Os Tempos Hipermodernos - Gilles Lipovetsky

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Esse é a parte do livro: Os tempos hipermodernos de autoria de Lipovetsky. Para começar a sair do pós-modernismo.

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OS TEMPOS HIPERMODERNOS

TEMPO CONTRA TEMPO, OU A SOCIEDADE HIPERMODERNA Gilles Lipovetsky A partir do final dos anos 70, a noo de ps-modernidade fez sua entrada no palco intelectual com o fim de qualificar o novo estado cultural das sociedades desenvolvidas. Tendo surgido inicialmente no discurso arquitetnico (em reao ao estilo internacional), ela bem depressa foi mobilizada para designar ora o abalo dos alicerces absolutos da racionalidade e o fracasso das grandes ideologias da histria, ora a poderosa dinmica de individualizao e de pluralizao de nossas sociedades, Para alm das diversas interpretaes propostas, imps-se a idia de que estvamos diante de uma sociedade mais diversa, mais facultativa, menos carregada de expectativas em relao ao futuro. s vises entusisticas do progresso histrico sucediam-se horizontes mais curtos, uma temporalidade dominada pelo precrio e pelo efmero. Confundindo-se com a derrocada das construes voluntaristas do futuro e o concomitante triunfo das normas consumistas centradas na vida presente, o perodo ps-moderno indicava o advento de uma temporalidade social Indita, marcada pela primazia do aqui-agora. O neologismo ps-moderno tinha um mrito: salientar uma mudana de direo, uma reorganizao em profundidade do modo de funcionamento social e cultural das sociedades democrticas avanadas. Rpida expanso do consumo e da comunicao de massa; enfraquecimento das normas autoritrias e disciplinares; surto de individualizao; consagrao do hedonismo e do psicologismo; perda da f no futuro revolucionrio; descontentamento com as paixes polticas e as militncias era mesmo preciso dar um nome enorme transformao que se desenrolava no palco das sociedades abastadas, livres do peso das grandes utopias futuristas da primeira modernidade. Ao mesmo tempo, porm, a expresso ps-moderno era ambgua, desajeitada, para no dizer vaga. Isso porque era evidentemente uma modernidade de novo gnero a que tomava corpo, e no uma simples superao daquela anterior. Donde as reticncias legtimas que se manifestaram a respeito do prefixo ps. E acrescente-se isto! H vinte anos, o conceito de ps-moderno dava oxignio, sugeria o novo, uma bifurcao maior; hoje, entretanto, est um tanto desusado. O ciclo ps-moderno se deu sob o signo da descompresso cool do social; agora, porm, temos a sensao de que os tempos voltam a endurecer-se, cobertos que esto de nuvens escuras. Tendo-se vivido um breve momento de reduo das presses e imposies sociais, eis que elas reaparecem em primeiro plano, nem que seja com novos traos. No momento em que triunfam a tecnologia gentica, a globalizao liberal e os direitos humanos, o rtulo ps-moderno j ganhou rugas, tendo esgotado sua capacidade de exprimir o mundo que se anuncia. O ps de ps-moderno ainda dirigia o olhar para um passado que se decretara morto; fazia pensar numa extino sem determinar o que nos tornvamos, como se se tratasse de preservar uma liberdade nova, conquistada no rastro da dissoluo dos enquadramentos sociais, polticos e ideolgicos. Donde seu sucesso. Essa poca terminou. Hipercapitalismo, hiperclasse, hiperpotncia, hiperterrorismo, hiperindividualismo, hipermercado, hipertexto - o que mais no hiper? O que mais no expe uma modernidade elevada potncia superlativa? Ao clima de eplogo segue-se uma sensao de fuga para adiante, de

modernizao desenfreada, feita de mercantilizao proliferativa, de desregulamentao econmica, de mpeto tcnico-cientfico, cujos efeitos so to carregados de perigos quanto de promessas. Tudo foi muito rpido: a coruja de Minerva anunciava o nascimento do psmoderno no momento mesmo em que se esboava a hipermodernizao do mundo. Longe de decretar-se o bito da modernidade, assiste-se a seu remate, concretizando-se no liberalismo globalizado, na mercantilizao quase generalizada dos modos de vida, na explorao da razo instrumental at a "morte" desta, numa individualizao galopante. At ento, a modernidade funcionava enquadrada ou entravada por todo um conjunto de contrapesos, contra-modelos e contra-valores. O esprito de tradio perdurava em diversos grupos sociais: a diviso dos papis sexuais permanecia estruturalmente desigual; a Igreja conservava forte ascendncia sobre as conscincias; os partidos revolucionrios prometiam outra sociedade, liberta do capitalismo e da luta de classes; o ideal de Nao legitimava o sacrifcio supremo dos indivduos; o Estado administrava numerosas atividades da vida econmica. No estamos mais naquele mundo. A sociedade que se apresenta aquela na qual as foras de oposio modernidade democrtica, liberal e individualista no so mais estruturantes; na qual periclitaram os grandes objetivos alternativos; na qual a-modernizao no mais encontra resistncias organizacionais e ideolgicas de fundo. Nem todos os elementos pr-modernos se volatizaram, mas mesmo eles funcionam segundo uma lgica moderna, desinstitucionalizada, sem regulao. At as classes e as culturas de classes se toldam em benefcio do princpio da individualidade autnoma. O Estado recua, a religio e a famlia se privatizam, a sociedade de mercado se impe: para disputa, resta apenas o culto concorrncia econmica e democrtica, a ambio tcnica, os direitos do indivduo. Eleva-se uma segunda modernidade, desregulamentadora e globalizada, sem contrrios, absolutamente moderna, alicerando-se essencialmente em trs axiomas constitutivos da prpria modernidade anterior! o mercado, a eficincia tcnica, o indivduo. Tnhamos uma modernidade limitada; agora, chegado o tempo da modernidade consumada. Nesse contexto, as esferas mais diversas so o toais de uma escalada aos extremos, entregues a uma dinmica ilimitada, a uma espiral hiperblica. Assim, testemunha-se um enorme inchao das atividades nas finanas e nas Bolsas; uma acelerao do ritmo das operaes econmicas, doravante funcionando em tempo real; uma exploso fenomenal dos volumes de capital em circulao no planeta. J faz tempo que a sociedade de consumo se exibe sob o signo do excesso, da profuso de mercadorias; pois agora isso se exacerbou com os hipermercados e shopping centers, cada vez mais gigantescos, que oferecem uma pletora de produtos, marcas e servios. Cada domnio apresenta uma vertente excrescente, desmesurada, "sem limites". Prova disso a tecnologia e suas transformaes vertiginosas nos referenciais sobre a morte, a alimentao ou a procriao. Mostram-no tambm as imagens do corpo no hiper-realismo porn; a televiso e seus espetculos que encenam a transparncia total; a galxia Internet e seu dilvio de fluxos numricos (milhes de sites, bilhes de pginas, trilhes de caracteres, que dobram a cada ano); o turismo e suas multides em frias; as aglomeraes urbanas e suas megalpoles superpovoadas, asfixiadas, tentaculares. Para lutar contra o terrorismo e a criminalidade, nas ruas, nos shopping centers, nos transportes coletivos, nas empresas, j se instalam milhes de cmeras, meios eletrnicos de vigilncia e identificao dos cidados: substituindo-se antiga sociedade disciplinar-totalitria, a sociedade da hiper-vigilncia est a postos. A escalada paroxstica do "sempre mais" se imiscui em todas as esferas do conjunto coletivo. At os comportamentos individuais so pegos na engrenagem do extremo, do que so prova o frenesi consumista, o doping, os esportes radicais, os assassinos em srie, as bulimias

e anorexias, a obesidade, as compulses e vcios. Delineiam-se duas tendncias contraditrias. De um lado, os indivduos, mais do que nunca, cuidam do corpo, so fanticos por higiene e sade, obedecem s determinaes mdicas e sanitrias. De outro lado, proliferam as patologias individuais, o consumo anmico, a anarquia comportamental. O hipercapitalismo se faz acompanhar de um hiperindividualismo distanciado, regulador de si mesmo, mas ora prudente e calculista, ora desregrado, desequilibrado e catico. No universo funcional da tcnica, acumulam-se os comportamentos disfuncionais. O hiperindividualismo coincide no apenas com a internalizao do modelo do homo oeconomicus que persegue a maximizao de seus ganhos na maioria das esferas da vida (escola, sexualidade, procriao, religio, poltica, sindicalismo), mas tambm com a desestruturao de antigas formas de regulao social dos comportamentos, junto a uma mar montante de patologias, distrbios e excessos comportamentais. Por meio de suas operaes de normatizao tcnica e desligao social, a era hiper-moderna produz num s movimento a ordem e a desordem, a independncia e a dependncia subjetiva, a moderao e a imoderao. A primeira modernidade era extrema por causa do ideolgico-poltico; a que chega o aqum do poltico, pela via da tecnologia, da mdia, da economia, do urbanismo, do consumo, das patologias individuais. Um pouco por toda a parte, os processos hiperblicos e subpolticos compem a nova psicologia das democracias liberais. Nem tudo funciona na medida do excesso, mas, de uma maneira de ou outra, nada poupado pelas lgicas do extremo. Tudo se passa como se tivssemos ido da era do ps para a era do hiper. Nasce uma nova sociedade moderna. Trata-se no mais de sair do mundo da tradio para aceder racionalidade moderna, e sim de modernizar a prpria modernidade, racionalizar a racionalizao - ou seja, na realidade destruir os "arcasmos" e as rotinas burocrticas, pr fim rigidez institucional e aos entraves protecionistas, rebocar, privatizar, estimular a concorrncia. O voluntarismo do "futuro radiante" foi sucedido pelo ativismo gerencial, uma exaltao da mudana, da reforma, da adaptao, desprovida tanto de um horizonte de esperanas quanto de uma viso grandiosa da histria. Por toda parte, a nfase na obrigao do movimento, a hiper-mudana sem o peso de qualquer viso utpica, ditada pelo imperativo da eficincia e pela necessidade da sobrevivncia. Na hipermodernidade, no h escolha, no h alternativa, seno evoluir, acelerar para no ser ultrapassado pela "evoluo": o culto da modernizao tcnica prevaleceu sobre a glorificao dos fins e dos ideais. Quanto menos o futuro previsvel, mais ele precisa ser mutvel, flexvel, reativo, permanentemente pronto a mudar, supermoderno, mais moderno que os modernos dos tempos hericos. A mitologia da ruptura radical foi substituda pela cultura do mais rpido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovao. Resta saber se, na realidade, isso no significa modernizao cega, niilismo tcnico-mercantil, processo que transforma a vida em algo sem propsito e sem sentido. A modernidade do segundo tipo aquela que, reconciliada com seus princpios de base (a democracia, os direitos humanos, o mercado), no mais tem contra-modelo crvel e no pra de reciclar em sua ordem os elementos pr-modernos que outrora eram algo a erradicar. A modernidade da qual estamos saindo era negadora; a super-modernidade integradora. No mais a destruio do passado, e sim sua reintegrao, sua reformulao no quadro das lgicas modernas do mercado, do consumo e da individualidade. Quando at o no-moderno revela a primazia do eu e funciona segundo um processo ps-tradicional, quando a cultura do passado no mais obstculo modernizao individualista e mercantil, surge uma fase nova da modernidade. Do ps ao hiper: a ps-modernidade no ter sido mais que um estgio de transio, um momento de curta durao. E esteja no mais o nosso.

