do que temos aqui. Foipor isso que não tivemos coragem de abatê-los. O que iríamos fazer com tantacarne daqueles animais tão bonitos?

Pedro fez um comentário;— Eu, de minha parte, fiquei muito contente de vocês não terem atirado

em nenhum dos animais.— Encontramos caçadores que tinham matado várias caças e as levavam

penduradas em uma vara, carregadas por dois homens. Eles riram de nós,

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dizendo: "vocês ficaram com medo rapazes. Caçador tem que ter sangue-friocomo nós, seus medrosos!"

Pedro disse:— Eles não sabem o que falam. Vocês fizerem muito bem de não ter

matado os pobres bichos.Márcia. Intrigada, perguntou:— Por que vocês voltaram tão sujos? Entraram em algum buraco? —

Entramos mesmo, mãe.— Fazendo o quê em um buraco?— Nós encontramos uma caverna. Deve ser de índios. Entramos dentro

dela. Havia um buraco estreito e, com a lanterna do Baiano, deu para ver tudoque tinha dentro da caverna. Levamos um susto grande com os morcegos. Elesestavam em toda parte, voando por cima da gente.

— O que mais tinha dentro da caverna? — perguntou a mãe.— Lá dentro parecia uma grande salão de festa. As paredes eram de

pedras e tinham umas letras esquisitas nelas. Mais pareciam rabiscos. Tinhatambém uns desenhos feitos nas paredes de pedras, de cabeças de animais.Tinha também cabeças de veados presas nas paredes e muitos outros bichosque nós não vimos nem nos livros da escola. Tinha um fogão feito com pedrase umas coisas jogadas no chão. Parecia ser uma bacia de madeira, a tal gamelaque a senhora falou. Tinha também uns bodoques, quase igual aqueles que asenhora faz, todos quebrados. Havia muitas penas de aves coloridas, todaspresas por um cordão ou cipó.

— Aonde vocês estavam com a cabeça para entrar numa caverna quepoderia ter até cobras?

— Fique tranqüila, nós não voltaremos mais lá na caverna — disse umdos amigos de caçada. Nós pegamos esta machadinha, ela está perfeita. Vejaque coisa bem feita seu Pedro. Como eles podem fazer uma machadinha depedra?

Pedro ordenou:— Vão levá-la de volta. Não quero isto aqui em casa.Ezaías se divertia com a história da caçada em que não teve caça.— Vocês ficaram com medo, digam a verdade.— Foi falta de coragem e muito medo também — responderam os

caçadores medrosos.Aquela caçada ficou na lembrança de todos para sempre, como ficaram

as histórias do vô Ezaías.— Vovô, o senhor sabe muitas histórias de verdade? — perguntou um

dos netos, no entardecer de um dia qualquer.— Sei cada uma de arrepiar. Que história vocês querem que eu conte?

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— Não sendo de assombração qualquer uma serve. Queremos a históriada fazenda do vô Lúcio.

— Então vão buscar um cafezinho para mim e o meu isqueiro paraacender o cigarro.

Após os preparativos, ele começou:— Eu conheci seu Lúcio lá pelo ano de mil oitocentos e não sei quanto.

Foi quando ele veio das Minas Gerais. Ele era garimpeiro e tinha ajuntadomuito dinheiro. Veio para comprar a fazenda, que era muito grande e tinhasido dividida em vários lotes menores, pois assim era mais fácil de servendida. Lúcio comprou a parte maior. Ele ficou com a casa grande, oengenho e boa parte dos canaviais. Tinha também uma grande invernada emuitas cabeças de gado.

— Conta da casa, vô. O que tinha dentro dela? Era muito grande a casa?— Uma pergunta de cada vez. A casa era muito grande. Quem morava

nela era um senhor de engenho, já quebrado depois da abolição dos escravos.Lúcio comprou de porteira fechada.

— O que é isso vô?— Porteira fechada era tudo que tinha dentro da fazenda: o gado, os

animais, os troles, os carros de boi, o que tinha dentro da casa, que eram osmóveis, tapetes, objetos de ouro e prata, cristais, porcelanas, coisa de gentemuito rica. Os objetos mais bonitos eram os castiçais, todos de ouro. Oslampiões também eram de ouro. Até as imagens de santos eram todinhas deouro. Os talheres eram de ouro e prata. Os porta-jóias também eram todos deouro. Os quadros das paredes, ele não sabia o valor que tinham. O quadromais bonito era o da Monalisa, esse era lindo demais. Havia uma arcainteirinha de prata. As estátuas dos antigos donos da casa eram inteirinhas deouro. No lugar de ferro eles usavam ouro, até os freios do cavalo do antigosinhozinho eram de ouro: estribos, esporas, o peitoral, enfim, o que não era deouro era de prata. Quem deu fim nessa riqueza toda foi Dinha, a madrastaesperta. Guardou tudo nos cofres das paredes da casa. Ela guardava e os filhostiravam e vendiam tudo por uma bagatela. Quando seu avô faleceu, na casa jánão havia mais nada. Até os móveis haviam sido vendidos por Dinha e seusfilhos.

— Dinha ficou muito rica com tudo que ela vendeu, vô?— Não, ela ficou mais pobre que o vô.— E a sua fazendinha? O que foi feito dela?— Eu vendi, meus netos. Me pagaram muito pouco por ela. O tempo

passou, eu gastei tudo e fiquei sem nada.— Então é por isso que o senhor sempre tem essa dor de bolso?

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— É verdade! A falta de dinheiro me deixou essa dor para o resto davida. Mas a casa do vô Lúcio era igual ao casarão amarelo, lá perto do outrosítio de meu pai. Eu não conheci o casarão. Quem sabe dessa história é a mãede vocês.

Márcia foi chamada e pediram para ela contar para o vovô a história docasarão.

— Eu já contei para você.— Conta para o vovô daquela sala grande que tinha no casarão.Márcia ficou sem saída:— Então eu vou contar. Eram duas salas muito grande. A primeira tinha

uma mesa muito grande, com vinte e quatro cadeiras, todas recobertas comveludo vermelho. Tinha uma linda toalha de renda branca, feita por escravas.A mesa estava sempre arrumada, como se fosse para uma grande festa. Nocentro da mesa tinha sempre um arranjo de rosas num vaso de cristal, comseus vinte e quatro pratos, com todos os seus copos e talheres. Os talhereseram de prata e os pratos e copos com filetes de ouro. Essa mesa eraconservada arrumada todos os dias. A outra mesa, na outra sala, era menor,com treze lugares. Sua toalha também era de renda branca, com detalheseucarísticos. No centro da mesa tinha um copo de ouro com vinho e um pratocom um pão. Doze cadeiras tinham no espaldar uma placa de prata com umnome escrito. A décima terceira, separando seis para cada lado, tinha umaplaca onde estava escrito "Jesus". Cada uma das outras placas tinha o nome deum dos doze apóstolos. A sala era a da Santa Ceia, com um castiçal com dozevelas.

— Que história, Márcia! Isso é verdade mesmo? — perguntou Ezaías.— Sim, é verdade. Eu vi esta sala e muita gente daquela região viu

também. Diziam ainda que havia muitas escravas que cuidavam de tudodurante a noite, para que tudo que tinha ali fosse muito bem cuidado. Aspratarias e os cristais estavam sempre brilhando. No casarão só viviam duasmulheres, que todos conheciam. Elas atendiam as madames, esposas decoronéis, donos de imensas fazendas de café onde outrora havia canaviais a seperder de vista. As escravas viviam escondidas durante o dia. A noite era paralimpar tudo e cuidar das toalhas de renda e linho, todas bordadas a mão porelas. Diziam que, na época de natal, suas toalhas eram bordadas com fios deouro e os castiçais também eram de ouro, como os da sala de orações.

Márcia ajuntou:— Já é tarde. Chega de histórias por hoje. Vamos todos jantar e num

outro dia continuaremos com as nossas histórias. O vovô conta mais históriaspara nós

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— Sim, eu conto a história da casa de zinco e também a história do Zé-Sem-Medo.

— Não é de assombração, né, vô?— Não, é só um pouquinho mal-assombrada. O vô conta de dia para

vocês não ficarem com medo. Combinado, meus netos?Os dias se passaram e o café crescia. Pedro vistoriava todos os dias para

ver se não tinha nem uma cova de café sem as madeiras em cima, protegendoas mudinhas. Ezaías, feliz da vida por estar junto de Pedro, de Márcia e dosnetos, que não o deixavam em paz, insistindo para que ele contasse ashistórias que ele tinha prometido.

Certo domingo amanheceu chovendo. Os netos correram todos para oquarto do avô, exigindo.

— Hoje o vô vai contar as histórias que prometeu.Levando o café para o pai, Márcia entrou no quarto e viu aquela bagunça.

Tentou retirar os filhos do quarto, mas foi impossível.— Deixe todos — disse Ezaías. — Eu vou contar umas histórias para

eles. Tenho certeza de que vão todos sair correndo de medo. Esta históriacomeçou quando eu ainda era muito pequeno. Ela foi contada pelo meu avô,que se chamava Ezaías, como eu. Contava ele que tudo começou há muitosanos, antes dos escravos serem libertados pela Princesa Isabel. Havia, numalocalidade lá em Minas Gerais, que eu já esqueci o nome e o lugar, umfazendeiro muito rico. Ele tinha muitas fazendas de café, canaviais, um grandeengenho e muitos escravos, que trabalhavam nessa fazenda e nunca recebiamum réu pelo seu trabalho. Eles só tinham a comida. Suas roupas eram unsfarrapos que só cobriam as vergonhas.

— O que é isso vô? — perguntou um dos netos.— As roupas só tampavam a bunda. Esse fazendeiro era tão rico que não

tinha lugar para guardar seu dinheiro. Mandou fazer um grande baú de bronze.Meu avô contava que para carregar esse baú era preciso vinte escravos. Levoutrês dias para fazer um grande buraco no chão para enterrar o baú. Dentrodele, o rico fazendeiro guardou tudo que tinha. O dinheiro foi trocado pormoedas de ouro e pratas, libras esterlinas, jóias, pedras preciosas e tudo quetinha valor. Depois de enterrar seu baú com toda sua riqueza dentro, eleconstruiu uma casa de zinco.

— Como era essa casa vô?— Ela era parecida com um grande chapéu sem aba.— Quem morava nessa casa, vô?— Nessa casa morava toda a riqueza do rico fazendeiro. Contava meu

avô que, quando ele morreu, foi enterrado dentro dessa casa para vigiar suariqueza enterrada e nunca ninguém pode se aproximar dessa casa. Lá dentro

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havia um grande barulho. Ouvia-se o arrastar de correntes e uma voz quecontava um, dois, dez, cem, mil, assim por diante. Dizia meu avô que elecontava todos os dias suas moedas e seu dinheiro enterrados no grande baú debronze.

— Agora conta a outra vô. É a última. Conta logo vô, senão a mãe entra enão vai deixar o senhor contar mais histórias.

— Esta história não é de fazendeiro, não tem escravo, engenho oucanaviais, mas tem uma fazendeira. Essa fazendeira era muito rica, boa emuito querida por todos os empregados da fazenda. Todos os dias ela saia noseu trole...

— O que é isso vô?— É uma carroça com quatro rodas de pneus, puxada por dois, até quatro

cavalos. Os cavalos dela eram brancos. O trole tinha capota e até cortinas paranão entrar poeira das estradas, dizia o meu avô. Ela tinha um empregadochamado José, mas conhecido como Zé-Sem-Medo. Quando o marido dafazendeira era vivo, José o acompanhava pela fazenda. Todos os dias faziam amesma coisa. Olhavam os empregados, o gado e tudo que tinha na fazenda. Ofazendeiro morreu, foi aí que a fazendeira passou a visitar a fazenda todos osdias. Quando eles iam passar por uma porteira, ela abria sozinha, mesmotrancada. Zé-Sem-Medo dizia: "obrigado patrãozinho!". Isso acontecia todosos dias. Todas as porteiras e portões por onde eles passavam se abriam, depoisse fechavam e trancavam sozinhos. Zé-Sem-Medo agradecia e seguia emfrente. Certo dia, a fazendeira voltou das visitas e se queixou de cansaço.Deitou-se e disse: "me acorde daqui duas horas. Não se esqueça Zé: duashoras. Deixe o trole pronto que vamos depois do almoço à cidade. Zé preparouo trole e na hora certa foi chamar a patroa. Chamou, chamou e chamou.Tentou levantá-la, mas não conseguiu. Avisou os empregados da casa. Pediuajuda ao administrador e sua esposa e juntos foram ver a patroinha. Foi umgrande susto aos empregados verificar que ela estava morta. Mas Zé nãoacreditou. Ele dizia que ela estava dormindo. Chamaram um médico, que disseque realmente ela estava morta. Mas o Zé insistia em dizer que ela estava sódormindo. Prepararam a patroinha e a colocaram em cima de uma mesa paraser velada. Durante a noite do velório, Zé vinha a toda hora acordar apatroinha, dizendo: "acorda! A senhora está com frio? Eu vou buscar umcobertor para lhe aquecer. Todos estavam muito tristes com a morte dafazendeira tão querida. Quando passou da meia-noite, Zé voltou e disse:"acorda patroinha! Já é uma da manhã. Os galos estão cantando". Zé voltoumais tarde, dizendo: "os galos estão cantando pela segunda vez. Acordapatroinha". Quando o relógio bateu cinco horas, Zé foi para a cozinha epreparou o café, serviu a mesa e foi chamar a patroinha dizendo: "desta vez eu

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acordo ela". Quando Zé entrou na sala, todos os presentes começaram achorar. Ele retirou o cobertor que havia colocado para aquecê-la, pegou suasbotas e calçou-as, dizendo: "está na hora! Levante dessa mesa. Não sei porquenão dormiu na cama. A senhora deve estar com dor nas costas. Eu vou lheajudar a descer dessa mesa". Segurou-a pelos ombros e, com a outra mão,desceu suas pernas fora da mesa, ajeitou seus cabelos e disse: "acordapatroinha! O café está na mesa. Todos os presentes, chorando, diziam: "Zé, elaestá morta." Zé respondeu: "ela está dormindo". Segurou, então, seu rosto epediu: "acorda, pelo amor de Deus! Acorda! Abre os olhos! O dia já vemraiando! Acorda, já é tarde! O sol vai aparecer. A patroinha abriu os olhos edisse: "você não me deixou dormir a noite inteira, por que tanta pressa, Zé?"Os presentes saíram todos correndo ao ver a morta se levantar e devem estarcorrendo até hoje.

— E o Zé, o que aconteceu com ele?— Foi junto com a patroinha tomar café. E agora, quem vai tomar café

comigo?— Eu vou — todos falaram, numa só voz.Dias depois, Ezaías recebeu uma carta da filha, pedindo para ele voltar,

porque seu genro estava doente e chamava por ele. Pedro e Márcia foram levá-lo e fazer uma visita ao parente tão querido. Ninguém esqueceu das históriasdo vovô Ezaías.

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CASAMENTOS E DECEPÇÕES

Pedro sonhava com sua lavoura e esperava seu café crescer. Seus sonhosestavam sendo realizados. Márcia rezava para que Deus o ajudasse e aplantação não fosse prejudicada pelas geadas. Àquela altura, as plantinhas jáestavam fora das covas. Era preciso ralear as madeiras que cobriam a cova echegar mais a terra. Toda a família fazia este serviço, inclusive retirando asmudas que estavam mais fracas, para não atrasar o crescimento das outras. Eratodo mundo dando duro na roça.

Márcia, como sempre, fazia a comida para toda a família. Uma das filhasficava em casa para ajudar a mãe nas tarefas domésticas, pois ela não estavabem de saúde. Não reclamava, mas andava muito sonolenta.

Todos os dias eram as mesmas tarefas: tirar a água do poço para osgastos da casa, encher os bebedouros dos porcos e das galinhas e lavar asroupas de todos. Era serviço que não acabava mais.

Os sonhos de Pedro agora eram reais. Ele dizia:— Agora eu posso tocar os meus sonhos com as minhas mãos, o meu

café. Aqui plantei meus sonhos.Pedro sonhador sonhava. Ele sentia em Márcia uma profeta, pois o que

ela dizia acontecia. Nas noites de frio, junto ao grande fogão de lenha queaquecia a casa toda, ele dizia:

— Eu sonho tanto com a minha primeira colheita de café.Márcia respondia:— Agora falta pouco. Com a ajuda de Deus você irá realizar seu grande

sonho e ser um produtor de café.Apesar disso, Márcia continuava triste. As filhas a viram chorando

escondido. Pedro estava feliz, mas uma felicidade que para os filhos não tinhatanto motivo. Ana perguntou à mãe se estava doente. Ela respondeu:

— Com tanto serviço, não tenho tempo nem de ficar doente.Márcia deixou de costurar. Fazia o almoço e não comia. Dormia a

qualquer hora. Ana descobriu o motivo da alegria do pai e das tristeza da mãe.Falou com as irmãs.

