Os três homens e o boi dos três homens que inventaram um boi

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OS TRÊS HOMENS E O BOI DOS TRÊS HOMENS QUE INVENTARAM UM BOI Ponha-se que estivessem, à barra do campo, de tarde, para descanso. E eram o Jerevo, Nhoé e Jelázio, vaqueiro dos mais lustrosos. Sentados, vis-a-visantes acocorados, dois; o tércio, Nhoé, ocultado por moita de rasga-gibão ou casca- branca. Só apreciavam o se-espiritar da aragem vinda de em árvores repassar-se, sábios com essa tranqüilidade. Então que, um quebrou o ovo do silêncio: - “Boi...” certo por ordem da hora citava caso de sua infância, do mundo das inventações; mas o mote se encorpou, raro pela subiteza. - “Sumido...” – outro disse, de rês semi-existida diferente. – “O maior” – segundou o primeiro. – “...erado de sete anos...” – o segundo recomeçou; ainda falavam separadamente. Porém: - “Como que?” – de detrás do ramante de sacutiaba Nhoé precisou de saber. - “Um pardo!” – definiu Jelázio. – “...porcelano” – o Jerevo ripostou. Variava cores. Entanto, por arte de logo, concordaram em verdade: seria quase esverdeado com curvas escuras rajas, araçá conforme Jelázio, corujo para o Jerevo, pernambucano. Dispararam a rir, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos. - “Que mais?” – distraía-os o fingir, de graça, no seguir da ideia, nhenganhenga. De toque em toque, as partes se emendavam: era peludo, desferidos olhos, chifres descidos; o berro vasto, quando arruava – mongoava; e que nem cabendo nestes pastos... Assim o boi compôs, ant’olhava-os. Nhoé quis que se fossem dali – por susto do real, ciente de que com a mulher do Jerevo Jelázio vadiava – ele houve um pensamento mau, do burro da noite.

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JOÃO, o Guimarães Rosa. Tutaméia.

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OS TRÊS HOMENS E O BOI DOS TRÊS HOMENS QUE INVENTARAM UM BOI

Ponha-se que estivessem, à barra do campo, de tarde, para descanso. E eram o Jerevo, Nhoé e Jelázio, vaqueiro dos mais lustrosos. Sentados, vis-a-visantes acocorados, dois; o tércio, Nhoé, ocultado por moita de rasga-gibão ou casca-branca. Só apreciavam o se-espiritar da aragem vinda de em árvores repassar-se, sábios com essa tranqüilidade.

Então que, um quebrou o ovo do silêncio: - “Boi...” – certo por ordem da hora citava caso de sua infância, do mundo das inventações; mas o mote se encorpou, raro pela subiteza.

- “Sumido...” – outro disse, de rês semi-existida diferente. – “O maior” – segundou o primeiro. – “...erado de sete anos...” – o segundo recomeçou; ainda falavam separadamente. Porém: - “Como que?” – de detrás do ramante de sacutiaba Nhoé precisou de saber.

- “Um pardo!” – definiu Jelázio. – “...porcelano” – o Jerevo ripostou. Variava cores. Entanto, por arte de logo, concordaram em verdade: seria quase esverdeado com curvas escuras rajas, araçá conforme Jelázio, corujo para o Jerevo, pernambucano. Dispararam a rir, depois se ouvia o ruidozinho da pressa dos lagartos.

- “Que mais?” – distraía-os o fingir, de graça, no seguir da ideia, nhenganhenga. De toque em toque, as partes se emendavam: era peludo, desferidos olhos, chifres descidos; o berro vasto, quando arruava – mongoava; e que nem cabendo nestes pastos...

Assim o boi compôs, ant’olhava-os. Nhoé quis que se fossem dali – por susto do real, ciente de que com a mulher do Jerevo Jelázio vadiava – ele houve um pensamento mau, do burro da noite.

De em diante, no campeio, entre os muitos demais, nem deviam de lembrar a fiada conversa. Senão que, reunidos, arrumavam prosa de gabança e proezas, em folga de rodeio vaquejado; então por vantagem o Jerevo e Jelázio afirmaram: de vero boi, recente, singular, descrito e desafiado só pelos três.

Se alguém ouviu o visto, ninguém viu o ouvido – tinham de desacreditar o que peta, patranha, para se rir e rir mais – o reconto não fez rumor. Mas o Nhoé se presenciava, certificativo homem, de sereverossimilhanças; até tristonho: porque também tencionava se recasar, e agora duvidava, em vista do que com casados às vezes se dá, dissabores.

Ante ele, mudaram de dispor, algum introduzindo que quiçás se aviesse de coisa esperta, bicho duende, sombração; nisso podiam crer, o vento no ermo a todos concerne. O Boi tomava vulto de fato, vice-avesso. Nhoé porém mexeu ombros,

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repelia o dito. Não achava cautela em dar fiança àquela pública notícia, lá, na que de riquíssimo fazendeiro Queiroz – fazenda Pitassilga – no Urucuia Superior.