Tantas convulses nos convidam a examinar um pouco mais de perto o regime do tempo social que governa nossa poca. O passado ressurge. As inquietaes com o futuro substituem a mstica do progresso. Sob efeito do desenvolvimento dos mercados financeiros, das tcnicas eletrnicas de informao, dos costumes individualistas e do tempo livre, o presente assume importncia crescente. Por toda a parte, as operaes e os intercmbios se aceleram; o tempo escasso e se torna um problema, o qual se impe no centro de novos conflitos sociais. Horrio flexvel, tempo livre, tempo dos jovens, tempo da terceira e da quarta idade: a hipermodernidade multiplicou as temporalidades divergentes. s desregulamentaes do neocapitalismo corresponde uma imensa desregulao e individualizao do tempo. O culto ao presente se manifesta com fora aumentada, mas quais so seus contornos exatos e que vnculos ele mantm com os outros eixos temporais? De que maneira se articula nesse contexto a relao com o futuro e com o passado? Convm reabrir a questo do tempo social, pois este merece mais do que nunca uma inquirio. Superar a temtica ps-moderna, reconceitualizar a organizao temporal que se apresenta - eis o propsito deste texto. As duas eras do presente Jean-Franois Lyotard foi um dos primeiros a notar o vnculo entre a condio psmoderna e a temporalidade presentista. Perda de credibilidade dos sistemas progressistas; primazia das normas da eficincia; mercantilizao do saber; multiplicao dos contratos temporrios no cotidiano - o que significa tudo isso seno que o centro de gravidade temporal de nossas sociedades se deslocou do futuro para o presente? A poca dita ps-moderna, definida pelo esgotamento das doutrinas emancipa-trias e pela ascenso de um tipo de legitimao centrada na eficincia, faz-se acompanhar cio predomnio do aqui-agora. Perguntemos: quais as foras socioistricas que provocaram a agonia das vises triunfalistas acerca do futuro? Sejamos claros: os insucessos ou as catstrofes da modernidade polticoeconmica (as duas guerras mundiais, os totalitarismos, o Gulag, o Holocausto, as crises do capitalismo, o abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo) jamais teriam, por si ss, causado a runa das "metanarrativas" se novos referenciais no houvessem alcanado xito macio em remodelar as mentalidades, em oferecer novas perspectivas para as existncias. As desiluses, as decepes polticas, no explicam tudo: houve simultaneamente novas paixes, novos sonhos, novas sedues que se manifestaram dia aps dia, sem grandiloqncia, verdade, mas onipresentes e afetando o maior nmero de pessoas. Eis o fenmeno que nos modificou: com a revoluo do cotidiano, com as profundas convulses nas aspiraes e nos modos de vida estimuladas pelo ltimo meio sculo, que surge a consagrao do presente. No cerne do novo arranjo do regime do tempo social, temos: (I) a passagem do capitalismo de produo para uma economia de consumo e de comunicao de massa; e (2) a substituio de uma sociedade rigorstico-disciplinar por uma sociedade-moda completamente reestruturada pelas tcnicas do efmero, da renovao e da seduo permanentes. Dos objetos industriais ao cio, dos esportes aos passatempos, da publicidade informao, da higiene educao, da beleza alimentao, em toda a parte se exibem tanto a obsolescncia acelerada dos modelos e produtos ofertados quanto os mecanismos multiformes da seduo (novidade, hiperescolha, self-service, mais bem-estar, humor, entretenimento, desvelo, erotismo, viagens, lazeres). O universo do consumo e da comunicao de massa aparece como um sonho jubiloso. Um mundo de seduo e de movimento incessante cujo modelo no outro seno o sistema da moda. Tem-se no mais a repetio dos modelos do passado (como nas sociedades tradicionais) , e sim o exato oposto, a novidade e a tentao sistemticas como regra e como organizao do presente. Ao permear setores cada vez mais

amplos da vida coletiva, a forma-moda generalizada instituiu o eixo do presente como temporalidade socialmente prevalecente. Enquanto o princpio-moda "Tudo o que novo apraz" se impe como rei, a neofilia se afirma como paixo cotidiana e geral. Instalaram-se sociedades reestruturadas pela lgica e pela prpria temporalidade da moda; em outras palavras, um presente que substitui a ao coletiva pelas felicidades privadas, a tradio pelo movimento, as esperanas do futuro pelo xtase do presente sempre novo. Nasce toda uma cultura hedonista e psicologista que incita satisfao imediata das necessidades, estimula a urgncia dos prazeres, enaltece o florescimento pessoal, coloca no pedestal o paraso do bem-estar, do conforto e do lazer. Consumir sem esperar; viajar; divertir-se; no rertunciar a nada: as polticas do futuro radiante foram sucedidas pelo consumo como promessa de um futuro eufrico. A primazia do presente se instalou menos pela ausncia (de sentido, de valor, de projeto histrico) que pelo excesso (de bens, de imagens, de solicitaes hedonistas). Foi o poder dos dispositivos sub-polticos do consumismo e da moda generalizada o que provocou a derrota do herosmo ideolgico-poltico da modernidade. O coroamento do presente se iniciou muito antes que se houvessem enfraquecido as razes para ter esperana num futuro melhor; esse coroamento precedeu em vrias dcadas a queda do Muro de Berlim, o universo acelerado do ciberespao e o liberalismo globalizado. A consagrao social do presente consumista se fez acompanhar de uma pletora de acusaes lanadas contra a atomizao social e a despolitizao; contra a fabricao de falsas necessidades; contra o conformismo e a passividade consumistas; contra a adoo de engenhocas em todas as esferas da vida, num processo sem propsito e sem sentido. Ademais, desde os anos 70, a temtica dos "estragos do progresso" tem repercusso significativa. Todas essas crticas, porm, no impediram de modo algum o mpeto daquilo que poderamos muito bem denominar um otimismo pessoal. No momento em que ressoavam as derradeiras encantaes revolucionrias carregadas de esperanas futuristas, emergia a absolutizao do presente imediato, glorificando a autenticidade subjetiva e a espontaneidade dos desejos, a cultura do "tudo j", que sacraliza o gozo sem proibies, sem preocupaes com o amanh. Enquanto o maio de 68 surgiu como uma revolta sem objetivo futuro, anti-autoritria e libertria, os anos da liberao dos costumes substituram o engajamento pela festa, a histria herica pelas "mquinas desejantes", tudo se passando como se o presente houvesse conseguido canalizar todas as paixes e sonhos. O desemprego ainda era suportvel, as inquietaes com o futuro tinham ento menos peso que os desejos de liberar e hedonizar o presente. Os "trinta anos gloriosos",1 o Estado do bem-estar social, a mitologia do consumo, a contracultura, a emancipao dos costumes, a revoluo sexual, todos esses fenmenos conseguiram remover o sentido do trgico histrico ao instaurarem uma conscincia mais otimista que pessimista, um Zeitgeist dominado pela despreocupao com o futuro, compondo um carpediem simultaneamente contestador e consumista. Mas isso j pgina virada. A partir dos anos 80 e (sobretudo) 90, instalou-se um presentismo de segunda gerao, subjacente globalizao neoliberal e revoluo informtica. Essas duas sries de fenmenos se conjugam para comprimir o espao-tempo, elevando a voltagem da lgica da brevidade. De um lado, a mdia eletrnica e informtica possibilita a informao e os intercmbios em 'tempo real, criando uma sensao de simultaneidade e de imediatez que desvaloriza sempre mais as formas de espera e de lentido. De outro lado, a ascendncia crescente do mercado e do capitalismo financeiro ps em xeque1

Os anos de 1945 a 1973, ou ls Trente Glorieuses, assim chamados porque, na Frana e nos outros pases desenvolvidos, corresponderam a um perodo de expanso indita da renda e da qualidade de vida. (N.T.)