— Eu sei o que a mãe tem. Escutei ela e o pai conversando lá na sala. Anossa mãe vai ter um filho.

Agora estava tudo explicado, a mãe, envergonhada com a gravidez, nãoteve uma conversa com as filhas. Ana já entendia a situação da mãe e,preocupada, não deixava a mãe fazer serviço pesado, ficar muito tempo junto

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ao fogão ou tirar água do poço. Pedro tinha mandado abrir outro, bem perto dacasa e o trabalho de casa havia ficado mais fácil com isso.

Lúcio arrumou uma namorada e disse aos pais:— Eu vou me casar com ela.— Tudo bem! — disse o pai. — Você precisa fazer sua casa.— Eu posso fazer a minha casa aqui no sítio.— É só você escolher o lugar.— Vou fazer a casa mais perto do poço.Lúcio era um bom rapaz, trabalhador e para ele não tinha tempo ruim.

Era, no entanto, de gênio violento, brigava com as irmãs, obrigando-as a fazertarefa de homem. Ele tentava até surrá-las escondido do pai. Elas contavampara a mãe e, para não criar caso entre os filhos, ela se calava.

Com Ana ele se pegava em briga feia. Muitas vezes a mãe surrava osdois com uma guasca para que parassem de brigar. Com a notícia docasamento do filho, Márcia pensava que talvez ele parasse de brigar com astrês irmãs, que eram unidas e trabalhavam juntas.

Por outro lado, José era o irmão que elas adoravam e nunca brigou comalguma delas. Já estava bem crescido e, com o casamento do irmão, ele teriamais trabalho.

Márcia ganhou um garoto, como dissera a benzedeira, cujas palavrasMárcia mentalmente repetia:

— Vocês vão sofrer, vão vencer. Seu filho vai nascer na terra nova, vaiter pouca saúde, mas terá vida longa. Nem todos os seus filhos serão felizes.

Quase tudo que ela havia dito realmente havia acontecido. Aindafaltavam algumas coisas nas quais ela não queria pensar. Ela pedia a Deus queprotegesse os seus filhos das más previsões da benzedeira.

Antônio, o filho recém-chegado, já nos primeiros meses foi atacado poruma febre muito alta, com convulsões, que logo foram controladas, mas aquilonão foi uma simples febre. Era meningite e não foi muito bem tratado,deixando seqüelas. As convulsões se repetiam, ele era epilético. Ali estava aprofecia da benzedeira.

Lúcio começou a fazer sua casa. O pai comprou o que era preciso e empouco tempo a construção ficou pronta. Pedro disse ao filho:

— Derrube um pedaço da mata e plante o que você quiser. Eu vou lhedar um pedaço da terra já pronta, com café plantado.

Tudo parecia arranjado e em paz. Pedro, deitado na rede, depois de umdia de serviço cansativo, contemplava seu sítio.

Márcia veio juntar-se a ele, dizendo:— Está feliz, Pedro?— Eu sempre fui feliz.

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— Você ainda sonha?— Eu sonho.— Com o que você sonha agora?— Com minha colheita de café e em ver meus filhos casados, tendo um

pedaço de terra cada um e sendo felizes como eu sou.Feliz! Esta palavra ecoou na mente de Márcia. A profecia dizia que nem

todos seriam felizes.Pedro e Márcia se amavam. Seus sete filhos completavam sua felicidade.

Suas terras, seus sonhos, tudo fazia de Pedro sonhador um vitorioso. Elecontemplava sua lavoura e tinha orgulho de viver ali, onde trabalhava ebanhava com nosso suor. Naquelas terras vermelhas ele plantara o seu sonho.

Lúcio se casou. A mãe tinha esperanças de que ele fosse mudar o seugênio agressivo, mas se enganou. Ele piorou ainda mais. Seu mau humortransformou-se em revolta. Para ele todos estavam errados. A mãe dizia parasi:

— Não entendo esse filho. Alguma coisa ele tem. Nunca está satisfeito.Não bebe, não fuma, é trabalhador, mas só tenho uma certeza: ele não é feliz.

Lúcio derrubou a mata, com ajuda de alguns peões, fez a queimada,vendeu a madeira e reservou a lenha para os gastos. No primeiro ano plantoumilho, feijão e o arroz. O pai dera tudo para ele e, por isso, os cereais lhederam uma boa renda.

Ele não era ambicioso e nem sonhador como o pai. Pedro contemplavasua roça e sonhava em ver seu cafezal cheio de flores. Faltava pouco para isso.As primeiras flores estavam aparecendo. Pedro sonhava:

— Em breve eu vou fazer uma pequena colheita. Eu sei esperar. Nopróximo ano vai ser uma colheita com mais frutos.

O tempo de dificuldades havia passado. Pedro agora estava maisconfiante e seus filhos já estavam todos crescidos. Ana arrumou umnamorado, Augusto, um peão picadeiro, que trabalhava com o engenheiro, Dr.Kuma. O pai não via com bons olhos aquele namoro. Tentou falar com a filha,sem resultado algum. A mãe falou com a filha abertamente, dizendo:

— Você só pode estar brincando. Eu sou contra esse namoro e seu paitambém. Seu namorado não tem uma residência, vive em alojamentos, juntocom vários peões e passa o mês dentro da mata.

Ana respondeu:— Eu quero me casar com ele. Se vocês não concordarem, eu vou

embora de casa.— Para onde? — perguntou a mãe.— Vou morar com ele.

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— Vai morar dentro da mata, junto com os outros peões? Não é isto queeu quero para você.

Ana, porém, estava decidida. Já estava com seus vinte anos de idade e seachava dona de seu próprio nariz. A mãe tentou explicar para a filha que avida a dois não era assim tão fácil.

— Aqui você tem uma casa. A sua família quer o melhor para você.Ana respondeu:— Vocês é quem sabem. Com seu consentimento ou não, eu vou me

casar com ele. Vou morar até embaixo de uma árvore. Esta é a minha decisãoe a dele.

A mãe ficou sem saída. O pai, muito constrangido, decidiu:— Vamos fazer o casamento. Não temos outra saída. Ela é cabeça-dura,

teimosa e não aceita conselhos, principalmente dos pais.Pedro mandou chamar Augusto, dizendo:— Você encheu a cabeça de minha filha com propostas de casamento. O

que você tem para oferecer para ela, além do rancho em que você mora?— Pois, é seu Pedro! Eu pretendo arrumar um bom trabalho, alugar uma

boa casa e me casar com sua filha.— Pois bem, eu vou fazer esse casamento contra a minha vontade e vou

lhe dar um conselho: faça a minha filha feliz! Eu não quero me arrepender deter feito esse casamento contra a minha vontade.

Pedro tinha certeza de que a filha sofreria mais cedo do que esperava.Augusto não ficava muito tempo num trabalho. Era uma mudança atrás deoutra. Depois do casamento, a filha foi morar em um lugar incerto. Os paisnão tinham o endereço.

Certo dia, no entanto, Ana e o marido chegaram ao sítio de Pedro. Elaestava grávida e em péssimas condições, sem mudança, sem bagagem e aindatrazia um filho na barriga. Márcia ficou muito feliz ao ver a filha e o genro,mas a felicidade de Márcia durou pouco. A filha lhe disse:

— Nós vamos ficar morando aqui no sítio, junto com vocês.A mãe perguntou à filha:— Quando a mudança de vocês vai chegar?Ana, encabulada, respondeu:— Nós não temos mudança, só temos as roupas.Márcia viu na filha um olhar triste. Havia perdido a arrogância.

Humildemente, disse a mãe— Augusto está sem trabalho e a nossa situação não está boa. Eu estou

esperando um filho e ele não tem nem uma peça de roupa. Foi por isso quevim pedir ajuda.

A mãe não conteve as lágrimas e disse ao marido:

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— Você tinha razão. Ela se casou contra a nossa vontade e agora vempedir ajuda.

Pedro tinha certeza de que o genro não era homem de molhar a camisa desuor. Márcia, então, não pensou duas vezes. Providenciou acomodações para afilha e o genro, o senhor Folgado, como dizia Benvinda.

— Este genro veio de encomenda — dizia ela para a mãe.Augusto não sabia fazer nada, além de picada nas matas. Pedro andava

preocupada com a situação da filha, pois o genro não esquentava a cabeça nemcom a comida. Na casa do sogro ele tinha de tudo. O tempo passava e nadadele ir procurar um trabalho.

Pedro estava de pés e mãos amarradas. De um lado, a filha e a neta; dooutro, o genro que não procurava um trabalho que desse o mínimo de confortopara a filha. Tomou, então, a iniciativa. Foi até a cidade e procurou umapequena casa para alugar. Arrumou um serviço na praça, alugando umapequena carroça para o genro fazer carretos.

Augusto não gostou da decisão do sogro, dizendo:— Nós não temos mudança. O que vamos pôr dentro da casa?No pequeno cômodo em que eles estavam morando, Márcia tinha

arrumado uma cama, mesa, cadeiras e os utensílios para a cozinha. Pensavaonde havia ido parar o orgulho da filha, a sua arrogância e o nariz empinadoque ostentavam, sempre que falava em se casar. Já fazia dois anos que haviamse casado e a vida dos dois era sem progresso. O casal se amava e eramfelizes, mesmo vivendo de um lado para o outro, mesmo dormindo em ranchode pau-a-pique, no meio do mato. Sua cama sempre fora de estaca, com umsimples colchão de palha de milho. Ana jamais se queixara disso, emborasoubesse que os pais poderiam lhe dar mais conforto.

Para tudo tinha um limite e Pedro não aceitava que o genro vivesse maisa suas custas. Queria vê-lo trabalhando na praça, transportando cereais para oscomerciantes, descarregando vagões de trigo, sal e óleo, já que o único meiode transporte da época era o trem de ferro.

Augusto fez corpo mole. Não gostava do trabalho e ficou muitohumilhado com a decisão do sogro. Pedro abriu um crédito para o genro, comum novo comerciante, muito conhecido como Joãozinho da casa nova, cujodono era o pai, um imigrante espanhol. Augusto foi fazer carretos para seuNicolau, dono da casa nova.

Augusto não queria crédito. Era dinheiro que ele queria. Pedro ficousabendo que o genro andava reclamando da situação. O crédito não erasuficiente para ele. Dizia o genro:

— Eu quero é dinheiro. Lá no sítio estava bem melhor. Ali eu nãotrabalhava e tinha casa e comida de graça.

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Pedro pagou a dívida do comerciante e cortou o crédito. Disse a Márcia:— Nossa filha se casou com um parasita, um folgado. Ela vai sofrer

muito com o que fiz, mas agora ele terá de tomar um rumo na vida. Eu já fiz opossível, mas o impossível eu não vou fazer.

Lúcio ficou penalizado com a situação do cunhado. Abriu um créditopara ele, comprou tudo que faltava em casa e fez um bom estoque de comida.Augusto, no entanto, não pagou o comerciante. Lúcio pagou e cortou o créditodo cunhado.

Com isso, Augusto ficou sem crédito no comércio. O jeito foi pedir fiado.Ele reclamou, chorou suas dificuldades, prometeu e fez uma boa compra. Játinha feito seus planos. Com uma boa compra, ele tinha que arrumar dinheiropara ir embora e não foi difícil ele aplicar um golpe no cunhado José. Vendeuum lote de terra para ele e recebeu dois mil réis, pegou seus poucos pertences,a mulher e os três filhos e foi embora para Maringá.

Augusto tinha vendido um lote de terra que não lhe pertencia e José ficouno prejuízo. Augusto foi motorista de táxi por muito tempo. Pedro, Lúcio, ocomerciante Joãozinho e José, todos foram enganados por ele e ficaram noprejuízo. Augusto, longe do sogro ele teve que quebrar a cabeça e se virar.Depois de muitas mudanças sem futuro, ele foi trabalhar na prefeitura deMaringá e Ana foi ser merendeira de uma escola municipal. Ficaram comvergonha das dívidas não pagas e nem notícias mandavam.

Aos poucos, a família de Pedro foi ficando pequena e a casa, vazia.Maria se casou e foi morar junto com os sogros. Durvalino não era de molhara camisa de suor, exatamente como Augusto. Passou algum tempo e Pedroficou sabendo que a filha estava grávida e muito doente, por isso foi buscá-lospara morar no sítio.

Construiu uma pequena casa para os dois, deu-lhes uma área de terra paraplantar e colher e assim sobreviver com as vendas da produção de cereais.Pedro, mais aliviado com a situação dos filhos, estava feliz. Seu café estavacom uma boa florada e prometia uma boa colheita. Ele sonhava colher seucafé e sempre falava com a esposa.

— Eu vou fazer uma casa nova bem grande.— Para que uma casa grande? A nossa família está cada vez menor —

ponderou a esposa.— Os nossos netos aumentaram e a casa ficou pequena para abrigá-los.

Quando vierem passear aqui, vai faltar lugar para tanta gente junta.Pedro voltou a sonhar. Márcia pensava na profecia. Ate então, tudo se

concretizara. Até em relação ao seu último filho. Só faltava a última profecia:nem todos os seus filhos seriam felizes.

Márcia pensava:

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— Por que isto não sai da minha cabeça? Ah, Deus que sempre atendeuas minhas preces, eu volto a lhe pedir que esta última profecia não aconteça.Eu imploro, olha por meus filhos, não deixe que nada de mau aconteça anenhum deles.

Pedro fazia planos. Assim que colhesse o café, iria construir a sua casanova. José, moço novo, que herdou do pai o caráter honesto, pontual e depalavra, assumiu as roças. Trabalhando com o pai e para o pai, nada recebiapelo seu esforço. Plantavam e colhiam. Ele e Benvinda faziam planos. Josédizia:

— Eu ainda vou comprar as minhas terras.A irmã replicava:- Eu quero comprar um carro. Quando, não sei. Um dia eu terei o meu

carrão. Isso só vai acontecer quando eu me casar. Será que o meu marido vaiter dinheiro para comprar um carro? Eu vou escolher. Não vai ser um Augustonem um Durvalino da vida, porque estes dois não valem nada. Não sei comonossas irmãs escolheram para marido uns folgados, aproveitadores de sogro.Elas devem gostar muito deles.

Joãozinho andava de olho em Benvinda, mas ela não lhe dava bola,afirmando:

— Não estou interessada em namorar um moço da cidade.João freqüentava as brincadeiras-dançantes das fazendas. Havia uma

disputa entre os dois grupos e sempre quem levava o pior era o da cidade. Joãoprocurava uma namorada. Quando era convidado, ia montado em seu burrinhobarrigudo e era sempre muito bem recebido.

Ele era teimoso, por isso decidiu ir sempre sozinho. Deixou de andar emturma e assim não corria o risco de ser barrado na porta. Era muito disputadopelas garotas e poderia escolher muito bem.

Namorou várias garotas, até chegar a Benvinda, garota namoradeira, quenão levava nada a sério. O namoro daqueles tempos era bem diferente, nem namão da garota o rapaz segurava. Era uma forma de respeito.

João pediu para um amigo falar com Benvinda. O amigo dançou com ela,mas pediu-a em namoro para si. Benvinda lhe disse um sonoro não e ele quissaber o motivo. Ela respondeu:

— Eu estou namorando um outro rapaz.— Eu sei quem é — disse ele.— Melhor assim. Você não tem chance, não insista, por favor!Ele não desistiu, dizendo:— Você já namorou todos os rapazes que freqüentam as brincadeiras.

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— Namorei e namoro mesmo. Você sabe que eu não levo ninguém asério. Eu gosto de ver a cara deles, quando levam um fora assim como dei emvocê.

Benvinda era assim, falava e não mandava ninguém dizer. João foidançar com ela e perguntou:

— O meu amigo falou com você?— Sim, por que quer saber?— Me interessa a sua resposta.— Minha resposta foi não, está satisfeito?— Por que não,— Eu não gosto dele.— Dele quem— Daquele chato do seu amigo insistente.— Ainda bem que o chato é meu amigo e não eu.— Por que quis saber?Ele ficou embaraçado, começando a entender o que tinha acontecido.— Sabe, é o seguinte: eu pedi para o meu amigo dizer que eu quero

namorar com você. Ele, apressadinho, foi logo pedindo você em namoro.Você tem razão, ele é mesmo um chato.

Benvinda não deu uma resposta e pediu tempo. Queria falar com a mãe.Ela daria a resposta depois de um mês, pois havia um outro rapaz em seuspensamentos. Ele estava servindo o exército e voltaria a passeio antes doprazo dado a Joãozinho. Só que nem ele conseguiu a licença nem mandounotícias.

