Os verbos do desenho - Leandro Fontana

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1 os verbos do desenho uma análise sobre o ensino de desenho técnico no Brasil da tecnologia moderna à lógica positivista atual. Leandro Fontana

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Trabalho Final de Graduação curso de Arquietura e Urbanismo da Unesp Bauru 2010

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os verbosdo desenhouma análise sobre o ensino de desenho técnico no Brasil da tecnologia moderna à lógica positivista atual.

Leandro Fontana

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Ex-aminadora da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunica-ção da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como parte dos requisitos para obtenção da gradu-ação no curso de Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo, sob

orientação do Prof. Dr. Cláudio Silveira Amaral

ccLeandro Fontana

Bauru 2010

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Sou grato a minha família, no sentido mais verdadeiro da pa-lavra, que através de uma rede rizomática de relações, manteve meu universo completo de afetos e conhecimentos por todo esse tempo de vida universitária. Tijuca, uma casa/república que reuniu pessoas que vou levar comigo pro resto da vida. Jão, Pamonha, Leite, Léo, Maitê, vocês são os irmãos que encontrei por um acaso proposital. Aprendi muito. O que seriam dos meus olhos se não tivesse aprendido a ouvir um belo jazz, ou o que seriam dos meus ouvidos se não tivesse aprendido a enxergar as verdades por trás de um belo filme; e a minha cabeça, que aprendeu a saborear as melhores discussões em refeições recheadas de conteúdo. Foi um processo transformador; e assim se fez minha convivência com vocês. Entre as outras famílias, queria agradecer a serenidade quase mística de uma Maria Loca sempre acolhedora; a vivacidade rebelde que me ensinaram na Vinoma; os veteranos meio gurus, que moravam num Casarão; e a atual Larica, que me presenteou com as mulheres mais carinhosas do Oeste; ainda tem outras mulheres como Narcisas e Pagus que também estiveram sempre do meu lado; além dos agregados que como moradores frequentes deixaram um pouco de si em cada passagem: verdades psicodrópicas, tecnologias milanésimas, permaculturas botucudas e outras mais. Entre a família conterrânea agradeço a Adriana Aparecida, que compartilhou comigo todas as suas experiências cheias de conhecimento; você foi minha padrinha. E na família acadêmica agradeço ao Cláudio Amaral, que acreditou na minha vontade de aprender; e a Kelly que ensinou a infalível pedagogia da mesa de bar. Não existe melhor. Aos outros amigos, que estão indiretamente relacionados a

minha vida e a esse trabalho, um sincero agradecimento.

Agradecimentos

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DedicatóriaDedico esse trabalho a uma senhora que a muito tempo acredita nos meus sonhos e idealizações. D. Lúcia, minha mãe, obrigado.

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Sumário

Introdução

1. Sobre o desenho, a linguagem e as transformações do antigo sistema corporativo de aprendizagem.

2. A missão Francesa no Brasil e sua relação com as Artes mecâni-cas e as Artes liberais.

3. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, Rui Barbosa e John Ruskin

4. O Positivismo, o ensino técnico e o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo

5. Em busca de objetividades

6. O método de ensino/aprendizagem nas escolas de Arquitetura do Brasil

Considerações finais - Os verbos do desenho

Referências Bibliográficas

Apêndice - Do desenho a dissolução do lugar arquitetônico

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NAO E DEMAIS INSISTIR NOS SIG-NIFICADOS DA PALAVRA DESENHO. A ACEPCAO USUAL QUE A REDUZIU, EM PORTUGUES, QUASE QUE A RE-PRESENTACAO GRAFICA, AOS ATOS DE LANCAR NO PAPEL COM MAIORES OU MENORES RECURSOS TECNICOS ALGO QUE JA EXISTE, E QUE, POR-TANTO SE QUER REPRESENTAR, OU ENTAO ALGO QUE AINDA NAO EX-ISTE E SE QUER PROJETAR, PASSA, QUASE QUE COM EXCLUSIVIDADE, DENOTAR DESENHO. MAS, COMO MOSTRA ARTIGAS, DESENHO SE FILIA O ETIMO DESIGNIO, QUE E DESEJO, VONTADE, TENSAO, E A PERDA DA CONSCIENCIA DESSA RAIZ, EM POR-TUGUES, ASSOCIA-SE A PROPRIA PERDA DA CONDICAO DE DECIDIR, DE EXPOR E REALIZAR A VONTADE. (GAMA, 1985, P.15).

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A ARQUITETURA COMO CONSTRUIR PORTAS,DE ABRIR; OU COMO CONSTRUIR O ABERTO;CONSTRUIR, NAO COMO ILHAR E PRENDER,NEM CONSTRUIR COMO FECHAR SECRETOS;CONSTRUIR PORTAS ABERTAS, EM PORTAS;CASAS EXCLUSIVAMENTE PORTAS E TETO.

O ARQUITETO: O QUE ABRE PARA O HOMEM(TUDO SE SANEARIA DESDE CASAS ABERTAS)PORTAS POR-ONDE, JAMAIS PORTAS-CONTRA;POR ONDE, LIVRES: AR LUZ RAZAO CERTA.

ATE QUE, TANTOS LIVRES O AMEDRONTANDO,RENEGOU DAR A VIVER NO CLARO E ABERTO.ONDE VAOS DE ABRIR, ELE FOI AMURANDO

OPACOS DE FECHAR; ONDE VIDRO, CONCRETO;ATE REFECHAR O HOMEM: NA CAPELA UTERO,

COM CONFORTOS DE MATRIZ, OUTRA VEZ FETO.

JOAO CABRAL DE MELO NETO

DESEJO

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Introdução

O presente volume pretende conceber o panorama do ensino de desenho no Brasil na visão de um estudante que está prestes a se graduar e questiona a história oficial do ensino dessa disciplina, bem como o processo de ensino-aprendizagem ao qual esteve inserido. O trabalho não visará a construção de uma nova metodologia de ensino-aprendizagem, sendo ele a própria crítica explicitada. O enfoque será a evolução do ensino de desenho técnico e suas relações com o trabalho a partir da chegada da Missão Francesa no período colonial brasileiro, passando também pelas propostas pedagógicas de Rui Barbosa e as iniciativas dos Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e de São Paulo durante o período de industrialização nacional. As propostas de ensino de desenho serão relacionadas ainda com as idéias de estética do crítico inglês John Ruskin, que durante o século XIX disseminou suas teorias por vários países, incluindo o Brasil. E, em seguida, as propostas de ensino nas escolas de Arquitetura também serão relacionadas com os ideais Positivistas do período modernista e até da contemporaneidade.Exposto isto e, tomando por base uma estrutura genérica da História em que a Revolução Industrial transforma novamente os paradigmas entre as Artes mecânicas e as Artes liberais, inicia-se o processo de pesquisa em torno do ensino de desenho técnico no Brasil e, em alguns momentos mais específicos, a relação com o ensino de Arquitetura em sua maneira mais abrangente.

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MAS E DIFICIL PENSAR, EM OUTRA FORMA DE TRANSMISSAO DOS CONHECIMENTOS TECNICOS, DAS ARTES, QUE NAO FOSSE O APRENDER FAZENDO NAS PRÓPRIAS OFICINAS DOS ARTESAOS. ASSIM SENDO, MESMO QUE NUMEROSAS PROFISSOES NUNCA SE TENHAM INTEGRADO NO SISTEMA CORPORATIVO, APRENDER FA-ZENDO TERIA SIDO COMUM A TODOS OS OFICIOS. (GAMA, 1987, P.121).

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Sobre o desenho, a linguagem e as transformações do antigo sistema corporativo de aprendizagem.

O desenho é a forma de expressão humana mais antiga e que melhor permite a representação dos objetos que compõe o mun-do que nos rodeia. De fato, uma das primeiras referências da ex-istência humana na Terra aparece nas imagens desenhadas nas cavernas, que hoje chamamos de imagens artísticas. Neste sen-tido, pode-se dizer que o desenho, como forma de representação e comunicação, faz parte da própria história da humanidade.

Assim como a arte de uma forma geral, o desenho estava inserido em um contexto tribal-religioso em que acreditava-se que o resul-tado do processo de desenhar possuísse uma “alma” própria: o desenho era mais um ritual místico que um meio de expressão. À medida que os conceitos artísticos foram, lentamente, durante a Antiguidade separando-se da religião, o desenho passou a gan-har autonomia e a se tornar uma disciplina própria. Como fala Gama (1987) “Boa parte do vocabulário usado no campo do ensi-no origina-se dos Collegia Opificium romanos, criados, segundo Plutarco, por Numa, rei de Roma. De lá vem as palavras colégio, escola, aula, mestre, universidade, arte etc.” De maneira geral, os pesquisadores concordam quanto a descontinuidade entre os Collegia romanos e as Corporações Medievais, que utilizavam uma metodologia de aprendizagem onde a passagem de con-hecimento se dava pela convivência entre mestre e aprendizes durante um determinado período.

Mas é difícil pensar, em outra forma de transmissão dos conheci-

mentos técnicos, das artes, que não fosse o aprender fazendo

nas próprias oficinas dos artesãos. Assim sendo, mesmo que nu-

merosas profissões nunca se tenham integrado no sistema cor-

porativo, aprender fazendo teria sido comum a todos os ofícios.

(GAMA, 1987, p.121).

A partir desse período (da Antiguidade ao Renascimento) inicia-se uma preocupação em empreender um estudo sistemático do desenho enquanto forma de conhecimento além de fomentar uma estruturação nas formas de divisão e produção do trabalho. Essa mudança gerou o desenvolvimento do desenho como ferramenta de trabalho do arquiteto, bem como dos artesãos que se envolvi-am com a produção de manufaturas.

Segundo Ortega (2000, pg.07), foi a partir do renascimento, - em que a manufatura, sob a propriedade da burguesia, substituiu o artesanato, e fez surgir novas formas de divisão do trabalho – que a utilização do desenho tornou-se indispensável.

Outro aspecto importante desse período de transição do arte-sanato para a manufatura foi a maneira como a linguagem dos artesãos foi sendo decomposta e essa informação começou a ser repassada. As corporações de ofício retinham todos os conheci-mentos das técnicas e mecanismos de construção que eram

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passados a um aprendiz a partir de um período de trabalho junto a corporação. A alteração desse sistema de aprendizagem foi essencial para a transformação da arte do espírito do puro arte-sanato. A educação da nova geração nas artes passou da ofi-cina para a escola, e a instrução prática teve que ceder em parte à instrução teórica, a fim de remover os obstáculos que o velho sistema colocava no caminho dos jovens talentos.

Sobre a mudança na metodologia de aprendizagem dos ofícios em função de um sistema de produção nos moldes Capitalistas que se esboçava, Gama (1987, p.123) fala

“Seria mais correto procurar as causas da decadência do pro-

cesso do ensino nas oficinas – quer dizer no trabalho -, não em

atos político-administrativos, como foi a lei Le Chapelier, mas sim

na própria superação do modo de produção artesanal. É o capi-

talismo, com suas empresas de mineração, com seus moinhos,

com a manufatura disciplinadora, que acaba ou pelo menos reduz

a significação global do trabalho nas pequenas oficinas e do tra-

balho em domicílio”.

O ensino técnico – o ensino especial, o ensino primário superior,

correspondia a novas necessidades, de ordem técnica e profis-

sional, que as grandes transformações econômicas do século XIX

fizeram nascer, particularmente o desenvolvimento da grande in

dústria e da administração pública e particular. Os antigos centros

corporativos, aludidos em 1791, não haviam conseguido reconsti-

tuir-se. Por outro lado, os operários qualificados não podiam mais

contentar-se com receber, como outrora, na oficina do mestre

artesão ou na da família, as tradições concernentes a prática dos

ofícios (HUBERT, 1976, p.95).

Alguns pensadores do século XVI já iniciavam discussões acerca das transformações no sistema corporativo de aprendizagem, através de uma visão utópica do futuro, além de criticarem as relações sociais nascidas com o capitalismo, como no caso de Thomas More. A questão da transmissão dos conhecimentos técnicos estava no ar, e nos séculos XVI e XVII, quando as corporações estavam no apogeu, não poderia deixar de despertar o interesse dos filósofos que se opunham à escolástica e ao ensino baseado na retórica. A partir do inglês Francis Bacon alguns de seus discípulos, como John Locke, atribuíram a educação um valor utilitário e vinculada a exercícios de caráter prático, preocupado também com a for-mação a partir de hábitos de ordem, de disciplina e sobriedade. Nesse período de transformações na educação, a universidade continuava alheia ao novo pensamento sobre as técnicas.

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Na França, que tem importante papel no desenvolvimento da ed-ucação técnica e artística,

as primeiras formas de educação técnica escolarizada são orga-

nizadas em função das necessidades econômicas e militares do

Estado. É nas manufaturas do Estado e nas oficinas da marinha e

do exercito que se concentra fundamentalmente o ensino técnico

do “antigo regime” (GAMA, 1987, p.130).

Assim é que, a partir do século XIX começam a ser criadas aca-demias de nível superior para o ensino das artes e do desenho, além de algumas iniciativas particulares de ensino técnico. É nes-sa época, que se difunde a idéia do desenho como base de to-dos os trabalhos mecânicos, como na iniciativa de Jean Jacques Bachelier, em 1766, na fundação da Escola Real francesa para o ensino gratuito de desenho.

E no século XVII um dos importantes nomes da história da ed-ucação é o suíço Jean Jacques Rosseau. Sua teoria coloca a experiência direta e a razão sobrepondo-se ao autoritarismo na educação, valorizando o aprender fazendo. Suas idéias sobre a educação através do trabalho manual influenciaram escolas el-ementares do século XVIII e XIX, como veremos mais adiante na proposta de Rui Barbosa para a educaçãho no Brasil. Ainda no século XIX, o projeto de cidade utópica de William Morris reforça

a importância do ensino das artes e ofícios na estruturação da cidade e sociedade.

Esse breve contexto sobre a evolução do ensino técnico nos pre-para para entender como foi estruturada a vinda da Missão Fran-cesa para o Brasil, durante o período colonial, e quais as reais intenções e propostas do grupo francês ao se instalar no Brasil.

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AS ARTES LIBERAIS COMECARAM A SER ESTUDADAS E SISTEMATIZADAS NA ANTIGUIDADE CLASSICA GREGA E RO-MANA, SENDO O CONCEITO RETOMADO NA IDADE MEDIA EUROPEIA. ELAS ERAM CONSIDERADAS AS DISCIPLINAS PRO-PRIAS PARA A FORMACAO DE UM HOMEM LIVRE, DESLI-GADAS DE TODA PREOCUPACAO PROFISSIONAL, MUNDANA OU UTILITARIA. CONTRAPOEM-SE AS ARTES MECANICAS, OU SEJA, AS DISCIPLINAS NAO DIRETAMENTE RELACIONADAS A INTERESSES IMATERIAIS, METAFISICOS E FILOSOFICOS, MAS ESTRITAMENTE TECNICOS.

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A missão Francesa no Brasil e sua relação com as Artes mecânicas e as Artes liberais.

A missão Artística francesa chega ao Brasil em 1816, composta por alguns artistas como o arquiteto Grandjean de Montigny e o pintor João Batista Debret, além de escultores, compositores, en-genheiros e mestres de ofícios, sob chefia de Joaquim Lebreton. A essa Missão francesa se creditou a fundação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, e a Lebreton se deve uma interes-sante proposta de criação de uma escola gratuita de desenho para as artes e ofícios, gerando uma dupla escola de artes na complementação da Academia de Belas Artes (GAMA 1987).

Nas palavras de Lebreton, traduzidas pelo professor Mário Ba-rata,

este duplo estabelecimento, embora de natureza diversa da do

primeiro, se amalgama perfeitamente com ele. Será, inicialmente,

o mesmo ensino dos princípios básicos do desenho até o estudo

que se diz baseado no vulto; e serão os mesmos professores, a

saber, o Sr. Debret e o professor português já empregado, que

se encarregarão desta parte do ensino; coloco aí o Sr. Debret

como tendo grande experiência do ensino elementar do desenho,

bem como do de pintura, porque ele não somente dirigiu durante

quinze anos o atelier” dos alunos de David; foi durante dez anos o

único mestre de desenho do melhor e mais numeroso colégio de

Paris, o colégio de Ste. Barbe (GAMA, 1987, p.134).

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Além da preocupação com o ensino de desenho, Lebreton tam-bém propunha em sua escola de artes e ofícios uma aproximação com a Arquitetura, em especial no desenvolvimento da ornamen-tação e construção de mobiliários:

Após os primeiros passos de estudo da figura, vem o desenho

de ornato, de aplicação tão variada e tão útil em todos os ofícios

em que o gosto pode ornamentar e embelezar, seja pela escolha

das formas, seja nos acessórios. Aqui a escola passa quase que

inteiramente para a influencia do professor de arquitetural porque

os móveis, vasos, objetos de ourivesaria e bijuteria, marcenaria

etc. são de sua competência ao mesmo tempo que ele ensinará

ao carpinteiro e ao fabricante de carroças a traça, com regras de

precisão e exatidão que devem guiar todos os artesãos (GAMA,

1987, p.135).

Na história oficial que se encontra na maioria dos livros e pes-quisas pela internet a Missão Francesa revolucionou o panorama das Belas-Artes no país introduzindo o sistema de ensino superior acadêmico e fortalecendo o Neoclassicismo que ali estava inician-do seu aparecimento. Também se fala de sua importância como fundadora de um novo sistema de ensino, organizada dentro de linhas metodológicas rígidas, com temáticas próprias, modelos formais próprios, exames de aptidão e sistema de premiações, e boa parcela de censura a originalidades suspeitas de romper

os cânones consagrados (CARDOSO 2008), já que a Academia de Belas Artes se tornaria mais adiante a mais importante institu-ição oficial de arte no Brasil, e nela se formariam gerações dos maiores artistas brasileiros, atestando a validade do método pro-posto. A atuação dos franceses também contribuiu para melhorar o status do artista, assumindo uma postura de cidadãos livres, profissionais, numa sociedade em vias de laicização, e não mais submetidos à Igreja e seus temas, como se observava nos tem-pos anteriores (PETER 2010).

Outros estudiosos afirmam que durante esse processo de instala-ção da Academia foram desprezadas as fontes populares de in-spiração bem como estimulada a formação de uma elite que mo-vimentasse culturalmente a corte, além de que a oficialização do ensino da arte e da arquitetura, diante da proposta da Academia, cristalizou um padrão estético e uma abordagem metodológica que perdurou até o século seguinte (HERKENHOFF 1997).

Mas o que não fica explicitado nesse tipo de levantamento históri-co é que, como na proposta da escola gratuita de artes e ofícios de Lebreton, a Missão Francesa traz a concepção de Tecnologia Moderna ao país fundamentada nas relações de ensino com o trabalho. Com isso propõem a formação de uma geração de tra-balhadores, que não reproduziriam somente o modelo importado da Europa.