as vises estatais de longo prazo em favor do desempenho a curto prazo, da circulao acelerada dos capitais em escala global, das transaes econmicas em ciclos cada vez mais rpidos. Por toda a parte, as palavras-chaves das organizaes so flexibilidade, rentabilidade, justin time, "concorrncia temporal", atraso-zero - tantas orientaes que so testemunho de uma modernizao exacerbada que contrai o tempo numa lgica urgentista. Se a sociedade neoliberal e informatizada no criou a mania do presente, no h dvida de que ela contribuiu para a culminncia disso ao interferir nas escalas de tempo, intensificando nossa vontade de libertar-nos das limitaes do espao-tempo. Mais: tal reorganizao da vida econmica no deixou de ter conseqncias dramticas para categorias inteiras da populao, com o "turbo-capitalismo" e a prioridade dada rentabilidade imediata acarretando as redues macias de quadros funcionais, o emprego precrio, a ameaa maior de desemprego. O Zeitgeist predominantemente frvolo foi substitudo pelo tempo do risco e da incerteza. Viveu-se certa despreocupao com o futuro mas agora na insegurana que, cada vez mais, vive-se o presente. O ambiente da civilizao do efmero fez mudar o tom emocional. A sensao de insegurana invadiu os espritos; a sade se impe como obsesso das massas; o terrorismo, as catstrofes, as epidemias so regularmente notcia de primeira pgina. As lutas sociais e os discursos crticos no mais oferecem a perspectiva de construir utopias e superar a dominao. S se fala de proteo, segurana, defesa das conquistas sociais, urgncia humanitria, preservao do planeta. Em resumo, de limitar os estragos. O clima do primeiro presentismo liberacionista e otimista, marcado pela frivolidade, desapareceu em favor de uma exigncia generalizada de proteo. O momento denominado ps-moderno coincidiu com o movimento de emancipao dos indivduos em face dos papis sociais e das autoridades institucionais tradicionais, em face das limitaes impostas pela filiao a este ou aquele grupo e em face dos objetivos distantes; aquele momento indissocivel do estabelecimento de normas sociais mais flexveis, mais diversas, e da ampliao da gama de opes pessoais. Disso resultou um sentimento de "descontrao", de autonomia e de abertura para as existncias individuais. Sinnimo de desencantamento com os grandes projetos coletivos, o parntese ps-moderno ficou todavia envolto numa nova forma de seduo, ligada individualizao das condies de vida, ao culto do eu e das felicidades privadas. J no estamos mais nessa fase: eis agora o tempo do desencanto com a prpria ps-modernidade, da desmistificao da vida no presente, confrontada que est com a escalada das inseguranas. O alvio substitudo pelo fardo, o hedonismo recua ante os temores, as sujeies do presente se mostram mais fortes que a abertura de possibilidades acarretada pela individualizao da sociedade. De um lado, a sociedade-moda no pra de instigar aos gozos j reduzidos do consumo, do lazer e do bemestar. De outro, a vida fica menos frvola, mais estressante, mais apreensiva. A tomada das existncias pela insegurana suplanta a despreocupao "ps-moderna". E com os traos de um composto paradoxal de frivolidade e ansiedade, de euforia e vulnerabilidade, que se desenha a modernidade do segundo tipo. Nesse contexto, o rtulo ps-moderno, que antes anunciava um nascimento, tornou-se um vestgio do passado, um lugar da memria. Os novos hbitos do futuro Ser que o eixo do presente tem excessivo poder na economia temporal de uma poca? Disso h pouca dvida, na era do capitalismo financeiro e da precariedade salarial, da democracia de opinio, da Internet e do "Tudo descartvel". Mas como encarar o fato? Ser que, conforme sugerem alguns, o sistema temporal prevalecente equivale a um "presente absoluto", fechado, encerrado em si mesmo, separado do passado e do futuro? Ser que o

indivduo contemporneo vive realmente num estado de "imponderabilidade temporal", confinado numa imediatez esvaziada de qualquer projeto e herana? Ser que ele se confunde com o homem presente, transformado em estrangeiro no tempo, mergulhado apenas no tempo da urgncia e da instantaneidade? Ser que a acelerao generalizada, o frenesi do consumo, o retraimento das tradies e utopias teriam conseguido criar a civilizao do "presente perptuo", sem passado e sem futuro, do qual falava George Orwell? Essas idias expressam uma verdade apenas parcial. Os fluxos econmicos de curto prazo, o insucesso das certezas progressistas, a derrocada do poder regulador das tradies - todos esses fenmenos presentistas so indiscutveis. Parece-me, porm, que eles no nos autorizam a diagnosticar a irrupo de uma cultura do "presente eterno" ou "auto-suficiente". Tal conceitualizao deixa passar excessivamente em branco as tenses paradoxais que animam o regime do tempo na hipermodernidade. Na verdade, no ficamos rfos nem do passado nem do futuro, pois as relaes com essas coordenadas adquirem nova relevncia medida que o presente amplia seu domnio. Nada de grau zero da temporalidade, de um presente "auto-referente" feito de indiferena radical tanto ao antes quanto ao depois: o presentismo de segundo tipo que nos rege no mais ps-moderno nem autrcico; ele no pra de abrir-se a outras coisas alm de si mesmo. Confiana e futuro Ningum duvida de que a poca marcada pelos temores da tecno-cincia e pela decomposio das utopias polticas aquela da "crise do futuro". Nada mais de f num futuro necessariamente melhor que o presente; nada mais de espera pelo combate final e pela Cidade Radiosa: a absolutizao do porvir histrico foi sucedida pela inquietao, pela pane das representaes do futuro, pelo eclipse da idia de progresso. Mas, apesar disso, a pgina do progresso est muito longe de ter sido virada de vez. Se a mitologia do progresso contnuo e necessrio est caduca, nem por isso se parou de esperar e acreditar nos "milagres da cincia" - a idia de aprimoramento da condio humana pelas aplicaes do saber cientfico continua a fazer sentido. Simplesmente, tornou-se incerta e ambivalente a relao com o progresso, esse ltimo estando associado tanto promessa de um mundo melhor quanto ameaa de catstrofes em cadeia. Assistimos no ao fim de toda crena no progresso, mas ao surgimento de uma idia ps-religiosa do progresso, ou seja, de um porvir indeterminado e problemtico um futuro hiper-moderno. As sociedades modernas se constituram mediante uma imensa "inverso do tempo" que instituiu a supremacia do futuro sobre o passado. Mas essa temporalidade dominante nem por isso deixou de prolongar em forma laicizada crenas e esquemas mentais herdados do esprito religioso (avano inevitvel rumo felicidade e paz, utopia do homem novo, classe redentora, sociedade sem diviso, esprito sacrificial). Hoje, contudo, todas essas "religies seculares" portadoras de esperanas escatolgicas esto mortas. Nesse sentido, a "ausncia de futuro" , ou o estreitamento do horizonte temporal que subjaz sociedade hipermoderna, deve ser considerada uma laicizao das representaes modernas do tempo, um processo de desencantamento ou modernizao da prpria conscincia temporal moderna. A decadncia do culto mecnico ao progresso confunde-se no com o "presente absoluto", mas com o faturo puro, a construir-se sem garantias, sem caminhos traados de antemo, sem nenhuma lei implacvel acerca do porvir. Alcanou-se uma etapa nova na emancipao em face da tutela do elemento religioso: pice da modernidade, essa etapa sinnimo de hipermodernizao da relao com o tempo histrico. Nada de runa da fora do futuro: essa ltima simplesmente no mais ideolgico-poltica, estando agora contida na dinmica tcnica e cientfica. Quanto mais a poca se organiza no culto democrtico erigido num

absoluto de novo tipo, mais os laboratrios concebem um futuro dessemelhante e trabalham para produzir um universo de fico cientfica, at mais inacreditvel que esta. Quanto menos se tem uma viso teleolgica do futuro, mais ele se presta inveno hiper-realista, com o binmio cincia-tcnica ambicionando explorar o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, remodelar a vida, gerar mutantes, oferecer um simulacro de imortalidade, ressuscitar espcies desaparecidas, programar o futuro gentico. Nunca antes a humanidade lanou to grande desafio ao homem e ao espao-tempo. Embora triunfe o tempo breve da economia e da mdia, o fato que nossas sociedades continuam voltadas para o futuro, menos romntico e paradoxalmente mais revolucionrio, pois se dedica a tornar tecnicamente possvel o impossvel. A impotncia para imaginar o futuro s aumenta em conjunto com a sobre-potncia tcnico-cientfica para transformar radicalmente o porvir: a febre da brevidade apenas uma das facetas da civilizao futurista hipermoderna. Enquanto o mercado estende sua "ditadura" do curto prazo, as preocupaes relativas ao porvir planetrio e aos riscos ambientais assumem posio primordial no debate coletivo. Ante as ameaas da poluio atmosfrica, da mudana climtica, da eroso da biodiversidade, da contaminao dos solos, afirmam-se as idias de "desenvolvimento sustentvel" e de ecologia industrial, com o encargo de transmitir um ambiente vivel s geraes que nos sucederem. Multiplicam-se igualmente os modelos de simulao de cataclismos, as anlises de risco em escala nacional e planetria, os clculos probabilsticos destinados a discernir, avaliar e controlar os perigos. Morrem as utopias coletivas, mas intensificam-se as atitudes pragmticas de previso e preveno tcnicocientficas. Se o eixo do presente dominante, ele no absoluto: a cultura de preveno e a "tica do futuro" do nova vida aos imperativos da posteridade menos ou mais distante. Sem dvida, os interesses econmicos imediatos tm precedncia sobre a ateno para com as geraes futuras. Durante esse espetculo de protestos e de chamamentos virtuosos, a destruio do meio ambiente continua: o mximo de apelos responsabilidade de todos, o mnimo de aes pblicas. Mas o fato que as preocupaes referentes ao futuro planetrio esto bem vivas; elas habitam e alertam permanentemente a conscincia do presente, alimentando as controvrsias pblicas, solicitando medidas de proteo para o patrimnio natural. O presente total da rentabilidade imediata pode dominar, mas no continuar assim indefinidamente. Mesmo que o eco-desenvolvimento ainda esteja longe de dispor dos meios tcnicos e sistemas reguladores dos quais necessita, eleja comea, aqui e ali, a alterar certas prticas. No amanh, essa dinmica deve ampliar-se. E pouco provvel que a conscincia e as limitaes de longo prazo no produzam efeito; elas transformaro tanto as prticas presentistas quanto os modos de vida e de desenvolvimento. Prepara-se um neofuturismo que no se assemelhar ao futurismo revolucionrio imbudo de esprito sacrificial: sob os auspcios da reconciliao com as normas do presente (emprego, rentabilidade econmica, consumo, bem-estar) que se procura a nova orientao para o futuro. A prpria dinmica econmica no se esgota no presente puro. Ela no pra de acarretar uma relao fundamental com o futuro, na medida em que se baseia na rpida expanso do consumo e do investimento, os quais tm necessidade de que haja confiana no porvir. O otimismo progressista no mais admissvel, mas isso no significa o desaparecimento de expectativas positivas em relao ao amanh. A. Giddens salientou como a modernidade estava ligada confiana nos sistemas abstratos, ou "sistemas peritos"; acrescentemos que ela requer a confiana dos agentes econmicos no futuro como condio para o desenvolvimento da atividade produtiva. Essa confiana dos consumidores, dos investidores, dos empresrios, sabe-se, voltil e agora regularmente medida pelas pesquisas de opinio. Na hipermodernidade, a f no progresso foi substituda no pela desesperana nem pelo niilismo, mas por uma confiana instvel, oscilante, varivel em funo dos acontecimentos e das circunstncias. Motor da dinmica dos investimentos e do consumo, o otimismo em face do

