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OS SONHOS DE PEDRO

BENVINDA ANA BAÇAN

2ª Edição Eletrônicas - 2018

Editor

L P Baçan

Londrina – PR

Copyright © 2018 - BENVINDA ANA BAÇAN

Uraí - PR

2018

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ÍNDICE

BENVINDA ANA BAÇAN ............................................................................................ 4

TALVEZ SEJA GENÉTICO... ..................................................................................... 5

OS SONHOS DE PEDRO .............................................................................................. 6

A COBRA E O CÃO ...................................................................................................... 6

O MONJOLO E A PROFECIA .................................................................................. 14

O FEIJÃO E O MUTIRÃO ......................................................................................... 27

OS CAÇADORES SEM CAÇA E ZÉ-SEM-MEDO ................................................ 34

CASAMENTOS E DECEPÇÕES ............................................................................... 42

CASAS GRANDES E SEGREDOS ............................................................................ 52

SONHOS E REALIDADE ........................................................................................... 58

A GEADA, A REVOLTA E A SANTA ...................................................................... 63

A BROCA E A GEADA ............................................................................................... 73

FANTASMAS DO PASSADO ..................................................................................... 79

O FIM DOS SONHOS ................................................................................................. 88

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BENVINDA ANA BAÇAN

Nasceu em 21/03/1930. Mulher guerreira e

dedicada, criou 5 filhos e 2 netos. Durante a vida se

doou em cuidados a sua mãe, irmão e esposo.

Escrevia desde 1962, quando fez seu primeiro

poema, dedicado ao pai recém-falecido.

Acreditava em Deus e se auto-definia como

sonhadora e romântica.

Escrevia compulsivamente, preenchendo folhas e

mais folhas de cadernos com poemas e contos que reescrevia

repetidamente.

Participou da I e da II Antologias do Portal CEN e publicou os seguintes

livros virtuais: "Os Sonhos de Pedro", "O Baú das Minhas Lembranças",

"O Contador de Histórias", "A Ponte Caída", "Carrossel" e “Retalhos”.

Estava organizando seus textos para a edição de pelo menos mais cinco

livros virtuais.

Foi Acadêmica-fundadora da AVLLB.

Faleceu em 31 de julho de 2018.

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TALVEZ SEJA GENÉTICO...

Não sei... Nunca vi nada escrito a esse respeito... Mas tenho motivos

para crer que a atividade artística seja transmitida geneticamente. Em

último caso, por osmose... Ou até por contágio, não sei. Meu pai tinha uma

criatividade imensa e um jeito todo especial de contar histórias. Ele nos

fazia rir, quando se punha a contar suas aventuras de caçador, os causos do

Joaquim Bentinho e muitos outros que ainda hoje me lembro. Meu filho é

músico. Aprendeu a tocar a guitarra, coisa que nunca consegui, a não ser

arranhar as posições básicas do Além disso, também é escritor e palestrante

de mão cheia. Minha filha é fotógrafa, com uma rara sensibilidade e um

talento todo especial com sua câmera. A última e grata surpresa é minha

mãe, capaz de criar histórias e fábulas surpreendentes e, de memória,

registrar uma parte da história da família: os sonhos de seu pai, meu avô.

Os Sonhos de Pedro talvez sejam os sonhos de todos nós. Mas, como

ele, poucos temos a coragem de persegui-los a despeito de todos os

obstáculos. Há, nesses corajosos, uma audácia egoísta que somente tarde,

muito tarde, é reconhecida. Esta é a história de meus avós... e de minha

mãe e de meu pai também. O resgate histórico contido nessa narrativa vai

além de meu alcance e de minha compreensão, pois se inicia num tempo

muito distante: um tempo de mistérios, crueldade, dramas e,

principalmente, amor. O amor de um homem por seus sonhos e o amor de

uma mulher por ele.

L P Baçan

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OS SONHOS DE PEDRO

Esta narrativa é feita por uma das

personagens desta história.

Os personagens são reais.

Os fatos são verídicos.

I

A COBRA E O CÃO

A fazenda fora de um senhor de engenho e nos seus grandes canaviais

só trabalhavam escravos. Quando o pai de Pedro a comprou, não havia

mais escravos, mas viviam na fazenda muitos filhos deles, trabalhando

agora como empregados. Contavam que seus pais muitas vezes foram

chicoteados pelo feitor. Ainda se viam, desgastados pelo tempo, a senzala e

o tronco onde os escravos eram chicoteados, às vezes até a morte, ou presos

às enormes correntes como castigo. Havia também uma mesa de tortura

chamada de bacalhau, onde os escravos eram atados com grossos talos de

couro. O feitor ligava uma engenhoca movida a água e uma prancha subia e

descia com violência, abatendo-se sobre o corpo do escravo, deixando-o

achatado como um bacalhau.

O porão da casa da fazenda era usado como sala de castigo para

escravos que eram pegos escondidos ou fugindo do trabalho forçado. O

velho Patrício, já cego, mas lúcido, fora escravo nessa fazenda e contava

com tristeza como todos eram tratados e como morriam de fome e sede,

acorrentados ao tronco. Contava ele que em noites sem luar se ouviam

gritos de dor perdidos na escuridão dos canaviais.

A fazenda foi comprada por Lúcio José de Andrade, pai de Pedro, em

1890. Lúcio era mineiro de Ouro Preto. Foi garimpeiro muitos anos, juntou

muito dinheiro e comprou a fazenda. Depois se casou com Ana Bernardini,

um ano depois da compra da fazenda. Mulher frágil e de pouca saúde, veio

a falecer depois que Pedro nasceu. Seus dois irmãos, bem mais velhos, já

estavam crescidos, quando a mãe morreu.

O pai havia ficado viúvo, com um filho pequeno, por isso voltou a se

casar. Dinha, mulher má e rancorosa, não gostava do enteado porque ele

era muito parecido com o pai.

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A casa da fazenda era construída com a máxima segurança, de madeira

com duas paredes, em forma de caixa, suas janelas enormes com grades de

furos como proteção. Suas paredes serviam de cofre e foram construídas

com essa finalidade. Havia uma espécie de segredo na parede. Para abrir o

cofre, era preciso apertar um ponto da parede. Eram vários os cofres que

haviam na casa, todos por trás das paredes.

Dinha, egoísta e ambiciosa, começou a esconder dentro dos cofres das

paredes moedas de ouro, libras esterlinas e moedas de prata. Escondeu todo

ouro que encontrou na velha casa da família. Os irmãos de Pedro se

casaram e ele ficou morando com o pai e a madrasta.

Dinha maltratava o enteado, escondendo a comida, que era muito farta.

Não satisfeita, porque o garoto nada dizia ao pai, inventou um motivo e

expulsou-o da casa. Com apenas quatorze anos Pedro foi viver sozinho.

Arrumou um trabalho no pequeno engenho de Ezaías, pai de Márcia. Eles

já se conheciam, eram vizinhos há cinco anos, quando brincavam juntos,

correndo pelos campos, colhendo flores e frutos silvestres.

No engenho ele fazia de tudo: cortava cana nos canaviais e ajudava na

fabricação de açúcar e aguardente. Era serviço para gente grande, mas

Pedro dava conta. Ele sonhava em ter sua própria família, como seus

irmãos. Ezaías gostava muito do pequeno Pedro como ele o chamava.

Márcia em seus dias de folga, passou a cuidar das poucas roupas que Pedro

tinha, apesar de seu pai ser um fazendeiro de muitas posses. Ele deixou de

fazer sua comida e lavar suas roupas, ganhando um quartinho junto ao

engenho.

Pedro sonhava com a casa grande da fazenda do pai, com os muitos

empregados que viviam trabalhando no engenho dele. Com tristeza dizia

para si mesmo:

— Aqui sou feliz, todos me ajudam e ensinam os serviços e sou muito

bem tratado.

Recordava o quanto havia sofrido, quando tivera que cortar cana na

fazenda do pai como um simples empregado. Muitas vezes ele passava o

dia sem comer, porque a madrasta não o deixava entrar em sua própria

casa. Eram os empregados que lhe davam restos de comida, escondidos da

patroa.

Já fazia dois anos que Pedro estava trabalhando no engenho de Ezaías.

Ele não gastava o que recebia e guardava tudo, já que tinha casa e comida,

botas e facão que seu patrão lhe dava. Pedro e Márcia já se olhavam com

muito carinho e o pai dela conversava muito com ele.

Certo dia, disse-lhe:

— Você precisa se casar, meu rapaz!

Tinha ele dezesseis anos e Márcia, quinze, Ela trabalhava no engenho e,

tendo um pequeno ganho, guardava o que sobrava. Certo dia Pedro falou

com Márcia:

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— Eu gosto muito de você. Gostaria de me casar com você, se o seu pai

deixar.

Ela não esquecera o dia em que eles estavam brincando no campo e ele

disse a ela:

— Quando eu crescer, vou me casar com você.

Agora ele estava falando sério. Cresceu e cumpriu o prometido. Márcia

falou com a mãe, que falou com o pai. Os dois conversaram muito e

decidiram.

— Pedro é um bom rapaz trabalhador, honesto e decidido. Ele pode se

casar com nossa filha. Os dois tem muito em comum.

Ao receber a notícia Pedro ficou muito feliz, pois teria uma família de

verdade, como seus irmãos. Mostraria à madrasta que estava vencendo na

vida.

Os preparativos para o casamento foram rápidos. Não havia muito o que

preparar. O vestido seria feito pela mãe de Márcia. Quanto ao restante,

dava-se um jeito. Um ano depois os dois se casaram. Ezaías deu uma

pequena casa junto a casa grande. Pedro comprou tudo que era necessário

para sua querida esposa e ainda lhe sobrou dinheiro para guardar.

Ele adorava Márcia e fazia de tudo para fazê-la feliz. Seu jeito de

menino cativou os parentes da esposa e todos o tinham como um filho

muito querido. Pedro sonhava em ter suas próprias terras. Não queria

muito, só o que pudesse cuidar sozinho.

Pedro não visitava o pai, mas sabia de tudo que se passava com ele,

doente e maltratado pela mulher. Dinha, esperta como era, aplicou o golpe

do baú no rico fazendeiro. Com a ajuda dos filhos do primeiro casamento,

passou a vender o rebanho de gado e esconder todo o dinheiro, para depois

trocar por moedas de ouro.

O tempo passou e Pedro já era pai de dois filhos, Ana e Lúcio.

Continuava sonhando e guardando o que sobrava do seu dinheiro. Sonhava

em comprar um pequeno sítio. Até procurou pelas redondezas, mas não

encontrou. Acabou comprando suas terras em São Pedro do Turvo, lugar

ruim, distante de onde eles moravam.

Pedro e Márcia foram morar em seu primeiro sítio, mas ele sempre

dizia:

— Ainda vou comprar a terra dos meus sonhos e nós iremos embora

deste lugar.

Pedro continuou sonhando, enquanto plantava milho, arroz e feijão. Um

de seus irmãos veio lhe fazer uma visita, olhou suas roças e disse:

— Você aqui não tem futuro. Suas terras não produzem nem milho.

Feijão e arroz nem pensar. A mandioca nem brotou. Você está perdendo o

seu tempo. Por que vocês não saem deste buraco? Lá perto do Lajeado tem

umas terras que estão a venda. Ficam perto das terras da família da Márcia.

Pedro Sonhador, como Márcia passou a chamá-lo, disse a ele, certo dia:

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— Não estou gostando de sua cara. Você nem olha mais para mim e

nem brinca com as crianças.

— Estou pensando, Márcia, estou pensando — ele respondeu.

— Você está é sonhando, como sempre. Essa ruga em sua testa apareceu

depois que seu irmão conversou com você.

Pedro decidiu contar tudo a esposa.

— Eu vou ao Lajeado ver umas terras que meu irmão me indicou.

— Com que dinheiro você vai comparar estas terras, homem? Eu não

gosto quando você começa a falar assim. Parece que não está feliz aqui.

— Eu estou é preocupado com as nossas plantações. Não vamos colher

nem para os gastos da nossa família. É por isso que eu vou ver aquelas

terras. Nós não temos dinheiro para comprar nada, por isso não se

preocupe, mulher com pagamentos. Eu ainda nem fechei o negócio. Vou

ver as terras primeiro. Se gostar, vou propor uma troca. Nossa terra é três

vezes maior que a outra, mas só presta mesmo para invernada.

— Você não desiste mesmo dos seus sonhos malucos. Acha mesmo que

o dono das terras vai aceitar uma troca?

— Nossa terra tem vinte alqueires e a dele, só cinco alqueires. A

diferença é grande. Tenho certeza que vou fechar o negócio sem ter que

dispor de nem um conto de réu.

Dias depois, Pedro foi ver as terras do Lajeado, boas e produtivas, mas

estava tudo abandonado. A casa era confortável e tinha uma cozinha até

mais ou menos, um bom poço de água por perto e um pequeno córrego na

divisa do sítio.

Pedro gostou das terras. Tinha uma pequena área de pasto, cercada de

arame farpado. Seriam necessários alguns reparos nas cercas e nos

mourões, mas a porteira estava perfeita.

O dono das terras estava decidido a fazer qualquer negócio. Pedro

propôs a troca das terras, uma pela outra, sem dispor de dinheiro. O dono

do sítio conhecia as terras de Pedro, pois tinha um bom lote que fazia divisa

com elas.

— Eu aceito a troca, seu Pedro. Vou plantar um bom canavial naquelas

terras. Assim o meu gados terá um bom reforço na época das secas, quando

pastos estiverem faltando. Vamos fazer um ótimo negócio. A minha

escritura está a sua disposição — disse a Pedro.

— A minha também está aqui — respondeu Pedro.

— Você tem filhos, Pedro?

— Sim, tenho dois, um casal.

— Então eu vou lhe dar uma vaca com bezerro novo. Ela dá dez litros

de leite. Vai dar para fazer um queijo por dia.

O sonho de Pedro tinha se realizado. Ao chegar em casa, contou para a

mulher, dizendo:

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— Eu fiz a troca das terras, uma pela outra, e ainda ganhamos uma vaca

leiteira. Ela vai se chamar Fartura.

Márcia ficou tão feliz que começou a chorar. Pedro soltou seus cabelos

num gesto de carinho, deixando-a encabulada.

Um vizinho ofereceu para fazer a mudança em seu carro de boi. Os

pertences do casal foram colocados no carro, que seguiu chorando pela

estrada cheia de poeira. A casa estava muito suja, mas era uma boa casa. A

limpeza foi rápida. Os dois, em pouco tempo, lavaram tudo e arrumaram

seus pertences.

Pedro tinha muito trabalho pela frente. Precisava preparar a terra para o

plantio e foi necessário fazer uma roçada, para depois fazer a capina.

Mesmo assim, foi impossível limpar tudo a tempo de fazer o plantio. Ficou

um bom pedaço de terra sem preparar.

Sua lavoura logo estava muito bonita, prometendo uma boa colheita de

milho, feijão e arroz. Quando isso ocorreu, Pedro vendeu os cereais e

comprou alguns porcos para criar e engordar. O quintal já estava povoado

de galinha e frangos.

Márcia fazia um queijo todos os dias. A família do casal já tinha

aumentado com o nascimento de mais uma menina, Maria, que veio

aumentar a felicidade do casal. No segundo ano, Pedro preparou mais um

pedaço da terra que tinha ficado para trás, mas ainda não deu para preparar

tudo, ficando um bom pedaço para limpar. Com isso sua colheita iria ser

bem maior. Ele tinha aumentado a área da plantação.

Márcia cuidava da casa e dos filhos e ainda ajudava o marido na

lavoura, na época do plantio e da colheita. As terras do sítio eram muito

férteis, tanto quanto Márcia, que ganhou mais uma menina, por nome

Benvinda, onze meses depois de Maria.

Agora a família já estava bem grande e as despesas também. A casa

ficou pequena para tanta gente. Pedro teria de fazer mais um quarto para as

crianças, além de limpar o restante das terras para aumentar sua plantação.

Ele já havia comprado mais duas vacas leiteiras e Márcia fazia três queijos

por dia, vendidos no Lajeado todas as semanas. Já era uma renda a mais

que o casal tinha para o sustento da família.

Pedro decidiu, então, preparar o restante das terras. Amolou muito bem

sua foice e começou a roçar o mato. Já estava no final do serviço quando

foi picado por uma cobra cascavel.

A picada foi em sua perna esquerda. Ele estava de bota de cano longo,

mas a cobra perfurou a bota e atingiu sua perna. Ele ainda matou a cobra e

levou para mostrar para a Márcia. Quando ela viu a cobra e soube que ela

havia picado seu marido, desesperou-se.

Ele foi retirar a bota, mas sua perna já estava muito inchada. Foi preciso

cortar o cano da bota para retirá-la. Márcia não sabia o que fazer, mas o

instinto feminino falou mais alto. No seu desespero, ela pegou a navalha,

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fez um pequenino corte no lugar da picada e sugou com a boca o sangue

envenenado. Depois aplicou uma compressa de querosene, enfaixando a

perna do marido com muito carinho, rezando a Deus que ele ficasse bom.

No outro dia, Pedro estava tão inchado que mais parecia uma bola. Não

tinha como pôr uma roupa nele. Ele pedia para a esposa abrir a janela, pois

nada enxergava, dizendo;

— Está muito escuro aqui dentro. Por favor abra a janela.

Márcia chorava desesperadamente. Avisou os vizinhos e parentes e

pediu ajuda. Quando Ezaías ficou sabendo, mandou um portador falar com

Manoel Ozires, um benzedor em quem todos tinham muita fé. Esse enviado

levou três dias para retornar, trazendo notícias. Assim que chegou, foi

perguntando o que havia acontecido nesses três dias.

Márcia respondeu:

— Ele vomitou uma espécie de clara de ovo, que guardei para quem

quiser ver.

Respondeu o portador:

— Graças a Deus ele está salvo e foi você quem o salvou, quando fez o

corte em cima da picada da cobra e sugou o sangue envenenado com sua

boca. O Seu Ozires disse que era isso que tinha de ser feito e você fez, sem

saber que estava salvando a vida de seu marido.

Márcia continuou rezando e pedindo a Deus pela saúde do marido. Os

dias se passaram e Pedro continuava cego. Ela pedia de joelho para que

Deus levasse um de seus filhos, mas não lhe tirasse o marido. Sem um filho

ela podia viver, mas sem Pedro, não.

Durante vinte dias ela repetiu o pedido com muita fé e sem remorso,

entregando a Deus um dos filhos que tanto amava. No vigésimo primeiro

dia, qual não foi a sua surpresa ao ouvir o marido dizer:

— Até que enfim você abriu a janela do quarto!

Ele já não estava mais inchado e queria se levantar, dizendo que já não

agüentava mais ficar na cama. Depois de vinte e um dias Pedro voltou a

enxergar novamente e ficou completamente curado.

Márcia foi agradecer a Deus por ter recebido tão grande benção,

dizendo:

— Senhor eu vos prometi, aqui estou. Não me arrependo de ter

prometido um de meus quatro filhos em troca da vida de meu marido. Que

seja feita a vossa vontade. Faço isso de coração limpo, sem remorsos e sem

lágrimas.

O pedido de Márcia, porém, não foi atendido. Deus não levou um de

seus filhos, após devolver a vida de seu marido. Dias depois, no entanto, o

cão de guarda da casa amanheceu morto, Márcia entendeu a resposta de

Deus. O cão era muito estimado por todos da casa e as crianças choraram

muito. Márcia disse aos filhos:

— Vamos enterrar o cão. Ele merece ser por nós enterrado.

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Pedro, depois de trinta dias, voltou ao trabalho e foi terminar o serviço

que havia sido interrompido. A terra deveria ficar preparada para a

plantação.

O pai de Márcia vendeu suas terras e foi morar perto da filha. Já não

tinha quem o ajudasse no engenho. Márcia guardou segredo de seu pedido

a Deus e só muitos anos depois ela contou aos filhos. Pedro nunca ficou

sabendo que a esposa havia recebido aquela benção.

Ela sempre dizia:

— A fé é o que nos salva. Devemos pedir a Deus em todas as situações

difíceis. Se tivermos fé, podem ter certeza de que somos atendidos.

Pedro estava progredindo, agora as terras estavam todas cultivadas.

Márcia o ajudava na roça e cuidava das crianças. Ela já estava esperando

um outro filho e, mesmo grávida, não deixava de ir trabalhar.

Algum tempo depois nasceu um lindo menino, que recebeu a nome de

José. Agora eram cinco filhos. Pedro dava duro na lavoura, pois a esposa já

não podia ajudá-lo no trabalho. Ele trabalhava por todos sem reclamar.

Pedro nunca mais visitou o pai, mas tinha notícias dele diariamente.

Sabia que ele estava doente e quase na miséria. Certo dia, porém, veio a

notícia de que o pai havia falecido e os irmãos o chamavam para o

sepultamento. Depois de dez anos ele voltava àquela casa que fora sua e

que continha um grande mistério, que um dia seria revelado.

Pedro viu a madrasta toda vestida de preto, com o rosto coberto por um

véu preto, mais parecendo uma dama antiga. Ela não deixou cair a máscara

de boazinha, fingida e esperta. Chorava a morte do marido dizendo:

— O que será da minha vida agora que perdemos tudo que tínhamos.

Quem vai ajudar uma pobre viúva como eu.

Dinha, a madrasta fingida e esperta, tinha escondido todo o ouro que era

dos filhos. Vendeu toda a boiada e o engenho, só deixando as terras para

serem divididas entre ela e os herdeiros. Se Dinha era esperta, seus filhos

eram muito mais. Pegaram tudo que a mãe havia tirado.

Pedro, depois da morte do pai, voltou à casa grande, por várias vezes.

Quando Márcia perguntava porque ele andava tão triste ele não dizia a

verdade.

— Nós estamos vendendo a fazenda e é por isso que tenho voltado lá.

Vamos fechar o negócio por esses dias. Os compradores darão a resposta

até o final de semana. Apesar de ser muita terra, o dinheiro será pouco.

— Seu pai tinha muito gado. Deve dar um bom valor.

— Você disse certo: tinha, agora não tem nem um bezerro. Você não

sabe da verdade. Nós só temos as terras para serem vendidas.

— E o que foi feito de tudo que era do seu pai?

— Eu não sei e nem meus irmãos. Lá na fazenda não tem mais nada, a

não ser as terras.

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Quando Pedro recebeu sua parte da herança, tomou uma decisão. Falou

com a esposa que iria vender o pequeno sítio e que gostaria de comprar um

bem maior em uma outra região. Andava triste, com uma profunda ruga em

sua testa. Márcia andava também preocupada com a tristeza do marido e

achou melhor concordar com ele, esperando que com isso a tristeza

passasse.

Pedro saiu num final de semana para procurar um bom sítio para

comprar. Encontrou vários que estavam a venda, mas gostou de um bom

terreno, com uma casa bem grande, com vários quartos. Era uma bela

propriedade e o preço estava ao seu alcance. Deixou o negócio feito e pediu

um prazo para fechar o negócio. Queria falar com a esposa e vender o seu

sítio, para depois fechar a compra das terras.

Márcia gostou do sítio, assim que viu as terras e a casa. Ela disse: —

Vamos comprar. Eu gostei muito de tudo.

Eles já haviam vendido seu pequeno sítio e tinham todo o dinheiro para

o pagamento. O segundo sítio de Pedro era numa localidade chamada

Douradão e suas terras faziam divisa com um rico fazendeiro, que morava

em São Paulo. A fazenda tinha seu nome, Luiz Pinto, próxima de Ipauçu,

só de café. Além desta, havia também muitas fazendas de gado, do Garcia,

do Tonão, do Alcalezes, do Gallos, do Cabral e muitos outros, com gado e

café em suas terras.

A mudança para o novo sítio não foi de carro de boi, como as outras

duas que já haviam feito. Pedro alugou dois caminhões para levarem tudo.

Em um foi a mudança e a família. No outro foram as vacas de leite, os

bezerros e os porcos. Depois de instalados, Pedro disse a Márcia que não

eram aquelas as terras que ele queria. Ele sonhava mais alto e queria

conhecer novos lugares.

Márcia ficou furiosa e disse a ele:

— Deixe de sonhar, homem, e vamos cuidar das terras que temos!

Pedro coçou a cabeça, calçou suas botas e botou o chapéu. E a ruga em

sua testa voltou a aparecer.

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O MONJOLO E A PROFECIA

Algum tempo depois, a mãe de Márcia faleceu e seu pai ficou morando

com a irmã dele, Dora. Apesar da tristeza, Márcia estava decidida e queria

plantar milho, arroz, feijão e tudo o mais. Márcia também começou a

sonhar.

— Quero que você faça também um monjolo, vamos fazer farinha para

vender. Aqui todos os vizinhos tem um monjolo e fazem farinha para os

gastos da casa e só a de milho amarelo. Nós vamos fazer a de milho branco.

Farinha de milho branco.

— De onde você tirou esta idéia, Márcia?

— Tem milho branco, não tem? Então nós vamos plantar milho branco

para fazer farinha e vender na cidade e em Ipauçu, Piraju e outras. São

cidades grandes e têm bom comércio.

O idéia de Márcia deixou Pedro preocupado e, sempre que isso

acontecia, a ruga em sua testa voltava a aparecer. Ele saiu decidido a

realizar o desejo da esposa, porém, indo procurar alguém que pudesse

explicar como fazer o tal monjolo, o que não foi difícil, pois havia alguém

na região que se dedicava a esse ofício.

O mais difícil mesmo foi fazer o pequeno açude para a queda de água

que movimentaria o monjolo. Quando tudo ficou pronto, o milho branco já

estava pronto para ser colhido. O monjolo havia sido instalado num

barracão à beira da queda da água. A grande fornalha estava pronta, o tacho

instalado, as linhas preparadas e tudo pronto. A pequena fábrica de farinha

foi entregue à dona, que ficou muito orgulhosa. Ela pensava que, com a

nova atividade, Pedro não mais falaria em conhecer novas terras e deixaria

de sonhar com suas lavouras de café.

Com o milho colhido, começou a produção de farinha. Márcia era uma

mulher decidida e tinha que se desdobrar para enfrentar tanto trabalho.

Começava com a preparação do milho, que era debulhado em uma máquina

manual, para depois ser socado no monjolo e retirado o farelo. O milho

ficava como o da canjica.

Após isso, ficava de molho em grandes cochos de madeira por oito dias,

lavado todos os dias com água corrente. Depois disso, o milho era retirado

em pequeno cestos de bambu. Depois de escorrida toda a água, ia para o

monjolo novamente para fazer o fubá e, com ele, a farinha.

Márcia sabia fazer a farinha. Aprendera com uma vizinha, quando

morava no segundo sítio no Lajeado. Ela começou a sua fabricação com

apenas cinco sacas de milho. Depois de pronta, lá foi Pedro para a cidade,

com uma amostra, visitar os comerciantes para tirar pedidos.

O comentário foi geral. Eles nunca haviam visto uma farinha como

aquela, de milho branco, que era uma novidade, segundo eles. Pedro visitou

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dez comerciantes e cada um encomendou uma saca de trinta quilos da

famosa farinha branca e ficou com uma amostra.

