Oswaldo Porchat - Sobre a Degola Do Boi, Segundo Aristóteles, Analytica, 2004

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89 volume 8 número 1 2004 OSWALDO PORCHAT PEREIRA Oswaldo Porchat Pereira USP SOBRE A DEGOLA DO BOI, SEGUNDO ARISTÓTELES 1. A OBJEÇÃO ANGIONIANA Em meu livro Ciência e Dialética em Aristóteles 1 , eu afirmo que “a ciência aristotélica, tomada em sentido restrito, deve, coerentemente, excluir de seu do- mínio toda uma numerosa classe de relações causais e necessárias que a ciência moderna tomou por seu legítimo objeto e a que não recusou a dimensão da cientificidade.” (CDA, p. 149) Eu o faço no momento em que estou comentando e interpretando a doutrina aristotélica dos atributos por si (kath’autá) de um sujeito exposta em Seg. Anal. I, 4, 73 a34 seg., particularmente 73 b10-16. Porque me pare- cia – e parece ainda – que essa passagem pode ajudar-nos a aclarar “um ponto nevrálgico da teoria aristotélica da ciência, deixando manifesta sua irredutível oposição às concepções da ciência que prevaleceram no mundo moderno”, assim me exprimi então (p. 148). Com sua argúcia e engenhosidade habituais, Lucas Angioni objeta 2 contra esse ponto de minha interpretação e defende contra mim a doutrina aristotélica, buscando “diminuir um pouco a distância entre as concep- ções aristotélica e moderna de ciência” (Angioni, p. 22). Antes de examinar e ten- Réplica a Lucas Angioni (1) Porchat Pereira, Oswaldo, Ciência e Dialética em Aristóteles, Editora Unesp, 2000, São Paulo. Doravante me referirei a esse livro pela sigla “CDA”. (2) Angioni, Lucas, “Relações causais entre eventos na ciência aristotélica: uma discussão crítica de Ciência e Dialética em Aristóteles, de Oswaldo Porchat”, acima, p. 13-25. As referências dadas neste texto remetem a essa paginação.

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Artigo do professor Oswaldo Porchat, em resposta ao comentário de Lucas Angioni ao livro Ciência e dialética em Aristóteles.

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    OSWALDO PORCHAT PEREIRA

    Oswaldo Porchat Pereira

    USP

    SOBRE A DEGOLA DOBOI, SEGUNDO ARISTTELES

    1. A OBJEO ANGIONIANAEm meu livro Cincia e Dialtica em Aristteles1 , eu afirmo que a cincia

    aristotlica, tomada em sentido restrito, deve, coerentemente, excluir de seu do-mnio toda uma numerosa classe de relaes causais e necessrias que a cinciamoderna tomou por seu legtimo objeto e a que no recusou a dimenso dacientificidade. (CDA, p. 149) Eu o fao no momento em que estou comentando einterpretando a doutrina aristotlica dos atributos por si (kathaut) de um sujeitoexposta em Seg. Anal. I, 4, 73 a34 seg., particularmente 73 b10-16. Porque me pare-cia e parece ainda que essa passagem pode ajudar-nos a aclarar um pontonevrlgico da teoria aristotlica da cincia, deixando manifesta sua irredutveloposio s concepes da cincia que prevaleceram no mundo moderno, assimme exprimi ento (p. 148). Com sua argcia e engenhosidade habituais, LucasAngioni objeta2 contra esse ponto de minha interpretao e defende contra mim adoutrina aristotlica, buscando diminuir um pouco a distncia entre as concep-es aristotlica e moderna de cincia (Angioni, p. 22). Antes de examinar e ten-

    Rplica a Lucas Angioni

    (1) Porchat Pereira, Oswaldo, Cincia e Dialtica em Aristteles, Editora Unesp, 2000, So Paulo.Doravante me referirei a esse livro pela sigla CDA.(2) Angioni, Lucas, Relaes causais entre eventos na cincia aristotlica: uma discusso crtica deCincia e Dialtica em Aristteles, de Oswaldo Porchat, acima, p. 13-25. As referncias dadas nestetexto remetem a essa paginao.

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    tar responder sua objeo, quero aqui registrar minha admirao intelectual porAngioni e meu respeito por suas pesquisas historiogrficas sobre o pensamentoaristotlico. E confessar que, tendo ele abordado em seu texto diferentes elemen-tos e aspectos da doutrina de Aristteles e recorrido a textos inmeros do filso-fo, tentando corroborar sua posio, isso obrigou-me a reler e reestudar algumasobras com as quais, por razes diversas, h dcadas no mais tinha contacto. Oque foi para mim a causa de um grande e imprevisto prazer.

    Resumamos sucintamente a questo. Tendo afirmado a impossibilidade deser de outra maneira, isto , o carter necessrio do objeto de que se ocupa a cin-cia3 , Aristteles prope-se, a partir de Seg. Anal. I, 4, a estudar a natureza das pre-missas das demonstraes cientficas. Inicialmente define, o que faz em I, 4, as no-es de atributo de uma totalidade (kat pants), atributo por si (kathaut) e atributouniversal (kathlou) (cf. CDA p.137-138). No que diz respeito ao por si, o filsofodistingue quatro acepes (73 a34-b16, cf. CDA, p. 138 seg.). Segundo a primeira,dizemos que algo pertence por si a um sujeito, quando lhe pertence no o que ,isto , quanto pertence quididade ou essncia do sujeito e integra, portanto, suadefinio; assim o ponto pertence, nesse sentido, linha por si. Conforme a segun-da acepo, algo pertence a um sujeito por si quando, ao inverso, o sujeito figurana definio do atributo e integra, pois, sua quididade: assim par pertence a n-mero por si, j que nmero integra a definio de par. E, em 73 b4-6,Aristteles chama de acidentes (symbebekta) os atributos que no pertencem aosujeito de nenhuma dessas duas maneiras. Conforme a terceira acepo (73 b5-10),diz Aristteles, o que no se diz de algum outro sujeito se diz por si, assim a es-sncia (ousa) e o tde ti (isto, a essncia individual) se dizem por si, j que so oque precisamente so, no sendo alguma outra coisa. Finalmente, o filsofo dis-

    (3) Em CDA e neste texto, quando falo da cincia segundo Aristteles, tenho em vista essa acepoestrita do termo. Como ocorre com tantos outros termos de sua linguagem, o filsofo usa tambm otermo epistme em vrios sentidos, alguns extremamente frouxos (cf. CDA, p. 52-53). Assim, para darum nico mas ilustrativo exemplo, nos prprios Segundos Analticos (cf. I, 27, 87 a31-33) se faz refern-cia a cincias que conhecem apenas fatos, sem conhecer suas causas...

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    tingue uma quarta acepo (73 b10-16): Ainda, de outra maneira, o que pertencea cada coisa em virtude dela mesma (diaut) se diz por si (kathaut), o que no per-tence em virtude dela mesma se diz acidente (symbebeks); por exemplo, se estan-do algum a caminhar, relampejou, se diz um acidente: no foi em virtude de ca-minhar que relampejou, mas isso lhe sobreveio (synbe), dizemos. Mas, se foi emvirtude da coisa mesma (diaut), se diz por si; por exemplo, se algo (subent.: al-gum animal), sendo degolado, morreu e pela degola (kat tn sphagn), porque emvirtude de ser degolado (di to sphttesthai), no lhe sobreveio (acidentalmente),sendo degolado, o morrer.

    Tendo distinguido essas quatro acepes do por si, afirma Aristteles (cf.73 b16-19; CDA, p. 143) serem por necessidade aquelas coisas que, no que res-peita aos objetos cientficos tomados em sentido estrito (hapls), se dizem por siseja na primeira, seja na segunda acepo: no lhes possvel, com efeito,no pertencer.... Porque manifestamente no pode no pertencer a um sujeitoo que integra sua quididade e aparece em sua definio (primeira acepo),nem pode um atributo no pertencer a um sujeito, se o sujeito integra suaquididade e definio (segunda acepo): trata-se de relaes que dizem res-peito s essncias mesmas dos sujeitos e atributos. Esse carter necessrio dopor si conforme as duas primeiras acepes, Aristteles o tomar doravantepor estabelecido.

    Assim, a cincia aristotlica tem por objeto o que necessrio e no podeser de outra maneira, que ela conhece por sua determinao causal. E a cinciademonstra suas concluses necessrias atravs das cadeias silogsticas, que com-pem suas demonstraes. Por outro lado, o acidente no necessrio e dele noh cincia. Ora, vimos acima que Aristteles ope ao por si, que necessrio, oacidente, chamando de acidente o que no por si. Por si (kataut) e enquanto tal (haut) dizem a mesma coisa, o que pertence a uma coisa por si lhe pertence enquan-to ela ela mesma (cf. Seg. Anal. I, 4, 73 b28-32 e CDA p. 143); Aristteles poder,portanto, dizer em I, 6, 75 a 28-30: Visto que pertencem em cada gnero por ne-cessidade aquelas coisas que pertencem por si e ao sujeito enquanto tal, manifes-to que as demonstraes cientficas dizem respeito s coisas que pertencem por

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    si....4 Toda cincia diz respeito a um certo gnero-sujeito cujas afeces e aci-dentes por si5 a demonstrao prova (I, 7, 75 a42-b2), as concluses exprimindo oque pertence ao gnero-sujeito por si (cf. 75 a40-41 e CDA, p. 211-213). Pertencendoao sujeito enquanto tal, o por si lhe pertence em toda a sua extenso, a cada umade suas instncias particulares, e Aristteles define como universal (kathlou) o quepertence a todo sujeito, por si e enquanto tal (I, 4, 73 b26-27), entendendo nessesentido tcnico a universalidade que atribui cincia e a seus enunciados (cf.CDA, p. 153-154). No que concerne cincia aristotlica, nenhum desses pontostodos controverso.

    A objeo de Angioni contra a minha interpretao daquelas duas ltimasacepes do por si, a terceira e a quarta, sobretudo contra a maneira como leio aquarta, em torno desse ponto que se estrutura todo o seu texto. Defendo a tesede que Aristteles exclui essas duas acepes do domnio da cincia, isso o queAngioni no aceita. Essa nossa divergncia se desenha particularmente em tornodo alcance do exemplo com que Aristteles ilustra a quarta acepo, o da mortedo boi6 , por ter sido degolado. Em outras palavras, sobre a degola do boi, se-gundo Aristteles, que ns estamos em desacordo. Como se ver, esse desacordo

    (4) O propsito de todo esse captulo 6 do livro I dos Segundos Analticos o de mostrar que tambm aspremissas e os princpios de toda cincia so dessa mesma natureza, necessrios e por si, cf. CDA, p.192-195.(5) Acidente por si (kathaut symbebeks), explica-nos Aristteles em Met. delta, 30, 1025 a30-32, quanto pertence a uma coisa por si sem estar em sua essncia, como para o tringulo ter os ngulosiguais a dois retos. Essa expresso aparece em algumas poucas passagens de Aristteles, cf. CDA p.141 e n. 20. Mas esse e alguns outros distintos usos do termo symbebeks pelo filsofo no me parecemsuficientes para justificar o abandono de sua traduo tradicional por acidente. No mais das ve-zes, symbebeks designa, na linguagem de Aristteles, o que sobrevm a um sujeito e se pode a eleatribuir com verdade, no lhe pertencendo no entanto nem por necessidade nem na maior parte dasvezes, cf., por exemplo, Met. delta 30, 1025 a14-16 ; o que lhe , portanto acidental, no sentido habi-tual deste termo em nossa lngua.(6) Angioni supe (cf. p. 16) que o animal do exemplo aristotlico seja um boi e se refere sempre ao boiao longo de seu texto.