futuro se reduziu - mas no est morto. Assim como o resto, a sensao de confiana se desinstitucionalizou, desregulamentou-se, s manifestando-se na forma de variaes extremas. O declnio do carpe diem Este ponto j foi evocado mais acima: instalou-se um novo clima social e cultural, a cada dia distanciando-se um pouco mais da tranqilidade descontrada dos anos psmodernos. Com a precarizao do emprego e o desemprego persistente, crescem os sentimentos de vulnerabilidade, a insegurana profissional e material, o medo da desvalorizao dos diplomas, as atividades subqualificadas, a degradao da vida social. Os mais jovens temem no achar lugar no universo do trabalho; os mais velhos, perder definitivamente o deles. Donde a necessidade de nuanar muito perceptivelmente os diagnsticos que se fazem de uma cultura neodionisaca que se basearia na preocupao exclusivamente presentista e no desejo de gozar o aqui-agora. Na realidade, o que caracteriza o Zeitgeist menos um carpe diem que a inquietao diante de um futuro dominado por incertezas e riscos. Nesse contexto, viver sem olhar para o futuro significa no tanto conquistar uma vida independente, livre dos grilhes coletivos, quanto sofrer as restries impostas pela desestruturao do mercado de trabalho. E bem verdade que a febre consumista das satisfaes imediatas e as aspiraes ldico-hedonistas no desapareceram de modo algum, pois elas se desencadeiam mais do que nunca; esto, contudo, envoltas por um halo de temores e inquietaes. A despreocupao otimista que acompanhou os anos do perodo 194573 e do ciclo da liberao do corpo mera lembrana: a hipermodernidade indica menos o foco no instante que o declnio do presentismo em face de um futuro que se tornou incerto e precrio. Hoje, os jovens muito cedo se mostram apreensivos com a escolha da instruo e das carreiras que ela oferece. A espada de Dmocles do desemprego impele os estudantes a optar pelas formaes prolongadas e escolher cursos cujos diplomas sejam considerados uma garantia de futuro. Do mesmo modo, os pais assimilaram as ameaas ligadas s desregulamentaes hipermodernas. Raros so os que acham que a escola tenha por objetivo central a satisfao imediata dos desejos do filho: o prioritrio a formao com vistas ao futuro; donde a rpida expanso, em especial, do consumismo escolar, das aulas particulares, das atividades extracurriculares. Preparar a juventude para a vida adulta, mas tambm, no outro extremo da cadeia, achar solues para financiar as aposentadorias a longo prazo. No presente momento, a reforma do sistema de aposentadorias e o prolongamento do perodo de contribuio previdenciria figuram entre as grandes dificuldades dos governos democrticos e levam s ruas centenas de milhares de manifestantes. Onde se v que nossa cultura disse adeus ao futuro? Ao contrrio, ei-lo aqui, no centro das inquietaes e debates contemporneos, cada vez mais como algo a prever e reorganizar. O que declina no a importncia do futuro, mas o etos ps-moderno do hic et nunc. As novas atitudes para com a sade ilustram de maneira notvel a desforra do futuro. Numa poca em que a normatizao mdica invade cada vez mais os territrios do campo social, a sade se torna preocupao onipresente para um nmero crescente de indivduos de todas as idades. Assim, os ideais hedonistas foram suplantados pela ideologia da sade e da longevidade. Em nome destas, os indivduos renunciam maciamente s satisfaes imediatas, corrigindo e reorientando seus comportamentos cotidianos. A medicina no mais se contenta em tratar os doentes! ela intervm antes do aparecimento dos sintomas, informa sobre os riscos em que se incorre, estimula o monitoramento da sade, os exames clnicos, a vigilncia higienista, a modificao dos estilos de vida. Encerrou-se um captulo: a moral do

aqui-agora cedeu lugar ao culto da sade, ideologia da preveno, medicalizao da existncia. Prever, projetar, prevenir: o que se apossa de nossas vidas individualizadas uma conscincia que permanentemente lana pontes para o amanh e o depois-de-amanh. Cada vez mais vigilncia, monitoramento e preveno: alimentao saudvel, perda de peso, controle do colesterol, repulsa ao fumo, atividade fsica a obsesso narcsica com a sade e a longevidade segue de mos dadas com a prioridade dada ao depois sobre o aquiagora. O que nos leva a corrigir aquela proposio freqentemente citada de Tocqueville: Parece que, a partir do momento em que [os homens das democracias] se desesperam de viver pela eternidade, eles se dispem a agir como se fossem existir por no mais que um dia. Em vista da importncia assumida pelos problemas da sade e do envelhecimento, foroso observar que estamos longe daquele etos: o hiperindividualismo menos instantanesta que projetivo, menos festivo que higienista, menos desfrutador que preventivo, pois a relao com o presente integra cada vez mais a dimenso do porvir. O retraimento dos horizontes longnquos levou menos a uma tica do instante absoluto do que a um pseudo-presentismo minado pela obsesso com o que est por vir. Declina a cultura do carpe dem:. sob a presso exercida pelas normas de preveno e de sade, o que predomina no tanto a plenitude do instante quanto um presente dividido, apreensivo, assombrado pelos vrus e pelos estragos da passagem do tempo. Nenhuma "destemporalizao" do homem: o indivduo hipermoderno continua sendo um indivduo para o futuro, um futuro conjugado na primeira pessoa. Outros fenmenos revelam os limites da cultura presentista. Ao mesmo tempo que a cultura liberacionista est fora de moda, manifestam-se numerosas formas de valorizao do duradouro. Ainda que as unies sejam mais frgeis e mais precrias, nossa poca, apesar de tudo, testemunha a persistncia da instituio do matrimnio, a revalorizao da fidelidade, a vontade de contar com relaes estveis na vida amorosa. Observam-se mais insatisfaes ou frustraes referentes s experincias sem futuro do que odes aos amores casuais. Por que o amor permaneceria um ideal, uma aspirao de massa, se no, ao menos em parte, por causa do valor conferido durao que associam a ele? E como compreender a vontade de ter filhos, tudo menos caduca, sem supor o investimento emocional de longo prazo? Fica evidente que o instante puro est longe de ter colonizado por completo as existncias privadas, pois a sociedade hipermoderna d nova vida exigncia de permanncia como contrapeso ao reinado do efmero, to causador de ansiedades. Conflitos de tempo e crono-reflexividade Marx mostrou isto em anlises magistrais: a economia de tempo o princpio de funcionamento do capitalismo moderno. Dedicando-se a reduzir ao mximo o tempo de trabalho e, ainda assim, fazendo deste a fonte da riqueza, o capitalismo um sistema que se baseia numa grande contradio temporal que exclui o homem de seu prprio labor. Tal tipo de contradio, sabe-se, s faz exacerbar-se. Simultaneamente, de um mundo centrado na organizao do tempo de trabalho, passou-se a um universo marcado pela reduo do tempo social, pelo desenvolvimento de temporalidades heterogneas (tempo livre, consumo, frias, sade, educao, horrios de trabalho variveis, aposentadoria), acompanhando-se de tenses inditas.16 Donde o acmulo de problemas de organizao e gesto do tempo social, assim como as novas exigncias de administrao, de reorganizao, de flexibilizao pelo vis de dispositivos personalizados, com vistas promoo do tempo ajustado s necessidades individuais. A obsesso moderna com o tempo no mais se concretiza apenas na esfera do trabalho que est submetida aos critrios de produtividade - ela se apossou de todos os aspectos da vida. A sociedade hipermoderna se apresenta como a sociedade em que o tempo