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... a segunda escola, proposta por mim, ligada como imagino à

nova academia e ajudada pelos socorros práticos que explorei

mais abaixo, fará caminhar a indústria nacional bem mais rapida-

mente do que no México (GAMA, 1987, p.135).

Refletindo um pouco mais a concepção de Tecnologia Moderna podemos colocar, a partir de Gama (1987), que ela não foi ap-enas o encontro da teoria com a prática, embora o exija. E se difere da técnica, pois essa última é um conhecimento prático que não envolve, necessariamente, teoria alguma. A técnica é tão antiga quanto a humanidade; porém a tecnologia só veio a existir depois do estabelecimento da ciência moderna, no século XVII, quando se percebeu que tudo o que o homem construía era regido por leis científicas. A tecnologia está vinculada desde seu nascimento à alteração do modo de produção e às formas de aquisição e transmissão dos conhecimentos técnicos. É a partir daí que se pode falar, com propriedade, em tecnologia. Ela começa a se configurar num saber organizado e socializado, aliado a prática das artes antigas com os métodos da ciência moderna; corresponde a um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas e a novas relações de produção, em formações sócio econômicas determinadas.

Em outras citações de seus manuscritos, Lebreton reconhece a influência exercida por Jean Jacques Bachelier e o modelo de

escola gratuita de desenho que existia em Paris naquele perío-do,

Citarei um fato digno de atenção. Em Paris é reconhecido, por

todos os homens capazes de observar as causas e seus efeitos,

que é a escola gratuita de desenho, estabelecida por volta de

1763, que se devem a feliz revolução de gosto e o grande aper-

feiçoamento experimentado pela industria francesa em todos os

ofícios relacionados com o luxo. A Academia de Belas Artes não

influiu neles, pois só admitia e só queria formar artistas.

Um de seus membros, pintor bastante medíocre de flores e ani-

mais (Bachelier), mas homem de espírito e muito ativo, imaginou

a escola tal como ainda hoje existe em Paris...

....

A velha Academia, então bem má, se escandalizou porque um de

seus membros se abaixava até os operários, prostituindo assim a

nobre arte do desenho (GAMA, 1987, p.136).

A presente aversão do ensino acadêmico em relação ao contato do operariado com o ensino do desenho, se deve as distinções entre as Artes liberais e Artes mecânicas que aconteceram ao longo da história da Arte.

Para os antigos o trabalho manual era um tipo de trabalho indigno

e o trabalho intelectual era um tipo de trabalho digno. Assim,

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se fez a divisão entre as artes liberais (relacionada ao trabalho

intelectual) das artes mecânicas (trabalho feito com as mãos na

Grécia Antiga feita por escravos) (GAMA, 1987. p.67).

As artes liberais começaram a ser estudadas e sistematizadas na Antiguidade clássica grega e romana, sendo o conceito retomado na Idade Média européia. Elas eram consideradas as disciplinas próprias para a formação de um homem livre, desligadas de toda preocupação profissional, mundana ou utilitária. Contrapõem-se às artes mecânicas, ou seja, às disciplinas não diretamente rela-cionadas a interesses imateriais, metafísicos e filosóficos, mas es-tritamente técnicos (voltados à produção de utilidades que sirvam às necessidade quotidianas do homem). Mediante o domínio das assim chamadas belas-artes, o homem seria capaz de produzir obras e idéias com poder de elevar o espírito humano para além dos interesses puramente materiais. O estudo destas artes consti-tuía a base para qualquer pessoa que quisesse aceder ao ensino superior e modelaria sistema curricular de ensino nas universi-dades medievais.

Compreendendo os aspectos da divisão entre trabalho intelec-tual e trabalho manual, Denis Diderot em sua Encyclopédie ou Dictionnaire Raisoné dês Arts Et Métiers, coloca-se em posição contraria ao desprezo pelas artes mecânicas ao definir:

Divisão entre artes liberais e mecânicas

Examinando as produções das artes percebeu-se que umas eram

obras mais do espírito do que das mãos e que ao contrário outras

eram produtos da mão do que do espírito. Esta é, em parte, a

origem da proeminência que se atribui a certas artes sobre out-

ras e da divisão que se faz das artes em artes liberais e artes

mecânicas. Esta divisão, ainda que bem fundamentada, produziu

um resultado mau, aviltando pessoas bastante dignas de estima

e muito úteis e fortalecendo em nós uma preguiça natural, de um

tipo que não sei identificar, e a partir da qual acreditamos forte-

mente que dedicar-se constante e continuamente às experiências

e a objetos específicos, sensíveis e materiais, era desrespeitar a

dignidade do espírito humano; (GAMA, 1987, p.57).

Assim como D. Diderot, outros pensadores desse período voltam os olhares para as artes mecânicas a partir da valorização das obras que eram produtos das mãos e conseqüentemente produ-tos do trabalho manual. Um aspecto importante do período de transição do artesanato para a manufatura foi a maneira como a linguagem dos artesãos foi sendo decomposta e essa informação começou a ser repassada. As corporações de ofício retinham to-dos os conhecimentos das técnicas e mecanismos de construção que eram passados a um aprendiz a partir de um período de tra-balho junto a corporação. A alteração desse sistema de apren-dizagem foi essencial para a transformação da arte do espírito

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do puro artesanato. A educação da nova geração nas artes pas-sou da oficina para a escola, e a instrução prática teve que ced-er em parte à instrução teórica, a fim de remover os obstáculos que o velho sistema colocava no caminho dos jovens talentos. No ensino das Artes mecânicas, além da preocupação com a utilidade dos objetos construídos, estava a preocupação com o aprender fazendo, bem como a preocupação com uma nova lógi-ca de produção voltada para o mercado. E o desenho se tornou uma das ferramentas mais importantes para essa transformação

Como nos fala Gama (1987 p.49), “o domínio dos segredos da linguagem dos artesãos foi a porta pelo qual se entrou no domínio dos próprios segredos dos ofícios. Dentre os mistérios dos mis-teres, a linguagem foi o primeiro a ser desvendado, decifrado e jogado na rua pelas portas e janelas arrombadas das oficinas – numa espécie de ação de despejo – para ser vista por todo mun-do. A linguagem era, e é, um importante instrumento de domínio e uma barreira aos estranhos. Pode-se verificar isto até hoje nos diversos patois, gírias e inclusive, na persistência, em sociedades onde ainda prevalece a divisão do trabalho por sexo, de lingua-gens secretas e privadas dos homens transmitidas aos adoles-centes nos ritos de puberdade”.

E nesse contexto de valorização das artes mecânicas e meios de produção e do desenvolvimento de suas linguagens, surgem

alguns pensadores, como o já citado Jean Jacques Bachelier e sua proposta de cursos públicos para as artes e ofícios em Paris, que irão propor algumas reformas pedagógicas a partir do ensino do desenho. No caso de Lebreton, influenciado por Bachelier, e sua proposta de escola gratuita de desenho concomitantemente a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, o objetivo maior era a preparação de trabalhadores para o desenvolvimento da indús-tria nacional. Porém, como nos esclarece Gama (1987) a dupla escola não se concretizou. “A instalação de uma academia era menos custosa do que a de uma escola técnica, que necessita de grande número de ferramentas, máquinas de diversos tipos, consome matéria-prima e energia”. E a Academia de Belas Artes passa a funcionar a partir de um dirigismo artístico fundamentado no neoclassicismo francês, que nas palavras de Motta mostra a exclusiva preocupação com o desenvolvimento das artes lib-erais:

O neoclassicismo correspondia assim a organização social daque-

le período, marcado pelas distâncias entre o pensar e o fazer. Um

se recolhia no idealismo; o outro, confinado aos aspectos negativos

do trabalho, nos desvios econômicos, na mecanização do homem,

na coisificação do trabalhador, na orientação não raro repressiva

e predatória. Assim a sociedade exibe objetivamente, a dicotomia

entre o pensar e o fazer, o que vale dizer, embora de forma radical,

a distinção entre o poder e o trabalho. (GAMA, 1987, p.138).

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As idéias de Lebreton começam gerar frutos alguns anos após sua morte

(1819) e somente a partir da metade do século XIX se concretizam algu-

mas medidas de transformação na transmissão do saber pela via escolar.

(GAMA, 1987).

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A GRANDE LICAO DA HISTO

RIA, DIZ O MAIOR MESTRE EM ASSUNTOS DE ARTE QUE ESTE SECULO JA PRODUZIU, E QUE, TENDO SIDO

SUSTENTADAS ATE AQUI PELO PO-DER EGOISTICODA NOBREZA, SEM

QUE NUNCA SEESTENDESSEM A CON-FRONTAR, OU AUXILIAR, A MASSA DO

POVO, AS ARTES DO GOSTO, PRATICA-DAS E AMADURECIDAS ASSIM,CONCOR-REM UNICAMENTE PARA ACELERAR A

RUINA DOSESTADOS QUEXORNAVAM; DE MO-DO QUE, EM QUALQUER REINO, O

MOMENTO EM QUEAPONTARDES OS TRI-UNFOSDOS SEUSMAXIMOS ARTISTAS, IN-DICARAPRECISAMENTE A HORA DO DESA

BAMENTODO ESTADO. HA NOMES DE GRANDES PIN-TORES, QUE SO COMO

NOBRESFUNERAIRIOS:ONOME DE VELAS-QUEZ ANUNCIA O TRASPASSO DE ESPA-

NHA;O DE TICIANO, A MORTE DE VENEZA;O DE LEONARDO, ARUINA DE MILAO;

O DE RAFAEL, A QUEDA DE ROMA.

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COINCIDENCIA PROFUNDAMENTE JUSTA; PORQUANTO ESTA NA RAZAO DIRETA DA NOBREZA DES SES TALENTOS O CRIME DO SEU EMPREGO EM PRO- POSITOS VAHOS OU VIS; E, ANTES DOS NOSSOS DIAS, QUANTO MAIS ELEVADA A ARTE, TANTO MAIS CERTO O SEU USO EXCLUSIVO NA DECORACAO DO ORGULHO, OU NA PRO-VOCACAO DA SENSUALIDADE. OUTRA E A VEREDA QUE SE NOSFRANQUEIA. DEMOS DE MAO A ESPERANCA, OU, SE PREFERIS, RENUNCIEMOS A TENTACAO DAS POMPAS E LOUCANIAS DA ITA-LIA NA SUA JUVENTUDE. NAO E MAIS PARA NÓS O TRONO DE MARMORE, NEM A ABOBODA DE OIRO; O QUE NOS TOCA, E O PRIVILEGIO, MAIS EMINENTE E MAIS AMAVEL, DE TRAZER OS TA-LENTOS E OS ATRATIVOS DA ARTE AO ALCANCE DOS HUMILDES E DOS POBRES; E, POIS QUE MAGNIFICENCIA DAS PASSADAS ERASCAIU PELO EXCLUSIVISMO E PELA SOBERBA, A NOSSA PELA SUAUNIVERSALIDADEE PELA SUA HUMILDADE SE PERPETUARA. OS QUADROS DE RAFAEL E BUONAROTTI DERAM APOIO A FALSIDADE DA SUPERSTICAO E MAJESTADE AS FANTASIAS DO MAL; A MISSAO,POREM, DAS NOSSAS ARTES E INSTRUIREM DE VERDADE A ALMA,E MOVEREM A BENIGNIDADE O CORACAO. O ACO DE TOLEDO E AS SEDAS DE GENOVA SÓ A OPRESSAO E A VAIDADE APROVEITARAM, IMPRIMINDO-LHES FORCA E LUSTRE; AS NOSSAS FORNALHAS E AOS NOSSOS TEARES O DESTINO DE REANIMAR OS NECESSITA-DOS, CIVILIZAR OS AGRESTES, E DISPERSAR PELOS LARES CHEIOS DE PAZ E BENCAO E A RIQUEZA DO GOZO UTIL E DA ORNAMENTACAO SIMPLES. RUSKIN (BARBOSA, 1950, P.41)

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O Liceu de Artes e Oficios do Rio de Janeiro, John Ruskin e Rui Barbosa .

No ano de 1856 é fundada a Sociedade Propagadora das Be-las Artes e, por conseguinte o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, atribuído pela iniciativa de Joaquim Bethencourt da Silva, antigo discípulo do Grandjean de Montigny. A proposta da escola, que segundo Gama (1987) teve sua origem nas idéias da revolução industrial trazidas pela Missão Francesa, se voltava para as classes populares através de uma educação adequada para o operário e artífice brasileiros. Com isso, o Liceu se propôs a romper as distâncias entre as artes liberais e as artes mecâni-cas, valorizando o projeto de industrialização nacional e a con-cepção da tecnologia moderna, na qual segundo Amaral (2005) estava ligada a um pensar direcionado a um fazer, ou seja, ao mundo do trabalho.

O Liceu de Artes e Ofícios, ao contrário, é uma escola rudimen-

tar, de arte aplicada a diferentes ramificações da indústria fabril e

manufatureira, trabalho indispensável a existência das sociedades

civilizadas. As matérias essenciais, como sejam a linguagem e

matemática, necessárias a formação da capacidade individual,

e o desenho de sólidos, de figura e de ornatos e o de maquinas,

são ali ensinados com aplicação aos ofícios e as profissões in-

dustriais.

A Escola de Belas Artes é a alta aristocracia do talento; o Liceu

de Artes e Ofícios é a útil oficina no aprimoramento do artesanato.

(BARROS, 1956, p.17)

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Los Rios Filho, citado por Gama (1987, p.142), reforça a idéia do plano de industrialização nacional quando fala que o Liceu

visava a formar os artífices da indústria nacional e os operários

aperfeiçoados de que ela tanto necessitava para o progresso

próprio e do país. Verdadeira escola de arte aplicada a indústria,

ela proporcionava, além de aritmética, de álgebra, da geometria,

da física, da química, da geografia e da história, um curso com-

pleto de desenho aplicável a todos os ofícios industriais

Segundo Amaral (2005), a escola, através da Sociedade Propa-gadora de Belas Artes, pretendia difundir o belo nos espaços da cidade. Através de cursos noturnos, gratuitos e sem restrição a qualquer tipo de pessoa, posição social, nacionalidade ou gêne-ro, o Liceu possibilitou o envolvimento de toda sociedade carioca, pelo objetivo de instruir uma mão de obra qualificada para a for-mação de um mercado de trabalho.

Bethencourt da Silva, que além de fundador dirigiu a instituição por muitos anos, mostrava uma idéia de estética de maneira eclé-tica em alguns de seus conceitos, e que, segundo Amaral (2005) teria influências tanto do Neoclassicismo quanto do Romantismo.

Para copiar belezas da natureza, não como um estudo necessário

ao conhecimento da forma e a prática do exercício da profissão,

mas sim como origem ou fonte do belo e principal fim da arte, se-

ria preciso, amesquinhando as altas aspirações da humanidade,

esquecer que imitar não é copiar, porém, já escolher; e que para

a escolha assisada e constitutiva da produção, é indispensável o

sentimento harmônico da beleza, que guia as faculdades do en-

tendimento nas produções da arte. (BARROS, 1956, p.205)

A arte é, pois, a manifestação imediata das faculdades do sen-

timento, e das que se dirigem a potente faculdade do entendi-

mento, reagindo sobre a parte moral do homem: ela é a sublime

revelação do poder supremo da criatura sobre todos os outros

animais, ainda mesmo aqueles cuja estrutura é mais semelhante

à do homem. (BARROS, 1956, p.208)

Para tanto, o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro não se prendeu a nenhum paradigma estético, num objetivo maior de valorização do ensino técnico, traduzido no desenvolvimento da capacidade artística, tanto intelectual quanto manual, de seus alunos e que se dava a partir do ensino do desenho.

Não só todo povo deve ser instruído nas regras principais do de-

senho e nas suas mais importantes aplicações industriais, como

também ser habilitado para adquirir, em alto grau, capacidade

artística tanto intelectual como manual. O que é bem feito faz-se

em geral por um bom desenho. Os mais belos resultados industri

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ais tem sido obtidos quando a pessoa, que desenha, é a mesma

que executa; e mais ainda quando o operário tem recebido a

necessária educação artística (BARROS, 1956, p.222).

E assim, baseado no ensino do desenho e em suas aplicações industriais, o Liceu reforçava a idéia de um ensino voltado para as classes populares e uma educação adequada para o operário e artífice brasileiros.

Quanto melhor artista melhor operário, porque a obra dá testemu-

nho do artista. É pois, da maior importância que o ensino do de-

senho vá além de simples exercício de copiar; que os bons princí-

pios sejam completamente ensinados, e que, desde os primeiros

anos, sejam os meninos habituados a produzir desenhos originais

(BARROS, 1956, p.208).

Essa política do ensino do desenho, compreendida no discurso de Bethencourt, estava na cultura moderna européia que o próprio modelo francês de Liceu de Artes e Ofícios representava. Após a catastrófica exposição de produtos industriais de Londres em 1851, a estética dos produtos manufaturados passou a ser dis-cutida em toda Europa, e o ensino do desenho pareceu apontar para a solução dessa situação (Amaral 2005).

Rui Barbosa, que segundo Barros (1956) deve a instituição o seu

melhor hino e a melhor justificativa de sua existência, declara na cerimônia inaugural do Liceu, em 23 de novembro de 1882:

O Liceu de Artes e Ofícios é um rasgo de heroicidade moral que

inspira aos mais incrédulos uma confiança reanimadora. Quando

o país realizar a obra de emancipação contra a ignorância, a glo-

ria incomparável de ter assentado a pedra angular de um monu-

mento mais forte que os séculos (BARROS, 1956, p.152).

Sua pesquisa e envolvimento com a reforma na educação primária e o ensino do desenho acabaram por se relacionar com as pro-postas do Liceu do Rio de Janeiro, e foram afirmadas através da famosa peça oratória de inauguração da instituição: “o Liceu encerra, em si, a fórmula mais precisa da educação popular, e a educação real do povo é a educação da Nação. Essa formula tem dois termos capitais: a educação pela arte e a educação pela mulher” (Barbosa, 1950, p.11) e

O Liceu de artes e Ofícios é a encarnação mais eficaz e mais com-

pleta deste movimento. (Referia-se ao se ao ensino do desenho).

Abri os olhos no seio dele, e involuntariamente perguntareis: É o

Brasil? Eu ia perguntar: É a rotina? Não. É uma visão realizada. É

uma miragem colhida por um gênio (BARBOSA, 1950, p.10)

Durante o discurso, Rui Barbosa demonstra um conhecimento

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em relação as discussões sobre as artes mecânicas que acon-teciam na Europa naquele período, bem como sobre os modos de produção que se transformavam por lá com a evolução do processo industrial. “O público e o operário eram ignorados pela arte. A exposição de Londres em 1851 foi o começo de uma nova era. Ela “fez pela arte, entre os ingleses, o que Sócrates fizera pela filosofia, quando trouxe dos numes aos homens: ensinou ao povo britânico que a deusa podia habitar sob o teto de qualquer família, como num palácio veneziano”” (Barbosa, 1950, p.13). E a partir disso propunha com consistência o desenvolvimento da indústria nacional.