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    no de importncia menor, ele diz respeito, em verdade, natureza mesma dadoutrina aristotlica da cincia e, em ltima anlise, como nota Angioni, existn-cia, ou no, de uma oposio importante entre a concepo aristotlica e a concep-o moderna de cincia.

    Talvez caiba esquematizar sucintamente as linhas gerais de minha interpre-tao contestada por Angioni: 1) no texto de Seg. Anal. I, 4, aps expor quatroacepes de por si, Aristteles reconhece cientificidade somente s duas primeiras;2) os termos e exemplos que o filsofo introduz para falar da terceira acepo in-dicam que ela interessa especificamente cincia do ser enquanto ser; 3) a formu-lao aristotlica da quarta acepo, assim como o exemplo da degola do boi, in-dicam que essa acepo diz respeito a relaes de necessidade causal entre even-tos cuja ocorrncia, entretanto, , em ltima anlise, acidental e, por isso mesmo,no interessa cincia aristotlica, que no se ocupa de acidentes. O que justificaa excluso dessa acepo do domnio da cincia, tomado em sentido absoluto.Apoiando-me no respaldo decisivo, assim penso, que essa interpretao encontrana doutrina aristotlica da cincia e da metafsica, sustentei, em CDA, que a cin-cia aristotlica exclui de seu domnio prprio toda uma numerosa classe de rela-es causais e necessrias que constituem, no entanto, para a cincia moderna, umobjeto normal e adequado de investigao.

    2. DISCUTINDO A OBJEO DE ANGIONIPasso agora a examinar no detalhe a objeo de Angioni, tentando compre-

    ender os muitos elementos que a compem e dar resposta s consideraes crti-cas que lhes esto associadas. Em 2.7 discuto o ncleo mesmo da tese que estru-tura todo o seu texto e unifica esses vrios elementos.

    2.1 Sobre a incluso, ou no, da terceira e quarta acepo de por si na esferada cincia

    Retomo a passagem de I, 4, 73 b16-19, que mencionei acima. Tendo acabado deapresentar as quatro acepes de por si, o filsofo explica que so necessrias aquelas

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    coisas que, no que respeita aos objetos cientficos tomados em sentido estrito, se di-zem por si conforme as duas primeiras acepes. Em CDA, eu afirmei (p. 143) quenem todas as acepes de por si interessam igualmente cincia aristotlica e dissetextualmente: Em verdade, no considera o filsofo no domnio do cientificamenteconhecvel, em sentido absoluto, seno as duas primeiras.... E, numa nota, de nme-ro 25, mencionei a passagem de 73 b16 seg., juntamente com outras duas, tambm dolivro I dos Segundos Analticos, para fundamentar meu ponto de vista.

    Angioni, entretanto, entende (cf. p. 21) que, nessa passagem, Aristtelesafirma apenas que as duas primeiras acepes configuram predicados necessriose, com isso, sugere (grifo meu) que ambas so aptas a fornecer as proposies ade-quadas ao conhecimento cientfico (73 b16-24). E acrescenta: Mas, em nenhumlugar, nessas linhas, Aristteles apresenta alguma restrio que inclusse no do-mnio da cincia apenas as duas primeiras acepes. No que concerne particular-mente quarta acepo, Angioni diz ainda: Aristteles no afirma enfaticamenteque a quarta acepo est includa no domnio da cincia, mas tambm no afir-ma que ela est excluda desse domnio. A questo deve ser decidida por evidn-cias complementares. E, para ele, as evidncias complementares, que expemais adiante, parecem ir em sentido oposto ao da minha interpretao.

    Rplica: Aristteles exclui explicitamente as acepes terceira e quarta de por si dodomnio da cincia

    Se Aristteles, como quer Angioni, no pretende excluir as acepes terceira equarta de por si da esfera da cincia, por que, ento, no as menciona e somente faladas duas primeiras? O filsofo, por certo, no diz aqui explicitamente que as duasltimas no concernem aos objetos da cincia, mas seu texto sugere isso fortemente7 .

    (7) Assim pensa tambm Ross, cf. sua nota ad Seg. Anal. I, 4, 73 b16-18 em Aristotles Prior and Poste-rior Analytics-A revised text with introduction and commentary by W. D. Ross, Oxford, at the ClarendonPress, 1949. Em nota acerca dessa mesma passagem, Mure cita as opinies dos comentadoresZabarella e Pacius, para quem Aristteles quis significar que somente os por si conforme as duas

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    O mais importante, porm, que, a partir dessa passagem, nos captulos que se se-guem e nos quais o filsofo continua a expor sua teoria da cincia, ele se refere so-mente s duas primeiras acepes de por si. Este um ponto que Angioni parece terdesconsiderado. De fato, em I, 6, 74 b6-10, ao dizer que os atributos por si so neces-srios a seus sujeitos, Aristteles assim justifica o que acaba de dizer: com efeito,uns pertencem no o que , aos outros pertencem no o que os prprios sujeitosde que so atributos, sem qualquer referncia terceira ou quarta acepo. EAristteles totalmente explcito em I, 22, 84 a11-14: com efeito, a demonstrao daqueles atributos que pertencem por si a seus sujeitos; ora, os por si se dizem deduas maneiras: aqueles, com efeito, que lhes pertencem no o que e aqueles aosquais os sujeitos pertencem no o que , seguindo-se os exemplos correspondentes aessas duas primeiras acepes de por si. Atente-se que, nesta passagem, Aristtelesdiz, com todas as letras, que os por si que so objeto da demonstrao cientficacorrespondem primeira ou segunda acepo. A essas duas passagens, a de 74b6-10 e a de 84 a11-24, eu fiz referncia em CDA, p. 143, n. 25.

    Parece-me que essas indicaes dadas pelo prprio filsofo so suficiente-mente claras para mostrar a correo de minha interpretao, ao menos num pon-to, mas num ponto que importante: Aristteles entendeu que as terceira e quartaacepo de por si no pertenciam esfera da cincia propriamente dita. Mas issototalmente se confirma quando procedemos anlise detalhada dessas duasacepes. Mais ainda, quando referimos o que Aristteles diz a respeito delas atoda a sua doutrina da cincia e da metafsica.

    2.2 Se a terceira acepo de por si diz respeito cincia ou metafsicaAinda que o texto de Angioni discuta sobretudo a minha interpretao da

    quarta acepo de por si, vou permitir-me responder sucintamente ao que ele diz

    primeiras acepes exibem a necessidade exigida para o conhecimento cientfico (cf. a traduodos Segundos Analticos por G.R. G. Mure em The Works of Aristotle, Oxford University Press, Lon-dres, 1955, vol. I, ad 76 b16-18).

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    sobre minha interpretao da terceira (na nota 2 de sua p. 14). O texto aristotlico o seguinte (I, 4, 73 b5-10): Ainda (subent.: se diz por si) o que no se diz de al-gum outro sujeito; por exemplo, o caminhante caminhante, sendo alguma outracoisa, e o branco, branco; mas a essncia (ou substncia, ousa) e quantas coisassignificam isto (tde ti) so o que precisamente so, no sendo alguma outra coi-sa. As coisas, ento, que no se dizem de um sujeito digo por si, acidentes as quese dizem de um sujeito.

    Em CDA, p. 147, eu afirmei que cabe unicamente cincia do ser enquantoser, metafsica, ocupar-se desta terceira acepo de por si. Mas Angioni, em suanota supramencionada, julga isso incorreto e diz que a acepo em questo se re-fere ao gnero subjacente a cada cincia, circunscrito justamente por sua defini-o. Para ele, essa acepo acaba por se referir a algo que j poderia ter sidoobtido apenas por uma subdiviso da primeira acepo: a saber, o predicadodefinicional.

    Rplica: A terceira acepo de por si diz especificamente respeito metafsica.Em verdade, esta minha rplica apenas retoma e comenta um pouco mais o

    que expus em CDA, particularmente a p.140-142 e 147, ad finem. Lembremos que,na terceira acepo de por si, Aristteles dizendo por si o que no se diz de algumoutro sujeito, introduz a expresso tde ti (que pertence a seu jargo metafsico ese aplica s substncias ou essencias individuais, como este homem etc.) e afir-ma que a ousa (essncia ou substncia) e o tde ti so o que precisamente so, nosendo alguma outra coisa. O filsofo est considerando, ento, exclusivamente a ca-tegoria da ousa, excluindo dessa acepo de por si quanto pertence s outras cate-gorias, que concernem s diferentes classes de atributos que se predicam dasousai. De todos esses atributos se pode dizer o que Aristteles, na passagem emquesto, diz dos atributos que toma como exemplos, o caminhante e o branco:cada um deles ele prprio, sendo alguma outra coisa, j que se dizem semprede algum outro sujeito, particularmente da ousa. Tudo isso faz parte da doutrinaaristotlica das categorias e no controverso. Como tambm manifesto nos tex-tos e no-controverso que os gneros de que as cincias se ocupam se distribu-

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    em por vrias categorias e no pertencem unicamente categoria da ousa: assim,os objetos da aritmtica e da geometria, por exemplo, concernem categoria daquantidade.

    Ora, os exemplos mesmos com que Aristteles ilustra as duas primeirasacepes de por si so extrados dessas cincias matemticas, como vimos acima.Segue-se, portanto, que os atributos por si das duas primeiras acepes, quando di-zem respeito a categorias outras que no a da ousa, no se diro por si conforme aterceira acepo. No vejo, portanto, como pode Lucas afirmar que a terceiraacepo se refere ao gnero subjacente a cada cincia, circunscrito justamentepor sua definio. Porque Aristteles, nesta acepo, no est falando do quepertence ao o que de um gnero-sujeito qualquer da cincia (como o caso naprimeira acepo), nem de atributos em geral a cujo o que seu sujeito perten-ce (como o caso na segunda acepo). O por si das duas primeiras acepes podeobviamente dizer respeito a sujeitos e atributos de qualquer categoria. O filsofo,na terceira acepo de por si, est claramente restringindo-se categoria da ousa.Ela , portanto, bem mais restrita que as duas primeiras.

    Por outro lado, bvio que o que pertence quididade (t n enai) de umasubstncia ou essncia, dizendo-se por si conforme a terceira acepo, evidente-mente tambm se dir por si conforme a primeira acepo, por integrar o o que e a definio. Com isso em mente, escrevi em CDA, p. 142, os sentidos primeiroe terceiro de por si, de algum modo, parcialmente se recobrem. Mas no me pa-rece que isso seria suficiente para que Aristteles introduzisse separadamenteessa acepo, se tivesse to-somente como propsito falar dos por si que dizemrespeito ao domnio cientfico. No entanto, explica-se sem maior dificuldade queAristteles a tenha introduzido, assim como a quarta acepo, se entendermosque o filsofo, tendo exposto as acepes de por si com que lida a cincia, teve emvista contrapor-lhes duas outras acepes que, por razes diferentes, so externas rea de competncia da cincia aristotlica, em sentido absoluto.

    O estudo da ousa e de como com ela se relaciona quanto pertence s outrascategorias cabe reconhecidamente cincia do ser enquanto ser, assim chamadametafsica. Ora, diz respeito unicamente ousa a terceira acepo de por si. Por

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    isso eu disse (naquela passagem de CDA, p. 147), que cabe cincia do ser en-quanto ser ocupar-se dela, se a questo do ser se reduz, em ltima anlise, pro-blemtica da essncia.

