OUTORGA CONJUGAL NO AVAL: uma análise no plano da eficácia ...

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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS OUTORGA CONJUGAL NO AVAL: uma análise no plano da eficácia do fato jurídico Nova Lima 2010

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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS

OUTORGA CONJUGAL NO AVAL:

uma análise no plano da eficácia do fato jurídico

Nova Lima

2010

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SÍLVIA FERREIRA PERSECHINI

OUTORGA CONJUGAL NO AVAL:

uma análise no plano da eficácia do fato jurídico

Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito Milton Campos, como requisito parcial para obtenção de título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direito Empresarial. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Bueno Cateb

Nova Lima

2010

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PERSECHINI, Sílvia Ferreira P466 o Outorga conjugal no aval: uma análise no plano da eficácia do fato jurídico./

Sílvia Ferreira Persechini – Nova Lima: Faculdade de Direito Milton Campos / FDMC, 2010

191 enc. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Bueno Cateb

Dissertação (Mestrado) – Dissertação para obtenção do título de Mestre, área de concentração Direito empresarial junto a Faculdade de Direito Milton Campos

Bibliografia: f. 183-191.

1. Títulos de crédito. 2. Outorga conjugal. 3. Fiança. 4. Aval. 5. Validade. 6.

Eficácia. I. Cateb, Alexandre Bueno. II. Faculdade de Direito Milton Campos III. Título

CDU 347. 768(043)

Ficha catalográfica elaborada por Emilce Maria Diniz – CRB – 6 / 1206

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Faculdade de Direito Milton Campos - Mestrado em Direito Empresarial

Dissertação intitulada “OUTORGA CONJUGAL NO AVAL: UMA ANÁLISE NO PLANO DA EFICÁCIA DO FATO JURÍDICO” de autoria da Mestranda Sílvia Ferreira Persechini, para exame pela banca constituída pelos seguintes professores: _____________________________________ Prof. Dr. Alexandre Bueno Cateb Orientador _____________________________________ Prof. Dr. _____________________________________ Prof. Dr. _____________________________________ Prof. Dr.

Nova Lima, _______/______ de 2010 Alameda da Serra, 61 – Bairro Vila da Serra – Nova Lima – Cep 34000-000 – Minas Gerais – Brasil. Tel/fax (31) 3289-1900

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Dedico este trabalho a todos os meus

cúmplices que, de alguma forma,

contribuíram para sua finalização.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Alexandre Bueno Cateb, pelo grandioso

ensinamento, pela disposição e orientação no decorrer desta pesquisa.

Agradeço à minha querida mãe, cuja atenção proporcionou a elaboração deste

estudo.

Agradeço, ainda, à minha família, amigos e colegas, pelo grande incentivo no

decorrer deste estudo.

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RESUMO

A intenção com este trabalho foi estudar a introdução do art. 1.647, inciso III, do Código Civil no contexto da Teoria dos Títulos de Crédito, que prima pelo dinamismo e simplicidade da circulação desses documentos, esclarecer as consequências do aval dado sem a exigida outorga conjugal, bem como a aplicabilidade ou não dessa exigência legislativa aos títulos de crédito regulados pelas leis especiais; ou seja, da possibilidade ou não de se anular o aval dado nesses documentos sem a outorga conjugal (art. 1.649 do CC). Assim, inicialmente, para melhor compreender o objeto ora exposto, foi necessário estudar a teoria do fato jurídico para conceituar o ato jurídico e definir quais são suas espécies (ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico). Além disso, realçou-se o suporte fático do fato jurídico, que é o seu pressuposto ou hipótese de incidência. Tal análise foi fundamental para verificar quais são os elementos do suporte fático de cada fato jurídico e as consequências no caso de ausência de um desses elementos, isto é, as três situações distintas pelas quais podem passar os fatos jurídicos (existência, validade e eficácia). Nesse momento, objetivando cumprir o assunto ora tratado, esclareceu-se o conceito desses três planos no mundo jurídico, buscando analisar a diferenciação entre eles, bem como os graus de invalidade do ato jurídico (nulidade e anulabilidade). Em seguida, estudou-se a outorga conjugal nos atos jurídicos, registrando a evolução dessa autorização com base no Código Civil de 1916, e realçando os dispositivos legais do Código Civil de 2002 sobre o assunto. Posteriormente, foi analisada a outorga conjugal para a prestação de fiança e destacados o conceito, as principais características e a natureza jurídica da fiança, assim como as consequências jurídicas dessa garantia dada sem a outorga conjugal, sob o foco dos planos da eficácia e da validade. Objetivando analisar a questão da outorga conjugal no aval, foi demonstrada a importância dos títulos de crédito, analisados a formação de sua teoria, a origem, o conceito desses documentos e os princípios cambiários, discutindo, neste último ponto, sobre o conteúdo normativo dos princípios. Ainda nessa oportunidade, foram apresentadas as declarações cambiárias e reportou-se ao estudo específico do aval, analisando sua origem histórica, sua natureza jurídica e seu conceito. Destacou-se, ainda, a existência de diferenças entre essa garantia cambiária e a fiança. Após, apontou-se o pensamento das principais críticas e divergências doutrinárias sobre a introdução da matéria de títulos de crédito no Código Civil de 2002, analisando os dispositivos legais que regulamentam o aval no ordenamento civilista. À guisa da conclusão, analisou-se a exigência da outorga conjugal no aval, apresentando o tratamento doutrinário e jurisprudencial que lhe tem sido dado, tecendo observações e comentários sobre a aplicabilidade ou não do art. 1.647, inciso III, do Código Civil aos títulos de crédito existentes. Ao final, direcionou-se para o registro das consequências jurídicas do aval dado sem o consentimento do cônjuge, sob uma análise dos planos da validade e da eficácia no contexto da Teoria dos Títulos de Crédito. Palavras-chave: títulos de crédito; outorga conjugal; fiança; aval; validade; eficácia.

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ABSTRACT

The aim of this work is to study the introduction of Section 1.647, Part III, into the Civil Code, within the context of the Theory of Securities, which safeguards the dynamism and simplicity of circulation of such documents. It was also the intention of this work to clarify the consequences of the suretyship given without the marital granting, as well as to assess the applicability, or otherwise, of this legal requirement to securities ruled by special laws, in other words, the possibility or not to cancel the approval given to these documents without the marital granting (Section 1.649 CC). Initially, in order to better understand the subject here discussed, an exploration of the Theory of Dispositive Fact that was necessary to conceptualize the Juridical Act, as well as the definition of its species (stricto sensu legal act and juristic act). Furthermore, the factual support of the dispositive fact was underscored, since it is its assumption or hypothesis of incidence. At this time, aiming to tackle the subject now treated, three perspectives of the legal scenario were taken in an attempt to analyze the difference between them and the degree of invalidity of the dispositive fact (nullity and annullability). Following this, we studied the marital award in legal actions, recording the evolution of this authorization, from the Civil Code (1916), and highlighting the legal provisions of the Civil Code (2002) on the subject. Subsequently, we analyzed the marital granting to provide assurance, and describe the concept, the main characteristics and legal nature of the guarantee and the legal consequences of this assurance without marital granting, focusing on the plan’s effectiveness and validity. Then, aiming to examine the question of posing the marital guarantee demonstrated the importance of the Theory of Securities, we analyzed the formation of the theory, the origin, concept and principles of these documents, negotiable instruments, and discussed this last point on the normative content of the principles. Yet on this occasion, presented the currency statements. Finally, reported to the study's specific endorsement by examining its historical origin, legal nature and concept. What stood out, though, were the differences between the exchange and security guarantees. After, were pointed out the main criticisms and doctrinal differences over the issue of respect of securities in the Civil Code (2002), analyzing the legal provisions governing the approval for ranking civil life. By way of conclusion, we analyzed the requirement of the marital grant in the suretyship, with the doctrinary treatment and jurisprudence that has been given to it, weaving observations and comments on the applicability or otherwise of Section 1.647, part III of the Civil Code, to existing debt obligations. Finally, there are the legal consequences of the guarantee given without the consent of the spouse, in an analysis of the plans of the validity and effectiveness within the context of the Theory of Securities. Keywords: securities, marital grant, guarantee, suretyship, validity, effectiveness.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................... 2 DA VALIDADE E DA EFICÁCIA DO ATO JURÍDICO.................................. 2.1 Teoria dos fatos jurídicos........................................................................ 2.2 Dos diferentes planos no mundo jurídico.............................................. 2.3 Do ato jurídico lato sensu........................................................................ 2.3.1 Das espécies do ato jurídico lato sensu.............................................. 2.4 Da invalidade do ato jurídico: nulidade e anulabilidade....................... 2.4.1 Invalidade e ineficácia........................................................................... 2.4.2 Ato ilícito e ato jurídico inválido........................................................... 3 A OUTORGA CONJUGAL NOS ATOS JURÍDICOS................................... 3.1 Da outorga conjugal na fiança................................................................. 3.2 Da fiança: conceito, características e natureza jurídica....................... 3.3 A outorga conjugal após a vigência do Código Civil de 2002 e a

fiança.......................................................................................................... 4 OS TÍTULOS DE CRÉDITO E A OUTORGA CONJUGAL........................... 4.1 Da importância dos títulos de crédito..................................................... 4.2 Da origem dos títulos de crédito............................................................. 4.3 Da formação da Teoria dos Títulos de Crédito...................................... 4.3.1 Conceito.................................................................................................. 4.3.2 Do conteúdo normativo dos princípios.............................................. 4.4 Das declarações cambiárias.................................................................... 5 DA INTRODUÇÃO DO ART. 1.647, INCISO III, NO CÓDIGO CIVIL DE

2002, E O AVAL............................................................................................ 5.1 Da origem e histórico do aval.................................................................. 5.1.1 Conceito e natureza jurídica................................................................ 5.1.2 Formas e características....................................................................... 5.1.3 O aval e o Código Civil de 2002............................................................ 5.1.4 A outorga conjugal e o aval.................................................................. 6 CONCLUSÃO................................................................................................ REFERÊNCIAS................................................................................................

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12 12 19 21 26 29 36 39

46 52 52

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80 80 85 89 91 98

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129 130 132 141 145 158

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1 INTRODUÇÃO

Com o crescimento da produção e do consumo e da necessidade de dar

velocidade às operações mercantis, tornou-se inevitável a criação de uma circulação

de riquezas mais rápida do que aquela permitida pelo dinheiro: o crédito.

Não obstante, apesar de o crédito ser considerado um instrumento

facilitador das operações empresariais ou de qualquer negócio entabulado entre

pessoas, a economia, para desenvolver-se, precisou também da criação de uma

forma que permitisse a circulação dos direitos creditórios, com uma garantia para o

credor, no caso de inadimplência do devedor. E isso somente foi possível com a

utilização do instituto dos títulos de crédito.

Os títulos de crédito são documentos formais e necessários para que se

tenha o direito de satisfazer ou de exigir o valor neles escrito de forma imediata e

sem necessidade de qualquer autorização. Por isso, o instituto dos títulos de crédito

foi o que possibilitou a circulação de riquezas com facilidade e agilidade,

proporcionando, assim, o desenvolvimento da economia.

Ainda, com o objetivo de reforçar a confiança de que o título de crédito

será pago, tem-se a figura do aval, que é garantia típica do direito cambiário.

O aval é um negócio jurídico unilateral. É a vontade humana exteriorizada

por meio de declaração unilateral de vontade, pelo que se torna eficaz somente por

meio da assinatura do declarante, que passa a se responsabilizar pelo pagamento

do título de crédito. Em outras palavras, sem essa declaração o aval nem sequer

existe.

Os princípios do direito cambiário – cartularidade, literalidade e autonomia

–, ao lado da Lei Uniforme de Genebra, de parte do Decreto n. 2.044/1908 e de uma

gama de leis especiais, fundamentam e regulamentam os títulos de crédito

existentes, permitindo que estes possam exercer a sua função primordial que é a

dinamicidade de sua circulação com facilidade, agilidade e segurança.

Não obstante a existência de todas essas normas, o Código Civil

Brasileiro vigente (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), de forma inédita,

também trata, em seus arts. 887 a 926, sobre a matéria de títulos de crédito.

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Ainda, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a outorga

conjugal, autorização que era exigida tão somente para os atos que envolvem o

Direito Civil, passou a ter interferência também no Direito Comercial, na matéria de

títulos de crédito, porque o art. 1.647, inciso III, daquele ordenamento civilista dispôs

que “[...] nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da

separação absoluta: [...] prestar aval [...]”. Ainda, nos termos dos arts. 1.649 e 1.650,

ambos do Código Civil de 2002, as garantias cambiárias realizadas na vigência da

Lei n. 10.406/2002 poderão ser anuladas pelo cônjuge que não concedeu

autorização para tanto ou pelos seus herdeiros. Entretanto, o prejudicado com a

eventual decisão judicial que anulou o aval terá direito regressivo contra aquele que

realizou o negócio jurídico.

Apesar dessa previsão legal, a matéria sobre a outorga conjugal no aval

apresenta divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Por exemplo, ao contrário do

disposto no art. 1.649, do Código Civil, no sentido de que o cônjuge que não

assentiu com o aval poderá anular essa garantia, o Centro de Estudos Judiciários do

Conselho da Justiça Federal elaborou o enunciado n. 114, que assim dispõe: “O aval

não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art.

1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu”.

Outrossim, a exigência determinada pelo art. 1.647, inciso III, do Código

Civil merece uma atenção especial, uma vez que poderá descaracterizar a função

primordial dos títulos de crédito, que é a dinamicidade e a facilidade de sua

circulação.

Ademais, alguns dos mencionados dispositivos do Código Civil de 2002

apresentam relevantes divergências com aqueles tratados pelas respectivas leis

especiais, principalmente no que tange à declaração cambiária do aval. Tal fato

desencadeou diversas críticas e trouxe, consequentemente, discussões doutrinárias

sobre a aplicação ou não do Código Civil de 2002 para os títulos de crédito

regulados por leis especiais, bem como desentendimentos jurisprudenciais, em

especial, sobre a invalidade ou não do aval dado sem a outorga conjugal.

Dessa forma, neste estudo, o objetivo fundamental foi analisar a

introdução do art. 1.647, inciso III, do Código Civil no contexto da Teoria dos Títulos

de Crédito, que prima pelo dinamismo e pela simplicidade da circulação desses

documentos, bem como esclarecer as consequências do aval dado sem a exigida

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outorga conjugal e a aplicabilidade ou não dessa exigência legislativa aos títulos de

crédito regulados pelas leis especiais, ou seja, a possibilidade ou não de se anular o

aval dado nesses documentos sem a outorga conjugal (art. 1.649 do CC).

Para tanto, partiu-se do estudo da teoria do fato jurídico, necessário para

que se pudesse entender o que é ato jurídico, bem como quais suas espécies (ato

jurídico stricto sensu e negócio jurídico). Conceituado o fato jurídico, analisou-se o

seu suporte fático, que é o pressuposto ou a hipótese de incidência do fato jurídico.

Tal análise foi importante para a identificação dos elementos do suporte fático de

cada fato jurídico e das consequências no caso de ausência de um desses

elementos, isto é, das três situações distintas pelas quais possam passar os fatos

jurídicos (existência, validade e eficácia). Nesse momento, foram estudados esses

três planos no mundo jurídico, buscando analisar a diferenciação entre eles, bem

como os graus de invalidade do ato jurídico (nulidade e anulabilidade).

Após, estudou-se a outorga conjugal nos atos jurídicos, registrando a

evolução dessa autorização com base no Código Civil de 1916, bem como

realçando os dispositivos legais do Código Civil de 2002 sobre o assunto.

Posteriormente, analisou-se a outorga conjugal para prestação de fiança,

destacando-se o conceito, as principais características, a natureza jurídica da fiança,

bem como as consequências jurídicas dessa garantia dada sem a outorga conjugal,

sob o foco dos planos da eficácia e da validade.

Em seguida, para melhor analisar a questão da outorga conjugal no aval,

foi demonstrada a importância dos títulos de crédito, buscando, no conhecimento de

grandes mestres, a análise da formação da teoria dos títulos de crédito, a origem, o

conceito desses documentos e os princípios cambiários, discutindo, neste último

ponto, sobre o conteúdo normativo dos princípios. Ainda nessa oportunidade, foram

apresentadas as declarações cambiárias e estudada sua natureza jurídica.

Reportou-se ao estudo específico do aval, analisando sua origem

histórica, sua natureza jurídica, seu conceito, e, ainda, destacando as diferenças

entre essa garantia cambiária e a fiança. Foram observadas, também, as formas e

características do aval e realçadas as principais críticas e divergências doutrinárias

sobre a introdução da matéria de títulos de crédito no Código Civil de 2002. Foram

analisados, nesse momento, os dispositivos legais que regulamentam o aval no

ordenamento civilista.

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Por último, analisou-se a outorga conjugal no aval, com a apresentação

do tratamento doutrinário e jurisprudencial que tem sido dado a essa exigência legal,

tecendo observações e comentários sobre a aplicabilidade ou não do art. 1.647,

inciso III, do Código Civil aos títulos de crédito existentes, e, ao final, registrou-se a

conclusão no que tange às consequências jurídicas do aval dado sem o

consentimento do cônjuge, sob uma análise nos planos da validade e da eficácia.

Para o desenvolvimento do tema deste trabalho, adotou-se um estudo

expositivo, descritivo e propositivo, mediante pesquisa bibliográfica, com o registro

do resultado de análise de leitura de obras, artigos, jurisprudências e revistas

doutrinárias sobre o assunto.

Também, para atender aos objetivos do presente estudo, foram

consultadas as legislações específicas sobre o Direito Cambiário e analisados seus

princípios.

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2 DA VALIDADE E DA EFICÁCIA DO ATO JURÍDICO

Conforme ressaltado na introdução, o objetivo fundamental com este

trabalho é analisar a exigência legal da outorga conjugal no aval, bem como as

consequências que essa garantia cambiária possa vir a sofrer, caso dada sem o

consentimento do cônjuge. Isto é, verificar-se-á a possibilidade de invalidade e/ou

ineficácia do aval dado sem a outorga conjugal.

Para que se possa atingir esse objetivo, é de suma importância estudar o

conceito e a classificação dos atos jurídicos para que, posteriormente, seja possível

entender, distinguir e certificar as situações de validade e/ou eficácia destes.