Nenhum país, ao meu ver, reúne em si qualidades tão decisi-

vas para ser fecundamente industrial, quanto aqueles, como o

nosso, onde uma natureza assombrosa prodigaliza às obras do

trabalho mecânico e do trabalho artístico um material superior, na

abundância e na qualidade (BARBOSA, 1950, p.47).

Criar a indústria é organizar a sua educação. Favorecer a indús-

tria é preparar a inteligência, o sentimento e a mão do industrial

para emular, na superioridade do trabalho, com a produção simi-

lar dos outros Estados (BARBOSA, 1950, p.48).

Outro aspecto importante de sua peça oratória é a valorização do ensino popular do desenho, que foi atribuído ao modelo

pedagógico do Liceu de Artes e ofícios do Rio de Janeiro e tam-bém em suas obras literárias Lição de Coisas e Reforma do Ensi-no Primário. Para Rui Barbosa, “o ensino popular do desenho, que em si encerra a chave de todas as questões e de todos os destinos no domínio da arte, é, entre todas as nações cultas, um fato total ou parcialmente consumado. Já se pode escrever que esse desiteratum fixa em si a grande preocupação dos nossos dias” (Barbosa, 1950, p.18). A partir do desenho voltado para a arte aplicada, ele celebra o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e sua proposta pedagógica:

“Eis a arte que hoje celebramos aqui: aquela que dignifica as

necessidades mais habituais da nossa passagem na terra; que

irradia sobre todos os momentos da nossa vida; que se dedica

à felicidade da maioria dos homens: a arte aplicada... Certo não

serei eu quem conteste o principio da unidade superior da arte.

Entre a arte aliada a cultura industrial e as belas artes, não há

distinção substancial, não há divisória insuperável, não há hetero-

geneidade” (BARBOSA, 1950, p.29).

Ainda sobre o desenho, ele enxergava o seu ensino como uma exigência necessária para a época, que deveria se inserir tanto nas escolas técnicas quanto nas escolas primárias.

Semear o desenho imperativamente nas escolas primárias, abrir-

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lhe escolas especiais, fundar para os operários aulas noturnas

desse gênero, assegurar-lhe vasto espaço no programa das es-

colas normais, reconhecer ao seu professorado a dignidade, que

lhe pertence, no mais alto grau da escala docente, par a par com

o magistério da ciência e das letras, reunir toda essa organização

num corpo coeso, fecundo, harmônico, mediante a instituição de

ma escola superior de arte aplicada, que nada tem, nem até hoje

teve em parte nenhuma, nem jamais poderá ter, com Academias

de Belas artes, ... . Não é uma aspiração do futuro; é uma exigên-

cia da atualidade mais atual, mais perfeitamente realizável, mais

urgentemente instante (BARBOSA, 1950, p.50).

Dessa maneira, Rui Barbosa incorporava no ensino do desenho uma crítica ao modelo pedagógico que era utilizado nas esco-las primárias do Brasil durante a metade do século XIX. Para ele, os brasileiros mantinham as tradições jesuíticas de ensino, a mecanização da palavra, em que a retórica era o principal meio de instrução. “O nosso ensino reduz-se ao culto mecânico da frase: por ela nos advêm feitas, e recebemos inverificadas, as opiniões que adotamos” (BARBOSA, 1950, p.51).

Nesse mesmo período, surge na Inglaterra o crítico de arte John Ruskin que através de suas idéias de estética e teoria da percep-ção influenciou tanto a Europa quanto o Brasil, de forma indireta, na iniciativa do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, de

maneira mais direta, na proposta pedagógica de ensino primário de Rui Barbosa, em citações nas obras Lições de Coisas, Re-forma do Ensino primário e no próprio discurso feito durante a inauguração do Liceu de Artes e Ofícios intitulado O Desenho e a Arte industrial.

John Ruskin foi um crítico de arte inglês que durante o século XIX exprimiu suas opiniões sobre os mais diversos assuntos, de arte, arquitetura, religião até política, através de um método que valori-zava uma lógica mútua entre esses assuntos, a princípio tradados isoladamente. De acordo com Amaral (2005), sua obra tem por base o ensino da visão, capaz de ensinar a ler a lógica da natur-eza. “Para Ruskin, tudo que existe na natureza (homens, animais, vegetais, minerais...) possui uma forma. Sejam quais forem esses elementos, essa forma sempre será dotada de uma parte material e outra espiritual, que chamou de alma” (AMARAL, 2005, p.20). Através dessa lógica, cada elemento natural teria uma verdade, isto é, uma essência que lhe atribuiu algum caráter. E essas ver-dades deveriam ser relacionadas por meio de uma composição natural. A cada elemento natural também se atribui um espírito, ou moral, que pode ser apreendido num procedimento que é ao mesmo tempo sensorial e intelectual, e que resulta do relaciona-mento harmonioso entre os elementos.

In The Elements of Drawing, Ruskin presents his arguments for

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the primacy of sight, and for the relationship between drawing and

the education of vision: “the excellence of an artist”, he writes, “de-

pends wholly on a refinement of perception, and ... it is this, mainly,

which a máster or a school can teach (HASLAM, 2000, p.151).

A isso se deve a inusitada teoria da percepção criada por Ruskin, e que também estava contida em sua proposta de ensino do de-senho. “Para Ruskin, ensinar a desenhar é ensinar a ver, e ensinar a ver é ensinar a ler a lógica da natureza. Lembrem-se, dizia, não estou aqui para ensinar você a desenhar, estou aqui para ensiná-lo a ver” (AMARAL, 2005, p.11).

In his address, Ruskin emphasized the cultivation of visual per-

ception as the central concern of education: “We shall obtain no

satisfactory result”, he told them, “unless we ... set ourselves to

teaching... as far as we can, one and the same thing to an all;

namely, Sight... (Because) to be taught to see is to gain word and

thought at once”. The opportunity, however, was not to be missed

to pass some critical observation while Redgrave was on hand,

and Ruskin drew attention to the dangers of what he called “Showy

work” which he believe was the result of “servile compliance” with

meaningless rules. By contrast, he suggested that greater value

should be accorded to bring “the most pupil (had) learned much

in doing”, for these would bring “the most precious results for his

understanding and his heart, not for his hand (HASLAM, 2000,

p.152).

Mas Ruskin não utilizava regras para o ensino do desenho, e pro-punha que cada aluno construísse sua própria didática, conforme o entendimento da lógica natural. Sua proposta pedagógica se opôs ao ensino do desenho técnico cuja importância está na memorização de regras de geometria e estilos arquitetônicos apreendidos pela mão.

The radical nature of Ruskin´s approach to the teaching of draw-

ing at the working Men´s College differed in major respects from

that undertaken in the Goverment Schools of Art. It is clear that

Ruskin was not attempting to train artists or industrial designers

but, rather, to show how drawing could be used as a powerful

part of general education. (...) As reported by William Bell Scott,

former of the School of Art at New Castle, a South Kensington in-

spector, the college repudiated every point of the curicullum of the

Government system. The lessons were varied and encouraged an

individuality of approach (HASLAM, 2000, p.150).

Em O Desenho e a Arte Industrial de Barbosa, Ruskin é qualifi-cado como “o maior mestre em assuntos de arte que este século já produziu” em uma passagem no qual o inglês valoriza o de-senvolvimento da arte popular em contrapartida a arte egoísta da nobreza.

A grande lição da historia”, diz o maior mestre em assuntos de

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arte que este século já produziu, “’e que, tendo sido sustentadas

até aqui pelo poder egoístico da nobreza, sem que nunca se es-

tendessem a confrontar, ou auxiliar, a massa do povo, as artes do

gosto, praticadas e amadurecidas assim, concorrem unicamente

para acelerar a ruína dos Estados que exornavam; de modo que,

em qualquer reino, o momento em que apontardes os triunfos

dos seus máximos artistas, indicará precisamente a hora do de-

sabamento do Estado. Há nomes de grandes pintores, que são

como dobres funerários: o nome de Velásquez anuncia o traspas-

so de Espanha; o de Ticiano, a morte de Veneza; o de Leonardo,

a ruína de Milão; o de Rafael, a queda de Roma. Coincidência

profundamente justa; porquanto está na razão direta da nobreza

desses talentos o crime do seu emprego em propósitos vãos ou

vis; e, antes dos nossos dias, quanto mais elevada a arte, tanto

mais certo o seu uso exclusivo na decoração do orgulho, ou na

provocação da sensualidade. Outra é a vereda que se nos fran-

queia. Demos de Mao a esperança, ou, se preferis, renunciemos

a tentação das pompas e louçanias da Itália na sua juventude.

Não é mais para nós o trono de mármore, nem a abóboda de oiro;

o que nos toca, é o privilegio, mais eminente e mais amável, de

trazer os talentos e os atrativos da arte ao alcance dos humildes

e dos pobres; e, pois que magnificência das passadas eras caiu

pelo exclusivismo e pela soberba, a nossa pela sua universali-

dade e pela sua humildade se perpetuará. Os quadros de Rafael

e Buonarotti deram apoio a falsidade da superstição

e majestade as fantasias do mal; a missão, porem, das nossas

artes é instruírem de verdade a alma, e moverem a benignidade o

coração. O aço de Toledo e as sedas de Gênova só a opressão e

a vaidade aproveitaram, imprimindo-lhes força e lustre; às nossas

fornalhas e aos nossos teares o destino de reanimar os necessi-

tados, civilizar os agrestes, e dispersar pelos lares cheios de paz

e bênção e a riqueza do gozo útil e da ornamentação simples. –

Ruskin (BARBOSA, 1950, p.41).

No livro A Reforma do Ensino Primário, Barbosa propõe uma re-forma para o sistema de ensino popular, baseado na crítica ao modelo tradicional de ensino vigente naquela época, em que “o espírito da criança não seja contrariado e tolhido no seu desen-volvimento pelas lições mecânicas de mestres incapazes, em que a instrução, em vez de ser, para o preceptor e o discípulo, um mútuo incômodo, seja um prazer comum, satisfazendo, na ordem apropriada, às faculdades, cada uma das quais veementemente aspira a uma instrução apresentada sob a devida forma” (Bar-bosa, 1946, p.48). Para ele, assim como para Ruskin, a educação deveria partir de uma compreensão da Natureza e que se dá com o desenvolvimento dos sentidos e da intuição. “Haveis de educar o menino, como a natureza educou o gênero humano” (Barbosa, 1946, p.51).

“Mr. Ruskin, o eloqüente artista, a cuja influencia se deve, em nos

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sos dias, o despertar da vida artística no seio da Inglaterra, e cuja

benéfica propaganda substituiu, no sentimento publico, o culto

das antigas convenções pelo estudo reverente e afetuoso da na-

tureza, atuando profundamente na moderna cultura popular do

seu país. Mr. Ruskin lamentava um dia o esquecimento da natur-

eza na educação, em palavras que parecem tecidas de propósito

para o estado geral do ensino entre nós.

Até bem recentemente, dizia ele, toda a energia da educação

convergia, de todos os modos possíveis, para extinguir o amor

da natureza. Toda a instrução que entre nós se tinha e havia

por essencial, era puramente verbal, completando-se pelo con-

hecimento de ciências abstratas; ao passo que qualquer pendor

manifestado pelas crianças para objetos puramente naturais sof-

ria violenta repressão, ou era escrupulosamente circunscrito às

horas de recreio; tornando-se assim impossível ao menino estudar

afetuosamente, sem quebra dos seus deveres a obra divina; pelo

que o amor da natureza viera a constituir peculiarmente a car-

acterística dos vadios e ociosos (BARBOSA, 1946, p.253).

Educar a vista, o ouvido, o olfato; habituar os sentidos a se ex-

ercerem naturalmente, sem esforço e com eficácia; ensiná-los a

apreenderem os fenômenos que se passam de redor de nós, a

fixarem na mente a imagem exata das coisas, a noção precisa

dos fatos,eis a primeira missão da escola, e, entretanto, a mais

completamente desprezada na economia dos processos rudi-

mentares que vigoram em nosso país (BARBOSA, 1946, p.53).

Através da intuição e da observação, Barbosa (1946) também propõe em seu livro uma reorganização do programa escolar em que seria respeitada uma ordem natural da evolução. Dessa ma-neira, a partir do entendimento de progressão natural das coisas, o desenho passa a ser visto como expressão inicial no desen-volvimento da criança e assim ganha valor em sua proposta de reforma. “Modelar formas, e debuxar imagens: eis a primeira e a mais gerla expressão da capacidade criadora nas gerações nascentes. Cabe, pois, ao desenho, no programa escolar, pre-cedência à escrita, cujo ensino facilita, e prepara,” (Barbosa, 1946, p.64). Além disso, Barbosa enxergava o desenho como um principio fecundante do trabalho e propulsor essencial do desen-volvimento econômico dos Estados, lembrando que sua proposta de reforma do ensino era considerada um projeto para a industri-alização do país.

Para Amaral (2005), tanto Barbosa como Ruskin e Bethencourt anunciavam o ensino da estética como uma atribuição moral:

Vais-se começando a encarar o desenho como ramo essencial

da educação geral em todos os graus, e, ainda, como a base de

toda a educação técnica e industrial. Vai-se percebendo que ele

constitui uma coisa útil em todas as partes do trabalho e em todas

as condições da vida; que é o melhor meio de desenvolver a fac-

uldade de observação, e produzir o gosto do belo nos objetos da

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natureza e da arte; que é indispensável aos arquitetos, ao grava-

dor, ao desenhador, ao escultor, ao mecânico; que, em suma dá

à mão e ao olho uma educação, de que todos tem necessidade

(BARBOSA, 1946, p.110).

Ainda sobre a moral, Barbosa escreve que

Instruir não é simplesmente acumular conhecimentos, mas culti-

var as faculdades por onde os adquirimos e utilizamos a bem do

nosso destino. Senão as educamos simultaneamente na direção

da esfera intelectual e na direção da esfera moral, te-las-emos

condenado a um desenvolvimento incompleto. Conhecer é pos-

suir a noção completa e o sentimento perfeito da lei no mundo

moral, como na criação material. A ausência da percepção do de-

ver é, pois, uma das faces da ignorância, no sentido ao menos em

que a entendemos, quando lhe opomos como antídoto a escola.

E, se, entre coisas tão naturalmente destinadas a andar juntas e

cooperar aliadas, fosse licito propor escolha, não há consciência

humana que hesitasse um instante entre um ímprobo e um analfa-

beto, entre um analfabeto e um mau (BARBOSA, 1946, p.366).

Ética, moral e caráter são noções que, para Ruskin, em ultima in-

stância, não se diferenciam umas das outras. Ao tratar do caráter

de um objeto, ele estaria, na verdade, referindo-se a um juízo de

valor, a uma moral. O caráter definiria parcamente a essência do

espírito do objeto. Contudo, essa essência não define um bem ou

um mal, um certo ou errado, mas uma predileção para o bem ou

para o mal, o certo ou o errado, uma predileção para uma situa-

ção de harmonia. Essa definição ocorrerá apenas após ter havido

um tipo particular de relação entre as partes cujo resultado atinge

esse estado de equilíbrio (AMARAL, 2005, p.21).

Ao escrever Lições de Coisas (1950), tradução do livro do norte americano Calkins, Barbosa retoma a critica da metodologia de ensino vigente naquela época, além de referir-se a conciliação da educação com a natureza, como nos aponta Amaral (2005), most-rando assim mais uma vez que conhecia os ideais de Ruskin.

A escola não desenvolverá na criança a atividade, a espontanei-

dade e o raciocínio, se não tiver as janelas abertas para a cidade,

para a natureza, para a vida. Tudo o que permanece no estado

de formula, tudo o que se refolha sob a letra, é morto, enquanto

o espírito não fizer surgir das palavras a coisa visível e palpável,

ativa, envolvida em nossa existência, que nos espera ao sairmos

da escola, para ser examinada, interrogada, e revelar-nos os seus

segredos (BARBOSA, 1950, p.16).

Mas esta reforma encarna em si precisamente a reação mais

completa contra esse sistema. Ela parte do desejo de unificar a

educação com a natureza; inspira-se na justa indignação contra

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a pedagogia retórica, a que, já no tempo de Montaigne, lhe di-

tava estas palavras, onde parece transluzir o pressentimento da

revolução educativa, que os nossos tempos estão presenciando

(BARBOSA, 1950, p.274).

Muito mais do que professor, Ruskin queria ensinar através de seus escritos e propor uma reforma na sociedade industrial que se formava naquele momento. “O desenho ruskiniano se relaciona com a percepção, a educação, a cultura, e as relações sociais no trabalho. A lógica presente em sua concepção de razão é quem estrutura todos esses assuntos” (AMARAL, 2005, p.11). Sobre as relações nos meios de produção, o inglês se posicionava de ma-neira contrária a qualquer tipo de divisão no trabalho, além da separação de quem pensa e quem faz, superando as diferenças existentes entre as artes liberais e mecânicas. Além disso, para Ruskin, o trabalho deveria ser feito com prazer, no sentido de que todo trabalho criativo é prazeroso.

Paralelo ao desenvolvimento do Liceu de Artes e Ofícios francês e o do Rio de Janeiro, surgiu na Inglaterra no mesmo período o movimento Arts and Crafts, liderado por William Morris, discípulo de Ruskin. O Arts and Crafts foi um movimento estético que de-fendia o artesanato criativo como alternativa a mecanização e a produção em massa e pregava o fim da distinção entre o artesão e o artista. Para alguns autores, Morris era contra o desenvolvi-

mento das máquinas na indústria e propunha a restauração da produção artesanal que estava se perdendo, porém, a sua maior crítica seria contra a mercantilização do trabalho humano e a es-cravização do homem pela máquina.

Bajo esse sistema de trabajo manual no exisita uma gran obli-

gación de rapidez em la producción de cada hombre, sino que,

por el contrario, lês estaba permitido hacer el trabajo de modo

placentero y reflexivo; se utilizaba la totalidad de um hombre para

la producción de um objeto, y no pequeñas partes de mucnos

hombres; se desarrollaba la inteligência total de cada trabaja-

dor segun sus capacidades, em vez de concentrar su energia

em uma relación unilateral com uma parte trivial Del trabajo; em

resumen, no se sometian lãs manos y el alma Del trabajador a

lãs necesidades Del mercado competitivo, sino que se lãs dejaba

libres para el debido desarrollo humano (MORRIS, 1975, p.59).

Los estudiosos de la arquitectura y el diseño modernos, suelen

presentarnos a Morris como um pionero a pesar suyo, como el

precursor involuntário de La moderna estética utilitária, o bien

como la encarnacíon deun espíritu teñido por el romanticismo e

impregnado por nostalgias Del pasado. Para otros, fue um so-

cialista utópico y lleno de ingenuidades, enemigo Del progreso

al atribuirle uma incondicionada oposición al maquinismo. Como

pronto comprobarán por si mismos los lectores, tales interpreta

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ciones son burdamente simplificadoreas y, por consiguinte, fal-

sas. Ni el diseño es uma evolución lineal hacia la racionalización y

el funcionalismo, ni la oposición a la máquina era indiscriminada,

por la sencilla razón de queno fue hecha por si misma, sino em

cuanto factor de uma condición pra la vida que hoy sigue sien-

do condenable. Es decir: traslado la problemática de lãs artes

desde el plano meramente estético – cuya importância siempre

supo valorar – al campo ético y social, anticipandose a concep-

ciones netamente actuales por haber prevsito de modo profético

lãs nefastas consecuencias artisiticas y humanas de la mercan-

tilización (MORRIS, 1975, p.13).