cada vez mais vivido como preocupao maior; a sociedade em que se exerce e se generaliza uma presso temporal crescente. Essas contradies temporais repercutem no cotidiano e no se explicam exclusivamente pelo princpio de economia e rentabilidade transposto da produo para as outras esferas da vida social. Quando se privilegia o futuro, tem-se a sensao de passar ao largo da "verdadeira" vida. Desfrutar os prazeres tal qual se apresentam? Ou assegurar a vitalidade nos anos vindouros (sade, boa forma, beleza)? Tempo para os filhos? Ou tempo para a carreira? No h apenas a acelerao dos ritmos de vida; h tambm uma conflitualizao objetiva da relao com o tempo. Os antagonismos de classe se enfraquecem, e as tenses temporais pessoais se generalizam e se acirram. No mais classe contra classe, e sim tempo contra tempo, futuro contra presente, presente contra futuro, presente contra presente, presente contra passado. O que privilegiar? E como no lamentar esta ou aquela opo quando o tempo destradicionalizado, entregue escolha dos indivduos? A reduo do tempo de trabalho, o tempo livre e o processo de individualizao levaram multiplicao dos temas e conflitos ligados ao tempo. E uma poca de guerras do tempo singularizadas que se relacionam ao viver subjetivo. As contradies objetivas da sociedade produtivista se justape agora a espiral das contradies existenciais. O estado de guerra contra o tempo implica que os indivduos esto cada vez menos encerrados s no presente, com a dinmica de individualizao e os meios de informao funcionando como instrumentos de distanciamento, de introspeco, de retorno ao eu. A hipermodernidade no se confunde com um "processo sem sujeito": ela segue de mos dadas com a "tomada de palavra", a auto-reflexividade, a crescente conscientizao dos indivduos, esta paradoxalmente acentuada pela ao efmera da mdia. De um lado, sofrem-se cada vez mais as limitaes do tempo desabalado; de outro, avanam a independncia individual, a subjetivao das orientaes, a introspeco. Nas sociedades individualistas, libertas da tradio, nada mais est bvio e evidente: a organizao da existncia e dos usos do tempo exige arbitragens e retificaes, previses e informaes. E preciso representar a hipermodernidade como uma meta-modernidade qual subjaz uma crono-reflexividade. Tempo acelerado e tempo redescoberto Uma das conseqncias mais perceptveis do poder do regime presentista o clima de presso que ele faz pesar sobre a vida das organizaes e das pessoas. Grande nmero de quadros funcionais menciona o ritmo frentico que domina a cadeia vital das empresas nesta poca de concorrncia globalizada e ditames financeiros. Sempre mais exigncias de resultados a curto prazo, fazer mais no menor tempo possvel, agir sem demora: a corrida da competio faz priorizar o urgente custa do importante, a ao imediata custa da reflexo, o acessrio custa do essencial. Leva tambm a criar uma atmosfera de dramatizao, de estresse permanente, assim como todo um conjunto de distrbios psicossomticos. Donde a idia de que a hipermodernidade se distingue pela ideologizao e pela generalizao do reinado da urgncia. Os efeitos induzidos pela nova ordem do tempo extrapolam em muito o universo do trabalho; eles se concretizam na relao com o cotidiano, com o eu e com os outros. Assim, um nmero crescente de pessoas (as mulheres mais que os homens, em razo das limitaes da jornada dupla, dentro e fora do lar) reclama de estar sobrecarregadas, de correr contra o tempo , de ficar estafadas. E nenhuma faixa etria parece escapar a essa corrida para adiante, pois mesmo os aposentados e as crianas tm hoje uma agenda lotada. Quanto mais depressa se vai, menos tempo se tem. A modernidade se construiu em torno da crtica explorao do tempo de trabalhosa a poca hipermoderna contempornea da sensao de que o tempo se

rarefaz. Neste momento, somos mais sensveis escassez de tempo que ampliao do campo das possibilidades ocasionada pelo mpeto da individualizao; a falta de dinheiro ou de liberdade motiva menos queixas que a falta de tempo. Contudo, se uns nunca dispem de tempo suficiente, outros (desempregados, jovens de rua) o tm de sobra. De um lado, o indivduo empreendedor, hiperativo, desfrutando a velocidade e a intensidade do tempo; de outro, o indivduo esmagado " revelia pela ociosidade. Sobre essa dualizao das maneiras de viver o tempo, h pouca dvida: assiste-se mesmo intensificao de novas formas de desigualdade social em face dele. Entretanto, no se deve deixar que estas ocultem a dinmica global que, para alm das classes ou dos grupos especficos, transformou profundamente a relao dos indivduos no tempo social. Ao criar o hipermercado dos modos de vida, o universo do consumo, do lazer e agora das novas tecnologias possibilitou uma autonomizao crescente no que se refere s limitaes temporais coletivas; disso resulta uma dessincronizao das atividades, dos ritmos e das trajetrias individuais. Vetor de individualizao das aspiraes e comportamentos, o reinado do presente social se faz acompanhar de ritmos em defasagem, de construes mais personalizadas dos usos do tempo. A bipolarizao do individualismo (por excesso ou por escassez) s se afirma tendo como fundo essa pluralizao e essa individualizao generalizadas das maneiras de gerir o tempo. Nesse sentido, a hipermodernidade indissocivel da destradicionalizao-desinstitucionalizao-individualizao da relao com o tempo, fenmeno geral que, transcendendo as diferenas de classes ou de grupos, extrapola em muito o mundo dos vencedores". A nova sensao de sujeio ao tempo acelerado s se apresenta paralelamente a um poder maior de organizao individual da vida. Nova relao com o tempo que igualmente exemplificada pelas paixes consumistas. Ningum duvida de que, em muitos casos, a febre de compras seja uma compensao, uma maneira de consolar-se das desventuras da existncia, de preencher a vacuidade do presente e do futuro. A compulso pr-sentista do consumo mais o retraimento do horizonte temporal de nossas sociedades at constituem um sistema. Mas ser que essa febre no apenas escapista, diverso pascaliana, fuga em face de um mundo desprovido de futuro imaginvel e transformado em algo catico e incerto? Na verdade, o que nutre a escala consumista indubitavelmente tanto a angstia existencial quanto o prazer associado s mudanas, o desejo de intensificar e reintensificar o cotidiano. Talvez esteja a o desejo fundamental do consumidor hipermoderno: renovar sua vivncia do tempo, revivific-la por meio das novidades que se oferecem como simulacros de aventura. E preciso ver o hiper-consumo como uma cura de rejuvenescimento que se reinicia eternamente. Dessa maneira, o que nos define no bem o "presente perptuo" de que falava Orwell, mas antes um desejo de perptua renovao do eu e do presente. Na fria consumista, exprime-se a recusa ao tempo exaurido e repetitivo, um combate contra esse envelhecimento das sensaes que acompanha a rotina diria. E menos a negao da morte e da finitude do que a angstia de fossilizar-se, de repetir, de no mais sentir. pergunta "O que a modernidade?", Kant respondia: superar a minoridade, tornar-se adulto. Na hipermodernidade, tudo se passa como se surgisse uma nova prioridade: ficar eternamente voltando "juventude". Nossa pulso neoflica , em primeiro lugar, um exorcismo do envelhecimento do viver subjetivo: o indivduo desinstitucionalizado, voltil, hiperconsumista, aquele que sonha assemelhar-se a uma fnix emocional. Sensualismo e desempenho A cultura da imediatez foi objeto de incontveis crticas, que nem sempre escaparam comodidade das concluses apocalpticas. No universo da pressa, dizem, o vnculo humano substitudo pela rapidez; a qualidade de vida, pela eficincia; a fruio livre de normas e de

cobranas, pelo frenesi. Foram-se a ociosidade, a contemplao, o relaxamento voluptuoso: o que importa a auto-superao, a vida em fluxo nervoso, os prazeres abstratos da onipotncia proporcionados pelas intensidades aceleradas. Enquanto as relaes reais de proximidade cedem lugar aos intercmbios virtuais, organiza-se uma cultura de hiperatividade caracterizada pela busca de mais desempenho, sem concretude e sem sensorialidade, pouco a pouco dando cabo dos fins hedonistas. Mas evitemos tomar a parte pelo todo. Pois a era da urgncia tambm aquela em que se d a democratizao da tecnologia do bem-estar crescente, a rpida expanso dos mercados da qualidade, a erotizao da sexualidade feminina, a voga de esportes como o esqui e o windsurfe. A msica, as viagens, as paisagens, o arranjo esttico dos interiores conhecem igualmente um sucesso sem precedentes. So tantas as prticas e gostos que revelam uma poca de sensualizao e estetizao em massa dos prazeres. Coabitam duas tendncias: a que acelera os ritmos tende desencarnao dos prazeres; a outra, ao contrrio, leva estetizao dos gozos, felicidade dos sentidos, busca da qualidade no agora. De um lado, um tempo comprimido, "eficiente", abstrato; de outro, um tempo de foco no qualitativo, nas volpias corporais, na sensualizao do instante. Assim que a sociedade ultra-moderna se apresenta como uma cultura desunificada e paradoxal. Um acasalamento de contrrios que s faz intensificar dois importantes princpios, ambos constitutivos da modernidade tcnica e democrtica: a conquista da eficincia e o ideal da felicidade terrena. A cultura hedonista foi sistematicamente analisada e estigmatizada como imposio de felicidade consumista e ertica, "tirania do prazer", "totalitarismo" mercantil. No entanto, o que realmente se v? Florescem as catedrais do consumo, mas esto na moda as espiritualidades e sabedorias antigas; o porn se expe, mas os costumes sexuais so mais ajuizados que descomedidos; o ciberespao virtualiza a comunicao, mas a imensa maioria aprecia os eventos ao vivo, as festas coletivas, as sadas com amigos; a troca paga se generaliza, mas o voluntariado se multiplica, e mais do que nunca os relacionamentos se baseiam na afetividade sentimental. Fica bvio que o indivduo no o reflexo fiel das lgicas hiperblicas miditico-mercantis; ele no o "escravo" da ordem social que exige eficincia, tanto quanto no o produto mecnico da publicidade. Outras motivaes, outros ideais (relacionais, intimistas, amorosos, ticos), no param de orientar o hiperindivduo. O reinado do presente menos o da normalizao da felicidade que o da diversificao dos modelos, da eroso do poder organizador das normas coletivas, da despadronizao dos prazeres. A ascendncia das normas do consumo e da sexualidade aumenta, at porque elas regem menos estritamente os comportamentos individuais. Superativo, o indivduo hipermoderno igualmente prudente, afetivo e relacionai: a acelerao dos ritmos no aboliu nem a sensibilidade em relao ao outro, nem as paixes do qualitativo, nem as aspiraes a uma vida equilibrada e sentimental. O extremo apenas uma das vertentes da ultra-modernidade. Certos quadros funcionais podem ser workaholics, mas a maioria dos assalariados aspira a conciliar a vida profissional com a particular, o trabalho com o lazer. Alugam-se filmes porns a rodo, mas a vida libidinosa est muito longe de ter cado na orgia e no swing generalizado. A publicidade pode at exaltar as fruies comerciais, mas a relao com outrem (filho, amor, amizade) o que constitui a qualidade de vida do maior nmero de pessoas. O frenesi do sempre mais no enterra as lgicas qualitativas do "melhor" e do sentimento; ao contrrio, d-lhes maior espao social, uma nova legitimidade de massa. Por toda a parte, os exageros hipermodernos so refreados pelas exigncias da melhoria da qualidade de vida, pela valorizao dos sentimentos e pela personalidade, a qual no se pode trocar; por toda a parte, as lgicas do excesso deparam com contra-tendncias e vlvulas de segurana. Atormentada por normas antinmicas, a sociedade ultra-moderna no unidimensional: assemelha-se a um caos paradoxal, uma desordem organizadora.