Ainda, destaque-se que para se chegar ao conceito de ato jurídico e

conseguir verificar a maneira correta de certificar se este é válido ou não; é eficaz ou

não, deve-se analisar, previamente, a teoria dos fatos jurídicos, os elementos

fundamentais destes, bem como os três planos distintos pelos quais os fatos

jurídicos possam passar: (i) existência; (ii) validade e (iii) eficácia.

2.1 Teoria dos fatos jurídicos

A vida humana em sociedade imprescinde de uma organização para

tornar harmônica a convivência e o relacionamento entre os homens.

A religião, a política, a educação, a economia, o direito entre outras

esferas são processos de adaptação social, por meio dos quais a sociedade age

sobre o ser humano e insere na personalidade de cada um, valores e concepções

que representam e integram a cultura da sociedade em que esse ser humano estiver

inserido. No entanto, “[...] todo o arcabouço social, respaldado no aparato de meios

que visam a adaptá-lo, não consegue suprimir ou reduzir o seu livre-arbítrio na

escolha de como comportar-se [...] Por isso mesmo traz como resultante ineliminável

a possibilidade sempre presente de reação e rebeldia do homem aos padrões

traçados pela sociedade”1.

1 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 4-5.

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Em razão da impossibilidade de ser suprimida a livre escolha do

comportamento de cada homem, podem surgir situações e atos contrários aos

valores e às concepções existentes em cada sociedade, desarmonizando o convívio

entre as pessoas. Diante disso, surge a necessidade de se estabelecer normas de

conduta impostas a todas as pessoas, ou seja, normas de caráter obrigatório. Trata-

se das normas jurídicas, regras que, “no seu conjunto, consubstanciam o direito da

comunidade em que elas são vigentes”2.

As normas jurídicas são “normas de comportamento ou de organização

que emanam do Estado ou por ele têm sua realização garantida”3. Apenas com elas

poder-se-á evitar um caos social e possibilitar a convivência harmônica em uma

sociedade. Tais normas imputarão efeitos aos fatos relevantes para o mundo

jurídico4.

A palavra fato significa “1. ação ou coisa que se considera feita, ocorrida

ou em processo de realização [...] 2. aquilo que acontece por causas naturais ou

não, dependentes ou independentes da vontade humana; ocorrência, sucesso [...] 3.

ação consistente em algo”5.

Em suma, fatos podem ser quaisquer acontecimentos ou ocorrências, que

o direito, como um instrumento de adaptação social, irá valorar para, por meio das

normas jurídicas, poder regular e controlar apenas aqueles fatos que interferirem,

direta ou indiretamente, na convivência dos homens em uma sociedade.

2 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 5. 3 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução, p. 96. 4 “Sua existência prende-se à necessidade de se estabelecer uma ordem que permita a vida em

sociedade, evitando ou solucionando conflitos, garantindo a segurança nas relações sociais e jurídicas, promovendo a justiça, a segurança, o bem comum, com o que também garante a realização da liberdade, da igualdade e da paz social, os chamados valores fundamentais e consecutivos da axiologia jurídica. Seu objeto é, em suma, o comportamento das pessoas, que se visa disciplinar ou orientar de acordo com os valores fundamentais de cada grupo social [...]. Norma jurídica não é sinônimo de lei. Esta pode conter inúmeras normas, como ocorre com o Código Civil. Não se confundem, também, as normas jurídicas com os dispositivos de lei que as expressam. Esses dispositivos, ou proposições, são os sinais lingüísticos, conjunto de palavras que as revelam. Daí dizer-se que a ciência do direito é uma ciência de palavras, sendo a proposição jurídica a forma lógico-gramatical da norma [...]. Os dispositivos são a expressão lingüística e formal das normas jurídicas, mas a cada um não corresponde, necessariamente, uma norma, sendo às vezes necessário buscarem-se vários no texto legal para encontrar-se a norma necessária, o que se faz por meio de interpretação jurídica”. (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução, p. 96-97).

5 DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa, p. 1.313.

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De acordo com Bernardes de Mello, “A norma jurídica, desse modo,

adjetiva os fatos do mundo, conferindo-lhes uma característica que os torna espécie

distinta dentre os demais fatos – o ser fato jurídico”6.

Em outras palavras, as normas irão qualificar os fatos, valorando, como

fatos jurídicos, aqueles que interferirem no relacionamento entre as pessoas, para

regulá-los.

Assim, poder-se-ia dizer que os fatos jurídicos são quaisquer eventos ou

condutas7 capazes de criar, modificar, substituir ou extinguir um direito. Ou seja,

eventos ou condutas que repercutem na esfera jurídica.

No entanto, nem todos os fatos jurídicos produzirão efeitos concretos.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald explicam:

É que nem sempre decorrerão efeitos do fato jurídico, podendo ocorrer que um determinado fato exista e deixe de existir sem que, jamais, produza um único efeito. Tome-se como exemplo a elaboração de um testamento. Com efeito, se alguém, maior e capaz, elaborar um testamento, teremos, efetivamente, um fato jurídico que somente produzirá seus efeitos depois da morte do testador. Se, contudo, vier a revogar, ainda em vida, o testamento antes elaborado, o referido fato jurídico deixará de existir sem nunca produzir um único efeito concreto, não criando, modificando, substituindo ou extinguindo nenhuma relação jurídica8.

Nesse mesmo sentido, Bernardes de Mello corrobora:

É verdade indiscutível que a finalidade precípua do fato jurídico reside na produção de efeitos jurídicos, porque seria até sem sentido, mesmo ilógico, que se imaginassem fatos jurídicos sem qualquer utilidade para a realidade da vida humana no plano de suas relações interpessoais e que constituíssem meras entidades formais, puramente abstratas. Mas a constatação dessa verdade não pode eliminar a outra de que há fato que, embora concebido para gerar efeitos jurídicos, em certas

6 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 10. 7 “Adotando um critério bastante simples, mas de abrangência total, aprendido com Lourival Vilanova,

é possível classificar os fatos em (a) eventos e (b) condutas, tendo em sua natureza a diferença específica entre eles, a saber: (a) eventos são os puros fatos da natureza, aqueles que acontecem independentemente de atuação humana ou, quando há presença dessa atuação em sua origem, esta resulta, exclusivamente, de sua condição natural, biológica (como na concepção, no nascimento, na morte de alguém, por exemplo); e (b) conduta, os atos humanos volitivos ou mesmo avolitivos que não sejam decorrência exclusiva de sua natureza animal”. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2008, p. 8)

8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 379.

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circunstâncias pode não gerá-los, sem que se descaracterize, todavia9.

Da mesma forma, de acordo com Pontes de Miranda, “Fato jurídico é,

pois, o fato ou o complexo de fatos sôbre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o

fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não

dimane, eficácia jurídica”10.

Ainda sobre o conceito de fato jurídico, Emílio Betti registra que:

Factos jurídicos são, portanto, aqueles factos a que o direito atribui relevância jurídica, no sentido de mudar as situações anteriores a eles e de configurar novas situações, a que correspondem novas qualificações jurídicas. O esquema lógico do facto jurídico, reduzido à expressão mais simples, obtém-se estudando-o como um facto dotado de certos requisitos pressupostos pela norma, o qual incide sobre uma situação pré-existente (inicial) e a transforma numa situação nova (final), de modo a constituir, modificar ou extinguir, poderes e vínculos, ou qualificações e posições jurídicas. A eficácia constitutiva, modificativa ou extintiva, é atribuída ao facto jurídico em relação à situação em que se ele enquadra, na medida em que forma com ela (como fatispécie) um objeto de previsão e de valoração jurídica, por parte da norma que estabelece aquela eficácia. A valoração de um facto como facto jurídico exprime-se, precisamente, ao pôr em relação com a situação prevista, sobre a qual ele incide (fatispécie), uma situação jurídica nova, que se reporta à pré-existente e é um desenvolvimento dela11.

Portanto, entende-se correto dizer que fato jurídico é qualquer

acontecimento capaz de repercutir na esfera jurídica, podendo ou não gerar efeitos

concretos.

Nesse contexto, deve-se destacar a diferença entre o fato e o suporte

fático. De acordo com Bernardes de Mello, “Somente fato cuja ocorrência seja da

ciência de alguém, apenas, ou que seja passível de prova pode ser considerado

concretizado para os fins de incidência das normas jurídicas”12. Pode-se ter um fato

real, mas que não seja de conhecimento de ninguém. Nessa hipótese, não haverá a

concreção do suporte fático, cujo conhecimento é o seu elemento. O suporte fático é

o pressuposto ou a hipótese de incidência para a existência do fato jurídico. Pode

9 MELLO, Marcos Bernardes de Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 110. 10 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 77. 11 BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico, p. 20-21. 12 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 86.

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ser um evento ou uma conduta que ocorra no mundo que, por ser relevante, torna-

se objeto da norma jurídica.

Nesse sentido, Pontes de Miranda pontua:

Com a incidência da regra jurídica, o suporte fáctico, colorido por ela (= juridicizado), entra no mundo jurídico. A técnica do direito tem como um dos seus expedientes fundamentais, e o primeiro de todos, êsse, que é o de distinguir, no mundo dos fatos, os fatos que não interessam ao direito e os fatos jurídicos, que formam o mundo jurídico; donde dizer-se que, com a incidência da regra jurídica sôbre o suporte fáctico, êsse entra no mundo jurídico13.

Em outras palavras, o jurista italiano Emílio Betti ensina:

A norma jurídica, considerada no seu arranjo lógico, consta de uma previsão e de uma disposição correspondente. Isto é, prevê, em abstracto e em geral, hipóteses de facto, classificadas por tipos e, ao mesmo tempo, orientadas segundo as directivas de uma valoração jurídica – hipóteses que, em terminologia técnica, são denominadas fattispecie –, e estabelece-lhes um tratamento apropriado, relacionado com elas, através de uma síntese normativa, como se fossem <efeitos>, situações jurídicas correspondentes14.

O suporte fático é constituído por elementos nucleares e complementares.

Sobre isso, Bernardes de Mello explica:

Geralmente, o suporte fáctico é complexo, sendo raras as espécies em que apenas um fato o compõe. No estudo dos suportes fácticos complexos, em especial dos negócios jurídicos, é preciso ter em vista que há fatos que, por serem considerados pela norma jurídica essenciais à sua incidência e conseqüentemente criação do fato jurídico, constituem-se nos elementos nucleares do suporte fáctico ou, simplesmente, no seu núcleo. Dentre esses há sempre um fato que determina a configuração final do suporte fáctico e fixa, no tempo, a sua concreção. Às vezes esse fato não está, expressamente, mencionado, mas, por constituir o dado fáctico fundamental do fato jurídico, a sua presença é pressuposta em todas as normas que integram a respectiva instituição jurídica. Esse fato configura o cerne do suporte fáctico. Além do cerne, há outros fatos que completam o núcleo do suporte fáctico e, por isso, são denominados elementos completantes do núcleo15.

13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 74. 14 BETTI, Emílio. Teoria geral do negócio jurídico, p. 17-18. 15 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 52.

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17

Tanto o cerne quanto os elementos completantes (elementos nucleares)

têm incidência direta na existência do fato jurídico e, consequentemente, na

concreção do suporte fático. Isto é, na falta do cerne ou de um dos elementos

completantes (que completam) de um suporte fático, não existirá fato jurídico; o

suporte fático será insuficiente.

Por sua vez, há os elementos complementares do suporte fático. Tais

elementos, diferentemente dos elementos completantes, não completam o suporte

fático, mas tão somente o complementam. Como exemplo de elementos

complementares, tem-se: (i) sujeito capaz; (ii) parte legítima; (iii) objeto lícito e (iv)

atendimento à forma prescrita ou não defesa em lei. A falta de um desses elementos

não acarreta a inexistência do suporte fático, mas sim a sua invalidade e/ou

ineficácia. Os elementos complementares atuam no plano da validade e da eficácia.

Por fim, há os elementos integrativos. Estes não compõem o suporte

fático, não interferindo, pois, na sua existência, validade ou eficácia própria, mas

atuam apenas em relação à irradiação de efeitos próprios de um ato jurídico. Como

exemplo, no caso de um negócio jurídico de compra e venda de bem imóvel, o

elemento integrativo seria o devido registro da escritura de compra e venda no

Cartório de Registro de Imóveis, sob pena daquele negócio não gerar efeitos

jurídicos para o adquirente do bem.

Ainda no que tange à análise do suporte fático, Pontes de Miranda

ressalta a importância de seus componentes serem analisados, com o objetivo de

verificar, antes de tudo, sua eventual insuficiência ou inexistência:

Daí a existência de (a) regras jurídicas pré-juridicizantes, de (b) regras jurídicas juridicizantes e de (c) regras jurídicas desjuridicizantes. As regras jurídicas pré-juridicizantes preocupam-se com a composição dos suportes fácticos como causadores de existência dos fatos jurídicos, e de ordinário para dizerem que os suportes fácticos não bastam: são, portanto, regras sobre não-existência dos fatos jurídicos; incidem sôbre o que está composto, para repeli-lo do mundo jurídico. O que pode ser surpreendente para os que estão acostumados a ver somente a incidência das regras jurídicas, para juridicizar suportes fácticos, é que essas são editadas [...] A incidência marca, assim, no plano da existência, negativamente. É o caso, por exemplo, do adultério com o consentimento do cônjuge ofendido: é fato, a lei trata dêle (portanto: incide sôbre êle), porém não é fato jurídico, não entra no mundo jurídico16.

16 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 76.

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18

Conceituado o fato jurídico e o suporte fático, faz-se a análise da

classificação do primeiro, ressaltando que, quanto à sua classificação, há

divergências doutrinárias.

Merece destaque a forma de classificação dos fatos jurídicos proposta

pelo jurista brasileiro Augusto Teixeira de Freitas, em seu “Esboço de Código Civil”.

Teixeira de Freitas dividiu os fatos jurídicos em “fatos exteriores” e “fatos humanos”.

Estes podem ser voluntários ou involuntários. Os fatos humanos involuntários são

necessários (atos que correspondem às causas de excludência de ilicitude ou

fortuitos). Os fatos humanos voluntários são atos lícitos ou ilícitos. Aqueles, os

lícitos, se dividem em simplesmente lícitos (atos que somente produzem os efeitos

predeterminados em lei) e em atos jurídicos que são os negócios jurídicos17.

Orlando Gomes18 entende que os fatos jurídicos devem ser classificados

de acordo com a natureza dos fatos. Assim, existiriam dois grupos: (i) os

acontecimentos naturais e (ii) as ações humanas. O primeiro dividir-se-ia em dois

subgrupos: (i) acontecimentos naturais ordinários e (ii) acontecimentos naturais

extraordinários. Por sua vez, o segundo grupo abrangeria (i) as ações humanas de

efeitos jurídicos voluntários (atos jurídicos lato sensu) e (ii) as ações humanas de

efeitos jurídicos involuntários (atos ilícitos).

No entanto, como entende Bernardes de Mello19, essa classificação é

insuficiente, porque não esgota todas as possibilidades. Ou seja, não abrange a

hipótese de fatos jurídicos constituídos por “ações humanas de efeitos involuntários”

que, entretanto, não seriam necessariamente atos ilícitos.

A classificação dotada de maior técnica é a teoria construída na doutrina

germânica, demonstrada por Pontes de Miranda20 e seguida, como exemplo, por

Bernardes de Mello21. Essa classificação baseou-se no elemento cerne do suporte

fático, ou seja, em dado essencial e próprio, possibilitando, assim, uma classificação

precisa.

17 FREITAS, Augusto Teixeira de. Esboço do código civil, p. 143-148. 18 GOMES, Orlando. Introdução do direito civil, p. 239. 19 MELLO, Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 112. 20 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 75. 21 MELLO, Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 115.

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19

Primeiramente, dividem-se os fatos jurídicos em lícitos – aqueles que se

concretizam em conformidade com a ordem jurídica – e, em ilícitos – aqueles que

violam as normas jurídicas.

Os fatos ilícitos podem abranger ilícitos civis e/ou penais, sendo que a

sua classificação, de forma detalhada, será analisada posteriormente.

Os fatos jurídicos líticos se dividem de acordo com a existência ou não da

vontade humana ou da força da natureza, ou seja, conforme o elemento volitivo,

cerne do suporte fático. Sob esse critério, os fatos jurídicos lícitos classificam-se em:

(i) fato jurídico stricto sensu – aquele que decorre de fenômenos naturais, sem a

intervenção humana – o elemento cerne do suporte fático é eventos da natureza ou

dos animais; (ii) ato-fato jurídico – aquele que decorre de comportamento humano e

gera consequências jurídicas, sendo que o ato volitivo, ou seja, a vontade humana é

irrelevante – a presença da conduta humana corresponde ao cerne do suporte

fático; (iii) atos jurídicos lato sensu – acontecimentos decorrentes da vontade

humana – o elemento volitivo é o cerne do suporte fático.

Para esta pesquisa, será importante o estudo do ato jurídico lato sensu,

no entanto, antes de se adentrar nesse tema, é mister a análise dos diferentes

planos do mundo jurídico, ou seja, das três situações distintas pelas quais possam

passar os fatos jurídicos: existência, validade e eficácia.

2.2 Dos diferentes planos no mundo jurídico

Existir, valer e ser eficaz são situações distintas em que se podem

encontrar os fatos jurídicos, mormente porque se passam em planos diferentes.

Nesse contexto, Pontes de Miranda explica que:

Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (H. Kelsen, Hauptprobleme, 14). O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é22.

22 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 15.

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20

No mesmo sentido, Bernardes de Mello corrobora:

Na análise das vicissitudes por que podem passar os fatos jurídicos, no entanto, é possível encontrar situações em que o ato jurídico (negócio jurídico e ato jurídico stricto sensu) (a) existe é válido e é eficaz (casamento de homem e mulher capazes, sem impedimentos dirimentes, realizado perante autoridade competente), (b) existe, é válido e é ineficaz (testamento de pessoa capaz, feito com observância das formalidades legais, antes da ocorrência da morte do testador), (c) existe, é inválido e é eficaz (casamento putativo, negócio jurídico anulável, antes da decretação da anulabilidade), (d) existe, é inválido e é ineficaz (doação feita pessoalmente, por pessoas absolutamente incapazes), ou, quando se trata de fato jurídico stricto sensu, ato fato-jurídico, ou fato ilícito lato sensu, (e) existe e é eficaz (nascimento com vida, a pintura de um quadro, o dano causado a bem alheio) ou, excepcionalmente, (f) existe e é ineficaz, porque a validade é questão que diz respeito, apenas, aos atos jurídicos líticos23.