Preocupado com o desenvolvimento de um trabalho que fosse agradável para quem o realizasse, Morris reivindicava uma socie-dade comprometida com o socialismo, em que a produção mate-rial fosse capaz de suprir unicamente as necessidades básicas e utilitárias. Dessa maneira se posicionava contra o liberalismo econômico que permitia que o mercado funcionasse livremente sem interferências.

Esto es, pues mi reinvidicación:

Es justo y necesario que todo hombre trabaje el algo que valga la

pena, que sea agradable de hacerpor si mismo y que se realice

bajo unas condiciones que no hagan ni excesivamente fastidioso

ni escesivamente angustioso.

...

Y el precio que deberíamos pagar para dar al undo esa felicidad

seria la revolución: socialismo em vez de laissez faire.

...

Y esta última frase me lleva a considerar el outro specto de la

necesidad de que el trabajo se ocupe solamente de hacer objetos

que valga la pena hacer. Hasta ahora hemos estado pensando

em ello solamente desde el punto de vista Del usuário; claro que,

incluso considerado de esse modo, ya tênia bastante importância;

sin embargo, desde el outro punto de vista, desd el Del productor,

tiene aún mayor importância porque repito que, al comprar es-

tas cosas, son vidas humanas lo que comprais! (MORRIS, 1975,

p.116,117,120).

Em sua obra, Morris também critica o modelo educacional que se adaptava ao mercado capitalista industrial, estruturado a partir da divisão do trabalho e das classes sociais, e propõe um ensino cujo objetivo seria o desenvolvimento das habilidades individuais, passando por diversos trabalhos manuais, encaminhando assim as pessoas para as suas melhores aptidões no trabalho.

Actualmente toda la educción se encamina al objetivo de adpatar

a lãs personas a sus lugares el la jeraquia Del comercio: unos,

como amos; outro, como trabajadores. La educación de los amos

es más ornamental que la de los trabajadores, pero también es

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comercial; e incluso em lãs universidades de renombre aprender

se tiene em poco, a no ser que a largo plazo esse conocimeinto

dé dinero. La educación autética es algo totalmente distinto, y

consiste em descubrir para qué sirve cada persona y em aydarla

a lo largo Del camino para el que está inclinada. Em uma socie-

dad debidamente ordenada, por lo tanto, los jóvenes aprenderían

todos los trabajos maunales lês para los cuales tuvieran aptitud,

y ello como parte de su educación –la disciplina Del cuerpo y de

la mente-, y los adultos tendrían también la oportunidad de apren-

der em lãs miesmas escuelas, porque el objetivo principal de la

educación sería, por encima de todo, el desarrollo de lãs capaci-

dades individuales, em vez de ser, como ahora, la subordinación

de todas lãs capacidades al gran objetivo de “hacer dinero” para

si mesmo o parael dueño. La cantidad de talento e incluso de

gênio que el sistema actual aplasta y que sería liberado por el

nuevo sistema, convertiria nuestro trabajo diário em algo fácil e

interesante (MORRIS, 1975, p.102).

Y no débeis decir que actualmente todo niño inglês recibe uma

educación; esa clase de educación no responde a mi exigência,

aunque admito de Bueno grado que ya es algo: algo, pero, pese

a todo, uma educaciíón solamente clasista; lo que exijo es uma

educción liberal, es decir, participar de los conocimentos Del

mundo, según mi capcidad, inclinación o inteligência, bien sean

históricos o científicos; pero tambén participar de la habilidad

manual que existe em el mundo, ya sea mediante um arte indus-

trial o mediante lãs bellas artes: pintura, escultura, música, teatro,

etc. exijo que seme enseñe, si puedo aprenderlo, más de um solo

oficio que ejercer em beneficio de la comunidade. podréis pensar

que es uma exigência demasiado amplis si la comundad debe

obetener algo de mis capcidades especifica, y si no vamos a ser

todos reducidos almismor rasero de mediocridad, tal como ocurre

ahora, exceptuando a los más fuertes y resistentes de entre no-

sotros (MORRIS, 1975, p.168).

Segundo Amaral (2005), o movimento Arts and Crafts seguiu o mesmo caminho da estética ruskiana, que trata da união entre o pensar e o fazer. A produção seria a própria atividade do ensino, estimulada durante todo o processo de criação dos produtos.

As atividades de produção também eram educacionais, nos anos

de 1888 e 1894. A primeira série de produtos ocorreu no sótão de

um galpão na rua do Comercio em Londres e as primeiras aulas

ou classes de estudo do desenho ocorreram juntamente com os

estudos das obras de Ruskin. (...) A industria vista sob o ponto

de vista de sua concepção original era pautada pela união da

produção com o ensino (ASHBEE, 1973, p.01)

A escola/fábrica/comércio seria uma cooperativa na qual os pro-

prietários seriam os próprios operários, administradores e

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vendedores. Assim, os lucros e os prejuízos seriam socializados.

Eliminavam-se os fantasmas, no qual um obtém os créditos pelo

trabalho do outro, e eliminavam-se também, a intermediação entre

produção e consumo com a venda do produto no próprio local da

produção (AMARAL, 2005, p. 67).

Na tentativa de criar uma organização mercadológica nos mold-es socialistas, valorizar o trabalho manual e as habilidades in-dividuais de cada pessoa, o movimento Arts and Crafts deixou sua contribuição no universo do trabalho, do ensino e das artes mecânicas.

Llegará entonces El momento adecuado para el nacimeinto Del

nuevo arte, tan discutido y por tanto tiempo diferido. La gente no

podrá evitar el deseo de expresar el regocijo y placer de su tra-

bajo de um modo tangible y máso mens permanente, y el taller

será de nuevo uma escuela de arte, a cuja influencia nadie podrá

escapar. (MORRIS, 1975, p.174).

O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro se posicionou con-trário ao trabalho escravo, bem como ao sistema de ensino das corporações de ofício que ainda existiam naquele período. O seu principal objetivo era o de formar uma mão-de-obra qualificada para construir o mercado de trabalho. O desenho, que para Ruskin “propicia um tipo de relacionamento na produção que elimina a

hierarquia de quem pensa e quem faz” (Amaral, 2005, p.65), foi utilizado pela instituição como ferramenta de desenvolvimento da indústria e das artes mecânicas no Brasil. É nesse ponto que a instituição carioca se aproximava também do ideal de escola do movimento Arts and Crafts, no qual a transformação do universo do trabalho se daria a partir de um ensino capaz de valorizar a prática manual durante o próprio processo educacional.

Porém, o Liceu de Artes e Ofícios sofreu ao longo de sua história diversos entraves e dificuldades. A falta de dinheiro e investimento público talvez seja a maior problemática enfrentada pela escola, que aprendeu a buscar recursos das mais diversas maneiras. A iniciativa privada sustentou, na maioria das vezes, as diretrizes propostas pela instituição. Em uma ação que ficou marcada na história do Liceu, em seu momento máximo de crise, o governo do Rio de Janeiro rompeu um acordo que cedia a instituição uma mensalidade em troca da desapropriação e demolição de seu ed-ifício sede. Atualmente, sem recursos do Estado, o Liceu de Artes e Ofícios cobra mensalidades de seus alunos atuando como es-cola primária de dia e faculdade a noite.

Já a Reforma do Ensino de Rui Barbosa nunca foi implantada e o político seguiu plena sua vida pública, contribuindo nas mais diversas frentes da política nacional do Brasil.

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A partir daqui podemos concluir alguns pontos para o avanço de nossa pesquisa. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro surge na metade do século XIX como uma tentativa de promover a industrialização nacional, passando primeiramente por uma trans-formação cultural e que daria posterior suporte para a desejada estrutura fabril nacional. Em sua proposta de educação popular, que promovia a capacidade intelectual e manual dos artífices e operários brasileiros, o ensino do desenho foi utilizado como ferramenta de desenvolvimento das artes aplicadas. O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro propôs a união entre as artes lib-erais e as mecânicas, o que certamente o aproximou da concep-ção de estética de John Ruskin. Essa dedução fica constatada nas citações de Rui Barbosa, entre as obras Reforma do Ensino Primário, Lições de Coisas e O Desenho e Arte Industrial, que foi o próprio discurso inaugural do Liceu. Ao citá-lo nominalmente, Barbosa reforçou o ideal estético ruskiniano principalmente ao propor um ensino com base na observação da natureza. Outro aspecto importante que relaciona Rui Barbosa e John Ruskin é o fato do primeiro valorizar o ensino de desenho e incorporar nele uma atribuição moral, assim como o segundo já fazia em sua pro-posta estética.

Paralelo ao desenvolvimento do Liceu do Rio de Janeiro surge na Europa o movimento Arts and Crafts, que tem William Morris, dis-cípulo de John Ruskin, como fundador. As idéias de Morris sur

gem em função da crítica ao sistema de mercantilização do tra-balho e a escravização do homem pela máquina, desencadeados pelo desenvolvimento industrial e econômico descontrolado que acontecia na Europa durante o século XIX. A valorização de um trabalho prazeroso e o desenvolvimento das habilidades individ-uais do pensar e fazer nas escolas foram as exigências do Arts and Crafts, e que acabaram por estruturar uma proposta de ensino nos moldes socialistas, preocupado com o desenvolvimento e a produção de manufaturas no mercado de trabalho. William Morris ainda mostra que tanto o Liceu, quanto Barbosa, quanto Ruskin estavam tratando de um mundo do trabalho que respeitasse o trabalhador, coisa que o inglês vai dizer poder existir apenas no Socialismo e nunca no capitalismo cuja essência é a exploração do homem pelo homem. Tal movimento inglês foi segundo Amaral (2005), a expressão mais acabada dos pensamentos de Ruskin em relação à indústria. Dessa maneira, a experiência de ensino do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro bem como a pro-posta de Ensino de Rui Barbosa, que se mostram conectadas com a teoria estética de John Ruskin, fazem parte da história do processo de industrialização e do ensino de desenho no Brasil.

Com o advento do modo de produção capitalista no Brasil, o mundo do trabalho recebeu novamente hierarquizações e foi transformado no valor máximo da sociedade. É o que veremos a partir de agora.

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ETAPA 01

AINDA QUE SUSTENTANDO, COMO BA-CON, QUE UMA DAS TAREFAS PRINCIPAIS DA CIENCIA CONSISTE EM AUMENTAR O PODER DO HOMEM SOBRE O MUNDO, O FUNDADOR DO POSITIVISMO REDUZ A FUNCAO DA TECNICA A UMA CATEGORIA MERAMENTE SERVIL.

UMAOFICINAESCOLA

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MEDIANTE A EVIDENCIA DAS DEMON-STRACOES E MEDIANTE O RIGOR DAS PROVAS EXPERIMENTAIS, A CIENCIA, SEGUNDO COMTE E SEUS CONTEMPO-RANEOS, E CAPAZ DE CONSEGUIR LEIS DOTADAS DE VALIDADE ABSOLUTA E IRREFORMAVEL. A TECNICA NAO TEM, POIS, NENHUMA INICIATIVA ESPECIFICA SENDO APENAS A TAREFA DE APLICAR COM O MAIOR ESCRUPULO OS DIT-AMES INEQUIVOCAMENTE ESTABELECI-DOS PELA INVESTIGACAO CIENTIFICA.

QUANTO MELHOR SAIBA ATER-SE A ELES MEL-HOR CONSEGUIRA FORMULAR E RESOLVER TODOS OS PROBLEMAS PARTICULARES SUS-

CITADOS PELA PRATICA, MELHOR DIZENDO:

PARA TRANSFORMAR EFICAZMENTE O MUN-DO, A TECNICA TEM QUE SE LIMITAR AO TOAR DA CIENCIA E AS DIRETRIZES DO SEU TRABALHO (GAMA, 1985, p.67).

ETA

PA

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ETA

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O Positivismo e o ensino técnico e o Liceu de Artes e Oficios de São Paulo.

O preconceito em relação ao mundo do trabalho presente na cul-tura brasileira do século XIX, que para alguns autores foi fruto da condição de um país colonizado, foi motivo de repúdio por parte do ensino do desenho do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Ja-neiro. Este preconceito perdurou até os primórdios do modo de produção capitalista que o subverteu, transformando o mundo do trabalho o valor máximo da sociedade moderna.

Embora o trabalho fosse o valor mais importante da civilização moderna, ele também sofreu um processo de hierarquização. Contraditoriamente, aquilo que havia sido valorizado - o mundo do trabalho -, voltou a ser depreciado quando a filosofia Posi-tivista do século XIX valorizou o trabalho intelectual e desprezou o trabalho técnico. Ainda que sustentando, como Bacon, que uma das tarefas prin-cipais da ciência consiste em aumentar o poder do homem sobre o mundo, o fundador do Positivismo reduz a função da técnica a uma categoria meramente servil. Mediante a evidência das demonstrações e mediante o rigor das provas experimentais, a ciência, segundo Comte e seus contemporâneos, é capaz de conseguir leis dotadas de validade absoluta e irreformável. A téc-nica não tem, pois, nenhuma iniciativa especifica sendo apenas a tarefa de aplicar com o maior escrúpulo os ditames inequivoca-mente estabelecidos pela investigação cientifica. Quanto melhor

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saiba ater-se a eles melhor conseguirá formular e resolver todos os problemas particulares suscitados pela pratica, melhor dizen-do: para transformar eficazmente o mundo, a técnica tem que se limitar ao toar da ciência e as diretrizes do seu trabalho.

Em sua obra Curso de Filosofia Positiva, Discurso sobre o espírito positivo, Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, Au-guste Comte propõe um verdadeiro manual sobre a filosofia posi-tiva. Nele é possível perceber sobre a concepção intectualiza-dora das ciências e seu eventual distanciamento com o fazer. A hierarquização do conhecimento também é uma característica da filosofia positiva: “Numa palavra, a divisão do trabalho intelectual, aperfeiçoado progressivamente, é um dos atributos característi-cos mais importantes da filosofia positiva”. (COMTE, 1983, p.11).

A relação da arte e da ciência na filosofia positiva veio acom-panhada de uma exaltação da vida industrial, que era observada como uma tendência da civilização moderna. Para que tal socia-bilidade moderna fosse desenvolvida era necessária uma “grande revolução mental” que elevasse a inteligência do regime teológico (considerado de leis abstratas) ao regime positivo. O mundo exte-rior das leis naturais deveria permitir suficiente previsão, para que a atividade prática pudesse ser assim racionalizada.

Para a filosofia positiva de Comte “a ordem constitui sem cessar a

condição fundamental do progresso e, reciprocamente,

o progresso vem a ser a meta necessária da ordem, como no

mecanismo animal, o equilíbrio e a progressão são mutuamente

indispensáveis, a título de fundamento ou destinação” (Comte,

1983, p.69).

A partir de sua proposta de organização das sociedades mod-ernas, a filosofia positiva ainda propunha uma educação para o proletário, fundada na ordem e hierarquia histórica e dogmática das ciências. Assim, a sistematização de todos os pensamentos humanos constituía uma necessidade social, igualmente a orgem e ao progresso.

O Positivismo considerou o desenho técnico mera reprodução das leis ditadas pela ciência da matemática (geometria descri-tiva), tornando-o uma aplicação desta. “Em resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação; tal é a formula muito simples que exprime, duma maneira exata, a relação geral da ciência e da arte, tomando essas duas expressões em sua acepção total” (COMTE, 1983, p.69).

Assim, o desenho técnico acabou perpetuando novamente o an-tigo preconceito existente nas Artes Mecânicas e nas Artes Lib-erais da Grécia antiga. “Estabelece entre teoria e prática uma relação autoritária de man-do e de obediência, isto é, a teoria manda porque possui as

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idéias e a prática obedece porque é ignorante. Os teóricos co-mandam e os demais obedecem.”

Esse preconceito se infiltrou no mundo do trabalho capitalista tornando-se um forte aliado do controle social do capital sobre o trabalho. O preconceito se infiltrou também nas metodologias do ensino do desenho das Instituições Públicas de Ensino, dando origem, ao que parece foi chamado de Desenho Técnico.

O Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo foi um exemplar desse modelo de instituição de ensino positivista, que tratava com dis-tanciamento o pensar e o fazer, em prol do desenvolvimento da sociedade moderna, no caso a paulista. Fundou-se quando a Província de São Paulo superava o modelo econômico de caráter colonial pelo modelo de expansão e progresso, caracterizado pe-las grandes realizações urbanísticas, que elevou sua posição na economia geral do país.

O programa excedia-se em cadeiras de inegável utilidade cultur-

al, sem, contudo realizar completamente a organização didática

própria duma escola técnica de artes e ofícios, confinada no seu

campo profissional, e destinada especialmente à formação do

artífice e do operário. O novo vice-presidente, Dr. F.P. Ramos de

Azevedo, aclamado Diretor geral do Instituto, veio dar ao Liceu

essa definitiva organização com a energia própria do construtor

profissional, e o perfeito conhecimento do ensino industrial na

Bélgica, onde se formou, ao mesmo tempo que era conhecedor

prático das necessidades da educação técnica no seu país,

como arquiteto em plena atividade e, desde o anterior início da

sua carreira, como auxiliar de engenheiro no avanço das linhas

férreas que, partindo de Campinas, irradiam pelo interior do Es-

tado (SEVERO, 1934, p.26).

Sobre a coordenação de Ramos de Azevedo, arquiteto paulista conhecido pelos seus projetos em São Paulo e um dos fundadores da Escola Politécnica, o Liceu de São Paulo desenvolveu uma Reforma no Ensino, apoiada pelo Governo do Estado da época, que firmou o caráter positivista e republicano da instituição. Sob a estrutura dos cursos e das oficinas-escolas foi constituído um instituto de ensino profissional voltado para as artes aplicadas a construção civil.

São passados dois lustros após a instalação última e definitiva do

Liceu com os seus cursos noturnos, preliminar e de artes, e as suas

vastas oficinas-escolas. Está completa a sua transformação e exe-

cutado o plano de Ramos de Azevedo, que deu ao Liceu a constitu-

ição definitiva dum instituto de ensino profissional completo, aliando

a instrução elementar e fundamental das ciências, letras e artes,

ao trabalho prático das oficinas, constituindo um curso industrial

que não tem similar no Brasil pela completa variedade das artes e

industrias aplicadas `a construção civil (SEVERO, 1934, p.40).