    2.3 Se a quarta acepo de por si diz respeito a relaes predicativas ou a re-laes entre causas e eventos

    Angioni diz, j na primeira pgina de seu texto, que, se, primeira vista, oterceiro e quarto sentidos de por si mesmo parecem nem sequer se referir rela-o entre sujeitos e predicados, esta primeira impresso, no entanto, serdesmentida pela anlise que proporemos (cf. p. 13 e n. 1). E, ao longo de seu tex-to, ele insiste, por diversas vezes, nesse ponto. Assim, no que concerne, por exem-plo, quarta acepo, ele se apia em um texto dos Tpicos e em outro da Fsica,onde entende ficar sugerido que, tambm nessa quarta acepo, temos uma rela-o predicativa, sobre a qual incide a expresso por si mesmo... (cf. p. 15-6).

    Comentando o exemplo do infeliz boi que morre em virtude de ter sido de-golado, Angioni explica (cf. p.16) que temos, no uma relao (por assim dizer)binria entre um sujeito e um predicado, mas sim uma relao ternria entre umsujeito e dois predicados: um boi, como sujeito, e a degolao e a morte, comopredicados. Essa relao ternria, alis, diz ele, pode conceber-se para os por siem todos os sentidos dessa acepo (cf. p. 17). E ele afirma: (cf. p. 16) os doispredicados atribuveis ao boi podem se dispor entre si conforme uma relaopredicativa: na verdade, sobre essa relao predicativa que nos fala a quartaacepo de por si mesmo. Aplicando ao exemplo do boi o que Aristteles diz,ao introduzir essa acepo (cf. Seg. Anal. I, 4, 73 b10-11) isto , que o que perten-ce a cada coisa (heksto) em virtude dela mesma (diaut) se diz por si (kathaut),Angioni explica (cf. p. 16) que heksto remete, neste caso, a ser degolado: mor-rer se atribui a ser degolado por si (kathaut).8 E insiste, assim, em que a rela-

    (8) Angioni tem, a meu ver, inteiramente razo em sua interpretao da sintaxe dessa passagem.

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    o causal entre a morte e a degola se pode reduzir a uma relao predicativa (omesmo, alis, podendo dizer-se, conforme a doutrina aristotlica, de toda causali-dade conhecida pela cincia) (cf. p. 17-19). O exemplo do boi degolado mostraque a quarta acepo se aplica a relaes causais necessrias: a morte que seguepor si a degola a segue necessariamente. Uma relao causal redutvel, portanto, auma relao predicativa necessria, este ponto podendo exprimir-se, em termosda lgica formal moderna, pelo seguinte esquema: para todo x, o pertencimentoa x do atributo f necessariamente implica o pertencimento a x do atributo g (cf. p.17). Assim, no exemplo do boi, para todo boi, se degola se lhe atribui, isso neces-sariamente implica que morte se lhe atribua. Por todas essas razes, seria abso-lutamente equivocado dizer que a quarta acepo de por si concerne to-somentea relaes entre eventos, ou entre causas e efeitos, no concernindo a relaespredicativas. Angioni diz textualmente (cf. p. 18): A especificidade da quartaacepo de por si mesmo no consiste em relacionar causas e efeitos, ao invs derelacionar sujeitos e predicados (grifo meu). A p. 19, ele se refere criticamente aopretendido fato (grifo meu) de a quarta acepo apenas relacionar eventos, oucausas e efeitos.

    Rplica: A quarta acepo de por si diz respeito a relaes predicativas que exprimemrelaes causais entre eventos

    Para surpresa, talvez, de Angioni, respondo que estou integralmente de acordocom todos esses pontos, enquanto expressos, nesse ltimo pargrafo, pelas palavras acima.Tudo isso sempre pareceu-me e parece-me bem tranquilo e incontrovertvel, eununca poderia pretender o contrrio. Tudo isso no somente compatvel comminha interpretao da doutrina aristotlica da cincia em CDA, mas tambmdela forosamente decorre. Mesmo que no me tenha demorado particularmen-te nessas questes. Ou que no tenha usado exatamente essas formulaes, ouno tenha julgado necessrio relembrar, a cada momento, esses elementos dedoutrina, ou no tenha exemplificado minha interpretao da doutrinaaristotlica com tais exemplos. O texto de Angioni parece-me, no entanto, suge-rir fortemente que ele julga sua posio, no que concerne a esses precisos pontos, di-

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    ferente, seno oposta, minha. Se no me engano quanto a este ponto, essa su-gesto me parece deveras curiosa.

    Porque, afinal de contas, expondo, em meu livro, a concepo aristotlica decincia e comentando e interpretando a estrutura dessa concepo, tal como ela sedesenvolve nos Segundos Analticos, demorei-me longamente em expor como, parao filsofo, o conhecimento cientfico, conhecimento demonstrativo de um objetonecessrio atravs de sua causa, se exprime num discurso que se organiza em ca-deias silogsticas. A cincia ocupando-se de relaes causais necessrias, ossilogismos cientficos demonstrando essas relaes causais, a estrutura delesespelhando linguisticamente, por assim dizer, a causalidade das coisas, a necessi-dade lgica interna da demonstrao exprimindo a necessidade das determina-es causais do objeto. Donde imediatamente decorre que as relaes causais re-ais se reduzem s relaes predicativas entre as proposies que compem ossilogismos. Se um fato ou evento cientificamente conhecvel, portantoconhecvel atravs de sua produo causal, ele o na medida mesma em que suanecessidade e causalidade se podem exprimir atravs das relaes predicativasformuladas nas proposies de que se constituem os silogismos demonstrativos9 .Tudo isso foi longamente objeto de anlise em CDA.

    E de tudo isso necessariamente se segue que, se a quarta acepo de por sirelaciona causalmente eventos, como eu afirmo, ento ela necessariamente se ex-primir em proposies que atribuem predicados aos respectivos sujeitos, inde-pendentemente de ela pertencer, ou no, ao mbito cientfico. Isto , ela tambmrelaciona sujeitos e predicados. Consideremos um exemplo abstrato desilogismo: g pertence a todo f. f pertence a todo S. g pertence a todo S. A conclu-so (g pertence a todo S) construda a partir das premissas em que f figuracomo termo mdio, f representando um atributo que pertence ao sujeito S, as-

    (9) Cf. CDA, p. 197, onde eu refiro, como exemplo de silogismo cientfico, um silogismo que prova aperda das folhas pelas rvores por causa da umidade. Esse exemplo dado por Aristteles em Seg.Anal. II, 16, 98 b32-38.

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    sim como g representa um atributo que pertence ao atributo f de S. Nada impe-de, obviamente, que f e g exprimam eventos que ocorrem no mundo a um su-jeito S e que f exprima o que, no mundo, uma causa do fato de g pertencer a S.

    Alis, quando, em CDA, p. 148-149, sustento que reconhecer a cientificidadedo conhecimento do por si na quarta acepo implicaria em diminuir substancial-mente a distncia entre a concepo de cincia em Aristteles e a concepo mo-derna, eu estava implicita mas manifestamente reconhecendo mas como poderiano reconhecer? que as relaes necessrias entre eventos, a que disse concernira quarta acepo, se podem exprimir sob forma de relaes predicativas, j queno poderia haver outra maneira de o discurso cientfico lidar com elas. O apa-rente equvoco de Angioni sobre minha posio se deveu, parece-me, a ele ter-sefixado pontualmente numa formulao infeliz disso dou-me agora conta deque me servi em CDA, p. 142, n. 24, formulao essa a que ele parece ter dadoimerecida importncia. Naquela nota, comentando a quarta acepo e a relao decausalidade entre eventos com que ela lida, conforme minha interpretao, eu es-crevi: Com efeito, os exemplos de que Aristteles se serve mostram claramente,como viu Ross (cf. nota ad locum), que no se trata, propriamente, de uma conexoentre sujeito e atributos, mas da relao causal entre dois eventos, que exprime apreposio di. O que eu queria dizer e deveria ter dito era algo bem diferente:queria dizer e deveria ter dito que a quarta acepo, dizendo respeito a relaescausais necessrias entre eventos (acidentais), concernia a algo mais que no somenterelaes necessrias entre sujeitos e atributos.10

    (10) No tenho certamente o direito de justificar meu erro dizendo que fui arrastado pelo exemplo deRoss, em seu comentrio aos Segundos Analticos (cf. a obra citada na nota 6 acima, p. 519-520), aocomentar essa passagem de I, 4, 73 b10-16. O ilustre aristotelista a diz, tambm com infelicidade,que, na quarta acepo, se usa a expresso por si to describe a necessary connexion not between anattribute and a subject, but between two events e que a relao aqui involves temporal sequences,as distinguished from the timeless connexions between attribute and subject that are found in thefirst two types. Ross no ignorava, obviamente, a redutibilidade de toda conexo causal entre even-tos a uma relao predicativa e quis certamente dizer aquilo que acima descrevi como o que eu deve-

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    Quanto terceira acepo de por si, a que concerne essncia (ousa) e ao tdeti que no se dizem de algum outro sujeito e se dizem por si, por demais bvio e Angioni e eu estamos nisso de pleno acordo que ela envolve relaespredicativas.

    2.4 Se a especificidade da quarta acepo de por si diz respeito, ou no, arelaes causais

    Tendo eu interpretado a quarta acepo de por si como dizendo especifi-camente respeito a uma relao de necessidade causal entre dois eventos quesobrevm a um determinado ser, Angioni critica e recusa essa minha interpre-tao. Isso porque, como vimos acima, ele no somente lembra aredutibilidade da relao causal necessria a uma relao predicativa necess-ria, mas tambm entende que a especificidade (grifo meu) da quarta acepo depor si mesmo no consiste em relacionar causas e efeitos, ao invs de relacio-nar sujeitos e predicados (cf. p. 18), repetindo logo adiante (cf. p.19): aespecificidade da quarta acepo de kath aut no pode ser atribuda ao pre-tendido fato de ela relacionar eventos, ou relacionar causas e efeitos, ao invsde quididades e atributos necessrios (grifo meu). Foi para sustentar essa in-terpretao que Angioni insistiu na reduo das relaes causais a relaespredicativas e se demorou na anlise do esquema ternrio associado a essaacepo, que diz respeito relao predicativa entre dois atributos de um su-jeito (cf., acima, o tem 2.3). Se entendo bem o que Angioni quer dizer, ento,para ele, o fato de Aristteles ilustrar com um exemplo de relao causal asrelaes predicativas necessrias com que lida a quarta acepo no significaque seja essencial a ela a referncia a relaes causais. Embora certamente,como o prprio exemplo da degola do boi o mostra, no se exclua, no esque-ma lgico correspondente quelas relaes predicativas (para todo x, o

    ria ter dito. Foi desatento e eu, desatentamente, acompanhei sua desateno. Espero no ter repetidoaquela formulao desajeitada em outras passagens de CDA.

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    pertencimento a x do atributo f necessariamente implica o pertencimento a xdo atributo g), a possibilidade de que f e g sejam substitudos por termosque denotem uma relao causal (cf. Angioni, p. 18).

    Mais adiante (cf. p. 21), Angioni introduz como uma das evidncias com-plementares para sustentar sua interpretao da quarta acepo, o fato por cer-to indiscutvel de que Aristteles utiliza como intercambiveis em muitas pas-sagens as expresses kathaut e diaut; e acrescenta que o relevo que o filsofo dem I, 4 a essa ltima expresso na exposio da quarta acepo talvez se possaexplicar pela inteno de sublinhar que esta acepo pode tambm envolver rela-es causais entre fatos.