Portanto, verifica-se que é impossível tratar, da mesma forma, as

expressões “existência”, “validade” e “eficácia”, porque expressam três situações

distintas pelas quais podem passar os fatos jurídicos. No entanto, não é raro

encontrar na doutrina e na jurisprudência o emprego errôneo e/ou inadequado das

expressões “existência”, “validade” e “ineficácia”, como se fossem, até mesmo,

sinônimas. Martinho Garcez confunde os conceitos de ato nulo (grau máximo da

invalidade) com ato inexistente, ao definir o ato jurídico nulo, nos seguintes termos:

“Um ato jurídico é nulo: 1° quando a lei o declara tal, como contrário às suas

prescrições; 2° quando lhe faltam condições essenciais à sua existência; 3° quando

é contrário à ordem pública e aos bons costumes”24.

Não se pode concordar com o mencionado autor. O plano da existência é

a base para o da validade e o da eficácia; não se pode ter um ato válido, inválido,

eficaz ou ineficaz, sem que ele, primeiramente, exista.

Assim, pode-se dizer que o plano da existência é o plano do ser, passam

por ele todos os fatos jurídicos, sejam lícitos ou ilícitos. No momento em que a

norma jurídica incide em um determinado fato, o suporte fático deste é ingressado

no plano da existência.

23 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 98. 24 GARCEZ, Martinho. Das nulidades dos atos jurídicos, p. 16.

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21

Por seu turno, o plano da validade corresponde à análise da perfeição do

ato jurídico (ausência de qualquer vício invalidante) e da existência de defeito

invalidante.

Destaque-se que nem os fatos jurídicos lícitos – que não têm no cerne de

seu suporte fático o elemento volitivo – nem os ilícitos passam pelo plano de

validade. Isso porque, não há como caracterizar em nulo ou anulável (graus da

invalidade) um fato decorrente da natureza (fato jurídico stricto sensu) ou um ato-

fato jurídico. Da mesma forma, uma eventual aplicação de nulidade a um ato ilícito

traria benefício ao próprio figurante do ato, o que seria um verdadeiro contrassenso.

De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “há um

certo paralelismo entre os elementos do plano da existência e os elementos do

plano da validade”25. Isso porque os mencionados autores, ao tratarem do negócio

jurídico (espécie do ato jurídico lato sensu), afirmam que seriam pressupostos de

existência: (i) agente; (ii) objeto; (iii) forma e (iv) vontade exteriorizada consciente,

sendo que a qualificação destes ensejam os requisitos de validade: (i) agente capaz;

(ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; (iii) forma adequada

(prescrita ou não defesa em lei); (iv) vontade exteriorizada conscientemente, de

forma livre e desembaraçada.

Por fim, o plano da eficácia será o momento em que os fatos jurídicos

produzirão os seus respectivos efeitos, criando, extinguindo, modificando ou

substituindo relações jurídicas.

2.3 Do ato jurídico lato sensu

De acordo com Bernardes de Mello, é ato jurídico em sentido amplo “o

fato jurídico cujo suporte fáctico tenha como cerne uma exteriorização consciente de

vontade, que tenha por objeto obter um resultado juridicamente protegido ou não

proibido e possível”26.

25 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 408. 26 Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 14. ed. São Paulo:

Saraiva, 2007.

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22

Vicente Ráo define o ato jurídico lato sensu, nos seguintes termos:

O ato jurídico desde logo se distingue dos demais fatos voluntários lícitos pela maior relevância da vontade, isto é, da vontade que visa a alcançar, direta e imediatamente, os efeitos práticos protegidos pela norma e recebe desta o poder de auto-regulamentar os interesses próprios dos agentes. [...] O ato jurídico, quer crie, quer modifique, quer extinga direitos, sempre tende, em virtude da autonomia da vontade do agente, a afetar, substancialmente, no sentido de sua disposição, a situação sobre a qual incide (função dispositiva) e seu conteúdo possui caráter preceptivo (estrutura preceptiva), assim valendo como auto-regulamentação de interesses [...] Consiste, pois, o ato jurídico na declaração dispositiva e preceptiva da vontade autônoma do agente, dirigida direta e imediatamente à consecução dos resultados práticos, individuais e sociais, produzidos pelos efeitos que o ordenamento lhe confere27.

Por sua vez, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald conceituam

o ato jurídico em sentido amplo da seguinte forma:

Em sentido lato, os atos jurídicos derivam, necessariamente, de uma atuação do ser humano ou de sua exteriorização de vontade, produzindo efeitos reconhecidos pelo direito (fato jurídico humano voluntário). São aqueles que, derivando da exteriorização da vontade do agente, se dirigem à obtenção de um resultado jurídico concreto (não vedado por lei)28.

Portanto, verifica-se que a diferença primordial existente entre os atos

jurídicos lato sensu, os fatos jurídicos stricto sensu e os atos-fatos jurídicos é a

presença do elemento volitivo.

A partir desses conceitos, extraem-se os seguintes elementos29 que

compõem o ato jurídico lato sensu: (i) ato humano de vontade; (ii) exteriorização da

vontade pretendida; (iii) consciência dessa exteriorização de vontade e (iv) que essa

vontade exteriorizada tenha como finalidade a obtenção de um resultado que seja

protegido – ou, ao menos, não proibido pelo direito – e possível.

27 RÁO, Vicente. Ato jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais. O problema do

conflito entre os elementos volitivos e a declaração, p. 36-37. 28 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 388-389. 29 A palavra elementos, nesse caso, tem significado comum, e não no sentido de linguagem jurídica;

expressa “tudo o que entra na composição de alguma coisa”.

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23

No que tange à necessidade da exteriorização do ato volitivo, é

importante esclarecer que, a vontade humana, enquanto interior, ou seja, na reserva

mental, não vincula nem produz efeitos. “Do ponto de vista do direito, somente

vontade que se exterioriza é considerada suficiente para compor suporte fáctico de

ato jurídico. A necessidade de que o elemento volitivo da conduta seja conhecido

das pessoas constitui imperativo de ordem prática, vivencial, que o direito

incorpora”30.

A vontade humana pode ser exteriorizada de duas formas: (i) mediante

manifestações que se revelam por simples comportamentos de pessoas e (ii) por

meio de declarações que se constituem em manifestações qualificadas de vontade,

sendo que a distinção entre aquela e esta reside no modo em que a vontade é

exteriorizada31.

Para exemplificar essa distinção entre as duas mencionadas formas de

exteriorização de vontade, Bernardes de Mello cita: “Se alguém lança ao lixo um par

de sapatos, manifesta a sua vontade de abandoná-lo (=derrelicção); se,

diferentemente, diz às pessoas da casa que vai lançar os sapatos ao lixo, declara a

sua vontade de derrelinqüir (abandonar), não somente a manifesta”32.

Destaque-se que a declaração e a manifestação (formas de

exteriorização da vontade), embora não sejam o próprio cerne do suporte fático do

ato jurídico lato sensu, são dados que completam o seu núcleo, ou seja, são

elementos nucleares, aqueles que se referem à própria existência do ato jurídico.

Por essa razão, Bernardes de Mello registra que essas formas de

exteriorização da vontade são elementos essenciais e, portanto:

[...] se a norma jurídica exige, como elemento do suporte fáctico de certo ato jurídico, que a vontade seja exteriorizada mediante declaração, a exteriorização por outra forma não bastará a que se possa considerá-lo existente; vale dizer: quando exigida pela norma jurídica, a falta da declaração acarreta a inexistência do ato jurídico, não somente a sua nulidade ou ineficácia [...]. Ao contrário, se a norma jurídica prevê em seu suporte fáctico uma simples manifestação de vontade e o figurante do ato jurídico a exterioriza através de declaração, esta, por ser uma manifestação

30 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 144. 31 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 144. 32 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 144.

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24

qualificada, deve ser considerada suficiente à composição do respectivo suporte fáctico33.

Em suma, percebe-se que as formas de exteriorização de vontade –

declaração e manifestação – correspondem a elementos nucleares (completantes)

do ato jurídico lato sensu e, como já estudado, na ausência de um elemento

completante, tem-se a inexistência da própria concreção do suporte fático e,

portanto, do ato jurídico. Assim, se uma norma jurídica exigir a declaração, como

forma de exteriorização de vontade de determinado ato jurídico, uma simples

manifestação não servirá para que este ato seja existente. Nessa hipótese, ressalta-

se que não há que se falar em nulidade ou ineficácia do ato jurídico, mas sim em

sua inexistência.

Por sua vez, é importante destacar que o silêncio também pode ser

compreendido como manifestação de vontade. “Normalmente, o silêncio é nada, e

significa a abstenção de pronunciamento da pessoa em face de uma solicitação

ambiente. Via de regra, o silêncio é a ausência de manifestação de vontade, e, como

tal, não produz efeitos. Mas, em determinadas circunstâncias, pode significar uma

atitude ou um comportamento, e, consequentemente, produzir efeitos jurídicos” 34.

De qualquer forma, independentemente da forma de exteriorização de

vontade, esta deve ser consciente. A consciência da vontade também é um

elemento constitutivo do ato jurídico lato sensu e, portanto, a sua ausência enseja a

inexistência do ato.

Para exemplificar essa situação, pode-se imaginar uma pessoa que, em

um leilão, levante a mão para cumprimentar um conhecido, mas não para dar um

lance.

Nesse contexto, deve-se ressaltar a diferença entre a inconsciência e o

erro na exteriorização da vontade:

A questão da inconsciência não se confunde com o problema do erro na manifestação da vontade. A inconsciência implica inexistência da vontade, enquanto no erro há vontade, porém defeituosa. Por isso, no caso de inconsciência da vontade, não há negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu; havendo erro, existe o ato jurídico (negócio ou ato jurídico stricto sensu), mas anulável (= passível de anulação), como decorrência do defeito na formação da vontade. A

33 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 145. 34 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. 1, 1997, p. 308.

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inconsciência constitui elemento que importa insuficiência do suporte fáctico; o erro tem sua conseqüência quanto à eficiência dos elementos do suporte fáctico [...]35.

Assim, naquele exemplo citado acima da pessoa que, em um leilão,

levanta o braço para cumprimentar um conhecido, percebe-se que ela não tinha a

consciência que estava praticando um gesto de oferecer um lance e, portanto, não

poderia estar praticando um ato jurídico.

Por fim, é elemento constitutivo do ato jurídico em sentido amplo o

resultado lícito e possível. Ou seja, é mister que o ato jurídico tenha um objeto e que

este seja possível e protegido, ou, pelo menos, não proibido pelo direito. O objeto é

o fim do ato jurídico, isto é, a sua finalidade.

No que tange ao objeto do ato jurídico, deve-se analisar três aspectos: (i)

a sua existência; (ii) a sua licitude e (iii) a sua possibilidade.

A inexistência de objeto, consequentemente, acarreta o ato jurídico

inexistente. Pode-se dizer que há falta de objeto nas seguintes hipóteses: (i) o ato é

praticado por meio de uma simulação absoluta, quando inocente, ou seja, quando

não gera prejuízos. Por exemplo, um professor que emite uma nota promissória, em

sala de aula, para ensinar os seus alunos36; (ii) quando há contradição invencível e

(iii) quando o objeto do ato seja algo que não esteja dentre o rol dos bens da vida,

por exemplo, a lua37.

Por sua vez, a ilicitude do objeto do ato jurídico traz como consequência,

em geral, a nulidade do ato, e não a sua inexistência.

No que tange à impossibilidade do objeto, seja ela originária seja

superveniente, jamais atuará nos planos da validade ou da eficácia. Nesse caso,

haverá a resolução do ato jurídico, este será desfeito, com ou sem ressarcimento

dos prejuízos, dependendo das regras e do pacto aplicáveis ao caso.

35 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 147. 36 A simulação é absoluta quando atinge o próprio conteúdo do ato. Quando não prejudica terceiros

nem constitui infração de lei, o ato simulado deve ser considerado inexistente para o direito. No entanto, nos termos do art. 167 do CC, será causa de nulidade o ato simulado que infringir lei ou causar prejuízos a terceiros.

37 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 151.

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2.3.1 Das espécies do ato jurídico lato sensu

O Código Civil Brasileiro de 1916, seguindo o Direito Francês (doutrina

clássica) aplicava a teoria monista, ou seja, não apresentava uma subdivisão do ato

jurídico em sentido amplo. Isso pode ser verificado pelo art. 81 do Código Civil de

1916 que registra: “Todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar,

transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico”.

O Código Civil de 1916 não diferenciava o ato jurídico do negócio jurídico.

Tal percepção foi modificada com a vigência do Código Civil de 2002. Este

ordenamento jurídico adotou a teoria dualista, em seu Livro III, tratando no Título I

de negócio jurídico e, no Título II, de atos jurídicos lícitos.

A doutrina brasileira, salvo poucas exceções, adota francamente, a distinção entre ato jurídico em sentido estrito e negócio jurídico. O Código Civil de 1916, entretanto, não fazia separação, regulando, apenas, o ato jurídico, e o que seu art. 81, definia como ato jurídico, na verdade, é negócio jurídico, devendo-se registrar que o aludido art. 81 inspirou-se no art. 437 do Esboço, de Teixeira de Freitas, observando este jurisconsulto: ‘Os atos jurídicos são declarações de vontade, têm por fim imediato criar, modificar ou extinguir direitos, porque nesse sentido se exprime a vontade dos agentes38..Assim edita o art. 944 do Código Civil argentino: “Son actos juridicos los actos voluntarios licitos, que tengan por fin inmediato, establecer entre las personas relaciones juridicas, crear, modificar, transferir, conservar o aniquilar derechos’. Informa José Carlos Moreira Alves39 que é na disciplina dos negócios jurídicos que o Projeto de Código Civil, no tocante à sua Parte Geral, apresentou maiores alterações em face do Código Civil de 1916, ponderando que não se pode negar que há atos jurídicos a que os preceitos que regulam a vontade negocial não têm inteira aplicação dizendo: Atento a essa circunstância, o projeto de Código Civil brasileiro, no Livro III de sua Parte Geral, substituiu a expressão genérica ato jurídico, que se encontra no Código em vigor, pela designação específica negócio jurídico, pois é a este, e não necessariamente àquele, que se aplicam todos os preceitos ali constantes. E, no tocante aos atos jurídicos lícitos que não são negócios jurídicos, abriu-lhes um título, com artigo único, em que se determina que se

38 FREITAS, Augusto Teixeira de. Código civil: esboço, p. 147 apud VELOSO, Zeno. Invalidade do

negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 4. 39 MOREIRA ALVES, José Carlos. A parte geral do projeto de código civil brasileiro, p. 97 apud

VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 5.

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lhes apliquem, no que couber, as disposições disciplinadoras do negócio jurídico. Seguiu-se, nesse terreno, a orientação adotada, a propósito, no art. 295, do Código Civil Português de 1967. O Livro III da Parte Geral do Código Civil de 2002 trata dos Fatos Jurídicos. No Título I, artigos 104 a 184, regula o Negócio Jurídico. O Título II denomina-se ‘Dos Atos Jurídicos Lícitos’, e tem um só artigo, o 185, afirmando: ‘Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título antecedente’40.

Portanto, hodiernamente, pode-se afirmar que, para o ordenamento

jurídico brasileiro, o ato jurídico stricto sensu e o negócio jurídico, abaixo

conceituados, são espécies do ato jurídico em sentido amplo.

O ato jurídico em sentido estrito ou ato não negocial é aquele que, por

meio da exteriorização de vontade consciente, gera as consequências jurídicas

previstas em lei. Tais consequências (efeitos) são desejadas pelo agente, mas sem

qualquer regulamentação da autonomia privada. Ou seja, a eficácia do ato jurídico

stricto sensu é predeterminada na lei; as suas consequências jurídicas ocorrerão,

sem que o agente possa modificá-las. Exemplo clássico de ato jurídico em sentido

estrito é o reconhecimento de paternidade. Nesse momento, o pai assume os

deveres previstos na legislação aplicável.

Lado outro, no negócio jurídico, a exteriorização de vontade tem maior

força. No ato negocial, o direito permite, dentro de certos parâmetros, que o agente

regule os efeitos jurídicos, criando obrigações, cláusulas, condições e diversas

situações, legalmente, possíveis. Ou seja, a autonomia da vontade dos agentes não

pode ir contra a ordem jurídica.

Quanto à distinção entre o ato jurídico em sentido estrito e o negócio

jurídico, alguns doutrinadores registram que este pressupõe a exteriorização da

vontade, por meio de declaração, enquanto, para aquele, bastaria a manifestação.

Por exemplo, Zeno Veloso entende que: “Negócio jurídico não é, somente, ato

voluntário, mas ato que decorre da declaração de vontade, que pode ser unilateral e

bilateral. Declaração de vontade é manifestação de vontade qualificada, destinada a

produzir efeitos jurídicos”41. No mesmo sentido, Caio Mário distingue: “Os ‘negócios

jurídicos’ são, portanto, declarações de vontade destinadas à produção de efeitos

40 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 4-5. 41 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 9.

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jurídicos queridos pelo agente; os ‘atos jurídicos stricto sensu’ são manifestações de

vontade obedientes à lei, porém geradoras de efeitos que nascem da própria lei”42.

No entanto, Bernardes de Mello demonstra perfeitamente que a forma de

exteriorização de vontade não pode ser base para distinguir essas duas espécies de

ato jurídico lato sensu. Isso porque há hipóteses de ato jurídico em sentido estrito

em que é exigida a declaração como forma de exteriorização de vontade; por

exemplo, o reconhecimento da filiação não resultante de casamento.

Da mesma forma, há casos de negócios jurídicos que se realizam

mediante simples manifestação. O referido autor exemplifica:

Na venda a contento, se aquele que recebe a oferta consome o bem ofertado, conclui o negócio jurídico de compra-e-venda sem declaração. A consumação é mera manifestação de vontade que exemplifica caso de negócio jurídico sem declaração. Da mesma maneira, pratica negócio jurídico unilateral sem declaração o testador que rompe o testamento cerrado43.