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Em seu regulamento pedagógico, o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo deixa clara a estrutura positivista que valoriza o de-senho técnico como ferramenta das leis ditadas pela ciência, distanciando assim de uma didática onde o desenho funciona como próprio mecanismo do processo de aprendizagem prática. Essa estrutura valoriza uma alienação do trabalhador que passa a somente seguir as instruções do desenho técnico. O conheci-mento fica distanciado do processo de produção, que passa ser somente uma estrutura maquinica de execução.

O ensino ministrado nas Escolas do Liceu será portanto orientado

fundamentalmente sob os pontos de vista técnico, prático e ime-

diato.

...

Ensino técnico – desde as primeiras aulas o ensino visa o seu

aproveitamento para várias e determinadas profissões. O princip-

io pedagógico dos seus métodos é categoricamente tecnológico.

A preparação teórica, de caráter elementar, subordina-se a este

principio, sendo continuamente acompanhada da sua aplicação à

técnica das artes e ofícios. A técnica profissional representa por-

tanto a razão original e de ordem, não só dos programas como

dos métodos e processo de ensino (SEVERO, 1934, p.80).

“Método geometral - sob estes pontos de vista, é considerada em

primeiro lugar a disciplina mental e social, que deve existir em

qualquer organismo industrial e no próprio operário. Por este mo

tivo o programa geral do Curso de Artes inicia-se pelo Desenho

Linear Geométrico. A Geometria constitui portanto, a base de todo

este sistema pedagógico que obedece no seu desenvolvimento a

uma ordem rigorosamente geometral (SEVERO, 1934, p.81).

Outro aspecto importante da lógica positivista presente no regu-lamento do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo é a hierarquiza-ção do trabalho, de acordo com a complexidade técnica e dos cargos e funções da oficina. “As oficinas-escolas mantém a hier-arquia profissional própria das organizações industriais, sendo o pessoal componente escalado pela categoria da sua idoneidade técnica e moral, da sua competência profissional, da sua capaci-dade dirigente e produtiva” (Severo, 1934, p.85). Tal estrutura or-ganizacional é o oposto da que foi vista no Liceu de Artes e Ofí-cios do Rio de Janeiro, bem como no Arts and Crafts, que permitia ao aprendiz o conhecimento de todo o processo de construção ao qual estava condicionado. A partir dessa estrutura do Liceu de São Paulo o estabelecimento de ensino deixa de ser uma escola-oficina e passa a ser uma oficina-escola.

O aluno é um colaborador dos trabalhos das oficinas, tomando

o seu lugar na metódica divisão de serviço que compete a uma

oficina moderna de grande produção; trabalho como aprendiz,

como auxiliar, como operário, com utensílios próprios ou dirige os

diversos maquinismos, desde a confecção domais insignificante

detalhe, até a montagem completa de qualquer artefato.

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O mestre, especialista de comprovada idoneidade, dirige a ofi-

cina sob o ponto de vista técnico e comercial é gerente industrial

e professor (SEVERO, 1934, p.182).

Com toda essa estrutura de ensino delineada pelo modelo posi-tivista o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo se tornou um in-stituto eficaz na educação das classes operárias de São Paulo. Através da educação técnica oferecida, a escola formou milhares de operários especializados que ajudaram no desenvolvimento da capital paulista. Contudo a experiência positivista na educação paulista resgata o antigo preconceito entre as artes mecânicas e liberais, em que o pensar é distanciado do fazer. Isso fica claro na sua proposta pedagógica, em que o ensino do desenho técnico é entendido unicamente pelas leis da ciência em sua ordem e progresso natural e a organização da escola e da aprendizagem se faz de maneira hierarquizada. Essa pedagogia é vista como alienante pois tal lógica estimula o modelo capitalista do mercado de trabalho, que canaliza os esforços do trabalhador somente em prol da venda de sua força física. A percepção do todo no pro-cesso de produção deixa de ser entendida pelo trabalhador que se desencanta pelo trabalho, bem como pela arte no geral. É esse o principal ponto em que se valoriza o modelo de ensino proposto pelo Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, tanto como as propostas pedagógicas de Rui Barbosa, e a teoria estética de John Ruskin. Um ensino que possa colocar o estudante/trabalha-

-dor em todo seu processo de produção é algo admirável do pon-to de vista político-social. Além do mais, uma nova condição para a arte poderia ser discutida, incluindo o operário ou artífice como criador de grandes obras, equilibradas com os mais intelectuais gêneros da área. Nos basta agora a reflexão sobre a evolução histórica para continuarmos o entendimento do tema.

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[DESINVENTAR OBJETOS. O PENTE, POR EXEMPLO.

DAR AO PENTE FUNCOES DE NAO PENTEAR. ATE QUEELE FIQUE A DISPOSICAO DE SER UMA BEGONIA. OU UMA GRAVANHA.

USAR ALGUMAS PALAVRAS QUE AINDA NAO TENHAM IDIOMA. MANUEL DE BARROS

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Em busca de objetividades.

A partir de agora, iremos transportar os efeitos da filosofia posi-tiva para o ensino da Arquitetura e Urbanismo, que também uti-lizavam do ensino do desenho e das práticas do design em seu processo pedagógico. Com essa investigação iremos buscar o panorama do ensino de desenho/projeto nas escolas de arquit-etura do Brasil, explicitando assim a problemática que nos trouxe até aqui. Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a segunda metade do mesmo século, espalhado por todo o mundo civilizado. A filosofia positiva representou uma reação contra o apriorismo, o formal-ismo, o idealismo, exigindo maior respeito para a experiência e os dados positivos. Uma característica fundamental do positivismo, já explicitada no capitulo anterior, seria a busca da experiência imediata, pura, sensível das coisas, devido em grande parte ao progresso das ciências naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas, do século XIX. Dada essa objetividade da ciência e da história no pensamento positivista, compreende-se porque elas foram fecundas no campo prático, técnico, aplicado. A essa obje-tividade da ciência e da arte também se deve estrutura ideológica do Movimento Moderno, que passou a organizar o pensamento arquitetônico a partir das mesmas fontes da filosofia positiva, além de outras complementares. Ao longo da história das instituições de ensino de Arquitetura no Brasil, a tradição moderna reduziu as metodologias de desenho/projeto a sua expressão funcionalista/racionalista, com base no cartesianismo introduzido

[5]

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pelo arquiteto francês do século XIX Viollet-le-Duc, que propôs o método de Descartes (considerado um dois pais da filosofia positiva) para a criação artística. Porém, não apenas o projetar da arquitetura, mas também a sua produção histórica sofreu a influência da mecânica cartesiana de Descartes. Assim, todo o fazer projetual em geral, bem como a narração da história passou a pressupor uma metodologia e um método. Vejamos:

Viollet-Le-Duc, é considerado um precursor teórico da arquit-etura moderna. Introduziu a objetividade, através do método car-tesiano, para o processo criativo da arquitetura. Em sua obra Discursos sobre a Arquitetura, Le-Duc tratou de uma teoria da percepção que considerava a Arte um instinto humano, assim como a razão, a sabedoria e a paixão. As experiências de vida de cada um seriam pertencentes a um mundo psicológico, porém, segundo o francês, a Arte não poderia se prender ao relativismo dessa subjetividade, reforçando assim as contingências univer-sais e objetivas que poderiam ser percebidas do mesmo jeito por todos. Perceber, para Le-Duc, passou a ser sentir uma razão, o que significou dizer que todos reagiriam aos efeitos causados do mesmo jeito.

Segundo Amaral (2007), a celebração do uso da razão em Le Duc levou-o a buscar as regras do método cartesiano para a criação da arquitetura:

1) Deve duvidar-se de tudo que não tenha a certeza da absoluta

razão.

2) Dividir o projeto em quantas partes for necessário.

3) Construir, a partir das partes, uma seqüência de raciocínio lin-

ear e crescente de forma dedutiva.

4) Fazer revisões a medida das necessidades.

Adaptando essas regras ao fazer da arquitetura, o resultado pro-

cedeu na seguinte seqüência para o processo criativo:

1) Dividir o processo em partes: a) O programa (a função do pré-

dio); b) As técnicas e materiais construtivos; c) A visibilidade da

lógica estrutural (o desenho).

2) Dispor esses elementos em forma de uma equação matemáti-

ca: O programa (P) mais as técnicas e os materiais construtivos

(M) é igual ao desenho arquitetônico (D): P+M=D

O programa seria a função; o desenho é a sua forma; o que pre-cede o postulado da teoria racionalista e funcionalista da arquit-etura moderna que se pauta pelo paradigma: A forma segue a função.

Segundo Martines (ano), para Viollet Le Duc o projetar chamava-se efetivamente “compor”. E em geral a essa noção de composição se caracterizava o ato de “colocar junto a”, ou seja, relacionar as partes para a formação do todo. E essa tendência de considerar

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o edifício um objeto complexo como um agrupamento ordenado de componentes, que seriam relativamente autônomos, foi um traço característico do pensamento da era industrial.

Para a teoria arquitetônica do Século XIX (Durand e Le Duc), as

partes – ou componentes – existem em dois níveis claramente

diferenciados e pertencem a dois momentos sucessivos da

prática projetual: aquele do objeto como organização espacial de

recintos uteis, que exigiu a decomposição dos velhos tipos em

seus componentes espaciais, e aquele do edifício como objeto

construído (MARTINES, ano, p.21)

O qualitativo de composição aplica-se aqui não ao desenvolvi-mento da forma como a previsão precisa de sua materialidade, mas a disposição geral de seus espaços, que vemos aparecer como uma estrutura básica sobre a qual se sobrepõe o trabalho da forma. Dessa maneira, é a articulação do programa do edifício que irá conduzir o exercício do projetar.

Assim, foi na composição do edifício que se passou a decidir a identidade das partes habitáveis e a posição relativa dessas partes, tudo isso por meio da própria representação. A proximi-dade das partes de um agrupamento, que em geral indicava a necessidade de se ir de um recinto a outro e a semelhança no uso a que destinam tais recintos, passou a ser identificada pelo

termo zoneamento. Essa necessidade de deslocamento entre as partes do edifício criou também o conceito de distribuição, tor-nando-se uma categoria especial dentro do próprio processo de composição.

Toda essa receita programática, proposta em seu principio por Viollet Le Duc e aprimorada durante o Movimento Moderno, do desenvolvimento do programa, da união dos conceitos entre for-mas típicas das partes e da rede de circulação, deu origem a um dos mais usuais exercícios de composição arquitetônica do século XX. Porém, a proposta do Movimento Moderno foi além da mera transformação dos mecanismos projetuais na arquitetu-ra. Conscientes do processo de transformação ocasionado pela Revolução industrial, os precursores do Modernismo propuseram uma objetivação do mundo, em todas as suas escalas. Tal obje-tivação se baseava na idéia de que as formas “tradicionais” das artes plásticas, literatura, design, organização social e da vida cotidiana tornaram-se ultrapassadas, e que se fazia fundamental criar uma nova cultura.

A operação racionalista é uma questão que transcende a redução

imediata da Razão Técnica as invenções que modificaram os es-

paços da vida cotidiana. A qualidade do Design, tal como definido

pela Bauhaus, tornar-se-á necessariamente um imperativo prático

no momento em que, sob a égide da Função, a Forma dos objetos

fabricados resume e identifica a Estética e a Moral.

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A força da Arquitetura Moderna provém também dessa dupla or-

dem da Função. O tão decantado desejo de unir Arte e Técnica

tomará outra figura. A racionalização da vida, a qual a produção

industrial deve não pequena contribuição, introduz, não apenas

no processo produtivo, mas em todas as esferas do mundo da

vida, o corolário da Função como evidência necessária, ou seja,

um universal (TELLES, 1988, p.06).

Empenhado em dar forma a um novo mundo industrializado, o Movimento Moderno retomou a técnica como sua visibilidade máxima, colocando nela sua força expressiva ao mesmo tempo que o fundamento de sua objetividade. Dessa maneira, a obje-tivação da técnica deu suporte para a perpetuação da lógica racionalista, que atribuiu aos objetos de design e a arquitetura não somente uma requalificação estética no âmbito da técnica, mas embutiu a qualidade das coisas na eficácia de sua função. Destaca-se o caráter da função como uma qualidade, possível de ser projetada e ao mesmo tempo percebida nas coisas. Além do mais, para o movimento moderno, o conjunto forma/função dos objetos resume em si a própria moral das coisas, o que con-tribuiria para uma racionalização e objetivação da vida em todas as suas esferas.

Com isso, a intenção do Design no movimento moderno dizia res-peito sobretudo as categorias do entendimento, e dessa maneira conferiu a funcionalidade um valor cognitivo que ultrapassava a

mera racionalidade técnica. Através de uma tomada da Razão como consciência, a estética funcional da escola moderna tornou visível as formas de uma vida moderna. A Bauhaus, que é con-siderada um marco histórico do Movimento Moderno e ao mesmo tempo um modelo de escola de Arquitetura e Urbanismo até os dias de hoje, “define o método de projetação como uma opera-ção ao mesmo tempo técnica e sensível ao final da qual a Forma surge como o modo de aparecer do mundo para a consciência” (Telles, 1988, p.09). Desse modo a forma aparecerá não somente como a figura de uma utilidade, mas como síntese final dos pro-cedimentos tornados visíveis neste ou naquele objeto útil.

A questão é que o objetivo do Design não foi, segundo Gropius, o

de responder as utilidades, mas conferir a todo ambiente humano

uma Forma cujo fim é tornar reflexivos todos os atos da existência,

como se um processo da inteligibilidade pudesse ser destilado da

percepção, do mundo cotidiano (TELLES, 1988, p.12).

De certo modo, o projeto moderno é radical no implícito desejo

de destruição das carências e, por elas, de um sujeito particular.

A economia funcional diz respeito muito menos a técnica produ-

tiva, embora parta dela e não se possa passar sem ela, e muito

menos ainda a lógica do consumo que, como é claro, caminha

em sentido inverso. A economia da função diz respeito a clara

objetivação do mundo da vida (Telles, 1988, p.13).

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Após o estabelecimento do Movimento Moderno em todas as es-feras da vida cotidiana, o arquiteto passou a ser aquele que sabe fazer edifícios úteis e/ou que sabe distribuir. A melhor construção se transformou naquela mais racional e econômica: e o resulta-do dessa busca não poderia deixar de ter um atrativo estético. Porém, a época moderna não foi apenas igualitária e utilitária, mas também individualista. Os seus artistas, convertidos progres-sivamente em “profissionais liberais” passaram a disputar as en-comendas competindo sobre a base de seus méritos pessoais de criatividade. A atomização das funções veio acompanhada pela sua contrapartida: a tentativa de dominar todas as escalas do en-torno construído. A partir do entendimento que o homem mod-erno vive, cada vez mais, em um ambiente artificial – no sentido de construído e não natural -, os arquitetos modernos clamaram como parte de sua qualificação o projeto de todas as partes que, por extensão, formaram sua área de competência, o equipamento fixo da civilização. Foi nesse contexto, que o Movimento Mod-ernista projetou também sua ambigüidade e contradição. A partir da articulação do Mercado liberal, no mesmo momento em que a industrialização dava suporte para uma revolução de idéias, o Modernismo viu seu ideal em conflito, quando percebeu que seria impossível reivindicar e impor os fins da Arte quanto a autonomia de seus procedimentos formais e pressupor ainda que essa sen-sibilidade ativa pudesse se estender ao mundo cotidiano.

Mas o cotidiano talvez seja o agenciamento constante de disposi-

tivos afetivos que tendem a por em suspenso a tensão do mundo e que produzem, ao contrário, uma dispersão de energia no des-

dobramento incessante de efeitos sem causa: usos, hábitos, cos-

tumes, que são da ordem das convenções (TELLES, 1988, p.14).

Mesmo assim, o Movimento Modernista se concretizou pelo mun-do e influenciou a tradição moderna da arquitetura no Brasil que acabou por reduzir as metodologias de desenho/projeto a sua expressão funcionalista/racionalista, como vimos pelo processo que iniciou com Le Duc e vem até os dias de hoje. E como vimos no início do capítulo, todo o fazer projetual, em geral, bem como a narração da história passou a pressupor uma metodologia e um método. A história do ensino de Arquitetura no Brasil nos aponta como se deu esse modelo.

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SUPOE-SE QUE UM EXERCICIO DE PROJETO TIPICO E CONSTITUIDO DE DUAS ETAPAS DIFERENCIADAS E SEQUENCIAIS: UMA PRIMEIRA DE ANALISE, ONDE OS ESTUDANTES RECEBEM INFORMACOES SOBRE O PROJETO, TAIS COMO O LEVANTAMENTO TOPOGRAFICO, O PROGRAMA, O SITIO, MAPAS, FOTOGRAFIAS E SIMILARES E DESENVOLVEM EVENTUAIS PESQUISAS BIBLIOGRAFICAS SOBRE A PRODUCAOO DE OUTROS ARQUITETOS, ACOMPANHADAS, OU NAO, DE ESQUEMAS ANALITICOS, DIAGRAMAS, FLUXO GRAMAS, ORGANOGRAMAS, SEMINARIOS E ATIVIDADES AFINS.

O METODO DO ENSINO

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UMA SEGUNDA, DE SINTESE, ONDE SE DA INICIO AO *DESENHO*

E DESENVOLVE-SE O PROJETO ARQUITETONICO, DE ACORDO COM AS ETAPAS PROPOSTAS PELO DO-CENTE (ESTUDO PRELIMINAR SEGUIDO OU NAO DO ANTEPROJETO E PROJETO EXECUTIVO)

(HERKENHOFF, 1997, P.119).

O ENSINODO METODO

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O método de ensino/aprendizagem nas escolas de Arquitetura do Brasil.

Em uma breve análise sobre o ensino de arquitetura no Brasil temos que o ensino foi estruturado inicialmente a partir de um modelo importado da Europa, da francesa École de Beux Arts, justamente com a chegada da Missão Francesa ainda durante o período colonial. A proposta da Academia de Belas Artes trans-formou o “sistema artesanal corporativo” de ensino das artes, vi-gente até então. Alguns autores relatam que a escola valorizou os modelos pedagógicos importados e desconsiderou a cultura artística ainda pouco estruturada no Brasil (já vimos pelo exemplo da escola proposta por Lebreton, bem como o modelo do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro que tal afirmação é de certo modo corrompida). Esse modelo acadêmico perdurou por todo século XIX. O desenvolvimento da indústria nacional, a chegada da República e os novos ideais incorporados do Movimento Mod-ernista transformaram as antigas estruturas de ensino, em sua lógica, didática projetual e prática arquitetônica. Desse modo, o período Modernista, que no Brasil começa a ser efetivo somente depois da Primeira Guerra Mundial, trouxe uma inovação formal na arquitetura nacional, bem como discussões sobre a questão social inerente a arquitetura. Nesse contexto de novas experiên-cias metodológicas surge a discussão sobre a fundação de novas escolas de arquitetura para a disseminação em todo território na-cional. Com isso, a homogeneidade dos currículos foi a base para o desenvolvimento de novas faculdades, principalmente com a introdução da disciplina de “projeto” como estruturadora

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de todo curso de arquitetura. Dos anos 70 até os dias de hoje, com a privatização do ensino superior no Brasil, inovações ped-agógicas começaram a ser introduzidas em função das reflexões sobre o papel do arquiteto na cidade contemporânea de acordo com diversas áreas do conhecimento.