A mãe falou com o pai, que estava de acordo. Um mês depois, Joãozinhochegou a casa dela, montado em seu burrinho barrigudo. João era um tipo bomde conversa, magro e bigodudo. Sua aparência era de um velho, mas tinhavinte e quatro anos. Benvinda tinha dezessete anos, era morena-clara, cabelospretos longos e ondulados, magra e de muito boa aparência. Todos diziam queera uma mocinha muito bonita. Gostava de brincar com os sentimentos dosrapazes, por isso eles a chamavam de garota difícil.

Pedro já conhecia João e a conversa deles foi sobre o sítio e o café. Osdois foram juntos passear pela roça. Elogiando a plantação João sentiu que aresposta seria positiva. Eles mal tinham se cumprimentado. A conversa foi dehomem para homem apenas. Depois do jantar, ele falou com Pedro.

— Olha, seu Pedro, eu vim saber a resposta da sua filha. Eu a pedi emnamoro e hoje eu vim saber a resposta. Ela deve ter lhe falado.

— Sim, ela me falou. Eu quero saber de suas intenções para com minhafilha.

— Eu quero me casar com ela, caso o senhor me aceite como genro.

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— Só tem um problema: eu não gosto de namoro longo. Filha minha casalogo, é só marcar a data.

— Tudo bem, seu Pedro, eu aceito suas condições.Benvinda não estava presente na conversa dos dois, que combinaram que

o casamento seria no prazo de seis meses. Depois de tudo acertado, Pedrochamou a filha e foi logo dizendo:

— Vocês vão se casar daqui a seis meses.A garota levou um susto e não disse nada. Foi até a cozinha e falou com a

mãe.— Eu não quero me casar. Era só para namorar, não era nada sério, mãe.

O que eu faço agora?— Volte lá na sala e diga a seu pai o que pensa.— O que eu vou fazer agora? A senhora sabe que eu não quero me casar.

Fale com o pai, por favor, mãe. Faça isso por mim. Eu mal o conheço, Ele étão feio, com aquele bigode horrível.

A mãe lhe disse:— Seu pai já lhe deu sua palavra e ficou tudo combinado.— Mãe, eu vou ser obrigada a me casar contra a minha vontade, não é

dele que eu gosto.— De quem você gosta? Por que deu esperanças a ele.— Eu não dei esperanças a ele. Só pedi tempo para pensar.— Por que você não me disse que gostava de outro rapaz, quem é ele?— Eu não quero falar dele, agora é tarde demais. Eu fui uma burra de ter

me calado. Por que isto está acontecendo comigo? O pai nem me perguntou seeu queria me casar com ele.

O seu protesto, no entanto, não foi ouvido e ela teve que concordar comos pais.

Dizia a mãe:— Ele é gente boa. Seu pai conhece os pais dele.—Mas eu não os conheço — protestava a filha.— Você vai viver bem, pode ter certeza.— Eles são espanhóis. Eu não gosto desta raça, a senhora sabe disso.— O que você queria era ficar namorando todos os rapazes e seu pai sabe

disso.— Mãe, eu gosto de brincar de namorar e não de coisa séria, como um

casamento. Se não der certo, o que eu vou fazer? Descasar? Ele é sete anosmais velho do que eu. Parece ser mais velho que o pai. Com aquele bigodemais parece uma vassoura, mãe. Eu não vou me casar com ele. Eu não gostodele para casar. Era só um namoro para passar o tempo...

— Até o outro voltar? — disse a mãe.

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— A senhora acertou. É do outro que eu gosto mesmo para casar. Ana secasou com Augusto porque gostava dele. Maria se casou com Durvalinoporque gostava dele. Lúcio e Benedita se casaram porque se gostavam. Eutenho que me casar com quem eu não gosto.

Os pensamentos de Benvinda foram os piores possíveis: "Vai ser muitodifícil viver com alguém de quem não se gosta. Casar! Desta vez eu fuienrolada mesmo. Não tenho outra saída. Eu que sempre gostei de brincar denamorar agora estou num beco sem saída. Se eu pudesse, eu fugiria de casa, sópara não ter que me casar com ele."

Aquela garota alegre, cheia de entusiasmo, feliz da vida, já não existia.Vivia agora pensativa, resmungando pelos cantos. Seus olhos negros agoratinham uma sombra de tristeza. Ela não sorria, só pensava. Seu grande amorpor um outro alguém estava sendo sufocado. Ele, distante, e ela, sem notícias.

As palavras dele, na despedida, estavam guardadas em seu coração:— Você vai me esperar? Um ano passa logo. Eu venho lhe buscar, eu a

amo. Não se esqueça de mim!Fora uma despedida cheia de promessas, sem um beijo, sem abraços,

somente com um aperto de mão. Ela chorava. Ele secou suas lágrimas comseu lencinho e guardou-o, dizendo;

— Eu vou devolver, quando voltar, cheio dos beijos todos que eu tenhovontade de lhe dar. Suas lágrimas eu vou levar de lembrança.

O tempo passou. Nos seis meses que antecederam ao casamento da filha,Pedro colhera o seu café. Enquanto isso, os preparativos para o casamentoforam concluídos. Benvinda esperava notícias de seu grande amor. Três diasantes do casamento, ela recebeu uma carta e o lencinho.

Dizia a carta:

"Não fique triste, minha querida! Guarde olencinho de lembrança. Ele está cheio dos meusbeijos. Você vai morar em meu coração parasempre. O nosso amor não vai morrer. Ele erapara nos dar forças para continuarmos vivendo.Nossos corpos estavam separados, mas nossasalmas estarão entrelaçadas. Eu sei que você vaitentar ser feliz por mim e por nós dois. Foi odestino que nos separou. Não culpe o seu pai, elesó quer o melhor para você. Pense em mimquando, estiver triste."

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Chegou o grande dia para todos, menos para a noiva, que aindaprotestava, dizendo para a mãe:

— Se eu pudesse, juro que fugia e não me casaria.— Deixe de bobagem, menina. Tire esses pensamentos da cabeça. Você

vai ser feliz, tenho certeza.Benvinda não estava tão segura como a mãe. Era pedir demais para ela

tirar seus pensamentos. As lembranças estavam gravadas em sua alma. Elaapertava o lencinho contra o peito e dizia:

— Fique comigo, não me deixe sozinha.Benvinda foi uma noiva muito bonita, com o vestido feito pela mãe. Ela

não sentia nenhuma emoção ao se casar com João e só o tempo poderia dizerse eles seriam felizes.

No sítio, tudo voltou a sua rotina. Foi uma boa colheita. José comandavao trabalho, plantando e colhendo os cereais. Lúcio cuidava de sua lavoura esempre tinha boa renda ao vender os frutos de seu trabalho. Já pensava até emcomprar suas terras. Lurdes, já mocinha, ajudava a mãe nas tarefas da casa.Ela era muito vaidosa. Não se contentava com pouco, era exigente epresunçosa. Márcia sempre dizia:

— Você é bem diferente de suas irmãs.— Eu não mandei elas se casarem tão cedo. Eu vou aproveitar a vida.

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CASAS GRANDES E SEGREDOS

O sonho de Pedro era agora construir a sua casa grande. Ele vendeu o seucafé e contratou um construtor da região, Miguel Dias, que tinha grandeconhecimento na construção de casas de madeira. Pedro já tinha a planta dacasa em mãos. Miguel fez o orçamento do material e os custos da mão-de-obra. Tudo foi acertado e a construção, iniciada

Foram meses de muito trabalho, até que a casa ficasse pronta. Pedro sepreparou para dar uma festa para comemorar sua casa nova. Queria reunir afamília e os amigos da cidade, políticos do seu partido. Pedro sempre haviasido um político sério e tinha muito respeito pelo seu partido. Os convidadosforam tantos que a casa ficou pequena para tanta gente. Era sua maneira dedizer a todos de que ele era muito feliz. Márcia, no entanto, sabia que omarido não iria parar de sonhar.

Certo dia ele estava calado, no vai e vem da rede, e Márcia percebendoque ele estava sonhando. Tinha certeza de que seria mais um de seus sonhosmalucos. Chamou por ele, mas Pedro estava tão distraído, que não a ouviuchamá-lo.

Aproximou dele e disse:— Acorda homem. Eu sei no que está pensando.Ele respondeu:— Agora deu para ler os meus pensamentos? Eu não sabia disso. Além

de profeta é adivinha também.— Não brinque com essas coisas.— Não estou brincando, Márcia! Estou falando sério. Você é adivinha e

lê os meus pensamentos.— Então agora me diz em que estava pensando.— Eu estava relembrando tudo que já aconteceu em nossas vidas.

Recordava o passado, de quando eu era menino, a Dinha, o que ela contoupara o meu pai, quando fui expulso de casa. Ela não podia ter inventadoaquela mentira, de que eu havia pego aquelas libras esterlinas.

— Eram muitas essas libras esterlinas?— Ela disse que eram mais de duzentas mil libras esterlinas. Eu nem

sabia que meu pai tinha isso guardado. Tempos depois é que fiquei sabendoque eram moedas de ouro de muito valor. Meu pai tinha muito ouro dosgarimpos em que trabalhou, tudo guardado nos cofres das paredes da casa,além de muita pedra preciosa. Havia um quarto na casa, sem janelas. A portaera fechada por uma grade de ferro, com enormes cadeados presos a correntes.

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Quando meu pai faleceu, aquela porta estava aberta e dentro do quarto só tinhapapel velho e muita sujeira. Na parede tinha um sinal de que ali tinha algumacoisa pendurado. Depois é que fiquei sabendo que, nesse quarto, preso naparede, tinha um grande relógio de ouro. Ele estava preso na parede e dentrode uma caixa de madeira havia uma arca cheia de moedas de ouro e objetos degrande valor.

— Como você ficou sabendo dessa grande riqueza de seu pai? E o quefoi feito disso tudo?

— Eu encontrei uns papéis e neles dizia que aquela riqueza só seria donovo proprietário depois de cinqüenta anos. Nesses papéis tinha uma relaçãodetalhada e o valor de cada objeto ali guardado.

— Quantos anos seu pai morou na casa? — perguntou Márcia.— Cinqüenta e dois anos ou mais.— Então era tudo dos herdeiros.— Sim, era. Dinha e seus filhos se encarregaram de dar fim em tudo.— Mas onde ficava esse quarto?— perguntou a esposa.— Como a casa era muito grande e tinha vários corredores, para chegar

até esse quarto a gente passava por um labirinto, com becos sem saída.— Você viu esse quarto Pedro? E a tal grade na porta?— Meu pai nos levou até lá, eu, meus irmãos e minha mãe. Meu pai

chegou até lá olhando uns rabiscos que indicavam o lugar certo para apertar ea parede se abria, dando lugar a uma porta. No meu quarto mesmo tinha umapassagem secreta. Um dia meu pai chamou a minha mãe até o meu quarto. Eledisse a ela: "quer ver uma coisa? Você vai me prometer que jamais dirá aninguém o que você vai ver." Ela prometeu ao meu pai dizendo: "eu juro!" Eleapertou o pino que prendia o lampião, o guarda-roupas se afastou e apassagem secreta se abriu. Era um longo corredor. Depois de descer umaescada sem fim, fomos parar num porão, cheio de esqueletos pendurados emcorrentes.

— Pedro, isso mais parece estória de fantasma.— Não é estória, Márcia. Eu só estou contando isso depois de muitos aos

que estamos juntos. Sei que isso não vai abalá-la agora. Eu a conheço muitobem, por isso estou contando. Eu tinha que tirar esse peso das minhas costas.Agora me sinto bem mais leve.

— Esqueça isso, homem, e vamos cuidar da nossa vida.— Olha, Márcia, meu pai deve ter ensinado o segredo das paredes, a sair

dos labirintos e chegar até esse quarto. Dinha sabia chegar até lá sozinha. É aúnica explicação para que tudo tenha desaparecido.

— Como vocês chegaram até lá, depois que seu pai faleceu?

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— Estava tudo aberto, as paredes não tinham mais segredos. Eu percorriaqueles corredores e cheguei até o quarto vazio, sem janelas e sem as gradesde ferro. Até a porta tinha sido retirada. Fui até o meu antigo quarto e tenteiabrir a porta secreta, mas estava fechada. Eu não consegui abrir aquela porta.No porão não tinha objetos de valor e Dinha só queria ouro e pedras preciosas.Toda aquela riqueza, que por direito nos pertencia, nunca me fez falta. Eununca seria feliz com aquela riqueza. Hoje eu posso dizer que sou feliz comvocê, com os nossos filhos e com as minhas terras, nossas terras.

— Vamos entrar! Está na hora de tomar um café bem fresquinho que voufazer para nós.

Márcia nunca mais falou nos pertences do sogro. Aquela história ficouenterrada com o passado. Dinha morreu na mais completa miséria. Não deixounenhuma herança para seus filhos nem um pedaço de terra para ser devolvidopara seus herdeiros.

A vida de Pedro continuava com muito trabalho. Plantando e colhendo,José cuidava da terra e entregava ao pai todos os cereais colhidos. Pedro nãomais sonhava e vivia a realidade. Passava o dia olhando suas plantações episando em sua terra vermelha. Ali estava o seu sonho e o de toda sua família.

Com os casamentos, a casa estava mais vazia. Haviam ficado apenasJosé, Lurdes e Antônio, um garotão cheio de problemas. Lúcio cuidava da suaplantação e cada vez mais revoltado. Márcia percebeu que o filho não estavafeliz e não sabia quais eram os motivos de tanta revolta. Maria e o maridocontinuavam morando e trabalhando no sítio, mas quem trabalhava era só ela.O marido não era de se esforçar e pouco fazia. Pedro não andava muitocontente com a situação da filha. O genro vivia cheio de compromisso parafugir do trabalho.

Maria estava esperando o seu segundo filho e ainda amamentava oprimeiro. Ela, todos os dias antes de sair para o trabalho, ia ver a mãe e o pai.Certo dia, porém, ela não foi fazer visita aos pais. A mãe ficou preocupada efoi até a casa ver o que havia acontecido. A mãe a chamou. Ela estava noquarto e pediu para a mãe entrar. Márcia ao ver a filha com um bebê no colo,levou um grande susto, dizendo:

— Meu Deus, quem está aí com você? Quem fez seu parto?— Estou sozinha, mãe. O bebê já nasceu, Eu fiz tudo sozinha.Márcia estava apavorada. Suas pernas tremiam. Ela se sentou na cama e

respirou fundo. Inconformada com aquela situação, perguntou:— Onde está o seu marido?— Ele saiu, mãe.— Foi buscar a parteira.A filha, vendo a mãe assustada e trêmula, respondeu:

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— Eu não falei nada para ele.— A que horas você começou a passar mal?— Foi agora de manhã, depois que ele saiu.— Por que não me chamou.— Não deu tempo — disse a filha.Márcia, com as pernas ainda tremendo do susto, falou:— Que situação, meu Deus! Eu tenho que avisar seu pai.Maria tentou acalmar a mãe.— Não é mais preciso, eu estou boa. Não fique preocupada.— Seu pai vai buscar a parteira. Você não podia ter feito esse parto

sozinha.Márcia saiu correndo, chamando pelo marido. Pedro veio ao seu

encontro, amparando a esposa para ela não cair.— O que aconteceu mulher?— É a Maria. Vai chamar a parteira. Vai correndo, não perde tempo,

homem. O caso é muito sério, é grave. Eu selo a Faceira. Vai depressa, nãoperca tempo, pelo amor de Deus.

A parteira chegou, algum tempo depois, e encontrou Maria fazendo oalmoço. Foi aquele sermão.

— Vai para a cama — ordenou-lhe a mãe.A filha quis protestar, mas não teve outro jeito a não ser obedecer. A

parteira examinou-a e disse que ela estava bem. Pedro chegou e perguntou àfilha:

— Por que não chamou sua mãe?—Não deu tempo pai, foi muito rápido. Olhe sua neta! Ela é linda. Eu fiz

tudo certinho.— Mas pode ter alguma complicação...— Ah, pai, as índias ganham seus filhos de cócoras.— Você não é índia, filha. Elas são ensinadas para ganhar seus filhos

sozinhas de cócoras.— Você é mais corajosa do que pensamos — afirmou Márcia. Eu nunca

fiquei sabendo de uma mulher tenha feito seu próprio parto.Este foi um fato marcante na vida de Pedro e Márcia. Constantemente

conversavam a respeito daquela situação.— Eu não sei o que fazer. O marido de nossa filha não quer nada com o

trabalho. Quem trabalha é só ela. Com duas crianças pequenas, dá um duro lána roça. Ela está tão magrinha e sofrida — falou Pedro, que estava de olho nogenro que não queria nada com o trabalho. — Esta situação não podecontinuar. Eu notei que o Lúcio anda descontente. Eu acho que é por causa docunhado.