Seguramente, a maioria dos negócios jurídicos será realizada por meio da

manifestação de vontade qualificada, ou seja, da declaração. No entanto, isso não é

regra, verificou-se que há exceções. Nesse sentido, corrobora Cristiano Chaves de

Farias e Nelson Rosenvald: “Normalmente, os atos jurídicos em sentido estrito

partem de manifestação de vontade, enquanto os negócios jurídicos são estribados

em declarações de vontade. Trata-se de simples regra, que pode ser alterada no

caso concreto, sem que qualquer prejuízo ocorra à configuração do ato”44.

Ainda no que tange à comparação e à distinção entre o ato jurídico stricto

sensu e o negócio jurídico, deve-se destacar o teor do art. 185 do Código Civil que

assim dispõe: “Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-

se, no que couber, as disposições do Título anterior”. Em outras palavras, o

ordenamento civil brasileiro determina a aplicação das regras dos negócios jurídicos

aos atos jurídicos em sentido estrito “no que couber”.

Obviamente, não há como se aplicar aos atos jurídicos stricto sensu as

regras dos negócios jurídicos relacionadas à intenção do agente, porque, conforme

já destacado, o ato jurídico em sentido estrito gera efeitos predeterminados pela lei,

42 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, 1997, v. 1, p. 303. 43 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 163. 44 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 391.

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29

e não de acordo com a vontade do agente. Assim, as normas que são aplicáveis a

ambos (ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico) são aquelas que não se referem

à intenção do agente, como exemplo, a regra do agente capaz e do objeto lícito.

2.4 Da invalidade dos atos jurídicos: nulidade e anulabilidade

Para que algo seja válido ou inválido é necessário que, anteriormente,

exista. Conforme já destacado no item sobre os diferentes planos no mundo jurídico,

não há qualquer lógica falar-se em validade ou invalidade de algo que não exista.

Não obstante, “Não se pode dizer que o conceito de inexistente seja inútil ao jurista:

é de interêsse do nadador saber onde acaba a piscina”45.

Também é importante frisar que apenas passam pelo plano da validade

os fatos jurídicos, cujo elemento nuclear do suporte fático é constituído pela vontade

humana (atos jurídicos lato sensu: atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos).

Nesse contexto, Pontes de Miranda pontua:

Para que algo valha é preciso que exista. Não tem sentido falar-se de validade ou de invalidade a respeito do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois de se afirmar que existe é possível pensar-se em validade ou em invalidade. Nem tudo que existe é suscetível de a seu respeito discutir-se se vale, ou se não vale. Não se há de afirmar nem de negar que o nascimento, ou a morte, ou a avulsão, ou o pagamento valha. Não tem sentido. Tão-pouco a respeito do que não existe: se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido. Os conceitos de validade ou de invalidade só se referem a atos jurídicos, isto é, a atos humanos que entraram (plano de existência) no mundo jurídico e se tornaram, assim, atos jurídicos46.

Existente o ato jurídico, a atribuição de validade deste implica a

necessidade de que os requisitos traçados para ele sejam atendidos. Lado outro,

imputa-se a invalidade do ato jurídico caso este não apresente todos os seus

requisitos: ato jurídico deficiente. Nesse sentido, Bernardes de Mello explica que:

45 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 20. 46 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 6-7.

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Diz-se válido o ato jurídico cujo suporte fáctico é perfeito, isto é, os seus elementos nucleares não têm qualquer deficiência invalidante, não há falta de qualquer elemento complementar. Validade, no que concerne a ato jurídico, é sinônimo de perfeição, pois significa a sua plena consonância com o ordenamento jurídico. Ao contrário, quando o suporte fáctico se concretiza suficientemente, mas (a) algum de seus elementos nucleares é deficiente (por exemplo vontade manifestada diretamente pelo absolutamente incapaz, ou pelo relativamente incapaz sem a presença do assistente, ou está eivada de vício invalidante, como erro, dolo, etc., ou, então, seu objeto é ilícito e impossível), (b) ou lhe falta algum elemento complementar (não foi observada a forma prescrita em lei, e.g.), o sistema jurídico o tem como ilícito, impondo-lhe como sanção a invalidade47.

Zeno Veloso, ao tratar da validade do negócio jurídico (uma das espécies

do ato jurídico em sentido amplo) registra que:

Validade, então, é o conjunto de requisitos que determinam a vigência de um negócio, seus elementos constitutivos, em conformidade com o ordenamento legal. O negócio jurídico é válido quando obedeceu a estes requisitos e inválido no caso contrário, acentuando-se que a invalidade comporta graus, conforme a gravidade e intensidade da infração à norma jurídica [...]. Porém, se no seu processo formativo houve falha, omissão, desvio, o negócio, embora existente, é inválido. Assim, a invalidade ocorre quando o negócio jurídico é defeituoso e imperfeito quanto aos requisitos que a lei aponta como essenciais para a sua validade. A invalidade é um valor negativo, representa uma pena, a conseqüência, a sanção civil que atinge determinado negócio, por ter sido ele praticado ao arrepio da lei, apresentando lacunas ou vícios na manifestação de vontade48.

Assim, para que se possa certificar se determinado ato jurídico é inválido

ou não, deve-se verificar os seus pressupostos de validade expressos no

ordenamento jurídico, mormente porque “as invalidades dependem de expressa

previsão legal”49. O art. 104 do Código Civil discrimina como sendo os pressupostos

de validade do ato jurídico lato sensu os seguintes requisitos:

Art. 104. A validade do negócio jurídico requer: I − agente capaz;

47 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 4-5. 48 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 10-11. 49 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 414.

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II − objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III − forma prescrita ou não defesa em lei50.

No entanto, não são apenas esses requisitos que, na sua ausência,

ensejam a invalidade dos atos jurídicos.

Essa numeração legal, como se vê, é insuficiente, incompleta, porque não menciona todas as causas que acarretam a invalidade de atos jurídicos, deixando de referir-se, explicitamente, à moralidade do objeto (Código Civil, art. 122, primeira parte) e à incompatibilidade com norma jurídica cogente (Código Civil, art. 166, VI), como também à inexistência de deficiências em elementos do suporte fáctico dos atos jurídicos, dentre as quais se incluem os vícios que afetam a higidez da manifestação da vontade e outros defeitos que comprometem a perfeição e causam a invalidade, por anulabilidade, do ato jurídico (Código Civil, art. 171), bem assim a falta de anuência de outras pessoas que, em certas situações, é exigida51.

A invalidade do ato jurídico pode ser aplicada em dois diferentes graus: (i)

nulidade e (ii) anulabilidade. Dessa forma, além dos pressupostos de validade

discriminados no art. 104 do Código Civil, é mister que se analise tanto as causas de

nulidade quanto aquelas de anulabilidade do ato jurídico para que, com segurança,

possa-se certificar a sua invalidade ou validade.

O art. 166 do Código Civil esclarece e detalha as hipóteses de nulidade.

Esse dispositivo registra como causas de nulidade do ato jurídico em sentido amplo

as seguintes hipóteses:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I − celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II − for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III − o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV − não revestir a forma prescrita em lei; V − for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI − tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII − a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

50 Ressalta-se que, apesar do caput do art. 104 do CC/2002, referir-se à negócio jurídico, esse

dispositivo também é aplicado para o ato jurídico stricto sensu, nos termos do art. 185 do CC/2002 que assim dispõe: “Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as disposições do Título anterior”.

51 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 21.

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O art. 167 do mesmo ordenamento civilista contempla a seguinte hipótese

específica de nulidade: “É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se

dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Por sua vez, o art. 171 discrimina as causas de anulabilidade dos atos

jurídicos:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I − por incapacidade relativa do agente; II − por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.

Nesse particular, ressalta-se, além dos casos que a própria norma jurídica

imputa a anulabilidade como sanção, a falta de assentimento de terceiro que a lei

considera imprescindível para a realização de determinados atos jurídicos, também,

é causa de anulabilidade52.

Em suma, nulidade e anulabilidade são espécies da invalidade do ato

jurídico que representam graus diferentes da sanção a ser aplicada àquele ato

jurídico que não atendeu a todos os seus pressupostos de validade. Trata-se de ato

jurídico deficiente que não se confunde com a insuficiência do suporte fático:

São defeitos dos atos jurídicos as faltas de elementos, ou a presença de fatos que tornam deficientes os suportes fácticos: entram êsses no mundo jurídico se fazem, assim, atos jurídicos, mas defeituosos. A vis absoluta, isto é, o ter sido arrancada a manifestação de vontade pela fôrça material, diretamente (= sem ser pela coação), não é causa de defeito, mas de insuficiência do suporte fáctico: não entra, por isso, no mundo jurídico53.

Bernardes Mello corrobora:

Pode ocorrer que o suporte fáctico suficientemente formado seja deficiente (a) por lhe faltar algum elemento complementar ou (b) porque algum de seus elementos nucleares seja imperfeito. Enquanto a suficiência do suporte fáctico se reflete no plano da existência – tendo-se por inexistente, o fato jurídico, quando o suporte fáctico é insuficiente –, a sua deficiência atua no plano da validade ou da eficácia, quer dizer, o fato jurídico existe, porém inválido (nulo ou anulável) ou ineficaz54.

52 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 21. 53 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 213. 54 MELLO, Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 90.

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Em outras palavras, “a insuficiência na formação do suporte fáctico

impede o surgimento do fato jurídico e, portanto, que se lhe possa atribuir qualquer

sentido jurídico”55. Lado outro, o ato jurídico deficiente é aquele que, embora

suficiente, ou seja, ingressado no mundo jurídico, apresenta falhas em seu suporte

fático e, por isso, pode ser nulo ou anulável.

A nulidade é o grau máximo da invalidade do ato jurídico.

Sobre o ato jurídico nulo, o jurista espanhol Frederico de Castro y Bravo

destaca:

É diferente o negócio nulo dos negócios anuláveis e dos negócios rescindíveis, aquele primeiro se caracteriza por estar afetado de uma nulidade absoluta ou radical. Entende-se então, como negócio nulo, aquele cuja ineficácia é intrínseca, isto é, cuja carência de efeitos negociáveis ocorre sem a necessidade de uma prévia impugnação do negócio56.

Em outras palavras, ato jurídico nulo é aquele que foi criado com graves

vícios, mormente porque colide com a ordem pública ou com os bons costumes e,

por isso:

a) são insanáveis as suas invalidades e irratificáveis, tanto que confirmação dêles, a rigor, não há, há firmação nova, ex nunc, e de modo nenhum confirmação; b) qualquer interessado, e não só figurante, pode alegar e fazer ser pronunciada a nulidade, dita, então, deficiência absoluta; c) o juiz encontrando-as, ainda se não argüidas, pode decretá-las; d) para suscitar o pronunciamento judicial sobre elas não precisa o interessado de propor demanda (ação ordinária, ou não), e até incindenter é suscitável; e) não corre prescrição da pretensão da nulidade; f) é sem efeito57.

Nesse particular, há exceções para as características da nulidade citadas

acima.

55 MELLO, Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 88. 56 Tradução nossa: Diferenciado el negocio nulo de los negócios anulables y de los negocios

rescindibles, se caracteriza el primero por estar afectado de una nulidad absoluta o radical. Entendiendose entonces, como negocio nulo, aquel cuya ineficacia es intrínseca (1), es decir, cuya carencia de efectos negociales ocurre sin necesidad de una previa impugnación del negocio (2). (BRAVO, Frederico de Castro y. El negocio jurídico, p. 471)

57 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 20-21.

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Apesar do art. 168 do Código Civil prescrever que as nulidades podem

ser alegadas por qualquer interessado ou pelo Ministério Público – quando couber a

este intervir – e, ainda, que as nulidades devem ser pronunciadas, de ofício, pelo

juiz, há nulidades em que isso não é possível. Bernardes de Mello afirma que se

trata das nulidades dependentes de alegação “aquela que, em face da

predominância dos interesses patrimoniais particulares, somente o interessado tem

legitimação para alegá-la, não sendo possível a sua decretação pelo juiz sem

provocação do figurante”58.

Pontes de Miranda também aponta essa exceção, registrando que,

quando a legislação requer a propositura de ação para a decretação da nulidade,

esta não poderá ser decretada de ofício pelo juiz59.

Ainda nesse contexto, ressalta-se que a parte que deu causa ao vício que

ensejou a nulidade do ato jurídico não tem legitimação60 para requerer a decretação

da nulidade.

Não é razoável permitir-se ao que assumiu um comportamento, uma conduta, voltar-se, depois, contra o seu próprio ato, em desrespeito à situação da outra parte, a quem beneficiava uma aparência de direito, mormente se este outro figurante agiu de boa-fé. Trata-se, sem dúvida, de exercício anômalo da demanda, de uso abusivo de faculdade processual61.

Ademais, pode haver casos excepcionais de se ter ato jurídico nulo,

porém que produza efeitos. Um exemplo dessa hipótese é o casamento putativo.

Em suma, a nulidade é a sanção mais enérgica que acarreta, em geral, a

ineficácia erga omnes do ato jurídico ex tunc o qual, por sua vez, não é sanável.

Lado outro, a anulabilidade constitui o grau mais leve das sanções de

invalidade imputáveis aos atos jurídicos. Os efeitos da anulabilidade são relativos às

pessoas diretamente envolvidas no ato jurídico e permanecem, integralmente, até

que sejam desconstituídos, mediante ação própria, podendo ser convalidados pela

58 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 77. 59 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 23. 60 Capacidade e legitimação são espécies de aptidão subjetiva para a prática de atos jurídicos, no

entanto, elas não se confundem. Aquela se trata do poder de exercer os direitos e praticar os atos da vida civil pessoalmente. Já a legitimação está vinculada à posição do sujeito relativamente ao objeto do direito; na titularidade do direito.

61 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 158.

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confirmação, pelo decurso do tempo ou pelo assentimento posterior, eliminando-se a

causa de invalidade.

Para se confirmar ato anulável, sanando-se a sua causa de anulabilidade,

basta a manifestação de vontade, tácita ou expressa, daquele que tem a legitimação

para alegar a anulabilidade no sentido de confirmar o ato jurídico anulável. Da

mesma forma o assentimento posterior, quando este for exigível, valida o ato jurídico

anulável.

O ato jurídico anulável produz efeitos. “Só os deixa de produzir quando

transita em julgado a sentença constitutiva negativa. Então, apagam-se, como se

não tivessem sido (eficácia ex tunc), os efeitos anteriores”62. Assim, o ato jurídico

anulável pode vir a ser válido.

Diferentemente do ato jurídico nulo que apresenta vícios, o ato jurídico

anulável possui defeitos. “O conceito de defeito é mais largo que o de vício. A

incapacidade relativa é defeito, sem ser vício; o dolo é vício e, pois, defeito. A falta

do assentimento da mulher ou do marido é defeito, não é vício” 63. Em outras

palavras, os defeitos não são falhas tão graves como as dos vícios e, por isso,

ensejam as causas de anulabilidade dos atos jurídicos.

Quanto à legitimação para se requerer a anulação de ato jurídico,

ressalta-se que apenas as pessoas a favor de quem se estabeleceu a regra jurídica

têm legitimação ativa para tanto. Por exemplo, a ação de anulação de ato jurídico

por falta de assentimento de outrem somente pode ser proposta por aquele que

deveria assentir.

62 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 35. 63 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 213.

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2.4.1 Invalidade e ineficácia

Conforme já mencionado, os fatos jurídicos podem passar por três planos

distintos: o da existência, o da validade e o da eficácia. Trata-se de situações

diversas, sendo inconcebível classificá-las como sinônimas.

Assim, não é admissível relacionar a invalidade dos atos jurídicos com a

sua ineficácia. Em geral, o ato jurídico nulo é ineficaz, no entanto, conforme já

destacado, há casos de atos jurídicos nulos, porém eficazes (casamento putativo).

Com exceção desses casos, decretada a nulidade do ato jurídico, em regra, não se

faz necessária a desconstituição dos efeitos do ato nulo, porque a aparência se

desfaz. Nesse sentido, Bernardes de Mello explica:

Afora essas excepcionais situações, o ato jurídico nulo é sempre ineficaz. A ‘eficácia’ que ele apresenta é apenas aparente. Passa-se no mundo dos fatos, não no mundo do direito. Aquele que ‘adquiriu’ um imóvel através de contrato de compra-e-venda nulo e o utilizou, na verdade, juridicamente não lhe adquiriu o domínio. A sua posse no bem é de ser presumida de boa-fé, como efeito mínimo do negócio jurídico nulo, mas sem justo título64.

Já o ato anulável produz todos os seus efeitos, até que tal ato jurídico e

os seus efeitos sejam desconstituídos por sentença judicial. “Desconstituído o ato,

desconstituem-se os efeitos que produziu. A desconstituição do ato tem efeitos ex

tunc, quanto à sua eficácia própria. Por esse motivo, as partes são restituídas ao

estado anterior ao ato, e não sendo possível serão indenizadas pelo equivalente

(Código Civil, art. 182)”65.

Decorrido o prazo decadencial ou prescricional66, sem que haja a

arguição de anulabilidade do ato jurídico, os efeitos deste tornar-se-ão definitivos.

64 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de existência, 2007, p. 231. 65 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de existência, 2007, p. 233. 66 “Pelo decurso do tempo, conforme a espécie, prescreve a pretensão a anular o ato e a ação

correspondente (=anulatória), ou preclui o direito à anulação. Não é o defeito, a anulabilidade, que prescreve ou preclui, mas a pretensão e a ação anulatória, ou o próprio direito à anulação. Prescrita a ação, encobre-se a pretensão e a ação anulatória, nascendo em favor do outro figurante (=aquele contra quem se pode alegar a anulabilidade) a exceção de prescrição. Por isso, mesmo decorrido o prazo prescricional, se a ação de anulação for proposta, e não for oposta pelo réu a exceção de prescrição, o juiz terá de decretar a anulabilidade do ato, salvo nas espécies que lhe é permitido, de ofício, conhecer da prescrição (CPC, art. 219, § 5°, e Código Civil, art. 194, in fine). [...] Se se trata de prazo de caducidade (= decadencial), o seu transcurso sem a propositura da ação de anulação

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Da mesma forma, os efeitos do ato anulável serão definitivos, caso haja,

espontaneamente, a concordância do ato, com ciência de seu defeito invalidante.