Assim que Pedro entregou os pedidos, os comerciantes disseram que a

farinha já era famosa na cidade. Os pedidos foram de dez sacas por mês

para cada um, sendo cinco sacas a cada quinze dias. Pedro ficou de boca

aberta ao constatar que Márcia tinha razão e que a tal fábrica de farinha

dava mesmo dinheiro.

Márcia ficou ainda mais atarefada, no meio de tantos pedidos, mas

cumprindo direitinho o prazo das entregas. Estava satisfeita, julgando que

com isso Pedro não mais iria querer conhecer novas terras nem sonhar em

ser produtor de café. Pedro, no entanto, não tinha deixado de sonhar. Ele só

não tinha era tempo para sonhar, pois sempre que ia jogar três-sete com

seus amigos italianos, vinha com novas idéias e novos sonhos.

Um dia ele tocou no assunto com a esposa:

— Aqui nós não temos futuro. Até quando você vai ficar trabalhando

dessa maneira? As meninas são pequenas para ajudar e você acabará

ficando doente de tanto trabalhar. Estou com umas idéias.

Márcia não esperou ele terminar e foi logo dizendo:

— Lá vem você com suas idéias malucas. Deixe de sonhar! Bota seus

pés no chão e tire de sua cabeça esses seus sonhos. Você só pode estar

brincando comigo! Aqui nós somos felizes e nada nos falta. Temos nossas

terras e a fábrica de farinha. Por que você sempre quer mais? Eu faço

queijo todos os dias e você vende todos os meses até cinqüenta queijos.

Você está guardando dinheiro por quê? Você é um sonhador!

— Eu sonho com novas terras, sim. Aqui não dá para plantar minha

lavoura de café.

Márcia sentia um aperto no coração. Sabia que ele jamais iria desistir.

Foi logo dizendo:

— Lá vem você outra vez com a mesma ladainha. Eu já sei de cor tudo

que você tem a dizer. Quando é que você vai deixar de sonhar? Olhe seus

filhos! Já estão crescendo e um outro que vai chegar em breve.

Pedro arregalou seus lindos olhos azuis e a voz não saía. Com um nó na

garganta, abraçou sua esposa e chorou.

— É por isso, Márcia, que eu quero conhecer outras terras. Eu não vou

desistir. Muito em breve eu irei fazer uma viagem.

Ela se calou. Sabia que seu marido jamais iria desistir dos seus sonhos

malucos de conhecer novas terras e de ter sua lavoura de café.

— Pedro sonhador, — assim Márcia o chamava carinhosamente —

tome cuidado homem, para não quebrar a cara, trocando o certo pelo

duvidoso. Você parece uma criança teimosa quando fala de sua lavoura de

café. Quer ser um lavrador bem sucedido, mas você já é bem sucedido, pai

de cinco filhos e de outro que vai chegar. Tome juízo e deixe esses seus

sonhos malucos.

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Pedro respondeu:

— Jamais deixarei, jamais! Você terá uma grande surpresa em breve.

Aguarde! Aqui, na época da colheita do feijão, você sabe muito bem que as

formigas saúvas carregam uma boa parte da safra. Não temos meio de

acabar com elas. Estão em toda parte. Por isso eu estou decidido a conhecer

novas terras.

Ele tinha razão, pois era isso mesmo que acontecia. Márcia, muito

preocupada, resolveu procurar uma vidente, uma bruxa, conhecida como

benzedeira. Todos acreditavam em suas profecias. Ela morava num casarão

amarelo, temido por toda a vizinhança. Esse casarão fora de um senhor de

engenho e ela se dizia neta desse senhor, dono do casarão. Era uma

construção com mais de trinta cômodos. Na sala havia enormes mesas e

cadeiras cobertas de veludo vermelho, vinte e quatro ao todo. Tapetes

cobriam todo o assoalho. Os móveis eram os mesmos do antigo dono da

casa. Suas cortinas de rendas, feita por escravos, gastas pelo tempo, ainda

era impecavelmente brancas com detalhes vermelhos, dando um toque de

bom gosto naquela aposento sombrio.

Na sala de oração, como ela dizia, todos deviam tirar os sapatos e passar

por uma outra sala para ser purificado. Tinham ainda que lavar as mãos e

os pés, antes de entrar na sala de oração, onde os visitantes recebiam uma

rosa vermelha, colhida no jardim do casarão, muito bem cuidado,

demonstrando o bom gosto de quem o tratava. Ali tudo era misterioso e o

mistério que envolvia o casarão era conhecido de poucos. Por isso ele era

temido por toda a vizinhança.

O temido casarão tinha uma enorme escadaria de mármore branca, com

mais de cinqüenta degraus na entrada principal. Diziam os mais antigos que

em seus porões haviam ossadas de escravos presos nas correntes. Em suas

portas ainda se via enormes cadeados, presos a correntes enferrujadas. O

velho engenho estava abandonado havia muitos anos e coberto pelas matas.

Lá havia casas velhas, caindo aos pedaços. Também ainda estava em pé o

tronco e os restos da senzala. No tronco, ainda havia correntes presas com

enormes cadeados, como os dos porões. Contavam as pessoas que nos seus

grandes bananais e nos restos de canaviais ao redor do velho engenho se

ouviam, em noites escuras sem luar, choros e gargalhadas. Diziam que

eram as almas penadas dos escravos mortos e dos feitores do engenho.

Muitos visitantes vinham em seus cadilaques reluzentes. Eram as

esposas dos coronéis da região. Todos acreditavam nas previsões da

benzedeira, por isso Márcia foi fazer uma consulta. Depois dos rituais, ela e

uma das filhas entraram na sala de oração.

Havia um grande altar com toalhas de renda branca, várias imagens de

santos e retratos dos antigos donos do casarão. As duas foram apresentadas

a todas as imagens, uma por uma, e também aos retratos que ali estavam,

citando nome por nome. Depois foram convidadas a se sentar. Havia uma

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fila de cadeiras, com duas delas colocadas mais à frente, em destaque.

Parecia que ela já estava esperando as duas visitantes.

A benzedeira ajoelhou-se em frente ao altar e começou a falar.

— Eu sei porque você veio aqui. A mudança vai acontecer. Não adianta

você falar. Está escrito no livro do destino da família. Eu ouvi de todos os

presentes neste altar e foi esta a resposta. Vocês terão muito trabalho e vão

sofrer muito. Nem todos os seus filhos serão felizes. Um outro filho vai

nascer, além desse que você está esperando. Ele vai chegar na nova terra,

naquela que vocês vão comprar. Vai ser um garoto, não vai ter boa saúde,

mas vai ter vida longa. Vocês vão vencer. Seu marido terá sua lavoura de

café e será bem sucedido. Vai demorar alguns anos, mas a mudança será

em breve.

Márcia não havia feito nenhuma pergunta. A benzedeira respondeu tudo

que ela queria sem que ela tivesse perguntado. Impressionada com as

profecias, Márcia pediu para a filha não contar nada para ninguém. Seria

um segredo das duas.

A imagem da benzedeira jamais foi esquecida por Márcia. Suas vestes

eram brancas, com uma saia longa de renda e um turbante branco na

cabeça. Ela se vestia assim para seu ritual de orações.

Ela continuou a trabalhar na fábrica de farinha, três dias por semana.

Fazia dez sacas por dia e assim podia fazer as entregas dos pedidos, que

eram muitos. Para ela, o monjolo era o seu patrão. Ele tinha pressa de

triturar o milho e fazer o fubá, que depois ia para o grande forno. Ela era

rápida ao peneirar uma fina camada de fubá sobre o tacho quente e retirar

em seguida, no tempo certo, para não queimar a farinha. Uma dos filhos

controlava o fogo da fornalha para que a temperatura fosse constante.

Com o tempo, ela teve que diminuir a produção. Sua barriga estava cada

vez maior e tinha muitas dores nas costas. O calor da fornalha podia

prejudicar o bebê, por isso Maria foi trabalhar no lugar da mãe. Ana tinha

que lavar o milho e pôr no pilão do monjolo para socá-lo. Benvinda

cuidava do fogo, mantendo sempre a temperatura controlada.

Depois que o bebê nasceu, Márcia assumiu de novo o comando da

fabricação de farinha. Tinha muitos pedidos atrasados e teve que pôr em

dia todas as entregas. Pedro andava com aquela ruga na testa, preocupado

com a quantidade de trabalho da esposa.

Um dia voltou a tocar no assunto.

— Eu vou conhecer novas terras!

Márcia não esquecia da profecia da benzedeira, e, muito preocupada

com o bebê, foi logo dizendo:

— O que está acontecendo com você? Eu dou um duro no trabalho e

você ainda não esqueceu dessas benditas terras. Se você não esquecer

dessas idéias de conhecer novas terras, eu deixo de trabalhar no monjolo.

Você pode escrever! Principalmente agora que entraram no mercado novos

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fabricantes, que não fazem como nós fazemos. Usam fábricas elétricas, sem

tanto trabalho.

A partir de então, Márcia diminuiu ainda mais a produção e passou a

fabricar a farinha só para fregueses especiais e cuidava dos filhos com mais

atenção. Pedro decidiu que aquela era a hora de resolver o assunto de uma

vez por todas. Esperou mais alguns dias, até que ela ficasse mais calma,

mas antes preparou tudo para depois lhe contar.

Márcia foi se acalmando, mas não conseguia esquecer as palavras da

benzedeira. Sabia que a mudança iria acontecer. Estava escrito e não podia

ser mudado.

Certo dia, inesperadamente, Pedro disse à esposa:

— Eu vou viajar por estes dias e não adianta você dizer que é loucura

minha.

— Para onde você vai, assim de uma hora para outra? Pense bem no que

você vai fazer. Eu já lhe disse mil vezes, mas você é mais teimoso que uma

mula.

Ele abraçou sua esposa e pediu:

— Me deseje boa viagem!

— Está bem, faça o que você quiser e que Deus o acompanhe!

Pedro rapidamente soltou seus cabelos, deixando-a toda despenteada.

Ele, abraçado a esposa, disse-lhe com muito carinho:

— Vou conhecer o sertão do Paraná. Dizem que suas terras são muito

férteis e produtivas. Lá nós teremos futuro e nossos filhos terão mais

fartura. Eu vou plantar minha lavoura de café tão sonhada.

— Está bem! — respondeu Márcia.

Ela via, nos olhos azuis do marido, um brilho estranho e aquela ruga já

não estava mais na sua testa. Na semana seguinte, lá ia Pedro sonhador,

com seus sonhos em sua bagagem, para a tão sonhada viagem ao sertão do

Paraná. Ele, um pequeno lavrador sem grande futuro, nas terras cheias de

formigas saúva, ia conhecer a terra prometida. Agarrado aos seus sonhos

ele iria conhecer novas terras. Havia muito ele sonhava em fazer essa

viagem.

Pedro não tinha pressa. Ele iria escolher suas terras e, para isso, teria

muito tempo para fazer a escolha certa. A viagem foi num trem lento e

barulhento. Quando passou o rio Paranapanema, ele ficou encantado com

as matas que ladeavam a ferrovia. Era seu grande sonho conhecer aquelas

terras. Chegou em Bandeirantes, desceu na estação e pediu informações.

Tinha um amigo, que morava na região. Percorreu várias fazendas, mas

sem sucesso. Conheceu a fazenda Dois Irmãos, onde o amigo havia

morado. Ali ele arrumou um trabalho para a família, na colheita do café.

Seguiu em frente, então, tomando outra vez o trem que o levaria a um

lugarejo perdido, dentro do sertão paranaense. Quando ele desceu na

estação, leu em uma placa de madeira: Pirianito!

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— Cidade dos sonhos dos imigrantes! — disse um senhor nordestino.

Pedro conversou com ele e ficou sabendo que era nordestino, que viera

para fazer derrubada de matas. Disse que era muito bom de machado e

foice e que sabia usar o facão e a espingarda.

Pedro foi até uma pensão para guardar as malas e descansar um pouco.

A dona da pensão serviu um almoço a base de carne seca, feijão e farinha

de mandioca. Ele perguntou onde ficava a companhia que vendia terras, foi

informado pela dona da pensão. Lá ele foi muito bem recebido pelo Senhor

Nambei Tochi, que deu todas as informações que ele queria saber,

mostrando um mapa completo, com as terras já vendidas e as que estavam

à venda.

Depois, em um jipe da companhia, percorreu toda a região. Pedro ficou

encantado quando pisou naquelas terras vermelhas. Ele escolheu o seu lote

de terra e fechou o negócio. Deu uma entrada e o restante seria pago com

seis meses de prazo. Assinou os papéis necessários, pegou o recibo

comprovando a compra das terras e agradeceu a Deus por ter realizado seu

grande sonho.

Depois de quinze dias, ele voltou para a casa. Já tinha arrumado uma

casa na fazenda Dois Irmãos. Era um rancho de palmito, coberto por

tabuinhas, de chão batido, sem conforto algum, mas era um teto, o único

disponível na fazenda. Era igual a todas as outras casas da fazenda.

Márcia iria reclamar, ele tinha certeza. A casa onde eles moravam era

uma mansão, com todo o conforto. O que ele podia fazer tinha feito. No

começo seria difícil, isso ele sabia.

Já de volta, Pedro foi logo dizendo:

— Comprei as nossas terras. Eu sou o homem mais feliz deste mundo.

Vamos mudar em trinta dias.

Márcia disse:

— Você está maluco! Acorda homem, deixe de sonhar!

Pedro abraçou a esposa e disse:

— Não estou sonhando, estou falando sério.

— Como vamos mudar? E as nossas coisas, o nosso gado e tudo que

temos? Como vai fazer esta mudança? Você só pode estar sonhando!

Pedro guardou o chapéu, retirou o paletó e a velha guaiaca surrada que

ele tinha orgulho de usá-la, presente do seu falecido irmão. Sentou-se em

sua cadeira de balanço, tirou suas botas de cano longo e disse:

— Vou vender tudo de porteira fechada. Só vamos retirar a mudança e a

égua Faceira. O resto será tudo vendido.

Márcia começou a chorar, abraçou os filhos e disse:

— O pai de vocês endoidou de vez!

Ele não estava doido. Tinha começado uma nova etapa da sua vida e da

família. Márcia tinha que aceitar. Pensava na profecia da benzedeira e sabia

que a mudança iria acontecer, porque estava escrito em seus destinos.

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Entre soluços, Pedro disse:

— Lá as terras são vermelhas, não é areia como a nossa aqui. Lá é a

terra dos meus sonhos. Não faça isso comigo. Eu estou lhe pedindo! Eu

nunca fiz um mau negócio, você sabe muito bem. Eu só quero o melhor

para nós e para nossos filhos.

Márcia, ainda chorando, falou:

— Lá deve ter até onças.

— E tem mesmo — respondeu Pedro, abraçando a esposa, cobrindo-a

de beijos e desfazendo seus cabelos.

Era o que fazia quando estava feliz.

— Então, você vai? — insistiu ele.

— Vamos! — respondeu Márcia, ainda chorando. — Não tem perigo

mesmo? Você tem certeza?

— É claro que tenho. Lá mora muita gente e tem muitas lavouras de

café.

A conversa se prolongou até tarde da noite. Ele deu todos os detalhes

sobre a compra sobre a terra onde iriam morar. Márcia não dormiu naquela

noite. Na manhã seguinte, levantou-se muito cedo, fez café e levou para o

marido na cama.

Pedro tomou o café e disse a esposa:

— Eu vou procurar o Seu Garcia. Tenho certeza que ele vai comprar

tudo, de porteira fechada.

Não foi difícil fazer a venda das terras. Seu Garcia aceitou tudo como

Pedro queria e ainda pagou mais do que Pedro esperava. Com isso poderia

pagar o restante de suas novas terras, fazer a mudança e ainda sobraria

dinheiro para começar uma vida nova nas terras dos seus sonhos.

Havia pouco tempo para encaixotar tudo, porque a mudança seria

despachada de trem. Quando estavam prontos para partir, os filhos estavam

muito assustados, agarrados à saia da mãe, que chorava sem parar. Ela se

culpava por ter deixado de trabalhar no monjolo, fazendo a famosa farinha

de milho branco. Por outro lado, as palavras da benzedeira não lhe saíam da

cabeça. Tinha muita fé em Deus, mas Márcia chorava sem parar. Pedro

tentava consolar a esposa, mas ela só chorava e dizia:

— Como vamos fazer em um lugar estranho, onde tem até onça?

Pedro dizia:

— Não tem perigo! Você vai gostar, tenho certeza. No começo vai ser

difícil, as crianças vão estranhar. Lá o clima é diferente daqui, é bem mais

frio, mas nosso sítio é lindo. É uma grande mata virgem, sem nenhuma

árvore derrubada.

O medo e a insegurança nublavam os olhos vermelhos de Márcia. E

assim foram eles, ao encontro da profecia.

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III

A PEROBA E A CASA

As crianças ficaram encantadas. Nunca haviam viajado de trem e para

elas foi uma aventura fantástica. As matas que ladeavam a linha de trem

não tinham fim. A viagem correu bem. Pedro estava tão feliz que não

parava de falar no sítio e na mata.

— Mas lá tem onças? — perguntou um dos filhos.

— Sim — respondeu o pai.

— É verdade que elas comem gente?

— Não é verdade. São histórias de gente boba, que gosta de inventar

coisas só para amedrontar as crianças. No nosso sítio não tem onças, mas lá

por perto deve ter alguma onça pintada e jaguatiricas, mas elas não comem

gente. Vocês podem ficar sossegados, não há perigo.

Pedro e a família chegaram em Bandeirantes. Num caminhão, levou a

mudança para a fazenda Dois Irmãos. Era dia doze de junho de mil

novecentos e quarenta e dois. Foi nesse ano a grande geada no Paraná.

Grande foi a surpresa de Márcia ao ver a casa em que iriam morar.

Chorando muito, ela disse ao marido:

— Isto aqui você chama de casa? Mais parece uma choupana de índios.

Nunca vi coisa igual. Se isto aqui é casa, o nosso paiol lá do outro sítio era

uma mansão.

Ela chorou o dia inteiro, sentindo aquele frio insuportável e vendo o

rancho sujo, cheio de palhas de milho e de tranqueiras velhas. Chorando,

dizia que não ficaria ali e queria ir embora. A noite chegou e depois de uma

refeição quente, todos foram dormir. Márcia chorou a noite toda. O frio era

demais e a cama não esquentava. Ela foi olhar os filhos. Ao ver Lúcio

enrolado num pequeno cobertor, todo branco da geada, começou a gritar,

dizendo que o filho morrera congelado.

Lúcio retirou o cobertor e disse:

— Eu estou com frio, mas não estou morto.

Márcia não tinha cobertores para agasalhar os filhos. Na região onde

haviam morada o frio não era intenso, o clima era temperado e ninguém

conhecia as geadas. Desesperada, ela disse ao marido:

— Eu aqui não vou ficar. Trate de procurar uma outra fazenda que tenha

uma casa melhor, cercada de tábuas e coberta com telhas.

Sem outra alternativa, Pedro saiu à procura de uma outra fazenda. Logo

na primeira, encontrou Seu João e Dona Carola. Explicou a situação ao

fazendeiro, que ficou penalizado, cedendo uma de suas casas na grande

colônia que ele tinha na fazenda de café.

A geada provocou grandes perdas, para todos os fazendeiros. A fazenda

do Seu João estava seca, o cafezal, queimado até no tronco. Foi perda total

nos cafezais.

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Mudaram-se novamente. Agora Márcia não mais chorava, mas

continuava pensando nas palavras da benzedeira, que dissera que iriam

sofrer muito, venceriam, mas nem todos os seus filhos seriam felizes. Ela

sofria recordando a casa grande do outro sítio, o paiol, a cachoeira, o

estábulo e o monjolo. Quanta saudade!

Pedro e a família ficaram naquela fazenda apenas oito meses. Seu João e

a esposa eram gente muito boa e ajudaram muito a Pedro e Márcia. levando

em seu próprio caminhão a mudança do casal, para ser despachado no trem

de carga de Bandeirantes para Pirianito.

Pedro já havia arrumado uma casa na fazenda do Seu Luiz, filho de

imigrantes japoneses. A família de Pedro seguiu rumo a terra prometida.

Passaram pela balsa do rio cinza e seguiram.

Pedro sonhador não queria acordar, ao chegar na terra escolhida.

Márcia, então, disse ao marido:

— Vamos lutar juntos. Com fé e coragem nós vamos vencer, se Deus

quiser. Você tinha razão. Nesta terra vermelha vamos trabalhar juntos e

criar os nosso filhos. Plantaremos sua tão sonhada lavoura de café.

Chegando na fazenda do Seu Luiz, foi um choque para Márcia. A casa

era igual a primeira em que tinham morado, cercada de palmito e coberta

de tábuas. Ela começou a reclamar da casa. Pedro pedia paciência, até

construir a casa do sítio.

— A casa vai ser igual a esta? — perguntou Márcia, aflita.

— Não vai ser igual a esta. Vai ser cercada de tábuas e coberta com

telhas. Fique tranqüila, vai ser uma casa decente.

Pedro ficou receoso, vendo os moradores da fazenda enrolados em

cobertores, sentado ao sol, tremendo de frio. Era a terrível maleita. Ele teve

medo que a família pegasse a doença. Esse medo era maior do que os seus

sonhos.

Márcia lutou junto com o marido e os filhos, dando força e coragem.

Com muita fé dizia que iriam vencer, mas chorava escondido, recordando o

outro sítio, a casa grande, o pomar e a fábrica de farinha. Ela se culpava por

ter deixado de trabalhar e por não ter tido forças para tirar da cabeça dele

seus sonhos malucos de conhecer novas terras. Agora tinha que enfrentar

tudo, morando numa casa que mais parecia uma tapera. Nem os índios

moravam numa casa assim. Acha que a culpa de tudo era dela. Se fosse

mais exigente, não estaria numa casa como esta.

Pedro sempre foi um homem honesto. Cumpriu com o contrato, fazendo

o pagamento do restante da dívida no dia certo. Foi, então, falar com o

engenheiro para providenciar a marcação das divisas, fazendo a picada e

colocando as marcas, para as terras serem liberadas. Tomou todas as

providências para escritura definitiva das terras e em dois meses ele estava

com as terras legalmente suas.

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Outro compromisso foi contratar peões com prática em desmatamento,

providenciar as ferramentas, foice, machado e o trançador, um serrote com

dois metros de comprimento, manejado por duas pessoas, uma em cada

extremidade. Providenciada as ferramentas, não foi difícil reunir o pessoal

com prática na derrubada de matas. Depois contratou um bom cozinheiro,

que tinha suas panelas de ferro, enormes caldeirões e todos os utensílios

necessários. Foi feita a lista de mantimentos: feijão, arroz, farinha de

mandioca, sal, açúcar, banha, sabão e muita carne seca, o jabá.

Compra feita, tudo pronto, os peões foram fazer o rancho. Tinha que ser

bem grande para abrigar todos os peões e guardar os alimentos. Seria

coberto de sapé até o chão, para proteger da chuva e do vento. Em dois dias

ele estava pronto. Os peões se mudaram para lá, levando seus galos de

briga e suas roupas em sacos.

O rancho era perto do riacho, onde tiravam a água para beber e

cozinhar. O banho era tomado no rio, quando dava coragem. A rotina ali

era trabalhar, comer e dormir.

Pedro sonhador não tinha tempo de sonhar. Márcia rezava e pedia a

Deus que os protegesse, porque o trabalho era muito perigoso. Havia casos

de peões que ficaram presos debaixo das árvores ao cair e morreram sem

ser socorridos a tempo.

Começou, então, a derrubada. Em uma pequena clareira foi cortada a

primeira árvore. Pedro reservou uma pequena área da mata, junto ao riacho,

até hoje intocável. O trabalho era difícil e todos tinham que tomar muito

cuidado para que não ocorressem acidentes. O serviço seguiu em ritmo

lento.

Os peões diziam:

— É assim mesmo Pedro. Temos que tomar cuidado. O senhor sabe, o

trabalho é perigoso.

Após dois meses derrubando a mata, chegavam à parte mais fechada.

Quando Pedro chegou em casa, disse à esposa com um nó na garganta,

— Hoje eu realmente fiquei triste, Márcia.

— O que foi que aconteceu? Alguém se machucou? Pedro, pelo amor de

Deus, fale, homem!

— Nada disse aconteceu, mulher. É que hoje foi derrubada a maior

árvore que havia na mata. Era uma peroba com mais de cinqüenta metros

de altura. Devia ter mais de cem anos. Depois de cortada, ela caiu com um

grande gemido de dor, levando junto dezenas de árvores pequenas. Márcia,

Márcia, me ajude! Eu jamais irei esquecer o gemido daquela árvore.

Pedro abraçou a esposa e chorou. Chorou muito naquela noite. Dormiu e

não sonhou. No outro dia ele foi ver a árvore cortada e ficou em pé, junto

ao tronco, que era mais alto do que ele. E Pedro tinha quase dois metros de

altura.

— Que pena! — disse ele.

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A derrubada foi terminada, agora era hora de atear fogo em tudo. Estava

tudo seco. Não havia chovido. Era a hora certa. Com a ajuda dos peões a

queimada foi feita, mas ficaram muitos galhos sem queimar.

As dificuldades foram muitas. Márcia foi uma mulher de grande força

de vontade, com muita fé em Deus. Lutava junto com o marido, mas ainda

haviam muitas outras etapas para serem vencidas. Pedro sonhador não

sonhava mais. Não tinha mais tempo. Agora ele vivia a realidade e a

realidade era dura e cansativa. A ajuda de Márcia, seu amor, seu carinho e

sua coragem lhe davam forças para continuar.

Márcia disse ao marido:

— Você não vai desistir agora, depois de tanto trabalho, continue

sonhando Pedro. Eu me sinto mais forte com seus sonhos. Vamos em

frente, vamos continuar a lutar juntos, por nós e por nossos filhos. Com fé

em Deus nós vamos vencer.

Nessa noite, Pedro dormiu como uma criança. Pela manhã, quando

acordou, chamou pela esposa:

— Perdi a hora mulher. Por que não me acordou?

— Hoje é domingo, dia de descanso. Continue na cama. Está frio e as

crianças estão dormindo. Fique sossegado. Durma mais um pouquinho, eu

vou fazer café.

Márcia preparou o café e levou para o marido na cama. Ele tomou

aquele café gostoso que só ela sabia fazer e disse:

— Nós vamos vencer.

— Você ainda tem dúvida disso? Onde está aquele homem cheio de

sonhos, coragem e fé? Sonha Pedro. Nunca deixe de sonhar. Seus sonhos

serão todos realizados. Eu acredito em Deus.

Carinhosamente abraçou o marido e beijou sua face. Como era lindo

aquele amor de Pedro e Márcia! A coragem e fé faziam de Pedro sonhador

um guerreiro.