    Para Angioni, a quarta acepo de por si sob algum aspecto, pode ser re-duzida s duas primeiras, que correspondem a atributos necessrios (cf. p.15)11 . Ele sustenta (cf. p. 16-7) que a diferena entre as duas primeiras e a quartaacepo, ao menos tal como so elucidadas pelos exemplos que as acompa-nham, consiste no modo pelo qual a relao predicativa estritamente necessria, por sua vez, atribuvel a um terceiro tem. Em outras palavras, se bem enten-do, a especificidade da quarta acepo seria a introduo do esquema ternrio(um sujeito e dois predicados relacionados pela predicao por si), esquemaesse que pode ser estendido s duas primeiras, mas que Aristteles no mencio-nou ao delas falar.

    Rplica: A especifidade da quarta acepo de por si diz respeito a relaes causais.Retomemos o que Aristteles diz da quarta acepo de por si (Seg. Anal. I,

    4, 73b10-16): Ainda, de outra maneira, o que pertence a cada coisa em virtudedela mesma (diaut) se diz por si (kathaut), o que no pertence em virtude delamesma se diz acidente (symbebeks); por exemplo, se estando algum a cami-nhar, relampejou, se diz um acidente: no foi em virtude de caminhar que re-

    (11) Angioni argumenta nessa direo, propondo sua anlise dos enunciados definicionais de atri-butos envolvidos nas relaes causais a que se pode aplicar a quarta acepo, como veremos adiante.

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    lampejou, mas isso lhe sobreveio (synbe), dizemos. Mas, se foi em virtude dacoisa mesma (diaut) , foi por si); por exemplo, se algo (subent.: algum animal),sendo degolado, morreu, e pela degola (kat tn sphagn), porque em virtude deser degolado (di to sphttesthai); mas no lhe sobreveio (acidentalmente), sendodegolado, o morrer.

    A simples leitura desta passagem me parece mostrar que sua interpreta-o mais simples, mais imediata, mais ch, a de que Aristteles a est ape-nas dizendo que o efeito de uma causa (o exemplo o de dois eventos, morte(efeito) e degola (causa)) se atribui causa por si. E o exemplo o de uma rela-o causal necessria, a morte sobrevindo necessariamente degola. Parece-me totalmente artificioso e contra-intuitivo ler o que Aristteles diz sobre aquarta acepo, privilegiando sobre o sentido causal o esquema ternrio depredicao. Pois nada indica que ele aqui desempenhe o papel central queAngioni lhe atribui. Alis, se esse esquema se pode estender tambm s duasprimeiras acepes, o que me parece mais que bvio, que sentido teria intro-duzir uma nova acepo de por si somente para introduzi-lo explicitamente,como Angioni pretende? No consigo ver por que Aristteles o faria. Em ou-tras palavras, parece-me bastante inverossmil a suposio de que o filsofotenha introduzido uma quarta acepo de por si to-somente para explicitarque sua concepo das relaes predicativas necessrias, a que fazem refern-cia as duas primeiras acepes, se preserva tambm nos esquemas ternriosem que a relao de implicao necessria se d entre atributos de um deter-minado sujeito. Isso porque, tendo em vista a doutrina aristotlica (a conside-rada no somente sua concepo da cincia, mas sua teoria das categorias esuas concepes metafsicas essencialistas), se trata de algo bastante bvio eque no mereceria ser especialmente mencionado. Por outro lado, no consigover de que modo a lembrana do fato de as expresses diaut e kathaut seremintercambiveis em vrias passagens aristotlicas poderia contribuir para diri-mir a diferena entre a interpretao de Angioni e a minha.

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    2.5 Se, no exemplo aristotlico da quarta acepo de por si, a referncia es-fera da contingncia indica, ou no, que essa acepo no diz respeito aodomnio cientfico

    Mesmo sendo necessria a relao entre a degola do boi e sua morte, cla-ramente acidental ao boi o ser degolado, j que ele poderia no ter tido essetriste fim. Nesse sentido, o exemplo dado por Aristteles o de uma insero,na esfera da contingncia, de uma relao necessria entre atributos. A partirdesse exemplo, eu tematizei em CDA (cf. p. 146-152) a doutrina aristotlica dacausalidade acidental, sua relao com as noes de sorte e acaso, a questo dasinterferncias acidentais entre sries causais e o carter frequentemente aciden-tal da produo de relaes causais necessrias, sustentando que estas ltimas,quando basicamente dependem da ocorrncia de acidentes, ipso facto no per-tencem propriamente ao campo cientfico. Porque entendia e ainda entendo que a referncia contingncia , precisamente sob esse prisma acima definido,fundamental para a quarta acepo de por si, escrevi: Porque tais por si, assim,finalmente, se integram no domnio da acidentalidade, deles no se ocupar acincia aristotlica (CDA, p. 151).

    Em outras palavras, interpretei o exemplo da degola do boi no seguinte sen-tido: a) contingente para o boi ser degolado; b) se acidentalmente lhe ocorre serdegolado, dessa causa se segue necessariamente a morte do boi; c) essa relao decausalidade necessria entre a degola e a morte, porque se insere plenamente nodomnio da acidentalidade e da contingncia, estranha ao domnio da cincia,em sentido absoluto; d) no entanto, ainda assim, se diz, num tal caso, que a propri-edade ou atributo de morrer pertence propriedade ou atributo de ser degoladopor si, numa acepo de por si que no diz respeito, ento, cincia. Entendi queAristteles quer justamente explicar que existe esse sentido de por si, que se podetambm falar de uma atribuio por si, nessa outra acepo do termo, que no se re-duz a nenhuma das duas primeiras que listara e que exterior ao domnio cient-fico. E que diferente, obviamente, da terceira acepo, tambm ela no-cientfica.

    Angioni recusa a idia de que relaes causais necessrias possam no ser ob-jeto de conhecimento cientfico. Voltaremos a esse ponto mais frente. Antes, po-

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    rm, vejamos o que diz acerca da insero do exemplo aristotlico da degola do boina esfera das coisas contingentes. Angioni reconhece, claro, que uma contingn-cia para o boi sua degola (cf., por exemplo, p. 15 e 20). Entretanto, para ele, no isso o que propriamente importa para a compreenso do que Aristteles visa ao in-troduzir a quarta acepo de por si. Considerando o esquema lgico que introduziupara analisar as relaes predicativas entre atributos que o filsofo tem em mente,isto , o esquema para todo x, o pertencimento a x do atributo f necessariamenteimplica o pertencimento a x do atributo g, Angioni lembra (cf. p. 20) que, segundominha interpretao da quarta acepo, o pertencimento de f a x no necessrio.Isto porque, para mim, a quarta acepo concerne a uma causao necessria de gpor um f que apenas acidentalmente sobrevm ao sujeito x. o que Angioni chamade uma verso mais restrita da quarta acepo.

    Para Angioni, a quarta acepo no deve ter essa leitura restrita. Ele reconheceexplicitamente que, se se exclui a quarta acepo do domnio da cincia, se tem deassumir essa verso. Mas escreve: No entanto, nada garante decisivamente queAristteles asuma a quarta acepo conforme essa maneira mais restrita. As evidn-cias em favor da verso mais restrita da quarta acepo resumem-se aos exemplosfornecidos por Aristteles em 73 b14-16 Vimos acima como, para Angioni, o queimporta na quarta acepo a introduo do esquema ternrio e, assim sendo, a re-ferncia da relao de predicao necessria entre atributos a um sujeito. O exem-plo aristotlico do pertencimento contingente do atributo-causa (a degola) ao boiindicando apenas, se entendo corretamente sua posio, que indiferente para aquarta acepo de por si se a atribuio da causa necessria de um efeito a um sujei-to , ela prpria, necessria ou to-somente contingente. A relao de causao ne-cessria sendo, num e noutro caso, suficiente para introduzir a cientificidade.

    Rplica: A referncia esfera da contingncia, no exemplo aristotlico da quarta acepode por si, indica que essa acepo no diz respeito ao domnio cientfico

    De novo, contra a leitura que Angioni faz da quarta acepo, agora no queconcerne questo da contingncia, vejo-me obrigado a repetir o que disse acima,

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    em 2.4, na minha rplica. A simples leitura da passagem de 73 b10-16,reproduzida no incio de 2.4, me parece mostrar que sua interpretao mais sim-ples e imediata a minha, que privilegia a verso mais restrita. O exemploaristotlico da degola do boi nos remete ao mundo da contingncia. Angioni dizque as nicas evidncias a favor de minha interpretao se resumem aos exem-plos dados por Aristteles. Mas por que iramos desconsiderar essas evidncias?Uma vez mais, a leitura de Angioni me parece artificiosa e contra-intuitiva. Aindarepetindo-me, no me parece verossmil que Aristteles tenha introduzido umanova acepo de por si somente para introduzir explicitamente o esquematernrio, esquema que Angioni diz, com razo, valer tambm para as duas pri-meiras acepes.

    Angioni obviamente entende, como eu, que relaes causais subsumveissob essas acepes, dizendo respeito ao que est presente na quididade de umsujeito ou dela decorre, so relaes causais necessrias. Se relaes causais ne-cessrias entre atributos inseridas no mundo da contingncia (como a relaoentre a degola e a morte do boi) fossem plenamente assimilveis s relaescausais necessrias envolvidas nas duas primeiras acepes, a introduo daquarta acepo parece-me que seria totalmente redundante. A menos queAngioni diga que Aristteles introduziu essa acepo precisamente para indicarque considera objeto pleno de conhecimento cientfico toda e qualquer relaocausal necessria, mesmo que se trate de uma relao entre atributoscontingentemente presentes num sujeito. Angioni no formula desse modo sualeitura, mas penso que essa pode ser a chave para a compreenso de tudo quan-to diz em seu texto, que esse ponto crucial para sua interpretao. E seu textofornece abundantes elementos nessa direo. com tal questo que vamos, apartir de agora, ocupar-nos. Sustento, entretanto, que nada, na passagemaristotlica em questo, sugere uma tal leitura.

    Por outro lado, se minha leitura correta, como julgo que , a introduo daquarta acepo inteiramente compreensvel. Tendo definido duas acepes ci-entficas de por si e tendo mostrado, a seguir, que por si tambm se diz numaacepo que diz respeito cincia do ser enquanto ser, o filsofo explica que a

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    expresso tambm usada, fora tambm do domnio cientfico propriamentedito, a respeito de uma correlao necessria qualquer entre causa e efeito.

    2.6 Sobre a cientificidade ou no-cientificidade de enunciados e definiesContra a minha posio, que nega a subsuno automtica sob a cincia

    aristotlica de toda e qualquer causalidade necessria, Angioni escreve (p. 23):Afirmamos, pelo contrrio, que, conforme concepo aristotlica, se uma rela-o causal necessria, ela universalizvel e, portanto, suscetvel de ser cientifi-camente conhecida, ao menos em seu registro adequado. O problema consistin-do apenas (cf. ibid.) em determinar em qual registro ela ser pertinente e poder, defato, se integrar no conjunto das proposies que constituem uma cincia deter-minada (Angioni afirma que esse um problema que Aristteles enfrenta emSeg. Anal. I, 1212 ). Ele, alis, j dissera, desde o incio (p. 15): o efeito que se seguenecessariamente de sua causa uma decorrncia imediata (isto , semintermediao por algum termo externo) da prpria essncia de sua causa e issopoderia ser expresso num enunciado disposicional universal, por si mesmo capazde fornecer conhecimento cientfico a respeito do sujeito a que se atribui disposi-o de causar o efeito. Considerando o exemplo aristotlico da degola do boi,Angioni diz (p. 16): Tome-se a noo de ser degolado e procure-se defini-la, isto, procure-se atribuir-lhe os predicados contidos no enunciado do seu o que ,os quais so predicados por si conforme a primeira acepo. bvio que tal no-o ser definida por um enunciado similar a este: ser morto atravs dadilacerao e separao de tais e tais partes corporais etc., ou seja, a noo de sermorto pertence ao enunciado que define o que ser degolado e, por isso mesmo, ser

    (12) Angioni fala de I, 11 e no de I, 12, o que certamente apenas um pequeno lapso. O captulo I, 11concerne aos axiomas e princpios comuns, enquanto I, 12 se ocupa, entre outras coisas, de distinguirquestes cientficas de questes no-cientficas. Angioni afirma que esse captulo se ocupa dediscernir quais so as questes, problemas e proposies pertinentes a um determinado gnero, quese pretende conhecer cientificamente e, de modo inverso, discernir a qual ou quais gneros pertenceum determinado problema, ou questo, ou proposio.