Muitos autores acreditam que o modelo da Escola de Belas Artes foi superado e hoje o ensino estrutura-se em sua maioria na pro-posta didática desenvolvida pela escola alemã Bauhaus. A essa proposta didática, segue a estrutura cartesiana que pode ser observada tanto no modelo de ensino/aprendizagem de projeto identificado em alguns trabalhos de pesquisa na área do ensino de arquitetura, como na própria estrutura curricular de algumas escolas de arquitetura do Brasil.

Heloísa Lima Herkenhoff, em seu trabalho de dissertação de mestrado intitulado “Ensino de Projeto Arquitetônico: caracteriza-ção e análise de um suposto modelo, segundo alguns procedi-mentos didáticos”, propõe uma investigação sobre alguns dos procedimentos didáticos usuais utilizados pelos docentes das disciplinas de projeto nas escolas de Arquitetura. Como procedi-mentos didáticos foi entendido pela autora a seqüência de ações, no caso empregadas nas disciplinas de projeto, visando atingir certos objetivos dentro do processo de ensino/aprendizagem. O levantamento será utilizado aqui como própria comprovação da utilização da lógica cartesiana no processo de ensino/aprendiza-

gem das escolas de arquitetura no Brasil.

Primeiramente foi constatado que

Um “exercício de projeto”, como o nome diz , parece compreender um treinamento, um adestramento, da capacidade do aluno de desenvolver projetos. Eventualmente ele seria acompanhado de atividades paralelas complementares e/ou independentes do ex-ercício em si, voltadas para finalidades previamente determina-das (HERKENHOFF, 1997, p.107).

Tal constatação nos coloca desde o principio diante da didáti-ca “adestradora” que foi assumida pelos cursos de Arquitetura no Brasil. Ao definir que um exercício de projeto parece com-preender um adestramento, o aprendizado parece perder o valor prazeroso que agrega em si. O desenho, que é parte inerente do projeto, também parece acabar sendo desvalorizado quando o seu treinamento vem atrelado a uma noção de doutrinamento. A arquitetura não é uma técnica na qual se possa treinar alguém; ela é uma produção da imaginação criadora. E o treinamento pela repetição do conhecido, certamente não leva a uma prática ar-quitetural criadora e inovadora.

Outra característica percebida no processo de ensino/aprendiza-gem de projeto foi a segmentação do exercício projetual em eta-pas: a primeira em que se recebe e articula as informações e

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idéias sobre o projeto e a segunda em que se efetua o desenho e o projeto arquitetônico de fato. Os exercícios em ateliê indicam serem pautados nos estágios conhecidos de desenvolvimento de um projeto. Suas etapas básicas seriam o Estudo Preliminar, o Anteprojeto e o Projeto Executivo, em conformidade com o que usualmente compõe um projeto arquitetônico completo (como op-ção didática especifica, um “exercício”pode-se limitar a fase de estudo preliminar).

Supõe-se que um exercício de projeto típico é constituído de duas

etapas diferenciadas e seqüenciais: uma primeira de ANÁLISE,

onde os estudantes recebem informações sobre o projeto, tais

como o levantamento topográfico, o programa, o sitio, mapas,

fotografias e similares e desenvolvem eventuais pesquisas bibli-

ográficas sobre a produção de outros arquitetos, acompanhadas,

ou não, de esquemas analíticos, diagramas, fluxogramas, organo-

gramas, seminários e atividades afins. Uma segunda, de SÍNTESE,

onde se dá inicio ao “desenho” e desenvolve-se o projeto arquit-

etônico, de acordo com as etapas propostas pelo docente (estu-

do preliminar seguido ou não do anteprojeto e projeto executivo)

(HERKENHOFF, 1997, p.119).

Julga-se também que o desenvolvimento de um exercício de projeto é individual. Eventualmente, em sua fase preliminar ou de analise, ele é desenvolvido em grupo. A essa estrutura de divisão entre a análise e a síntese, identificada aqui no processo

de ensino/aprendizagem dos cursos de arquitetura, segue uma estrutura de divisão do pensar e fazer que pode ser relacionada, de maneira indireta, com a crítica das teorias de John Ruskin e as propostas de Rui Barbosa, as quais já foram melhor exploradas em capítulos anteriores. A lógica da síntese cartesiana está fun-damentada a partir da soma das partes, enquanto que na teoria estética de Ruskin, não existiria uma soma das partes e sim uma colaboração entre as partes capaz de gerar uma política de ajuda mútua, que é própria da lógica da natureza. O que vale reforçar aqui é que as teorias de Ruskin e as propostas de Rui Barbosa visavam um ensino que valorizasse o trabalhador a partir de um desenho com ética, e não um desenho técnico dependente das decisões da ciência.

Em especial defende-se a idéia de que existe uma distribuição diferenciada de temas e portes de projeto ao longo da seqüência de disciplinas de projeto, determinada ou não pelo curso, onde exercícios que envolvam temas considerados menos complexos (em especial residencial) e/ou menores portes são apresentados aos alunos iniciantes (1º ano), seguindo no aumento da “com-plexidade” ao longo dos semestres, vinculada sempre aos crité-rios preliminares, que implica na seleção cuidadosa de temas e portes.

Aqui podemos identificar uma estrutura didática parecida com a proposta por Viollet Le Duc no século XIX, como foi visto no

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capítulo anterior, que buscou as regras do método cartesiano para a criação Arquitetônica. “Construir, a partir das partes, uma seqüência de raciocínio linear e crescente de forma dedutiva” é a própria proposição do cartesianismo.

Ainda para o contexto da montagem de um modelo usual em dis-ciplinas de projeto, tem-se como hipótese que os exercícios de projeto em ateliê simulam a atuação de um arquiteto liberal, com-pondo-se das etapas de Estudo preliminar, Anteprojeto e Projeto Executivo, ou limitando-se à primeira etapa. A essa simulação da atuação de um arquiteto via exercícios de projeto, e que coloca o professor como cliente que apresenta o programa de necessi-dades, tem-se que os dados para a realização desses exercícios são igualmente simulados da realidade. Através desse mecan-ismo de simulação, utilizado como recurso didático, é almejado uma aproximação com aquilo que seria o processo de trabalho de um arquiteto.

Em uma delimitação genérica, este poderia ser considerado um

primeiro aspecto característico de exercícios desta natureza:

referenciar-se na atuação profissional em Arquitetura, a partir de

um determinado modelo desta prática. Quaisquer que forem as

características assumidas nesta simulação, elas estarão atreladas

a concepções determinadas, explicitas ou não, para o ensino de

projeto em arquitetura (HERKENHOFF, 1997, p.108).

O que podemos refletir aqui é a eficácia desse método de simula-ção que tenta colocar o estudante de arquitetura em contato com o universo profissional. Utilizando essa didática nos exercícios de projeto, estaríamos preparando que tipo de arquiteto para o mundo real? O desenvolvimento da capacidade crítica para sin-tetizar conhecimentos na prática projetual me parece bem mais relevante do que o treinamento de práticas profissionais.

Alfonso Corona Martinez acredita, realmente, que ”é necessário

fazer distinção entre a arquitetura tal como existe na realidade

e a que se projeta nas escolas. A primeira costuma ser definida

de várias maneiras: um filtro entre o homem e o meio, um objeto

que “emite mensagens” / há quem se refira ao uso social dos ed-

ifícios. Outros crêem que ela comunica valores que os arquitetos

reconhecem – entre outros, proporções volumétricas e espaciais,

seqüência de espaços, expressões literais ou simbólicas da ma-

terialidade. Essas propriedades, verificáveis nos edifícios reais,

são bem visíveis nas representações usadas para projetar e para

mostrar o que se esta criando. Por isso é mais fácil transmitir, no

ensino do projeto, esses valores “profissionais” do que os valores

sociais e ambientais assinalados acima”. Na visão de Martinez,

nas escolas de arquitetura “o projeto não é um meio para se faz-

er um edifico: é algo que se basta a si mesmo” (HERKENHOFF,

1997, p.112).

Sobre essa questão, Demétrio Ribeiro – que sempre teve impor-

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tante papel na Faculdade de Arquitetura da Universidade Fed-eral do Rio Grande do Sul –, em texto intitulado “O ensino da Arquitetura e a realidade profissional”, reflete sobre a “realidade atual” colocada diante do arquiteto. Para o autor, o sistema capi-talista brasileiro imprimiu um modelo de profissional “geralmente separado do usuário final por intermediários (empregadores, bu-rocratas, promotores de venda, etc.) muitas vezes interessados em distorcer as perspectivas autenticas da arquitetura”. Além disso, acrescenta-nos Ribeiro, “o predomínio empresarial sobre a condição liberal e divisão do trabalho vem resultando na frag-mentação de tarefas do arquiteto”. O professor defende uma dire-triz como o “compromisso de uma formação cultural, filosófica, sociológica e política do arquiteto muito mais profunda do que a atual”. Por outro lado, acrescenta-nos, seria necessária “a adoção de uma temática prática diretamente relacionada com situações reais e desenvolvida em contato com a comunidade”

Durante a década de 60, no Brasil, as escolas de arquitetura começam a introduzir a disciplina de Projeto como “espinha dor-sal” do curso, na busca de uma organização e reestruturação cur-ricular. Essa nova estrutura de organização sugere que através de uma interdisciplinaridade de conteúdos as disciplinas sejam sintetizadas no próprio ateliê de projeto, onde supostamente acontece o exercício projetual. Tal modelo de estrutura é encon-trado até hoje nas escolas de Arquitetura espalhadas pelo país. Porém, o ideal da proposta na maioria das vezes não segue a

realidade. Uma das críticas eventuais encontradas nesse mod-elo de estrutura curricular é a incapacidade de relacionamento entre a disciplina de projeto com as demais disciplinas do curso. Essa centralidade da disciplina de projeto acaba ocasionando um isolamento da mesma, que se distancia das demais, além de gerar igualmente a hierarquização do conteúdo pedagógico, que deveria considerar determinadas disciplinas no mesmo grau de importância para a prática do exercício de projeto.

Como exemplo disso podemos verificar a atual reestruturação curricular do curso de Arquitetura e urbanismo da Universidade Estadual Paulista de Bauru SP, a partir do Projeto Político Ped-agógico que aprimorou as diretrizes que vinham sendo discutidas desde 1994. A atual reforma se baseia principalmente nas críticas constatadas ao longo da existência da sua principal disciplina de projeto: a disciplina Trabalho Projetual Integrado (TPI). A essa disciplina se creditou a capacitação do aluno a investigação e proposição do espaço, através da atividade projetual, baseada na instrumentação teórico/prática propiciada pelas demais áreas do curso. Dessa maneira, o TPI deveria agregar todos os conheci-mentos das disciplinas ministradas ao longo do curso, de maneira que as atividades projetuais propostas fossem assim interdisci-plinares. Mas a interdisciplinaridade desejada não aconteceu de fato. O TPI como eixo dorsal deixou, por conseguinte as outras disciplinas a margem do mesmo. A centralidade necessária para compor o eixo não aconteceu, surgindo em seu lugar um dese-

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nho de currículo composto por disciplinas isoladas, inclusive o próprio TPI.

Uma das críticas constatadas ao longo da existência do TPI foi

a inabilidade deste se relacionar com as demais disciplinas do

Curso. Seria necessário uma interdisciplinaridade para que a

centralidade almejada gerasse uma nova lógica, isto é, que os

temas comuns as disciplinas da mesma série denominadas de

interdisciplinaridade horizontal, e da progressão de escalas de

intervenção para os TPI’s ao longo das séries, denominadas de

interdisciplinaridade vertical, não distanciasse o TPI, mas ao con-

trário, o aproximasse das demais disciplinas. A centralidde pre-

tendida pela interdisciplinaridade na proposta anterior não ocor-

reu resultando em seu lugar uma Grade Curricular composta por

um amontoado de disciplinas isoladas umas das outras. É o que

procura-se corrigir nesta nova proposta (UNESP 2010)

O propósito do projeto de Reformulação Curricular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unesp Bauru é o aprimoramento do entendimento de interdisciplinaridade, ampliando-a para todas as disciplinas do Curso. Outro ponto importante é o papel do ateliê enquanto estrutura central do currículo. Na proposta de reformu-lação curricular da escola de Bauru, a disciplina de projeto perd-erá o valor hierárquico de sua estrutura porque não contará com a simples soma das outras disciplinas para chegar na síntese pro-jetual. A idéia trabalhada é que todas as disciplinas têm um valor

de importância e precisam estar de algum modo direcionadas para o exercício projetual do ateliê, porém, esse direcionamento não deve ser realizado por uma imposição autoritária do plano pedagógico e da estrutura curricular, e sim a partir da síntese dialética do próprio aluno. Não aprofundaremos mais as questões curriculares do curso de Bauru. O principal ponto que se coloca nesse contexto é o valor hierárquico da disciplina de projeto em relação as outras disciplinas do curso. Ao colocar no mesmo patamar as disciplinas ao longo do curso pode-se aprimorar o exercício projetual? O que podemos perceber a principio, é que existem propostas pedagógicas que propõe uma estrutura difer-enciada, onde se valoriza o processo de criação no ateliê sem imposições curriculares, e com isso a partir dos próprios conflitos e entendimentos do aluno, que passa a ser o principal agente de construção de seu processo de criação.

Stefani Ledewitz sugere que o aprendizado em projeto envolve

a apreensão simultânea de pelo menos três aspectos: de novas

dimensões, como a capacidade de visualização e de representa-

ção. De uma nova linguagem (gráfica e verbal) e de uma forma

especifica de raciocínio – “pensar arquitetonicamente”- que im-

plica, segundo o autor, em um domínio particular de problemas e

soluções. Assumindo esta caracterização como verdadeira, pode-

se supor dificuldades, por parte do aluno, em assimilar e dominar,

num mesmo momento, as várias dimensões da arquitetura no pro-

cesso de ensino-aprendizagem (HERKENHOFF, 1997).

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Todos esses apontamentos, que foram sendo levantados ao lon-go do capítulo, sugerem o panorama do ensino de arquitetura nas Universidades espalhadas por todo Brasil. Levando em consid-eração que ainda não superamos o modelo cartesiano de ensino, fica clara a necessidade de uma transformação pedagógica nos cursos de Arquitetura e Urbanismo. A condição pressuposta tam-bém não pode ser de maneira alguma generalista, tendo em vista que existem outros modelos didáticos implantados nas escolas de Arquitetura que não seguem a lógica cartesiana percebida aqui e são muitas vezes propostas pedagógicas de excelente procedência. Porém, a partir do levantamento histórico e da ex-periência prática vivida por mim ao longo dos 5 anos de curso, principalmente no contato com estudantes de arquitetura de todo país em encontros estudantis, pode-se considerar que transfor-mações são necessárias, e sempre bem-vindas se apoiadas em bons argumentos.

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NO DESCOMECO ERA O VERBO. SO DEPOIS E QUE VEIO O DELIRIO DO VERBO. O DELIRIO DO VERBO ESTAVA NO COMECO, LA ONDE A CRIANCA DIZ: EU ESCUTO A COR DOS PASSARINHOS. A CRIANCA NAO SABE QUE O VERBO ESCUTAR NAO FUNCIONA PARA COR, MAS PARA SOM. ENTAO SE A CRIANCA MUDA A FUNCAO DE UM VERBO, ELE DELIRA. E POIS. EM POESIA QUE E VOZ DE POETA, QUE E A VOZ DE FAZER NASCIMENTOS - O VERBO TEM QUE PEGAR DELIRIO.

manuel de barros

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Considerações finais - Os verbos do desenho.

Esta pesquisa acadêmica teve por objetivo específico a análise histórica do ensino do desenho técnico no Brasil e as suas rela-ções com o trabalho durante o processo de industrialização na-cional. Posteriormente, o ensino do desenho técnico e a lógica positivista que se estabeleceu no mundo durante o período da modernidade foram relacionados também com o ensino de arquit-etura e com isso construído um panorama das escolas no Brasil.

Para alcançar tal objetivo, a pesquisa propôs um caminho inves-tigativo que nos desse embasamento teórico para uma análise contextualizada sobre a temática. O trabalho parte da concepção do desenho e a sua relação nas discussões entre as Artes liberais e as Artes Mecânicas, que se desenrolaram na Europa durante o século XIX. Foi a partir desse período de transição do artesan-ato para a manufatura que se desenvolveu um novo modelo de aprendizagem no mundo, o ensino técnico, que passou da oficina para a escola e onde a instrução prática teve que ceder em parte a instrução teórica.

Esse breve contexto inicial nos preparou para o primeiro momento do trabalho, no qual o enfoque foi a chegada da Missão Francesa no período colonial brasileiro e a sua relação com as discussões entre as artes liberais e as artes mecânicas que se faziam na época. A essa Missão se creditou a fundação da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, e a Lebreton se deve uma interes

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sante proposta de criação de uma escola gratuita de desenho para as artes e ofícios, gerando uma dupla escola de artes na complementação da Academia de Belas Artes (GAMA 1987). Com a proposta da escola gratuita de artes e ofícios de Lebreton, a Missão Francesa traz a concepção de Tecnologia Moderna ao país fundamentada nas relações de ensino com o trabalho. Com isso propõem a formação de uma geração de trabalhadores, que não reproduziriam somente o modelo importado da Europa. A concepção de tecnologia moderna se deve o envolvimento da técnica com os meios de produção, que estavam em plena trans-formação durante o século XIX. Além do mais, a escola de ensino de desenho proposta por Lebreton, trazia em sua essência a dis-cussão entre as Artes liberais e mecânicas, que desde a Anti-guidade movem as relações da arte com a sociedade. As Artes mecânicas sempre foram vistas como atividades inferiores as Artes liberais, pois estavam ligadas aos artesãos, e as atividades que envolviam o trabalho manual. E nesse contexto de valorização das artes mecânicas e meios de produção e do desenvolvimento de suas linguagens, surgem alguns pensadores que irão propor algumas reformas pedagógicas a partir do ensino do desenho. No caso de Lebreton, influenciado por Bachelier, e sua proposta de escola gratuita de desenho concomitantemente a Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, o objetivo maior era a preparação de trabalhadores para o desenvolvimento da indústria nacional. Porém, a dupla escola proposta por Lebreton não se concretizou e suas idéias começam gerar frutos alguns anos após sua mor-

te (1819), e somente a partir da metade do século XIX se con-cretizam algumas medidas de transformação na transmissão do saber pela via escolar. (GAMA, 1987).

A partir desse momento, a pesquisa relacionou as figuras essên-cias para a construção da análise do ensino de desenho técnico no Brasil: O Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, Rui Bar-bosa, e o crítico de arte inglês John Ruskin.