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Márcia não queria alimentar ainda mais a preocupação do marido e dissepara si mesma: "meu Deus, a última profecia vem sempre na minha mente emmomentos como este. Eu sei que ela vai acontecer. Aquelas palavras eu aindaouço: vocês vão vencer, vão sofrer, nem todos os seus filhos serão felizes. Issoem parte já está acontecendo. Eu sinto que alguma coisa mais grave ainda estápara acontecer."

Pedro chamou-a, trazendo-a de volta à realidade:— Está triste, mulher? Está com uma cara de quem viu um fantasma.— Talvez seja mesmo. Sempre há um fantasma que no faz companhia.— Deixe disso, Márcia. Onde está aquela mulher que eu conheço tão

bem, cheia de decisões tão importantes? O que a está preocupando tanto?Márcia achou melhor mudar de assunto. José veio falar com o pai: —

Este ano temos que fazer a tulha. O café está com uma boa carga de frutos. Secomeçarmos a fazer agora, ela ficará pronta antes da colheita.

Pedro providenciou todo o material para a construção da tulha. A plantajá estava pronta e foi Miguel quem fez o orçamento. Tudo foi devidamente ecuidadosamente preparado.

Márcia, atenta a todos os acontecimentos, havia notado que o genro haviaviajado muito nas últimas semanas. A filha andava chateada. Era uma pessoade boa conversa, alegre, sorridente e não se queixava de nada, mas a mãehavia notado uma profunda tristeza em seus olhos. Tinha certeza de que elaestava escondendo alguma coisa. A mãe perguntou se ela estava doente.

— Eu só estou cansada. Tenho trabalhado muito nestes últimos dias.Mãe, será que o pai compra a minha roça?

— O que significa isso agora, minha filha? Que conversa é essa?— O Durvalino arrumou um serviço em Maringá, com o Augusto. Eu

quero que o pai compre a minha roça. Eu não agüento mais trabalhar sozinha.As duas crianças ficam embaixo dos pés de café o dia inteiro. A senhora sabeque quem trabalha na roça é só eu.

— Eu nunca concordei com essa situação. Seu pai anda muitopreocupado com você.

— A senhora fala com ele, mãe?— Fale você mesma, filha.— Eu não tenho coragem, tenho medo de magoá-lo.— Ele já está magoado com o seu marido. Ele não quer trabalhar. Não é

justo o que ele faz com você e com as crianças.— Fale com o pai, por favor, mãe!— Está bem, eu vou falar com ele, mas o seu marido vai ouvir poucas e

boas.— O pai tem razão. Ele está merecendo mesmo uma boa prensa.

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Márcia falou com Pedro:— Eu já estava sabendo. Minha filha vai sofrer muito com aquele marido

de merda que ela tem — disse Pedro, furioso com a decisão do genro. Eu voufalar com ele.

— Cuidado com o que vai dizer a ele.— Eu só vou falar o que está enroscado na minha garganta.Pedro foi até a casa da filha e chamou pelo genro. Ele apareceu com o

rabo entre as pernas, convidando:— Entre seu Pedro.Pedro estava espumando de raiva e foi logo dizendo:— Então você quer vender sua roça. Sua não, seu safado! A roça é de

minha filha. Eu vou comprar, não por você, mas por ela e pelas crianças. Elesnão tem culpa de ter um pai de merda como você. Você não tem vergonha deser sustentado pela minha filha. Ela está sofrendo e você vive viajando, seudesocupado, irresponsável e presunçoso!

O genro não sabia onde punha a cara e disse:— É, seu Pedro, eu arrumei uma colocação em Maringá, perto do

Augusto. Ele vai dar uma força para a gente.Pedro estava furioso:— Ele pode lhe dar uma força, como você diz. Eu tenho certeza de que

ele não vai lhe dar nem o que comer, seu merda.Pedro saiu do sério e ficou muito nervoso, mas ninguém entrou na

conversa. Maria chorava muito. Abraçou o pai e pediu:— Me perdoa, pai, por mais esse desgosto. Quem sabe não vai ser

melhor para todos.— Eu sei, filha, que você vai sofrer. Seu marido jamais vai ter

capacidade de fazê-la feliz.Naquele momento, veio à mente de Márcia a última profecia e ela

percebeu que tudo já está acontecendo.

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SONHOS E REALIDADE

Todos ficaram muito tristes com a mudança de Maria. Pedro foi quemmais sofreu, mas não fazia comentários. Ia até a casa onde a filha morou eficava olhando. Nada dizia.

José falou com o pai:— Vamos arrumar um colono para tocar a roça que o pai comprou de

Maria.— Sim, é melhor. Nós vamos começar a fazer a tulha e teremos tempo

para cuidar daquela roça cheia de mato. O café está com uma boa carga defrutos e tem que ser bem tratado, para não ter queda na produção.

Não foi difícil encontrar um colono bom de serviço para cuidar dalavoura. Lúcio continuava esquisito. Márcia era quem mais sofria com aquelasituação, pois tinha certeza de que ele não estava contente.

José preparou o terreno para iniciar a construção da tulha, para guardar agrande safra de café. Pedro ia realizar, finalmente, seu grande sonho de colheruma grande safra e de ser um grande produtor do tão falado ouro preto, o café.Já havia deixado de sonhar aqueles sonhos malucos, como Márcia dizia.Tinham ficado no passado. Agora ele vivia a realidade dos seus sonhos e bemdiferente era a realidade do dia-a-dia de um sonhador.

A tulha ficou pronta a tempo, antes do início da colheita. Só não deutempo para aumentar o terreiro para secar o café. Lúcio também fez umapequena tulha, pois sua colheita era menor que a do pai. José contratoudiaristas para a colheita. Era preciso muito cuidado para que não ficassemfrutos perdidos no campo.

A colheita foi iniciada. Havia muito trabalho e José teve que contratarmais diaristas. A região já estava bem povoada. Eram os nordestinos, quechegavam nos paus-de-arara, à procura de serviço e colocação. Viajavam detrês a quatro meses em caminhões sem conforto algum, que vinham lotados degente desnutrida e crianças doentes. Muitos deles faleciam na viagem e asmulheres grávidas eram as que mais sofriam. Muitas delas deixavam seusfilhos abortados pelo caminho.

Todos vinham fugindo das secas do sertão nordestino e traziam nabagagem muitos filhos e sonhos. Chegavam para vencer. Na terra prometida,eles aceitavam qualquer oferta de trabalho. Eram os colonos daquela época ehavia muita oferta de trabalho em todas as fazendas já existentes, a maioriados imigrantes japoneses.

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Seu Luiz era filho de imigrantes japoneses e sua fazenda tem umainteressante história. Certo dia, seu pai apareceu com um bilhete de loteria.Tinha comprado uma série fechada. A mãe, quando viu a envelope, quis sabero que era. Ao saber que era um bilhete de loteria, não aceitou que o maridotivesse gastado dinheiro, comprando um simples papel. Contrariado, o pai deLuiz jogou pela janela o bilhete e o filho o pegou, guardando-o, sem que o paie a mãe soubessem. Assim que ele pode sair para uma cidade vizinha, foiconferir o bilhete e qual não foi a surpresa ao descobrir que o bilhete estavapremiado. Ganhou sozinho a série toda. Comprou a fazenda e deu a ela onome de Duzentos Contos, total ganho na extração do bilhete.

José e os diaristas faziam a colheita. O café era transportado para asecagem. Pedro e Márcia faziam o trabalho, pois assim eles tinham certeza deque o café seria bem seco. Pedro estava com a saúde abalada, depois damudança da filha.

A colheita do café demorou mais de três meses. O resultado estava,finalmente, todo dentro da tulha.

— Foi uma grande colheita — disse Pedro.Márcia perguntou:— O que você sente ao ver tanto café na tulha?Ele respondeu:— Ali dentro da nossa tulha estão os sonhos que você sempre dizia que

eram sonhos malucos.— E agora você não sonha mais?— Sim, eu sonho. Isso faz parte da minha vida. O homem que não tem

sonhos não se realiza. Se é muito rico e se ele chegou tão alto, foi porque elesempre sonhou. Márcia, você sonha também?

— Só quando estou dormindo — respondeu ela e Pedro deu uma gostosagargalhada e soltou seus cabelos num gesto de carinho.

José apareceu para falar com o pai:— O café foi colhido e está todo guardado. Na próxima semana, vamos

colher o arroz e, neste ano, vamos colher bem mais do que no ano passado.José era assim. Tudo que fazia, era comunicado ao pai. Lurdes, que

estava presente, fez um comentário sobre a irmã Maria:— Todos nós sabemos que ela, quando morava aqui, era quem ajudava o

pai. Agora ninguém sabe onde ela está morando. Se não manda notícias, éporque não é feliz.

Essas palavras caíram em Márcia como punhaladas. Não conseguiaesquecer da última profecia. Ana também não mandava notícias para os pais.Sofria calada e jamais reclamou do marido. José, trabalhando para o pai,

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plantava e colhia, mas não era pago pelos seus serviços. Nos finais de semana,o pai lhe dava uns trocados e ele dizia:

— Eu ainda não gastei o que o senhor me deu outro dia.— Por que não gastou?— Dinheiro é para guardar e não para gastar à toa.Lúcio, um dia, presenciou e não gostou do diálogo e disse:— Para mim o senhor dava menos.— Mas tudo que eu lhe dava você gastava.— Ele é o queridinho do papai mesmo!O pai se ofendeu:— Você não vai criar caso. Já é casado, tem sua família e seu pedaço de

terra, onde planta colhe e vende. O que você faz com seus lucros? Distribuipara seus filhos gastarem à toa?

— É claro que não faço isso. Eu guardo para o futuro deles.— Pois foi isso que sempre fiz: guardei para o futuro de vocês— afirmou

o pai, muito magoado.Márcia conhecia muito bem o filho e tinha certeza de que ele iria atingir

alguém. Ela não sabia quem era e nem porque ele era tão revoltado.Certo dia, um de seus porcos saiu de seu cercado. O animal começou a

correr. Lúcio, então, pegou uma lasca de madeira e jogou no porco fujão. Alasca espetou-o na barriga, matando-o na hora.

O pai ficou sabendo e foi falar com o filho:— Onde você estava com a cabeça? Fazer uma coisa dessas com o

animal...Ele respondeu:— O porco é meu e ninguém tem nada a ver com isso.— E se pega em um das crianças ou em Antônio?— Azar deles. Na hora da raiva, eu não olho em quem acertar.— Você não regula bem!— Problema meu.O pai se ofendeu com as respostas do filho.— Problema seu, não senhor! Olha como fala comigo! Eu não sou sua

mulher, que você trata com casca e tudo. Exijo mais respeito, quando falarcomigo. Eu sempre os tratei com igualdade.

— Será mesmo? Quem é o queridinho do papai, não sou eu.— José nunca me respondeu assim.— Ele é seu puxa-saco.Depois do bate-boca, Pedro sentiu que não valera a pena tanto trabalho,

tantos sonhos e sofrimentos. Márcia ouviu tudo e ficou com medo dos dois sepegarem. Se o pai soubesse o que o Lúcio fizera com as irmãs, quantas vezes

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ele tentara surrá-las com o chicote. Achou que havia feito mal em não tercontado. Quem sabe hoje o filho não seria assim tão revoltado com todos.

Pedro ficou muito abalado com a atitude de Lúcio. Jamais imaginava queum filho fosse ofendê-lo tanto. Tentou, de uma maneira muito clara, descobrirquais eram suas razões e seus sentimentos, mas não encontrou respostas.

Márcia estava arrasada e não tinha palavras para dizer ao marido:— Esqueça o que ele disse — falou ela. — Ele deve estar magoado com

alguma coisa que nós não sabemos o que é.— Ele não é mais criança. É um homem feito e age como criança

malcriada. Onde foi que erramos? Criamos todos com igualdade, com osmesmo direitos, com a mesma educação que demos as meninas. Ana era amais rebelde...

Márcia respondeu:— Ela tem o mesmo gênio do irmão. Você não sabe das brigas dos dois.

Eu escondi de você o que eles aprontavam. Para separar os dois, eu os surravacom a guasca.

— Então você escondeu de mim o tempo todo?Márcia ficou confusa com a pergunta do marido e respondeu:— Eu não contei a você para não criar atrito entre todos.Pedro não gostou da mãe ter guardado segredo das brigas dos filhos.— Você fez muito mal de não ter contado. Só faltava essa! Nós dois

discutindo. Você me deixou muito triste. Você escondeu de mim as brigas eainda deu cobertura para que continuassem a brigar. Eu estou duas vezesdesapontado com você.

Essa foi a primeira discussão entre os dois e ficaram vários dias de caravirada. José foi quem mais sofreu com aquela situação. A mãe e o pai não sefalavam, mas ele os tratava como se nada estivesse acontecendo. Na verdade,ele não tinha nada a ver com o acontecido. Qual era a intenção do irmão?Jogar um contra o outro e ferir os três? Lúcio deveria ter uma explicação paraagir sem pensar. Estaria doente ou esconderia um segredo? Na verdade, eletinha medo de ser traído. Escondia-se atrás de sua revolta, que era o seuescudo. Ele se protegia, agredindo sua família. Tinha uma pessoa que sabia omotivo de tudo, por isso ele tinha medo e agredia a todos que estavam em seucaminho.

A lavoura de café já estava no sexto ano e prometia uma nova e grandesafra, a maior de todas. Os pés de café estavam cobertos de flores. Joséchamou o pai e a mãe para ver a linda florada e, assim, os dois conversariamum pouco mais. A intenção do filho deu certo. Quando os dois viram a floradado café esqueceram de tudo.

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— Márcia — dizia Pedro, — que coisa linda! Os pés de café estãobranquinhos de flores.

Os dois ficaram encantados.— É como eu a via em meus sonhos malucos, como você dizia.— Agora eu sei que eles não era malucos — disse a esposa.— Jamais esquecerei esta dádiva de Deus. Eu sou um produtor de café. O

que você sente, mulher, ao ver os campos cobertos de flores brancas?— Eu fui injusta quando dizia que os seus sonhos eram malucos.— Vamos esquecer as coisas tristes — propôs Pedro e, num gesto rápido,

desfez os cabelos de Márcia.Era um sinal de paz entre os dois.José seguiu, fazendo suas obrigações. A colheita do café se aproximava e

foram tomadas todas as providências e contratados os diaristas. A grande tulhaestava cheia de milho, pois o paiol fora pequeno para tantos grãos, por issoPedro vendeu o milho que estava na tulha. José tinha aumentado o terreirão.Agora ele tinha mais capacidade para a secagem do café. Assim, tudocuidadosamente pronto para a colheita. O café de Lúcio também prometia umaboa safra, pois seu café era muito bem cuidado, como era toda a sua lavoura.

Pedro olhava seu cafezal. Ele sempre sonhara um dia vê-lo assimcarregado de frutos. Márcia não esquecia a discussão do marido com o filho eprocurava não tocar no assunto, mas estava muito preocupada. Apesar disso,tinha esperanças de que tudo fosse esquecido.

Começou a colheita e ninguém pensava em outra coisa. Não havia tempoa perder. O café tinha de ser colhido no tempo certo. Pedro e Márcia cuidavamde esparramar o café no terreiro, aproveitando o sol que brilhava no céu azul.Todas as tardes chegavam uma grande quantidade de café e até tiveram quefazer uma pausa na colheita, até que secasse o que já estava colhido. Assim foipor três meses. A tulha fora feita na medida certa e encheu até o teto. Era caféque não acabava mais.

Pedro tinha realizado seu grande sonho de colher uma grande safra decafé. Seus sonhos estavam todos guardados na grande tulha do seu sítio.

José falou com pai:— Esta colheita valeu a pena.— Foi realmente uma grande colheita, você trabalhou demais, filho.— Não, pai, todos nós trabalhamos. O mais difícil na colheita é tomar

cuidado para que não fique frutos no chão e grãos sem colher. Tudo que ficano chão ou na árvore é prejuízo. Nossos diaristas são gente com muita práticae todos tomaram muito cuidado. Eu já verifiquei e não encontrei um só grãodo café na árvores ou no chão. Foi uma colheita muito bem feita.

— Graças a você, filho ! — disse o pai.