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    morto, em relao a ser degolado, apresenta-se como um atributo per se conforme aprimeira acepo de por si mesmo (73 a34-37).

    RplicaTenho alguns pontos a comentar acerca dessas passagens de Angioni. Come-

    cemos pela questo das definies no mbito da cincia, tal como Aristteles aconcebe. Segundo o filsofo, toda cincia estuda um gnero-sujeito cujasafeces e acidentes por si a demonstrao prova (Seg. Anal. I, 7, 75 a42-b2). OsSegundos Analticos demonstram-nos (cf. I, 19-22; CDA, p. 198-208) a existncia deprincpios (arkha) para as demonstraes, isto , de proposies primeiras e ime-diatas, absolutamente anteriores, por isso mesmo indemonstrveis, de onde par-tem, sempre, as demonstraes, proposies que exprimem, num intervalo(distema) imediato e indivisvel, causalidades imediatas, e que se configuramcomo elementos (stoikhea) da demonstrao. (CDA, p. 207) Assim, para a aritm-tica, por exemplo, um princpio primeiro a proposio a unidade oindivisvel segundo a quantidade, proposio que, tal como utilizada no dis-curso da cincia, assume ao mesmo tempo existncia e essncia, afirma ao mesmotempo que a unidade e diz o que a unidade, enunciando sua definio (sobre ocarter existencial e ao mesmo tempo definicional dos primeiros princpios ci-entficos, cf. CDA p. 223-34; esse exemplo, que concerne unidade, figura a p.233). Em tais definies-princpios, o predicado atribui-se manifestamente ao su-jeito na primeira acepo de por si (cf. CDA, p. 234)13 . Atentemos em que, nestasproposies primeiras, o que se atribui ao sujeito sua quididade, no o que deladecorre, no os seus efeitos.

    (13) Lembremos, tambm, que, para Aristteles, a progresso de uma cadeia demonstrativa, isto , deuma cadeia silogstica cientfica, exige a introduo contnua de novos princpios, o que permite mes-mo ao filsofo dizer que os princpios no so muito menos numerosos que as concluses (Seg.Anal. I, 32, 88 b3-8; sobre a questo do nmero de princpios numa demonstrao cientfica, cf. CDA,p. 263 seg.).

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    Por outro lado, Aristteles nos ensina que o processo demonstrativo o ni-co caminho para o conhecimento da quididade dos atributos cujo pertencimentoao sujeito a cincia demonstra atravs de suas respectivas causas imediatas, ex-pressas pelos termos mdios, suas definies de essncia somente tornando-sepossveis, ento, a posteriori. (cf. CDA, p. 328; o cap. V desse livro (p. 278-336) consagrado, precisamente, ao estudo da relao entre definio e demonstrao,na cincia aristotlica). Consideremos um silogismo tal como Trovo (rudo) per-tence extino do fogo. Extino do fogo pertence a nuvens. Trovo (rudo) per-tence a nuvens. O silogismo prova que um certo rudo (o trovo) atributo quepertence a nuvens (sujeito) em virtude da extino do fogo (causa, termo mdio).Efetuada a demonstrao, tornou-se possvel conhecer a quididade do trovo emanifest-la numa definio: rudo do fogo que se extingue nas nuvens (cf.CDA, p. 324-325). O sujeito (nuvens) comparecendo no o que de trovo,podemos dizer, ento, que trovo pertence a nuvens por si na segunda acepo(que diz respeito a um atributo de um sujeito tal que o sujeito figura na definiodo atributo e integra sua quididade). Exemplifica-se assim de que modo asafeces por si dos gneros que os silogismos da cincia demonstram... configu-ram atributos por si no segundo sentido, tendo seus mesmos sujeitos presentes emsuas definies (CDA, p. 234). E estas so definies de efeitos em que tam-bm as causas comparecem, integrando a quididade deles: assim, na definio detrovo, comparece sua causa (extino do fogo). Obtida essa definio, graasao processo demonstrativo, podemos doravante assumir como nova premissa, nacadeia silogstica, uma proposio que atribui ao efeito demonstrado suaquididade: trovo rudo de fogo que se extingue nas nuvens. Nessa proposi-o, a causa (extino do fogo) se diz do efeito (trovo) por si conforme a pri-meira acepo, porque integra o o que do efeito (cf. CDA, p. 328-329). Atente-mos, ento, em que, nas definies dos atributos por si cujo pertencimento a umgnero-sujeito uma cincia demonstra, no o efeito que integra o o que dacausa, mas, sim, ao inverso, a causa que integra o o que do efeito. Tais por si,alis, decorrem das quididades dos sujeitos a que se atribuem por si, mas delasno fazem parte (cf. CDA, p. 141 e n. 21, tambm p. 145).

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    De tudo isso decorre que, nas definies pertinentes ao conhecimento cient-fico de um gnero-sujeito, sejam elas expressas em proposies-princpios, sejamelas expressas nas definies dos atributos demonstrados e so esses os dois ti-pos de definio com que lida o discurso cientfico , efeitos no comparecemnas definies de causas ou de seus sujeitos. Ora, Angioni props-nos uma defi-nio de ser degolado, que ser morto atravs da dilacerao e separao detais e tais partes corporais etc., ou algum enunciado similar a esse. E ele n-laprops como uma definio cientfica, em que a causa (a degola) definida atra-vs de uma proposio em que o efeito (morte) comparece: o efeito pertenceria,assim, quididade da causa. vista de tudo quanto dissemos acima, segue-seque essa definio no cientfica.

    Por outro lado, um ponto crucial, na doutrina aristotlica da cincia, a refe-rncia necessria de todo enunciado cientfico e de toda definio cientfica aum gnero-sujeito. As proposies ou princpios primeiros assumem a existnciae exprimem a quididade de um gnero sujeito, os numerosos princpios secun-drios dizem respeito a determinaes do gnero-sujeito, as demonstraes pro-vam o pertencimento por si de atributos a um gnero-sujeito. Para Aristteles, ognero um dos tres elementos essenciais numa demonstrao cientfica, os ou-tros dois sendo os atributos por si demonstrados e os axiomas (cf. Seg. Anal. I, 7, 75a39-b2). No se caracteriz adequadamente um conhecimento cientfico particular,se no se indica a que gnero-sujeito diz ele respeito.

    Angioni enquadra tentativamente sua definio de ser degolado no do-mnio da cincia prpria ao degolador ou pecuarista, ou seja l quem fr, que seresponsabiliza pelo conhecimento destinado a produzir carne para consumo(p.23), isto , no domnio de uma cincia poitica, isto , produtiva. Isso umpouco vago e precisaria ser melhor caracterizado. Isto porque, se se pudesse falarde uma cincia da degola, para Aristteles, a definio de degola seria um princ-pio primeiro, a degola sendo o gnero-sujeito da cincia em questo. Ao contr-rio, se o gnero-sujeito fosse a pecuria ou uma cincia de produo de carnepara o consumo, a degola no seria o gnero-sujeito e a definio de degola even-tualmente compareceria num princpio secundrio, sendo porm necessrio in-

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    dicar como, na cadeia demonstrativa que se origina dos primeiros princpios, aproposio em que tal definio comparecesse seria introduzida. O carter cient-fico de uma definio somente se estabelece atravs de sua insero possvel nodiscurso demonstrativo que lida com um gnero-sujeito particular.

    E, para Angioni, como vimos, se uma relao causal necessria, sem-pre possvel formular a seu respeito um enunciado universal capaz, por simesmo, de fornecer conhecimento cientfico. Mas um enunciado somente ci-entfico se ele integra o discurso que estuda as propriedades por si de um g-nero-sujeito, somente assim se reconhece sua cientificidade. Sendo, portanto,essencial para um enunciado cientfico sua referncia a um gnero-sujeito, nocabe falar em cientificidade de um enunciado sem que essa referncia seja ca-racterizada e estabelecida. Angioni tem de admitir, para sustentar sua posio,que, dado um enunciado causal necessrio, sempre possvel caracterizar umgnero-sujeito a que ele diz respeito. assim que entendo, alis, sua afirma-o de que a relao causal necessria, sempre universalizvel, sempre sus-cetvel de ser cientificamente conhecida, ao menos em seu registro adequa-do, o problema consistindo em determinar qual o registro pertinente para,assim, integrar o enunciado em questo no discurso em que se formula umadeterminada cincia (cf. p. 23-4). Lendo-se essa passagem, tem-se a impressode que, para Angioni, o conhecimento de que uma relao causal necessria suficiente para afirmar sua cientificidade, antes mesmo de descobrirmos aque gnero-sujeito diz respeito o enunciado universal que exprime essa rela-o causal necessria, antes mesmo de integrarmos esse enunciado num dis-curso cientfico determinado. A existncia desse gnero e a possibilidade des-se discurso cientfico estariam, por assim dizer, a priori assegurados. Mas quegarantias tem Angioni de que isso o caso? No conheo nenhum textoaristotlico que possa dar respaldo a uma tal posio14 .

    (14) E discordo de Angioni quando diz (cf. p. 23) que Aristteles enfrenta em Seg. Anal. I, 12, o proble-ma da determinao do registro adequado ( isto , da determinao do gnero-sujeito apropriado)a uma relao causal necessria. Nesse captulo, o que Aristteles diz, entre outras coisas, que o

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    Alis, fsse esse o caso, a doutrina aristotlica da cincia deveria assumir aexistncia, ao menos potencial, de uma multido variegada de disciplinas cientfi-cas, para dar conta da enorme multido de ocorrncias de produo causal necess-ria em nosso mundo, j que no vemos como elas se poderiam subsumir sob umnmero no-elevado de gneros cientficos. Para ser um pouco provocativo, queroapenas lembrar que Aristteles facilmente poderia ter multiplicado seus exemplosde relao causal necessria, ao falar da quarta acepo de por si. Assim, algum empurrado de uma grande altura e, por causa disso, necessariamente morre; al-gum empurrado com muita fora e, por causa disso, necessariamente ci; al-gum sofre o impacto de um ovo que lhe arremessado e, por causa disso, necessa-riamente fica sujo; e assim por diante. Com relao a esses exemplos, podemos cer-tamente dizer, conforme a quarta acepo, que ser morto se atribui por si a ser em-purrado de uma grande altura, ficar sujo se atribui por si a sofrer o impacto de umovo arremessado etc. Ora, eu pergunto quais so aqui os registros adequados,quais os gneros-sujeitos envolvidos, quais as cincias correspondentes. Falaremosde uma cincia aristotlica do empurro, de uma cincia de arremessar ovos? Temoque Angioni me acuse de lanar mo de exemplos ridculos... Entretanto, parece-me que esse o preo que teremos de pagar, se formos demasiadamente generosospara com as relaes causais necessrias, emprestando-lhes indiscriminadamentecientificidade. Cincias mil e das mais estranhas nos submergiro.