Nesse contexto, o que mais deve nos preocupar no nem a dessensualizao nem a "ditadura" do prazer, mas a fragilizao das personalidades. A cultura hipermoderna se caracteriza pelo enfraquecimento do poder regulador das instituies coletivas e pela autonomizao correlativa dos atores sociais em face das imposies de grupo, sejam da famlia, sejam da religio, sejam dos partidos polticos, sejam das culturas de classe. Assim, o indivduo se mostra cada vez mais aberto e cambiante, fluido e socialmente independente. Mas essa volatilidade significa muito mais a desestabilizao do eu do que a afirmao triunfante de um indivduo que senhor de si mesmo. Testemunho disso a mar montante de sintomas psicossomticos, de distrbios compulsivos, de depresses, de ansiedades, de tentativas de suicdio, para nem falar do crescente sentimento de insuficincia e autodepreciao. Vulnerabilidade psicolgica que (ao contrrio do que tanto se diz) se deve menos ao peso extenuante das normas do desempenho, intensificao das presses que se abatem sobre as pessoas, do que ruptura dos antigos sistemas de defesa e enquadramento dos indivduos. Lembremos apenas que a fogueira das ansiedades e das depresses precedeu o triunfo da cultura empresarial e do neoliberalismo. O que explica o fenmeno no so tanto as presses da cultura do desempenho quanto o enorme avano da individualizao, o declnio do poder organizador que o coletivo tinha sobre o individual. Deixado a si mesmo, desinserido, o indivduo se v privado dos esquemas sociais estruturantes que o dotavam de foras interiores que lhe possibilitavam fazer frente s desventuras da existncia. A desregulao institucional generalizada correspondem as perturbaes do estado de nimo, a crescente desorganizao das personalidades, a multiplicao de distrbios psicolgicos e de discursos queixosos. E a individualizao extrema de nossas sociedades o que, tendo enfraquecido as resistncias a partir de dentro, subjaz espiral dos distrbios e desequilbrios subjetivos. Assim, a poca ultra-moderna v desenvolver-se o domnio tcnico sobre o espao-tempo, mas declinarem as foras interiores do indivduo. Quanto menos as normas coletivas nos regem nos detalhes, mais o indivduo se mostra tendencialmente fraco e desestabilizado. Quanto mais o indivduo socialmente cambiante, mais surgem manifestaes de esgotamentos e "panes" subjetivas. Quanto mais ele quer viver intensa e livremente, mais se acumulam os sinais do peso de viver. O passado revisitado O "retorno" do futuro no o nico fenmeno que contesta a idia de presente social voltado para si mesmo: a retificar esse "tipo ideal" weberiano, convida-nos tambm o fenmeno, que estamos testemunhando, do revivescimento do passado. E inegvel que, ao celebrar o sempre novo e os gozos do aqui-agora, a civilizao consumista opera continuamente para enfraquecer a memria coletiva, acelerando o declnio da continuidade e da repetio ancestral. No obstante, permanece o fato de que nossa poca, longe de encerrar-se num presente trancado em si mesmo, palco tanto de um frenesi histrico-patrimonial e comemorativo quanto de uma investida das identidades nacionais e regionais, tnicas e religiosas. Quanto mais nossas sociedades se dedicam a um funcionamento-moda focado no presente, mais elas se vem acompanhas de uma onda mnmica de fundo. Os modernos queriam fazer tabula rasa do passado, mas ns o reabilitamos; o ideal era ver-se livre das tradies, mas elas readquirem dignidade social. Celebrando at o menor objeto do passado, invocando as obrigaes da memria, remobilizando as tradies religiosas, a hipermodernidade no estruturada por um presente absoluto; ela o por um presente paradoxal, um presente que no pra de exumar e redescobrir o passado.

A memria em tempos de hiperconsumo Dizem de brincadeira que abre um museu por dia na Europa, e j se perdeu a conta das comemoraes de aniversrio dos grandes e nem to grandes acontecimentos histricos. Em nossa poca, o que no se presta mais a ser objeto de museu, de restaurao, de celebrao? Do dcimo ao qinquagsimo aniversrio, do primeiro ao sesquicentenrio, toda data pretexto para festividades. Logo no existir mais nenhuma atividade, nenhum objeto, nenhuma localidade, que no tenha a honra de uma instituio museal. Do museu da crpe ao da sardinha, do museu de Elvis ao dos Beatles, a sociedade moderna contempornea do tudo-patrimnio-histrico e do todo-comemorativo. Nessa valorizao do passado, pode-se, claro, reconhecer um sintoma tipicamente "ps-moderno". Entretanto, o fim do modernismo negador do passado no significa o eclipse do moderno, pois muitos traos do fenmeno apontam o contrrio, um novo impulso de modernizao da cultura. Enorme expanso dos objetos e signos considerados dignos de ser parte da memria patrimonial; proliferao dos museus de toda espcie; obsesso comemorativa; democratizao macia do turismo cultural; ameaa de degradao ou paralisia do conjunto histrico-patrimonial pelos fluxos excessivos de turistas a nova valorizao do antigo se faz acompanhar de excrescncia, de saturao, de alargamento infinito das fronteiras da memria e do patrimnio histrico, pelo que se reconhece uma modernizao levada ao extremo. Passou-se do reinado do finito ao do infinito, do limitado ao generalizado, da memria hipermemria: na neomodernidade, o excesso de lgicas presentistas segue em conformidade com a inflao proliferante da memria. Ultra-modernidade que, cada vez mais, revela ainda a nfase sobre o impacto econmico da preservao do patrimnio, sobre os critrios de rentabilidade direta ou indireta, numa esfera outrora animada pelo culto Nao e pelo esprito de civismo. O batismo de ruas e o levantamento de esttuas so doravante suplantados por comemoraes exploradas pelas indstrias editoriais e miditicas, que inundam o mercado com dezenas de ttulos novos, de reedies, de histrias em quadrinhos, de filmes e telefilmes. Antigamente, o monumento era um smbolo, e sua conservao, um fim em si mesmo; hoje, justificam-se os encargos com ele em nome dos efeitos financeiros, do desenvolvimento turstico ou da imagem miditica das cidades e regies. "Jazidas" a explorar e promover, as antigas edificaes so seqestradas, reformadas, transformadas em centros culturais, museus, hotis, teatros, escritrios; as reas histricas so enfeitadas e avivadas, convertidas em produto de consumo cultural e turstico. E, por toda a parte, v-se a apario de estacionamentos, de lanchonetes, de lojas de suvenires, de espetculos folclricos. Na sociedade hipermoderna, o modelo de mercado e seus critrios operacionais conseguiram imiscuir-se at na conservao do patrimnio histrico. Elemento do avano do capitalismo cultural e da mercantilizao da cultura, a valorizao do passado um fenmeno mais hipermoderno que ps-moderno. Nesta poca da indstria do patrimnio histrico, o cidado cede o passo ao homo consumericus. O antigo estilo solene e "sedentrio" das comemoraes, que visava a registrar permanentemente a memria nos prprios locais do passado, recua em favor de um estilo "frvolo" e efmero que se restringe apenas ao instante da comemorao: simpsios, concertos, exposies, happenings, espetculos, desfiles criativos. Os museus encenam espetculos histricos, e os stios arqueolgicos, reconstituies em simulao virtual: o "turismo da memria" sucesso entre as massas. As obras do passado no mais so contempladas em recolhimento e silncio, e sim devoradas em alguns segundos, funcionando como objeto de animao de massa, espetculo atraente, maneira de diversificar o lazer e matar o tempo. A volta do passado popularidade ilustra o advento do consumo-mundo e do consumidor que busca menos o status que os estmulos permanentes, as emoes instantneas,

as atividades recreativas. No que se d adeus modernidade; antes, a terceira etapa da modernidade consumista que triunfa na democratizao macia do lazer cultural, no consumismo experiencial, na transformao da memria em entretenimento-espetculo. A voga do passado se v ainda no sucesso dos objetos antigos, da caa a antiguidades, do retro, do vintage, dos produtos rotulados com um "legtimo" ou autntico , que despertam a nostalgia. Cada vez mais, as empresas fazem referncia a seu passado, explorando seu patrimnio histrico, divulgando-o, lanando produtos de cunho saudosista que "revivem" os tempos de antanho. Letreiros comerciais apresentam artigos oriundos do patrimnio histrico, e muitas marcas oferecem "receitas moda antiga" e produtos inspirados em tradies ancestrais. Na sociedade hipermoderna, a antigidade e a nostalgia se tornaram argumentos comerciais, ferramentas mercadolgicas. Esse retorno revigorado do passado constitui uma das facetas do cosmo do hiperconsumo experiencial: trata-se no mais de apenas ter acesso ao conforto material, mas sim de vender e comprar reminiscncias, emoes, que evoquem o passado, lembranas de tempos considerados mais esplendorosos. Ao valor de uso e ao valor de troca se junta agora o valor emotivo-mnmico ligado aos sentimentos nostlgicos. Um fenmeno indissociavelmente ps- e hipermoderno. Ps porque se volta para o antigo. Hiper porque doravante h consumo comercial da relao com o tempo, pois a expanso da lgica mercantil invade o territrio da memria. J a vida cotidiana, embora exprima o gosto pelo passado, , mais do que nunca, regida (na higiene, na sade, no lazer, no consumo, na educao) pela ordem cambiante do presente. Os produtos comestveis exibem "autenticidade", mas so comercializados segundo tcnicas comerciais de massa, adaptados aos gostos contemporneos, fabricados em funo de normas atuais de higiene e segurana. Reformam-se os imveis antigos dos centros das cidades, mas dotando-os de todo o conforto moderno. A conscincia do valor do patrimnio histrico se intensifica, mas as coisas que produzimos tm durao cada vez mais limitada. O passado no mais socialmente instituidor nem estruturante; est renovado, reciclado, mas ao gosto de nossa poca, explorado com fins comerciais. A tradio no mais convoca repetio, fidelidade e revivescncia das coisas imutveis de outrora! ela se tornou produto de consumo nostlgico ou folclrico, mera olhadela para o passado, objeto-moda. Regula institucionalmente o todo coletivo, e seu valor apenas esttico, emocional e ldico. Embora o antigo possa causar furor, no tem mais o poder de organizar coletivamente os comportamentos. O passado nos seduz; o presente e suas normas cambiantes nos governam. Quanto mais se evoca e se encena a memria histrica, menos ela estrutura os elementos do cotidiano. Donde este trao caracterstico da vida hipermoderna: celebramos aquilo que no desejamos tomar como exemplo. Dizia Tarde* que, nos tempos consuetudinrios, o passado funcionava como modelo prestigioso a imitar. Essa no a norma de nossa poca, em que o passado aparece cada vez mais nitidamente como, isto sim, um adorno, um referencial da vida com qualidade ou com segurana. Isso porque o "autntico" tem sobre nossas sensibilidades um efeito tranqilizador: os produtos " moda antiga", associados a um imaginrio de proximidade, de convivialidade, de "bons e velhos tempos" (a aldeia, o arteso, o amor ao ofcio), vm exorcizar o desassossego dos neoconsumidores obcecados com a segurana de todo tipo, desconfiados da industrializao do comestvel. De igual maneira, o efeito-patrimnio-histrico participa da mesma cultura do bem-estar individualista. Os conjuntos habitacionais modernos, os arranhacus e blocos de apartamentos e escritrios, o litoral concretado, tudo isso acarretou o desejo*