Percebe-se, portanto, que a ineficácia é, geralmente, consequência da

invalidade do ato jurídico, mas nem sempre decorrerá da invalidação deste. A

ineficácia pode ser determinada pela própria estrutura do ato jurídico ou ainda por

diversas outras causas. Zeno Veloso apresenta alguns exemplos:

O testamento, embora existente e válido, só tem eficácia com a morte do testador; o pacto antenupcial, igualmente, só se reveste de eficácia com a celebração do casamento dos contratantes; o negócio jurídico submetido a condição suspensiva, ainda que existente e válido, só produz efeito com o implemento da condição; da mesma forma o negócio subordinado a termo inicial; o contrato de compra e venda de imóvel só tem eficácia com o registro da escritura; a cessão de crédito não tem eficácia com relação ao devedor, senão quando a este notificada; a partilha amigável, feita entre herdeiros maiores e capazes, só produz efeito depois de homologada pelo juiz; na estipulação em favor de terceiro, a eficácia do negócio depende da aceitação do beneficiário67.

Verifica-se que a eficácia jurídica é a razão de ser do ato jurídico, sua

função, sua consequência principal. É improvável que alguém, por exemplo, declare

sua vontade para que não gere qualquer sentido e/ou efeito. Todavia, consoante já

destacado, há casos em que o ato jurídico vale, mas não produz efeitos, ensejando

a ineficácia jurídica.

Na sua obra “Teoria do fato jurídico: plano da eficácia”, Bernardes de

Mello define a ineficácia jurídica como sendo a inaptidão do fato jurídico para irradiar

os seus efeitos que a norma jurídica lhe imputa, sendo que essa inaptidão pode ser

temporária ou permanente. Ainda, o autor emprega a expressão ineficácia jurídica

da seguinte forma:

em sentido lato, quando se refere a toda e qualquer situação em que o fato jurídico não produz efeito, ou ainda não produziu, como ocorre nos casos em que a ineficácia é inerente ao próprio fato jurídico ou decorre de certas vicissitudes a que estão sujeitos os atos jurídicos, v.g., nulidade, anulabilidade, resolubilidade; ou

ou a alegação da anulabilidade como defesa em ação contra o legitimado para pedi-la convalida, simplesmente, o defeito anulante. A caducidade (=decadência) atinge, extinguindo, o próprio direito e por isso opera de pleno iure e independe de alegação”. (MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de existência, 2007, p. 233)

67 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 22-23.

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em sentido estrito, quando diz respeito às espécies em que a eficácia própria e final não se irradiou ainda (testamento, antes da morte do testador, negócio jurídico sob condição suspensiva, negócio jurídico dependente de elemento integrativo, e.g.) ou, se já produzida, foi excluída do mundo jurídico68.

Nesse contexto, vale ressaltar que quando a ineficácia é causada pela

nulidade do ato jurídico, pode-se dizer que aquela é originária, porque foi

determinada por um vício verificado no momento do surgimento do ato jurídico.

Lado outro, quando a ineficácia decorre de fato futuro, como, por

exemplo, de um distrato, da não realização da condição resolutiva, tem-se a

ineficácia superveniente.

De uma outra forma, de acordo com Zeno Veloso, a invalidade é sempre

originária, “decorre de um vício intrínseco, está conectada com a formação, a

gênese, o nascimento do negócio jurídico. Se este nasceu válido, é válido para

sempre”69.

Ainda, pode-se diferenciar a ineficácia em absoluta e relativa. Há

ineficácia relativa quando os efeitos do ato jurídico não se produzem apenas em

relação a algum ou a alguns sujeitos de direito, porém, irradiam-se relativamente a

outro ou a outros sujeitos de direito70.

Sobre a ineficácia relativa, Zeno Veloso registra que “Há casos, todavia,

em que considerando as circunstâncias, a lei recusa efeitos ao negócio. Nestes

casos, a ineficácia não atinge os atos, em si, pois eles são válidos, mas impede que

os seus efeitos se projetem a determinadas pessoas. Daí esta categoria jurídica ser

chamada ineficácia relativa”71.

“Em geral, a interferência não autorizada na esfera jurídica de terceiro

acarreta a ineficácia relativa do ato jurídico, quando não há nulidade”72.

Exemplo clássico de ineficácia relativa é a compra de bem imóvel a non

domino, ou seja, de quem não é o seu legítimo dono. Nesta hipótese o ato jurídico

de compra e venda será ineficaz em relação ao legítimo titular do bem imóvel. Não

haverá a transmissão efetiva da propriedade, mas irradiar-se-ão os efeitos

obrigacionais desse ato jurídico referentes aos contratantes. Assim, a alienação por

68 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, p. 61. 69 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 25. 70 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, p. 65. 71 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 25. 72 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da eficácia, p. 65.

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non domino não constitui ato nulo, porque este é válido. Trata-se de espécie de

ineficácia em relação ao legítimo proprietário, mormente porque pode acontecer do

alienante adquirir a propriedade do bem imóvel vendido, posteriormente à alienação,

hipótese esta que o ato jurídico de compra e venda tornar-se-á eficaz.

Em suma, pode-se distinguir a invalidade e a ineficácia da seguinte forma.

Aquela se dá quando o ato jurídico não preenche todos os seus pressupostos de

validade, ensejando a nulidade ou a anulabilidade. Já a ineficácia ocorrerá quando o

ato jurídico, por qualquer outra razão, não produza os efeitos para o qual ele foi

realizado73.

2.4.2 Ato ilícito e ato jurídico inválido

A ilicitude importa sempre na contrariedade do direito, ou seja, na

violação das normas jurídicas. No entanto, essa contrariedade ao direito não é

suficiente para caracterizar a ilicitude. O art. 188 do Código Civil dispõe claramente

que:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I − os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; II − a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.

Nas hipóteses elencadas no referido dispositivo legal, “a contrariedade a

direito entra no mundo jurídico desvestida de ilicitude, motivo pelo qual produz

outros efeitos que não os próprios do ilícito. Portanto, para que a contrariedade a

direito componha o suporte fáctico do fato ilícito lato sensu, é necessário que não

haja normas jurídicas que dela pré-excluam a ilicitude, especificamente”74.

73 BRAVO, Frederico de Castro y. El negocio jurídico, p. 463. 74 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 223-224.

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Ainda, deve-se registrar que a ilicitude também exige, como pressuposto

essencial, a imputabilidade. Assim, o absolutamente incapaz não comete ato ilícito,

porque não é imputável75.

A doutrina diverge no que tange à caracterização do ato ilícito. Zeno

Veloso entende que:

Os atos jurídicos em sentido estrito e os negócios jurídicos [...] têm um ponto importante em comum: eles só são admitidos se realizados conforme o ordenamento legal [...]. A liceidade é da essência dos mesmos. Há casos, todavia, em que a conduta humana contrapõe-se à ordem jurídica. Se o procedimento está em desacordo com o ordenamento, surge o ato ilícito, que é lesivo ao direito de outrem e gera deveres para o responsável [...]. Os atos ilícitos geram conseqüências, produzem, também, efeitos jurídicos, mas efeitos impostos pela lei, contra a vontade do agente, do responsável, do causador do dano, com o fito de restabelecer a ordem jurídica turbada pelo ato praticado. Ao contrário do que acontece nos atos jurídicos em geral (tanto no ato jurídico stricto sensu como no negócio jurídico), nos atos ilícitos não há nexo de causalidade entre a vontade e os efeitos jurídicos. Não é a vontade, o querer do agente, mas a responsabilidade do causador do dano que prepondera e produz conseqüências. O nexo de causalidade que se exige é entre o dano e a ação. A responsabilidade civil decorre de um vínculo entre a ação – elemento constitutivo da responsabilidade – e o dever de indenizar o dano76.

Percebe-se que o entendimento do referido autor é que os atos ilícitos

não estão inseridos na classificação dos atos jurídicos, ou seja, para o autor, estes

somente podem ser lícitos. Nesse mesmo sentido Caio Mário corrobora:

Não são todas as ações humanas que constituem atos jurídicos, porém apenas as que traduzem conformidade com a ordem jurídica, uma vez que as contravenientes às determinações legais vão integrar a categoria dos atos ilícitos, de que o direito toma conhecimento, tanto quanto dos atos lícitos, para regular-lhes os efeitos, que divergem, entretanto, dos destes, em que os atos jurídicos produzem resultados consoantes com a vontade do agente, e os atos ilícitos sujeitam a pessoa que os comete a conseqüências que a ordem legal lhes impõe (deveres ou penalidades)77.

75 Apesar do absolutamente incapaz não ser imputável, ele responde com os seus bens pelos

eventuais danos causados, nos termos do art. 928 do Código Civil Brasileiro. 76 VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, p. 13-14. 77 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, p. 302.

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Orosimbo Nonato também entende que os atos ilícitos não são atos

jurídicos:

Nem todos os atos jurígenos são atos jurídicos, porque não se armam ao fim imediato de produzir a conseqüência de direito querida pelo agente. O delito é ato e gerador de responsabilidade, e, pois, de direitos, mas deixa de constituir ato jurídico por não ser aquela a conseqüência a visada pelo agente. O ato jurídico é suscitado para o fim imediato de produzir efeitos jurídicos. Dos três caracteres essenciais do ato jurídico – a voluntariedade, a licitude e a intenção direta de produzir um efeito de direito –, é êste último o de realce maior, na distinção com os outros atos jurígenos78.

Vicente Ráo79 e Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald também

se filiam a essa corrente que entende que somente são atos jurídicos aqueles lícitos,

ou seja, de acordo com o ordenamento legal80.

Por sua vez, há doutrinadores que consideram o ato ilícito como, também,

um ato jurídico. Filiam-se a essa corrente Pontes de Miranda e Bernardes de Mello.

Pontes de Miranda pontua que:

Tem-se insistido, demais, em separar os atos ilícitos e os atos jurídicos. Em verdade, a regra jurídica incide sôbre aquêles como sôbre êsses; colore-os; dá-lhes entrada no mundo jurídico. Êsses são atos cuja eficácia é ativa; aquêles, atos cuja eficácia é reativa. Falar-se de atos jurídicos como se só fossem tais os atos humanos que não importam em reação já é diminuir o sentido de atos jurídicos, isto é, reduzi-los aos atos não-contrários ao direito, em vez de os considerar como classe de atos sôbre que incide a regra jurídica. Nesse sentido, o crime, o ato ilícito, é ato + incidência da regra jurídica; e essa é a definição mesma do ato jurídico. Os crimes são atos jurídicos; porque atos jurídicos não são somente os atos conforme o direito, os atos (lícitos) sôbre os quais a regra jurídica incide, regulando-os; são-no também os atos ilícitos, sôbre os quais incidem regras penais, ou de ofensa aos direitos absolutos, ou de reparação dos danos, ou de violação dos direitos de crédito, ou outros.

78 NONATO, Orosimbo. Da coação como defeito do ato jurídico, p. 16-17. 79 RÁO, Vicente. Ato jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais − O problema

do conflito entre os elementos volitivos e a declaração, p. 34. 80 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 381.

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Os atos jurídicos consistem em declarações ou manifestações de vontade reguladas pela lei, forma suporte fáctico de regras jurídicas, que os classificaram e lhes regulam a eficácia jurídica. Os atos ilícitos, penais ou civis, são tratados como reprovados e reguladas pelas regras jurídicas as suas conseqüências. As conseqüências dos atos ilícitos são criações das regras jurídicas, para os reprovar. Tais atos ilícitos são, por vêzes, simples infrações de obrigações pessoais81.

Deve-se entender como mais razoável e técnico o entendimento de

Pontes de Miranda, na medida em que os atos jurídicos inválidos, apesar de

também serem contrários ao direito, assim como os atos ilícitos, são classificados

como atos jurídicos. Entretanto, os efeitos dos atos jurídicos inválidos poderão ser

desconstituídos (ato jurídico anulável) ou, em regra, não serão produzidos (ato

jurídico nulo). Isso por serem deficientes em consequência do seu não atendimento

a todos os pressupostos de validade.

Outrossim, de acordo com o art. 166, inciso II, do Código Civil, a ilicitude

do negócio jurídico (espécie de ato jurídico lato sensu) enseja a sua nulidade. O

inciso VI daquele mesmo dispositivo legal também dispõe que o negócio jurídico é

nulo quando objetiva fraudar a lei imperativa. Ou seja, a ilicitude também está

presente nos atos jurídicos, não sendo, portanto, razoável entender que apenas são

atos jurídicos aqueles que apresentarem licitude.

Ainda, Pontes de Miranda acrescenta:

Porque dizer-se que é jurídico não é afirmar-se que está de acôrdo com a lei, e sim que entra no mundo jurídico, como relevante. Noutros termos, que houve suporte fáctico suficiente para que a regra jurídica incidisse; e a regra jurídica incide: ou fazendo o suporte fáctico negócio jurídico, ou fazendo-o ato jurídico stricto sensu, ou ato-fato jurídico, incluídos os atos reais, ou atos ilícitos de direito privado ou de direito público, ou fato jurídico stricto sensu82.

Nesse contexto e, considerando que os atos ilícitos também são atos

jurídicos, percebe-se a necessidade de se diferenciar o ato jurídico inválido do ato

ilícito. Para tanto, deve-se pontuar a classificação do fato jurídico ilícito.

Os fatos jurídicos ilícitos são divididos em: (i) fato stricto sensu ilícito –

aqueles decorrentes de fatos da natureza. Há casos em que a ilicitude pode-se

resultar de simples fato da natureza, como acontece sempre que alguém responde 81 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 79-80. 82 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. I, p. 76.

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pelo caso fortuito ou de força maior83; (ii) ato-fato ilícito – “Quando alguém faz mau

uso de sua propriedade e causa dano a terceiro, há um ato-fato ilícito; não importa a

vontade de prejudicar, mas o simples fato do prejuízo (ou ameaça) à segurança,

sossego e saúde dos vizinhos”84; (iii) ato ilícito lato sensu – toda ação ou omissão

voluntária, culposa ou não, praticada por pessoa imputável, que gere infração, viole

direito ou cause prejuízo a alguém.

Por sua vez, o ato jurídico lato sensu é subdividido em: (i) ato ilícito stricto

sensu ou ato ilícito absoluto e (ii) ato ilícito relativo.

De acordo com Bernardes de Mello85, tem-se um ato ilícito absoluto

quando o direito violado é direito absoluto, ou seja, aquele que cabe a todos, não

subjetivo: direitos transindividuais ou de interesses difusos, por exemplo, proteção

ao meio ambiente, interesses religiosos ou morais. Ainda, para se ter um ato ilícito

absoluto é necessário que não haja relação jurídica entre o ofensor e o ofendido ou,

caso haja, que essa relação seja de direito absoluto. Outrossim, é importante

destacar que todo ato ilícito absoluto é danoso (dano material e/ou moral) e, por

consequente, gera a reparabilidade desse dano, mediante a indenização.

Assim, percebe-se que “a referência feita pelo art. 186 do Código Civil a

violar direito implica ter-se como ilícito o ato que infrinja direito que não seja direito

subjetivo, como os direitos transindividuais”86. O ato ilícito absoluto, portanto, está

definido no art. 186 do Código Civil87.

Lado outro, de acordo com o mesmo autor, não se tem atos ilícitos

apenas quando há a contrariedade a direito de ordem pública e de interesses

difusos. Pode-se ter um ato ilícito relativo ou ilícito contratual quando haja

contrariedade a direito subjetivo, ou seja, a direito, cujo sujeito passivo é

determinado ou individuado, como nos casos de direitos decorrentes de negócio

jurídico ou de ato jurídico stricto sensu. Vicente Ráo, corroborando, registra que “a

83 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 239. 84 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 240-241. 85 Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 14. ed. São Paulo:

Saraiva, 2007. 86 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, 2008, p. 224-225. 87 “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e

causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

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velha questão de se saber se o ilícito constitui uma violação do direito objetivo, ou do

direito subjetivo, acha-se, hoje, totalmente ultrapassada [...]”88.

Ainda, Bernardes de Mello acrescenta que: “Todo ato de violação de

direito, cuja conseqüência seja sua invalidade, constitui um ato ilícito invalidante.

São, em essência, atos ilícitos relativos, porque a invalidação somente se passa no

plano dos direitos relativos”89. Diante disso, o mencionado autor vai ainda além do

que toda a doutrina já referida neste estudo e conclui que os atos jurídicos inválidos

(nulos ou anuláveis) são atos ilícitos de categoria especial, sendo que a nulidade e a

anulabilidade constituem sanções que o sistema jurídico impõe a essa espécie

peculiar de ilicitude90.

Vale citar a explicação do autor:

[...] a contrariedade a direito constitui, como elemento cerne, o núcleo do suporte fáctico da ilicitude, sendo, assim, dado essencial para a existência do fato ilícito lato sensu. Ato ilícito lato sensu (espécie de fato ilícito) é, portanto, todo ato jurídico cujo suporte fáctico tenha como cerne a contrariedade a direito. Partindo dessa concepção, parece bastante evidente que o ato jurídico inválido (nulo ou anulável) não pode ter outra natureza se não a de ato ilícito, uma vez que, conforme a espécie, a invalidante é uma penalidade que o direito atribui, em geral, a atos jurídicos que: (a) impliquem infração de norma jurídica cogente, que não preveja sanção diferente para o caso de sua violação, ou (b) resultem de defeitos na manifestação de vontade que, algumas vezes, decorre mesmo da prática de atos, já ilícitos por essência, que visam a distorcer a formação da vontade negocial (dolo e coação), e que, em outros casos, têm por finalidade verdadeira causar prejuízo a alguém especificamente (casos de simulação nocente e de fraude contra credores). Não há dúvida de que, em todo plano jurídico, a questão da invalidade dos atos jurídicos está diretamente relacionada com o problema da violação das normas jurídicas91.