    Por outro lado, Angioni parece entender, embora no o diga expressa-mente, que, sempre que um efeito decorre necessariamente de sua causa,

    homem competente numa determinada cincia (ele exemplifica com o gemetra) dever ocupar-se dequestes internas a sua cincia, de erros inclusive que, dentro de seu domnio, podem ocorrer (porexemplo, se se assumem premissas que contradizem proposies dessa cincia, ou se se comete umparalogismo) e no de questes oriundas, por exemplo, de se assumirem premissas de uma cinciaou disciplina outra que no a cincia em causa. O problema com que Aristteles est a lidando no o de discernir a qual ou quais gneros pertence um determinado problema, ou questo, ou proposi-o, mas o de determinar a que tipo de questes dever dar resposta o homem competente numacincia determinada.

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    uma definio cientfica da causa, anloga definio de degola que ele pro-ps, se poderia formular. Se algum empurrado de uma grande altura e,por causa disso, necessariamente morre, se ser morto se diz, portanto, porsi de ser empurrado de uma grande altura, deveramos, por analogia, poderdefinir ser empurrado de uma grande altura como ser morto...(de tal e talmaneira); no caso da agresso por arremesso de ovo, poderamosanalogamente definir sofrer o impacto de um ovo arremessado por algocomo ficar sujo...(de tal e tal maneira). manifesto, parece-me, que seriamdefinies totalmente inadequadas. No vejo como se possa introduzir dessemodo a morte na essncia do empurro, mesmo se de uma grande altura;nem a sujeira no significado da agresso sofrida por arremessamento de ovo.Este ponto leva-me, alis, a um reparo lateral definio proposta porAngioni de ser degolado, que um enunciado similar a este: ser mortoatravs da dilacerao e separao de tais e tais partes corporais etc. Comefeito, parece-me inadequada e contra-intuitiva uma definio como essa. Anoo de ser morto certamente no pertence significao imediata deser degolado e sua figurao na expresso que exprime o que ser dego-lado no se justifica: ser degolado ter a cabea decepada e, mesmo se apessoa ou animal que tem a cabea decepada necessariamente morre em vir-tude precisamente desse fato de ter a cabea decepada15 , isso no razopara caracterizar a essncia de ser degolado dessa maneira. Alis, sabemosque, para Aristteles, no suficiente, para que um discurso se possa tomarcomo definio, que ele tenha o mesmo significado que um nome (cf. Seg.Anal. II, 6, 92 b26-34; Tp. VII, 2, 153 a1-5; Met. Z, 4, 1030 a7-8).

    (15) Angioni e eu assumimos que, ao falar da degola que causa a morte do animal, Aristteles preten-deu exemplificar uma relao de necessidade causal. Algum poderia objetar-nos que o decepamentode uma cabea no tem de causar necessariamente a morte, lembrando, por exemplo, a cobra de duascabeas, cuja existncia o filsofo no desconhecia, cf. Ger. Anim. III, 770 a24. Entretanto, a objeoparece-me impertinente e sofstica.

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    2.7 Se toda relao causal necessria pode ser objeto de conhecimento cient-fico

    Eis que chegamos ao ponto crucial da objeo de Angioni contra minha inter-pretao da quarta acepo de por si e, por assim dizer, ao ncleo doutrinal que aengendra. O texto em que Aristteles expe a quarta acepo, o de Seg. Anal. I, 4, 73b10-16, ao exemplific-la com a degola de um animal, introduz, como j comenta-mos, a referncia a uma relao causal necessria entre a degola e a morte. ParaAngioni, toda relao causal necessria pertence ao domnio cientfico, igitur a quartaacepo prpria ao domnio cientfico. E, com efeito, j desde o incio de seu tex-to, Angioni afirma, como vimos acima: o efeito que se segue necessariamente desua causa uma decorrncia imediata (isto , sem intermediao por algum termoexterno) da prpria essncia de sua causa e isso poderia ser expresso num enunci-ado disposicional universal, por si mesmo capaz de fornecer conhecimento cientfi-co a respeito do sujeito a que se atribui disposio de causar o efeito (cf. p. 15). Ap. 18-9, Angioni exemplifica aquela sua afirmao com a sentena a extino dofogo na nuvem causa um estrondo e menciona a relao causal entre o calor do sole o estiolamento das plantas, mostrando como essa relao causal tambm poderiaser expressa de maneira similar quela (para simplificar, consideremos a sentenao calor do sol causa o estiolamento das plantas16). Ele nos diz que, em sentenascomo essas, se est falando de disposies essenciais, presentes em certos sujei-tos (nos exemplos, respectivamente fogo (ou extino do fogo) e calor (do sol)) eque so disposies a produzir certos efeitos (nos exemplos, respectivamente, es-trondo e estiolamento das plantas) em circunstncias apropriadas. Assim, afirmaele (cf. p. 19) que a universalizao do enunciado causal requer algumas qualifica-es restritivas: se tais e tais condies externas forem satisfeitas, ento ter lu-gar a ocorrncia do efeito.

    (16) Angioni no formula com essas palavras o enunciado universal correspondente relao cau-sal entre o calor do sol e o estiolamento das plantas. Estou simplificando a formulao, mas pensoque Angioni concordar plenamente comigo em que a formulao que proponho tambm exprimea sua posio.

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    Para Angioni, a quarta acepo de por si pode aplicar-se a fatos, como esses, quese exprimem como resultados de certas disposies essenciais das coisas a que ocor-rem (cf. p. 21), enquanto efeitos que resultam no mais das vezes (hos ep t pol) das pro-priedades essenciais de seus sujeitos. Dessa maneira, Angioni introduz (cf. p. 22)essa noo de hos ep t pol, que diz ser a noo fundamental para resolver nossoproblema, isto , para confirmar toda a sua interpretao: para ele, a doutrina do fre-quente se configura como a mais importante das evidncias complementares aotexto de Seg. Anal. I, 4, 73 b16-24 (sobre a cientificidade das acepes de por si, cf. 2.1acima), favorecendo decisivamente sua leitura da passagem. Lembra que essa nooconcerne regularidade com que as causas produzem os mesmos efeitos e que essaregularidade no absoluta para a maioria das causas naturais, acrescentando: jus-tamente porque elas se apresentam como disposies que requerem a contribuio decondies auxiliares e a no-interveno de fatores impeditivos.17 Angioni mencionao exemplo do movimento do fogo em direo ao alto, seu lugar natural, que ocorreno mais das vezes, porque uma srie de condies devem ser satisfeitas para que semanifeste essa causalidade de sua essncia. E comenta, a seguir, que essas condi-es auxiliares (algo ter deslocado anteriormente o fogo de seu lugar natural e ausn-cia de corpos que impeam o retorno do fogo a esse lugar) so externas e no depen-dem das prprias caractersticas essenciais do fogo.

    Angioni entende que esse recurso doutrina aristotlica do frequente per-mite diminuir um pouco a distncia entre as concepes aristotlica e moderna dacincia (cf. p. 22-3), mostrando, contra minha interpretao, que as mesmas rela-es entre fatos so, ao menos parcialmente, igualmente consideradas por ambasas concepes.

    (17) Em sua nota 12 a p. 22, Angioni, para corroborar sua tese de que as condies externas e no-impeditivas devem ser levadas em conta nos enunciados disposicionais que exprimem a relao en-tre causa e efeito, lembra o texto de Met. teta, 7, 1049 a5 seg., onde Aristteles explica que a passagemda potncia (dnamis) ao ato (entelkheia), tanto na produo de objetos pelas tkhnai (artes, tcnicas),quanto na gnese das coisas naturais (as quais tm em si mesmas o princpio da prpria gnese),requer a no-interferncia de quaisquer impedimentos.

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    Rplica: Nem toda relao causal necessria pode ser objeto de conhecimento cientfico.Examinemos, ento, a tese de Angioni que fundamenta sua interpretao da

    quarta acepo de por si, a tese de que toda relao causal necessria suscetvelde ser cientificamente conhecida. Faamo-lo por partes.

    2.7.1 A metodologia dos Segundos Analticos no corrobora a tese de Angioni.Em primeiro lugar, lembremos de que modo procede Aristteles, em seu

    mtodo analtico, ao comentar e explorar, nos Segundos Analticos, sua noo de ci-ncia. Tendo inicialmente definido o conhecimento cientfico de um objeto comoo conhecimento de sua causa e de seu carter necessrio (cf. Seg. Anal. I, 2, 71 b9-12, CDA p. 35), o filsofo nos explica, na sequncia de seu texto, como a demons-trao silogstica demonstrativa que constitui o conhecimento cientfico de um ob-jeto representa a determinao causal real do objeto, provando concluses que ex-primem, sob a forma de enunciados universais, que tais e tais atributos lhe per-tencem necessariamente e por si. O passo seguinte o de mostrar que, para esta-belecer tais concluses, os silogismos da cincia devem constituir-se a partir depremissas tambm necessrias e por si, a isso se consagra todo o captulo 6 do li-vro I. Ora, nas premissas de um silogismo cientfico, o termo mdio que expri-me a causa do que demonstrado, isto , do que se afirma na concluso; ao mos-trar, em I, 6, que tambm as premissas so necessrias, Aristteles est, ento, ipsofacto mostrando que, se o objeto do conhecimento cientfico necessrio, temigualmente de ser necessria a relao causal que nele resulta. Temos, ento, que,conforme a metodologia dos Segundos Analticos, a necessidade da relao causalse infere analiticamente da necessidade, inicialmente assumida, do objeto do co-nhecimento cientfico. Aristteles no argumenta para mostrar que, porque umarelao causal necessria, se tem conhecimento cientfico. Sua argumentao sedesenvolve, ao contrrio, na direo oposta: porque a cincia conhece um objeto ne-cessrio, apreendendo sua determinao causal, inferimos que a relao causal aenvolvida necessria. A nenhum momento o texto dos Segundos Analticos corro-bora a tese de Angioni. Este um ponto que me parece ter sua importncia. Mas,

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    porque ele to-somente concerne aos procedimentos prprios metodologia ana-ltica, no constitui, claro, uma refutao dessa tese.

    2.7.2 A cincia aristotlica conhece o necessrio e o frequente, no o acidenteAngioni, como vimos, julga que a doutrina aristotlica do frequente, do

    que ocorre no mais das vezes (hos ep t pol), traz uma importante evidncia com-plementar para sua tese. Para responder-lhe, terei, antes, de lembrar sucintamentealguns tpicos da teoria aristotlica da cincia.

    Aristteles, nos Segundos Analticos, define como cientificamente conhecido oobjeto de que so conhecidas a causa e a necessidade; esta necessidade ontolgica: o que objeto de cincia no pode ser de outra maneira (cf. Seg. Anal.I, 2, 71 b9-12; 4, 73 a21-23; CDA, p. 35-36). Essa necessidade implica em eternidade,donde ser eterno, no-gerado, imperecvel, o objeto de conhecimento cientfico (cf.t. Nic. VI, 3, 1139 b19-24; CDA, p. 39-40); em verdade, a implicao recproca: oque necessariamente eterno e o que eterno necessariamente (cf. Ger. e Per. II,11, 337 b5-308 a2). A tica Nicomaquia nos d como exemplos de objetos eternos ouniverso e a incomensurabilidade da diagonal com o lado do quadrado (cf. III, 3,112 a21-23; cf. tambm Fs. IV, 12, 221 b23-222 a9; CDA, p. 61). Eternas so, assim, asdeterminaes quantitativas das coisas fsicas que o pensamento matemtico delasabstrai e separadamente estuda. E os cap. 10-12 do livro I do tratado Sobre o Cu seocupam, precisamente, da eternidade do Cu, que provada no ltimo desses ca-ptulos. Aristteles lembra-nos, nessa mesma obra (cf. III, 1, 298 a24-28), j ter mos-trado, na parte anterior do tratado, que o primeiro Cu e suas partes, assim como osastros que neles se movem, so no-gerados e imperecveis (cf. CDA, p. 58). Emmuitos textos, o filsofo se refere a esses seres celestes, que existem de modo neces-srio, como seres divinos. Ensina-nos, assim, que uns, com efeito, dentre os seres,so divinos e eternos; outros podem tanto ser como no ser (Ger. Anim. II, 1, 731b2424-25). E que a completao do Cu todo e a completao que envolve o tempointeiro e a infinidade uma durao...imortal e divina (cf. Cu I, 9, 279 a25-28;CDA, p. 186). Os corpos celestes so as coisas divinas que nos aparecem (cf. Fs. II,

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    4, 196 a33-34; tambm Met. E, 1, 1026 a16-18; t. Nic. VI, 7, 1141 a34-b2). A menodo divino no um recurso retrico, o filsofo manifestamente adere a uma formade teologia astral, ainda que no-mstica18 .