Gabriel de Tarde (1843-1904), socilogo francs. (N.T.)

de salvaguardar as antigas paisagens e os edifcios do passado como se fossem resistncias feira, uniformizao funcional e tcnica. Embora a mania do antigo comporte uma dimenso nostlgica, ela tambm ilustra a intensificao dos desejos individualistas de qualidade de vida, uma cultura hipermoderna do bem-estar indissocivel de critrios mais qualitativos e sensoriais, mais estticos e culturais. Subjacentes ao gosto pelo passado, avanam as paixes hiperindividualistas de "conforto recreativo" e "conforto existencial", as novas exigncias de sensaes agradveis, de qualidade ambiental em todos os sentidos. E provvel que essa obsesso mnmica no se perpetue; certos sinais talvez j indiquem um movimento de refluxo. Um dia, a proliferao das comemoraes e do patrimnio histrico chegar ao limite, no mais encontrando o mesmo eco. de supor, entretanto, que no se voltar aos tempos do culto modernista da pgina em branco. A segunda era da modernidade auto-reflexiva, individualstico-emocional e identitria; revolucionria no mbito tcnico-cientfico, ela deixou de s-lo no cultural. E sinnimo no de depreciao do passado, mas de explorao-mobilizao sem excluso de todos os eixos da temporalidade socioistrica, reciclagem e retraduo de memria com fins econmicos, emocionais e identitrios. Mesmo que a onda mnemnica se quebre, ela no se deter de vez. O comrcio, a moda, as exigncias de melhoria do bem-estar, assim como os desejos identitrios, devem ainda por muito tempo fazer da memria um recurso e uma necessidade de ordem presentista. Identidades e espiritualidades O retorno prestigioso do passado extrapola em muito o culto ao retro, s comemoraes e ao patrimnio histrico. Ele se concretiza com ainda mais intensidade no despertar das espiritualidades e das novas solicitaes identitrias. Revivescncias religiosas, reivindicaes nacionais e regionais, ressurgimento tnico as sociedades contemporneas assistem a um fortalecimento de referenciais que remetem ao passado, de uma necessidade de continuidade entre passado e presente, da preocupao de dotar-se de razes e memria. Embora a globalizao tcnica e comercial instaure uma temporalidade homognea, o fato que ela concomitante a um processo de fragmentao cultural e religiosa que mobiliza mitos e relatos fundadores, patrimnios simblicos, valores histricos e tradicionais. Sabe-se que, em muitos casos, a reativao da memria histrica funciona em oposio frontal aos princpios da modernidade liberal. Ao serem testemunho das efervescncias religiosas que recusam a modernidade laica, os movimentos neonacionalistas e tnicoreligiosos acarretam ditaduras, guerras identitrias, massacres genocidas. O fim da diviso do mundo em blocos, o vazio ideolgico, a globalizao da economia e o enfraquecimento do poder estatal possibilitaram que surgisse uma grande quantidade de conflitos locais de base tnica, religiosa ou nacional; de movimentos separatistas; de guerras intercomunitrias. Rejeitando o pluralismo das sociedades abertas, expurgando a sociedade dos elementos "heterogneos", fechando as comunidades em si mesmas, os impulsos neonacionalistas e tnico-religiosos se fazem acompanhar aqui de combate ocidentalizao, ali de guerras devastadoras, represses e terrorismos poltico-religiosos. Um despertar dos antigos demnios? E iludir-se interpretar esses fenmenos como ressurgncias ou repeties do passado, quer tribal, quer totalitrio. Ainda que as regresses identitrias reatem com mentalidades antigas, o que surge so formas inditas de conflito, de nacionalismo e de democracia. Sob as incitaes para que se preservem identidades nacionais ou religiosas, organizam-se tiranias de gnero novo, combinaes de democracia com etnicidade, de modernizao frustrada com "fundamentalismo" triunfante, as quais Fareed Zakaria com razo denomina "democracia iliberais".

Isso posto, os movimentos que reavivam a chama do sagrado ou das razes esto muito longe de ser de mesma natureza e de manter a mesmo relao com a modernidade liberal. No Ocidente, muitos deles se apresentam com traos que se conciliam perfeitamente com a cultura liberal do indivduo legislador de sua prpria vida. Prova disso so as famosas "religies la carte", os grupos e redes que combinam as tradies culturais do Oriente e do Ocidente, os quais utilizam a tradio religiosa como meio de auto-realizao subjetiva dos adeptos. Aqui, no h nenhuma antinomia com a modernidade individualista, pois a tradio fica disposio dos indivduos, "mexida", mobilizada como via de auto-realizao e de integrao comunitria. A era hipermoderna no pe fim necessidade de apelar para tradies de sentido sagrado; ela simplesmente as rearranja mediante individualizao, disperso, emocionalizaco das crenas e prticas. Com a primazia do eixo do presente, crescem as religies "desregulamentadas" e as identidades ps-tradicionais. A racionalidade instrumental expande seu domnio, mas isso no elimina nem a crena religiosa, nem a necessidade de referir-se autoridade de uma tradio. De um lado, o processo de racionalizao faz diminuir cada vez mais a ascendncia da religio sobre a vida social; de outro, ele, com seu prprio movimento, recria exigncias de religiosidade e de enraizamento numa linhagem crente. Tambm aqui, evitemos identificar as novas espiritualidades a um fenmeno residual, uma regresso ou arcasmo pr-moderno. Na realidade, do prprio interior do cosmo hipermoderno que se reproduz o religioso, na medida em que esse cosmo gera insegurana, confuso referencial, extino de utopias seculares, ruptura individualista do vnculo social. No universo incerto, catico, atomizado da hipermodernidade, cresce tambm a necessidade de unidade e de sentido, de segurana, de identidade comunitria - a nova chance das religies. De todo modo, o avano da secularizao no leva a um mundo inteiramente racional em que a influncia social da religio declina continuamente. A secularizao no s a irreligio; ela tambm o que recompe o religioso no mundo da autonomia terrena, um religioso desinstitucionalizado, subjetivado, afetivo. Essa remobilizao da memria indissocivel de um novo modo de identificao coletiva. Nas sociedades tradicionais, a identidade religiosa e cultural era vivida como coisa natural, recebida e intangvel, excluindo as escolhas individuais. Isso acabou. Na presente situao, a filiao identitria tudo menos instantnea ou dada em definitivo; ela , isto sim, um problema, uma reivindicao, um objeto de apropriao dos indivduos. Meio de construir-se e dizer o que se , maneira de afirmar-se e fazer-se reconhecer, a filiao comunitria vem acompanhada de autodefinio e autoquestionamento. J no se mais judeu, muulmano ou basco "tal qual se respira": a identidade prpria questionada, examinada; hoje, preciso tomar posse daquilo que outrora se tinha naturalmente. Antes institucionalizada, a identidade cultural se tornou aberta e reflexiva, uma questo individual suscetvel de ser retomada infinitamente. O impulso das reivindicaes particularistas nos leva a corrigir o que podem ter de demasiado unilaterais as leituras que reduzem a um frenesi de paixes consumistas e competitivas o hiperindividualismo. Embora este no possa ser dissociado da consagrao tanto dos gozos privados quanto do mrito individual, foroso constatar que, ao mesmo tempo, ele se faz acompanhar de uma multiplicao das exigncias de reconhecimento pblico, de reivindicaes de igual respeito s diferentes culturas. J no basta sermos reconhecidos pelo que fazemos na condio de cidados livres e iguais perante os outros: trata-se de sermos reconhecidos pelo que somos em nossa diferena comunitria e histrica, pelo que nos distingue dos outros grupos. E uma prova, entre outras, de que a modernidade do segundo tipo no se esgota no mpeto solipsista dos apetites consumistas: na realidade, ela traz uma ampliao do ideal do igual respeito, de um desejo de hiper-reconhecimento que,