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Terminada a colheita do café começaram uma outra etapa. José preparavaa terra, chegando o cisco junto aos pés de café. Naquela época não era usadoadubo, pois a terra era fértil. Pedro esperou o produto subir de preço, paradepois procurar os compradores. Normalmente os preços eram os mesmos nastrês máquinas de café e não havia muita opção para o vendedor. Assim que opreço subiu, porém, Pedro vendeu tudo para o Sr. Miazaki. Foi ele quem fez amelhor avaliação no seu café. A satisfação foi muito grande, mas mal sabiaPedro que seus sonhos encerravam um ciclo ali. Na verdade, era o fim de umciclo, não o fim dos sonhos.

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A GEADA, A REVOLTA E A SANTA

Foi no ano de 1952, um inverno gelado, com poucas chuvas e um frio eraintenso. Pedro comentou com o filho, dizendo os cafezais estavam correndorisco de geada:

— É o mesmo frio do ano de 1942, exatamente há dez anos atrás. Josénão se lembrava da grande geada daquele ano, mas Pedro e Márcia tinhamviva em sua memória a lembrança do desespero dos fazendeiros. A geada de52 não veio tão forte como a de dez anos atrás. Os cafezais foram duramenteatingidos, mas não tão profundamente como da outra vez.

Começou, então, um novo trabalho. Foi preciso serrar pé por pé de café,retirar os galhos secos e esperar nova brota. Foi como começar tudo de novo,mas ninguém se sentiu derrotado. Foram à luta, plantando milho e feijão emgrande quantidade, para que o prejuízo não fosse tanto.

Pedro aumentou a quantidade de porcos de engorda. Tinha muito milhoestocado e uma boa plantação de abóboras. Durante os anos que se seguiram,José trabalhou no campo, cuidando das plantações e da terra, sua terravermelha, como o pai dizia:

— Eu tenho orgulho de pisar neste chão. Foi aqui que realizei meugrande sonho. Nós ainda vamos colher muito café nestas terras, se Deusquiser!

Lúcio não mudou de gênio. Com o passar dos anos ele se tornou aindamais revoltado. A mãe sabia que ele ainda iria aprontar uma grande confusão.As sessões de blasfêmias eram todos os dias, O pai ouvia e comentava comMárcia:

— Eu fico tão triste, ouvindo o que ele fala. São palavras tão pesadas!— Eu não digo mais nada — falou Márcia. — É melhor a gente ficar

calado. Não adianta dar ouvidos ao que ele fala. Nós sabemos que ele quer sercorrigido, para depois criar confusão. Deixe para lá. Não dê ouvidos e nãodiga nada a ele.

Márcia amava os filhos com igualdade. Sempre dedicara a todos amesma atenção, o mesmo carinho, mas naquilo que a magoava ela se retraía,fechava-se, sentindo-se anulada. Sem saber o que dizer, ela se afastava semcomentários. Sofria em silêncio, carregando dentro do peito aquela dor.

Muitas vezes era injusta com quem não merecia. Era a maneira que elatinha de se libertar, de pôr para fora toda sua dor, abrindo seu coração compalavras das quais depois se arrependia, muito chateada, querendo consertartoda aquela besteira e, com isso, ela sofria ainda mais. Como ela mesma dizia:

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— Agora tenho uma pedra a mais em meu caminho.Assim Márcia vivia, sofrendo com os filhos. Era sua fé que aliviava sua

dor. Pedro sonhador não mais sonhava. Tinha realizado todos os seus sonhosde conhecer novas terras, ter sua lavoura de café e ser dono de sua tão queridaterra vermelha.

Já não mais trabalhava. Passava dia jogando cartas, sozinho, relembrandoas suas noitadas com os amigos italianos. Eles sempre tinham um motivo paracomemorar: final da colheita, começo da colheita, aniversários, todos os dias,enfim, traziam consigo um motivo de comemoração onde não faltava ocarneiro assado. Passavam a noite jogando o famoso três-sete. Pedro ficavahoras, jogando cartas com seus amigos invisíveis. Arrumava a mesa, colocavaas cadeiras em ordem e, em silêncio, distribuía as cartas para cada um dosparceiros de rodada do três-sete.

Era incrível vê-lo assim, tão concentrado. Quando ele ganhava, ouvia-seo som de uma gostosa gargalhada. Todos os dias, após o almoço, Pedro,dirigia-se à sala de jantar, arrumava a mesa, colocava as cadeiras e distribuíaas cartas aos seus amigos de jogo.

Márcia nunca interrompia a distração do marido. Olhava para ele, tãoconcentrado no jogo e, com carinho, oferecia-lhe um cafezinho ou um tira-gosto. Em silêncio ele se retirava para não perturbar sua distração. Em todosesses anos, era o único momento de paz que ele encontrava. Jogar sozinhotalvez fosse voltar ao passado e estar de novo junto com seus amigos dejogatina. Eles nunca jogavam dinheiro, era só passatempo entre amigos.

Certo dia, depois de uma sessão de carteado, Márcia aproximou-se domarido e perguntou:

— Quem ganhou hoje, foi você ou foram seus amigos?— Hoje eu perdi.— Perdeu a nega também?— Perdi, não ganhei nem uma rodada. Você se lembra, Márcia, naquela

noite de frio, quando você foi atrás de mim? Ainda estávamos morando emDouradão. Eu jamais esqueci aquele dia. Já estava amanhecendo e eu nãotinha chegado. Foi tão gozado, quando você me viu carregando aquele enormecoqueiro nas costas para me aquecer do frio. Você não sabia se ria ou chorava.Eu estava suado, com aquele enorme tronco nas costas. Você fez uma cara deespanto e raiva. Tive medo de você me dar umas palmadas. Aquele coqueirotinha uns dez metros e pesava mais de cinqüenta quilos. Quando o soltei dascostas, foi como se tivesse jogado o mundo no chão. Você fez uma cara tãozangada, mas depois começou a rir da minha façanha. Você precisava ver acara dos meus amigos, quando eu contei a eles o que tinha acontecido. Elesme chamavam de Pedro do coqueiro. O apelido pegou.

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— Quantos carneiros vocês comeram naquele dia?— Foram três, com muita salada e polenta italiana.— O que mais vocês comeram naquele dia?— O famoso pão caseiro da Dona Chica.— Você tem saudades daqueles tempos, Pedro?— Tenho uma grande saudade dos meus amigos, daquelas reuniões

divertidas, regadas com vinho de laranja e carne de carneiro assado. Hoje eujogo sozinho, para vocês, mas para mim eu jogo com os meus amigos. Assimeu volto ao passado.

— As vezes eu não entendo você, Pedro. Você sempre sonhou com ofuturo. Eu não sabia que você vivia o passado, enquanto estava jogando.

— O passado faz parte do presente e do futuro. O passado faz parte danossa história e cada ser humano tem seu passado que o empurra para ofuturo. Eu sempre fico pensando que o Lúcio não é feliz. Ele carrega um fardovazio. Mais tarde você vai me dar razão. O passado dele vai ficar para osfilhos recordarem com tristeza ou saudade. Ana e Maria também vão carregarum grande vazio, com uma diferença: elas não têm revolta, como Lúcio.Benvinda era mais sapeca. Ela pensa que eu não sabia que, em todas asbrincadeiras-dançantes, ela arrumava um namorado. Ela levava a vida nabrincadeira, coisa de menina-moça sem compromisso e sem safadeza.

— Pedro, você não sabe de uma coisa — disse Márcia. — Ela não queriase casar.

— Por quê? — perguntou Pedro.— Ela gostava de um outro rapaz, que estava servindo o exército.— Quem era ele?— Isso eu não sei. Ela não quis dar o nome dele.— Então ela é a única filha que tem um passado para recordar. E você,

Márcia, me conte o seu passado, aquele que eu não conheço.— Eu não tenho nada para contar.— Você não tem passado como lembrança?— Tenho sim!— Quais são?— Todos que você já conhece. Eu conheci você ainda criança e nós

brincávamos juntos pelos campos, colhendo frutos e flores. Você se recordadaquela vez em que você colheu um lindo buquê de flores vermelhas, fez comelas uma coroa e colocou em minha cabeça, dizendo que, quando crescesse, iase casar comigo? Você ficou com tanta raiva de mim, quando eu a joguei nochão e sai correndo, morrendo de vergonha do que você tinha me falado.Saiba que eu nunca me esqueci das suas palavras.

— Que coisa linda, Márcia! Eu não recordo desse fato.

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— Eu nunca me esqueci. Eu tinha certeza de que você não tinhaesquecido também. Você foi meu primeiro namorado. Eu tinha uns dez anos.Foi bem antes de você sair de casa.

— Agora eu estou recordado. Foi no mês de junho e as flores eramtrepadeiras que davam nos campos. Com um cipó de flores eu fiz aquela coroade flores vermelhas. Você ficou tão linda com ela na cabeça. Naquele seuvestido branco, com bolinhas vermelhas, você parecia uma rainha em meussonhos de menino.

— É por isso que eu gosto tanto daquelas flores de São João.— Eu achava que tinha sonhado isso. Foi um sonho tão lindo ficou

gravado no coração. Então eu não sonhei. Foi verdade mesmo.Márcia ficou muito comovida e disse:— Eu também me recordo do vestido de chita branco com bolinhas

vermelhas. Eu guardei aquele vestido por muitos anos. Sempre que olhavapara ele tinha medo de que suas bolinhas caíssem, de tão velho que estava. Euainda me recordo de como você estava vestido. Usava uma camisa de mangascompridas xadrez, branco e vinho, calça meia-canela cinza, com suspensóriovinho. Usava também um boné esquisito, xadrez, da cor da camisa. Comaquelas botinas, você parecia um reizinho de verdade, só que você era rico eeu era pobre, nem tinha um sapato para calçar e corria pelos campos descalça.

— Você não esqueceu nem um detalhe desse passado?— Como eu iria esquecer de uma coisa tão bonita que era só minha?— Só sua, não, Márcia. Nossa. É o nosso passado e tem muitas outras

coisas tão bonitas como essa. É só começar a pensar no passado, que elas vãoaparecendo.

— E você, Pedro, do que mais tem saudades?— De minha mãe. Ela foi uma santa, me vestia muito bem, me dava

muito amor e carinho. Eu tinha um quarto só meu, como tinham os meusirmãos. A nossa mesa era farta. Os empregados de minha mãe eram todosfilhos de antigos escravos. Eu tinha também uma babá, que cuidava só de mime de minhas roupas. Ela cuidava de tudo que era meu. Ela preparava o meubanho, me arrumava e me levava para a sala de jantar. Eu tinha um professorparticular, que vinha todos os dias me dar aulas. O pouco que aprendi foigraças a minha mãe, que contratou o professor Jacinto. Eu andava só de trole,junto com meu pai e minha mãe. Nós éramos tão felizes, até que aconteceuaquela tragédia. Minha mãe adoeceu e morreu. Eu tinha uns dez anos de idade,mas me recordo muito bem de tudo. Meu pai não perdeu tempo. Casou com aprimeira que apareceu, só porque eu era pequeno e precisava de cuidados. Elaenganou meu pai direitinho. O que ela queria era dar o golpe do baú. De mimela nunca cuidou. Começou tirando a babá e deixou de cuidar do meu quarto e

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de minhas coisas. Eu não comia mais na mesa com meu pai e meus irmãos. Eucomia na cozinha, junto com os empregados. Ela servia o meu prato emandava eu comer. O pão, o leite e o queijo nunca mais me foram servidos. Aminha madrasta começou a esconder a comida e pedia aos empregados paranão contar nada a meu pai e me deixava de castigo, se me pegasse comendouma fruta ou um pedaço de pão. Foi quando conheci você. Nós doispassávamos o dia todo brincando no campo, onde eu tinha frutos para comer.

— Por isso você era tão magrinho?— Era, de passar fome, Márcia. As minhas roupas foram se acabando e

ficando pequenas. Ela nunca comprou uma peça de roupa para mim. Quandoela inventou aquela mentira, meu pai acreditou e me mandou embora de casa.Ela não me deixou falar com meu pai. Foi castigada pela vida e morreu namiséria. Quando ela veio me pedir dinheiro, lá no sítio do Douradão, eu nemdei resposta. Tive vontade de dizer tudo o que ela havia feito para mim. Como maior descaramento ela me disse: "você está bem de vida, me arruma umbom dinheiro que eu não vou perturbar mais." Que vontade eu tive de lhe daruma boa surra de chicote. Dei a ela o meu desprezo. Era o único sentimentoque havia guardado para ela. Eu não tenho remorso, só uma grande tristezaque, as vezes, eu ponho para fora, quando recordo o passado com Dinha.

— Por hoje chega de falar em tristeza. Vamos esquecer todas essasmágoas e tomar um café bem forte, do jeito que você gosta.

A vida continuava para Pedro e Márcia. A grande tristeza era Lúcio, cadavez mais revoltado. Pedro dizia:

— Eu tenho motivos para ser revoltado pelo que minha madrasta me fez,mas eu não guardei mágoa no coração, só uma grande tristeza. Lúcio não temmotivos para ser tão revoltado. Ele se fecha, só sabe ofender. Tenho muitapena da mulher dele. Ela morre de medo do marido. Ele deve ter um grandemotivo e deve ser alguma coisa bem séria. Ele tem medo de ser descoberto,por isso ele se esconde atrás dessa revolta.

— Eu tenho pensado muito nisso também — disse Márcia.José, por outro lado, era firme no trabalho, falava com o pai, ouvia as

ordens e as cumpria, plantava, colhia e entregava tudo ao pai para se vendido.Ele era feliz, engordava seus porquinhos e vendia. Essa era a única renda queele tinha. Era econômico e sempre tinha seus trocados. Foi aos poucosjuntando um bom dinheiro, pensando em seu futuro.

Freqüentava as brincadeiras-dançantes e gostava de um bom jogo debola. Não perdia um bom filme. Com sua bicicleta equipada com um bomfarol, pedalava dez quilômetros à noite para ir ao cinema na cidade.

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Um bom namoro, sem compromisso, isso ele não dispensava. Quandochovia no domingo, ele e seus amigos faziam uma boa rodada de truco ouescopa.

As garotas tentavam conquistar o jovem José, moço sério e trabalhador eum bom partido, disputado pelas moças do bairro, mas ele já estava de olhoem uma garota especial. Não disse nada para os pais, porque ele não tinhacondições financeiras para assumir um compromisso mais sério.

Certo dia, sua irmã Benvinda perguntou-lhe:— Você já pensou em se casar, mano?— Eu já tenho uma namorada, mas não conte para ninguém, é segredo

ainda.— Ela vai esperar você se decidir?— Vai, nós não temos pressa. Daqui a uns dois ou três anos eu decido,

mana.Certo dia, Pedro foi convidado para uma reunião cidade, justamente pelo

delegado. Márcia ficou preocupada com aquele convite. Pedro estavatranqüilo. Era um político honesto e sempre fora fiel ao seu governo, masmesmo assim estranhou a reunião ser na delegacia.

— Você está preocupado, Pedro? — indagou Márcia.— Eu estou confuso. Não é sempre que recebo um convite, a não ser

reunião do partido.Pedro vestiu seu melhor terno de linho. Ao chegar na tal reunião foi

recebido com muitas palmas. Ele ficou ainda mais confuso. Todos oabraçavam e diziam:

— Parabéns Pedro! Você é um grande homem e merece este título queestamos dando a você. Vai ser uma tarefa difícil e muitas vezes complicada.Nós decidimos dar a você o título de Inspetor de Quarteirão. A partir de hojevocê é uma autoridade no seu bairro. É de sua responsabilidade tudo queacontecer em seu bairro, como brigas de casais em brincadeiras-dançantes eoutras, em qualquer lugar. Você terá que resolver na base de conselhos e atédesarmar os briguentos. Se alguém sair ferido em brigas de armas brancas ouarmas de fogo, você desarma o fulano, pega a arma e traz todos para adelegacia. Nós o escolhemos porque é honesto, honrado e um homem de bem.Temos certeza de que irá resolver esses casos sem problemas.

Pedro ficou satisfeito com o cargo que recebeu. Márcia esperava aflita avolta do marido, que chegou e contou para a esposa o que tinha acontecido.Ela disse ao marido:

— Você pegou um grande abacaxi e difícil vai ser descascá-lo.

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Na primeira brincadeira-dançante que houve, logo depois, Pedro foichamado para pôr fim a uma briga de baderneiros. Eles chegaram e apagaramo lampião. Foi uma grande confusão. Pedro entrou e deu uma ordem:

— A festa continua. Ninguém se atreva a me desobedecer. Aqui eu souautoridade,. Volto a dizer, a festa continua e todos os baderneiros estãoconvidados a comparecer, segunda-feira, às dez horas da manhã, na delegacia.Quem não for, mando a polícia ir buscá-lo e ficará preso por três meses até umano.