Depois de três meses de muito trabalho, Pedro foi até a serraria e vendeu

toda a madeira grossa, as toras. A madeira fina foi vendida para o lenheiro,

que a entregava nas olarias da região. Pedro não derrubou toda a mata do

sítio, deixou uma parte da mata como reserva.

Os peões ainda tinham muito serviço pela frente. Eram, em sua maioria,

nordestinos que deixaram sua terra natal para tentar a vida no Paraná. Para

retirar a madeira, Pedro e os peões improvisaram uma estrada para o

caminhão. Era um serviço muito perigoso. Os cabos de aço que prendiam

as toras de madeira tinham de estar sempre bem presos para que elas não se

soltassem e provocassem um acidente.

Depois da queimada e da retirada da madeira, ficaram ainda muitos

entulhos. A terra tinha que estar limpa para a plantação dos cereais. O

serviço duro foi feito a machado e foice. Os peões voltaram a trabalhar para

Pedro, cortando os restos de madeira, amontoando tudo e ateando fogo.

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Pedro e seus filhos, mais o empregado João Américo, vulgo Baiano,

prepararam o terreno para a construção da casa do novo sítio.

Pedro, ao vender as toras, já comprou a madeira para a casa. Como ele

não entendia nada de construção, procurou um vizinho e recebeu algumas

explicações detalhadas. A contração exigia muito cuidado para não cortar o

madeiramento errado. Inexperiente, ele cometeu alguns erros, mas seguiu

em frente. A casa era grande, com cômodos e área de serviço. Na hora de

colocar as telhas, ele chamou o vizinho para ajudá-lo. O serviço foi rápido.

A essa altura, Márcia e a família participavam. Todos se levantavam às

cinco da manhã e para a longa caminhada até o sítio. Eram mais de três

quilômetros para chegar até lá. A estrada era uma picada improvisada por

Pedro. Márcia punha as panelas no fogo para preparar o almoço. A carne

seca, o jabá, era indispensável na alimentação. Entravam também no

cardápio a carne de porco ou a de frango e a farinha de mandioca, muito

usada na região.

Quando tudo estava pronto, era levado em caldeirões de alumínio. Em

uma sacola iam os pratos de louça, que depois foram substituídos pelos de

esmalte, porque as crianças quebraram todos, deixando a sacola cair no

chão. José e Benvinda eram os encarregados de levarem a comida para

todos. Era uma longa caminhada até o sítio, carregando os caldeirões

pesados, cheios de comida. Quando chegavam, a bóia já estava fria.

O percurso era feito com muito medo. Na picada que cortava a mata

havia manadas de catetos, antas, queixadas, onças, capivaras, jaguatiricas,

veados e quatis. Os veados tinham o porte de um bezerro, mas não eram

perigosos. Transitavam livremente, sem causar medo à ninguém. Os gatos

do mato já eram de dar medo. Eram muito grandes e quando um deles via

as crianças, parava e se arrepiava todo, abrindo a boca e fazendo um ruído

de deixar qualquer um arrepiado.

Pedro levava o café, que depois era aquecido no fogão de pedra dos

peões. O feijão e a carne também eram esquentados ali. Enquanto os peões

limpavam a terra, queimando os entulhos, Pedro e os filhos, mais o Baiano,

levantavam a casa, que ficou pronta depois de três meses. Pedro arrumou

um caminhão de puxar toras para levar a mudança.

No último dia, quando terminou a casa, Benvinda e José tinham levado

o almoço e, como estava muito frio, ficaram para voltar juntos com todos.

Só faltava recolher as sobras da construção e guardar as ferramentas. A

casa estava pronta, com as chaves nas portas e as janelas com trancas

tramelas. Começou um vento frio e uma garoa gelada. Em pouco tempo

todos estavam duros de frio.

Era a tal geada negra. Foi uma provação terrível para Pedro e para a

família chegar em casa. Já passava das três horas da tarde, quando isso

aconteceu e Márcia já os esperava com muita água quente para o banho de

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todos e uma suculenta sopa de mandioca, reforçada com lombinho de porco

e costelinha defumada.

Depois do banho e da sopa quente, os filhos foram para a cama. Pedro e

Márcia ficaram se aquecendo no grande fogão de lenha, que mais parecia

uma lareira. O vento entrava dentro da casa pelos buracos na parede. Pedro

dizia que a geada mataria os mosquitos da maleita.

Não foi possível mudar-se no dia seguinte. O frio era intenso e o vento,

muito forte. O grande fogão da casa nova tinha de secar ainda o cimento e,

por isso, o fogo não poderia ser acendido. Três dias depois, a mudança foi

realizada. Márcia ainda não havia visto a casa nova. Assim que chegaram,

ela começou a chorar.

Pedro perguntou a ela:

— Você não gostou da nova casa?

— Sim, eu gostei — respondeu ela chorando e abraçou o marido. —

Estamos vencendo.

Pedro sonhador agradeceu a esposa:

— Devo tudo a você. É meu anjo da guarda. Sem você jamais iria

chegar até aqui.

Márcia disse ao marido:

— Agradeça a Deus, Pedro. Foi Ele que realizou mais esse sonho.

Ainda faltam muitos outros, até que você seja um bom lavrador e dono de

sua plantação de café.

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O FEIJÃO E O MUTIRÃO

Pedro tinha feito um poço, que ficava uns cinqüenta metros longe da

casa, com água muito boa. Ele descobriu uma nascente de água cristalina

para o uso da casa e o poço era só para lavar as roupas da família.

Construiu um outro cômodo para guardar as ferramentas. Assim,

finalmente, a família estava bem instalada. Chegava a hora de preparar a

terra para plantar milho, arroz e feijão.

Havia sobrado muita madeira, que seria aproveitada para fazer mourões

e palanques para as cercas de arame farpado, onde seriam guardados os

animais. O restante era para o consumo do fogão.

Pedro, ao vender a madeira, recebeu uma grande soma em dinheiro e

assim pôde pagar todas as despesas com os peões. Retirou a escritura

definitiva da sua propriedade e o que sobrou foi o primeiro lucro. O

trabalho de toda a família não tinha preço.

Pedro tinha agora que comprar as máquinas manuais para plantar o

milho e o feijão. Além disso, os troncos das árvores cortadas brotavam e

tinham que ser cortados com enxadas ou facão. Depois da terra preparada e

caiu uma boa chuva. Começaram a plantação. Um vizinho lhe vendeu as

sementes do milho que tinha sobrado da sua plantação e ensinou como

manejar a máquina. Era de madeira e, para plantar, tinha de ser bem rápido,

batendo na terra, abrindo e fechando e deixando as sementes na pequena

cova feita.

O milho foi plantado e precisavam ser cuidado, capinando o mato que

brotava. Era serviço que não acabava mais. Chegou, em seguida, a época

de plantar o feijão, mas antes era preciso dobrar os pés de milho, trabalho

extremamente cansativo, mas tudo foi feito na época certa.

Todos já tinham um pouco de prática em manejar as máquinas, mas,

mesmo assim, ainda batiam-na sobre os dedos dos pés, sem ferimentos

graves, porque todos usavam as botinas protetoras. No fim da tarde, Pedro,

olhava as terras que tinham recebido as sementes, e dizia:

— Hoje plantamos um pouco mais que ontem. Amanhã vai ser ainda

mais e logo todo o feijão estará plantado.

Foi a maior plantação que Pedro já havia feito, graças à ajuda dos filhos.

Em pouco tempo o feijão cresceu e era preciso continuar a cortar as plantas

nativas que cresciam junto com ele. O serviço era cansativo, mas todos o

faziam com muito prazer.

Pedro sonhador esquecia de sonhar. Era tanto serviço que ele só pensava

em vencer. Márcia vivia atarefada e com tantas surpresas agradáveis.

Todos os dias, na hora da janta, era narrado a ela tudo o que tinha

acontecido durante o dia no trabalho da roça.

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Um dia aconteceu um fato interessante com Lúcio, o filho mais velho de

Pedro. Ele estava capinando quando apareceu um enorme lagarto. Ele

tentou acertá-lo com a enxada, mas o lagarto correu muito e Lúcio correu

atrás. O lagarto, então, inesperadamente mordeu o próprio rabo, aparando-o

quase pela metade e desapareceu no meio do mato. Lúcio pegou o rabo do

animal e levou para mostrar a todos. Contou o que havia acontecido e essa

façanha ninguém esqueceu.

São Pedro mandou chuva suficiente para o feijão crescer e pegar uma

carga de vagens nunca visto por Pedro e Márcia. Ela, todo final de tarde, ia

juntar-se a família e admirar a lavoura de feijão. Quando chegou a colheita,

Pedro, sua família e o Baiano o arrancaram em uma semana. Márcia e uma

das filhas preparavam a comida para todos e levavam na roça o almoço da

família. Já deixava sobre o fogão o feijão cozinhando para o jantar.

Márcia agora não chorava mais escondido. Ao ver o marido sujo de

terra vermelha, chorava limpando seu rosto, dizendo:

— Valeu a pena tanto trabalho!

As lágrimas corriam em seu rosto e Pedro as enxugava com carinho,

deixando em sua face a marca da terra vermelha.

Um dia Márcia o abraçou e disse:

— Você não sonha mais, Pedro.

— Sim — disse ele — é claro que eu sonho. Eu sou um sonhador, é

você que sempre me diz. Ainda falta muito. Vamos ter que trabalhar muito

ainda. Agora vamos ter que bater todo esse feijão.

Ele havia calculado sua produção em duzentas sacas. Antes de mais

nada, precisava de uma carroça para transportar sua primeira safra de

feijão. Comprou uma, feita em Ourinhos, recém-saida da fábrica. Adquiriu

também um cavalo, que foi batizado de Paxola.

Restava bater o feijão. Após consultar seus vizinhos, Pedro decidiu o

que fazer e avisou a esposa.

— Vamos fazer um mutirão. Já falei com os vizinhos e eles me deram

essa idéia. Já está tudo combinado. Em dois dias nós bateremos todo esse

feijão.

Márcia nunca tinha lidado com essa situação, mas as vizinhas já

estavam acostumadas com essas reuniões. Todas se prontificaram a ajudá-

la a fazer a comida para os homens. Foi feita uma lista de tudo que seria

consumido e os preparativos foram encerrados. O sol já havia secado todo

o feijão que fora arrancado e preso em cima dos pés de milho. O sol estava

bom. Foram dois dias de muito trabalho sério para trinta homens adultos.

Uns carregavam o feijão em grandes feixes preso por uma corda, outros

colocavam em cima dos encerados, outros batiam com varas e cambaus,

outros abanavam e outros ensacavam.

Era um trabalho como o das formigas. Todos juntos fazendo cada um a

sua parte e ninguém cobrava nada pelo serviço. E, assim, todos juntos

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ajudavam um vizinho apurado, principalmente na colheita do feijão. Foram

dois dias de festa, muito trabalho e muita comida e alegria para todos que

participaram do mutirão.

Ao contar as sacas, Pedro não acreditou na quantidade. Foram colhidas

trezentas sacas de feijão abanados e de sessenta quilos cada. O rancho que

ele havia construído no meio do sítio não deu para guardar nem a metade

da safra de feijão. O restante foi guardado em mais dois ranchos dos

vizinhos. Lúcio e Baiano transportaram com a carroça, puxada por Paxola.

O trabalho começou na quinta-feira e terminou na sexta-feira. No sábado,

foram todos convidados para uma grande reunião de encerramento, uma

festa para todas as famílias que participaram do mutirão, com os filhos e

parentes.

As vizinhas ajudaram na preparação do grande almoço. Márcia cuidava

do grande fogão a lenha. Era comida que não tinha fim. Nos grandes tachos

foram feitos frango ensopado, lombo recheado, frango com macarrão e

macarronada, além de leitões e frangos assados no forno a lenha e muita

salada e farofa.

Foi uma reunião inesquecível. À noite, houve a famosa catira do interior

de São Paulo, rodadas de truco e escopa. O três-sete ninguém sabia jogar.

Para os mais jovens, houve baile numa grande barraca de lona. Foi uma

festa muito especial para a família de Pedro.

No domingo amanheceu chovendo e choveu durante uma semana. Pedro

deu graças a Deus e aos vizinhos pelo feijão estar todo guardado nos

ranchos. Ele havia gasto na alimentação de todos, em três dias, vinte

leitões, cinqüenta frangos, carne de um porco gordo inteiro, um saco de

feijão, dois sacos de arroz e um saco de farinha de mandioca, dois sacos de

macarrão e vários garrafões de vinho. Com dez sacas do feijão vendido deu

para ele pagar toda a despesa do mutirão.

Pedro comprou vários porcos de cria e engorda. Leitões já eram criados

no mangueirão e frangos caipiras povoavam o terreiro da casa. Pedro tinha

de tudo em grande quantidade. Ele se lembrava da casa do pai com tristeza,

quando a madrasta escondia comida e ele passava o dia sem comer. Não

sentia saudades desse tempo. Ele só tinha muita tristeza. Dizia ele a esposa:

— Eu jamais terei coragem de negar um prato de comida a um estranho.

Dinha me negava o direito de entrar na minha própria casa e de falar com

meu pai. Dele, sim, eu tenho saudade. Que Deus o tenha em sua santa

Glória. Ele sofreu muito com a mulher, mas ela foi muito infeliz depois que

meu pai faleceu. Seus filhos a abandonaram e tiraram tudo que ela tomou

de meu pai. Ela foi castigada por Deus.

Márcia vivia atarefada com tanto trabalho, mas a profecia da benzedeira

sempre lhe voltava a mente. Ela dizia para si mesma:

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— Ela disse a verdade. Até agora deu tudo certo. O filho que vai chegar

não terá boa saúde, mas terá vida longa. Eu só vou ter certeza de tudo,

quando os fatos acontecerem. Tenho medo até de pensar.

Pedro a chamou, trazendo-a de volta a realidade. Encabulada disse:

— O que você quer, homem. Você me deu um susto!

— Estava sonhando mulher?

— Eu não! — respondeu — Só faltava essa agora. Eu sonhando.

Ele tinha razão. Pedro a chamou para avisar que iria a cidade, vender o

feijão. Selou sua égua Faceira, colocou sua guaiaca nova e lá foi ele à

cidade, vender sua grande safra de feijão. Só tinha um cerealista

comprador. Combinaram o preço e acertaram a venda. O pagamento era

feito só depois da entrega.

— E quando é que seu feijão vai ser colhido? — perguntou o

comprador. — Com essa semana de chuva, seu feijão deve estar todo

brotado, seu Pedro.

— O feijão já está colhido, Seu Martins, e está guardado nos ranchos. O

senhor pode ir buscá-lo hoje mesmo.

— Pedro, você é um homem de sorte. Esta compra é a primeira que faço

este ano. Está de parabéns.

Foram vendidas trezentas sacas de feijão. Pedro reservou quinze sacas

para o gasto da família e o restante para o novo plantio. Seu Martins fez

três viagens em seu caminhãozinho. A estrada estava muito enlameada e

escorregadia. Pedro deixou sua égua Faceira e foi junto com o caminhão

buscar a primeira parte do feijão. Não deu para dar as três viagens no

mesmo dia. No outro dia foram buscar as outras duas.

Pedro recebeu o dinheiro e separou um pouco dele. Com o restante abriu

uma conta bancária. Foi até a Casa Alves, uma loja de tecidos, e fez uma

boa compra.

Alves era o nome do dono da loja. Perguntou a Pedro:

— O senhor é novo aqui na cidade, não?

— Vai fazer dois anos que estou morando aqui perto, no meu sítio.

— Onde fica o seu sítio?

Pedro respondeu:

— É no Maticanã. Lá é tudo mata ainda, senhor. Meu nome é Pedro, a

suas ordens.

Foi uma festa ao chegar em casa. Pedro trazia enormes pacotes de

tecidos e roupas para toda a família. Ele não havia comprado roupas de frio

para as crianças. Márcia recriminou-o por isso.

— Eu não esqueci, Márcia. Vai chegar na loja do Cavali uns casacos de

frio. Assim que chegar, eu vou buscá-los e levarei os meninos para

escolher.

De fato, quando a mercadoria chegou, Pedro comprou casacões de lã

para as filhas e para a esposa. Comprou também agasalhos de frio para ele,

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Lúcio e José, e blusinha de frio para Lurdes. Márcia ficou feliz com o

casaco. Foi um presente inesquecível.

Márcia queria uma máquina para costurar todos aqueles tecidos que o

marido havia comprado. Pedro sempre fazia os gostos da esposa e

prometeu a compra da máquina de pé, assim que chegasse na loja de Seu

Dantas. Ele a comprou logo na semana seguinte. Márcia não tinha prática,

mas logo pegou o jeito e foi uma festa só entregar os vestidos de seda para

as filhas, muito bem bordados.

Quando foi preciso colher o colher o milho de novo, Pedro arrumou uns

peões, mais o Baiano e os filhos para a quebra. Ele fez um paiol bem

grande, em poucos dias. Lúcio era quem transportava o milho até o paiol. O

serviço era cansativo e demorado e tinha que ser feito o mais depressa

possível. A terra precisava ser preparada para nova plantação.

Foram plantados, então, arroz, mandioca, batata-doce, cará e abóboras.

O pomar foi tarefa de Lúcio, que se saiu muito bem. Tinham também uma

boa horta e os filhos ajudavam a cuidar. Com tanto serviço, Márcia andava

muito distraída. Pedro notou logo de início, pensou que fosse apenas

cansaço e falou com a esposa.

— O que está acontecendo? Você anda triste, pensativa. Está doente ou

não está feliz?

— Não é nada disso. Deixe para lá. Não fique preocupado, eu estou

bem.

— Você tem trabalhado demais. Eu vejo uma sombra de tristeza em

seus olhos. Me diga o que a está atormentando.

Márcia respondeu:

— Eu queria voltar lá onde nós morávamos. Quero rever o sítio, ver

meu pai, fazer uma visita ao túmulo de minha falecida mãe. Eu tenho tanta

saudades de tudo que deixamos lá, você me leva até lá para matar a

saudade e rever o monjolo.

— Sim, nós iremos rever tudo.

Márcia abraçou o marido e continuou:

— Eu estou morrendo de saudade. Quero rever minhas irmãs.

Pedro não sabia dizer não a ela.

— Nós iremos rever seus parentes, os meus e os amigos. Vou dar uma

ordem para os filhos e para o Baiano. Assim nós dois vamos descansar um

pouco. Uma semana ou duas serão suficientes para visitarmos todos.

Márcia abraçou o marido como uma adolescente e disse:

— Eu sem você não viveria.

Ele respondeu:

— Eu que o digo. Sem você é o mesmo que se o mundo acabasse —

afirmou ele e ficaram abraçados por longo tempo.

Márcia fez vários vestidos, saias e blusas para ela. Para o marido, calças

e camisas. Pedro comprou um par de botas para ele e dois pares de sapatos

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para a esposa. Dois dias depois, saíram de viagem para rever sua terra

natal. Levaram a filha Lurdes, que tinha dois ou três anos de idade. A

viagem correu bem. Márcia, porém, estava enganada, pensando que iria

encontrar o antigo sítio como haviam deixado. Já em seu destino, Pedro

alugou um carro para levá-los até o sítio.

Ao chegar na entrada das terras que tinham sido suas, ela não conteve as

lágrimas, ao ver tudo sem nada. A casa grande não estava mais em seu

lugar. O monjolo simplesmente havia desaparecido, tudo havia sido

destruído e em seu lugar só havia pastagem. Márcia chorou muito e disse

ao marido:

— Que tristeza! Quanto me arrependo de ter vindo. Eu tinha o grande

sonho de ver tudo no mesmo lugar. O que fizeram com a nossa casa? E o

meu monjolo? Destruíram sem dó este lugar tão querido e onde fomos tão

felizes.

Pedro abraçou a esposa e tentou dizer alguma coisa, mas ele também

estava emocionado.

— Vamos embora daqui. Chega de tristeza. Nós lá no nosso sítio somos

muito felizes. Lá não tem lugar para a tristeza. Vamos visitar nossos

parentes e o túmulo da sua mãe.

Ezaías, ao ver Pedro e Márcia, não acreditou que eram eles. Chorava

como uma criança dizendo:

— Agora eu vou com vocês e não tem desculpas.

Já com duas semanas de passeio, decidiram voltar para casa. Ezaías

arrumou sua pequena maleta, com suas roupas e tudo que ele tinha,

resolvido a passar uns tempos com eles.

— Quero conhecer seu novo sítio e a casa grande. Há um cantinho para

mim, pequeno Pedro?

Márcia disse:

— Agora ele não é mais tão pequeno pai. Tem quase dois metros. Será

uma grande alegria ter o senhor conosco por um bom tempo.

Ezaías vivia com sua filha Dora e não saia de casa para viajar. Só

visitava os parentes da cidade. Foi com grande alegria que viajou de trem

junto com sua filha e Pedro, para ele um filho muito querido. Ao chegar ao

Paraná, ele indagou.

— Este lugar existe mesmo ou eu estou sonhando?

Ezaías ainda não tinha visto nada. Quando chegou no sítio de Pedro, ele

se encantou com tudo que viu e disse ao genro:

— Eu acreditei em você, tinha certeza que iriam vencer.

As palavras da benzedeira voltaram a mente de Márcia. Ela não

esquecia.

Lúcio e os irmãos haviam cumprido todas as ordens do pai e ainda

tinham plantado mamonas e amendoim. Os netos ficaram muito felizes

com a chegada do vovô, que iria passar uma temporada com eles.

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Um dia, porém, o vô Ezaías chegou perto de um dos netos e meio tonto,

queixou-se de uma terrível dor do lado direito. O neto aflito perguntou:

— O vô está doente?

— Não, estou só com essa dor forte. Ela tem nome. Chama-se dor-de-

bolso.

— O que é isso vô? Eu nunca ouvi falar dessa dor.

— É que eu não tenho nem um réu no bolso — explicou o velho e os

dois deram uma gostosa gargalhada.

O neto deu a ele uma boa porção de moedas. Só assim ele sararia

daquela terrível dor.

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OS CAÇADORES SEM CAÇA E ZÉ-SEM-MEDO

Pedro fez uma reunião com os filhos e anunciou:

— Este ano vamos plantar o café. Temos que fazer as covas e arrumar a

madeira para cobrí-las.

Ele já havia conversado com os vizinhos, que já tinham plantado o café.

Eles explicaram como fazer as covas e como medir a distância, o

espaçamento entre elas. Em uma corda fina eram feitos nós a uma distância

regular. Era a distância entre uma cova de café e outra. Duas pessoas

seguravam nas pontas da corda, outras duas, com um enxadão, faziam as

marcas e outros já faziam os buracos. O serviço era uma nova experiência

para todos, pois ninguém sabia fazer aquele tipo de trabalho. Com alguns

erros, que eram corrigidos sem perda de tempo, as covas deveriam estar

prontas antes do plantio.

Foram dez dias de muito trabalho. Com garra e muito amor pela terra

Pedro plantou oito mil pés de café. Essa terra vermelha era orgulho de

Pedro. Quanto ele sonhou e ainda sonhava com sua lavoura de café. Ele

não desistia de seus sonhos de ser um produtor de café.

Márcia, além de cuidar da comida no seu fogão a lenha, ainda costurava

para toda a família. Uma das filhas ajudava lavando toda a roupa da família

e tirando água do poço. O trabalho era uma rotina para todos. Assim que

sentiam o cheirinho de café coado, todos pulavam da cama sem preguiça.

Com a maior boa vontade ia todos, com suas ferramentas nas costas,

encarar mais um dia de trabalho.

Depois das covas do café estarem todas prontas, a terra já capinada, o

milho já plantado, as sementes do café escolhidas, foi plantado o feijão,

desta vez um pouco menos. Faltava plantar o arroz.

— Quem trabalha com a terra tem que plantar de tudo — dizia Pedro.

Começou a plantação do café. Em cada cova eram colocado oito grãos.

Depois de nascido, era necessário retirar as mudas que não tinha crescido.

Só ficariam de três a quatro pés em cada cova. A madeira já estava

preparada, para que todas as covas de café fossem cobertas por elas. Assim

que o café começou a brotar, Pedro não cansava de olhar sua lavoura,

agradecendo a Deus por ter vencido mais uma etapa.

Márcia, agora refeita da decepção de não ver sua antiga casa, tinha a

alegria de seu velho pai estar junto dela, Pedro estava feliz da vida, o seu

café já plantado. O milho já estava embonecando, o feijão nascido, o arroz

crescendo. As chuvas vinham na hora certa e eram uma benção de Deus.

Lúcio pediu ao pai permissão para fazer uma caçada num domingo. O

pai a deu e quis saber quem iria junto:

— Vamos eu, o Baiano e mais quatro amigos.

— Tome muito cuidado! — recomendou o pai.

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— Vamos levar sua espingarda e um facão. Os outros também vão levar

espingardas, facões e munição.

Márcia preparou uma panela de carne, uma boa farofa, café e água.

Cada um levou de casa a sua comida. Estavam todos felizes da vida,

prometendo estar de volta antes do jantar. De manhã bem cedinho, os seis

amigos fizeram a tal caçada.

Não era meio-dia, quando eles chegaram. Nem haviam comido o que

tinham levado. Pedro quis saber o que tinha acontecido. Todos, muito

envergonhados, sentaram-se no chão junto a porta da sala e começaram a

falar.

— O senhor não imagina o que nos aconteceu.

— Não encontraram caças — perguntou o pai.

— Encontramos muitas.

— Por que não caçaram nenhuma?

— Não tivemos coragem.

— Como não tiveram coragem?

— Seu Pedro eram tantas que não deu para atirar em nenhuma delas.

Toda a família estava esperando uma explicação dos caçadores. —

Explique melhor — disse Pedro.

— As queixadas mais pareciam bezerros e eram tantas que tivemos de

subir em uma árvore e ficar olhando elas passarem. Logo atrás veio uma

manada de catetos, uns enormes porcos, bem maiores do que temos no

chiqueiro. Os quatis se jogavam de cima das árvores. Ao caírem mais

pareciam uma bola de futebol. Encontramos muitas pacas, que se

escondiam dentro dos buracos, nos troncos das árvores. E os veados

pareciam que tinham asas. Eles não corriam, voavam. As capivaras

nadavam melhor que muitos homens. Até parecia que estavam praticando

esportes, coisa de louco. Os urus e os jacus mais pareciam galos caipiras,

bem maiores do que temos aqui. Foi por isso que não tivemos coragem de

abatê-los. O que iríamos fazer com tanta carne daqueles animais tão

bonitos?

Pedro fez um comentário;

— Eu, de minha parte, fiquei muito contente de vocês não terem atirado

em nenhum dos animais.

— Encontramos caçadores que tinham matado várias caças e as levavam

penduradas em uma vara, carregadas por dois homens. Eles riram de nós,

dizendo: "vocês ficaram com medo rapazes. Caçador tem que ter sangue-

frio como nós, seus medrosos!"

Pedro disse:

— Eles não sabem o que falam. Vocês fizerem muito bem de não ter

matado os pobres bichos.