De feito, se aviavam mais em crédito e fé os três, amigos. De bandeados lidar ou pousar buscavam toda maneira, nesse meio-mundo, por secas e tempos-das-águas. O Jerevo tinha casa, a mulher dele cozia arroz-com-pequi, ela era a simpatia e singeleza sem beleza, rematava pelo meio dos cabelos o vermelho do lenço, instruía-os de estróinas novidades: que, por aí, reinava uma guerra, drede iam remeter para lá a mocidade, o mar, em navio. De tudo Nhoé delongava opinião, pontual no receio; ainda bem que o escrúpulo da gente regra as quentes falsidades.

- “Sai, boi!” – ela troçava mistério deles, do que fino se bosquejava. O Boi bobo – de estatura. Vai, caprichou Jelázio de arrenegar essa lembrança, joça. Sisudos, os outros dois se olhavam, comunheiros, por censuração. Mas depois o Jerevo e Jelázio falavam de suas mães e meninices e terras, daquilo Nhoé ouvindo mais o modo que a parla. No de-dentro, as criaturas todas eram igualadas; no de-fora, só por não perceberem uns dos outros o escondido é que venciam conviver com afetos de concórdia.

Por maneira que de febres a mulher do Jerevo faleceu, eles retornavam do enterro, em conta a tarde chovida de feia, em caminho bastante se enlameavam, esmoreceram, para beber e esperar. Então, podiam só indagar o que do Boi, repassado com a memória. Não daquele, bem. Mas, da outrora ocasião, sem destaque de acontecer, senão que aprazível tão quieta, reperfeita, em beira de um campo, quando a informação do Boi tinha sobrevindo, de nada, na mais rasa conversa, de felicidade. Daí, mencionavam mais nunca o referido urdido – como não se remexe em restos.

De certo modo. Mais para diante, o Jelázio morreu, com efeito, inchado dos rins, o espírito vertido. – “Só a palma do casco...” – e riu, sem as recorridas palavras. Nhoé e o Jerevo se riam também, desses altos rastros do Boi, em ponto de pesares. Outras coisas eram boas; outras, de nem não nem sim, mas sendo.

Demais, quando foi da peste no gado de todas as partes, o Jerevo avisou decisão: que se removia, para afastado canto, onde homem cobrava melhores pagas. Nhoé rejeitou ir junto, nem pertencia a outros lados diversos – saudoso somente daquele dia de enterro, dela, os três, a chuva, a lama, à congraça, em entremeio de sofrimento.

Tão cedo aqui as coisas arrancavam as barbas. O fazendeiro ensandecendo, diligenciou em vão de matar filhos e mulher, cachorros, gatos. Nem era rico, nenhum, se soube. O povo depôs que a extravagância dele procedia do sol, do solcris eclipse, que se deu, mediante que vindo até desconhecidos estrangeiros, para ver, da banda da Bocaiúva. Somenos as mulheres, de luto, agora ali regiam, prosseguidamente, na fazenda Pitassilga.

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Nhoé demudava a cabeça, sem desmazelar, por bambeio, desagradado. Recurvado. Perfazia tenção em gestos. Tanto não sendo. Sem poder – nas mãos e calos do laço. Que é que faz da velhice um vaqueiro? Tirava os olhos das muitas fumaças. Todo o mundo tem onde cair morto. Achou de bom ir embora.

Voltava para conturva distância, pedindo perdão aos lugares. Será que lá ainda com parentes, ele se penava de pobre de esmolas. Chegou a uma estranhada fazenda, era ao anoitecer, vaqueiros repartidos entre folhagens de árvores. – “O senhor que mal pergunte...” – queriam que ao rol deles entrasse. – “A verdade que diga...” – vozes pretas, vozes verdes, animados de tudo contavam. Dava nova saudade. Ali, às horas, ao bom pé do fogo, escutava... Estava nas cantiguinhas do cochilo.

Refalavam de um boi, instantâneo. Listrado riscado, babante, façanhiceiro! – que em várzeas e glória se alçara, mal tantas malasartimanhas – havia tempos fora. Nhoé disse nada. O que nascido de chifres dourados ou transparentes, redondo o berro, a cor de cavalo. Ninguém podia com ele – o Boi Mongoavo. Só três propostos vaqueiros o tinham em fim sumetido...

Tossiu firme o velho Nhoé, suspirou se esvaziando, repuxou sujigola e cintura. Se prazia – o mundo era enorme. Inda que para o mister mais rasteiro, ali ficava, com socorro, parava naquele certo lugar em ermo notável.