No ano de 1856 é fundada a Sociedade Propagadora das Belas Artes e, por conseguinte o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. A proposta da escola, que segundo Gama (1987) teve sua origem nas idéias da revolução industrial trazidas pela Mis-são Francesa, se voltava para as classes populares através de uma educação adequada para o operário e artífice brasileiros. Com isso, o Liceu se propôs a romper as distâncias entre as artes liberais e as artes mecânicas, valorizando o projeto de industrial-ização nacional e a concepção da tecnologia moderna, na qual segundo Amaral (2005) estava ligada a um pensar direcionado a um fazer, ou seja, ao mundo do trabalho.

Rui Barbosa se envolveu com a instituição desde a fundação e suas pesquisas sobre a reforma na educação primária e o ensino do desenho acabaram por se relacionar com as propostas do Liceu do Rio de Janeiro. Tal envolvimento foi firmado através da famosa peça oratória de inauguração da instituição: “o Liceu

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encerra, em si, a fórmula mais precisa da educação popular, e a educação real do povo é a educação da Nação. Essa formula tem dois termos capitais: a educação pela arte e a educação pela mulher” (Barbosa, 1950, p.11). Além disso, Rui Barbosa se mostrava conectado com as discussões sobre as Artes mecâni-cas que aconteciam naquele momento, tanto na Europa quanto na América do Norte. Sua principal reivindicação era em função do ensino do desenho como ferramenta de transformação social. O ensino do desenho era para Barbosa, a própria critica ao modelo pedagógico que mantinha as tradições jesuíticas de ensino, em que a retórica era o principal meio de instrução. “O nosso ensino reduz-se ao culto mecânico da frase: por ela nos advêm feitas, e recebemos inverificadas, as opiniões que adotamos” (BARBOSA, 1950, p.51).

Nesse mesmo período, surge na Inglaterra o crítico de arte John Ruskin que através de suas idéias de estética e teoria da percep-ção influenciou tanto a Europa quanto o Brasil, de forma indireta, na iniciativa do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e, de maneira mais direta, na proposta pedagógica de ensino primário de Rui Barbosa.

De acordo com Amaral (2005), sua obra tem por base o ensino da visão, capaz de ensinar a ler a lógica da natureza. “Para Ruskin, tudo que existe na natureza (homens, animais, vegetais, min-erais...) possui uma forma. Sejam quais forem esses elemen

tos, essa forma sempre será dotada de uma parte material e outra espiritual, que chamou de alma” (AMARAL, 2005, p.20). Através dessa lógica, cada elemento natural teria uma verdade, isto é, uma essência que lhe atribuiu algum caráter. E essas verdades deveriam ser relacionadas por meio de uma composição natural. A cada elemento natural também se atribui um espírito, ou moral, que pode ser apreendido num procedimento que é ao mesmo tempo sensorial e intelectual, e que resulta do relacionamento harmonioso entre os elementos.

Um ponto importante durante o nosso processo de investigação histórica foi a comprovação da relação entre a teoria de John Ruskin e as propostas pedagógicas de Rui Barbosa, bem como o modelo de ensino do Liceu do Rio de Janeiro. Essa dedução foi constatada nas citações de Rui Barbosa, entre as obras Re-forma do Ensino Primário, Lições de Coisas e O Desenho e Arte Industrial, que foi o próprio discurso inaugural do Liceu. Ao citar Ruskin nominalmente, Barbosa reforçou o ideal estético ruskinia-no principalmente ao propor um ensino com base na observação da natureza. Para Barbosa, assim como para Ruskin, a educação deveria partir de uma compreensão da Natureza e que se dá com o desenvolvimento dos sentidos e da intuição. “Haveis de educar o menino, como a natureza educou o gênero humano” (Barbosa, 1946, p.51). Outro aspecto importante que relaciona Rui Barbosa e John Ruskin é o fato do primeiro valorizar o ensino de desenho e incorporar nele uma atribuição moral, assim como o segundo

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já fazia em sua proposta estética. Barbosa enxergava o desenho como um principio fecundante do trabalho e propulsor essencial do desenvolvimento econômico dos Estados, lembrando que sua proposta de reforma do ensino era considerada um projeto para a industrialização do país. Ao encarar a instrução em uma esfera si-multaneamente intelectual e moral, e considerar o conhecimento a partir de uma noção do todo, Barbosa compartilha parcialmente da teoria estética de Ruskin.

Paralelo ao desenvolvimento do Liceu de Artes e Ofícios francês e o do Rio de Janeiro, surgiu na Inglaterra no mesmo período o movimento Arts and Crafts, liderado por William Morris, discípulo de Ruskin. O Arts and Crafts foi um movimento estético que de-fendia o artesanato criativo como alternativa a mecanização e a produção em massa e pregava o fim da distinção entre o artesão e o artista. A partir da reivindicação de uma sociedade socialista, Morris propunha um modelo de trabalho que se contrapunha ao modelo liberalista que estava começando a ganhar forças duran-te o século XIX. Para ele, o modelo educacional não deveria se adaptar ao mercado capitalista industrial, que era estruturado a partir da divisão do trabalho e das classes sociais, e propõe um ensino cujo objetivo seria o desenvolvimento das habilidades indi-viduais, passando por diversos trabalhos manuais, encaminhan-do assim as pessoas para as suas melhores aptidões no trabalho. Como resultado o trabalho seria um exercício prazeroso em todos os sentidos para o homem. Segundo Amaral (2005), o movimen-

to Arts and Crafts seguiu o mesmo caminho da estética ruskiana, que trata da união entre o pensar e o fazer. A produção seria a própria atividade do ensino, estimulada durante todo o processo de criação dos produtos. William Morris ainda nos mostra que tanto o Liceu, quanto Barbosa, quanto Ruskin estavam tratando de um mundo do trabalho que respeitasse o trabalhador, coisa que o inglês vai dizer poder existir apenas no Socialismo e nun-ca no capitalismo cuja essência é a exploração do homem pelo homem. Tal movimento inglês foi segundo Amaral (2005), a ex-pressão mais acabada dos pensamentos de Ruskin em relação à indústria. Dessa maneira, a experiência de ensino do Liceu de Artes e Ofí-cios do Rio de Janeiro bem como a proposta de Ensino de Rui Barbosa, que se mostram conectadas com a teoria estética de John Ruskin, fazem parte da história do processo de industrializa-ção e do ensino de desenho no Brasil.

A partir dessa etapa, o trabalho propôs uma conexão com o uni-verso da filosofia positiva, que, como podemos concluir nessa pesquisa, retomou o antigo preconceito que separava o pensar e o fazer, a partir da valorização o trabalho intelectual em contra-posição ao trabalho manual. Esse preconceito se infiltrou direta-mente no mundo do trabalho capitalista tornando-se um forte ali-ado do controle social do capital sobre o trabalho. O preconceito se infiltrou também nas metodologias do ensino do desenho das Instituições Públicas de Ensino, dando origem, ao que parece

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foi chamado de Desenho Técnico. O Positivismo considerou o desenho técnico mera reprodução das leis ditadas pela ciência da matemática (geometria descritiva), tornando-o uma aplicação desta.

O Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo foi um exemplar desse modelo de instituição de ensino positivista, em prol do desenvol-vimento da sociedade moderna, no caso a paulista. A sua pro-posta pedagógica deixa claro que o ensino do desenho técnico é entendido unicamente pelas leis da ciência em sua ordem e progresso natural. A organização da escola e da aprendizagem se faz de maneira hierarquizada, que é uma característica da metodologia positiva.

Perceber essa transformação nas instituições de ensino técnico é essencial para entender os objetivos da filosofia positiva imple-mentados ao ensino. A principal crítica a esse modelo é que tal pedagogia pode ser vista, a meu ver, como alienante, pois estim-ula o modelo capitalista do mercado de trabalho, através de sua estrutura hierarquizante em todas as esferas, além de canalizar os esforços do trabalhador somente em prol da venda de sua força física. Com certeza não podemos desconsiderar que o Liceu de São Paulo foi importante no processo de formação de trabalha-dores capacitados para o desenvolvimento da capital paulista, porém o enfoque da critica aqui fica por conta da formação de um trabalhador e de um modelo de ensino moldado por conta das

necessidades do mercado.

Dialogando com toda essa contextualização histórica sobre o ensino de desenho técnico e as transformações do modelo posi-tivista no ensino, iniciou-se um segundo momento do trabalho, cujo objetivo foi o relacionamento dessas discussões com o ensi-no de Arquitetura e Urbanismo, para a construção de um pan-orama do ensino no Brasil.

Foi através da tradição Moderna, que encontramos o ideal posi-tivista nas metodologias de ensino de desenho/projeto, com base na objetividade da ciência e da arte, e no próprio cartesianismo introduzido pelo arquiteto francês do século XIX Viollet Le Duc. Através da fórmula de que toda forma segue uma função, o ar-quiteto francês acertou na receita programática que acabou se tornando o principal enredo da metodologia projetual moderni-sta. Além de uma atribuição e requalificação estética, o conjunto forma/função dos objetos e da arquitetura passou a resumir em si a própria moral das coisas, o que contribuiu para uma raciona-lização e objetivação da vida em todas as suas esferas. Tal obje-tivação se baseava na idéia de que as formas “tradicionais” das artes plásticas, literatura, design, organização social e da vida cotidiana tornaram-se ultrapassadas, e que se fazia fundamental criar uma nova cultura. O Movimento Modernista se concretizou pelo mundo e influenciou a tradição moderna da arquitetura no Brasil que acabou por reduzir as metodologias de desenho/pro

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jeto a sua expressão funcionalista/racionalista, como vimos pelo processo que iniciou com Le Duc e vem até os dias de hoje.

Finalmente, como etapa conclusiva, o trabalho de pesquisa chega na abordagem das metodologias de ensino de desenho/projeto das escolas de arquitetura do Brasil. Muitos autores acreditam que o modelo da Escola de Belas Artes foi superado e hoje o ensi-no estrutura-se em sua maioria na proposta didática desenvolvida pela escola alemã Bauhaus. A essa proposta didática, segue a estrutura cartesiana que pode ser observada tanto no modelo de ensino/aprendizagem de projeto identificado em alguns trabalhos de pesquisa na área do ensino de arquitetura, como na própria estrutura curricular de algumas escolas de arquitetura do Brasil.

Através de uma investigação sobre alguns dos procedimentos didáticos usuais utilizados pelos docentes das disciplinas de pro-jeto nas escolas de Arquitetura, pudemos perceber a utilização da lógica cartesiana no processo de ensino/aprendizagem das escolas de arquitetura no Brasil. A principio foi identificada uma didática “adestradora” assumida pelos cursos de Arquitetura no Brasil. Tal adestramento se dá por exercícios repetitivos, que parecem treinar o estudante de arquitetura a uma prática profis-sional que segue métodos invariáveis. Porém, o treinamento pela repetição do conhecido, certamente não leva a uma prática ar-quitetural criadora e inovadora, e sim a uma mecanização do pro-cesso de aprendizagem e de criação. Outra característica

percebida no processo de ensino/aprendizagem de projeto foi a segmentação do exercício projetual em etapas: a primeira em que se recebe e articula as informações e idéias sobre o projeto e a segunda em que se efetua o desenho e o projeto arquitetônico de fato. Além disso, o processo projetual estaria condicionado a uma distribuição de temas e portes que envolvem uma sequên-cia progressiva de complexidade. Aqui podemos identificar uma estrutura didática parecida com a proposta por Viollet Le Duc no século XIX, que buscou as regras do método cartesiano para a criação Arquitetônica. “Construir, a partir das partes, uma se-qüência de raciocínio linear e crescente de forma dedutiva” é a própria proposição do cartesianismo.

Ainda para o contexto da montagem de um modelo usual em dis-ciplinas de projeto, tem-se como hipótese que os exercícios de projeto em ateliê simulam a atuação de um arquiteto liberal, com-pondo-se das etapas de Estudo preliminar, Anteprojeto e Projeto Executivo, ou limitando-se à primeira etapa. A essa simulação da atuação de um arquiteto via exercícios de projeto, e que coloca o professor como cliente que apresenta o programa de necessi-dades, tem-se que os dados para a realização desses exercícios são igualmente simulados da realidade. Através desse mecan-ismo de simulação, utilizado como recurso didático, é almejado uma aproximação com aquilo que seria o processo de trabalho de um arquiteto. O que podemos refletir aqui é a eficácia desse método de simulação que tenta colocar o estudante de arquite-

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tura em contato com o universo profissional. Utilizando essa didática nos exercícios de projeto, estaríamos preparando que tipo de arquiteto para o mundo real? O desenvolvimento da ca-pacidade crítica para sintetizar conhecimentos na prática pro-jetual me parece bem mais relevante do que o treinamento de práticas profissionais.

A estrutura curricular que inseriu a disciplina de projeto como es-pinha dorsal do curso também foi identificada como usual ainda hoje nas escolas de Arquitetura. Essa organização sugere que através de uma interdisciplinaridade de conteúdos as disciplinas sejam sintetizadas no próprio ateliê de projeto, onde suposta-mente acontece o exercício projetual. Uma das críticas eventuais encontradas nesse modelo de estrutura curricular é a incapaci-dade de relacionamento entre a disciplina de projeto com as demais disciplinas do curso. Essa centralidade da disciplina de projeto acaba ocasionando um isolamento da mesma, que se dis-tancia das demais, além de gerar igualmente a hierarquização do conteúdo pedagógico, que deveria considerar determinadas disciplinas no mesmo grau de importância para a prática do ex-ercício de projeto.

A partir de todos esses dados podemos retomar o argumento que já foi colocado no início da investigação sobre os procedimentos usuais utilizados nas disciplinas de projeto em escolas de arquit-etura pelo Brasil: a utilização da lógica cartesiana no processo

de ensino/aprendizagem ainda se faz presente em seus mecanis-mos. O que gostaria de deixar claro aqui, é que a critica a lógica cartesiana é pertinente no sentido de que ela permite um ensino onde o conhecimento técnico se transforma em mera conseqüên-cia da ciência. Além disso, a lógica de construção dos significa-dos no próprio processo de criação fica prejudicada quando vem atrelada a um mecanismo de divisão de partes hierarquizadas e da necessidade de soma delas para uma síntese. A esse mecan-ismo se associa uma maneira de pensar que é do próprio pen-samento capitalista, em suas relações autoritárias e opressoras. Desse modo o ensino de arquitetura deveria ser voltado para o desenvolvimento de um pensamento critico, atrelado ao próprio ato de projetar, e que deve ser encarado como a própria lingua-gem de ação e interpretação social.

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Com a relação entre o Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, as propostas pedagógicas de Rui Barbosa, a teoria estética de John Ruskin e até o movimento Arts and Crafts, pudemos perce-ber que existiram algumas iniciativas diferenciadas de ensino de desenho no Brasil. Mesmo sendo instituições de ensino para o operário, e não escolas de Arquitetura, o que vale a pena recon-hecer aqui é a estrutura de ensino que estava se valorizando, e que tipo de trabalhador se queria formar nessas instituições. A história do ensino do desenho técnico, bem como a história da Arquitetura só tem importância se compreendida como a história das espacializações das formas sociais. Assim, ela nos ensinará que, se quisermos transformar a organização espacial, teremos que atuar na organização social e transformar as idéias e as práti-cas que a sustentam.

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APÊNDICE - Do desenho a dissolução do lugar arquitetônico

O desenho é a forma de expressão humana mais antiga e que

melhor permite a representação dos objetos que compõe o mun-

do que nos rodeia. De fato, uma das primeiras referências da

existência humana na Terra aparece nas imagens desenhadas

nas cavernas, que hoje chamamos de imagens artísticas. Neste

sentido, pode-se dizer que o desenho, como forma de representa-

ção e comunicação, faz parte da própria história da humanidade.

(ORTEGA 2000, pg.04).

À medida que os conceitos artísticos foram, lentamente, durante a Antiguidade separando-se da religião, o desenho passou a ganhar autonomia e a se tornar uma disciplina própria. A partir desse período (da Antiguidade ao Renascimento) inicia-se uma preocupação em empreender um estudo sistemático do desenho enquanto forma de conhecimento além de fomentar uma estrutu-ração nas formas de divisão e produção do trabalho. Essa mu-dança gerou o desenvolvimento do desenho como ferramenta de trabalho do arquiteto, bem como dos artesãos que se envolviam com a produção de manufaturas.

foi a partir do renascimento, - em que a manufatura, sob a proprie-

dade da burguesia, substituiu o artesanato, e fez surgir novas for-

mas de divisão do trabalho – que a utilização do desenho tornou-

se indispensável. SVENSSON (1991, p. 41) aponta que essa nova

formação social caracterizou o surgimento do arquiteto como um

[a]

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profissional liberal. “Não se trata mais de um mestre-de-obras que

sabe desenhar. O arquiteto projeta para que o mestre-de-obras

administre a construção que ele desenhou e, assim, garanta a

conformação de sua proposta (ORTEGA 2000, pg.07).

Outro aspecto importante desse período de transição do arte-sanato para a manufatura foi a maneira como a linguagem dos artesãos foi sendo decomposta e essa informação começou a ser repassada. As corporações de ofício retinham todos os con-hecimentos das técnicas e mecanismos de construção que eram passados a um aprendiz a partir de um período de trabalho junto a corporação. A alteração desse sistema de aprendizagem foi essencial para a transformação da arte do espírito do puro arte-sanato. A educação da nova geração nas artes passou da ofi-cina para a escola, e a instrução prática teve que ceder em parte à instrução teórica, a fim de remover os obstáculos que o velho sistema colocava no caminho dos jovens talentos.Como nos fala GAMA,

o domínio dos segredos da linguagem dos artesãos foi a porta

pelo qual se entrou no domínio dos próprios segredos dos ofícios.

Dentre os mistérios dos misteres, a linguagem foi o primeiro a ser

desvendado, decifrado e jogado na rua pelas portas e janelas ar-

rombadas das oficinas – numa espécie de ação de despejo – para

ser vista por todo mundo. A linguagem era, e é, um importante

instrumento de domínio e uma barreira aos estranhos. Pode-

se verificar isto até hoje nos diversos patois, gírias e inclusive, na

persistência, em sociedades onde ainda prevalece a divisão do

trabalho por sexo, de linguagens secretas e privadas dos homens

transmitidas aos adolescentes nos ritos de puberdade (GAMA,

1987, p.64)

Como nos fala ORTEGA, nesse momento o desenho se impõe e passa a ser a linguagem da arte e da técnica, fundamentada nas questões relativas aos procedimentos de criação e composição de formas, que determinaram os sistemas de representação que são fundamentais para o ensino de desenho nos dias de hoje, assim como na metodologia de trabalho dos artistas, que no caso dos arquitetos do século XVI passaram a utilizar a perspectiva exata como modo de representar o espaço.

Artigas (1986, p.45), mencionado por ORTEGA (2000, p.27),

define o desenho: “O “disegno” do Renascimento, donde se origi-

nou a palavra para todas as outras línguas ligadas ao latim, gan-

ha cidadania. E se de um lado é risco, traçado, mediação para

expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica

construtiva, de outro lado é desígnio, intenção, propósito, projeto

humano no sentido de proposta de espírito. Um espírito que cria

objetos novos e os introduz na vida real”.