Márcia. Intrigada, perguntou:

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— Por que vocês voltaram tão sujos? Entraram em algum buraco? —

Entramos mesmo, mãe.

— Fazendo o quê em um buraco?

— Nós encontramos uma caverna. Deve ser de índios. Entramos dentro

dela. Havia um buraco estreito e, com a lanterna do Baiano, deu para ver

tudo que tinha dentro da caverna. Levamos um susto grande com os

morcegos. Eles estavam em toda parte, voando por cima da gente.

— O que mais tinha dentro da caverna? — perguntou a mãe.

— Lá dentro parecia uma grande salão de festa. As paredes eram de

pedras e tinham umas letras esquisitas nelas. Mais pareciam rabiscos. Tinha

também uns desenhos feitos nas paredes de pedras, de cabeças de animais.

Tinha também cabeças de veados presas nas paredes e muitos outros bichos

que nós não vimos nem nos livros da escola. Tinha um fogão de pedras

muito bem feito e umas coisas jogadas no chão. Parecia ser uma bacia de

madeira, a tal gamela que a senhora falou. Tinha também uns bodoques,

quase igual aqueles que a senhora faz, todos quebrados. Havia muitas penas

de aves coloridas, todas presas por um cordão ou cipó.

— Aonde vocês estavam com a cabeça para entrar numa caverna que

poderia ter até cobras?

— Fique tranqüila, nós não voltaremos mais lá na caverna — disse um

dos amigos de caçada. Nós pegamos esta machadinha, ela está perfeita.

Veja que coisa bem feita seu Pedro. Como eles podem fazer uma

machadinha de pedra?

Pedro ordenou:

— Vão levá-la de volta. Não quero isto aqui em casa.

Ezaías se divertia com a história da caçada em que não teve caça.

— Vocês ficaram com medo, digam a verdade.

— Foi falta de coragem e muito medo também — responderam os

caçadores medrosos.

Aquela caçada ficou na lembrança de todos para sempre, como ficaram

as histórias do vô Ezaías.

— Vovô, o senhor sabe muitas histórias de verdade? — perguntou um

dos netos, no entardecer de um dia qualquer.

— Sei cada uma de arrepiar. Que história vocês querem que eu conte?

— Não sendo de assombração qualquer uma serve. Queremos a história

da fazenda do vô Lúcio.

— Então vão buscar um cafezinho para mim e o meu isqueiro para

acender o cigarro.

Após os preparativos, ele começou:

— Eu conheci seu Lúcio lá pelo ano de mil oitocentos e não sei quanto.

Foi quando ele veio das Minas Gerais. Ele era garimpeiro e tinha ajuntado

muito dinheiro. Veio para comprar a fazenda, que era muito grande e tinha

sido dividida em vários lotes menores, pois assim era mais fácil de ser

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vendida. Lúcio comprou a parte maior. Ele ficou com a casa grande, o

engenho e boa parte dos canaviais. Tinha também uma grande invernada e

muitas cabeças de gado.

— Conta da casa, vô. O que tinha dentro dela? Era muito grande a casa?

— Uma pergunta de cada vez. A casa era muito grande. Quem morava

nela era um senhor de engenho, já quebrado depois da abolição dos

escravos. Lúcio comprou de porteira fechada.

— O que é isso vô?

— Porteira fechada era tudo que tinha dentro da fazenda: o gado, os

animais, os troles, os carros de boi, o que tinha dentro da casa, que eram os

móveis, tapetes, objetos de ouro e prata, cristais, porcelanas, coisa de gente

muito rica. Os objetos mais bonitos eram os castiçais, todos de ouro. Os

lampiões também eram de ouro. Até as imagens de santos eram todinhas de

ouro. Os talheres eram de ouro e prata. Os porta-jóias também eram todos

de ouro. Os quadros das paredes, ele não sabia o valor que tinham. O

quadro mais bonito era o da Monalisa, esse era lindo demais. Havia uma

arca inteirinha de prata. As estátuas dos antigos donos da casa eram

interinhas de ouro. No lugar de ferro eles usavam ouro, até os freios do

cavalo do antigo sinhozinho eram de ouro: estribos, esporas, o peitoral,

enfim, o que não era de ouro era de prata. Quem deu fim nessa riqueza toda

foi Dinha, a madrasta esperta. Guardou tudo nos cofres das paredes da casa.

Ela guardava e os filhos tiravam e vendiam tudo por uma bagatela. Quando

seu avô faleceu, na casa já não havia mais nada. Até os móveis haviam sido

vendidos por Dinha e seus filhos.

— Dinha ficou muito rica com tudo que ela vendeu, vô?

— Não, ela ficou mais pobre que o vô.

— E a sua fazendinha? O que foi feito dela?

— Eu vendi, meus netos. Me pagaram muito pouco por ela. O tempo

passou, eu gastei tudo e fiquei sem nada.

— Então é por isso que o senhor sempre tem essa dor de bolso?

— É verdade! A falta de dinheiro me deixou essa dor para o resto da

vida. Mas a casa do vô Lúcio era igual ao casarão amarelo, lá perto do

outro sítio de meu pai. Eu não conheci o casarão. Quem sabe dessa história

é a mãe de vocês.

Márcia foi chamada e pediram para ela contar para o vovô a história do

casarão.

— Eu já contei para você.

— Conta para o vovô daquela sala grande que tinha no casarão.

Márcia ficou sem saída:

— Então eu vou contar. Eram duas salas muito grande. A primeira tinha

uma mesa muito grande, com vinte e quatro cadeiras, todas recobertas com

veludo vermelho. Tinha uma linda toalha de renda branca, feita por

escravas. A mesa estava sempre arrumada, como se fosse para uma grande

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festa. No centro da mesa tinha sempre um arranjo de rosas num vaso de

cristal, com seus vinte e quatro pratos, com todos os seus copos e talheres.

Os talheres eram de prata e os pratos e copos com filetes de ouro. Essa

mesa era conservada arrumada todos os dias. A outra mesa, na outra sala,

era menor, com treze lugares. Sua toalha também era de renda branca, com

detalhes eucarísticos. No centro da mesa tinha um copo de ouro com vinho

e um prato com um pão. Doze cadeiras tinham no espaldar uma placa de

prata com um nome escrito. A décima terceira, separando seis para cada

lado, tinha uma placa onde estava escrito "Jesus". Cada uma das outras

placas tinha o nome de um dos doze apóstolos. A sala era a da Santa Ceia,

com um castiçal com doze velas.

— Que história, Márcia! Isso é verdade mesmo? — perguntou Ezaías.

— Sim, é verdade. Eu vi esta sala e muita gente daquela região viu

também. Diziam ainda que havia muitas escravas que cuidavam de tudo

durante a noite, para que tudo que tinha ali fosse muito bem cuidado. As

pratarias e os cristais estavam sempre brilhando. No casarão só viviam duas

mulheres, que todos conheciam. Elas atendiam as madames, esposas de

coronéis, donos de imensas fazendas de café onde outrora havia canaviais a

se perder de vista. As escravas viviam escondidas durante o dia. A noite era

para limpar tudo e cuidar das toalhas de renda e linho, todas bordadas a

mão por elas. Diziam que, na época de natal, suas toalhas eram bordadas

com fios de ouro e os castiçais também eram de ouro, como os da sala de

orações.

Márcia ajuntou:

— Já é tarde. Chega de histórias por hoje. Vamos todos jantar e num

outro dia continuaremos com as nossas histórias. O vovô conta mais

histórias para nós

— Sim, eu conto a história da casa de zinco e também a história do Zé-

Sem-Medo.

— Não é de assombração, né, vô?

— Não, é só um pouquinho mal-assombrada. O vô conta de dia para

vocês não ficarem com medo. Combinado, meus netos?

Os dias se passaram e o café crescia. Pedro vistoriava todos os dias para

ver se não tinha nem uma cova de café sem as madeiras em cima,

protegendo as mudinhas. Ezaías, feliz da vida por estar junto de Pedro, de

Márcia e dos netos, que não o deixavam em paz, insistindo para que ele

contasse as histórias que ele tinha prometido.

Certo domingo amanheceu chovendo. Os netos correram todos para o

quarto do avô, exigindo.

— Hoje o vô vai contar as histórias que prometeu.

Levando o café para o pai, Márcia entrou no quarto e viu aquela

bagunça. Tentou retirar os filhos do quarto, mas foi impossível.

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— Deixe todos — disse Ezaías. — Eu vou contar umas histórias para

eles. Tenho certeza de que vão todos sair correndo de medo. Esta história

começou quando eu ainda era muito pequeno. Ela foi contada pelo meu

avô, que se chamava Ezaías, como eu. Contava ele que tudo começou há

muitos anos, antes dos escravos serem libertados pela Princesa Isabel.

Havia, numa localidade lá em Minas Gerais que eu já esqueci o nome,

lugar, um fazendeiro muito rico. Ele tinha muitas fazendas de café,

canaviais, um grande engenho e muitos escravos, que trabalhavam nessa

fazenda e nunca recebiam um réu pelo seu trabalho. Eles só tinham a

comida. Suas roupas eram uns farrapos que só cobriam as vergonhas.

— O que é isso vô? — perguntou um dos netos.

— As roupas só tampavam a bunda. Esse fazendeiro era tão rico que

não tinha lugar para guardar seu dinheiro. Mandou fazer um grande baú de

bronze. Meu avô contava que para carregar esse baú era preciso vinte

escravos. Levou três dias para fazer um grande buraco no chão para

enterrar o baú. Dentro dele, o rico fazendeiro guardou tudo que tinha. O

dinheiro foi trocado por moedas de ouro e pratas, libras esterlinas, jóias,

pedras preciosas e tudo que tinha valor. Depois de enterrar seu baú com

toda sua riqueza dentro, ele construiu uma casa de zinco.

— Como era essa casa vô?

— Ela era parecida com um grande chapéu sem aba.

— Quem morava nessa casa, vô?

— Nessa casa morava toda a riqueza do rico fazendeiro. Contava meu

avô que, quando ele morreu, foi enterrado dentro dessa casa para vigiar sua

riqueza enterrada e nunca ninguém pode se aproximar dessa casa. Lá

dentro havia um grande barulho. Ouvia-se o arrastar de correntes e uma voz

que contava um, dois, dez, cem, mil, assim por diante. Dizia meu avô que

ele contava todos os dias suas moedas e seu dinheiro enterrados no grande

baú de bronze.

— Agora conta a outra vô. É a última. Conta logo vô, senão a mãe entra

e não vai deixar o senhor contar mais histórias.

— Esta história não é de fazendeiro, não tem escravo, engenho ou

canaviais, mas tem uma fazendeira. Essa fazendeira era muito rica, boa e

muito querida por todos os empregados da fazenda. Todos os dias ela saia

no seu trole...

— O que é isso vô?

— É uma carroça com quatro rodas de pneus, puxada por dois, até

quatro cavalos. Os cavalos dela eram brancos. O trole tinha capota e até

cortinas para não entrar poeira das estradas, dizia o meu avô. Ela tinha um

empregado chamado José, mas conhecido como Zé-Sem-Medo. Quando o

marido da fazendeira era vivo, José o acompanhava pela fazenda. Todos os

dias faziam a mesma coisa. Olhavam os empregados, o gado e tudo que

tinha na fazenda. O fazendeiro morreu, foi aí que a fazendeira passou a

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visitar a fazenda todos os dias. Quando eles iam passar por uma porteira,

ela abria sozinha, mesmo trancada. Zé-Sem-Medo dizia: "obrigado

patrãozinho!". Isso acontecia todos os dias. Todas as porteiras e portões por

onde eles passavam se abriam, depois se fechavam e trancavam sozinhos.

Zé-Sem-Medo agradecia e seguia em frente. Certo dia, a fazendeira voltou

das visitas e se queixou de cansaço. Deitou-se e disse: "me acorde daqui

duas horas. Não se esqueça Zé: duas horas. Deixe o trole pronto que vamos

depois do almoço à cidade. Zé preparou o trole e na hora certa foi chamar a

patroa. Chamou, chamou e chamou. Tentou levantá-la, mas não conseguiu.

Avisou os empregados da casa. Pediu ajuda ao administrador e sua esposa e

juntos foram ver a patroinha. Foi um grande susto aos empregados verificar

que ela estava morta. Mas Zé não acreditou. Ele dizia que ela estava

dormindo. Chamaram um médico, que disse que realmente ela estava

morta. Mas o Zé insistia em dizer que ela estava só dormindo. Prepararam a

patroinha e a colocaram em cima de uma mesa para ser velada. Durante a

noite do velório, Zé vinha a toda hora acordar a patroinha, dizendo:

"acorda! A senhora está com frio? Eu vou buscar um cobertor para lhe

aquecer. Todos estavam muito tristes com a morte da fazendeira tão

querida. Quando passou da meia-noite, Zé voltou e disse: "acorda

patroinha! Já é uma da manhã. Os galos estão cantando". Zé voltou mais

tarde, dizendo: "os galos estão cantando pela segunda vez. Acorda

patroinha". Quando o relógio bateu cinco horas, Zé foi para a cozinha e

preparou o café, serviu a mesa e foi chamar a patroinha dizendo: "desta vez

eu acordo ela". Quando Zé entrou na sala. todos os presentes começaram a

chorar. Ele retirou o cobertor que havia colocado para aquecê-la, pegou

suas botas e calçou-as, dizendo: "está na hora! Levante dessa mesa. Não sei

porque não dormiu na cama. A senhora deve estar com dor nas costas. Eu

vou lhe ajudar a descer dessa mesa". Segurou-a pelos ombros e, com a

outra mão, desceu suas pernas fora da mesa, ajeitou seus cabelos e disse:

"acorda patroinha! O café está na mesa. Todos os presentes". chorando,

diziam: "Zé, ela está morta." Zé respondeu: "ela está dormindo". Segurou,

então, seu rosto e pediu: "acorda. pelo amor de Deus! Acorda! Abre os

olhos! O dia já vem raiando! Acorda, já é tarde! O sol vai aparecer. A

patroinha abriu os olhos e disse: "você não me deixou dormir a noite

inteira, por que tanta pressa, Zé?" Os presentes saíram todos correndo ao

ver a morta se levantar e devem estar correndo até hoje.

— E o Zé, o que aconteceu com ele?

— Foi junto com a patroinha tomar café. E agora, quem vai tomar café

comigo?

— Eu vou — todos falaram, numa só voz.

Dias depois, Ezaías recebeu uma carta da filha, pedindo para ele voltar,

porque seu genro estava doente e chamava por ele. Pedro e Márcia foram

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levá-lo e fazer uma visita ao parente tão querido. Ninguém esqueceu das

histórias do vovô Ezaías.

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CASAMENTOS E DECEPÇÕES

Pedro sonhava com sua lavoura e esperava seu café crescer. Seus sonhos

estavam sendo realizados. Márcia rezava para que Deus o ajudasse e a

plantação não fosse prejudicada pelas geadas. Àquela altura, as plantinhas

já estavam fora das covas. Era preciso ralear as madeiras que cobriam a

cova e chegar mais a terra. Toda a família fazia este serviço, inclusive

retirando as mudas que estavam mais fracas, para não atrasar o crescimento

das outras. Era todo mundo dando duro na roça.

Márcia, como sempre, fazia a comida para toda a família. Uma das

filhas ficava em casa para ajudar a mãe nas tarefas domésticas, pois ela não

estava bem de saúde. Não reclamava, mas andava muito sonolenta.

Todos os dias eram as mesmas tarefas: tirar a água do poço para os

gastos da casa, encher os bebedouros dos porcos e das galinhas e lavar as

roupas de todos. Era serviço que não acabava mais.

Os sonhos de Pedro agora eram reais. Ele dizia:

— Agora eu posso tocar os meus sonhos com as minhas mãos, o meu

café. Aqui plantei meus sonhos.

Pedro sonhador sonhava. Ele sentia em Márcia uma profeta, pois o que

ela dizia acontecia. Nas noites de frio, junto ao grande fogão de lenha que

aquecia a casa toda, ele dizia:

— Eu sonho tanto com a minha primeira colheita de café.

Márcia respondia:

— Agora falta pouco. Com a ajuda de Deus você irá realizar seu grande

sonho e ser um produtor de café.

Apesar disso, Márcia continuava triste. As filhas a viram chorando

escondido. Pedro estava feliz, mas uma felicidade que para os filhos não

tinha tanto motivo. Ana perguntou à mãe se estava doente. Ela respondeu:

— Com tanto serviço, não tenho tempo nem de ficar doente.

Márcia deixou de costurar. Fazia o almoço e não comia. Dormia a

qualquer hora. Ana descobriu o motivo da alegria do pai e das tristeza da

mãe. Falou com as irmãs.

— Eu sei o que a mãe tem. Escutei ela e o pai conversando lá na sala. A

nossa mãe vai ter um filho.

Agora estava tudo explicado, a mãe, envergonhada com a gravidez, não

teve uma conversa com as filhas. Ana já entendia a situação da mãe e,

preocupada, não deixava a mãe fazer serviço pesado, ficar muito tempo

junto ao fogão ou tirar água do poço. Pedro tinha mandado abrir outro, bem

perto da casa e o trabalho de casa havia ficado mais fácil com isso.

Lúcio arrumou uma namorada e disse aos pais:

— Eu vou me casar com ela.

— Tudo bem! — disse o pai. — Você precisa fazer sua casa.

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— Eu posso fazer a minha casa aqui no sítio.

— É só você escolher o lugar.

— Vou fazer a casa mais perto do poço.

Lúcio era um bom rapaz, trabalhador e para ele não tinha tempo ruim.

Era, no entanto, de gênio violento, brigava com as irmãs, obrigando-as a

fazer tarefa de homem. Ele tentava até surrá-las escondido do pai. Elas

contavam para a mãe e, para não criar caso entre os filhos, ela se calava.

Com Ana ele se pegava em briga feia. Muitas vezes a mãe surrava os

dois com uma guasca para que parassem de brigar. Com a notícia do

casamento do filho, Márcia pensava que talvez ele parasse de brigar com as

três irmãs, que eram unidas e trabalhavam juntas.

Por outro lado, José era o irmão que elas adoravam e nunca brigou com

alguma delas. Já estava bem crescido e, com o casamento do irmão, ele

teria mais trabalho.

Márcia ganhou um garoto, como dissera a benzedeira, cujas palavras

Márcia mentalmente repetia:

— Vocês vão sofrer, vão vencer. Seu filho vai nascer na terra nova, vai

ter pouca saúde, mas terá vida longa. Nem todos os seus filhos serão

felizes.

Quase tudo que ela havia dito realmente havia acontecido. Ainda

faltavam algumas coisas nas quais ela não queria pensar. Ela pedia a Deus

que protegesse os seus filhos das más previsões da benzedeira.

Antônio, o filho recém-chegado, já nos primeiros meses foi atacado por

uma febre muito alta, com convulsões, que logo foram controladas, mas

aquilo não foi uma simples febre. Era meningite e não foi muito bem

tratado, deixando seqüelas. As convulsões se repetiam, ele era epilético. Ali

estava a profecia da benzedeira.

Lúcio começou a fazer sua casa. O pai comprou o que era preciso e em

pouco tempo a construção ficou pronta. Pedro disse ao filho:

— Derrube um pedaço da mata e plante o que você quiser. Eu vou lhe

dar um pedaço da terra já pronta, com café plantado.

Tudo parecia arranjado e em paz. Pedro, deitado na rede, depois de um

dia de serviço cansativo, contemplava seu sítio.

Márcia veio juntar-se a ele, dizendo:

— Está feliz, Pedro?

— Eu sempre fui feliz.

— Você ainda sonha?

— Eu sonho.

— Com o que você sonha agora?

— Com minha colheita de café e em ver meus filhos casados, tendo um

pedaço de terra cada um e sendo felizes como eu sou.

Feliz! Esta palavra ecoou na mente de Márcia. A profecia dizia que nem

todos seriam felizes.

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Pedro e Márcia se amavam. Seus sete filhos completavam sua

felicidade. Suas terras, seus sonhos, tudo fazia de Pedro sonhador um

vitorioso. Ele contemplava sua lavoura e tinha orgulho de viver ali, onde

trabalhava e banhava com nosso suo. Naquelas terras vermelhas ele

plantara o seu sonho.

Lúcio se casou. A mãe tinha esperanças de que ele fosse mudar o seu

gênio agressivo, mas se enganou. Ele piorou ainda mais. Seu mau humor

transformou-se em revolta. Para ele todos estavam errados. A mãe dizia

para si:

— Não entendo esse filho. Alguma coisa ele tem. Nunca está satisfeito.

Não bebe, não fuma, é trabalhador, mas só tenho uma certeza: ele não é

feliz.

Lúcio derrubou a mata, com ajuda de alguns peões, fez a queimada,

vendeu a madeira e reservou a lenha para os gastos. No primeiro ano

plantou milho, feijão e o arroz. O pai dera tudo para ele e, por isso, os

cereais lhe deram uma boa renda.

Ele não era ambicioso e nem sonhador como o pai. Pedro contemplava

sua roça e sonhava em ver seu cafezal cheio de flores. Faltava pouco para

isso. As primeiras flores estavam aparecendo. Pedro sonhava:

— Em breve eu vou fazer uma pequena colheita. Eu sei esperar. No

próximo ano vai ser uma colheita com mais frutos.

O tempo de dificuldades havia passado. Pedro agora estava mais

confiante e seus filhos já estavam todos crescidos. Ana arrumou um

namorado, Augusto, um peão picadeiro, que trabalhava com o engenheiro,

Dr. Kuma. O pai não via com bons olhos aquele namoro. Tentou falar com

a filha, sem resultado algum. A mãe falou com a filha abertamente,

dizendo:

— Você só pode estar brincando. Eu sou contra esse namoro e seu pai

também. Seu namorado não tem uma residência, vive em alojamentos,

junto com vários peões e passa o mês dentro da mata.

Ana respondeu:

— Eu quero me casar com ele. Se vocês não concordarem, eu vou

embora de casa.

— Para onde? — perguntou a mãe.

— Vou morar com ele.

— Vai morar dentro da mata, junto com os outros peões? Não é isto que

eu quero para você.

Ana, porém, estava decidida. Já estava com seus vinte anos de idade e se

achava dona de seu próprio nariz. A mãe tentou explicar para a filha que a

vida a dois não era assim tão fácil.

— Aqui você tem uma casa. A sua família quer o melhor para você.

Ana respondeu:

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— Vocês é quem sabem. Com seu consentimento ou não, eu vou me

casar com ele. Vou morar até embaixo de uma árvore. Esta é a minha

decisão e a dele.

A mãe ficou sem saída. O pai, muito constrangido, decidiu

— Vamos fazer o casamento. Não temos outra saída. Ela é cabeça-dura,

teimosa e não aceita conselhos, principalmente dos pais.

Pedro mandou chamar Augusto, dizendo:

— Você encheu a cabeça de minha filha com propostas de casamento. O

que você tem para oferecer para ela, além do rancho em que você mora?

— Pois, é seu Pedro! Eu pretendo arrumar um bom trabalho, alugar uma

boa casa e me casar com sua filha.

— Pois bem, eu vou fazer esse casamento contra a minha vontade e vou

lhe dar um conselho: faça a minha filha feliz! Eu não quero me arrepender

de ter feito esse casamento contra a minha vontade.

Pedro tinha certeza de que a filha sofreria mais cedo do que esperava.

Augusto não ficava muito tempo num trabalho. Era uma mudança atrás de

outra. Depois do casamento, a filha foi morar em um lugar incerto. Os pais

não tinham o endereço.

Certo dia, no entanto, Ana e o marido chegaram ao sítio de Pedro. Ela

estava grávida e em péssimas condições, sem mudança, sem bagagem e

ainda trazia um filho na barriga. Márcia ficou muito feliz ao ver a filha e o

genro, mas a felicidade de Márcia durou pouco. A filha lhe disse:

— Nós vamos ficar morando aqui no sítio, junto com vocês.

A mãe perguntou à filha:

— Quando a mudança de vocês vai chegar?

Ana, encabulada, respondeu:

— Nós não temos mudança, só temos as roupas.

Márcia viu na filha um olhar triste. Havia perdido a arrogância.

Humildemente, disse a mãe

— Augusto está sem trabalho e a nossa situação não está boa. Eu estou

esperando um filho e ele não tem nem uma peça de roupa. Foi por isso que

vim pedir ajuda.

A mãe não conteve as lágrimas e disse ao marido:

— Você tinha razão. Ela se casou contra a nossa vontade e agora vem

pedir ajuda.

Pedro tinha certeza de que o genro não era homem de molhar a camisa

de suor. Márcia, então, não pensou duas vezes. Providenciou acomodações

para a filha e o genro, o senhor Folgado, como dizia Benvinda.

— Este genro veio de encomenda — dizia ela para a mãe.

Augusto não sabia fazer nada, além de picada nas matas. Pedro andava

preocupada com a situação da filha, pois o genro não esquentava a cabeça

nem com a comida. Na casa do sogro ele tinha de tudo. O tempo passava e

nada dele ir procurar um trabalho.

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Pedro estava de pés e mãos amarradas. De um lado, a filha e a neta; do

outro, o genro que não procurava um trabalho que desse o mínimo de

conforto para a filha. Tomou, então, a iniciativa. Foi até a cidade e

procurou uma pequena casa para alugar. Arrumou um serviço na praça,

alugando uma pequena carroça para o genro fazer carretos.

Augusto não gostou da decisão do sogro, dizendo:

— Nós não temos mudança. O que vamos pôr dentro da casa?

No pequeno cômodo em que eles estavam morando, Márcia tinha

arrumado uma cama, mesa, cadeiras e os utensílios para a cozinha. Pensava

onde havia ido parar o orgulho da filha, a sua arrogância e o nariz

empinado que ostentavam, sempre que falava em se casar. Já fazia dois

anos que haviam se casado e a vida dos dois era sem progresso. O casal se

amava e eram felizes, mesmo vivendo de um lado para o outro, mesmo

dormindo em rancho de pau-a-pique, no meio do mato. Sua cama sempre

fora de estaca, com um simples colchão de palha de milho. Ana jamais se

queixara disso, embora soubesse que os pais poderiam lhe dar mais

conforto.

Para tudo tinha um limite e Pedro não aceitava que o genro vivesse mais

a suas custas. Queria vê-lo trabalhando na praça, transportando cereais para

os comerciantes, descarregando vagões de trigo, sal e óleo, já que o único

meio de transporte da época era o trem de ferro.

Augusto fez corpo mole. Não gostava do trabalho e ficou muito

humilhado com a decisão do sogro. Pedro abriu um crédito para o genro,

com um novo comerciante, muito conhecido como Joãozinho da casa nova,

cujo dono era o pai, um imigrante espanhol. Augusto foi fazer carretos para

seu Nicolau, dono da casa nova.

Augusto não queria crédito. Era dinheiro que ele queria. Pedro ficou

sabendo que o genro andava reclamando da situação. O crédito não era

suficiente para ele. Dizia o genro:

— Eu quero é dinheiro. Lá no sítio estava bem melhor. Ali eu não

trabalhava e tinha casa e comida de graça.