    Nos tratados Sobre o Cu e Sobre Gerao e Perecimento, Aristteles fala-nos darevoluo celeste, isto , do movimento circular, eterno e divino da regiosupralunar19 , em que reina a absoluta necessidade, e mostra-nos como dela neces-sariamente decorre o devir contnuo e cclico dos fenmenos do mundo sublunar,em que os seres naturais esto sujeitos gerao e ao perecimento (cf. CDA, p.186-187). Contentemo-nos aqui em mencionar algumas poucas passagens. Em Ger.e Per. II, 10, o filsofo, que recorre ao que estabelecera em captulos anteriores,mas tambm em partes da Fsica, expe sua doutrina sobre a eternidade da revo-luo do Cu e a necessidade dos movimentos que lhe pertencem e dos que deladependem, a circularidade da revoluo solar, a continuidade do processo de ge-rao e perecimento das coisas naturais (sua eternidade tambm, portanto, e suanecessidade), o devir cclico das transformaes dos elementos etc. Mais adiante,alis, Aristteles prova que esse processo de gerao e perecimento tem necessa-riamente de ocorrer de modo cclico (cf. II, 11, 338 a1 seg.). Diz-nos que esse car-ter necessrio, contnuo, perptuo e cclico da gerao e do perecimento imita aperfeio do movimento circular do Cu e o que est mais prximo possvel daousa, testemunhando de como a natureza visa sempre o melhor em todas as coi-sas, de como o deus completou o Todo da maneira que lhe restava, assegurandoao ser o mximo de coerncia (cf. II, 10, 336 b25 seg.). Para os seres perecveis,essa volta ao mesmo, que a repetio cclica propicia, diz obviamente respeito identidade quanto espcie, no identidade numrica (11, 338 a12-19)20 . De

    (18) Em CDA, p. 58, manifesto minha concordncia com P. Aubenque, que mostrou a importncia datemtica da teologia astral para a compreenso da doutrina aristotlica, cf. Aubenque, Pierre, Leproblme de ltre chez Aristote, P.U.F., Paris, 1962, p. 335 seg.(19) Para a distino famosa entre o supralunar e o sublunar, cf. Meteol. I, 3, 340 b6-7; 4, 342 a30.(20) Como lemos em Ger. Anim. II, 1, 731 b24 seg., as coisas eternas, nobres e divinas so, em virtudede sua mesma natureza, a causa do que melhor nas coisas que admitem o melhor e o pior, que no

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    qualquer modo, atravs da repetio cclica, a necessidade celeste comanda odevir sublunar. Pois da durao imortal e divina do Cu que dependem, paratodas as outras coisas, o ser e e vida (cf. Sobre o Cu I, 9, 279 a28-30).

    Mas a necessidade celeste no domina inteiramente o devir sublunar. Neste,com efeito, nem tudo ocorre de modo necessrio, mas nos seres, uns so sempreda mesma maneira e por necessidade, no da necessidade que se diz conforme acompulso, mas da que dizemos por no poder a coisa ser de outra maneira; ou-tros, porm, no so por necessidade, nem sempre, mas na maior parte das vezes(hos ep t pol) (Met. E, 2, 1026 b27-30; cf. CDA, p. 18121 ). A regularidade com queos processos naturais atingem na maior parte das vezes o seu termo final se deve essncia (ousa) de cada coisa (cf.. Ger. e Per. II, 6, 333 b3 seg., part. b7-14). Em verda-de, todas as coisas que vm a ser por natureza (phsei) vm a ser sempre ou namaior parte das vezes (Ger. e Per. II, 6, 333 b4-6; cf. Fs. II, 8, 198 b34-36); a maioriadas coisas, mesmo, ocorre da mesma maneira apenas na maior parte das vezes (cf.Met. E, 2, 1027 a9-10). Isso acontece por nelas faltar a necessidade (dialepein tanagkaon, cf. Prim. Anal. I, 13, 32 b4-522 ), tais coisas deixam de ocorrer sempre da

    so eternas e so capazes de ser e no-ser; por isso, sendo impossvel a seres como os animais teremuma natureza eterna, eles so eternos da nica maneira possvel: no podendo ser eternos como indi-vduos, o so como espcie, assim explicando-se a gerao dos animais, o caso sendo o mesmo paraseres humanos e plantas. Encontramos a mesma doutrina no tratado Sobre a Alma: animais geramanimais como eles, plantas geram plantas como elas, porque, como todos os seres naturais, tendem aparticipar do eterno e do divino na medida em que podem, em vista dele que fazem tudo que fazempor natureza; sendo-lhes, porm impossvel comungar do eterno e do divino por uma existncia con-tnua, o conseguem pela permanncia da espcie (cf. II, 4, 415 a26-b8).(21) A seo III, 4 de CDA (p. 178-192) consagrada doutrina aristotlica do frequente, isto , do queocorre apenas na maior parte das vezes.(22) Aristteles fala, nesse captulo dos Primeiros Analticos, sobre as premissas dos silogismos do poss-vel ou contingente (t endekhmenon) e explica-nos (cf. 32 b4 seg.) que o possvel ou contingente se dizem dois sentidos, um dizendo respeito ao frequente, outro ao que indefinido, capaz de ser assim e noassim, isto , ao acidente e, em geral, ao que provm da sorte (tkhe). D, como exemplo do frequente, oficar grisalho para o homem, ou o crescer e decair e, de um modo geral, o que lhe pertence por natureza.

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    mesma maneira por sobrevir-lhes um impedimento, por isso no atingem elas ofim ao qual naturalmente tendem. De fato, so por natureza aquelas coisas que,movidas continuamente a partir de um princpio que nelas existe, chegam a umcerto fim; a partir de cada princpio no o mesmo o fim para cada indivduonem algo ocasional, mas h uma tendncia sempre ao mesmo fim, se no h al-gum impedimento (n m ti empodse) (Fs. II, 8, 199 b15-18). Assim, a passagem dapotncia ao ato nas coisas da natureza (como tambm o caso com os objetos pro-duzidos pelas artes ou tcnicas (tkhnai)) requer a no-interferncia de quaisquerimpedimentos (Met. teta, 7, 1049 a5 seg; acima, n. 17). Nos seres naturais, as coi-sas se passam sempre da mesma maneira, se no h algum impedimento (Fs. II,8, 199 b25-26). A freqncia, ento, faz as vezes de uma necessidade que no severifica (cf. CDA, p. 182). E ela tem lugar no vir a ser dos seres da natureza por-que, no mais das vezes, impedimentos no ocorrem.

    Por outro lado, por oposio conjuntamente ao necessrio e ao frequenteque Aristteles caracteriza o acidente: Diz-se acidente o que pertence a algo edele se diz com verdade, mas nem necessrio nem ocorre na maior parte das ve-zes (Met. delta, 30, 1025 a14-15; cf. tambm E, 2, 1026 b31-33; K, 8, 1065 a1-3); ,assim, um acidente se ocorrem mau tempo e frio durante a cancula, na qual otempo seco e quente, na maior parte das vezes (cf. E, 2, 1026 b32-34). Os seressubmetidos gerao e ao perecimento, comportando-se na maior parte das ve-zes da mesma maneira, mas tambm podendo acidentalmente comportar-se deoutra maneira, exibem, assim, uma capacidade de ser e de no ser, ora eles soora no so, e essa capacidade para eles uma causa, como matria (cf. Ger. e Per.II, 9, 335 a32-b7). Todas as coisas que se geram ou pela natureza ou pela arte tmmatria; de fato, cada uma delas capaz tanto de ser como de no ser e isto amatria em cada uma. (Met. Z, 7, 1032 a20-22)23 . Podendo ser de outro modo que

    (23) Lembremos apenas que Aristteles concebe, para os seres eternos providos de movimento, masno submetidos gerao e perecimento, uma matria diferente, no matria para a gerao e o pere-cimento, mas to-somente para a translao de um lugar a outro (cf. Met. lambda, 2, 1029 b24-26; eta,1, 1042 b5-6; 4, 1044 b7-8; CDA, p. 40, n. 26).

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    no como na maior parte das vezes, a matria a causa do acidente (cf. E, 2,1026 b27 seg., part. 1027 a13-15); a causa, portanto, de a freqncia (o no mais dasvezes) substituir-se necessidade.

    Aristteles, como sabido, estende ao frequente, ao que ocorre apenas nomais das vezes e, por isso, se distingue do necessrio , o domnio dacientificidade. Este, alm de incluir o que sempre e no pode ser de outramaneira, inclui tambm, se nos permitimos esta metfora, o necessrio quefalhou, porque acidentalmente impedido; o que pode ser de outra maneiramas, no mais das vezes, ocorre da mesma maneira. Essa extenso do domnioda cientificidade est presente j nos Segundos Analticos e continuadamentetematizada em outras obras do filsofo. E a fsica e a biologia aristotlica do-cumentam, precisamente, tal extenso. Aristteles nos diz, com efeito, quetoda cincia do eterno ou do frequente (cf. Met. E, 2, 1027 a20-21), que a de-monstrao concerne ao necessrio ou ao frequente (cf. Seg. Anal. I, 30, 87 b19-27), que os princpios imediatos de uma demonstrao do frequente so tam-bm frequentes (cf. II, 12, 96 a17-19), que as premissas e concluses dossilogismos demonstrativos sero ou necessrias ou frequentes, a conclusoacompanhando a natureza das premissas (cf. Ret. I, 2, 1357 a27-30; Seg. Anal. I,30, 87 b22-25). Do acidente, porque no necessrio nem se d na maior partedas vezes, no h cincia (cf. Met. E, 2, 1027 a19 seg.; K, 8, 1064 b30-1065 a6);assim como no pode haver cincia do que provm da sorte, j que o que pro-cede da sorte no necessrio nem frequente (Seg. Anal. I, 30)24 . As causas dosacidentes so, tambm elas, acidentais (cf. Met. E, 2, 1027 a7-8)25 . Em lingua-gem mais moderna, podemos dizer que o frequente corresponde s leis da na-tureza, o acidente corresponde derrogao eventual dessa legalidade. Ainda

    (24) Sobre como o acidente se relaciona com a sorte e o acaso, ver, adiante, 2.7.4.(25) Antes de explicar em E 2 como a matria e o haver coisas que se produzem somente na maiorparte das vezes respondem pela existncia do acidente e por sua causao acidental, Aristteles afir-ma que preciso dizer qual a natureza do acidente e em virtude de que causa ele ocorre, pois comisso tambm ficar evidente por que razo dele no h cincia (cf. E, 2, 1026 b24-27).

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    que no-necessrio, o frequente, que deve matria seu ser apenas frequente,deve seu efetivo ocorrer na maior parte das vezes subordinao do mundosublunar ao mundo da necessidade celeste e divina26 .