Com efeito, a contrariedade ao direito está presente tanto no ato ilícito

quanto no ato jurídico inválido. Naquele constitui o seu cerne e neste o fundamento

de sua invalidade. Assim, considerando que ato ilícito também é classificado como

88 RÁO, Vicente. Ato jurídico: noção, pressupostos, elementos essenciais e acidentais. O problema do

conflito entre os elementos volitivos e a declaração, p. 35. 89 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 252. 90 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 252. 91 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 252.

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um ato jurídico, pode-se dizer que o entendimento de Bernardes de Mello92

consegue, com categoria, explicar a distinção e a relação entre o ato ilícito e o ato

jurídico inválido, classificando este como espécie integrante do fato ilícito lato sensu.

Em suma, pode-se entender que os atos ilícitos são uma espécie dos atos

jurídicos lato sensu, sendo que, quando há um ato jurídico inválido, tem-se um ato

jurídico invalidande que, por sua vez, é uma espécie dos fatos jurídicos ilícitos lato

sensu no que tange à sua eficácia.

92 Cf. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

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3 A OUTORGA CONJUGAL NOS ATOS JURÍDICOS

O Código Civil de 1916 foi fundado na desigualdade entre homens e

mulheres. Esse ordenamento civilista incluía as mulheres como pessoas

relativamente incapazes; proibi-as de exercer profissão e de residir fora do lar, salvo

se com prévia autorização do marido; impedi-as de exercer tutela, curatela ou ainda

de aceitar mandato.

De acordo com Washington de Barros Monteiro, “foi o cristianismo que,

glorificando a maternidade, primeiramente iniciou a dignificação da mulher”93. Ainda,

acrescenta o autor que Madeleine Gevers, da Universidade de Bruxelas, contribuiu

para o término do tratamento desigual entre homens e mulheres ao afirmar que “a

incapacidade da mulher casada deveria ser havida como instituição arcaica [...]”94.

No Brasil, foi com a promulgação do Estatuto da Mulher Casada (Lei n.

4.121 de 1962) que se iniciou o movimento legislativo de equiparação entre homem

e mulher no casamento, diminuindo algumas das desigualdades expressas no

Código Civil de 191695, mas foi a Constituição da República de 1988 que consagrou

a igualdade entre homens e mulheres96. No entanto, mesmo após a promulgação da

Constituição da República de 1988, as desigualdades do Código Civil de 1916 ainda

permaneciam97, sendo que estas foram alteradas apenas com a vigência do Código

Civil de 2002.

93 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família, p. 163. 94 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família, p. 163. 95 “[...] as mulheres casadas foram excluías do elenco das pessoas relativamente incapazes (art. 6°

do Cód. Civil), mas ao marido continuou a caber a chefia da sociedade conjugal, embora devesse exercê-la com a colaboração da mulher (art. 233, caput), e a mulher adquiriu a titularidade do poder familiar, que antes era exclusivamente do marido, porém seu exercício competia ao pai, sendo a mãe apenas colaboradora nesse mister (art. 380, caput e parágrafo único)”. [MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família, p. 164].

96 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I − homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição [...]. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 5º − Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”

97 “A alteração introduzida no art. 6° do Código Civil pela Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, pôs termo à incapacidade relativa das mulheres casadas, que as impedia de se obrigar, exceto com a autorização dos maridos, concedida por instrumento público ou particular, ou se exercessem comércio em seus próprios nomes. Desde então puderam contrair obrigações, inclusive cambiárias, pelas quais somente respondiam os bens particulares e os comuns até o limite de suas meações.

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O Código Civil de 2002, aplicando o princípio constitucional da igualdade,

determina que “a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo

marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos” (art. 1.567). Ainda,

a administração dos bens comuns do casal passou a competir a qualquer dos

cônjuges (art. 1.663), sendo que, em qualquer regime de bens, o marido e a mulher

podem praticar livremente todos os atos necessários ao desempenho de suas

profissões, com as limitações referentes à alienação e constituição de ônus reais

sobre bens imóveis (art. 1.647, inciso I), bem como exercer administração dos bens

próprios (art. 1.642, incisos I e II).

Ainda, de acordo com o art. 1.643, independe de autorização do outro

cônjuge a compra, ainda que a crédito, das coisas necessárias à economia

doméstica, bem como o empréstimo das quantias indispensáveis para aquele fim,

sendo que os cônjuges serão responsáveis solidários pelas dívidas contraídas com

esse fim (art. 1.644).

O Código Civil de 2002 estabeleceu, também, de forma igualitária, as

limitações à atuação unilateral do marido e da mulher. Isso pode ser verificado pelo

texto normativo do art. 1.647 que assim dispõe:

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I − alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II − pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; III − prestar fiança ou aval; IV − fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada.

O mencionado dispositivo exige a outorga conjugal, tanto do homem

quanto da mulher, para a prática dos atos jurídicos (ato jurídico stricto sensu ou

O art. 242, IV, do Código Civil de 1916 proibia a mulher de contrair obrigações, sem autorização do marido, que pudessem importar em alheação de bens do casal. Apesar de extinta a incapacidade relativa, com a revogação do art. 6°, II, as mulheres continuaram dependentes de autorização dos maridos, ou de suprimento judicial para se obrigarem. No caso de suprimento judicial, conforme o art. 245, parágrafo único, os bens próprios dos maridos não respondiam pelo cumprimento das dívidas; no de autorização, de acordo com o disposto no art. 253, respondiam os bens do casal, se o regime matrimonial fosse o da comunhão, e somente os particulares da mulher nos outros, a menos que os maridos se obrigassem conjuntamente”. (FARIA, Werter R. O aval, o código civil e os bancos. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 49-50)

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negócio jurídico) discriminados em seus incisos. Tal exigência deve ser restrita às

hipóteses contidas no art. 1.647 do Código Civil, porque se trata de restrição a

direitos e, portanto, não pode haver interpretação extensiva98.

De acordo com Didier Júnior e Cristiano de Farias, essas limitações à

atuação unilateral do marido e da mulher referem-se à hipótese de ilegitimidade para

a prática dos atos jurídicos arrolados pelo art. 1.647 do Código Civil. Para os

autores, ainda que o cônjuge seja, a princípio, uma pessoa capaz, isto é, apta para a

prática dos atos da vida civil, ele não tem legitimidade para, sem o consentimento do

outro, praticar os mencionados atos jurídicos, ou seja, o cônjuge não tem a

capacidade específica para a prática desses determinados atos99.

A exigência da autorização do cônjuge para a realização dos atos

jurídicos prescritos no mencionado artigo não abrange a situação em que o regime

de bens adotado pelo casal for o da separação absoluta100. Nesta hipótese, os

98 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito

patrimonial, p. 258. 99 DIDIER JÚNIOR, Fredie; FARIAS, Cristiano Chaves de. Comentários ao código civil brasileiro: do

direito de família – Direito patrimonial, p. 68. 100 Em 4/2/2010, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou discussão sobre a

abrangência da ressalva destacada no art. 1.647, III, do CC/02, isto é, se a expressão “separação absoluta” abrangeria ou não o regime de separação de bens por imposição legal. De acordo com o at. 1.641 do CC/02: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I − das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; II − da pessoa maior de sessenta anos; III − de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial”. Entendeu a Terceira Turma que a separação obrigatória de bens, ou seja, a imposta por lei, não se enquadra na exceção registrada pelo art. 1.647, III, do CC/02. Isso porque, de acordo com o voto do Ministro Massami Uyeda: “[...] a separação de bens, quando adotada por livre manifestação de vontade, consiste, em verdade, em um ato de liberalidade por meio do qual ambos os nubentes optam por permanecer na exclusiva administração de seus bens. Portanto, quem manifesta, em pacto antenupcial, o desejo de contrair casamento sob o regime da separação convencional de bens, já de antemão, tem a plena consciência de que cada patrimônio estará submetido à livre gestão de seu titular, não havendo, assim, qualquer expectativa de um consorte quanto aos bens de propriedade do outro. É dizer, assim, que a separação de bens, na medida em que faz de cada consorte o senhor absoluto do destino de seu patrimônio, implica, de igual maneira, na prévia autorização dada reciprocamente entre os cônjuges, para que cada qual disponha de seus bens como melhor lhes convier. Eis, assim, a razão de o artigo 1.647 do Código Civil ressalvar a necessidade de outorga para a prática de aval quando o regime for o da "separação absoluta". Veja-se, entretanto, que o mesmo não ocorre quando o estatuto patrimonial do casamento é o da separação obrigatória de bens. Nestas hipóteses, a ausência de comunicação patrimonial não decorre da vontade dos nubentes, ao revés, de imposição legal ex vi o disposto no artigo 1.641 da lei civil [...]. Portanto, verificadas as sobreditas hipóteses, o legislador já prevê qual o regime patrimonial deverá vigorar, não deixando margem de escolha aos contraentes. Logo, se na separação convencional há implicitamente a outorga prévia entre os cônjuges para que livremente disponham de seus bens como bem entenderem, o mesmo não se verifica na separação obrigatória, porquanto o regime patrimonial decorreu de expressa imposição do legislador. Não se olvide, ainda, que o Supremo Tribunal Federal sumulou o entendimento segundo o qual ‘no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento’ (Súmula n. 377/STF), o que deixa

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cônjuges têm total liberdade de administração e disposição de seu patrimônio, razão

pela qual prescindem da outorga conjugal para prática de qualquer ato.

As vedações são aplicáveis aos regimes de bens de comunhão parcial, de comunhão universal e de participação final de aqüestos. Os cônjuges, casados sob regime de separação absoluta de bens (arts. 1.687 e 1.688 do Código Civil), não estão a elas sujeitos, podendo praticar os mesmos atos sem autorização do outro, dada a natureza desse regime. Do mesmo modo, estão desimpedidos os companheiros da união estável que tenham realizado contrato entre si estipulando a separação absoluta de bens101.

Lado outro, na falta da outorga conjugal para a realização dos atos

jurídicos discriminados no art. 1.647 do Código Civil, o dispositivo seguinte a este

(art. 1.648 do CC) admite a possibilidade de suprimento judicial da autorização em

duas hipóteses: (i) no caso de haver recusa sem justo motivo e (ii) na hipótese de

ser impossível ao cônjuge a concessão da outorga.

A lei não esclarece nem determina quais seriam os casos de recusa

imotivada da outorga conjugal. Assim, entende-se que fica a cargo do livre

consentimento do juiz que, ponderando e analisando as circunstâncias e as provas

de cada caso, irá refletir se a negativa do cônjuge tem fundamento ou não. Esse

pensamento é confirmado por Washington de Barros102, Didier Júnior e Cristiano de

Farias103.

Ainda nesse particular, Netto Lôbo demonstra as seguintes situações em

que a recusa do cônjuge não teria justo motivo:

[...] quando se prova que o ato é vantajoso ou necessário para ambos os cônjuges e para o conjunto familiar e nenhuma razão é apresentada para a falta de autorização. O mesmo ocorre quando o ato de liberalidade (fiança, aval, doação) não leva a riscos

transparecer que, neste regime, ao contrário do que ocorre na separação convencional, cada cônjuge guarda consigo a expectativa de, eventualmente, se beneficiar de parcela do patrimônio do outro”. (STJ. Recurso Especial 1163074/PB. Terceira Turma. Relator Massami Uyeda. Data do Julgamento 4/2/2010. Acesso em www.stj.js.br – 22/3/2010) Portanto, consoante o mencionado julgado, a ressalva determinada pelo art. 1.647, III, do CC/02, no sentido de não ser necessária a outorga conjugal, quando os cônjuges forem casados sob o regime de separação absoluta de bens, não abrange a hipótese em que ao casal tiver sido imposto, legalmente, o regime da separação absoluta.

101 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito patrimonial, p. 258.

102 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família, p. 176. 103 DIDIER JÚNIOR, Fredie; FARIAS, Cristiano Chaves de. Comentários ao código civil brasileiro: do

direito de família – direito patrimonial, p. 79.

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desarrazoados ao patrimônio familiar. Quando o ato de disposição é relativo a bem particular do cônjuge que deseja realizá-lo (vender, constituir ônus real, doar), a justificativa da recusa à autorização deve ser extremamente relevante, para que não se converta em capricho104.

Por sua vez, há também a possibilidade de se ter suprimento judicial da

necessária outorga conjugal, na hipótese de o cônjuge estar impossibilitado de

conceder a sua autorização. Trata-se de situações em que o cônjuge se encontra

desaparecido ou sem comunicação; ou esteja incapacitado de manifestar sua

vontade, como por exemplo, no caso de interdição ou de doenças graves.

Noutro norte, caso não haja permissão legal para que a ausência da

outorga conjugal possa vir a ser suprida judicialmente, o ato cuja autorização seja

essencial para sua realização, praticado por um só dos cônjuges, sem o

consentimento do outro, poderá ser anulado por este. É o que dispõe o caput do art.

1.649 do Código Civil: “A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando

necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge

pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal”.

Percebe-se que o mencionado dispositivo impõe prazo decadencial do

direito potestativo de se requerer a anulação do ato praticado sem a devida outorga

conjugal. “Nesse caso, o termo inicial equivale a condição suspensiva, justificada

pela maior liberdade do cônjuge para litigar contra outro, sem o constrangimento da

convivência conjugal”105.

Tratando-se de anulabilidade, conforme estudado no capítulo anterior, o

ato jurídico cuja outorga conjugal é necessária, é passível de confirmação pela parte

a quem interessa: “A aprovação torna válido o ato, desde que feita por instrumento

público, ou particular, autenticado” (parágrafo único, do art. 1.649 do CC). Isso é

exatamente o que também dispõe o art. 176 do Código Civil: “Quando a

anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se

este a der posteriormente”. Sobre a possibilidade de ratificação/aprovação do ato,

Netto Lôbo complementa que isso deve ser feito dentro do prazo decadencial

destacado pelo art. 1.649 do Código Civil, sob pena do ato jurídico restar

convalidado. Ainda, esclarece o autor que: 104 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito

patrimonial, p. 258. 105 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito

patrimonial, p. 264.

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Para fins específicos da aprovação conjugal posterior, impõe-se o instrumento público ou particular autenticado. Não determina a lei que para a escritura pública seja necessária a aprovação por instrumento público, podendo ser utilizada uma forma ou outra, a critério do cônjuge convalidador. Autenticado, para os fins da norma, é declaração escrita de aprovação, com firma reconhecida106.

De outra forma, a lei não previu a forma para o

consentimento/autorização, diferentemente do que fez com a aprovação/ratificação

do ato realizado sem a outorga conjugal, que se trata de um consentimento dado

após a prática do respectivo ato.

De acordo com o art. 107 do Código Civil, “A validade da declaração de

vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a

exigir”.

Assim, pode-se entender que a outorga conjugal poder-se-á efetivar de

forma livre, sendo que a sua comprovação dar-se-á do mesmo modo em que se

provaria a validade do ato jurídico, cuja autorização é necessária. É o que dispõe o

art. 220 do Código Civil: “A anuência ou a autorização de outrem, necessária à

validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que

se possa, do próprio instrumento”. Por precaução, de acordo com Humberto

Theodoro Júnior, o melhor é que a outorga conjugal seja dada no próprio

instrumento do ato jurídico, com o objetivo de se eliminar “os riscos de divergência”

entre os termos do consentimento e do ato jurídico autorizado e realizado107.

De qualquer forma, ressalta-se que essa autorização não pode ser

elaborada de forma genérica. Nos termos do art. 173 do Código Civil, “o ato de

confirmação deve conter a substância do negócio celebrado e a vontade expressa

de mantê-lo”.

Por fim, cumpre registrar que o art. 1.650 do Código Civil restringe a

legitimidade de arguição da invalidade do ato jurídico praticado sem a outorga

conjugal àquele cônjuge a quem cabia concedê-la ou aos seus herdeiros. Assim, a

invalidade do ato em questão, mormente porque se refere ao grau de anulabilidade,

106 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código civil comentado: direito de família, relações de parentesco, direito

patrimonial, p. 264. 107 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código civil, p. 465.

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52

não poderá ser pronunciada, de ofício, pelo juiz, nem por requerimento da parte

adversa.

3.1 Da outorga conjugal na fiança

Antes de se adentrar no tema específico sobre a outorga conjugal na

fiança, é válida e necessária a análise do conceito da fiança, de suas principais

características e natureza jurídica para que se possa compreender, com precisão, o

tema ora abordado.

3.2 Da fiança: conceito, características e natureza jurídica

De acordo com Clovis Bevilaqua entende-se que

fiança é a promessa feita, por uma ou mais pessôas, de satisfazer a obrigação de um terceiro, para maior segurança do credor. Póde ser: 1°, legal, quando é exigida por lei, como no caso da entrega de bens de ausentes; 2°, judicial (civil ou criminal), quando é ordenada pelo juiz ex-officio ou a requerimento de parte; 3°, convencional, quando é um meio de assegurar o cumprimento das obrigações, sob a forma de um contracto accessorio108.

No que tange à classificação da fiança mencionada por Clovis Bevilaqua,

Pontes de Miranda corrobora, registrando:

Quase sempre, a chamada fiança legal é a fiança que se presta por haver relação jurídica, criada pela lei, de que resulta o dever de afiançar. Pode ser que a lei dê ao juiz decidir se é necessária a fiança, ou se basta a fiança (em vez, por exemplo, do depósito ou da caução), ou se a fiança, necessária, ou não, foi bem prestada. Então, na linguagem corrente, se diz fiança judicial109.

108 BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações, p. 401. 109 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 94.

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No mesmo sentido, inclui-se o pensamento de Carvalho de Mendonça110

e Othon Sidou, sendo que este pontua que:

Quanto à procedência, a fiança configura-se pelas espécies convencional, legal e judicial. A primeira espécie qualifica a que decorre apenas da manifestação de vontade. A fiança legal é, como o seu nome indica, a exigida por lei, e não poucas vezes nela aparece oferecendo a alternativa de ser prestada ‘garantia real ou fidejussória’. É de natureza preventiva, e mais comum a que se vincula à medida cautelar, para evitar lesão de direito subjetivo. A outra espécie, fiança judicial, surge por imposição do juiz a uma das partes no processo, para garantir o equilíbrio da ação, no ensinamento de Laurent. Tem também por escopo resguardar direitos individuais111.