Pedro pagou a dívida do comerciante e cortou o crédito. Disse a Márcia:

— Nossa filha se casou com um parasita, um folgado. Ela vai sofrer

muito com o que fiz, mas agora ele terá de tomar um rumo na vida. Eu já

fiz o possível, mas o impossível eu não vou fazer.

Lúcio ficou penalizado com a situação do cunhado. Abriu um crédito

para ele, comprou tudo que faltava em casa e fez um bom estoque de

comida. Augusto, no entanto, não pagou o comerciante. Lúcio pagou e

cortou o crédito do cunhado.

Com isso, Augusto ficou sem crédito no comércio. O jeito foi pedir

fiado. Ele reclamou, chorou suas dificuldades, prometeu e fez uma boa

compra. Já tinha feito seus planos. Com uma boa compra, ele tinha que

arrumar dinheiro para ir embora e não foi difícil ele aplicar um golpe no

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cunhado José. Vendeu um lote de terra para ele e recebeu dois mil réis,

pegou seus poucos pertences, a mulher e os três filhos e foi embora para

Maringá.

Augusto tinha vendido um lote de terra que não lhe pertencia e José

ficou no prejuízo. Augusto foi motorista de táxi por muito tempo. Pedro,

Lúcio, o comerciante Joãozinho e José, todos foram enganados por ele e

ficaram no prejuízo. Augusto, longe do sogro ele teve que quebrar a cabeça

e se virar. Depois de muitas mudanças sem futuro, ele foi trabalhar na

prefeitura de Maringá e Ana foi ser merendeira de uma escola municipal.

Ficaram com vergonha das dívidas não pagas e nem notícias mandavam.

Aos poucos, a família de Pedro foi ficando pequena e a casa, vazia.

Maria se casou e foi morar junto com os sogros. Durvalino não era de

molhar a camisa de suor, exatamente como Augusto. Passou algum tempo e

Pedro ficou sabendo que a filha estava grávida e muito doente, por isso foi

buscá-los para morar no sítio.

Construiu uma pequena casa para os dois, deu-lhes uma área de terra

para plantar e colher e assim sobreviver com as vendas da produção de

cereais. Pedro, mais aliviado com a situação dos filhos, estava feliz. Seu

café estava com uma boa florada e prometia uma boa colheita. Ele sonhava

colher seu café e sempre falava com a esposa.

— Eu vou fazer uma casa nova bem grande.

— Para que uma casa grande? A nossa família está cada vez menor —

ponderou a esposa.

— Os nossos netos aumentaram e a casa ficou pequena para abrigá-los.

Quando vierem passear aqui, vai faltar lugar para tanta gente junta.

Pedro voltou a sonhar. Márcia pensava na profecia. Ate então, tudo se

concretizara. Até em relação ao seu último filho. Só faltava a última

profecia: nem todos os seus filhos seriam felizes.

Márcia pensava:

— Por que isto não sai da minha cabeça? Ah, Deus que sempre atendeu

as minhas preces, eu volto a lhe pedir que esta última profecia não

aconteça. Eu imploro, olha por meus filhos, não deixe que nada de mau

aconteça a nenhum deles.

Pedro fazia planos. Assim que colhesse o café, iria construir a sua casa

nova. José, moço novo, que herdou do pai o caráter honesto, pontual e de

palavra, assumiu as roças. Trabalhando com o pai e para o pai, nada recebia

pelo seu esforço. Plantavam e colhiam. Ele e Benvinda faziam planos. José

dizia:

— Eu ainda vou comprar as minhas terras.

A irmã replicava:

- Eu quero comprar um carro. Quando, não sei. Um dia eu terei o meu

carrão. Isso só vai acontecer quando eu me casar. Será que o meu marido

vai ter dinheiro para comprar um carro? Eu vou escolher. Não vai ser um

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Augusto nem um Durvalino da vida, porque estes dois não valem nada.

Não sei como nossas irmãs escolheram para marido uns folgados,

aproveitadores de sogro. Elas devem gostar muito deles.

Joãozinho andava de olho em Benvinda, mas ela não lhe dava bola,

afirmando:

— Não estou interessada em namorar um moço da cidade.

João freqüentava as brincadeiras-dançantes das fazendas. Havia uma

disputa entre os dois grupos e sempre quem levava o pior era o da cidade.

João procurava uma namorada. Quando era convidado, ia montado em seu

burrinho barrigudo e era sempre muito bem recebido.

Ele era teimoso, por isso decidiu ir sempre sozinho. Deixou de andar em

turma e assim não corria o risco de ser barrado na porta. Era muito

disputado pelas garotas e poderia escolher muito bem.

Namorou várias garotas, até chegar a Benvinda, garota namoradeira, que

não levava nada a sério. O namoro daqueles tempos era bem diferente, nem

na mão da garota o rapaz segurava. Era uma forma de respeito.

João pediu para um amigo falar com Benvinda. O amigo dançou com

ela, mas pediu-a em namoro para si. Benvinda lhe disse um sonoro não e

ele quis saber o motivo. Ela respondeu:

— Eu estou namorando um outro rapaz.

— Eu sei quem é — disse ele.

— Melhor assim. Você não tem chance, não insista, por favor!

Ele não desistiu, dizendo:

— Você já namorou todos os rapazes que freqüentam as brincadeiras.

— Namorei e namoro mesmo. Você sabe que eu não levo ninguém a

sério. Eu gosto de ver a cara deles, quando levam um fora assim como dei

em você.

Benvinda era assim, falava e não mandava ninguém dizer. João foi

dançar com ela e perguntou:

— O meu amigo falou com você?

— Sim, por que quer saber?

— Me interessa a sua resposta.

— Minha resposta foi não, está satisfeito?

— Por que não,

— Eu não gosto dele.

— Dele quem

— Daquele chato do seu amigo insistente.

— Ainda bem que o chato é meu amigo e não eu.

— Por que quis saber?

Ele ficou embaraçado, começando a entender o que tinha acontecido.

— Sabe, é o seguinte: eu pedi para o meu amigo dizer que eu quero

namorar com você. Ele, apressadinho, foi logo pedindo você em namoro.

Você tem razão, ele é mesmo um chato.

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Benvinda não deu uma resposta e pediu tempo. Queria falar com a mãe.

Ela daria a resposta depois de um mês, pois havia um outro rapaz em s eus

pensamentos. Ele estava servindo o exército e voltaria a passeio antes do

prazo dado a Joãozinho. Só que nem ele conseguiu a licença nem mandou

notícias.

A mãe falou com o pai, que estava de acordo. Um mês depois,

Joãozinho chegou a casa dela, montado em seu burrinho barrigudo. João

era um tipo bom de conversa, magro e bigodudo. Sua aparência era de um

velho, mas tinha vinte e quatro anos. Benvinda tinha dezessete anos, era

morena-clara, cabelos pretos longos e ondulados, magra e de muito boa

aparência. Todos diziam que era uma mocinha muito bonita. Gostava de

brincar com os sentimentos dos rapazes, por isso eles a chamavam de

garota difícil.

Pedro já conhecia João e a conversa deles foi sobre o sítio e o café. Os

dois foram juntos passear pela roça. Elogiando a plantação João sentiu que

a resposta seria positiva. Eles mal tinham se cumprimentado. A conversa

foi de homem para homem apenas. Depois do jantar, ele falou com Pedro.

— Olha, seu Pedro, eu vim saber a resposta da sua filha. Eu a pedi em

namoro e hoje eu vim saber a resposta. Ela deve ter lhe falado.

— Sim, ela me falou. Eu quero saber de suas intenções para com minha

filha.

— Eu quero me casar com ela, caso o senhor me aceite como genro.

— Só tem um problema: eu não gosto de namoro longo. Filha minha

casa logo, é só marcar a data.

— Tudo bem, seu Pedro, eu aceito suas condições.

Benvinda não estava presente na conversa dos dois, que combinaram

que o casamento seria no prazo de seis meses. Depois de tudo acertado,

Pedro chamou a filha e foi logo dizendo:

— Vocês vão se casar daqui a seis meses.

A garota levou um susto e não disse nada. Foi até a cozinha e falou com

a mãe.

— Eu não quero me casar. Era só para namorar, não era nada sério, mãe.

O que eu faço agora?

— Volte lá na sala e diga a seu pai o que pensa.

— O que eu vou fazer agora? A senhora sabe que eu não quero me

casar. Fale com o pai, por favor, mãe. Faça isso por mim. Eu mal o

conheço, Ele é tão feio, com aquele bigode horrível.

A mãe lhe disse:

— Seu pai já lhe deu sua palavra e ficou tudo combinado.

— Mãe, eu vou ser obrigada a me casar contra a minha vontade, não é

dele que eu gosto.

— De quem você gosta? Por que deu esperanças a ele.

— Eu não dei esperanças a ele. Só pedi tempo para pensar.

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— Por que você não me disse que gostava de outro rapaz, quem é ele?

— Eu não quero falar dele, agora é tarde demais. Eu fui uma burra de

ter me calado. Por que isto está acontecendo comigo? O pai nem me

perguntou se eu queria me casar com ele.

O seu protesto, no entanto, não foi ouvido e ela teve que concordar com

os pais.

Dizia a mãe:

— Ele é gente boa. Seu pai conhece os pais dele.

—Mas eu não os conheço — protestava a filha.

— Você vai viver bem, pode ter certeza.

— Eles são espanhóis. Eu não gosto desta raça, a senhora sabe disso.

— O que você queria era ficar namorando todos os rapazes e seu pai

sabe disso.

— Mãe, eu gosto de brincar de namorar e não de coisa séria, como um

casamento. Se não der certo, o que eu vou fazer? Descasar? Ele é sete anos

mais velho do que eu. Parece ser mais velho que o pai. Com aquele bigode

mais parece uma vassoura, mãe. Eu não vou me casar com ele. Eu não

gosto dele para casar. Era só um namoro para passar o tempo...

— Até o outro voltar? — disse a mãe.

— A senhora acertou. É do outro que eu gosto mesmo para casar. Ana

se casou com Augusto porque gostava dele. Maria se casou com Durvalino

porque gostava dele. Lúcio e Benedita se casaram porque se gostavam. Eu

tenho que me casar com quem eu não gosto.

Os pensamentos de Benvinda foram os piores possíveis: "Vai ser muito

difícil viver com alguém de quem não se gosta. Casar! Desta vez eu fui

enrolada mesmo. Não tenho outra saída. Eu que sempre gostei de brincar

de namorar agora estou num beco sem saída. Se eu pudesse, eu fugiria de

casa, só para não ter que me casar com ele."

Aquela garota alegre, cheia de entusiasmo, feliz da vida, já não existia.

Vivia agora pensativa, resmungando pelos cantos. Seus olhos negros agora

tinham uma sombra de tristeza. Ela não sorria, só pensava. Seu grande

amor por um outro alguém estava sendo sufocado. Ele, distante, e ela, sem

notícias.

As palavras dele, na despedida, estavam guardadas em seu coração:

— Você vai me esperar? Um ano passa logo. Eu venho lhe buscar, eu a

amo. Não se esqueça de mim!

Fora uma despedida cheia de promessas, sem um beijo, sem abraços,

somente com um aperto de mão. Ela chorava. Ele secou suas lágrimas com

seu lencinho e guardou-o, dizendo;

— Eu vou devolver, quando voltar, cheio dos beijos todos que eu tenho

vontade de lhe dar. Suas lágrimas eu vou levar de lembrança.

O tempo passou. Nos seis meses que antecederam ao casamento da

filha, Pedro colhera o seu café. Enquanto isso, os preparativos para o

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casamento foram concluídos. Benvinda esperava notícias de seu grande

amor. Três dias antes do casamento, ela recebeu uma carta e o lencinho.

Dizia a carta:

"Não fique triste, minha querida! Guarde o lencinho de lembrança. Ele

está cheio dos meus beijos. Você vai morar em meu coração para sempre.

O nosso amor não vai morrer. Ele era para nos dar forças para

continuarmos vivendo. Nossos corpos estavam separados, mas nossas

almas estarão entrelaçadas. Eu sei que você vai tentar ser feliz por mim e

por nós dois. Foi o destino que nos separou. Não culpe o seu pai, ele só

quer o melhor para você. Pense em mim quando, estiver triste."

Chegou o grande dia para todos, menos para a noiva, que ainda

protestava, dizendo para a mãe:

— Se eu pudesse, juro que fugia e não me casaria.

— Deixe de bobagem, menina. Tire esses pensamentos da cabeça. Você

vai ser feliz, tenho certeza.

Benvinda não estava tão segura como a mãe. Era pedir demais para ela

tirar seus pensamentos. As lembranças estavam gravadas em sua alma. Ela

apertava o lencinho contra o peito e dizia:

— Fique comigo, não me deixe sozinha.

Benvinda foi uma noiva muito bonita, com o vestido feito pela mãe. Ela

não sentia nenhuma emoção ao se casar com João e só o tempo poderia

dizer se eles seriam felizes.

No sítio, tudo voltou a sua rotina. Foi uma boa colheita. José comandava

o trabalho, plantando e colhendo os cereais. Lúcio cuidava de sua lavoura e

sempre tinha boa renda ao vender os frutos de seu trabalho. Já pensava até

em comprar suas terras. Lurdes, já mocinha, ajudava a mãe nas tarefas da

casa. Ela era muito vaidosa. Não se contentava com pouco, era exigente e

presunçosa. Márcia sempre dizia:

— Você é bem diferente de suas irmãs.

— Eu não mandei elas se casarem tão cedo. Eu vou aproveitar a vida.

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CASAS GRANDES E SEGREDOS

O sonho de Pedro era agora construir a sua casa grande. Ele vendeu o

seu café e contratou um construtor da região, Miguel Dias, que tinha

grande conhecimento na construção de casas de madeira. Pedro já tinha a

planta da casa em mãos. Miguel fez o orçamento do material e os custos da

mão-de-obra. Tudo foi acertado e a construção, iniciada

Foram meses de muito trabalho, até que a casa ficasse pronta. Pedro se

preparou para dar uma festa para comemorar sua casa nova. Queria reunir a

família e os amigos da cidade, políticos do seu partido. Pedro sempre havia

sido um político sério e tinha muito respeito pelo seu partido. Os

convidados foram tantos que a casa ficou pequena para tanta gente. Era sua

maneira de dizer a todos de que ele era muito feliz. Márcia, no entanto,

sabia que o marido não iria parar de sonhar.

Certo dia ele estava calado, no vai e vem da rede, e Márcia percebendo

que ele estava sonhando. Tinha certeza de que seria mais um de seus

sonhos malucos. Chamou por ele, mas Pedro estava tão distraído, que não a

ouviu chamá-lo.

Aproximou dele e disse:

— Acorda homem. Eu sei no que está pensando.

Ele respondeu:

— Agora deu para ler os meus pensamentos? Eu não sabia disso. Além

de profeta é adivinha também.

— Não brinque com essas coisas.

— Não estou brincando, Márcia! Estou falando sério. Você é adivinha e

lê os meus pensamentos.

— Então agora me diz em que estava pensando.

— Eu estava relembrando tudo que já aconteceu em nossas vidas.

Recordava o passado, de quando eu era menino, a Dinha, o que ela contou

para o meu pai, quando fui expulso de casa. Ela não podia ter inventado

aquela mentira, de que eu havia pego aquelas libras esterlinas.

— Eram muitas essas libras esterlinas?

— Ela disse que eram mais de duzentas mil libras esterlinas. Eu nem

sabia que meu pai tinha isso guardado. Tempos depois é que fiquei sabendo

que eram moedas de ouro de muito valor. Meu pai tinha muito ouro dos

garimpos em que trabalhou, tudo guardado nos cofres das paredes da casa,

além de muita pedra preciosa. Havia um quarto na casa, sem janelas. A

porta era fechada por uma grade de ferro, com enormes cadeados presos a

correntes. Quando meu pai faleceu, aquela porta estava aberta e dentro do

quarto só tinha papel velho e muita sujeira. Na parede tinha um sinal de que

ali tinha alguma coisa pendurado. Depois é que fiquei sabendo que, nesse

quarto, preso na parede, tinha um grande relógio de ouro. Ele estava preso

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na parede e dentro de uma caixa de madeira havia uma arca cheia de

moedas de ouro e objetos de grande valor.

— Como você ficou sabendo dessa grande riqueza de seu pai? E o que

foi feito disso tudo?

— Eu encontrei uns papéis e neles dizia que aquela riqueza só seria do

novo proprietário depois de cinqüenta anos. Nesses papéis tinha uma

relação detalhada e o valor de cada objeto ali guardado.

— Quantos anos seu pai morou na casa? — perguntou Márcia.

— Cinqüenta e dois anos ou mais.

— Então era tudo dos herdeiros.

— Sim, era. Dinha e seus filhos se encarregaram de dar fim em tudo.

— Mas onde ficava esse quarto?— perguntou a esposa.

Como a casa era muito grande e tinha vários corredores, para chegar até

esse quarto a gente passava por um labirinto, com becos sem saída.

— Você viu esse quarto Pedro? E a tal grade na porta?

— Meu pai nos levou até lá, eu, meus irmãos e minha mãe. Meu pai

chegou até lá olhando uns rabiscos que indicavam o lugar certo para apertar

e a parede se abria, dando lugar a uma porta. No meu quarto mesmo tinha

uma passagem secreta. Um dia meu pai chamou a minha mãe até o meu

quarto. Ele disse a ela: "quer ver uma coisa? Você vai me prometer que

jamais dirá a ninguém o que você vai ver." Ela prometeu ao meu pai

dizendo: "eu juro!" Ele apertou o pino que prendia o lampião, o guarda-

roupas se afastou e a passagem secreta se abriu. Era um longo corredor.

Depois de descer uma escada sem fim, fomos parar num porão, cheio de

esqueletos pendurados em correntes.

— Pedro, isso mais parece estória de fantasma.

— Não é estória, Márcia. Eu só estou contando isso depois de muitos

aos que estamos juntos. Sei que isso não vai abalá-la agora. Eu a conheço

muito bem, por isso estou contando. Eu tinha que tirar esse peso das

minhas costas. Agora me sinto bem mais leve.

— Esqueça isso, homem, e vamos cuidar da nossa vida.

— Olha, Márcia, meu pai deve ter ensinado o segredo das paredes, a sair

dos labirintos e chegar até esse quarto. Dinha sabia chegar até lá sozinha. É

a única explicação para que tudo tenha desaparecido.

— Como vocês chegaram até lá, depois que seu pai faleceu?

— Estava tudo aberto, as paredes não tinham mais segredos. Eu percorri

aqueles corredores e cheguei até o quarto vazio, sem janelas e sem as

grades de ferro. Até a porta tinha sido retirada. Fui até o meu antigo quarto

e tentei abrir a porta secreta, mas estava fechada. Eu não consegui abrir

aquela porta. No porão não tinha objetos de valor e Dinha só queria ouro e

pedras preciosas. Toda aquela riqueza, que por direito nos pertencia, nunca

me fez falta. Eu nunca seria feliz com aquela riqueza. Hoje eu posso dizer

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que sou feliz com você, com os nossos filhos e com as minhas terras,

nossas terras.

— Vamos entrar! Está na hora de tomar um café bem fresquinho que

vou fazer para nós.

Márcia nunca mais falou nos pertences do sogro. Aquela história ficou

enterrada com o passado. Dinha morreu na mais completa miséria. Não

deixou nenhuma herança para seus filhos nem um pedaço de terra para ser

devolvido para seus herdeiros.

A vida de Pedro continuava com muito trabalho. Plantando e colhendo,

José cuidava da terra e entregava ao pai todos os cereais colhidos. Pedro

não mais sonhava e vivia a realidade. Passava o dia olhando suas

plantações e pisando em sua terra vermelha. Ali estava o seu sonho e o de

toda sua família.

Com os casamentos, a casa estava mais vazia. Haviam ficado apenas

José, Lurdes e Antônio, um garotão cheio de problemas. Lúcio cuidava da

sua plantação e cada vez mais revoltado. Márcia percebeu que o filho não

estava feliz e não sabia quais eram os motivos de tanta revolta. Maria e o

marido continuavam morando e trabalhando no sítio, mas quem trabalhava

era só ela. O marido não era de se esforçar e pouco fazia. Pedro não andava

muito contente com a situação da filha. O genro vivia cheio de

compromisso para fugir do trabalho.

Maria estava esperando o seu segundo filho e ainda amamentava o

primeiro. Ela, todos os dias antes de sair para o trabalho, ia ver a mãe e o

pai. Certo dia, porém, ela não foi fazer visita aos pais. A mãe ficou

preocupada e foi até a casa ver o que havia acontecido. A mãe a chamou.

Ela estava no quarto e pediu para a mãe entrar. Márcia ao ver a filha com

um bebê no colo, levou um grande susto, dizendo:

— Meu Deus, quem está aí com você? Quem fez seu parto?

— Estou sozinha, mãe. O bebê já nasceu, Eu fiz tudo sozinha.

Márcia estava apavorada. Suas pernas tremiam. Ela se sentou na cama e

respirou fundo. Inconformada com aquela situação, perguntou:

— Onde está o seu marido?

— Ele saiu, mãe.

— Foi buscar a parteira.

A filha, vendo a mãe assustada e trêmula, respondeu:

— Eu não falei nada para ele.

— A que horas você começou a passar mal?

— Foi agora de manhã, depois que ele saiu.

— Por que não me chamou.

— Não deu tempo — disse a filha.

Márcia, com as pernas ainda tremendo do susto, falou:

— Que situação, meu Deus! Eu tenho que avisar seu pai.

Maria tentou acalmar a mãe.

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— Não é mais preciso, eu estou boa. Não fique preocupada.

— Seu pai vai buscar a parteira. Você não podia ter feito esse parto

sozinha.

Márcia saiu correndo, chamando pelo marido. Pedro veio ao seu

encontro, amparando a esposa para ela não cair.

— O que aconteceu mulher?

— É a Maria. Vai chamar a parteira. Vai correndo, não perde tempo,

homem. O caso é muito sério, é grave. Eu selo a Faceira. Vai depressa, não

perca tempo, pelo amor de Deus.

A parteira chegou, algum tempo depois, e encontrou Maria fazendo o

almoço. Foi aquele sermão.

— Vai para a cama — ordenou-lhe a mãe.

A filha quis protestar, mas não teve outro jeito a não ser obedecer. A

parteira examinou-a e disse que ela estava bem. Pedro chegou e perguntou

à filha:

— Por que não chamou sua mãe?

—Não deu tempo pai, foi muito rápido. Olhe sua neta! Ela é linda. Eu

fiz tudo certinho.

— Mas pode ter alguma complicação...

— Ah, pai, as índias ganham seus filhos de cócoras.

— Você não é índia, filha. Elas são ensinadas para ganhar seus filhos

sozinhas de cócoras.

— Você é mais corajosa do que pensamos — afirmou Márcia. Eu nunca

fiquei sabendo de uma mulher tenha feito seu próprio parto.

Este foi um fato marcante na vida de Pedro e Márcia. Constantemente

conversavam a respeito daquela situação.

— Eu não sei o que fazer. O marido de nossa filha não quer nada com o

trabalho. Quem trabalha é só ela. Com duas crianças pequenas, dá um duro

lá na roça. Ela está tão magrinha e sofrida — falou Pedro, que estava de

olho no genro que não queria nada com o trabalho. — Esta situação não

pode continuar. Eu notei que o Lúcio anda descontente. Eu acho que é por

causa do cunhado.

Márcia não queria alimentar ainda mais a preocupação do marido e

disse para si mesma: "meu Deus, a última profecia vem sempre na minha

mente em momentos como este. Eu sei que ela vai acontecer. Aquelas

palavras eu ainda ouço: vocês vão vencer, vão sofrer, nem todos os seus

filhos serão felizes. Isso em parte já está acontecendo. Eu sinto que alguma

coisa mais grave ainda está para acontecer."

Pedro chamou-a, trazendo-a de volta à realidade:

— Está triste, mulher? Está com uma cara de quem viu um fantasma.

— Talvez seja mesmo. Sempre há um fantasma que no faz companhia.

— Deixe disso, Márcia. Onde está aquela mulher que eu conheço tão

bem, cheia de decisões tão importantes? O que a está preocupando tanto?

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Márcia achou melhor mudar de assunto. José veio falar com o pai: —

Este ano temos que fazer a tulha. O café está com uma boa carga de frutos.

Se começarmos a fazer agora, ela ficará pronta antes da colheita.

Pedro providenciou todo o material para a construção da tulha. A planta

já estava pronta e foi Miguel quem fez o orçamento. Tudo foi devidamente

e cuidadosamente preparado.

Márcia, atenta a todos os acontecimentos, havia notado que o genro

havia viajado muito nas últimas semanas. A filha andava chateada. Era uma

pessoa de boa conversa, alegre, sorridente e não se queixava de nada, mas a

mãe havia notado uma profunda tristeza em seus olhos. Tinha certeza de

que ela estava escondendo alguma coisa. A mãe perguntou se ela estava

doente.

— Eu só estou cansada. Tenho trabalhado muito nestes últimos dias.

Mãe, será que o pai compra a minha roça?

— O que significa isso agora, minha filha? Que conversa é essa?

— O Durvalino arrumou um serviço em Maringá, com o Augusto. Eu

quero que o pai compre a minha roça. Eu não agüento mais trabalhar

sozinha. As duas crianças ficam embaixo dos pés de café o dia inteiro. A

senhora sabe que quem trabalha na roça é só eu.

— Eu nunca concordei com essa situação. Seu pai anda muito

preocupado com você.

— A senhora fala com ele, mãe?

— Fale você mesma, filha.

— Eu não tenho coragem, tenho medo de magoá-lo.

— Ele já está magoado com o seu marido. Ele não quer trabalhar. Não é

justo o que ele faz com você e com as crianças.

— Fale com o pai, por favor, mãe!

— Está bem, eu vou falar com ele, mas o seu marido vai ouvir poucas e

boas.

— O pai tem razão. Ele está merecendo mesmo uma boa prensa.

Márcia falou com Pedro:

— Eu já estava sabendo. Minha filha vai sofrer muito com aquele

marido de merda que ela tem — disse Pedro, furioso com a decisão do

genro. Eu vou falar com ele.

— Cuidado com o que vai dizer a ele.

— Eu só vou falar o que está enroscado na minha garganta.

Pedro foi até a casa da filha e chamou pelo genro. Ele apareceu com o

rabo entre as pernas, convidando:

— Entre seu Pedro.

Pedro estava espumando de raiva e foi logo dizendo:

— Então você quer vender sua roça. Sua não, seu safado! A roça é de

minha filha. Eu vou comprar, não por você, mas por ela e pelas crianças.

Eles não tem culpa de ter um pai de merda como você. Você não tem

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vergonha de ser sustentado pela minha filha. Ela está sofrendo e você vive

viajando, seu desocupado, irresponsável e presunçoso!