    2.7.3 A cincia aristotlica eminentemente contemplativa.Se nos debruamos com ateno sobre a doutrina aristotlica do neces-

    srio e do frequente, luz de toda a sua concepo do universo, impregnadapela teologia astral a que acima nos referimos, salta aos olhos algo de muitoimportante, que Angioni, no entanto, me parece ter desconsiderado. que acincia, em sentido estrito e tal como Aristteles a concebe, cincia de ummundo que est a, sto , ela uma cincia eminentemente contemplativa, queconhece objetos necessrios ou pelo menos frequentes, substncias ou deter-minaes e atributos de substncias, mas sempre objetos efetivamente dados,realizados, presentes no mundo27 . E o que ocorre no mundo, mas nem neces-srio, nem ocorre de fato no mais das vezes, mero acidente e exterior aodomnio da cincia. Se a cincia aristotlica se caracteriza pelo primado dacompreeenso sobre a extenso, nem por isso esta ltima perde sua impor-tncia, isto porque ela testemunha do influxo, ainda que no integral e per-

    (26) No se confundiro com os hos ep t pol aqueles eventos de que Aristteles fala em Seg. Anal. I,8, 75 b33-36 (dizendo-os pollkis ginmena (que se produzem muitas vezes)), por serem eventos que seproduzem regularmente e de modo necessrio no mundo celeste, como os eclipses da lua ou o levan-tar e pr do sol; dada a sua regularidade, determinabilidade e necessidade, h deles demonstrao ecincia, que, num certo sentido, se podem, pois, dizer eternas. Por isso, diremos, tambm aqui, que osatributos (eclipse, por exemplo) pertencem a seus sujeitos por si e, de certo modo, universalmente,ainda que lhes pertenam somente em determinadas circunstncias de lugar e tempo (cf. Met. delta,30, 1025 a21-22) . Tratei dessa questo em CDA, p. 189-191.(27) Criticando (cf. Sobre o Cu III, 7, 305 b5 seg.; CDA, p. 401-402) os que se apegam aos pretensosprincpios que julgam ter apreendido, montam guarda em torno deles e no se preocupam, comodeveriam, com acordar suas doutrinas com os fenmenos, nem com julgar os princpios pelasconsequncias que deles decorrem nem pelo fim (t tlos), Aristteles lembra (b16-17): Ora, o fim....da fsica o que aparece sempre, de modo dominante, ao conhecimento sensvel (grifo meu).

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    feito, da necessidade celeste sobre o mundo do devir, da essncia e da formasobre a resistncia da matria. Porque o comportamento regular das coisassumetidas gerao e ao perecimento, ocorrendo sempre, ou pelo menos na maiorparte das vezes, da mesma maneira, uma decorrncia desse influxo; porqueesse comportamento imita, apesar das limitaes que decorrem da causali-dade material, a necessidade celeste, Aristteles o inclui no domnio dacientificidade. Todos os textos de Aristteles que, de uma maneira ou de ou-tra, tratam da problemtica do necessrio, do frequente e do acidente, nomenos que os textos que acima mencionamos em 2.7.2, deixam isso, a meu ver,bastante manifesto.

    Assim, a cincia aristotlica no cincia do que ocorreria se tais e taiscondies se realizassem, se tais e tais impedimentos no se produzissem,como pretende Angioni. A cincia, segundo Aristteles, no lida comcontrafactuais. O que, no domnio da gerao e perecimento, objeto do co-nhecimento cientfico o porque, nesse caso, as condies materiais, auxilia-res, externas (como diz Angioni) efetivamente cooperaram e se submeteram aoe influxo do divino. Por isso, as coisas se repetem, seno sempre, ao menosna maior parte das vezes. A regularidade do comportamento do objeto cien-tfico uma regularidade atual, no potencial. Repetindo, a cincia conhece oque ocorre, no o que ocorreria se... Se optarmos, como Angioni, por introdu-zir o vocabulrio disposicional, no nos contentaremos em dizer, como ele,que a cincia aristotlica lida com causas enquanto disposies essenciais,presentes em certos sujeitos, a produzir certos efeitos em circunstncias apro-priadas, se no intervm fatores impeditivos; no diremos apenas isso, porqueesse modo de falar deixa em aberto, precisamente, a questo da natureza daregularidade do comportamento do objeto cientfico, se real e efetiva ou seapenas potencial e condicional. Mas, falando com um pouco mais de preciso,enfatizaremos que a cincia aristotlica lida com causas enquanto disposiesessenciais que, necessitando embora a existncia de condies materiais apro-priadas e a no-interveno de fatores impeditivos, no entanto produzem efetiva-mente os efeitos que decorrem de sua natureza, seno sempre, ao menos na

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    maior parte das vezes. A doutrina aristotlica do frequente em nada corroboraa tese de Angioni; em verdade, aponta na direo oposta. Se uma causa noopera no mundo e no produz nele seus efeitos com efetiva regularidade, entosua operao enquanto causa no objeto de conhecimento cientfico, em sen-tido estrito, por necessria que seja sua relao com um efeito que dela decor-re. No objeto da cincia aristotlica o que no faz manifestamente parte daordenao atual do mundo.

    conhecido que Aristteles props uma diviso tripartite das cincias,que subdividiu em tericas (theoretika), prticas e poiticas ou produtivas(cf. CDA, p. 269-272). Essa tripartio aparece em distintas passagens de suaobra (por exemplo, em Tp. VI, 6, 145 a14-16 e VIII, 1, 157 a10-11; Met. E 1, 1025b 18 seg., Met. K, 7, 1064 a16-18; t. Nic. VI, 2, 1139 a27-28 etc.). E, 1 (cf. 1025b18-28; 1026 a6-19) e K, 7 (cf. 1064 a30-36) dizem-nos serem trs as cincias te-ricas, a fsica (que lida com coisas que existem separadamente, se movem etm em si mesmas o princpio de movimento), a matemtica (que lida com coi-sas que no existem separadamente e so imveis) e a teologia ou filosofiaprimeira (que lida com coisas que so imveis e existem separadamente).Aprendemos que a fsica, ocupando-se de um certo gnero do ser, no prti-ca nem poitica, porque na ao e na produo o princpio de movimentoest naquele que age ou produz, no no que feito ou produzido (cf. E, 1,1025 b18-25; K, 7, 1064 a10-15). Lemos na tica Eudemiana (I, 5, 1216 b11-18)que, diferentemente do que o caso com as disciplinas que lidam com a aoou a produo, as cincias tericas, tais como astronomia, fsica ou geometria,ocupam-se de conhecer a natureza das coisas com que lidam. Conhecer a natu-reza de seus gneros-sujeitos, demonstrar seus atributos por si, ocupar-se da-quilo que sempre, ou na maior parte das vezes, se d da mesma maneira,apreender sua estruturao objetiva e sua legalidade causal, ao invs de ocupar-se do agir ou do produzir, tal a funo das cincias tericas. Elas lidam com omundo, tal como ele se oferece nossa contemplao, elas nos fornecemuma descrio estrutural e causal do espetculo do mundo. Por isso mesmo enesse sentido, cabe entender sua denominao grega, theoretika, no sentido

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    etimolgico de contemplativas.28 Elas e somente elas29 correspondemplenamente noo estrita de cincia estudada pelos Segundos Analticos.

    2.7.4 A cincia aristotlica no se ocupa de toda causalidade necessria.Acabamos de ver como e por que o carter contemplativo da cincia

    aristotlica exclui do domnio da cientificidade quanto no se d no mundo demodo necessrio ou frequente. Poderia algum, ainda assim, objetar talvez que,se Aristteles define a cincia como conhecimento causal do necessrio, isso seriapor si s suficiente para dizermos que toda relao causal necessria se pode tor-nar objeto de conhecimento cientfico. Assim argumentar seria, entretanto, incidirna conhecida falcia do consequente: a de pretender inferir, da implicao de b pora, a implicao de a por b; a de pretender, pois, que, se cincia implica conheci-mento de causao necessria, ento conhecimento de causao necessria impli-ca cincia. O texto de Angioni, por certo, a nenhum momento incorreu em tal raci-ocnio falacioso; ao contrrio, Angioni buscou sustentar sua tese, a de que toda re-lao causal necessria suscetvel de ser cientificamente conhecida, com argu-mentos baseados na doutrina de Aristteles. A esses argumentos creio, no princi-pal, ter j respondido. Prevejo, no entanto, que algum poder, guardando-se em-bora para no resvalar na falcia do consequente, insistir ainda e perguntar, j que uma conseqncia imediata de minha interpretao que as esferas da necessidadee da cientificidade se no recobrem, como explicaria Aristteles uma necessidadecausal que no diz respeito cincia.

    (28) Theoretiks, theora, theoren, theors, tha, theomai, thama so vocbulos gregos da mesma famliaque se usam, num sentido primeiro e etimolgico, a respeito, por exemplo, de ver ou contemplar umespetculo, assistir a uma festa pblica etc. Mas theoren, theora etc. tm outros usos na lngua grega etambm em Aristteles, por isso no caberia pretender que a mera considerao da etimologia fsse, porsi s, suficiente para apreender o significado da expresso epistme theoretik (cincia terica) nadoutrina aristotlica da cincia.(29) Voltaremos adiante, em 2.8, a retomar o tema das cincias prticas e poiticas.

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    Comeo por lembrar que, tal como muitos outros termos da linguagem filo-sfica aristotlica (tais como cincia, possvel, acidente e tantos outros),tambm o termo necessrio se diz, Aristteles no-lo ensina (cf. CDA, p. 42-43),em vrios sentidos. Assim, em Met. delta, 5, Aristteles distingue (cf. 1015 a20-36;tambm lambda, 7, 1072 b11-14) a necessidade daquilo que uma causa auxiliar(synation), sem a qual um ser no pode viver (a respirao, por exemplo, neces-sria para a vida) e sem a qual o que bom no pode ser ou produzir-se (tomar oremdio, por exemplo, necessrio para a cura); a necessidade do compulsrio eda compulso, que opera como um impedimento e um obstculo contra o impul-so e o propsito; e a necessidade do que no pode ser de outra maneira.Aristteles diz-nos, logo a seguir, que desse ltimo sentido de necessrioque, de algum modo, derivam os dois primeiros e refere explicitamente a ele anecessidade da demonstrao cientfica: o que demonstrado no pode ser deoutra maneira e a causa dessa necessidade so as proposies primeiras, osilogismo da cincia devendo partir do que no pode ser de outra maneira (1015b6-9). O texto de lambda, 7 acrescenta que de um princpio necessrio nesse ter-ceiro sentido que dependem o Cu e o mundo da natureza (1072 b13-14).

    Algo pode, portanto, dizer-se necessrio, sem que sua necessidade se identi-fique necessidade de que a cincia, em sentido absoluto, se ocupa; dir-se- ne-cessrio, pois, num sentido derivado. Consideremos o primeiro dos sentidos de-rivados indicados pelo filsofo no texto de delta, 5, isto , a necessidade da causaauxiliar. Em Part. Anim. I, 1, 639 b24 seg., Aristteles ope explicitamente neces-sidade absoluta das coisas eternas a necessidade hipottica (ex hypothseos), que semanifesta em tudo que gerado pela natureza, assim como em tudo que produ-zido pela arte. Em todas estas coisas, para que o processo de gerao (ou produ-o) chegue a seu termo final, em vista do qual ele ocorre, necessrio que tais etais coisas se faam presentes, operando como causa material do que se est ge-rando ou produzindo (assim, se produzimos uma serra e ela deve serrar, neces-srio que seja de ferro). Todo o cap. 9 do livro II da Fsica dedicado ao exame danecessidade presente nas coisas naturais: -nos a explicado que tal necessidade,a nec