Acrescenta esse último autor que os Códigos civis francês, argentino e

mexicano fazem particular e expressa referência a essas três “categorias” de fiança

(convencional, legal e judicial). Lado outro, o “estatuto italiano vigente”, o código

português de 1966 e o Código Civil Brasileiro não se referem, expressamente, a

elas112.

O atual Código Civil Brasileiro, por meio de seu art. 818 e seguintes, trata

da fiança convencional que é a que será analisada nesta pesquisa. No entanto,

antes de se adentrar ao seu conceito, é importante destacar que a terminologia

“fiança” não pode ser tratada como sinônima de “caução”. Nesse particular, Pontes

de Miranda ressalta que:

Por vêzes, em leis e decretos de pouca atenção à terminologia, aparece a fiança como caução, e a caução como espécie de fiança, ou vice-versa; e.g., ‘prestará caução’, ‘prestará fiança’ (no sentido de fiança ou caução). O intérprete tem de descer ao exame do que se diz na lei, a despeito das palavras; e ao expositor compete limpar de tais erronias ou confusões a terminologia. Dificilmente, quando se exige caução, se pode considerar suficiente a fiança, que é garantia

110 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 815. 111 SIDOU, J.M. Othon. Fiança: convencional, legal, judicial, no direito vigente e no projeto de código

civil, p. 6. 112 SIDOU, J.M. Othon. Fiança: convencional, legal, judicial, no direito vigente e no projeto de código

civil, p. 7.

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pessoal. (As próprias expressões ‘caução fidejussória’ e a ‘fiança caucional devem ser evitadas)113.

Consoante o jurista português Menezes Leitão, “A caução consiste assim

em toda e qualquer garantia que, por lei, decisão judicial ou negócio jurídico, é

imposta ou autorizada para assegurar o cumprimento de obrigações eventuais ou de

amplitude indeterminada. [...] A autorização ou obrigação de prestação de caução

pode ter origem, legal, judicial ou negocial”114.

Carvalho de Mendonça conceitua a caução nesse mesmo sentido,

registrando que seria um meio assecuratório de garantia e de proteção dos direitos,

no entanto, “A caução é um ato sempre e caracteristicamente unilateral; a fiança é

uma obrigação conjunta e acessória; aquela pode ser real esta é um vínculo sempre

pessoal. Fiança é caução, é garantia; mas a caução pode não ser fiança”115.

Em outras palavras, pode-se entender que, em Direito, a palavra caução

é sinônima de garantia e, assim sendo, deve-se concordar com Carvalho de

Mendonça no sentido de que toda fiança é caução/garantia, mas nem toda

caução/garantia é fiança. Nessa mesma linha de pensamento se insere, também, o

entendimento de Gildo dos Santos116.

Caio Mário corrobora, ao tratar a caução ou garantia como gênero, sendo

a fiança uma de sua espécie:

No gênero caução ou garantia compreende-se todo negócio jurídico com o objetivo de oferecer ao credor uma segurança de pagamento, além daquela genérica situada no patrimônio do devedor [...]. Pode efetivar-se mediante a separação de um bem determinado, móvel ou imóvel, com o encargo de responder o bem gravado ou o seu rendimento pela solução da obrigação (penhor, hipoteca, anticrese), casos em que fica estabelecido um ônus sobre a própria coisa, constituindo espécie de garantia real, por isso mesmo pertinentes aos direitos reais [...]. Mas pode realizar-se, também, mediante a segurança de pagamento oferecida por um terceiro estranho à relação obrigatória, o qual se compromete a solver pro debitore, e desta sorte nasce a garantia pessoal ou fidejussória. Esta dualidade que vigora nitidamente no direito moderno é a confluência de duas concepções: a romana, de cunho real [...] e a canônica, em que predominou o conteúdo moral, sobressaindo o seu caráter pessoal. Os códigos modernos disciplinam ambos os tipos de garantia.

113 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 102. 114 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Garantia das obrigações, p. 102. 115 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 809. 116 SANTOS, Gildo dos. Fiança, p. 25.

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Apenas se observa a tendência ora de imprimir relevância à garantia real, ora dar preeminência à fidejussória117.

A garantia geral das obrigações está esculpida no art. 391 do Código

Civil. Este dispositivo determina que “pelo inadimplemento das obrigações

respondem todos os bens do devedor”. Todavia, nem sempre a certificação da

solvência do devedor é suficiente para assegurar o cumprimento da obrigação,

razão pela qual, além dessa garantia geral, existem as denominadas especiais118,

cuja finalidade é de assegurar um interesse e/ou direito legítimo que seja passível de

diminuição, de perda ou de qualquer prejuízo.

Ainda que solvente a princípio, não é de ser descartada a possibilidade de o devedor sofrer diminuição patrimonial no curso do tempo e cair em insolvência, ficando impossibilitado de liquidar a obrigação. Para fazer frente a essas eventualidades, o ordenamento coloca outras soluções para o credor, meios para facilitar e garantir o cumprimento de obrigações. A fiança é, pois, instrumento de garantia em favor do cumprimento das obrigações119.

Fiança é garantia pessoal ou fidejussória, ou seja, é uma espécie do

gênero garantia. É pessoal porque está calcada na confiança depositada na pessoa

do fiador, tendo em mira, obviamente, o patrimônio deste que poderá responder pela

obrigação, no caso de inadimplência do devedor. Não obstante, a fiança não impede

que, até mesmo, o próprio fiador dê, além de sua garantia pessoal, uma garantia

real, por exemplo, um penhor.

É a fiança, pois, promessa de adimplemento de qualquer fonte de dívida,

ou seja, do adimplemento do devedor principal. O fiador será sempre um terceiro

com relação à obrigação principal, sendo que não é possível que uma mesma

pessoa seja devedora e fiadora ao mesmo tempo. Pontes de Miranda explica:

A fiança é promessa de ato-fato jurídico ou de outro ato jurídico, porque o que se promete é o adimplemento do contrato, ou do negócio jurídico unilateral, ou de outra fonte de dívida, de que se irradiou, ou se irradia, ou vai irradiar-se a dívida de outrem [...] O fiador vincula-se à prática do ato de outrem, que é o devedor principal: o fiador tem de adimplir o que prometeu. Em conseqüência

117 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: fontes das obrigações, p. 327-328. 118 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 223. 119 VENOSA, Sílvio de Salvo. Manual dos contratos e obrigações unilaterais de vontade, p. 295.

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disso, é devedor daquilo que prometeu: o ato-fato jurídico do pagamento, ou outro ato jurídico de adimplemento120.

Carvalho de Mendonça corrobora: “Fiança é a promessa que um ou mais

indivíduos fazem de satisfazer a obrigação de um terceiro e com o fim de dar maior

segurança ao credor; é, em uma palavra, um contrato em que alguém se obriga para

com o credor pela prestação do devedor”121.

Por meio da garantia de fiança, o fiador promete a adimplência do

devedor principal, mas não assume a dívida deste, ou seja, não há assunção de

dívida alheia122. Isso porque, a fiança não exclui a obrigação do devedor principal;

“[...] o que caracteriza a fiança é que o devedor continua obrigado principal e o fiador

seu coobrigado subsidiário”123.

Em outras palavras, não há solidariedade entre o fiador e o afiançado.

Nos termos do art. 818 do Código Civil, “Pelo contrato de fiança, uma pessoa

garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a

cumpra”. Assim, o fiador apenas será demandado pelo credor, caso o devedor

principal se torne inadimplente124. Portanto, o fiador apresenta-se perante o credor

como devedor subsidiário.

Lado outro, Carvalho de Mendonça ressalta que “[...] é difícil afirmar que o

caráter de acessório que tem a obrigação do fiador a torne uma obrigação 120 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 91-92. 121 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 810. 122 A assunção de dívida solidária pode ter sido com o intuito de garantia, mas, ainda assim, não se

confunde com a fiança, nem muda de estrutura. Nas dívidas solidárias, o vínculo de cada devedor é independente; na fiança, depende do vínculo da dívida garantida. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 93) Art. 299 do Código Civil. É facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor, ficando exonerado o devedor primitivo, salvo se aquele, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava. Parágrafo único. Qualquer das partes pode assinar prazo ao credor para que consinta na assunção da dívida, interpretando-se o seu silêncio como recusa.

123 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 811. 124 “[...] a responsabilidade do fiador é um estado potencial, que só dá lugar à exigibilidade de alguma

prestação quando ocorrer inadimplemento do devedor-afiançado. Enquanto isso não ocorrer, o fiador nada deverá. Se, entrementes, o fiador vier a falecer, extinguir-se-á o contrato de fiança em virtude do seu caráter personalíssimo. Todavia, se o óbito do fiador se der depois do inadimplemento do devedor, mas antes que o garante tenha efetuado o pagamento, a obrigação se transmitirá aos seus herdeiros. É que, neste caso, já existirá obrigação de pagamento para o fiador, e não mais responsabilidade potencial, apenas. O contrato de fiança estará extinto, mas uma pós-eficácia se projetará sobre a sua sucessão”. (PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e aposta, fiança, transação, compromisso, p. 266) Art. 836 do Código Civil. A obrigação do fiador passa aos herdeiros; mas a responsabilidade da fiança se limita ao tempo decorrido até a morte do fiador, e não pode ultrapassar as forças da herança.

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radicalmente diversa da do devedor. O que é inquestionável é que o fiador não cria

uma nova dívida, uma obrigação nova e sim somente dá à obrigação existente um

novo sujeito”125.

Nesse particular, Pontes de Miranda consegue esclarecer da seguinte

forma:

O fiador responde por seu patrimônio. A sua dívida não é a dívida do devedor afiançado. Os que o afirmam não prestaram atenção à elipse (e.g., Karl Larenz, Lehrbuch des Shculdrechts, 255): o fiador promete – portanto, a isso se vincula – o adimplemento pelo devedor. Adimple a sua dívida, que é a dívida do adimplemento pelo devedor principal126.

Assim, pode-se dizer que o fiador promete o adimplemento do devedor

principal, mas não assume a dívida deste nem se torna devedor solidário. Apenas no

caso de o devedor principal não pagar a sua dívida, é que esta passará a ser do

fiador, devedor subsidiário. “A substância da obrigação do fiador é o montante da

obrigação afiançada, seu estado eventual na época da solução”127, mas não haverá

solidariedade da dívida entre o fiador e o devedor.

A subsidiariedade, portanto, decorre do fato de que o fiador somente se

obriga, no caso de o afiançado deixar de cumprir com a sua obrigação. “Significa

dizer que a fiança é obrigação subsidiária, por isso que, no primeiro plano, está a

obrigação principal, que deve ser exigida do devedor. Se este deixar de cumpri-la,

num segundo plano, isto é, subsidiário, está o fiador, que, assim, pode ser

compelido a adimplir a obrigação não satisfeita pelo devedor”128. Essa

subsidiariedade da fiança permite ao fiador o exercício do direito de excussão ou do

benefício de ordem previsto no art. 827 do Código Civil, que determina que “O fiador

demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide,

que sejam primeiro executados os bens do devedor”129.

125 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 811. 126 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 93. 127 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 810. 128 SANTOS, Gildo dos. Fiança, p. 35. 129 Não se pode confundir a característica da subsidiariedade da fiança com a solidariedade entre

fiadores de um mesmo débito. Nos termos do art. 829 do CC, “A fiança conjuntamente prestada a um só débito por mais de uma pessoa importa o compromisso de solidariedade entre elas, se declaradamente não se reservarem o benefício de divisão. Parágrafo único. Estipulado este benefício, cada fiador responde unicamente pela parte que, em proporção, lhe couber no pagamento”. Trata-se de solidariedade entre os diversos fiadores, sendo

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58

De acordo com Othon Sidou, “A ordem está em que, contanto seja

solvível no todo ou em parte, o devedor principal é chamado em primeiro lugar a

responder com seus haveres; a excussão está em afastar, pelo menos enquanto tal

não se procede, a perseguição contra o fiador”130.

Benefício de ordem é, pois, “exceção oposta pelo fiador que tem por

finalidade impedir que ele seja obrigado a efetuar o pagamento da dívida não

adimplida pelo garantido”131.

Por meio do direito de excussão ou benefício de ordem, na eventualidade

de sofrer ação judicial, o fiador pode exigir que primeiramente sejam executados os

bens do devedor. Para tanto, nos termos do parágrafo único, do art. 827, do Código

Civil, o fiador deverá nomear os bens do devedor livres e desembaraçados,

existentes no mesmo município cujo valor de venda judicial a ser arrecadado se

demonstre suficiente para solver a obrigação. Percebe-se, portanto, que o benefício

de ordem não desobriga o fiador, mas tão somente retarda eventual cobrança do

credor que, primeiramente, irá movimentar-se contra o afiançado.

Noutro norte, de acordo com o art. 828, inciso I, do Código Civil132, o

fiador poderá renunciar ao direito de excussão ou ao benefício de ordem, hipótese

esta em que o fiador se faz principal pagador.

Outrossim, a fiança não será uma obrigação subsidiária e, por

consequente, não haverá o benefício de ordem, se tiver sido acordada com o

devedor principal a solidariedade (art. 828, inciso II, do CC).

Nos termos do art. 265 do Código Civil, “A solidariedade não se presume;

resulta da lei ou da vontade das partes”. Assim, caso fiador e devedor principal

pactuem a solidariedade passiva, o fiador assumirá a posição de coobrigado em

tudo sendo equiparado ao afiançado. Ou seja, vencida e não paga a obrigação

que, caso estabeleçam o benefício de divisão, cada um será responsável apenas pela parte que, proporcionalmente, lhe cabia.

130 SIDOU, J. M. Othon. Fiança: convencional, legal, judicial, no direito vigente e no projeto de código civil, p. 50.

131 LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil: contratos, p. 270. 132 Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da

lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor. Parágrafo único. O fiador que alegar o benefício de ordem, a que se refere este artigo, deve nomear bens do devedor, sitos no mesmo município, livres e desembargados, quantos bastem para solver o débito. Art. 828. Não aproveita este benefício ao fiador: I − se ele o renunciou expressamente; II − se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário; III − se o devedor for insolvente, ou falido.

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principal, o credor poderá exigir tanto do fiador quanto do devedor o respectivo

pagamento.

Por fim, também no caso de insolvência ou falência do devedor principal,

o benefício de ordem não é aproveitado ao fiador (art. 828, inciso III, do CC).

Sob qualquer ângulo, caso o fiador seja demandado, ele poderá opor ao

credor as exceções que lhe forem pessoais e aquelas extintivas da obrigação que

competem ao devedor principal (art. 837 do CC).

Além da subsidiariedade, a fiança apresenta outras normas e

características específicas, sendo que estas serão analisadas após o estudo de sua

natureza jurídica.

No particular da natureza jurídica da fiança, há divergência doutrinária.

Para Clovis Bevilaqua, a fiança é contrato bilateral imperfeito. De acordo

com o autor, seria imperfeito porque representa somente a obrigação do fiador em

relação ao credor. Não obstante, seria bilateral porque, na hipótese de o fiador pagar

a fiança, este subroga-se nos direitos do credor, podendo propor contra o devedor

principal ação judicial para ser reembolsado. Acrescenta o autor que a fiança

também seria um contrato benefício, em relação ao devedor, considerando que o

fiador presta a este uma garantia graciosa133.

Menezes Leitão também considera a fiança como um contrato bilateral,

sendo que esse poderia dar-se entre o fiador e credor ou entre fiador e devedor134.

Carvalho de Mendonça135 corrobora o entendimento de Bevilaqua e

afirma que a fiança tem natureza jurídica de contrato consensual, bilateral imperfeito

e de beneficiência, sendo que, em uma determinada situação, poderia ter a fiança

natureza jurídica de contrato unilateral:

É um contrato consensual porque, para haver fiança, é essencial um vínculo contratual entre o fiador e o credor, o in idem placitum, o encontro das vontades. Quem só promete o devedor assumir sua dívida, não é fiador. De resto, nenhuma dificuldade nos apresenta êsse característico. Quanto à bilateralidade, basta refletir que a fiança é um contrato entre o credor e o fiador. O devedor é normalmente uma parte a êle estranha e o contrato se efetua, mesmo quando êste não intervenha, e mesmo na sua ignorância. Neste caso, o credor nada promete; só o fiador se obriga. Pode-se então chamar a bilateral o contrato em que assim só se obriga uma

133 BEVILAQUA, Clovis. Direito das obrigações, p. 402. 134 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Garantia das obrigações, p. 107. 135 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 812.

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das partes? Há Códigos que classificam a fiança um ato unilateral e só a consideram contrato bilateral quando é aceita pelo credor. É um contrato unilateral – afirma a generalidade dos franceses – pois que o credor, para com quem o fiador se obriga, nenhuma obrigação assume para com êle. Entendemos que é o caso de se distinguir. Se a fiança é contratada entre o fiador e o credor, a doutrina francesa é verdadeira, há só obrigações para o fiador, o contrato é unilateral. Se porém, como no caso mais comum, ela é contratada entre o fiador e o devedor, o contrato é bilateral imperfeito, pois que, ao formar-se, somente origina obrigações do fiador para com o credor. Mas, se o fiador pagar mais tarde a dívida, surgem obrigações para o devedor, obrigado desde então ao reembôlso. O caráter de beneficiência que exibe a fiança não se manifesta em relação ao credor, pois que êste obtém com ela uma garantia do que lhe é devido; mas é indubitável a respeito do devedor, que retira dela uma vantagem gratuita, no momento em que é prestada.

Todavia, conforme já destacado, há divergência doutrinária no que tange

à natureza jurídica da fiança. De acordo com Orlando Gomes136, o entendimento de

que a fiança seria um contrato bilateral, ainda que imperfeito, parte da premissa

equivocada de que o pacto realizar-se-ia entre o fiador e o devedor, o que, conforme

será demonstrado não é verdade.

Ademais, conforme os ensinamentos de Darcy Bessone,

a distinção entre os bilaterais perfeitos e os imperfeitos está, hoje, repelida pela doutrina. Considera-se que, a despeito das aparências ou semelhanças, os bilaterais imperfeitos são, na realidade, unilaterais, porque o que importa é a essência da convenção, fixada no momento da formação do acordo de vontades e inalterável por efeito de fatos ulteriores, puramente acidentais ou eventuais e sem correlação com as obrigações principais137.