O genro não sabia onde punha a cara e disse:

— É, seu Pedro, eu arrumei uma colocação em Maringá, perto do

Augusto. Ele vai dar uma força para a gente.

Pedro estava furioso:

— Ele pode lhe dar uma força, como você diz. Eu tenho certeza de que

ele não vai lhe dar nem o que comer, seu merda.

Pedro saiu do sério e ficou muito nervoso, mas ninguém entrou na

conversa. Maria chorava muito. Abraçou o pai e pediu:

— Me perdoa, pai, por mais esse desgosto. Quem sabe não vai ser

melhor para todos.

— Eu sei, filha, que você vai sofrer. Seu marido jamais vai ter

capacidade de fazê-la feliz.

Naquele momento, veio à mente de Márcia a última profecia e ela

percebeu que tudo já está acontecendo.

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SONHOS E REALIDADE

Todos ficaram muito tristes com a mudança de Maria. Pedro foi quem

mais sofreu, mas não fazia comentários. Ia até a casa onde a filha morou e

ficava olhando. Nada dizia.

José falou com o pai:

— Vamos arrumar um colono para tocar a roça que o pai comprou de

Maria.

— Sim, é melhor. Nós vamos começar a fazer a tulha e teremos tempo

para cuidar daquela roça cheia de mato. O café está com uma boa carga de

frutos e tem que ser bem tratado, para não ter queda na produção.

Não foi difícil encontrar um colono bom de serviço para cuidar da

lavoura. Lúcio continuava esquisito. Márcia era quem mais sofria com

aquela situação, pois tinha certeza de que ele não estava contente.

José preparou o terreno para iniciar a construção da tulha, para guardar a

grande safra de café. Pedro ia realizar, finalmente, seu grande sonho de

colher uma grande safra e de ser um grande produtor do tão falado ouro

preto, o café. Já havia deixado de sonhar aqueles sonhos malucos, como

Márcia dizia. Tinham ficado no passado. Agora ele vivia a realidade dos

seus sonhos e bem diferente era a realidade do dia-a-dia de um sonhador.

A tulha ficou pronta a tempo, antes do início da colheita. Só não deu

tempo para aumentar o terreiro para secar o café. Lúcio também fez uma

pequena tulha, pois sua colheita era menor que a do pai. José contratou

diaristas para a colheita. Era preciso muito cuidado para que não ficassem

frutos perdidos no campo.

A colheita foi iniciada. Havia muito trabalho e José teve que contratar

mais diaristas. A região já estava bem povoada. Eram os nordestinos, que

chegavam nos paus-de-arara, à procura de serviço e colocação. Viajavam

de três a quatro meses em caminhões sem conforto algum, que vinham

lotados de gente desnutrida e crianças doentes. Muitos deles faleciam na

viagem e as mulheres grávidas eram as que mais sofriam. Muitas delas

deixavam seus filhos abortados pelo caminho.

Todos vinham fugindo das secas do sertão nordestino e traziam na

bagagem muitos filhos e sonhos. Chegavam para vencer. Na terra

prometida, eles aceitavam qualquer oferta de trabalho. Eram os colonos

daquela época e havia muita oferta de trabalho em todas as fazendas já

existentes, a maioria dos imigrantes japoneses.

Seu Luiz era filho de imigrantes japoneses e sua fazenda tem uma

interessante história. Certo dia, seu pai apareceu com um bilhete de loteria.

Tinha comprado uma série fechada. A mãe, quando viu a envelope, quis

saber o que era. Ao saber que era um bilhete de loteria, não aceitou que o

marido tivesse gastado dinheiro, comprando um simples papel.

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Contrariado, o pai de Luiz jogou pela janela o bilhete e o filho o pegou,

guardando-o, sem que o pai e a mãe soubessem. Assim que ele pode sair

para uma cidade vizinha, foi conferir o bilhete e qual não foi a surpresa ao

descobrir que o bilhete estava premiado. Ganhou sozinho a série toda.

Comprou a fazenda e deu a ela o nome de Duzentos Contos, total ganho na

extração do bilhete.

José e os diaristas faziam a colheita. O café era transportado para a

secagem. Pedro e Márcia faziam o trabalho, pois assim eles tinham certeza

de que o café seria bem seco. Pedro estava com a saúde abalada, depois da

mudança da filha.

A colheita do café demorou mais de três meses. O resultado estava,

finalmente, todo dentro da tulha.

— Foi uma grande colheita — disse Pedro.

Márcia perguntou:

— O que você sente ao ver tanto café na tulha?

Ele respondeu:

— Ali dentro da nossa tulha estão os sonhos que você sempre dizia que

eram sonhos malucos.

— E agora você não sonha mais?

— Sim, eu sonho. Isso faz parte da minha vida. O homem que não tem

sonhos não se realiza. Se é muito rico e se ele chegou tão alto, foi porque

ele sempre sonhou. Márcia, você sonha também?

— Só quando estou dormindo — respondeu ela e Pedro deu uma

gostosa gargalhada e soltou seus cabelos num gesto de carinho.

José apareceu para falar com o pai:

— O café foi colhido e está todo guardado. Na próxima semana, vamos

colher o arroz e, neste ano, vamos colher bem mais do que no ano passado.

José era assim. Tudo que fazia, era comunicado ao pai. Lurdes, que

estava presente, fez um comentário sobre a irmã Maria:

— Todos nós sabemos que ela, quando morava aqui, era quem ajudava

o pai. Agora ninguém sabe onde ela está morando. Se não manda notícias,

é porque não é feliz.

Essas palavras caíram em Márcia como punhaladas. Não conseguia

esquecer da última profecia. Ana também não mandava notícias para os

pais. Sofria calada e jamais reclamou do marido. José, trabalhando para o

pai, plantava e colhia, mas não era pago pelos seus serviços. Nos finais de

semana, o pai lhe dava uns trocados e ele dizia:

— Eu ainda não gastei o que o senhor me deu outro dia.

— Por que não gastou?

— Dinheiro é para guardar e não para gastar à toa.

Lúcio, um dia, presenciou e não gostou do diálogo e disse:

— Para mim o senhor dava menos.

— Mas tudo que eu lhe dava você gastava.

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— Ele é o queridinho do papai mesmo!

O pai se ofendeu:

— Você não vai criar caso. Já é casado, tem sua família e seu pedaço de

terra, onde planta colhe e vende. O que você faz com seus lucros? Distribui

para seus filhos gastarem à toa?

— É claro que não faço isso. Eu guardo para o futuro deles.

— Pois foi isso que sempre fiz: guardei para o futuro de vocês—

afirmou o pai, muito magoado.

Márcia conhecia muito bem o filho e tinha certeza de que ele iria atingir

alguém. Ela não sabia quem era e nem porque ele era tão revoltado.

Certo dia, um de seus porcos saiu de seu cercado. O animal começou a

correr. Lúcio, então, pegou uma lasca de madeira e jogou no porco fujão. A

lasca espetou-o na barriga, matando-o na hora.

O pai ficou sabendo e foi falar com o filho:

— Onde você estava com a cabeça? Fazer uma coisa dessas com o

animal...

Ele respondeu:

— O porco é meu e ninguém tem nada a ver com isso.

— E se pega em um das crianças ou em Antônio?

— Azar deles. Na hora da raiva, eu não olho em quem acertar.

— Você não regula bem!

— Problema meu.

O pai se ofendeu com as respostas do filho.

— Problema seu, não senhor! Olha como fala comigo! Eu não sou sua

mulher, que você trata com casca e tudo. Exijo mais respeito, quando falar

comigo. Eu sempre os tratei com igualdade.

— Será mesmo? Quem é o queridinho do papai, não sou eu.

— José nunca me respondeu assim.

— Ele é seu puxa-saco.

Depois do bate-boca, Pedro sentiu que não valera a pena tanto trabalho,

tantos sonhos e sofrimentos. Márcia ouviu tudo e ficou com medo dos dois

se pegarem. Se o pai soubesse o que o Lúcio fizera com as irmãs, quantas

vezes ele tentara surrá-las com o chicote. Achou que havia feito mal em

não ter contado. Quem sabe hoje o filho não seria assim tão revoltado com

todos.

Pedro ficou muito abalado com a atitude de Lúcio. Jamais imaginava

que um filho fosse ofendê-lo tanto. Tentou, de uma maneira muito clara,

descobrir quais eram suas razões e seus sentimentos, mas não encontrou

respostas.

Márcia estava arrasada e não tinha palavras para dizer ao marido:

— Esqueça o que ele disse — falou ela. — Ele deve estar magoado com

alguma coisa que nós não sabemos o que é.

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— Ele não é mais criança. É um homem feito e age como criança

malcriada. Onde foi que erramos? Criamos todos com igualdade, com os

mesmo direitos, com a mesma educação que demos as meninas. Ana era a

mais rebelde...

Márcia respondeu:

— Ela tem o mesmo gênio do irmão. Você não sabe das brigas dos dois.

Eu escondi de você o que eles aprontavam. Para separar os dois, eu os

surrava com a guasca.

— Então você escondeu de mim o tempo todo?

Márcia ficou confusa com a pergunta do marido e respondeu:

— Eu não contei a você para não criar atrito entre todos.

Pedro não gostou dela guardar segredo das brigas dos filhos.

— Você fez muito mal de não ter contado. Só faltava essa! Nós dois

discutindo. Você me deixou muito triste. Você escondeu de mim as brigas

e ainda deu cobertura para que continuassem a brigar. Eu estou duas vezes

desapontado com você.

Essa foi a primeira discussão entre os dois e ficaram vários dias de cara

virada. José foi quem mais sofreu com aquela situação. A mãe e o pai não

se falavam, mas ele os tratava como se nada estivesse acontecendo. Na

verdade, ele não tinha nada a ver com o acontecido. Qual era a intenção do

irmão? Jogar um contra o outro e ferir os três? Lúcio deveria ter uma

explicação para agir sem pensar. Estaria doente ou esconderia um segredo?

Na verdade, ele tinha medo de ser traído. Escondia-se atrás de sua revolta,

que era o seu escudo. Ele se protegia, agredindo sua família. Tinha uma

pessoa que sabia o motivo de tudo, por isso ele tinha medo e agredia a

todos que estavam em seu caminho.

A lavoura de café já estava no sexto ano e prometia uma nova e grande

safra, a maior de todas. Os pés de café estavam cobertos de flores. José

chamou o pai e a mãe para ver a linda florada e, assim, os dois

conversariam um pouco mais. A intenção do filho deu certo. Quando os

dois viram a florada do café esqueceram de tudo.

— Márcia — dizia Pedro, — que coisa linda! Os pés de café estão

branquinhos de flores.

Os dois ficaram encantados.

— É como eu a via em meus sonhos malucos, como você dizia.

— Agora eu sei que eles não era malucos — disse a esposa.

— Jamais esquecerei esta dádiva de Deus. Eu sou um produtor de café.

O que você sente, mulher, ao ver os campos cobertos de flores brancas?

— Eu fui injusta quando dizia que os seus sonhos eram malucos.

— Vamos esquecer as coisas tristes — propôs Pedro e, num gesto

rápido, desfez os cabelos de Márcia.

Era um sinal de paz entre os dois.

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José seguiu, fazendo suas obrigações. A colheita do café se aproximava

e foram tomadas todas as providências e contratados os diaristas. A grande

tulha estava cheia de milho, pois o paiol fora pequeno para tantos grãos,

por isso Pedro vendeu o milho que estava na tulha. José tinha aumentado o

terreirão. Agora ele tinha mais capacidade para a secagem do café. Assim,

tudo cuidadosamente pronto para a colheita. O café de Lúcio também

prometia uma boa safra, pois seu café era muito bem cuidado, como era

toda a sua lavoura.

Pedro olhava seu cafezal. Ele sempre sonhara um dia vê-lo assim

carregado de frutos. Márcia não esquecia a discussão do marido com o

filho e procurava não tocar no assunto, mas estava muito preocupada.

Apesar disso, tinha esperanças de que tudo fosse esquecido.

Começou a colheita e ninguém pensava em outra coisa. Não havia

tempo a perder. O café tinha de ser colhido no tempo certo. Pedro e Márcia

cuidavam de esparramar o café no terreiro, aproveitando o sol que brilhava

no céu azul. Todas as tardes chegavam uma grande quantidade de café e até

tiveram que fazer uma pausa na colheita, até que secasse o que já estava

colhido. Assim foi por três meses. A tulha fora feita na medida certa e

encheu até o teto. Era café que não acabava mais.

Pedro tinha realizado seu grande sonho de colher uma grande safra de

café. Seus sonhos estavam todos guardados na grande tulha do seu sítio.

José falou com pai:

— Esta colheita valeu a pena.

— Foi uma grande colheita, você trabalhou demais, filho.

— Não, pai, todos nós trabalhamos. O mais difícil na colheita é tomar

cuidado para que não fique frutos no chão e grãos sem colher. Tudo que

fica no chão ou na árvore é prejuízo. Nossos diaristas são gente com muita

prática e todos tomaram muito cuidado. Eu já verifiquei e não encontrei um

só grão do café na árvores ou no chão. Foi uma colheita muito bem feita.

— Graças a você, filho ! — disse o pai.

Terminada a colheita do café começaram uma outra etapa. José

preparava a terra, chegando o cisco junto aos pés de café. Naquela época

não era usado adubo, pois a terra era fértil. Pedro esperou o produto subir

de preço, para depois procurar os compradores. Normalmente os preços

eram os mesmos nas três máquinas de café e não havia muita opção para o

vendedor. Assim que o preço subiu, porém, Pedro vendeu tudo para o Sr.

Miazaki. Foi ele quem fez a melhor avaliação no seu café. A satisfação foi

muito grande, mas mal sabia Pedro que seus sonhos encerravam um ciclo

ali. Na verdade, era o fim de um ciclo, não o fim dos sonhos.

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A GEADA, A REVOLTA E A SANTA

Foi no ano de 1952, um inverno gelado, com poucas chuvas e um frio

era intenso. Pedro comentou com o filho, dizendo os cafezais estavam

correndo risco de geada:

— É o mesmo frio do ano de 1942, exatamente há dez anos atrás.

José não se lembrava da grande geada daquele ano, mas Pedro e Márcia

tinham viva em sua memória a lembrança do desespero dos fazendeiros. A

geada de 52 não veio tão forte como a de dez anos atrás. Os cafezais foram

duramente atingidos, mas não tão profundamente como da outra vez.

Começou, então, um novo trabalho. Foi preciso serrar pé por pé de café,

retirar os galhos secos e esperar nova brota. Foi como começar tudo de

novo, mas ninguém se sentiu derrotado. Foram à luta, plantando milho e

feijão em grande quantidade, para que o prejuízo não fosse tanto.

Pedro aumentou a quantidade de porcos de engorda. Tinha muito milho

estocado e uma boa plantação de abóboras. Durante os anos que se

seguiram, José trabalhou no campo, cuidando das plantações e da terra, sua

terra vermelha, como o pai dizia:

— Eu tenho orgulho de pisar neste chão. Foi aqui que realizei meu

grande sonho. Nós ainda vamos colher muito café nestas terras, se Deus

quiser!

Lúcio não mudou de gênio. Com o passar dos anos ele se tornou ainda

mais revoltado. A mãe sabia que ele ainda iria aprontar uma grande

confusão. As sessões de blasfêmias eram todos os dias, O pai ouvia e

comentava com Márcia:

— Eu fico tão triste, ouvindo o que ele fala. São palavras tão pesadas!

— Eu não digo mais nada — falou Márcia. — É melhor a gente ficar

calado. Não adianta dar ouvidos ao que ele fala. Nós sabemos que ele quer

ser corrigido, para depois criar confusão. Deixe para lá. Não dê ouvidos e

não diga nada a ele.

Márcia amava os filhos com igualdade. Sempre dedicara a todos a

mesma atenção, o mesmo carinho, mas naquilo que a magoava ela se

retraía, fechava-se, sentindo-se anulada. Sem saber o que dizer, ela se

afastava sem comentários. Sofria em silêncio, carregando dentro do peito

aquela dor.

Muitas vezes era injusta com quem não merecia. Era a maneira que ela

tinha de se libertar, de pôr para fora toda sua dor, abrindo seu coração com

palavras das quais depois se arrependia, muito chateada, querendo

consertar toda aquela besteira e, com isso, ela sofria ainda mais. Como ela

mesma dizia:

— Agora tenho uma pedra a mais em meu caminho.

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Assim Márcia vivia, sofrendo com os filhos. Era sua fé que aliviava sua

dor. Pedro sonhador não mais sonhava. Tinha realizado todos os seus

sonhos de conhecer novas terras, ter sua lavoura de café e ser dono de sua

tão querida terra vermelha.

Já não mais trabalhava. Passava dia jogando cartas, sozinho,

relembrando as suas noitadas com os amigos italianos. Eles sempre tinham

um motivo para comemorar: final da colheita, começo da colheita,

aniversários, todos os dias, enfim, traziam consigo um motivo de

comemoração onde não faltava o carneiro assado. Passavam a noite

jogando o famoso três- sete. Pedro ficava horas, jogando cartas com seus

amigos invisíveis. Arrumava a mesa, colocava as cadeiras em ordem e, em

silêncio, distribuía as cartas para cada um dos parceiros de rodada do três-

sete.

Era incrível vê-lo assim, tão concentrado. Quando ele ganhava, ouvia-se

o som de uma gostosa gargalhada. Todos os dias, após o almoço, Pedro,

dirigia-se à sala de jantar, arrumava a mesa, colocava as cadeiras e

distribuía as cartas aos seus amigos de jogo.

Márcia nunca interrompia a distração do marido. Olhava para ele, tão

concentrado no jogo e, com carinho, oferecia-lhe um cafezinho ou um tira-

gosto. Em silêncio ele se retirava para não perturbar sua distração. Em

todos esses anos, era o único momento de paz que ele encontrava. Jogar

sozinho talvez fosse voltar ao passado e estar de novo junto com seus

amigos de jogatina. Eles nunca jogavam dinheiro, era só passatempo entre

amigos.

Certo dia, depois de uma sessão de carteado, Márcia aproximou-se do

marido e perguntou:

— Quem ganhou hoje, foi você ou foram seus amigos?

— Hoje eu perdi.

— Perdeu a nega também?

— Perdi, não ganhei nem uma rodada. Você se lembra, Márcia, naquela

noite de frio, quando você foi atrás de mim? Ainda estávamos morando em

Douradão. Eu jamais esqueci aquele dia. Já estava amanhecendo e eu não

tinha chegado. Foi tão gozado, quando você me viu carregando aquele

enorme coqueiro nas costas para me aquecer do frio. Você não sabia se ria

ou chorava. Eu estava suado, com aquele enorme tronco nas costas. Você

fez uma cara de espanto e raiva. Tive medo de você me dar umas palmadas.

Aquele coqueiro tinha uns dez metros e pesava mais de cinqüenta quilos.

Quando o soltei das costas, foi como se tivesse jogado o mundo no chão.

Você fez uma cara tão zangada, mas depois começou a rir da minha

façanha. Você precisava ver a cara dos meus amigos, quando eu contei a

eles o que tinha acontecido. Eles me chamavam de Pedro do coqueiro. O

apelido pegou.

— Quantos carneiros vocês comeram naquele dia?

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— Foram três, com muita salada e polenta italiana.

— O que mais vocês comeram naquele dia?

— O famoso pão caseiro da Dona Chica.

— Você tem saudades daqueles tempos, Pedro?

— Tenho uma grande saudade dos meus amigos, daquelas reuniões

divertidas, regadas com vinho de laranja e carne de carneiro assado. Hoje

eu jogo sozinho, para vocês, mas para mim eu jogo com os meus amigos.

Assim eu volto ao passado.

— As vezes eu não entendo você, Pedro. Você sempre sonhou com o

futuro. Eu não sabia que você vivia o passado, enquanto estava jogando.

— O passado faz parte do presente e do futuro. O passado faz parte da

nossa história e cada ser humano tem seu passado que o empurra para o

futuro. Eu sempre fico pensando que o Lúcio não é feliz. Ele carrega um

fardo vazio. Mais tarde você vai me dar razão. O passado dele vai ficar

para os filhos recordarem com tristeza ou saudade. Ana e Maria também

vão carregar um grande vazio, com uma diferença: elas não têm revolta,

como Lúcio. Benvinda era mais sapeca. Ela pensa que eu não sabia que, em

todas as brincadeiras-dançantes, ela arrumava um namorado. Ela levava a

vida na brincadeira, coisa de menina-moça sem compromisso e sem

safadeza.

— Pedro, você não sabe de uma coisa — disse Márcia. — Ela não

queria se casar.

— Por quê? — perguntou Pedro.

— Ela gostava de um outro rapaz, que estava servindo o exército.

— Quem era ele?

— Isso eu não sei. Ela não quis dar o nome dele.

— Então ela é a única filha que tem um passado para recordar. E você,

Márcia, me conte o seu passado, aquele que eu não conheço.

— Eu não tenho nada para contar.

— Você não tem passado como lembrança?

— Tenho sim!

— Quais são?

— Todos que você já conhece. Eu conheci você ainda criança e nós

brincávamos juntos pelos campos, colhendo frutos e flores. Você se

recorda daquela vez em que você colheu um lindo buquê de flores

vermelhas, fez com elas uma coroa e colocou em minha cabeça, dizendo

que, quando crescesse, ia se casar comigo? Você ficou com tanta raiva de

mim, quando eu a joguei no chão e sai correndo, morrendo de vergonha do

que você tinha me falado. Saiba que eu nunca me esqueci das suas

palavras.

— Que coisa linda, Márcia! Eu não recordo desse fato.

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— Eu nunca me esqueci. Eu tinha certeza de que você não tinha

esquecido também. Você foi meu primeiro namorado. Eu tinha uns dez

anos. Foi bem antes de você sair de casa.

— Agora eu estou recordado. Foi no mês de junho e as flores eram

trepadeiras que davam nos campos. Com um cipó de flores eu fiz aquela

coroa de flores vermelhas. Você ficou tão linda com ela na cabeça. Naquele

seu vestido branco, com bolinhas vermelhas, você parecia uma rainha em

meus sonhos de menino.

— É por isso que eu gosto tanto daquelas flores de São João.

— Eu achava que tinha sonhado isso. Foi um sonho tão lindo ficou

gravado no coração. Então eu não sonhei. Foi verdade mesmo.

Márcia ficou muito comovida e disse:

— Eu também me recordo do vestido de chita branco com bolinhas

vermelhas. Eu guardei aquele vestido por muitos anos. Sempre que olhava

para ele tinha medo de que suas bolinhas caíssem, de tão velho que estava.

Eu ainda me recordo de como você estava vestido. Usava uma camisa de

mangas compridas xadrez, branco e vinho, calça meia-canela cinza, com

suspensório vinho. Usava também um boné esquisito, xadrez, da cor da

camisa. Com aquelas botinas, você parecia um reizinho de verdade, só que

você era rico e eu era pobre, nem tinha um sapato para calçar e corria pelos

campos descalça.

— Você não esqueceu nem um detalhe desse passado?

— Como eu iria esquecer de uma coisa tão bonita que era só minha?

— Só sua, não, Márcia. Nossa. É o nosso passado e tem muitas outras

coisas tão bonitas como essa. É só começar a pensar no passado, que elas

vão aparecendo.

— E você, Pedro, do que mais tem saudades?

— De minha mãe. Ela foi uma santa, me vestia muito bem, me dava

muito amor e carinho. Eu tinha um quarto só meu, como tinham os meus

irmãos. A nossa mesa era farta. Os empregados de minha mãe eram todos

filhos de antigos escravos. Eu tinha também uma babá, que cuidava só de

mim e de minhas roupas. Ela cuidava de tudo que era meu. Ela preparava o

meu banho, me arrumava e me levava para a sala de jantar. Eu tinha um

professor particular, que vinha todos os dias me dar aulas. O pouco que

aprendi foi graças a minha mãe, que contratou o professor Jacinto. Eu

andava só de trole, junto com meu pai e minha mãe. Nós éramos tão

felizes, até que aconteceu aquela tragédia. Minha mãe adoeceu e morreu.

Eu tinha uns dez anos de idade, mas me recordo muito bem de tudo. Meu

pai não perdeu tempo. Casou com a primeira que apareceu, só porque eu

era pequeno e precisava de cuidados. Ela enganou meu pai direitinho. O

que ela queria era dar o golpe do baú. De mim ela nunca cuidou. Começou

tirando a babá e deixou de cuidar do meu quarto e de minhas coisas. Eu não

comia mais na mesa com meu pai e meus irmãos. Eu comia na cozinha,

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junto com os empregados. Ela servia o meu prato e mandava eu comer. O

pão, o leite e o queijo nunca mais me foram servidos. A minha madrasta

começou a esconder a comida e pedia aos empregados para não contar nada

a meu pai e me deixava de castigo, se me pegasse comendo uma fruta ou

um pedaço de pão. Foi quando conheci você. Nós dois passávamos o dia

todo brincando no campo, onde eu tinha frutos para comer.

— Por isso você era tão magrinho?

— Era, de passar fome, Márcia. As minhas roupas foram se acabando e

ficando pequenas. Ela nunca comprou uma peça de roupa para mim.

Quando ela inventou aquela mentira, meu pai acreditou e me mandou

embora de casa. Ela não me deixou falar com meu pai. Foi castigada pela

vida e morreu na miséria. Quando ela veio me pedir dinheiro, lá no sítio do

Douradão, eu nem dei resposta. Tive vontade de dizer tudo o que ela havia

feito para mim. Com o maior descaramento ela me disse: "você está bem de

vida, me arruma um bom dinheiro que eu não vou perturbar mais." Que

vontade eu tive de lhe dar uma boa surra de chicote. Dei a ela o meu

desprezo. Era o único sentimento que havia guardado para ela. Eu não

tenho remorso, só uma grande tristeza que, as vezes, eu ponho para fora,

quando recordo o passado com Dinha.

— Por hoje chega de falar em tristeza. Vamos esquecer todas essas

mágoas e tomar um café bem forte, do jeito que você gosta.

A vida continuava para Pedro e Márcia. A grande tristeza era Lúcio,

cada vez mais revoltado. Pedro dizia:

— Eu tenho motivos para ser revoltado pelo que minha madrasta me

fez, mas eu não guardei mágoa no coração, só uma grande tristeza. Lúcio

não tem motivos para ser tão revoltado. Ele se fecha, só sabe ofender.

Tenho muita pena da mulher dele. Ela morre de medo do marido. Ele deve

ter um grande motivo e deve ser alguma coisa bem séria. Ele tem medo de

ser descoberto, por isso ele se esconde atrás dessa revolta.

— Eu tenho pensado muito nisso também — disse Márcia.

José, por outro lado, era firme no trabalho, falava com o pai, ouvia as

ordens e as cumpria, plantava, colhia e entregava tudo ao pai para se

vendido. Ele era feliz, engordava seus porquinhos e vendia. Essa era a

única renda que ele tinha. Era econômico e sempre tinha seus trocados. Foi

aos poucos juntando um bom dinheiro, pensando em seu futuro.