E esse novo modo de representar o espaço vem sendo usado

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até os dias de hoje como metodologia de projeto na arquitetura. Pode-se sustentar também, que a utilização do desenho como processo de criação tornou-se fundamental desde então. Porém, essa mudança metodológica proveniente do período Renascen-tista, que agregou principalmente um caráter técnico ao ato de desenhar e que também propiciou a transformação dos meios de produção artesanal em manufaturas, estabeleceu uma corre-spondência e uma caracterização das funções entre a atividade projetual e o desenho. O entendimento dessa correspondência será importante para a posterior reflexão do processo tecnológico e suas relações com a natureza natural e social, com as atuais linguagens representativas e com a comunicação na arquitetura. Voltemos a correspondência entre o desenho e o projeto:

Em seu livro Desenho e Projeto são o Mesmo? Joaquim Vieira fala

que o desenho é [...] “a representação bidimensional de imagens,

realizada com a Mão, de maneira mais elementar, mais simples e

mais complexa possível” (VIEIRA, 1995, p.15), enquanto o projeto

é [...] “a proposição de novas organizações e funções da forma,

de conjuntos de formas materiais, sociais ou ideológicas através

de métodos e sistemas convencionais” (VIEIRA, 1995, p.15).

O mesmo autor fala que existem exigências objetivas e simbóli-cas determinantes para o projeto, e que é o grupo ou indivíduo, que a definem. Ao autor cabe a interpretação e resolução dessas exigências através de uma resposta projetual, mesmo quando

subvertida da reivindicação inicial.

[...] “O grupo é que determina através de suas instâncias de-

tentoras do poder o que é necessário projetar. Esta necessidade

responde a exigências imediatas e primarias e em diversos casos

a exigências artísticas – simbólicas ou poéticas. O grupo, ou o

individuo define o projeto. Define a ação ou objeto que quer ver

realizado. Ao autor compete dar resposta a esse equacionar. O

autor é obrigado antes de mais a interpretar os dados lançados,

quantas vezes subvertendo a idéia proposta, por critica posição

ou por esclarecida proposição. Em qualquer caso o projeto en-

contra-se desde o inicio envolvido numa complexidade que é fun-

damentalmente intelectual a que começam a associar-se fatores

sentimentais que reforçam o caráter mental dessa atividade e a

que a intuição dará, complementarmente, algumas respostas” 38

A princípio percebe-se a correspondência entre o desenho e o projeto pelo simples fato de que uma resposta projetual se dá na sua maioria por meio de um desenho, que objetiva a ação do projeto. No desenho que era realmente, como tal, uma parte decisiva do projeto, quer do edifício, quer do objeto do século XV ao século XIX, se concentravam os fatores decisivos do processo projetual (VIEIRA, 1995).

Desenhar objetos, pessoas, situações, emoções e idéias são,

como coloca DERDYK (1994, p. 24), tentativas de aproximação

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com o mundo. “Desenhar é conhecer, é apropriar-se”. Para E. N.

Rogers: “[...] o processo do desenho, ou de outros meios rep-

resentativos, é profundamente inerente ao fenômeno conclusivo:

e não só para uma pesquisa filológica ou de tipo histórico, mas

porque, para penetrar a essência de um determinado objeto, é

extremamente interessante conhecer a sua confecção”.

No entanto, o fato do desenho começar a ser objetivado numa linguagem técnica gerou transformações nas suas próprias rela-ções de subjetividade, e a maneira como ele era interpretado. O fato de objetivar uma intenção projetual não faz do desenho somente uma técnica, pois como diz VIEIRA [...] “a técnica é uma condição de consciência, pelo que não faz sentido que qualquer projeto seja movido pela intuição, pela subjetividade, ou pela inconsciência, embora estas funções sejam determinantes no avanço de qualquer projeto” (VIEIRA, 1995, p.44).

Já o projeto é “uma técnica por ter de se preocupar com o fun-cionamento das coisas. Funcionamento não tem a ver só com as relações mecânicas. Funcionamento tem a ver com controle de dispositivos, de fluxos, de dinâmicas” (VIEIRA, 1995, p.44). Além de estar envolvido diretamente ao estado de antecipação.

Muitos projetos não passam mesmo dessa fase. Com a elabora-

ção mais ou menos profunda ou detalhada o projeto pode estar a

léguas de distância da realidade projetiva ou social ou da via

bilidade técnica e da apetência social o que não impede que o

ato de projetar não preencha as exigências mentais que reclama,

como verificamos com todos os projetos utópicos ou de antecipa-

ção cientifica. Talvez seja esta mesmo a característica mais sub-

lime do ato de projetar. (VIEIRA, 1995, p.44),

Até aqui, foi colocada a importância do desenho no desenvol-vimento histórico dos métodos de representação e do trabalho manual, e sua correspondência com ato de projetar, que mesmo trabalhando com processos subjetivos complementares ao do desenho depende da técnica para sua estruturação e definição. A técnica aqui tratada se relaciona diretamente com a cultura científica que constituiu num dos maiores fatores da passagem do seu estilo artesanal para a tecnologia. O enfoque passa a ser a Tecnologia Moderna que através da transformação técnica e mu-dança da lógica de produção alterou a maneira como nos comu-nicamos e criamos nossos códigos de interpretação do mundo, bem como do espaço no caso da Arquitetura.

Refletindo um pouco mais a questão da tecnologia podemos co-locar, a partir de Ruy Gama, que ela não foi apenas o encontro da teoria com a prática, embora o exija. E se difere da técnica, pois essa última é um conhecimento prático que não envolve, necessariamente, teoria alguma. A técnica é tão antiga quanto a humanidade; porém a tecnologia só veio a existir depois do esta-belecimento da ciência moderna, no século VXII, quando se

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percebeu que tudo o que o homem construía era regido por leis científicas. A tecnologia está vinculada desde seu nascimento à alteração do modo de produção e às formas de aquisição e trans-missão dos conhecimentos técnicos. É a partir daí que se pode falar, com propriedade, em tecnologia. Ela começa a se configu-rar num saber organizado e socializado, aliado a prática das artes antigas com os métodos da ciência moderna; corresponde a um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas e a novas relações de produção, em formações sócio econômicas determi-nadas.

E essas forças produtivas, serão explicadas a partir do conceito de trabalho elaborado por Karl Marx e que permeia todos os de-mais sentidos de sua obra, que buscou a compreensão da força motriz do Capitalismo tanto como ela se apresenta a sociedade. Vejamos:

MARX: Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam

o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua

própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercambio mate-

rial com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de

suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo,

braços e pernas, cabeça e mãos a fim de apropriar-se dos recur-

sos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atu-

ando assim sobre a natureza externa e modificando-a, a o mesmo

tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potenciali

dades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das

forças naturais.não se trata aqui das forças instintivas,animais, de

trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender

sua força de trabalho, é imensa a distancia histórica que medeia

entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda

instintiva de trabalho. Pressupomos o trabalho sob forma exclusi-

vamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes

às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao con-

struir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor

abelha é que ele figura na mente sua construção antes de trans-

formá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece

um resultado que, já existia antes idealmente na imaginação do

trabalhador(GAMA, 1985, p.183).

O fato de que os homens necessitam comer, vestir, proteger-se e

incorporar graus crescentes de conforto à sua existência impele-

os ao trabalho. O progresso humano é fruto do trabalho, é o con-

senso popular, que reconhece no processo de trabalho a viga que

sustenta a evolução e a revolução humana. No plano abstrato este

processo pode ser compreendido como transformação da natureza

em formas novas para a natureza, mas conformes com a utilidade

requerida. Assim, a natureza fornece o trigo, mas o homem o quer

na forma de pão. Com o seu trabalho, produz o trigo e transforma

em pap. Na sociedade não se conhece o plano abstrato porque ela

mesma é concretudo histórica. Aprofundemos, todavia este plano

abstrato. (MOREIRA, 1994, p.78).

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Mas antes de retomarmos a discussão sobre o processo da tec-nologia é preciso entender que natureza é essa em que o homem desenvolveu os meios de produção.

A natureza apresenta-se aos nossos olhos sob distintas formas,

mas simplificam-se estas formas em duas: a primeira natureza

(a natureza “natural”) e a segunda natureza (a natureza “social-

izada”). No plano abstrato de que estamos falando o processo do

trabalho passa-se como sendo a transformação da primeira natur-

eza em segundo natureza, isto é, sua socialização. O que é forma

natural neste momento fica transmutada em uma forma social com

o trabalho. A natureza preenhe p.79 de trabalho historiciza-se, vira

parte da história dos homens (MOREIRA, 1994, p.79).

Com a natureza socializada não desaparece a natureza primeira.

O que temos é a mudança da forma-natureza para forma-socie-

dade. Realcemos e ponto. O processo de historização da natur-

eza é o próprio processo histórico de formação da sociedade. No

plano abstrato a história do homem (história da conversão das

formas naturais em formas sociais), pode ser entendida como a

história da transformação permanente e continuamente ampliada

da natureza em sociedade. Freqüentemente nos esquecemos de

que o pão que comemos, a roupa que vestimos, o prédio que

habitamos, o carro que dirigimos, as pessoas que curtimos, são

formas socializadas, historicizadas, da natureza. De outra feita,

igualmente nos esquecemos de que socializamos a natureza uti

lizando a própria natureza socializada. As maquinas e p.80 con-

struções que são elas mesmas segunda natureza, tornam-se de

novo primeira natureza toda vez que as reincorporamos ao ciclo

infatigavelmente repetitivo de transformação da natureza, isto é,

de trabalho (MOREIRA, 1994, p.80).

Com isso, a partir do entendimento da relação entre a tecnologia, o trabalho e a natureza na qual o homem está inserido, podem-os falar que tanto o desenho quanto o projeto participam desse processo de constituição da natureza socializada. Através do trabalho o homem transforma a natureza, externa e própria do homem, desenvolvendo nela as potencialidades através de uma habilidade única do ser humano: a de planejar as suas ações. A esse planejamento podemos conferir a função do desenho e do projeto na Modernidade, que passaram a estruturar o processo de transformação da forma-natureza em forma-sociedade (Lemb-rando que esse processo de transformação das formas acontece na história desde que o homem exerce o trabalho, mas no nosso estudo tem importância somente a partir do momento do desen-volvimento tecnológico, aqui já explicitado).

Contudo, essas transformações que caracterizam a base de toda história e cultura humana parecem ser uma tentativa de enga-nar a natureza. O homem tornou-se dependente de uma outra “natureza”que ajudou a gerar artificialmente, com a diferença que essa nova, ao contrário da antiga, existe a serviço de seu bem-

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estar (pelo menos em tese). A essa nova natureza artificial criada pelo homem, surgem também os códigos, que funcionam como informações no processo de comunicação do homem. O desenho e o projeto também são códigos, que contém uma informação atrelada em sua própria conjuntura. Tão poderosos são nossos códigos, que construímos a partir deles versões alternativas da realidade, a medida que acreditamos coletivamente em sua eficá-cia.

O caráter artificial da comunicação humana (o fato de que o

homem se comunica com outros por meio de artifícios) nem sem-

pre é totalmente consciente. Após aprendermos um código, ten-

demos a esquecer a sua artificialidade: depois que se aprende o

código dos gestos, pode-se esquecer que o anuir com a cabeça

significa apenas aquele “sim” que serve desse código. Os códi-

gos (e os símbolos que os constituem) tornam-se uma espécie de

segunda natureza, e o mundo codificado e cheio de significados

em que vivemos (o mundo dos fenômenos significativos, tais como

o anuir com a cabeça, a sinalização de transito e os móveis) nos

faz esquecer o mundo da “primeira natureza”. E esse é, em ultima

analise, o objetivo do mundo codificado que nos circunda: que

esqueçamos que ele consiste num tecido artificial que esconde

uma natureza sem significado, sem sentido, por ele representada.

O objetivo da comunicação humana é nos fazer esquecer desse

contexto insignificante em que nos encontramos – completamente

sozinhos e “incomunicáveis”-, ou seja, é nos fazer

esquecer desse mundo em que ocupamos uma cela solitária e

em que somos condenados a morte – o mundo da “natureza”

(FLUSSER, 2007, P.90)

As informações que hoje invadem o nosso mundo e suplantam

as coisas são de um tipo que nunca existiu antes: são informa-

ções imateriais. As imagens eletrônicas na tela de televisão, os

dados armazenados no computador, os rolos de filme e micro-

filmes, hologramas e programas são tão impalpáveis”(softwares)

que qualquer tentativa de agarrá-los com a Mão fracassa. Essas

não-coisas são, no sentido preciso da palavra, inapreensíveis”.

São apenas decodificáveis. (FLUSSER, 2007, P.54)

As informações que convivemos hoje vivem na esfera do imate-rial. Com essa informação imaterializada, o espaço também está propenso a transformações no nível da matéria. O espaço real está se configurando num jogo de sobreposições entre o real e o virtual.

Os indícios de materialidade ainda ligados a essas não-coisas po-

dem ser descartados ao se apreciar o novo ambiente. O entorno

esta se tornando progressivamente mais impalpável, mais nebu-

loso, mais fantasmagórico, e aquele que nele quiser se orientar

terá de partir desse caráter espectral que lhe é próprio (FLUSSER,

2007, P.55)

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Mas, o que dizer da arquitetura, que se vê invadida por esse uni-verso do imaterial? Ao conviver num universo de códigos artifici-ais e informações imateriais, a arquitetura passa a configurar-se como um instrumento ético. A partir da articulação do movimento entre as categorias espaciais, o objeto arquitetônico se apresenta como um meio adequado a expressão materializada das regras da coexistência e das categorizações éticas.

A idéia da Arquitetura como instrumento ético provoca um deslo-

camento teórico que, não só nos traz uma compreensão mais

pertinente das relações espaço-tempo, como abre perspectivas

promissoras para a prática arquitetônica contemporânea. Esse

deslocamento retira a Arquitetura da excessiva ênfase na estética

do objeto e remete-a para âmbito mais promissor das relações.

Ao invés de um objeto estanque temos agora um vazio propicia-

dor das relações, “um vazio relacional”, indeterminado, mas po-

tente. A arquitetura deixa de ser a materialidade da construção (a

substancia) e passa a ser o encontro do sujeito com o objeto (o

evento), que propicia os meios para a interação inédita e expan-

dida do sujeito com o outro (MALARD, 2005, p.73).

A partir das idéias da arquitetura como um instrumento ético che-gamos a um ponto interessante para o relacionamento da evolução tecnológica com a arquitetura. As relações do espaço-tempo es-tão abrindo novas perspectivas para a produção arquitetônica atual. Os novos códigos de comunicação, que se mantém

na esfera do imaterial é que propiciam essas novas relações. O evento, que nada mais é que o encontro do sujeito com o objeto, aparece aqui como situação ideal da comunicação do espaço-tempo com o homem.

Estamos assistindo a dissolução do lugar aquitetônico em sua

forma histórica. Nos últimos cem anos, e nas ultimas décadas

de forma acelerada, vimos presenciando o surgimento de tec-

nologias que cada vez mais colocam em cheque e ameaçam a

tranqüila existência do lugar arquitetônico como artefato de jun-

ção espaço-tempo. A casca da cabana ou caverna arquetípica

começa a ser vazada por complexos aparelhos tecnológicos

de comunicação telemática, onde a presença conta menos que

a informação transmitida. Assistimos a uma redefinição da idéia

de presença, através da aceitação da quase-presença, mediada

tecnologicamente. A cumplicidade que caracterizava o evento,

e que se dava no continuo espaço-tempo, agora se dá mais no

tempo – a presença, o contato, a proximidade, a intimidade, pre-

scindem da co-espacialidade para demandar co-temporalidade.

A proximidade espaço-temporal não me garante mais um vínculo

com o outro.

Podemos dizer que a fricção entre lugar virtual e lugar real está

corroendo nossa noção tradicional de lugar. Se o que sempre car-

acterizou a Arquitetura foi sua opacidade e a sua capacidade de

descontinuar o espaço natural, tornando-se sede do evento, as

tecnologias da informação e da comunicação estão transforman

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ido a Arquitetura em algo transparente e não delimitador, que tem

dificuldade em servir como território do evento (MALARD, 2005,

p.75).

Fruto de uma tecnologia ou resultado de um deslocamento con-

ceitual, espera-se que essa Arquitetura seja capaz de abrigar

o homem atual e permitir, de novo, que o sujeito possa não só

continuar a construir sua subjetividade através da Arquitetura,

como ele vem fazendo há milhares de anos, mas que ele possa,

finalmente, ser aquilo que todos os mitos arquitetônicos tentaram

enunciar: não um individuo que habite o espaço ou o tempo de

um objeto arquitetônico estanque, mas um sujeito que se faça e

se desfaça morador do continuo espaço-temporal articulado pelo

discurso da arquitetura; um sujeito que consiga a plenitude de

habitar a linguagem, já que, em ultima instancia, é ela mesma que

dá corpo concretude a Arquitetura (MALARD, 2005, p.77).

Através desse texto complementar, tentou-se desenvolver a pos-siblidade de relação entre a evolução do desenho, do processo tecnológico e próprio fenômeno da comunicação contemporânea, que extrapola o campo do universo material e busca atualmente novas maneiras de se adaptar a um mundo codificado. A relação entre o desenho e o processo tecnológico se deu no momento que o desenho passou a ser uma das ferramentas de transformação da forma-natureza para a forma-sociedade.O desenvolvimento das manufaturas e o próprio ensino técnico como mecanis

mo de desenvolvimento dos processos de produção são a prova disso. Porém, o processo tecnológico chegou num ponto em que os produtos produzidos (que contém a própria informação) gan-haram a forma imaterial. Com isso, essa nova fricção do mundo virtual com o mundo real acarreta conseqüências na própria con-cepção da arquitetura que deverá, a partir de agora, a propor um habitar onde o individuo faça-se e desfaça-se morador de um contínuo espaço-tempo articulado pelo próprio discurso da arquitetura. A partir da redefinição da idéia de presença, a ideal-ização do espaço também sofre transformações. Quais serão os novos meios de representação que irão simbolizar esse mundo codificado? Será que o desenho e o projeto ainda terão estrutura para possibilitar a comunicação entre os indivíduos nesse univer-so de informações digitais? Ficam aqui alguns questionamentos, sem muita pertinência, para possíveis investigações.

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Bibliografia Apêndice

FLUSSER, V., O mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, Cosac Naify, 2007

.GAMA, Ruy. A Tecnologia e o Trabalho na História. S.Paulo: No-bel/Edusp, 1987.

MALARD, M. Lucia (org) . Cinco Textos sobre Arquitetura. Belo horizonte: Editora UFMG, 2005.

MOREIRA, R. O que é geografia. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ORTEGA, Artur Renato. O projeto e o desenho no olhar do arquit-eto. São Paulo: Tese FAU USP, 2000.

VIEIRA, Joaquim. O desenho e o Projecto são o mesmo? Facul-dade de Arquitectura da Universidade do Porto 1995.

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