Pedro ficou orgulhoso de seu primeiro serviço. Na segunda-feira, láestavam todos, com medo do delegado. Ele passou a ser chamado paraacalmar casais. Com uns bons conselhos, ficava tudo em paz. E assim seguiupor muito tempo.

Márcia ficava preocupada com as chamadas em noites de chuva, mas elenunca deixou de atender um chamado sequer, para desespero dela. Certa vez,fizeram uma brincadeira-dançante em um casarão desocupado. Retiraram asparedes de dentro, deixando um grande salão. Pedro foi chamado para tomarconta da festa, mas ele se atrasou. Nisso chegou um grupo de novatos dacidade. Com eles vieram duas moças, Marta e Geruza.

Ninguém conhecia esse novo grupo de rapazes e eles também não sabiamque o Inspetor iria tomar conta da festa. O salão só tinha uma porta de entrada.A festa estava animada, quando eles chegaram e apagaram o lampião. Nesseinstante, Pedro chegou na porta e disse:

— Estejam todos presos, seus desmancha-festas!Sacando seu revólver, deu um tiro para cima e fora da porta. Foi um

corre-corre. Moças e rapazes pularam pelas janelas, caindo um em cima dooutro. Os briguentos deitaram-se no chão, por ordem de Pedro. Foram levadospara a cidade e ficaram presos até a segunda-feira. As duas moças foramlevadas para a casa dos pais. Este fato ninguém esqueceu, porque do lado dasjanelas tinha um curral e todos ficaram cheios de bosta de vaca. Esta festa foimuito divertida e comentada por muito tempo.

Pedro era chamado até em vendas de beira da estrada. Era bêbado quenão queria pagar a conta ou era peão de faca na mão, desafiando comerciantes.Ele era um convidado especial, com direito a uma rodada de truco, que elegostava muito.

Pedro estava sempre presente em todas as reuniões festivas do bairro, erarespeitado por todos e querido até pelas crianças na porta das escolas. Nuncarecebeu um réu por isso. Foi um político honesto e esquecido pelasautoridades, que nunca lhe fizeram uma homenagem, dando seu nome a umarua da cidade que ele tanto amou. Tinha orgulho de pertencer a esta terravermelha, a terra dos seus sonhos.

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Essa foi uma experiência para Pedro. Apesar de tudo, valeu a pena serútil e isso dava a ele um enorme prazer. Seus conselhos nunca foramesquecidos. Os casais em atrito viam em Pedro um conselheiro. A cada casoem que ele era chamado, eram novos amigos que ele arrumava.

— Santo de casa não faz milagre, é um ditado popular! — dizia Pedro, eera uma grande verdade, porque o filho jamais aceitara um conselho seu.

Isso magoava-o muito, tirando sua autoridade. Tanto que, certo dia, elecomentou com Márcia:

— Eu tenho medo que o Lúcio faça uma grande besteira. Ele comprouum sítio e ficou devendo mais da metade do valor. Ele não diz nada sobre seusnegócios. Parece que ele está fugindo de nós ou está escondendo algumacoisa. Eu não o entendo. Para que tanta revolta e mágoa? Ele é tão infeliz.

Márcia recordou da profecia. Fazia tempo que ela não pensava noassunto. Ela não havia esquecido daquelas palavras. Mesmo depois de tantosanos, ela estava viva em sua mente. Sabia que aconteceria algo de muitograve.

— Com quem será? — perguntava-se. — Quando será? Meu Deus, nãodeixe que nada de mal aconteça a nenhum de meus filhos. José é tão meigo eobediente, respeita tanto o pai e a mim. Já o outro parece um estranho comaquela revolta. Ele quer atingir alguém de uma maneira cruel. É uma intuiçãoque tenho. Isto para mim não falha e eu tenho muito medo.

Certa feita, Pedro a chamou:— Venha aqui na rede comigo. Eu quero lhe dizer uma coisa muito séria.Márcia sentiu um grande arrepio. Seus cabelos ficaram em pé.— Meu Deus, o que será desta vez? O que foi que aconteceu? —

perguntou-se de imediato.— Venha aqui, Márcia. Eu quero convidar você para fazermos uma

viagem.Ela sentiu um alívio geral. Ainda assim, suas pernas tremiam, sua voz

não saia e ela gaguejava. Pedro começou a rir do embaraço da esposa.— O que foi? Você está tremendo? E por que está gaguejando dessa

maneira?Ela começou a chorar e cobriu o rosto com as mãos. Pedro disse:— Deixe de bobagem. Por que esse choro agora, sem motivo? —

indagou, enquanto, carinhosamente, enxugava suas lágrimas. — Não querviajar comigo e com as crianças?

Márcia nem podia falar, de tão emocionada que estava. Continuoucalada: Pedro insistiu?

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— Hei, mulher! Ficou muda de uma hora para outra? Fale comigo! Nãogostou de meu convite? Nós vamos a Aparecida do Norte. Eu sei que vocêsempre teve vontade de ir até lá.

Ela chorou ainda mais, abraçada ao marido e em silêncio:— Obrigada, meu bom Deus, por esta notícia! — agradecia ela.Pedro, notando que ela estava confusa, desfez seus cabelos, fazendo-a

sorrir. Os cabelos de Márcia eram longos e presos com um birote no alto dacabeça.

— Veja o que você fez! Outra vez soltou o meu birote e me deixou comcara de bruxa, com esses cabelos soltos.

— Você está linda, Márcia. Eu gosto de soltar seus cabelos só para versua cara de brava. Então, vamos viajar? Posso marcar as passagens? — Deque jeito vamos viajar?

— De caminhão — respondeu o marido. — Vamos de pau-de-arara.Vocês vão gostar da viagem.

Márcia ficou de boca aberta.— De pau-de-arara, Pedro? Que loucura! Você deve estar brincando

comigo. Você me deixou muito triste com essa brincadeira.— Não é brincadeira minha. Nós vamos viajar de caminhão mesmo, só

que não é pau-de-arara, fique sossegada. Eu sei o que estou fazendo.Com os preparativos para a viagem, Márcia se esqueceu da profecia, da

revolta do filho, das preocupações que tanto a afligiam e do tremendo sustoque levara, quando o marido a chamou para falar da viagem. Agora iriarealizar um grande sonho adormecido, que guardava no fundo de seu coração,que era ir a Aparecida do Norte, fazer uma visita à santa de sua devoção.

A sua alegria era tão grande que ela se esquecia até de comer. Era comouma criança que iria ganhar seu tão sonhado presente de Natal. Ela Márciacantava, sorria e chorava de alegria, fazendo seus planos. Pretendia pagartodas as promessas que devia a Nossa Senhora.

Tinha muita fé que tudo iria melhorar, depois dessa viagem. Queria pedirà santa para que tirasse dos seus pensamentos a profecia, que tanto aatormentava. Pediria também pela felicidade de seus filhos e eram tantos ospedidos que ela teve que fazer uma lista de tudo que iria pagar ou a sua santa.Não podia esquecer de nenhuma promessa, por menor que fosse. Tudo era degrande importância para ela.

Pedro fez as reservas das passagens, com direito a hotel, duas refeiçõespor dia e café da manhã. Na época não tinha asfalto. As estradas eram de chãobatido. Caso chovesse, a viagem demoraria de quatro a cinco dias. Era umaexcursão sem pressa para voltar, com muita fé na santa.

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Chegou, finalmente, o grande dia. Márcia preparou comida para ummutirão e disse o marido:

— Vamos levar pão caseiro, lingüiça frita, lombo cheio, farofa comfrango, frango assado e muita água para todos.

Pedro comprou três corotes, grandes o suficiente para guardar água paratodos durante a viagem. Quando tudo pronto, Pedro arrumou um jipe com umvizinho e foram para a cidade, onde embarcaram.

Apesar de estarem todos mal acomodados e do vento frio e forte quelevantava a lona que cobria o caminhão, tudo valia a pena. Iam cantando hinoscatólicos e rezando, pedindo proteção a Nossa Senhora da Aparecida. Quandochegaram naquela cidade, encontraram uma multidão que lá estava. A Basílicaera pequena para tanta gente.

Mal chegaram ao hotel, Márcia tratou de fazer sua via sacra. Primeirocomprou uma vela de seu tamanho e foi cumprir sua primeira promessa. Tinhalevado uma foto de toda a família e a colocou na sala dos milagres. Assistiu àsanta missa e agradeceu a Nossa Senhora pela boa viagem. Pediu pelos filhos,pela paz e felicidade de todos. Pediu para a santa dar mais calma ao filhoLúcio e para que tirasse dele aquela revolta que tanto a fazia sofrer.

Márcia foi se confessar e contou ao padre o que tanto a atormentava, aprofecia. Ela queria uma penitência para que nada de mal acontecesse anenhum de seus filhos. Ela recebeu os conselhos e a penitência e o padre lhedisse:

— O que está escrito, vai acontecer, é o desígnio de Deus. Vá em paz eque Deus a proteja. Tenha fé. É a sua fé que vai proteger sua família.

Márcia comprou uma Bíblia, um terço, uma imagem de Nossa Senhora evárias lembrancinhas para todos.

A viagem de volta transcorreu tranqüila e sem problemas. Márcia sentiaque tinha deixado na Basílica todos os seus temores. Prometera a santa quevoltaria em breve para agradecer a benção recebida. Já não mais pensava natão temida profecia.

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A BROCA E A GEADA

Após a viagem, inspecionando a lavoura, José descobriu, com espanto,no café já quase maduro, bichinhos que se pareciam com carunchos. Elecolheu vários grãos de café e levou para o pai ver. Pedro olhou bem e disse:

— Se não estou enganado, isto aqui é broca do café. É uma praga novaque apareceu e só com BHC podemos combatê-la. Temos que tomarprovidência bem rápido, antes que ela acabe com nosso cafezal.

Foi uma grande batalha para combater a broca do café, que danificava ogrão ainda em formação, depreciando o produto na hora da venda. O inseticidausado era muito perigoso para a saúde. José tomava muito cuidado,carregando nas costas a bomba cheia do veneno. Era um trabalho difícil,cansativo e perigoso. Não podia deixar cair na pele nem uma gota. Tinhamque tomar leite em lugar da água e na hora do sol muito quente era muitoperigoso.

Precisava trabalhar a favor do vento. O cheiro forte dava muita dor decabeça e de estômago, mas ele não se queixava de nada. Queria passar logo oveneno para controlar a broca do café, porque acabar com ela era impossível.A praga já havia se alastrado por todos os cafezais da região.

Pedro sentiu-se derrotado com a praga nos cafezais. José, no entanto,dizia ao pai:

— Nós vamos ter mais cuidado, não fique preocupado. Eu vou cuidar detudo.

— Se não fosse você, filho, eu iria desistir desse café. Mandava arrancartudo e botava fogo. Assim acabaria com essa maldita broca dos cafezais.

— Nada disso, pai. Eu vou combater essa praga. Alguns prejuízos vamoster. Por mais que combatamos, todo ano ela vai aparecer de novo.

— Tem fazendas aqui por perto que já estão arrancando todo o café. Vãoplantar algodão e o tal rami. Eu ainda não conheço essa planta. Dizem que dámuito dinheiro e ocupa muita gente na sua colheita. Dizem também que amáquina usada é muito perigosa. Ela não têm nenhuma proteção e pode cortaro braço do peão. Todo o cuidado é pouco.

— O senhor não está pensando em arrancar o nosso café e plantar o talrami?

— Eu só não vou mandar arrancar o café por você, que cuida muito bemde tudo.

— Então vamos combater a broca e seja o que Deus quiser — respondeuo filho.

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O café que Lúcio cuidava também estava com a broca. Ele viviaxingando as malditas brocas que queriam acabar com seu café.

— Eu comprei um sítio e tenho que dar mais uma parcela do pagamentocom a venda do café. Agora essa maldita praga vai acabar com meus lucros.

Dizia ele aos amigos:— Eu não quero nem saber de plantar café no meu sítio. Eu vou plantar

hortelã pimenta. Essa plantação é de poucos gastos e muito lucro. Não tempragas para prejudicar na hora da colheita. Aqui estão arrancando café e vãoplantar algodão e o tal rami. Algodão é uma droga também. Tem as lagartasque destroem tudo e se chove na hora da colheita é prejuízo na certa. O ramieu não conheço, mas dizem que é muito perigoso para quem trabalha na bocada máquina. O peão pode perder o braço e ficar aleijado para sempre.

Esses eram os planos de Lúcio. Pela primeira vez ele falava aos amigossobre o que ele pretendia para o futuro. Enquanto isso, a broca continuava aser combatida com o B.H.C.

Márcia, depois da viagem a Aparecida do Norte, vivia bem maistranqüila e não sentia mais aquele mal-estar. Graças à santa e às palavras dopadre agora ela não se martirizava tanto e conseguia afastar de seuspensamentos a profecia que tanto a atormentara. Mantinha consigo a Bíbliacomprada, mas não a lia, pois não sabia. Só viria a aprender muito tempodepois.

Certo dia, Lurdes falou com a mãe:— Arrumei um namorado.— Quando foi que você conheceu esse moço? — perguntou a mãe.— Foi na brincadeira aqui na tulha, sábado passado. Ele me pediu em

namoro, e eu disse a ele que sim.— Por que você não fez como sua irmã Benvinda, que pediu um tempo

para eu falar com seu pai?— Ele é meu primeiro namorado. Fale com o pai que eu estou

namorando o Ricardo.Pedro, ao saber, não viu com bons olhos aquele namoro, pois Lurdes fora

muito precipitada. Ela mal conhecia o rapaz. No domingo, depois do almoço,ele chegou. A filha disse ao pai:

— Este aqui é Ricardo, o meu namorado.Pedro fez muitas perguntas ao rapaz e não ficou contente com as

respostas.— Tudo bem! — disse Pedro. Eu não quero namoro longo. Filha minha,

quando arruma namorado, tem que se casar logo. Foi assim com as outras trêsfilhas e será com esta também. Assim que ela completar dezesseis anos, eu

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faço o casamento. Eu não gosto de agarra-agarra e nem de namoro à noite.Traga seus pais para eu conhecer na próxima semana.

Assim foi feito. Os pais de Ricardo vieram, trataram do casamento emarcaram a data para o dia 22 de abril.

— A festa eu faço, não preciso de ajuda. A despesa corre tudo por minhaconta. Eu sou o pai da noiva, é minha obrigação.

Lurdes disse à mãe:— Eu quero um lindo vestido de noiva, com uma grande cauda e o tecido

de rendas.Márcia respondeu:— Você não acha que está querendo muito?— Casamento é só uma vez. Eu não tenho culpa se minhas irmãs não se

casaram com um lindo vestido, como eu quero, porque elas não pediram aopai.

— Filha, não é o vestido que traz a felicidade para quem se casa.— Não me importa, mãe. Eu quero o meu vestido com cauda bem longa

e o tecido de renda.A mãe insistiu:— Eu posso fazer o seu vestido. Fiz os da suas irmãs e elas gostaram.— Eu quero o meu vestido feito por uma boa costureira da cidade.— Tudo bem — concordou a mãe. — Seu pai vai a cidade falar com sua

irmã. Ela conhece uma boa costureira para fazer o seu vestido.— Eu quero ir junto para escolher o tecido e o modelo.— Tem muito tempo.— O tempo passa depressa. Eu não quero deixar para a última hora.— Que pressa é essa?— Casamento não é um casaco que se pendura em um prego ou cabide.

Eu agora vou cuidar só da minha casa.— Tudo bem, filha. Tomara que você seja muito feliz!— Eu vou ser feliz, a senhora vai ver.Márcia ficou muito magoada com as palavras da filha. Se ela soubesse

como era difícil a vida, não agiria daquela forma. Tempos depois, porém,Lurdes descobriria que a vida de casada não era tão linda, como fora o seuvestido de noiva.

Tudo, afinal, foi feito como elas queria. Pedro fez um grande almoço,servido ao ar livre, no quintal de sua casa. Depois disso, a vida no sítiocontinuou. A maior preocupação era a batalha contra a broca do café. José,incansável nessa luta, disse ao pai:

— A praga já está controlada. Este ano eu ainda não encontrei um sógrão com a broca.

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Tempos depois, ele comunicou aos pais que iria marcar a data de seucasamento. As duas famílias já se conheciam. Lúcio continuava cada vez maisrevoltado. Saía de casa chutando tudo que encontrava pela frente. O gato e ocachorro eram os primeiros a receber seu pontapé. Se ele chamava o cachorropara pegar um porco que havia saído do chiqueiro, o cachorro saia correndo seesconder, bem longe dele.

Lúcio xingava, berrava e iniciava sua sessão de blasfêmias contra ospobres animais. Se ele ia pegar a égua Faceira para selar, ela erguia o rabo edesembestava numa louca corrida pelo pasto a fora. Todos os animais tinhammedo dele, até o velho Paxola.