recusando todas as formas de desdm, de depreciao, de inferiorizao do eu, exige o reconhecimento do outro como igual na diferena. E bem verdade que o reinado do presente aquele da satisfao imediata das necessidades, mas ele tambm o da exigncia moral de reconhecimento estendida s identidades fundadas no masculino ou feminino, na inclinao sexual, na memria histrica. Processo de hiper-reconhecimento que no deixa de ter ligao com a sociedade do bem-estar individualista de massa. Foi esta que, nas democracias ocidentais, contribuiu para fazer declinar a valorizao dos princpios abstratos de cidadania em benefcio dos plos de identificao de carter imediato e particularista. Na sociedade hiperindividualista, investimos emocionalmente naquilo que nos mais prximo, nos vnculos fundados sobre a semelhana e a origem em comum, com os valores universalistas e os grandes ideais polticos aparecendo como princpios demasiado abstratos, demasiado genricos ou distantes. A civilizao do presente, ao arruinar as esperanas revolucionrias e focar a vida nas felicidades privadas, desencadeou, paradoxalmente, uma vontade de reconhecimento da especificidade conferida pelas razes coletivas. Foi igualmente a cultura do bem-estar individualista o que, ao dar importncia nova necessidade de amor-prprio e de estima pelos outros, tornou inaceitveis os sofrimentos engendrados pelas imagens coletivas desdenhosas que os grupos dominantes impem. Na era da felicidade, tudo o que inculca uma imagem depreciativa do eu, todas as denegaes de reconhecimento, atacado como ilegtimo, aparecendo como forma de opresso e de violncia simblica incompatvel com o ideal de auto-realizao plena. Donde a multiplicao das exigncias de ressarcimento por agravos coletivos, as expectativas de reconhecimento pblico, as reivindicaes cada vez mais freqentes de um status de vtima. As vindcias de reconhecimento particularista so indissociveis do ideal democrtico moderno de dignidade humana - mas foi a civilizao presentista que possibilitou as "polticas do reconhecimento" como instrumento de amor-prprio; as novas responsabilidades com relao ao passado; as novas querelas da memria. A galxia contempornea das identidades igualmente a oportunidade de voltar s ricas anlises da alta modernidade propostas por Ulrich Beck. De acordo com aquele socilogo alemo, passou-se de uma primeira etapa de modernizao, fundada na oposio entre tradio e modernidade, para uma segunda modernizao, de natureza reflexiva e autocrtica. Nessa ltima fase, a prpria modernizao que considerada um problema, o qual se refere tanto ao cientismo como aos princpios de funcionamento da sociedade industrial. Donde a idia de advento de uma modernidade de tipo auto-referencial. Esse esquema est correto, mas preciso ir mais longe, generalizando. Na realidade, temos de constatar que o segundo ciclo da modernidade no apenas auto-referencial: ele est marcado pela forte reabilitao de coordenadas tradicionais, de exigncias tnico-religiosas que se apiam em patrimnios simblicos de longussima durao e de origem diversa. Todas as lembranas, todos os universos de sentido, todos os imaginrios coletivos que fazem referncia ao passado so o que pode ser convocado e reutilizado para a construo de identidades e a realizao pessoal dos indivduos. A reflexividade ultra-moderna no se refere apenas aos riscos tecnolgicos, racionalidade cientfica ou diviso dos papis sexuais; ela invade todos os reservatrios de sentido, todas tradies do Ocidente e do Oriente, todos os saberes e todas as crenas, a includas as mais irracionais e as menos ortodoxas - astrologia, reencarnao, paracincias etc. O que define a hipermodernidade no exclusivamente a autocrtica dos saberes e das instituies modernas; tambm a memria revisitada, a remobilizao das crenas tradicionais, a hibridizao individualista do passado e do presente. No mais apenas a desconstruo das tradies, mas o reemprego delas sem imposio

institucional, o eterno rearranjar delas conforme o princpio da soberania individual. Se a hipermodernidade metamodernidade, ela se apresenta igualmente com os traos de uma metatradicionalidade, de uma metarreligiosidade sem fronteiras. No faltam fenmenos que podem autorizar uma interpretao relativista ou niilista do universo hipermoderno. Dissoluo dos fundamentos incontestes do saber, primado do pragmatismo e do deus dinheiro, sentimento de igualdade de valor de todas as opinies e de todas as culturas - so tantos os elementos que nutrem a idia de que o ceticismo e a extino dos ideais superiores constituem importante caracterstica de nossa poca. Mas ser que a realidade observvel d mesmo razo a tal paradigma? Embora seja inegvel que grande quantidade de referenciais culturais se embaralharam e que a dinmica tcnica e mercantil organiza segmentos inteiros de nossas sociedades, permanece o fato de que a derrocada do sentido no chega ao extremo, pois h sempre um fundo de forte e amplo consenso sobre os fundamentos tico-polticos da modernidade liberal. Para alm da "guerra dos deuses" weberiana e do crescente poder da sociedade de mercado, afirma-se um ncleo duro de valores compartilhados que estabelecem limites estritos ao rolo compressor do raciocnio operacionalista. Nem todo o nosso patrimnio tico-poltico foi erradicado: permanecem vlvulas de escape axiolgicas que nos impedem de endossar a interpretao radicalista do niilismo hipermoderno. Disso so testemunho, em especial, os protestos e compromissos ticos, a nova consagrao dos direitos humanos, que os erige em centro de gravidade ideolgica e em norma organizadora onipresente das aes coletivas. No verdade que o dinheiro e a eficincia se tornaram os princpios e os fins ltimos de todas as relaes sociais. Do contrrio, como entender o valor conferido ao amor e amizade? Como explicar as reaes de indignao em face das novas formas de escravido e de barbrie? De onde vm as exigncias de moralizar as trocas econmicas, a mdia e a vida poltica? Ainda que nossa poca seja o palco da pluralidade conflituosa dos conceitos do bem, ela , ao mesmo tempo, marcada por uma reconciliao indita com os fundamentos humanistas -estes nunca antes se beneficiaram de tal legitimidade inconteste. Nem todos os valores, nem todos os referenciais de sentido, foram pelos ares: a hipermodernidade no "sempre mais desempenho instrumental e, portanto, sempre menos valores que tenham fora de obrigao"; ela , isto sim, uma espiral tcnico-mercantil que se liga ao reforo unanimista do tronco comum dos valores humanistas democrticos. Ningum negar que o mundo, do jeito que anda, provoca mais inquietao do que otimismo desenfreado: alarga-se o abismo entre Primeiro e Terceiro Mundo; aumentam as desigualdades sociais; as conscincias ficam obcecadas pela insegurana de vrias naturezas; o mercado globalizado diminui o poder que as democracias tm de regerem a si mesmas. Mas ser que isso nos autoriza a diagnosticar um processo de rebarbarizao do mundo, no qual a democracia no mais que uma "pseudodemocracia" e um "espetculo cerimonial"? Chegar a tal concluso seria subestimar o poder de autocrtica e de autocorreo que continua a existir no universo democrtico liberal. A era presentista est tudo menos fechada, encerrada em si mesma, dedicada a um niilismo exponencial. Dado que a depreciao dos valores supremos no sem limites, o futuro continua em aberto. A hipermodernidade democrtica e mercantil ainda no deu seu canto do cisne - ela est apenas no comeo de sua aventura histrica. NOTAS1 2

Krzysztof Pomian, "Post- ou comment l'appeler?", Le Dbat, 6, 1990.

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Citado por Jean Chesneaux, Habiter le temps, Paris, Bayard, 1996, p. 71. Ver Krzysztof Pomian, "La crise de 1'avenir", Le Dbat, 7, dcembre 1980. Marcel Gauchet, Le dsenchantement du monde, Paris, Gallimard, 1985, p. 265-68.

Anthony Giddens, Ls consquences de la modernit, Paris, L'Harmattan, 1994, p. 85-9 [As conseqncias da modernidade, trad. Raul Fiker; So Paulo, Unesp, 1991].14

Sobre a escola como instituio futurista, Mareei Gauchet, "L'cole l'cole d'elle-mme", em seu livro La dmocratie contre elle-mme, Paris, Gallimard, 2002, p. 154-68.15

Alexis de Tocqueville, De la dmocratie en Amrque, Paris, Gallimard, 1.1, v. II, p. 155-6 [A democracia na Amrica, livro 2, trad. Eduardo Brando; So Paulo, Martins Fontes, 2000].16 17

Roger Sue, Temps et ordre social, Paris, PUF, 1994.

Eu ponho radicalmente em dvida as teses que s vem em nosso regime temporal "armadilhas empobrecedoras", escapismo turbulento , mutilao da durao , os quais impedem todo distanciamento crtico, toda meditao, toda "reversibilidade do pensamento", cf. Chesneaux, op. cit.18 19 20

Nicole Aubert, Le culte de l urgence, Paris, Flammarion, 2003. Robert Castel, Les mtamorphoses de Ia question sociale, Paris, Fayard, 1995, P- 461-74.

Sobre esse ponto, meu livro Le crpuscule du devoir, Paris, Gallimard, 1992. [O crepsculo do dever, trad. Ftima Gaspar; Lisboa, Dom Quixote, 1994].21

Sobre esses pontos, Franois Choay, L'allgorie du patrimoine, Paris, Seuil, 1992, p. 16376. Igualmente, Jean-Michel Leniaud, L'utopie franaise: essai sur le patrimoine, Paris, Mengs, 1992.22

Pierre Nora, "L're de la commmoration", em les lieux de mmoire, Paris, Gallimard, Quarto, 1997, p. 4688-99. EThierry Gasnier, "La France commmorante", Le Dbat, 78,1994, p. 95-8

23 24 25

Meu estudo, "La socit d'hyperconsommation", Le Dbat, 124, 2003. William M. Johnston, Postmodernisme et bimillnaire, Paris, PUF, 1992, p. 16.

Claudette Sze, "La modification", em "Confort moderne: une nouvelle culture du bientre", Autrement, 10, janvier 1994, p. 119-2326

Robert Hewison, "Retour 1'hritage ou Ia gestion du passe la anglaise", Le Dbat, 78,1994, p. 137. Igualmente, P. Nora, art. cit., p. 4715.27

Fareed Zakaria, L 'avenir de Ia libertei Ia dmocratie illibrale aux Etats-Unis e dans le monde, Paris, Odile Jacob, 2003.28

Aqui, retomo as belas anlises de Danile Hervieu-Lger, Larligion pour mmoire, Paris, Cerf, 1993, e L plerin et l converti, Paris, Flammarion, 1999.29 30

Dominique Schnapper, La France de l 'intgration, Paris, Gallimard, 1991, p. 307-10.

Bela Farago, "La dmocratie et l problme ds minorits nationales", Le Dbat, 76,1993, p. 16-7.31 32 33

Charles Taylor, Multiculturalisme, Paris, Flammarion, 1994. Ulrich Beck, La socit du risque, op. cit. Pierre-Andr Taguieff, Rsisterau bougisme, op. cit., p. 123.