Freqüentava as brincadeiras-dançantes e gostava de um bom jogo de

bola. Não perdia um bom filme. Com sua bicicleta equipada com um bom

farol, pedalava dez quilômetros à noite para ir ao cinema na cidade.

Um bom namoro, sem compromisso, isso ele não dispensava. Quando

chovia no domingo, ele e seus amigos faziam uma boa rodada de truco ou

escopa.

As garotas tentavam conquistar o jovem José, moço sério e trabalhador

e um bom partido, disputado pelas moças do bairro, mas ele já estava de

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olho em uma garota especial. Não disse nada para os pais, porque ele não

tinha condições financeiras para assumir um compromisso mais sério.

Certo dia, sua irmã Benvinda perguntou-lhe:

— Você já pensou em se casar, mano?

— Eu já tenho uma namorada, mas não conte para ninguém, é segredo

ainda.

— Ela vai esperar você se decidir?

— vai, nós não temos pressa. Daqui a uns dois ou três anos eu decido,

mana.

Certo dia, Pedro foi convidado para uma reunião cidade, justamente

pelo delegado. Márcia ficou preocupada com aquele convite. Pedro estava

tranqüilo. Era um político honesto e sempre fora fiel ao seu governo, mas

mesmo assim estranhou a reunião ser na delegacia.

— Você está preocupado, Pedro? — indagou Márcia.

— Eu estou confuso. Não é sempre que recebo um convite, a não ser

reunião do partido.

Pedro vestiu seu melhor terno de linho. Ao chegar na tal reunião foi

recebido com muitas palmas. Ele ficou ainda mais confuso. Todos o

abraçavam e diziam:

— Parabéns Pedro! Você é um grande homem e merece este título que

estamos dando a você. Vai ser uma tarefa difícil e muitas vezes

complicada. Nós decidimos dar a você o título de Inspetor de Quarteirão. A

partir de hoje você é uma autoridade no seu bairro. É de sua

responsabilidade tudo que acontecer em seu bairro, como brigas de casais

em brincadeiras-dançantes e outras, em qualquer lugar. Você terá que

resolver na base de conselhos e até desarmar os briguentos. Se alguém sair

ferido em brigas de armas brancas ou armas de fogo, você desarma o

fulano, pega a arma e traz todos para a delegacia. Nós o escolhemos porque

é honesto, honrado e um homem de bem. Temos certeza de que irá resolver

esses casos sem problemas.

Pedro ficou satisfeito com o cargo que recebeu. Márcia esperava aflita a

volta do marido, que chegou e contou para a esposa o que tinha acontecido.

Ela disse ao marido:

— Você pegou um grande abacaxi e difícil vai ser descascá-lo.

Na primeira brincadeira-dançante que houve, logo depois, Pedro foi

chamado para pôr fim a uma briga de baderneiros. Eles chegaram e

apagaram o lampião. Foi uma grande confusão. Pedro entrou e deu uma

ordem:

— A festa continua. Ninguém se atreva a me desobedecer. Aqui eu sou

autoridade. Volto a dizer, a festa continua e todos os baderneiros estão

convidados a comparecer, segunda-feira, às dez horas da manhã, na

delegacia. Quem não for, mando a polícia ir buscá-lo e ficará preso por três

meses até um ano.

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Pedro ficou orgulhoso de seu primeiro serviço. Na segunda-feira, lá

estavam todos, com medo do delegado. Ele passou a ser chamado para

acalmar casais. Com uns bons conselhos, ficava tudo em paz. E assim

seguiu por muito tempo.

Márcia ficava preocupada com as chamadas em noites de chuva, mas ele

nunca deixou de atender um chamado sequer, para desespero dela. Certa

vez, fizeram uma brincadeira-dançante em um casarão desocupado.

Retiraram as paredes de dentro, deixando um grande salão. Pedro foi

chamado para tomar conta da festa, mas ele se atrasou. Nisso chegou um

grupo de novatos da cidade. Com eles vieram duas moças, Marta e Geruza.

Ninguém conhecia esse novo grupo de rapazes e eles também não

sabiam que o Inspetor iria tomar conta da festa. O salão só tinha uma porta

de entrada. A festa estava animada, quando eles chegaram e apagaram o

lampião. Nesse instante, Pedro chegou na porta e disse:

— Estejam todos presos, seus desmancha-festas!

Sacando seu revólver, deu um tiro para cima e fora da porta. Foi um

corre-corre. Moças e rapazes pularam pelas janelas, caindo um em cima do

outro. Os briguentos deitaram-se no chão, por ordem de Pedro. Foram

levados para a cidade e ficaram presos até a segunda-feira. As duas moças

foram levadas para a casa dos pais. Este fato ninguém esqueceu, porque do

lado das janelas tinha um curral e todos ficaram cheios de bosta de vaca.

Esta festa foi muito divertida e comentada por muito tempo.

Pedro era chamado até em vendas de beira da estrada. Era bêbado que

não queria pagar a conta ou era peão de faca na mão, desafiando

comerciantes. Ele era um convidado especial, com direito a uma rodada de

truco, que ele gostava muito.

Pedro estava sempre presente em todas as reuniões festivas do bairro,

era respeitado por todos e querido até pelas crianças na porta das escolas.

Nunca recebeu um réu por isso. Foi um político honesto e esquecido pelas

autoridades, que nunca lhe fizeram uma homenagem, dando seu nome a

uma rua da cidade que ele tanto amou. Tinha orgulho de pertencer a esta

terra vermelha, a terra dos seus sonhos.

Essa foi uma experiência para Pedro. Apesar de tudo, valeu a pena ser

útil e isso dava a ele um enorme prazer. Seus conselhos nunca foram

esquecidos. Os casais em atrito viam em Pedro um conselheiro. A cada

caso em que ele era chamado, eram novos amigos que ele arrumava.

— Santo de casa não faz milagre, é um ditado popular! — dizia Pedro, e

era uma grande verdade, porque o filho jamais aceitara um conselho seu.

Isso magoava-o muito, tirando sua autoridade. Tanto que, certo dia, ele

comentou com Márcia:

— Eu tenho medo que o Lúcio faça uma grande besteira. Ele comprou

um sítio e ficou devendo mais da metade do valor. Ele não diz nada sobre

seus negócios. Parece que ele está fugindo de nós ou está escondendo

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alguma coisa. Eu não o entendo. Para que tanta revolta e mágoa? Ele é tão

infeliz.

Márcia recordou da profecia. Fazia tempo que ela não pensava no

assunto. Ela não havia esquecido daquelas palavras. Mesmo depois de

tantos anos, ela estava viva em sua mente. Sabia que aconteceria algo de

muito grave.

— Com quem será? — perguntava-se. — Quando será? Meu Deus, não

deixe que nada de mal aconteça a nenhum de meus filhos. José é tão meigo

e obediente, respeita tanto o pai e a mim. Já o outro parece um estranho

com aquela revolta. Ele quer atingir alguém de uma maneira cruel. É uma

intuição que tenho. Isto para mim não falha e eu tenho muito medo.

Certa feita, Pedro a chamou:

— Venha aqui na rede comigo. Eu quero lhe dizer uma coisa muito

séria.

Márcia sentiu um grande arrepio. Seus cabelos ficaram em pé.

— Meu Deus, o que será desta vez? O que foi que aconteceu? —

perguntou-se de imediato.

— Venha aqui, Márcia. Eu quero convidar você para fazermos uma

viagem.

Ela sentiu um alívio geral. Ainda assim, suas pernas tremiam, sua voz

não saia e ela gaguejava. Pedro começou a rir do embaraço da esposa.

— O que foi? Você está tremendo? E por que está gaguejando dessa

maneira?

Ela começou a chorar e cobriu o rosto com as mãos. Pedro disse:

— Deixe de bobagem. Por que esse choro agora, sem motivo? —

indagou, enquanto, carinhosamente, enxugava suas lágrimas. — Não quer

viajar comigo e com as crianças?

Márcia nem podia falar, de tão emocionada que estava. Continuou

calada: Pedro insistiu?

— Hei, mulher! Ficou muda de uma hora para outra? Fale comigo! Não

gostou de meu convite? Nós vamos a Aparecida do Norte. Eu sei que você

sempre teve vontade de ir até lá.

Ela chorou ainda mais, abraçada ao marido e em silêncio:

— Obrigada, meu bom Deus, por esta notícia! — agradecia ela.

Pedro, notando que ela estava confusa, desfez seus cabelos, fazendo-a

sorrir. Os cabelos de Márcia eram longos e presos com um birote no alto da

cabeça.

— Veja o que você fez! Outra vez soltou o meu birote e me deixou com

cara de bruxa, com esses cabelos soltos.

— Você está linda, Márcia. Eu gosto de soltar seus cabelos só para ver

sua cara de brava. Então, vamos viajar? Posso marcar as passagens?

— De que jeito vamos viajar?

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— De caminhão — respondeu o marido. — Vamos de pau-de-arara.

Vocês vão gostar da viagem.

Márcia ficou de boca aberta.

— De pau-de-arara, Pedro? Que loucura! Você deve estar brincando

comigo. Você me deixou muito triste com essa brincadeira.

— Não é brincadeira minha. Nós vamos viajar de caminhão mesmo, só

que não é pau-de-arara, fique sossegada. Eu sei o que estou fazendo.

Com os preparativos para a viagem, Márcia se esqueceu da profecia, da

revolta do filho, das preocupações que tanto a afligiam e do tremendo susto

que levara, quando o marido a chamou para falar da viagem. Agora iria

realizar um grande sonho adormecido, que guardava no fundo de seu

coração, que era ir a Aparecida do Norte, fazer uma visita à santa de sua

devoção.

A sua alegria era tão grande que ela se esquecia até de comer. Era como

uma criança que iria ganhar seu tão sonhado presente de Natal. Ela Márcia

cantava, sorria e chorava de alegria, fazendo seus planos. Pretendia pagar

todas as promessas que devia a Nossa Senhora.

Tinha muita fé que tudo iria melhorar, depois dessa viagem. Queria

pedir à santa para que tirasse dos seus pensamentos a profecia, que tanto a

atormentava. Pediria também pela felicidade de seus filhos e eram tantos os

pedidos que ela teve que fazer uma lista de tudo que iria pagar ou a sua

santa. Não podia esquecer de nenhuma promessa, por menor que fosse.

Tudo era de grande importância para ela.

Pedro fez as reservas das passagens, com direito a hotel, duas refeições

por dia e café da manhã. Na época não tinha asfalto. As estradas eram de

chão batido. Caso chovesse, a viagem demoraria de quatro a cinco dias. Era

uma excursão sem pressa para voltar, com muita fé na santa.

Chegou, finalmente, o grande dia. Márcia preparou comida para um

mutirão e disse o marido:

— Vamos levar pão caseiro, lingüiça frita, lombo cheio, farofa com

frango, frango assado e muita água para todos.

Pedro comprou três corotes, grandes o suficiente para guardar água para

todos durante a viagem. Quando tudo pronto, Pedro arrumou um jipe com

um vizinho e foram para a cidade, onde embarcaram.

Apesar de estarem todos mal acomodados e do vento frio e forte que

levantava a lona que cobria o caminhão, tudo valia a pena. Iam cantando

hinos católicos e rezando, pedindo proteção a Nossa Senhora da Aparecida.

Quando chegaram naquela cidade, encontraram uma multidão que lá

estava. A Basílica era pequena para tanta gente.

Mal chegaram ao hotel, Márcia tratou de fazer sua via sacra. Primeiro

comprou uma vela de seu tamanho e foi cumprir sua primeira promessa.

Tinha levado uma foto de toda a família e a colocou na sala dos milagres.

Assistiu à santa missa e agradeceu a Nossa Senhora pela boa viagem. Pediu

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pelos filhos, pela paz e felicidade de todos. Pediu para a santa dar mais

calma ao filho Lúcio e para que tirasse dele aquela revolta que tanto a fazia

sofrer.

Márcia foi se confessar e contou ao padre o que tanto a atormentava, a

profecia. Ela queria uma penitência para que nada de mal acontecesse a

nenhum de seus filhos. Ela recebeu os conselhos e a penitência e o padre

lhe disse:

— O que está escrito, vai acontecer, é o desígnio de Deus. Vá em paz e

que Deus a proteja. Tenha fé. É a sua fé que vai proteger sua família.

Márcia comprou uma Bíblia, um terço, uma imagem de Nossa Senhora

e várias lembrancinhas para todos.

A viagem de volta transcorreu tranqüila e sem problemas. Márcia sentia

que tinha deixado na Basílica todos os seus temores. Prometera a santa que

voltaria em breve para agradecer a benção recebida. Já não mais pensava na

tão temida profecia.

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A BROCA E A GEADA

Após a viagem, inspecionando a lavoura, José descobriu, com espanto,

no café já quase maduro, bichinhos que se pareciam com carunchos. Ele

colheu vários grãos de café e levou para o pai ver. Pedro olhou bem e disse:

— Se não estou enganado, isto aqui é broca do café. É uma praga nova

que apareceu e só com B.H.C. podemos combatê-la. Temos que tomar

providência, antes que ela acabe com nosso cafezal.

Foi uma grande batalha para combater a broca do café, que danificava o

grão ainda em formação, depreciando o produto na hora da venda. O

inseticida usado era muito perigoso para a saúde. José tomava muito

cuidado, carregando nas costas a bomba cheia do veneno. Era um trabalho

difícil, cansativo e perigoso. Não podia deixar cair na pele nem uma gota.

Tinham que tomar leite em lugar da água e na hora do sol muito quente era

muito perigoso.

Precisava trabalhar a favor do vento. O cheiro forte dava muita dor de

cabeça e de estômago, mas ele não se queixava de nada. Queria passar logo

o veneno para controlar a broca do café, porque acabar com ela era

impossível. A praga já havia se alastrado por todos os cafezais da região.

Pedro sentiu-se derrotado com a praga nos cafezais. José, no entanto, dizia

ao pai:

— Não fique preocupado. Eu vou cuidar de tudo.

— Se não fosse você, filho, eu iria desistir desse café. Mandava arrancar

tudo e botava fogo. Assim acabaria com essa maldita broca dos cafezais.

— Nada disso, pai. Eu vou combater essa praga. Alguns prejuízos

vamos ter. Por mais que combatamos, todo ano ela vai aparecer de novo.

— Tem fazendas aqui por perto que já estão arrancando todo o café.

Vão plantar algodão e o tal rami. Eu ainda não conheço essa planta. Dizem

que dá muito dinheiro e ocupa muita gente na sua colheita. Dizem também

que a máquina usada é muito perigosa. Ela não têm nenhuma proteção e

pode cortar o braço do peão. Todo o cuidado é pouco.

— O senhor não está pensando em arrancar o nosso café e plantar o tal

rami?

— Eu só não vou mandar arrancar o café por você, que cuida muito bem

de tudo.

— Então vamos combater a broca e seja o que Deus quiser —

respondeu o filho.

O café que Lúcio cuidava também estava com a broca. Ele vivia

xingando as malditas brocas que queriam acabar com seu café.

— Eu comprei um sítio e tenho que dar mais uma parcela do pagamento

com a venda do café. Agora essa maldita praga vai acabar com meus

lucros.

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Dizia ele aos amigos:

— Eu não quero nem saber de plantar café no meu sítio. Eu vou plantar

hortelã-pimenta. Essa plantação é de poucos gastos e muito lucro. Não tem

pragas para prejudicar na hora da colheita. Aqui estão arrancando café e

vão plantar algodão e o tal rami. Algodão é uma droga também. Tem as

lagartas que destroem tudo e se chove na hora da colheita é prejuízo na

certa. O rami eu não conheço, mas dizem que é muito perigoso para quem

trabalha na boca da máquina. O peão pode perder o braço e ficar aleijado

para sempre.

Esses eram os planos de Lúcio. Pela primeira vez ele falava aos amigos

sobre o que ele pretendia para o futuro. Enquanto isso, a broca continuava a

ser combatida com o B.H.C.

Márcia, depois da viagem a Aparecida do Norte, vivia bem mais

tranqüila e não sentia mais aquele mal-estar. Graças à santa e às palavras

do padre agora ela não se martirizava tanto e conseguia afastar de seus

pensamentos a profecia que tanto a atormentara.. Mantinha consigo a

Bíblia comprada, mas não a lia, pois não sabia. Só viria a aprender muito

tempo depois.

Certo dia, Lurdes falou com a mãe:

— Arrumei um namorado.

— Quando você conheceu esse moço? — perguntou a mãe.

— Foi na brincadeira aqui na tulha, sábado passado. Ele me pediu em

namoro, e eu disse a ele que sim.

— Por que você não fez como sua irmã Benvinda, que pediu um tempo

para eu falar com seu pai?

— Ele é meu primeiro namorado. Fale com o pai que eu estou

namorando o Ricardo.

Pedro, ao saber, não viu com bons olhos aquele namoro, pois Lurdes

fora muito precipitada. Ela mal conhecia o rapaz. No domingo, depois do

almoço, ele chegou. A filha disse ao pai:

— Este aqui é Ricardo, o meu namorado.

Pedro fez muitas perguntas ao rapaz e não ficou contente com as

respostas.

— Tudo bem! — disse Pedro. Eu não quero namoro longo. Filha minha,

quando arruma namorado, tem que se casar logo. Foi assim com as outras

três filhas e será com esta também. Assim que ela completar dezesseis

anos, eu faço o casamento. Eu não gosto de agarra-agarra e nem de namoro

à noite. Traga seus pais para eu conhecer na próxima semana.

Assim foi feito. Os pais de Ricardo vieram, trataram do casamento e

marcaram a data para o dia 22 de abril.

— A festa eu faço, não preciso de ajuda. A despesa corre tudo por

minha conta. Eu sou o pai da noiva, é minha obrigação.

Lurdes disse à mãe:

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— Eu quero um lindo vestido de noiva, com uma grande cauda e o

tecido de rendas.

Márcia respondeu:

— Você não acha que está querendo muito?

— Casamento é só uma vez. Eu não tenho culpa se minhas irmãs não se

casaram com um lindo vestido, como eu quero, porque elas não pediram ao

pai.

— Filha, não é o vestido que traz a felicidade para quem se casa.

— Não me importa, mãe. Eu quero o meu vestido com cauda bem longa

e o tecido de renda.

A mãe insistiu:

— Eu posso fazer o seu vestido. Fiz os da suas irmãs e elas gostaram.

— Eu quero o meu vestido feito por uma boa costureira da cidade.

— Tudo bem — concordou a mãe. — Seu pai vai a cidade falar com sua

irmã. Ela conhece uma boa costureira para fazer o seu vestido.

— Eu quero ir junto para escolher o tecido e o modelo.

— Tem muito tempo.

— O tempo passa depressa. Eu não quero deixar para a última hora.

— Que pressa é essa?

— Casamento não é um casaco que se pendura em um prego ou cabide.

Eu agora vou cuidar só da minha casa.

— Tudo bem, filha. Tomara que você seja muito feliz!

— Eu vou ser feliz, a senhora vai ver.

Márcia ficou muito magoada com as palavras da filha. Se ela soubesse

como era difícil a vida, não agiria daquela forma. Tempos depois, porém,

Lurdes descobriria que a vida de casada não era tão linda, como fora o seu

vestido de noiva.

Tudo, afinal, foi feito como elas queria. Pedro fez um grande almoço,

servido ao ar livre, no quintal de sua casa. Depois disso, a vida no sítio

continuou. A maior preocupação era a batalha contra a broca do café. José,

incansável nessa luta, disse ao pai:

— A praga já está controlada. Este ano eu ainda não encontrei um só

grão com a broca.

Tempos depois, ele comunicou aos pais que iria marcar a data de seu

casamento. As duas famílias já se conheciam. Lúcio continuava cada vez

mais revoltado. Saía de casa chutando tudo que encontrava pela frente. O

gato e o cachorro eram os primeiros a receber seu pontapé. Se ele chamava

o cachorro para pegar um porco que havia saído do chiqueiro, o cachorro

saia correndo se esconder, bem longe dele.

Lúcio xingava, berrava e iniciava sua sessão de blasfêmias contra os

pobres animais. Se ele ia pegar a égua Faceira para selar, ela erguia o rabo

e desembestava numa louca corrida pelo pasto a fora. Todos os animais

tinham medo dele, até o velho Paxola.

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— Ele só pode estar doente — disse um velho amigo da família.

Pedro sentiu as palavras do amigo e respondeu:

— Ele é um bom rapaz. Trata os amigos muito bem é trabalhador,

honesto e nunca deixou faltar nada para a família. Eu não tenho explicação

e fico muito triste a magoado com essa situação. Ando muito nervoso.

— O senhor tem que se cuidar. Saia de casa, vá a cidade, converse com

sua filha, com os amigos que tem na cidade e se distraia um pouco.

— Eu faço isso, caro amigo. Todos os dias vou na venda do Pedro

Japonês e passo boa parte do dia, jogo truco e bato um bom papo com

todos os meus amigos. O meu coração parece que quer apostar uma corrida

comigo. Eu gosto mesmo é de jogar o meu três-sete sozinho, no faz-de-

conta com os meus amigos do passado.

Márcia entrou na sala, servindo um cafezinho, e ouviu boa parte da

conversa. O amigo perguntou pelas filhas Ana e Maria.

Com tristeza, Pedro respondeu:

— Elas não me mandam notícias. Ana está em Maringá e trabalha como

merendeira em um colégio. O marido trabalha na prefeitura. Fiquei

sabendo que o marido de Maria toma conta de uns maquinários do dono da

fazenda em que eles moram. A fazenda se chama Espoleta e, perto dela,

tem uma venda que tem mesmo nome. É só o que sabemos.

— Então peça para a sua filha Benvinda escrever para a tal venda

pedindo informações.

Márcia achou uma boa idéia e a carta foi enviada ao proprietário da

venda Espoleta e chegou ao seu destino, depois de algum tempo. O dono da

venda recebeu a carta e não teve coragem de abrí-la, pensando ser alguma

ameaça de jagunços. Essa carta correu de mão em mão, até que um

valentão a abriu. Dizia:

"Eu procuro uma família, Maria e Durvalino. Gostaria que o senhor me

fizesse essa gentileza, pedindo informação aos seus fregueses e amigos.

Eles moram na fazenda Espoleta. Quem escreve é a irmã de Maria. Aqui

estão o nome e o endereço. Aguardo ansiosamente uma resposta e que

Deus o abençoe por este favor."

Depois de vários dias chegou a resposta, com o endereço completo do

casal. Pedro ia todos os dias à casa da filha, à procura de notícias. Certo

dia, quando o pai ia chegando, a filha de longe acenou com a carta.

Coitado do coração de Pedro. Ele mal podia acreditar que estivesse

recebendo notícias da filha. A carta dizia que haviam encontrado o casal

procurado que morava ali perto e não mais na fazenda Espoleta, indicando

como chegar até a tal venda. Pedro ficou muito feliz com a notícia e

decidiu ir com Márcia, naquela mesma semana, à casa de Maria.

Assim o fizeram. Ao chegarem à tal venda, mostraram a carta ao senhor

que os atendeu, dizendo

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— Eu me chamo Pedro e sou o pai de Maria. Esta é minha esposa

Márcia.

O senhor gentilmente disse:

— É um prazer conhecê-los. Eu também sou pai de filhas distantes, por

isso eu entendo suas preocupações. Seu genro eu não conheço. Dizem que

ele trabalha na cidade. Sua filha e as crianças vêm sempre fazer compras

aqui na minha venda. Eu só não sabia o nome dela. Venham tomar um café.

Depois iremos fazer uma surpresa para eles.

Realmente foi uma grande surpresa. Maria, quando viu os pais

chegarem, dizia, chorando de alegria:

— Eu estou sonhando. Não acredito que são vocês. E o restante da

família?

Maria, abraçada ao pai e a mãe ao mesmo tempo, chorava muito.

— Quanta saudades eu tinha de vocês.

Pedro, emocionado, perguntou a filha:

— Por que não mandou notícias. E o seu marido, o que ele faz na vida?

Maria, meia sem jeito, disse ao pai:

— Ele trabalha em um clube de jogo na cidade. É o que ele diz. Vem de

quinze a vinte dias para casa e não trás nada no bolso. Fala que o que ganha

gasta tudo lá mesmo e só volta quando acaba o dinheiro que dou a ele.

Ganho alguma coisa costurando para fora.

— Você está se acabando nessa máquina de costura, filha.

— Pois é dela que eu tiro o sustento da família. Veja o pedal da minha

máquina já está gasto. O ferro já está fino, de tanto eu pôr os pés para

costurar. E ainda tenho que dar dinheiro para ele ir trabalhar.

— Que vida é essa, minha filha? Você vive sem conforto, trabalhando

na costura dia e noite sem parar. Eu fico muito triste por você e pelas

crianças.

— Eles estão bem, pai. Não fique preocupado. Todos estão estudando e

um dia eles irão me retribuir todo o meu esforço. Tenho certeza e muita fé

em Deus.

Maria queria saber de todos os irmãos. A mãe contou detalhadamente a

situação de cada um deles. Lurdes tinha se casado, José iria se casar ainda

este ano, Benvinda estava bem e Lúcio cada dia mais revoltado, mas todos

estavam bem de saúde.

A mãe contou da viagem a Aparecida, do cafezal com as pragas da

broca e passaram o dia conversando. Falou também que o pai não andava

bem de saúde, mas que não era nada de grave, pois o médico nem tinha lhe

receitado remédio. A doença do pai era só nervoso.

Foram três dias de muita conversa. Para matar a saudade, foi muito

pouco para quem estava longe e sem notícias. O genro chegou com aquela

cara-de-pau que sempre teve, cumprimentou a sogra, abraçou os filhos e

perguntou para a mulher.

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— Como você está? Tem costurado muito?

Os pais ouviram os dois conversando a noite.

— Quanto dinheiro você trouxe desta vez? A situação não está boa. O

dinheiro está curto e o que eu ganhei, gastei tudo. Você vai voltar?

— Vou sim, Maria!

— Então trate de ganhar o dinheiro para viajar. De agora em diante, eu

não vou lhe dar nem um centavo. Você não tem é vergonha. Passa tanto

tempo fora de casa e não traz nem um quilo de alimento para as crianças.

No outro dia, os pais voltaram para casa, tristes com a situação da filha,

mas ainda assim acharam que valera a pena terem ido vê-la. Márcia contou

ao marido que tinha dado uns conselhos para ela deixar de ser boazinha.

Ele não merecia a mulher que tinha.

A viagem fez muito bem para Pedro. Apesar de tudo, ele estava contente

com a atitude da filha. Sabia que ela iria dar um basta no marido. Maria

tinha falado com a mãe que ele estava arrumando uma casa para eles na

cidade. Graças aos conselhos da mãe, a filha havia tomado a decisão certa.

Maria havia prometido mandar o endereço assim que eles mudassem para o

endereço novo.