— Ele só pode estar doente — disse um velho amigo da família.Pedro sentiu as palavras do amigo e respondeu:— Ele é um bom rapaz. Trata os amigos muito bem é trabalhador,

honesto e nunca deixou faltar nada para a família. Eu não tenho explicação efico muito triste a magoado com essa situação. Ando muito nervoso.

— O senhor tem que se cuidar. Saia de casa, vá a cidade, converse comsua filha, com os amigos que tem na cidade e se distraia um pouco.

— Eu faço isso, caro amigo. Todos os dias vou na venda do PedroJaponês e passo boa parte do dia, jogo truco e bato um bom papo com todos osmeus amigos. O meu coração parece que quer apostar uma corrida comigo. Eugosto mesmo é de jogar o meu três-sete sozinho, no faz-de-conta com os meusamigos do passado.

Márcia entrou na sala, servindo um cafezinho, e ouviu boa parte daconversa. O amigo perguntou pelas filhas Ana e Maria.

Com tristeza, Pedro respondeu:— Elas não me mandam notícias. Ana está em Maringá e trabalha como

merendeira em um colégio. O marido trabalha na prefeitura. Fiquei sabendoque o marido de Maria toma conta de uns maquinários do dono da fazenda emque eles moram. A fazenda se chama Espoleta e, perto dela, tem uma vendaque tem mesmo nome. É só o que sabemos.

— Então peça para a sua filha Benvinda escrever para a tal vendapedindo informações.

Márcia achou uma boa idéia e a carta foi enviada ao proprietário davenda Espoleta e chegou ao seu destino, depois de algum tempo. O dono davenda recebeu a carta e não teve coragem de abri-la, pensando ser algumaameaça de jagunços. Essa carta correu de mão em mão, até que um valentão aabriu. Dizia:

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Eu procuro uma família, Maria eDurvalino.Gostaria que o senhor me fizesse essagentileza, pedindo informação aos seusfregueses e amigos. Eles moram na fazendaEspoleta. Quem escreve é a irmã de Maria.Aqui estão o nome e o endereço. Aguardoansiosamente uma resposta e que Deus oabençoe por este favor.

Depois de vários dias chegou a resposta, com o endereço completo docasal. Pedro ia todos os dias à casa da filha, à procura de notícias. Certo dia,quando o pai ia chegando, a filha de longe acenou com a carta.

Coitado do coração de Pedro. Ele mal podia acreditar que estivesserecebendo notícias da filha. A carta dizia que haviam encontrado o casalprocurado que morava ali perto e não mais na fazenda Espoleta, indicandocomo chegar até a tal venda. Pedro ficou muito feliz com a notícia e decidiu ircom Márcia, naquela mesma semana, à casa de Maria.

Assim o fizeram. Ao chegarem à tal venda, mostraram a carta ao senhorque os atendeu, dizendo

— Eu me chamo Pedro e sou o pai de Maria. Esta é minha esposaMárcia.

O senhor gentilmente disse:— É um prazer conhecê-los. Eu também sou pai de filhas distantes, por

isso eu entendo suas preocupações. Seu genro eu não conheço. Dizem que eletrabalha na cidade. Sua filha e as crianças vêm sempre fazer compras aqui naminha venda. Eu só não sabia o nome dela. Venham tomar um café. Depoisiremos fazer uma surpresa para eles.

Realmente foi uma grande surpresa. Maria, quando viu os pais chegarem,dizia, chorando de alegria:

— Eu estou sonhando. Não acredito que são vocês. E o restante dafamília?

Maria, abraçada ao pai e a mãe ao mesmo tempo, chorava muito.— Quanta saudades eu tinha de vocês.Pedro, emocionado, perguntou a filha:— Por que não mandou notícias. E o seu marido, o que ele faz na vida?Maria, meia sem jeito, disse ao pai:— Ele trabalha em um clube de jogo na cidade. É o que ele diz. Vem de

quinze a vinte dias para casa e não trás nada no bolso. Fala que o que ganha

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gasta tudo lá mesmo e só volta quando acaba o dinheiro que dou a ele. Ganhoalguma coisa costurando para fora.

— Você está se acabando nessa máquina de costura, filha.— Pois é dela que eu tiro o sustento da família. Veja o pedal da minha

máquina já está gasto. O ferro já está fino, de tanto eu pôr os pés para costurar.E ainda tenho que dar dinheiro para ele ir trabalhar.

— Que vida é essa, minha filha? Você vive sem conforto, trabalhando nacostura dia e noite sem parar. Eu fico muito triste por você e pelas crianças.

— Eles estão bem, pai. Não fique preocupado. Todos estão estudando eum dia eles irão me retribuir todo o meu esforço. Tenho certeza e muita fé emDeus.

Maria queria saber de todos os irmãos. A mãe contou detalhadamente asituação de cada um deles. Lurdes tinha se casado, José iria se casar ainda esteano, Benvinda estava bem e Lúcio cada dia mais revoltado, mas todos estavambem de saúde.

A mãe contou da viagem a Aparecida, do cafezal com as pragas da brocae passaram o dia conversando. Falou também que o pai não andava bem desaúde, mas que não era nada de grave, pois o médico nem tinha lhe receitadoremédio. A doença do pai era só nervoso.

Foram três dias de muita conversa. Para matar a saudade, foi muitopouco para quem estava longe e sem notícias. O genro chegou com aquelacara-de-pau que sempre teve, cumprimentou a sogra, abraçou os filhos eperguntou para a mulher.

— Como você está? Tem costurado muito?Os pais ouviram os dois conversando a noite.— Quanto dinheiro você trouxe desta vez? A situação não está boa. O

dinheiro está curto e o que eu ganhei, gastei tudo. Você vai voltar?— Vou sim, Maria!— Então trate de ganhar o dinheiro para viajar. De agora em diante, eu

não vou lhe dar nem um centavo. Você não tem é vergonha. Passa tanto tempofora de casa e não traz nem um quilo de alimento para as crianças.

No outro dia, os pais voltaram para casa, tristes com a situação da filhamas ainda assim acharam que valera a pena terem ido ver a filha.

— Agora sabemos que ela é mais esperta do que pensamos. Ela fala enão manda recado.

Márcia contou ao marido que tinha dado uns conselhos para ela deixar deser boazinha. Ele não merecia a mulher que tinha.

A viagem fez muito bem para Pedro. Apesar de tudo, ele estava contentecom a atitude da filha. Sabia que ela iria dar um basta no merda do seumarido. Maria tinha falado com a mãe que ele estava arrumando uma casa

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para eles na cidade. Graças aos conselhos da mãe, a filha havia tomado adecisão certa. Maria havia prometido mandar o endereço assim que elesmudassem para o endereço novo.

José tinha ficado sozinho, enquanto os pais estavam viajando. Haviadecidido marcar a data do seu casamento. Falou com os pais. Pedro ficoumuito contente e disse-lhe:

— Vocês vão ficar morando aqui, juntos com a gente, até fazer a casa devocês. Arrume seu quarto com a cama de casal. Sua mãe tem uma guardada láno depósito. Podem usar por alguns tempos.

José, depois de jantar, pegou sua bicicleta e foi visitar a noiva e marcar adata do casamento. José amava Aparecida e era muito querido pela família danoiva.

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FANTASMAS DO PASSADO

Pedro amava Márcia. Eles se conheceram ainda pequenos e foi um amormuito grande, que venceu todas as barreiras que o destino pôs em seuscaminhos. Ele foi muito querido pela família de Márcia e os dois foramfelizes.

Parentes é Deus que nós dá e amigos a gente escolhe. Pedro sempre teveo maior respeito pelos amigos e grande estima pelos parentes, por isso ela eratão querido por todos.

Márcia tinha nos amigos uma outra família. Aquelas a quem ela haviaescolhido eram suas amigas, que lhe faziam companhia. Suas visitas adeixavam com novo ânimo para enfrentar os dissabores que, no seu dia-a-dia,apareciam. Os parentes muitas vezes a magoavam. Ela se sentia derrotada,sem saída, porque eram parentes. Dias depois, o pessimismo de Márcia foianulado por um novo fato.

José foi convidar o irmão, para o seu casamento. Lúcio prometeu queiriam todos. Conversaram normalmente. Lúcio até parecia outra pessoa.Falaram da broca do café, do sítio que ele havia comprado, onde iria plantarhortelã pimenta, algodão, milho, feijão e um bom pomar. Iria depois plantarseu café, tão logo arrendasse o sítio para uma boa família formar a plantação.Antes ele teria que fazer uma casa para o empregado, uma represa para criarpeixes e para os amigos fazerem pescaria aos domingos.

Pedro, ao saber da conversa dos filhos, ficou muito contente, comentoucom Márcia que Lúcio estava mudando para melhor.

— Era isso que me estava faltando. Agora eu sou completamente feliz —disse ela.

A nora comentou que o marido iria comprar roupas novas para toda afamília e a paz havia voltado ao sítio de Pedro. Márcia se recordou daprofecia, não com desespero, mas como algo que havia ficado no passado,enterrado pelos conselhos do padre. Ela agora respirava aliviada. A lembrançanão mais a fazia sofrer. Ela agradecia a Deus pela benção recebida. A pazentre todos era realmente uma grande benção.

Tudo estava correndo bem, a paz trazida por Deus fazia o mundo dePedro e Márcia mais iluminado. O céu era mais azul, os pássaros cantavamnos galhos das laranjeiras, o bem-te-vi os saudavam todos os dias. O sabiávinha comer as frutas maduras, o beija-flor os visitava todos os dias nopequeno jardim sempre florido de Márcia, que ela cuidava com muito carinho.Depois de tanto tempo vivendo atormentada pelos seus pensamentos, pela

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profecia e pelo medo de que poderia acontecer alguma coisa que ela não sabiao que era, ela havia acordado desse pesadelo de muito tempo. A família unidaera tudo que Márcia tinha pedido a Deus. Ela se recordava do passado, doengenho do pai, do quanto ela tinha trabalhado, cortando cana ainda menina.Suas irmãs e irmãos eram tão unidos. Uma grande saudade havia ficado dessetempo, do pai tão querido que faleceu e da mãe nunca esquecida.

Um dia, perdida em seus afazeres, ela pensava: "eu estou sentindo umgrande vazio. É esta saudade que dói aqui em meu peito. A minha casa tãogrande ficou vazia. A vida é uma grande ilusão, assim como foram os sonhosmalucos de meu marido, nossa vida juntos, tantos anos de sonho e realidade.Agora me sinto tão só. O meu mundo ficou vazio, sem lutas, sem sonhos, semesperanças. Eu não tenho mais nada a ser realizado. Pedro não desfaz maismeus cabelos. Parece que ele se esqueceu que eu estou ao seu lado. Ele já nemsonha mais. Pedro sonhador esqueceu de sonhar, esqueceu o passado. Ele viveo presente agora e não pensa no futuro. Por que isto está acontecendo comigoe com ele? Será que valeu a pena tantas lutas e dificuldades, tanto trabalho?Sofremos juntos para criar nossos filhos. Demos a eles toda a nossa vida e oque nos restou? Só este rosário de preocupações."

Márcia estava voando com seus pensamentos e nem notou o filho Lúcioolhando para ela, com um grande pacote de compras que ele havia feito. Disseà mãe:

— Venha ver as roupas que eu comprei para toda a família. Nós vamostodos ao casamento do José. A senhora já comprou suas roupas também? Euquero ver.

A mãe não acreditava que o filho estava tão entusiasmado com ocasamento do irmão. Foi correndo buscar suas roupas. Ele olhou e gostou,muito dizendo:

— A senhora vai ficar muito bem com este vestido de seda.Há muito tempo que ele não a tratava assim. Ela já havia esquecido do

som daquela voz.Finalmente os preparativos para o casamento já estavam todos prontos,

assim como as roupas novas para toda a família e o terno do pai e do noivo.Foram dias de muito trabalho e alegria.

Márcia pedia a Deus para que aquilo durasse para sempre. Estava felizcom o casamento de José. Ele sempre fora um filho que nunca lhe deradesgosto nem ao pai. Sempre tratara bem as irmãs e era muito querido eestimado por elas.

Um dia, Pedro sentiu-se mal, com uma forte tontura e chamou porMárcia pedindo:

— Traga uma xícara de chá bem quente para mim.

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Ela fez o chá rapidamente e deu para o marido tomar.— O que foi que aconteceu?— Não foi nada. Eu me senti mal. Parece que tudo está rodando.Márcia ficou aflita.— Eu vou chamar o José.— Não chame ninguém. Vai passar logo.— Então fique calmo e vai se deitar um pouquinho.— Não fique preocupada, mulher! Já passou. Eu estou melhor.— Então vai jogar cartas com seus amigos.— Com os meus amigos Márcia? Agora você entendeu que eu não jogo

sozinho e sim com os meus amigos do passado. Traga mais biscoitos e façaum pouco mais de chá para todos.

— Você vai jogar três-sete com eles?— Sim, eu vou jogar. Traga uma xícara só, está bem.— Eu faço tudo para agradar você.— Então tome o chá comigo e me faz companhia.Rapidamente ele desfez seus cabelos e ainda lhe fez cócegas. Márcia

arrependeu-se de seus pensamentos anteriores. Ela estava enganada a respeitodo marido.

Pensou: "ele precisa é de carinho. Quer a minha atenção e carinho. Nósdois somos dois carentes de afeto. Nós dois esquecemos de nós."

Pedro tomou o chá e foi se deitar na rede. Não quis jogar cartas e chamouMárcia para ficar com ele, conversando.

Ele disse:— Como nós trabalhamos nestas terras! Aqui criamos nossos filhos, aqui

também plantamos nossos sonhos malucos, como você sempre dizia. Márcia,você ainda acha que eles foram malucos?

— Não, Pedro, eles não foram malucos. Eles foram todos realizados evocê ainda sonha?

— Não, Márcia, eu não sonho mais. Agora eu só quero ter boa saúde, epara você também, para nós dois juntos cuidarmos do Antônio, que não temboa saúde. Outro dia ele estava lá na roça e teve uma convulsão. Ele sedebateu tanto. Eu nunca tinha visto coisa igual e eu fiquei com muita penadele. Custou para voltar a si.

— Nós temos que ter muito cuidado com ele. Não podemos deixá-losozinho por muito tempo e nem permitir que ele faça serviços comferramentas. Ele pode se ferir gravemente.

Depois de conversar com a mulher, Pedro sentiu-se bem melhor. Márciaperguntou:

— Quer ir jogar cartas agora?

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— Não, eu vou tirar uma soneca aqui na rede e você vai fazer um frangocaipira para o jantar. Quero com molho caipira também.

— Eu sei, e como muito alho. É como você gosta.Márcia se abaixou para beijá-lo. Ele aproveitou para soltar seus cabelos

num gesto de carinho que ela gostava de receber do marido. Depois do jantarele se sentou em sua cadeira de balanço e ficou pensativo, fumando seucigarro preferido.

Chegou, então, o dia tão esperado. Todos almoçaram, cada um em suascasas, vestiram-se e lá foram todos para a cidade para assistir a cerimôniareligiosa. Após o casamento de José e Aparecida, foram comemorar tomandouma cerveja. Os noivos iam viajar de lua-de-mel para Aparecida do Norte.José não quisera que o pai fizesse a tradicional festa a que todos estavamacostumados. A mãe tinha que ser poupada de tanto trabalho. Ele fazia muitogosto de que a mãe fosse ao seu casamento. Ela não assistira a nenhum doscasamentos das filhas e para a mãe foi uma grande alegria assistir o casamentodo filho.

Depois de uma semana, o casal voltou e José pegou firme no trabalho,agora com mais incentivo. Tinha uma esposa e iria trabalhar ainda mais parater seu futuro garantido .

Ele trabalhava para o pai, cuidando da lavoura que não era pouca. Nosítio moravam ainda Lúcio e um colono. Ao todo, eram três famílias quetocavam as lavouras do sítio de Pedro. Todos viviam em paz. Lúcio tinhamoderado a sua revolta. Não mais era ouvido xingando e nem batendo no gatoe ou no cachorro. Apesar de todo estar tranqüilo e das famílias terem uma boaamizade entre si, Márcia vivia sempre com um pé atrás, enquanto Pedro já nãoprecisava mais dar ordem a José, que era um profissional da lavoura. Seusconhecimentos eram profundos e corretos.

Havia dois meses que José estava casado e morando junto com os pais,enquanto esperava que o pai decidisse fazer sua casa. Pedro, depois de umalonga conversa com Márcia, decidiu que José e sua esposa ficariam morandojunto com eles.