José tinha ficado sozinho, enquanto os pais estavam viajando. Havia

decidido marcar a data do seu casamento. Falou com os pais. Pedro ficou

muito contente e disse-lhe:

— Vocês vão ficar morando aqui, juntos com a gente, até fazer a casa de

vocês. Arrume seu quarto com a cama de casal. Sua mãe tem uma guardada

lá no depósito. Podem usar por alguns tempos.

José, depois de jantar, pegou sua bicicleta e foi visitar a noiva e marcar a

data do casamento. José amava Aparecida e era muito querido pela família

da noiva.

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FANTASMAS DO PASSADO

Pedro amava Márcia. Eles se conheceram ainda pequenos e foi um amor

muito grande, que venceu todas as barreiras que o destino pôs em seus

caminhos. Ele foi muito querido pela família de Márcia e os dois foram

felizes.

Parentes é Deus que nós dá e amigos a gente escolhe. Pedro sempre teve

o maior respeito pelos amigos e grande estima pelos parentes, por isso ela

era tão querido por todos.

Márcia tinha nos amigos uma outra família. Aquelas a quem ela havia

escolhido eram suas amigas, que lhe faziam companhia. Suas visitas a

deixavam com novo ânimo para enfrentar os dissabores que, no seu dia-a-

dia, apareciam. Os parentes muitas vezes a magoavam. Ela se sentia

derrotada, sem saída, porque eram parentes. Dias depois, o pessimismo de

Márcia foi anulado por um novo fato.

José foi convidar o irmão, para o seu casamento. Lúcio prometeu que

iriam todos. Conversaram normalmente. Lúcio até parecia outra pessoa.

Falaram da broca do café, do sítio que ele havia comprado, onde iria

plantar hortelã-pimenta, algodão, milho, feijão e um bom pomar. Iria

depois plantar seu café, tão logo arrendasse o sítio para uma boa família

formar a plantação. Antes ele teria que fazer uma casa para o empregado,

uma represa para criar peixes e para os amigos fazerem pescaria aos

domingos.

Pedro, ao saber da conversa dos filhos, ficou muito contente, comentou

com Márcia que Lúcio estava mudando para melhor.

— Era isso que me estava faltando. Agora eu sou completamente feliz

— disse ela.

A nora comentou que o marido iria comprar roupas novas para toda a

família e a paz havia voltado ao sítio de Pedro. Márcia se recordou da

profecia, não com desespero, mas como algo que havia ficado no passado,

enterrado pelos conselhos do padre. Ela agora respirava aliviada. A

lembrança não mais a fazia sofrer. Ela agradecia a Deus pela benção

recebida. A paz entre todos era realmente uma grande benção.

Tudo estava correndo bem, a paz trazida por Deus fazia o mundo de

Pedro e Márcia mais iluminado. O céu era mais azul, os pássaros cantavam

nos galhos das laranjeiras, o bem-te-vi os saudavam todos os dias. O sabiá

vinha comer as frutas maduras, o beija-flor os visitava todos os dias no

pequeno jardim sempre florido de Márcia, que ela cuidava com muito

carinho. Depois de tanto tempo vivendo atormentada pelos seus

pensamentos, pela profecia e pelo medo de que poderia acontecer alguma

coisa que ela não sabia o que era, ela havia acordado desse pesadelo de

muito tempo. A família unida era tudo que Márcia tinha pedido a Deus. Ela

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se recordava do passado, do engenho do pai, do quanto ela tinha

trabalhado, cortando cana ainda menina. Suas irmãs e irmãos eram tão

unidos. Uma grande saudade havia ficado desse tempo, do pai tão querido

que faleceu e da mãe nunca esquecida.

Um dia, perdida em seus afazeres, ela pensava: "eu estou sentindo um

grande vazio. É esta saudade que dói aqui em meu peito. A minha casa tão

grande ficou vazia. A vida é uma grande ilusão, assim como foram os

sonhos malucos de meu marido, nossa vida juntos, tantos anos de sonho e

realidade. Agora me sinto tão só. O meu mundo ficou vazio, sem lutas, sem

sonhos, sem esperanças. Eu não tenho mais nada a ser realizado. Pedro não

desfaz mais meus cabelos. Parece que ele se esqueceu que eu estou ao seu

lado. Ele já nem sonha mais. Pedro sonhador esqueceu de sonhar, esqueceu

o passado. Ele vive o presente agora e não pensa no futuro. Por que isto

está acontecendo comigo e com ele? Será que valeu a pena tantas lutas e

dificuldades, tanto trabalho? Sofremos juntos para criar nossos filhos.

Demos a eles toda a nossa vida e o que nos restou? Só este rosário de

preocupações."

Márcia estava voando com seus pensamentos e nem notou o filho Lúcio

olhando para ela, com um grande pacote de compras que ele havia feito.

Disse à mãe:

— Venha ver as roupas que eu comprei para toda a família. Nós vamos

todos ao casamento do José. A senhora já comprou suas roupas também?

Eu quero ver.

A mãe não acreditava que o filho estava tão entusiasmado com o

casamento do irmão. Foi correndo buscar suas roupas. Ele olhou e gostou,

muito dizendo:

— A senhora vai ficar muito bem com este vestido de seda.

Há muito tempo que ele não a tratava assim. Ela já havia esquecido do

som daquela voz.

Finalmente os preparativos para o casamento já estavam todos prontos,

assim como as roupas novas para toda a família e o terno do pai e do noivo.

Foram dias de muito trabalho e alegria.

Márcia pedia a Deus para que aquilo durasse para sempre. Estava feliz

com o casamento de José. Ele sempre fora um filho que nunca lhe dera

desgosto nem ao pai. Sempre tratara bem as irmãs e era muito querido e

estimado por elas.

Um dia, Pedro sentiu-se mal, com uma forte tontura e chamou por

Márcia pedindo:

— Traga uma xícara de chá bem quente para mim.

Ela fez o chá rapidamente e deu para o marido tomar.

— O que foi que aconteceu?

— Não foi nada. Eu me senti mal. Parece que tudo está rodando.

Márcia ficou aflita.

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— Eu vou chamar o José.

— Não chame ninguém. Vai passar logo.

— Então fique calmo e vai se deitar um pouquinho.

— Não fique preocupada, mulher! Já passou. Eu estou melhor.

— Então vai jogar cartas com seus amigos.

— Com os meus amigos Márcia? Agora você entendeu que eu não jogo

sozinho e sim com os meus amigos do passado. Traga mais biscoitos e faça

um pouco mais de chá para todos.

— Você vai jogar três-sete com eles?

— Sim, eu vou jogar. Traga uma xícara só, está bem.

— Eu faço tudo para agradar você.

— Então tome o chá comigo e me faz companhia.

Rapidamente ele desfez seus cabelos e ainda lhe fez cócegas. Márcia

arrependeu-se de seus pensamentos anteriores. Ela estava enganada a

respeito do marido.

Pensou: "ele precisa é de carinho. Quer a minha atenção e carinho. Nós

dois somos dois carentes de afeto. Nós dois esquecemos de nós.

Pedro tomou o chá e foi se deitar na rede. Não quis jogar cartas e

chamou Márcia para ficar com ele, conversando.

Ele disse:

— Como nós trabalhamos nestas terras! Aqui criamos nossos filhos,

aqui também plantamos nossos sonhos malucos, como você sempre dizia.

Márcia, você ainda acha que eles foram malucos?

— Não, Pedro, eles não foram malucos. Eles foram todos realizados e

você ainda sonha?

— Não, Márcia, eu não sonho mais. Agora eu só quero ter boa saúde, e

para você também, para nós dois juntos cuidarmos do Antônio, que não

tem boa saúde. Outro dia ele estava lá na roça e teve uma convulsão. Ele se

debateu tanto. Eu nunca tinha visto coisa igual e eu fiquei com muita pena

dele. Custou para voltar a si.

— Nós temos que ter muito cuidado com ele. Não podemos deixá-lo

sozinho por muito tempo e nem permitir que ele faça serviços com

ferramentas. Ele pode se ferir gravemente.

Depois de conversar com a mulher, Pedro sentiu-se bem melhor. Márcia

perguntou:

— Quer ir jogar cartas agora?

— Não, eu vou tirar uma soneca aqui na rede e você vai fazer um frango

caipira para o jantar. Quero com molho caipira também.

— Eu sei, e como muito alho. É como você gosta.

Márcia se abaixou para beijá-lo. Ele aproveitou para soltar seus cabelos

num gesto de carinho que ela gostava de receber do marido. Depois do

jantar ele se sentou em sua cadeira de balanço e ficou pensativo, fumando

seu cigarro preferido.

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Chegou, então, o dia tão esperado. Todos almoçaram, cada um em suas

casas, vestiram-se e lá foram todos para a cidade para assistir a cerimônia

religiosa. Após o casamento de José e Aparecida, foram comemorar

tomando uma cerveja. Os noivos iam viajar de lua-de-mel para Aparecida

do Norte. José não quisera que o pai fizesse a tradicional festa a que todos

estavam acostumados. A mãe tinha que ser poupada de tanto trabalho. Ele

fazia muito gosto de que a mãe fosse ao seu casamento. Ela não assistira a

nenhum dos casamentos das filhas e para a mãe foi uma grande alegria

assistir o casamento do filho.

Depois de uma semana, o casal voltou e José pegou firme no trabalho,

agora com mais incentivo. Tinha uma esposa e iria trabalhar ainda mais

para ter seu futuro garantido .

Ele trabalhava para o pai, cuidando da lavoura que não era pouca. No

sítio moravam ainda Lúcio e um colono. Ao todo, eram três famílias que

tocavam as lavouras do sítio de Pedro. Todos viviam em paz. Lúcio tinha

moderado a sua revolta. Não mais era ouvido xingando e nem batendo no

gato e ou no cachorro. Apesar de todo estar tranqüilo e das famílias terem

uma boa amizade entre si, Márcia vivia sempre com um pé atrás, enquanto

Pedro já não precisava mais dar ordem a José, que era um profissional da

lavoura. Seus conhecimentos eram profundos e corretos.

Havia dois meses que José estava casado e morando junto com os pais,

enquanto esperava que o pai decidisse fazer sua casa. Pedro, depois de uma

longa conversa com Márcia, decidiu que José e sua esposa ficariam

morando junto com eles.

Chamou o filho e comunicou o que tinham decidido. José, então, disse

ao pai:

— O senhor quer igualdade de tratamento da parte dos dois filhos, mas

para o outro o senhor fez a casa e para mim, não. O senhor não está sendo

justo. Eu tenho lhe dado provas da minha lealdade. Não mereço ter a minha

casa?

Pedro percebeu que ele tinha razão, mas apenas queria o filho morando

junto com eles, para ocupar os espaços vazios do casarão. Percebeu, porém,

que era um direito de José ter sua casa.

— Então eu vou mandar fazer sua casa bem perto da minha, assim não

me sentirei tão sozinho.

Foi uma conversa entre dois adultos. Pai e filho se entendiam muito bem

e não havia discórdia. Tudo era resolvido em paz e com respeito.

Quando as plantações de cereais estavam para serem colhidas, Pedro

chamou José e disse:

— O que você produzir é tudo seu.

José pensou no assunto e, mais tarde, concluiu que o pai ficaria no

prejuízo. Uma intuição pessoal que tinha lhe dizia que aquela idéia não

daria certo.

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Sua casa ficou pronta em poucos dias e o casal foi morar nela. Como

José ainda não tinha dinheiro para comprar os móveis, Aparecida pegou no

depósito uma mesa velha e duas cadeiras quebradas, a cama do casal

caindo aos pedaços e um colchão de palha, muito usado na época. Seria

temporário. Assim que fosse feita a colheita e a venda dos cereais, eles

comprariam o necessário.

José e a esposa trabalhava de sol a sol. Aparecida tinha uma grande

força de vontade. Quando começou a colheita dos cereais, eles não

perderam tempo. Trabalhavam aos domingos e feriados para não correr o

risco do tempo mudar e começar a chover.

Nesse ínterim, o colono sítio terminou a colheita e deixou o sítio. Havia

encontrado um trabalho melhor. Como Ricardo, o marido de Lurdes não

estava bem financeiramente, Pedro cedeu as terras a ele, mesmo sabendo

que ele não era bom naquele tipo de trabalho. A filha insistiu e o pai não

teve desculpas. Concordou.

Enquanto isso, José colheu os cereais, separou uma parte para os gastos

e vendeu o que sobrou. Parte do milho foi reservada para seus porcos, que

estavam na engorda, e o restante também foi vendido. O café logo estava

também todo colhido e guardado na tulha. Eles esperavam agora o preço

subir para vender.

Ricardo e a família mudaram para o sítio. Ele tocaria as terras em que o

colono trabalhara e já havia muito serviço para ser feito. Pedro vendeu o

café, recebeu o dinheiro e voltou para casa satisfeito com o negócio.

Pedro chamou José e foi acertar a venda do café, dizendo:

— Eu vou ficar com cinqüenta por cento dos lucros e você fica com os

outros cinqüenta por cento.

— O senhor está certo pai, eu concordo. É justo que tenha uma renda do

sítio.

O pai acrescentou:

— O Lúcio vai ficar com todo o café e os cereais. A partir do ano que

vem, Ricardo também vai dar a sua porcentagem de cinqüenta por cento.

— O Lúcio está cheio de dívidas — afirmou José. — É justo que seu

lucro seja total. Eu estou de pleno acordo.

Em casa José explicou à esposa o acordo feito.

— O sítio é do pai e nós cuidamos das terras — disse José. — Nossos

lucros não foram poucos. Eu estou satisfeito.

Aconteceu, porém, que o genro, quando ficou sabendo, não gostou do

acordo do sogro e disse a Pedro:

— Lúcio vai ter que dividir os lucros do café também. Eu não concordo

com o senhor.

Pedro respondeu:

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— Você entrou aqui ontem e já quer ter direitos de filho? Ponha-se no

seu lugar. Aqui você é um colono, como o outro que saiu. O que você tem

que fazer é cuidar melhor de sua lavoura e seus lucros serão bem maiores.

Pedro deu o assunto por encerrado. Estavam todos apurados no trabalho

e não podiam perder tempo. Um dos filhos de Lúcio fez uma arte na casa

do tio, apossando-se de um punhado de moedas antigas, algo que não lhe

pertencia. O tio o encontrou com o que ele tinha pego na mão e disse ao

garoto:

— Vá pôr isso onde você achou!

Lúcio ficou sabendo de uma outra maneira, contada pelo filho, e ocorreu

um grande rebuliço naquela tarde cheia de sol. Lúcio encontrou o irmão

que voltava do trabalho. Estava furioso e foi logo dizendo:

— Eu vou lhe dar uns tapas para você aprender.

José respondeu:

— Você é quem sabe. Você é grande, mas não é dois. Eu sou pequeno e

não sou pedaço. O errado é seu filho e não o meu. Você tem o dever de

corrigir o seu filho e não vir brigar comigo.

Lúcio estava louco da vida. Foi até a porta da casa do irmão e jogou o

que o filho havia retirado da casa do tio.

— Pegue suas porcarias. Ninguém precisa delas. Isto aqui para mim é

lixo e é como lixo que eu jogo em sua cara — disse, ofendendo o irmão e a

esposa com palavras pesadas.

Essa foi a gota d'água que Márcia temia. Por isso ela estivera sempre

com um pé atrás. "Coração de mãe não se enganava", dizia ela.

Pedro chegou e assistiu toda aquela cena, vendo os pertences de José

jogados no chão. Lúcio, ao ver o pai, saiu xingando o irmão e a cunhada.

Pedro recolheu os pertences do filho e entregou a José, que disse:

— Não pai, não vou pegar.

— É seu, guarde tudo — insistiu Pedro. — Eu estou lhe pedindo, faça

por mim.

— Está bem pai, eu vou guardar.

Pedro, inconformado com a cena, passou mal, com falta de ar e muito

cansaço. Seu coração disparou e ele teve de ir para a cama. Márcia estava

arrasada com o acontecido e temeu pela saúde do marido. A situação, a

partir de então, tornou-se insuportável. Benedita, esposa de Lúcio, ofendia

a cunhada sempre que a via.

Márcia voltou a se atormentar com a profecia, pensando: "será que tudo

vai acontecer? Estará escrito no meu destino? Eu tenho que tirar isso da

minha cabeça, mas está acontecendo do jeito que ela me falou. Até agora

tudo deu certo. Em meus pensamentos eu ouço sua voz, repetindo dia e

noite. Eu tenho medo, muito medo. Se eu pudesse voltar até lá e falar com

ela, pedir mais detalhes dessa profecia, eu juro que iria. Só Deus poderá

nos livrar. Eu errei em ter ido falar com ela, mas eu não pedi nada, ela foi

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logo dizendo um amontoado de coisas que me deixaram zonza. Até hoje eu

me sinto presa a essa profecia. Por mais que lute para esquecê-la, eu não

consigo. Aquelas palavras estão gravadas em minha mente. Deus, me

entrego em suas mãos. Imploro. Afaste essa sina dos meus pensamentos, do

meu caminho e dos destinos de meus filhos."

A verdade era dolorosa. Ela não estava preparada para superar a força

daquela profecia, que era mais forte do que Márcia pensava. Tinha medo de

ser derrotada. A vida tinha lhe ensinado muitas coisas que ela não tinha

aprendido na escola. As lições do mundo eram mais amenas que aquela

profecia, que a martirizava, atormentando sua alma. Para ela, era como

caminhar de olhos vendados.

Estava tão perdida em seus pensamentos, que não viu Pedro,

observando-a com uma grande ruga em sua testa. Quando ela notou a

presença do marido disse:

— Eu estou tirando um cochilo em sua cadeira de balanço.

— Você estava falando sozinha. O que está acontecendo com você? Eu

nunca a vi assim. Tem alguma coisa a mais que eu não sei? Você está

doente ou está escondendo alguma coisa muito grave, que a está deixando

assim, atormentada? Eu conheço você muito bem. Márcia, me conta o que

está se passando em sua cabeça. Você está guardando um grande segredo

neste seu coração sofrido, igual ao meu? O que a faz falar sozinha? Você

está sofrendo e não quer me contar o que é?

Pedro insistiu ao perceber que algo realmente atormentava sua esposa.

Tinha que saber a verdade.

— Ah, Márcia! Desabafa, chora, grita, quebra os pratos, joga as panelas

de comida no quintal. Faça alguma coisa, mas ponha para fora tudo que

você tem guardado ai no seu peito. Essa sua mágoa me atinge, me fere

também. Vamos conversar. Vamos resolver juntos tudo que a está

atormentando. Eu também já guardei segredos de você, mas acabei

contando tudo e fiquei bem mais aliviado. Foi como tirar um peso de

minhas costas.

Márcia começou a chorar e, entre soluços, disse ao marido:

— Eu não tenho nada para contar. Eu só estava dormindo aqui, em sua

cadeira de balanço. Talvez eu tenha sonhado ou tive uma visão do passado.

Foi só isso, acredite em mim.

Pedro, no entanto, estava decidido a descobrir a verdade.

— Eu acredito em você, mas sei também que você está escondendo a

verdade. Talvez por medo, mas isso se chama falta de confiança. Entre nós

não pode existir dúvida ou segredo. Com isso eu acabo duvidando da sua

lealdade.

— Não é segredo, Pedro! É um fantasma que me persegue, é só isso que

posso lhe dizer.

— Está bem, você não confia mais em seu marido.

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A forte pressão que Pedro fez deixou Márcia assustada.

— Não é falta de confiança, me entenda, por favor! Eu não posso lhe

dizer mais nada. E vamos parar por aqui. Eu não quero brigar com você

sem motivo.

Pedro não deu o caso por encerrado e continuou:

— Motivos tem, Márcia. Eu tenho certeza de que este fantasma do

passado está ligado ao casarão amarelo, lá do sítio do Douradão. Acertei ou

não?

— Por que essa pergunta?

— Me responda apenas sim ou não?

— E se eu não responder?

— Você vai fazer isso comigo? Sempre fomos leais um com o outro.

— Está bem, eu respondo, sim.

— Eu tenha certeza de que ela falou para você o mesmo que falou para

mim — confessou ele, fazendo-a estremecer.

— O que foi que ela disse à você? Por favor, eu preciso saber. Me conte

desde o começo.

— Está bem, eu vou contar tudo a você. Quando lá cheguei, segui um

ritual. Tirei as botas, lavei as mãos e os pés, para depois entrar na sala de

orações. Ela foi logo dizendo: "eu sei o que você quer saber. A mudança

vai acontecer, vocês vão vencer, vocês vão sofrer, nem todos os seus filhos

serão felizes. Vai nascer um outro filho, não é este que sua mulher está

esperando, ele vai nascer nas terras que você comprará. É um garoto, não

terá boa saúde, mas terá vida longa." Foi isso que ela falou para você

também?

— Foram exatamente essas palavras.

— E por que você vive pensando nessas palavras?

— Eu falei com um padre em Aparecida. Ele me disse para não pensar

mais nisso e tirar dos meus pensamentos essa profecia, mas ele disse

também que está escrito nos destinos de todos os cristãos, que ele vai pagar

uma falta da vida passada. O cristão está pagando uma dívida. Esta foi a

explicação que ele me deu sobre a profecia.

— Não devemos nos atormentar mais — disse Pedro.

— Então você sabia de tudo e nunca me disse nada?

— Você também guardou segredo.

— Sim, guardei — disse Márcia.

— Eu não dei muita importância às palavras dela. Você, além de

guardar segredo, viveu atormentada todos esses anos, sofrendo por falta de

confiança.

— Eu tinha medo de contar para você. Não sabia qual seria a sua reação

ao ficar sabendo da profecia. Ela falou tudo sem eu perguntar nada. O

mesmo aconteceu com você.

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— Vamos esquecer tudo. Já sofremos demais em acreditar nas palavras

da benzedeira. Se nós estamos devendo dívidas da vida passada, nós

teremos que pagá-las. Com dívidas não se brinca.

— Ainda bem que descobrimos a tempo, porque nós dois nada

entendemos disso — disse Márcia.

— Vamos viver em paz, pelo menos nós dois. Vamos deixar o resto

para o destino resolver e ficar de longe, olhando tudo. Se está escrito, vai

acontecer e não somos nós que vamos impedir que essa dívida seja paga.

Se dos nossos filhos nem todos serão felizes, é o destino deles e eles não

poderão mudar nada. Nós dois, com fé em Deus, venceremos.

Márcia ficou mais aliviada do peso que carregara por tantos anos.

Vivera atormentada e com medo de ouvir a palavra infeliz, carregando

como escudo a profecia, o fantasma do seu passado. Agora podia erguer a

cabeça e enfrentar o destino sem remorso, sem culpa e sem medo.

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O FIM DOS SONHOS

Pedro faleceu alguns anos mais tarde, depois de muitos aborrecimentos

com os filhos e genros. Naquela terra ele havia plantado seus sonhos e esta

foi uma das razões pela qual José não permitiu que o sítio fosse vendido, na

partilha. Em cada centímetro de terra onde Pedro pisou, ali estavam seus

sonhos. Eles nasceram e cresceram em cada um pé de café florido.

Márcia viveu até os oitenta e cinco anos, mas seu resto de vida foi

atribulado. Ela colheu os frutos dos sonhos do marido, pois Pedro não

viveu para desfrutar de seus bens. Sempre viveu humildemente e sem

nenhum conforto. Foi feliz sem luxo e sem vaidade.

Márcia conservou suas raízes. Ela sempre teve orgulho de ter vivido na

roça. Ser caipira para ela era um cartão de visitas. Foi na infância que ela

aprendera a amar suas raízes. Sua vida foi dividida em muitas fases, mas a

infância foi a mais marcante para a formação de suas raízes. Menina pobre,

trabalhou no engenho de açúcar e aguardente do pai, recebendo pequenos

salários, fazendo serviços em seus dias de folga para as vizinhas.

Cortando canas e trabalhando no engenho, ela ajudava o pai com uma

parte do ganho e guardava o restante. Sua mocidade foi curta. Quando se

casou com Pedro, tinha dezesseis anos de idade. Aos dezessete, ela teve sua

primeira filha, que veio a falecer com sete dias de vida. Márcia não tinha

experiência nem instrução, mas sua grande força de vontade, depois que

Pedro faleceu, fez com que ela aprendesse a ler.

Quando Márcia conhecera Pedro, ela tinha dez anos de idade. Enquanto

meninas da sua idade brincavam com bonecas, ela já trabalhava no

engenho. Apesar do pai ser o dono e ter um pequena fazenda, eram os

filhos que faziam todo o serviço, como cortar a cana e fabricar a

aguardente. O pai dela era mineiro de nascimento e paulista de coração, de

família numerosa. Todos juntos tocavam o engenho. Márcia nunca foi à

escola e nem suas irmãs. Dizia o pai:

— Filha minha nasceu para ser dona de casa e cuidar dos filhos e do

marido.

Ela sentiu na pele a falta de saber ler e escrever, por isso foi à luta,

aprendeu a ler com seus próprios esforços e aprendeu a escrever seu nome.

Para ela foi uma grande vitória, ninguém a obrigaria a assinar seu nome

sem antes ter lido o que estava escrito.

Dos filhos de Márcia todos tinham o primeiro grau. Foi o que ela pôde

dar aos filhos, pois naquela época não era fácil freqüentar uma escola

morando no sítio. Ela dizia:

— O saber não ocupa lugar. Eu não vou deixá-los sem aprender o

básico. No futuro vocês me agradecerão.

Márcia libertou-se da profecia. Dizia ela:

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— O que tem que acontecer, acontece, dependendo ou não de

aceitarmos. Só Deus tem o poder de pôr ou tirar dos nossos destinos o que

teremos de passar. As dívidas das vidas passadas, eu tenho certeza de que

elas foram pagas por mim e por Pedro.

Gostava de puxar da memória fatos antigos de sua infância, do seu

vestido branco com bolinhas vermelhas. Quantos anos ele ficou guardado

no fundo do baú, junto com a coroa de flores que Pedro havia feito para ela

e colocado em sua cabeça, dizendo:

— Quando eu crescer, vou me casar com você.

Ela jogara a coroa no chão e mais tarde voltara para apanhá-la e

escondê-la no baú por muitos anos, enrolado no seu vestido branco de

bolinhas vermelhas. A coroa de flores de São João era a sua relíquia, eram

as suas doces lembranças, assim como o vestido de noiva branco, feito por

sua santa mãe. Era longo, com sete saias, o que o deixava bem bufante. O

corpete era bem apertadinho em seu corpo e as mangas bem franzidas,

dando um toque especial. O longo véu vinha preso na grinalda de flores de

laranjeiras. O buquê era de flores naturais, colhidas no campo, dando um

contraste especial e eram suavemente coloridas e com um leve perfume.

Essas doces lembranças vinham como uma flor desabrochando, abrindo

as portas do passado. Lá no fundo do baú estavam as relíquias de Márcia,

trazendo de volta grandes emoções, enchendo o seu mundo, que ela

pensava estar vazio. As recordações devolviam a ela um passado

adormecido, que vinha preencher aquele vazio em seu coração. A única

coisa que o baú não guardou foram os sonhos de Pedro. Esses ela guardou

para sempre no seu coração.

FIM