Chamou o filho e comunicou o que tinham decidido. José, então, disse aopai:

— O senhor quer igualdade de tratamento da parte dos dois filhos, maspara o outro o senhor fez a casa e para mim, não. O senhor não está sendojusto. Eu tenho lhe dado provas da minha lealdade. Não mereço ter a minhacasa?

Pedro percebeu que ele tinha razão, mas apenas queria o filho morandojunto com eles, para ocupar os espaços vazios do casarão. Percebeu, porém,que era um direito de José ter sua casa.

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— Então eu vou mandar fazer sua casa bem perto da minha, assim nãome sentirei tão sozinho.

Foi uma conversa entre dois adultos. Pai e filho se entendiam muito beme não havia discórdia. Tudo era resolvido em paz e com respeito.

Quando as plantações de cereais estavam para serem colhidas, Pedrochamou José e disse:

— O que você produzir é tudo seu.José pensou no assunto e, mais tarde, concluiu que o pai ficaria no

prejuízo. Uma intuição pessoal que tinha lhe dizia que aquela idéia não dariacerto.

Sua casa ficou pronta em poucos dias e o casal foi morar nela. Como Joséainda não tinha dinheiro para comprar os móveis, Aparecida pegou nodepósito uma mesa velha e duas cadeiras quebradas, a cama do casal caindoaos pedaços e um colchão de palha, muito usado na época. Seria temporário.Assim que fosse feita a colheita e a venda dos cereais, eles comprariam onecessário.

José e a esposa trabalhava de sol a sol. Aparecida tinha uma grande forçade vontade. Quando começou a colheita dos cereais, eles não perderam tempo.Trabalhavam aos domingos e feriados para não correr o risco do tempo mudare começar a chover.

Nesse ínterim, o colono sítio terminou a colheita e deixou o sítio. Haviaencontrado um trabalho melhor. Como Ricardo, o marido de Lurdes nãoestava bem financeiramente, Pedro cedeu as terras a ele, mesmo sabendo queele não era bom naquele tipo de trabalho. A filha insistiu e o pai não tevedesculpas. Concordou.

Enquanto isso, José colheu os cereais, separou uma parte para os gastos evendeu o que sobrou. Parte do milho foi reservada para seus porcos, queestavam na engorda, e o restante também foi vendido. O café logo estavatambém todo colhido e guardado na tulha. Eles esperavam agora o preço subirpara vender.

Ricardo e a família mudaram para o sítio. Ele tocaria as terras em que ocolono trabalhara e já havia muito serviço para ser feito. Pedro vendeu o café,recebeu o dinheiro e voltou para casa satisfeito com o negócio.

Pedro chamou José e foi acertar a venda do café, dizendo:— Eu vou ficar com cinqüenta por cento dos lucros e você fica com os

outros cinqüenta por cento.— O senhor está certo pai, eu concordo. É justo que tenha uma renda do

sítio.O pai acrescentou:

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— O Lúcio vai ficar com todo o café e os cereais. A partir do ano quevem, Ricardo também vai dar a sua porcentagem de cinqüenta por cento.

— O Lúcio está cheio de dívidas — afirmou José. — É justo que seulucro seja total. Eu estou de pleno acordo.

Em casa José explicou à esposa o acordo feito.— O sítio é do pai e nós cuidamos das terras — disse José. — Nossos

lucros não foram poucos. Eu estou satisfeito.Aconteceu, porém, que o genro, quando ficou sabendo, não gostou do

acordo do sogro e disse a Pedro:— Lúcio vai ter que dividir os lucros do café também. Eu não concordo

com o senhor.Pedro respondeu:— Você entrou aqui ontem e já quer ter direitos de filho? Ponha-se no

seu lugar. Aqui você é um colono, como o outro que saiu. O que você tem quefazer é cuidar melhor de sua lavoura e seus lucros serão bem maiores.

Pedro deu o assunto por encerrado. Estavam todos apurados no trabalho enão podiam perder tempo. Um dos filhos de Lúcio fez uma arte na casa do tio,apossando-se de um punhado de moedas antigas, algo que não lhe pertencia. Otio o encontrou com o que ele tinha pego na mão e disse ao garoto:

— Vá pôr isso onde você achou!Lúcio ficou sabendo de uma outra maneira, contada pelo filho, e ocorreu

um grande rebuliço naquela tarde cheia de sol. Lúcio encontrou o irmão quevoltava do trabalho. Estava furioso e foi logo dizendo:

— Eu vou lhe dar uns tapas para você aprender.José respondeu:— Você é quem sabe. Você é grande, mas não é dois. Eu sou pequeno e

não sou pedaço. O errado é seu filho e não o meu. Você tem o dever decorrigir o seu filho e não vir brigar comigo.

Lúcio estava louco da vida. Foi até a porta da casa do irmão e jogou oque o filho havia retirado da casa do tio.

— Pegue suas porcarias. Ninguém precisa delas. Isto aqui para mim élixo e é como lixo que eu jogo em sua cara — disse, ofendendo o irmão e aesposa com palavras pesadas.

Essa foi a gota d'água que Márcia temia. Por isso ela estivera sempre comum pé atrás. "Coração de mãe não se enganava", dizia ela.

Pedro chegou e assistiu toda aquela cena, vendo os pertences de Joséjogados no chão. Lúcio, ao ver o pai, saiu xingando o irmão e a cunhada.Pedro recolheu os pertences do filho e entregou a José, que disse:

— Não pai, não vou pegar.

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— É seu, guarde tudo — insistiu Pedro. — Eu estou lhe pedindo, façapor mim.

— Está bem pai, eu vou guardar.Pedro, inconformado com a cena, passou mal, com falta de ar e muito

cansaço. Seu coração disparou e ele teve de ir para a cama. Márcia estavaarrasada com o acontecido e temeu pela saúde do marido. A situação, a partirde então, tornou-se insuportável. Benedita, esposa de Lúcio, ofendia acunhada sempre que a via.

Márcia voltou a se atormentar com a profecia, pensando: "será que tudovai acontecer? Estará escrito no meu destino? Eu tenho que tirar isso da minhacabeça, mas está acontecendo do jeito que ela me falou. Até agora tudo deucerto. Em meus pensamentos eu ouço sua voz, repetindo dia e noite. Eu tenhomedo, muito medo. Se eu pudesse voltar até lá e falar com ela, pedir maisdetalhes dessa profecia, eu juro que iria. Só Deus poderá nos livrar. Eu erreiem ter ido falar com ela, mas eu não pedi nada, ela foi logo dizendo umamontoado de coisas que me deixaram zonza. Até hoje eu me sinto presa aessa profecia. Por mais que lute para esquecê-la, eu não consigo. Aquelaspalavras estão gravadas em minha mente. Deus, me entrego em suas mãos.Imploro. Afaste essa sina dos meus pensamentos, do meu caminho e dosdestinos de meus filhos."

A verdade era dolorosa. Ela não estava preparada para superar a forçadaquela profecia, que era mais forte do que Márcia pensava. Tinha medo deser derrotada. A vida tinha lhe ensinado muitas coisas que ela não tinhaaprendido na escola. As lições do mundo eram mais amenas que aquelaprofecia, que a martirizava, atormentando sua alma. Para ela, era comocaminhar de olhos vendados.

Estava tão perdida em seus pensamentos, que não viu Pedro, observando-a com uma grande ruga em sua testa. Quando ela notou a presença do maridodisse:

— Eu estou tirando um cochilo em sua cadeira de balanço.— Você estava falando sozinha. O que está acontecendo com você? Eu

nunca a vi assim. Tem alguma coisa a mais que eu não sei? Você está doenteou está escondendo alguma coisa muito grave, que a está deixando assim,atormentada? Eu conheço você muito bem. Márcia, me conta o que está sepassando em sua cabeça. Você está guardando um grande segredo neste seucoração sofrido, igual ao meu? O que a faz falar sozinha? Você está sofrendoe não quer me contar o que é?

Pedro insistiu ao perceber que algo realmente atormentava sua esposa.Tinha que saber a verdade.

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— Ah, Márcia! Desabafa, chora, grita, quebra os pratos, joga as panelasde comida no quintal. Faça alguma coisa, mas ponha para fora tudo que vocêtem guardado ai no seu peito. Essa sua mágoa me atinge, me fere também.Vamos conversar. Vamos resolver juntos tudo que a está atormentando. Eutambém já guardei segredos de você, mas acabei contando tudo e fiquei bemmais aliviado. Foi como tirar um peso de minhas costas.

Márcia começou a chorar e, entre soluços, disse ao marido:— Eu não tenho nada para contar. Eu só estava dormindo aqui, em sua

cadeira de balanço. Talvez eu tenha sonhado ou tive uma visão do passado.Foi só isso, acredite em mim.

Pedro, no entanto, estava decidido a descobrir a verdade.— Eu acredito em você, mas sei também que você está escondendo a

verdade. Talvez por medo, mas isso se chama falta de confiança. Entre nósnão pode existir dúvida ou segredo. Com isso eu acabo duvidando da sualealdade.

— Não é segredo, Pedro! É um fantasma que me persegue, é só isso queposso lhe dizer.

— Está bem, você não confia mais em seu marido.A forte pressão que Pedro fez deixou Márcia assustada.— Não é falta de confiança, me entenda, por favor! Eu não posso lhe

dizer mais nada. E vamos parar por aqui. Eu não quero brigar com você semmotivo.

Pedro não deu o caso por encerrado e continuou:— Motivos tem, Márcia. Eu tenho certeza de que este fantasma do

passado está ligado ao casarão amarelo, lá do sítio do Douradão. Acertei ounão?

— Por que essa pergunta?— Me responda apenas sim ou não?— E se eu não responder?— Você vai fazer isso comigo? Sempre fomos leais um com o outro.— Está bem, eu respondo, sim.— Eu tenha certeza de que ela falou para você o mesmo que falou para

mim — confessou ele, fazendo-a estremecer.— O que foi que ela disse à você? Por favor, eu preciso saber. Me conte

desde o começo.— Está bem, eu vou contar tudo a você. Quando lá cheguei, segui um

ritual. Tirei as botas, lavei as mãos e os pés, para depois entrar na sala deorações. Ela foi logo dizendo: "eu sei o que você quer saber. A mudança vaiacontecer, vocês vão vencer, vocês vão sofrer, nem todos os seus filhos serãofelizes. Vai nascer um outro filho, não é este que sua mulher está esperando,

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ele vai nascer nas terras que você comprará. É um garoto, não terá boa saúde,mas terá vida longa." Foi isso que ela falou para você também?

— Foram exatamente essas palavras.— E por que você vive pensando nessas palavras?— Eu falei com um padre em Aparecida. Ele me disse para não pensar

mais nisso e tirar dos meus pensamentos essa profecia, mas ele disse tambémque está escrito nos destinos de todos os cristãos, que ele vai pagar uma faltada vida passada. O cristão está pagando uma dívida. Esta foi a explicação queele me deu sobre a profecia.

— Não devemos nos atormentar mais — disse Pedro.— Então você sabia de tudo e nunca me disse nada?— Você também guardou segredo.— Sim, guardei — disse Márcia.— Eu não dei muita importância às palavras dela. Você, além de guardar

segredo, viveu atormentada todos esses anos, sofrendo por falta de confiança.— Eu tinha medo de contar para você. Não sabia qual seria a sua reação

ao ficar sabendo da profecia. Ela falou tudo sem eu perguntar nada. O mesmoaconteceu com você.

— Vamos esquecer tudo. Já sofremos demais em acreditar nas palavrasda benzedeira. Se nós estamos devendo dívidas da vida passada, nós teremosque pagá-las. Com dívidas não se brinca.

— Ainda bem que descobrimos a tempo, porque nós dois nadaentendemos disso — disse Márcia.

— Vamos viver em paz, pelo menos nós dois. Vamos deixar o resto parao destino resolver e ficar de longe, olhando tudo. Se está escrito, vai acontecere não somos nós que vamos impedir que essa dívida seja paga. Se dos nossosfilhos nem todos serão felizes, é o destino deles e eles não poderão mudarnada. Nós dois, com fé em Deus, venceremos.

Márcia ficou mais aliviada do peso que carregara por tantos anos. Viveraatormentada e com medo de ouvir a palavra infeliz, carregando como escudo aprofecia, o fantasma do seu passado. Agora podia erguer a cabeça e enfrentaro destino sem remorso, sem culpa e sem medo.

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O FIM DOS SONHOS

Pedro faleceu alguns anos mais tarde, depois de muitos aborrecimentoscom os filhos e genros. Naquela terra ele havia plantado seus sonhos e esta foiuma das razões pela qual José não permitiu que o sítio fosse vendido, napartilha. Em cada centímetro de terra onde Pedro pisou, ali estavam seussonhos. Eles nasceram e cresceram em cada um pé de café florido.

Márcia viveu até os oitenta e cinco anos, mas seu resto de vida foiatribulado. Ela colheu os frutos dos sonhos do marido, pois Pedro não viveupara desfrutar de seus bens. Sempre viveu humildemente e sem nenhumconforto. Foi feliz sem luxo e sem vaidade.

Márcia conservou suas raízes. Ela sempre teve orgulho de ter vivido naroça. Ser caipira para ela era um cartão de visitas. Foi na infância que elaaprendera a amar suas raízes. Sua vida foi dividida em muitas fases, mas ainfância foi a mais marcante para a formação de suas raízes. Menina pobre,trabalhou no engenho de açúcar e aguardente do pai, recebendo pequenossalários, fazendo serviços em seus dias de folga para as vizinhas.

Cortando canas e trabalhando no engenho, ela ajudava o pai com umaparte do ganho e guardava o restante. Sua mocidade foi curta. Quando secasou com Pedro, tinha dezesseis anos de idade. Aos dezessete, ela teve suaprimeira filha, que veio a falecer com sete dias de vida. Márcia não tinhaexperiência nem instrução, mas sua grande força de vontade, depois que Pedrofaleceu, fez com que ela aprendesse a ler.

Quando Márcia conhecera Pedro, ela tinha dez anos de idade. Enquantomeninas da sua idade brincavam com bonecas, ela já trabalhava no engenho.Apesar do pai ser o dono e ter um pequena fazenda, eram os filhos que faziamtodo o serviço, como cortar a cana e fabricar a aguardente. O pai dela eramineiro de nascimento e paulista de coração, de família numerosa. Todosjuntos tocavam o engenho.

Márcia nunca foi à escola e nem suas irmãs. Dizia o pai:— Filha minha nasceu para ser dona de casa e cuidar dos filhos e do

marido.Ela sentiu na pele a falta de saber ler e escrever, por isso foi à luta,

aprendeu a ler com seus próprios esforços e aprendeu a escrever seu nome.Para ela foi uma grande vitória, ninguém a obrigaria a assinar seu nome semantes ter lido o que estava escrito.

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Dos filhos de Márcia todos tinham o primeiro grau. Foi o que ela pôdedar aos filhos, pois naquela época não era fácil freqüentar uma escolamorando no sítio. Ela dizia:

— O saber não ocupa lugar. Eu não vou deixá-los sem aprender o básico.No futuro vocês me agradecerão.

Márcia libertou-se da profecia. Dizia ela:— O que tem que acontecer, acontece, dependendo ou não de aceitarmos.

Só Deus tem o poder de pôr ou tirar dos nossos destinos o que teremos depassar. As dívidas das vidas passadas, eu tenho certeza de que elas forampagas por mim e por Pedro.

Gostava de puxar da memória fatos antigos de sua infância, do seuvestido branco com bolinhas vermelhas. Quantos anos ele ficou guardado nofundo do baú, junto com a coroa de flores que Pedro havia feito para ela ecolocado em sua cabeça, dizendo:

— Quando eu crescer, vou me casar com você.Ela jogara a coroa no chão e mais tarde voltara para apanhá-la e escondê-

la no baú por muitos anos, enrolado no seu vestido branco de bolinhasvermelhas.

A coroa de flores de São João era a sua relíquia, eram as suas doceslembranças, assim como o vestido de noiva branco, feito por sua santa mãe.Era longo, com sete saias, o que o deixava bem bufante. O corpete era bemapertadinho em seu corpo e as mangas bem franzidas, dando um toqueespecial. O longo véu vinha preso na grinalda de flores de laranjeiras. O buquêera de flores naturais, colhidas no campo, dando um contraste especial e eramsuavemente coloridas e com um leve perfume.

Essas doces lembranças vinham como uma flor desabrochando, abrindoas portas do passado. Lá no fundo do baú estavam as relíquias de Márcia,trazendo de volta grandes emoções, enchendo o seu mundo, que ela pensavaestar vazio. As recordações devolviam a ela um passado adormecido, quevinha preencher aquele vazio em seu coração.

A única coisa que o baú não guardou foram os sonhos de Pedro. Esses elaguardou para sempre no seu coração.

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