Outrossim, pode-se afirmar que, ao contrário do entendimento de

Carvalho de Mendonça, na hipótese de o fiador pagar a fiança, possibilitando-o

cobrar do afiançado – devedor principal – o reembolso pelo valor despendido, não

há a configuração da bilateralidade, “mas simples conseqüência da sub-rogação, e

mera repercussão dos efeitos do pagamento, o que permite ao fiador proceder

contra o devedor, sem afetamento das relações contratuais estabelecidas entre

fiador e credor”138. É exatamente esse o entendimento de Caio Mário139.

136 GOMES, Orlando. Contratos, p. 436. 137 BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral, p. 72. 138 MARMITT, Arnaldo. Fiança civil e comercial, p. 13. 139 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: fontes das obrigações, p. 328.

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De acordo com essas observações, tanto Orlando Gomes quanto a

doutrina, que será destacada abaixo entendem que a fiança tem natureza jurídica de

contrato unilateral e é sempre pactuada entre o fiador e credor.

Para Orlando Gomes, a fiança é contrato unilateral, porque produz

obrigações somente para o fiador140.

Venosa também atribui à fiança natureza jurídica de contrato unilateral141.

Pontes de Miranda é categórico ao registrar que a fiança tem natureza

jurídica de contrato unilateral, sendo que este é vinculado entre fiador e credor. Para

o autor, eventual negócio jurídico existente entre fiador e devedor é totalmente

estranho ao contrato de fiança:

Ora, a fiança é negócio jurídico entre o fiador e o credor, e não entre o devedor principal e o fiador. O que ocorre entre êsses de ordinário só se passa no mundo fáctico: o devedor principal, quase sempre futuro devedor, promove a fiança, pedindo a quem possa e queira afiançar que conclua com o credor o contrato de fiança. [...] O negócio jurídico conclui-se entre o fiador e o afiançado, o que nada tem com a fiança, contrato unilateral entre fiador e credor. Grave erro foi o de M. I. Carvalho de Mendonça (Contratos no Direito Civil brasileiro, II, 410), ao considerar bilateral o contrato de fiança se concluído entre o fiador e o devedor. Ora, tal negócio jurídico, ainda se inserto no mesmo instrumento, não seria o contrato de fiança, mas sim pacto subjacente, justajacente (inserto no mesmo instrumento, ou concluído simultâneamente, mas como outro instrumento) ou sobrejacente142.

Lado outro, mais um ponto que demonstra que o contrato de fiança é

entre fiador e credor − e não entre fiador e devedor − é a norma do art. 820 do

Código Civil que determina que “Pode-se estipular a fiança, ainda que sem

consentimento do devedor ou contra a sua vontade”. É que, sendo apenas o fiador e

o credor os sujeitos do contrato de fiança, as manifestações de vontade necessárias

à própria existência da fiança são exclusivas deles. Percebe-se, ainda, que “Não só

é dispensável que o afiançado se expresse, como é mesmo possível o contrato a

desgosto dele. Isso porque o interesse jurídico na fiança é do credor. O devedor [...]

140 GOMES, Orlando. Contratos, p. 435. 141 VENOSA, Sílvio de Salvo. Manual dos contratos e obrigações unilaterais de vontade, p. 296. 142 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 10-

104.

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62

é beneficiário econômico da fiança, pois o credor pode exigir a indicação de fiador

como condição negocial do contrato principal”143.

Enfim, ainda sobre a natureza jurídica da fiança, pode-se dizer que,

considerando que esta dá origem a obrigações apenas para o fiador, trata-se de

contrato unilateral, firmado entre fiador e credor, e gratuito144.

Analisada a natureza jurídica da fiança, é importante ainda estudar a

respeito de algumas de suas regras e características.

O contrato de fiança deverá ter sempre a forma escrita e não admite

interpretação extensiva. É o que dispõe o art. 819 do Código Civil: “A fiança dar-se-á

por escrito, e não admite interpretação extensiva”. Verifica-se, portanto, que o

contrato de fiança, além de ser consensual é formal ou solene, ou seja, a fiança é

contrato que se aperfeiçoa pela vontade das partes, no entanto, exigi-se a forma

escrita para a manifestação desta.

Não se admite a outorga de fiança verbal, ainda que o contrato ou a

obrigação principal seja verbal. Nesse sentido, entendem Pontes de Miranda145 e

Gildo dos Santos146.

Sobre a necessidade da forma escrita para se conceder a fiança, José

Antônio Braga, Desembargador da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais, em seu voto de relatoria, corrobora:

143 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 237-238. 144 “Com a revogação da Parte Primeira do Código Comercial (art. 2.045) e conseqüente unificação

das obrigações contratuais, foi extinta como contrato típico a fiança mercantil, que admitia a onerosidade. No CC/2002, o fiador poderá exonerar-se da fiança ilimitada no tempo sempre que lhe convier (art. 835) e quando não tiver anuído em moratória concedida pelo credor ao devedor (art. 838, I). O regime da fiança no Código Civil só é compatível com a gratuidade, o que se denota também no art. 819, que não admite interpretação extensiva, como é próprio de todo contrato gratuito (art. 114), e ainda no art. 825, que permite ao credor a recusa do fiador indicado pelo devedor – direito formativo que não se propicia ao credor que contrata a garantia em troca de remuneração. Em resumo: não se pode estender ao garante remunerado as mesmas prerrogativas compreensivelmente reconhecidas ao fiador, que gratuitamente favorece o devedor, oferecendo-se ao eventual ataque patrimonial do credor sem qualquer contrapartida. Isso não significa esconjurar do mundo jurídico a remuneração do garante, mas reconhecer, como Pontes de Miranda, que não se trata de contrato de fiança, mas de outro contrato.” (PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e aposta, fiança, transação, compromisso, p. 232) “Nenhuma dúvida quando (sic) à gratuidade. Obriga-se o fiador, assumindo a responsabilidade subsidiária ou solidária do pagamento de uma dívida, sem qualquer vantagem. Quem beneficia é o credor. Contudo, não é proibida a estipulação, em favor do fiador, de vantagens pecuniárias que compensem os riscos”. (GOMES, Orlando. Contratos, p. 436)

145 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 128. 146 SANTOS, Gildo dos. Fiança, p. 62.

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[...] Objetiva a parte ré apelante, com a oitiva da indigitada testemunha, demonstrar a condição de fiadora da autora. Todavia, como bem decidido pelo magistrado primevo a fiança não pode ser comprovada através de prova testemunhal. O art. 819 do CC/02 é claro ao estatuir que: ‘A fiança dar-se-á por escrito, e não admite interpretação extensiva.’ Sobre o tema, oportuno os esclarecimentos de Cláudio Luiz Bueno de Godoy: Entendido o negócio jurídico formal como aquele não consumável por qualquer forma, tal qual em regra acontece, porquanto prevalecendo, em geral, a informalidade, a fiança, somente aperfeiçoando-se por escrito, constitui contrato formal. Não exige a lei, porém, que a outorga se deva dar, necessariamente, por instrumento público. Poderá sê-lo, destarte, também por documento particular. Mas não se admite, na mesma esteira, fiança que seja prestada verbalmente, ainda que assim se tenha contraído a obrigação por ela garantida. [In: Código Civil Comentado, Cezar Peluso (Coord.). Barueri, SP: Manole, 2007, p. 689].

Para reforçar essa linha de pensamento, registra-se o que se segue:

Dada a natureza especial da fiança, a lei faz depender a sua existência não só do consentimento expresso daquele que a presta, como também de forma escrita. Não existe fiança presumida ou tácita (RT 235/180). (in Código civil comentado e legislação extravagante, Nelson Nery Junior, Rosa Maria de Andrade Nery − 3ª ed. − São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 510) [...] [TJMG. Apelação Cível n. 1.0313.07.219415-9/001. 9ª Câmara Cível. Rel. José Antônio Braga. DJ 20/5/2008]147.

Nesse mesmo sentido, é o voto de relatoria do Desembargador Duarte de

Paula, da 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que assim se

expressa:

Nos exatos termos do art. 818 do novo Código Civil, dá-se o contrato de fiança quando uma pessoa se obriga por outra, para com o seu credor, a satisfazer a obrigação, caso o devedor não a cumpra, do que se conclui tratar-se de garantia pessoal ou fidejussória. Como fiança convencional, é contrato acessório, unilateral e solene, na maioria das vezes gratuito. É acessório por não conceber a sua existência sem um contrato principal. Por isso mesmo, segue o

147 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em 22 mar. 2010.

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destino da obrigação principal, extinguindo-se com ela, nos termos do art. 824 da lei substantiva. No entanto, a fiança, conforme dispõe o art. 819 do Código Civil, é dada por escrito e ‘jamais se presume; para que alguém possa assumir obrigações de outrem, preciso será ato expresso, formal, em que figure de modo explícito a responsabilidade contraída’ (WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO, in ‘Direito das Obrigações’, vol. 2, 4ª ed, p.381). Na lição de CARVALHO MENDONÇA, ‘a fiança deve ser expressa e não presumida, nem admite interpretação extensiva’. (in ‘Contratos no Direito Brasileiro’, vol. 2, p. 420). Também esse é o pensamento de CLÓVIS BEVILÁQUA: Não admitir interpretação extensiva quer dizer que o fiador não responde senão, precisamente, sobre aquilo que declarou no instrumento da fiança. Em caso de dúvida, a interpretação será em favor do que presta fiança. (in ‘ Código Civil Comentado’, Forense, vol. 5, p. 234). Assim, em sendo o contrato de fiança necessariamente acessório, e essencialmente solene, tendo em vista a imposição da forma escrita, verifica-se que para assumir o fiador as obrigações de garantia de uma determinada obrigação, deve estar disposto no contrato, de forma clara e objetiva, que caso o devedor principal não cumpra as obrigações contraídas, o fiador será acionado para que o faça [TJMG. Apelação Cível n. 1.0487.05.014917-7/001. 11ª Câmara Cível. Rel. Duarte de Paula. DJ. 5/8/2009, grifo nosso]148.

Assim, pode-se dizer que a declaração de vontade de se prestar fiança

nunca poderá ser presumida, porque sempre deverá revestir-se de forma escrita,

ainda que particular.

No que tange à segunda exigência do art. 819 do Código Civil, no sentido

de que a fiança não admite interpretação extensiva, ressalta-se que o art. 114 do

mesmo ordenamento civilista também determina que “Os negócios jurídicos

benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”. Este último dispositivo também

é aplicável à fiança que é um negócio jurídico gratuito. Assim, o fiador deve ter a sua

responsabilidade limitada de acordo com o pacto existente entre o devedor e o

credor. Nesse diapasão, Pasqualotto ressalta a importância da exigência da

formalidade do contrato de fiança que possibilitará a delimitação das obrigações

148 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010.

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contraídas pelo fiador, as quais, inclusive, podem ser limitadas ou menores do que

as do afiançado149.

A fiança limitada é a que ampara a dívida apenas em parte de seu objeto,

não se confundindo, por isso mesmo, com a fiança que permite garantir valor inferior

ao da obrigação principal, nos termos do art. 823 do Código Civil150. A fiança limitada

refere-se ao objeto da obrigação principal; a fiança parcial (art. 823 do CC) diz

respeito ao valor da obrigação principal.

Lado outro, a fiança ilimitada abrange todas as dívidas do afiançado,

sendo que, caso haja qualquer dúvida referente à extensão da fiança, deve-se fazer

interpretação restritiva, ou seja, admite-se aquela que menos onere o fiador. Pontes

de Miranda ensina:

A fiança pode ser ilimitada, in universum causam. Entende-se que abrange tôdas as dívidas do afiançado ou dos afiançados se se refere a quaisquer dívidas oriundas do contrato a que se alude. Trata-se, portanto, de questão de interpretação do negócio jurídico bilateral da fiança. Se se falou de ‘dívidas do contraente B’, a fiança é de quaisquer dívidas de B que se irradiem do negócio jurídico em que é figurante B. Se há qualquer dúvida quanto à extensão, tem-se de admitir a que menos pese ao fiador. [...] Se o crédito principal é variável, como se dá conta corrente, e o instrumento da fiança não diz qual o quanto que se garante, tem-se de entender que se afiançou o que era devido na ocasião, ou, se há alusão à conta corrente limitada, o do seu limite151.

Ainda sobre a interpretação restritiva da fiança, Caio Mário explica que

não pode haver qualquer extensão seja ela objetiva, subjetiva ou temporal. A fiança

não comporta extensão objetiva, porque não se pode pretender a garantia de toda a

obrigação principal, na hipótese de a fiança ter sido dada a apenas uma parte da

dívida; não comporta extensão subjetiva na medida em que não irá prevalecer caso

a dívida seja novada e surja outro devedor; por fim, não comporta extensão

temporal, “pois se for dada a termo certo, não é legítimo que o credor sustente a

cobertura de obrigações posteriores ao vencimento dele, nem protrair o

compromisso do fiador, ainda que ocorra o vencimento antecipado da obrigação

149 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 236. 150 A fiança pode ser de valor inferior ao da obrigação principal e contraída em condições menos

onerosas, e, quando exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada.

151 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 129.

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afiançada, em razão da insolvência ou da falência do devedor”152. Assim, na

hipótese de o contrato entre credor e devedor prorrogar-se, a fiança apenas

subsistirá no caso do fiador ter anuído, expressamente, com tal prorrogação153.

Nesse sentido, de acordo com trechos dos acórdãos citados abaixo, é o

entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

[...] Em análise dos autos, verifico que o fiador prestou fiança no contrato de locação em litígio, que tinha o prazo de duração de 12 (doze) meses, iniciando-se em 06/11/2003 e findando-se em 06/11/2004, como se infere das fls.50/50v. O término do prazo estipulado para o contrato põe fim à obrigação dos fiadores. Caso seja prorrogado o contrato de locação, por quaisquer meios, é mister, para que se prorrogue ou estenda a obrigação solidária, a anuência expressa do fiador neste sentido, o que não restou comprovado nos autos, não bastando para supri-la, disposição contratual genérica. O Superior Tribunal de Justiça sumulou a matéria com o seguinte entendimento: Súmula 214 STJ: O fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu. Sobre o tema, também já se posicionou este e. Tribunal, consubstanciado pelos Acórdãos de n.º 1.0433.04.127447-6/003 e 1.0105.02.072449-5/001, Relatores Des. Domingos Coelho e Heloisa Combat, respectivamente: EMBARGOS INFRINGENTES. AÇÃO ORDINÁRIA. FIANÇA. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. Consoante iterativa jurisprudência, capitaneada pelo C. STJ, a fiança deve ser interpretada restritivamente, não podendo o fiador se responsabilizar pelas cláusulas e encargos contratuais constantes de contrato de locação prorrogado indefinidamente, sem que tenha anuído a tal prorrogação, ainda que haja cláusula estendendo a garantia até a entrega efetiva das chaves do imóvel. AÇÃO DE COBRANÇA − LOCAÇÃO − PRORROGAÇÃO POR PRAZO INDETERMINADO − FALTA DE ANUÊNCIA DO FIADOR − AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE PELO PAGAMENTO DOS ALUGUÉIS VENCIDOS APÓS O FIM DO CONTRATO ESCRITO. A fiança deve ser interpretada restritivamente. Se o contrato de locação foi prorrogado por prazo indeterminado, sem anuência dos fiadores, afasta-se a responsabilidade desses pelos aluguéis e encargos vencidos no período pelo qual o contrato foi prorrogado.

152 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: fontes das obrigações, p. 331. 153 Art. 835 do Código Civi. “O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação

de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor”.

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Desta forma, a responsabilidade do Apelado é limitada ao período contratual compreendido entre 06/11/2003 e 06/11/2004, ainda que haja cláusula estendendo a garantia até a entrega efetiva das chaves do imóvel. Destaco que a inicial executória não aponta quaisquer débitos referentes a este período, só fazendo menção aos do ano de 2006. [TJMG. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0223.08.252376-0/001. 10ª Câmara Cível. Rel. Alberto Aluízio Pacheco de Andrade. DJ 2/6/2009]154. [...] De conformidade com o disposto no art. 835, Código Civil de 2002, o fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação ao credor. Ora, ainda que a fiança deva ser interpretada de forma restritiva, por se tratar de contrato gratuito, a disposição legal aplicável na atualidade prevê procedimento para a exoneração do fiador. No caso concreto, os Embargados não promoveram a notificação do Embargante para lhe dar ciência da sua intenção de interromper a garantia prestada, permanecendo vinculados ao contrato como garantidores. Ademais, o contrato de f. 04/05 estipula, em sua cláusula décima terceira, que a garantia prestada permanece até a entrega das chaves do imóvel locado, renunciando os garantidores aos benefícios legais previstos nos artigos 1941, 1499, 1502, 1503 e 1504, Código Civil de 1916. [TJMG. Apelação Cível n. 1.0686.05.168995-4/002. 14ª Câmara Cível. DJ 29/11/2007]155. [...] No que diz respeito à exoneração da fiança, deve-se analisar, primeiramente, se o contrato foi assinado por tempo determinado ou indeterminado, pois no primeiro caso a fiança se extingue no momento em que se dá por encerrado o prazo contratado. Já no segundo o fiador permanecerá responsável enquanto o contrato estiver vigorando, observado, contudo, o artigo 835 do Código Civil, que preceitua que ainda que a fiança não tenha limite de tempo, poderá o fiador dela se exonerar se assim lhe convier, responsabilizando-se, porém, por todos os efeitos dela decorrentes, durante sessenta dias após a notificação do credor. Dessa forma, se um contrato foi assinado por tempo determinado, vindo a se transmudar para tempo indeterminado o fiador deve ser comunicado para manifestar sua concordância em continuar a ser fiador, pois caso não haja a expressa manifestação de vontade deste, ainda que exista no contrato a cláusula escrita vedando a renúncia, ela não deverá prevalecer. É que tal cláusula deve ser recebida com reservas, posto que se assim não fosse significaria a duração indefinida da fiança, ainda que contrariamente à vontade o fiador.

154 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010. 155 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010.

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Dito isso, ainda que no contrato em questão conste expressamente que a fiança responsabiliza solidariamente os fiadores pelo cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo financiado, quer no primeiro período de vigência, quer nas prorrogações, e, ainda, que renunciam expressamente aos favores dos artigos 1.491, 1.494, 1.498, 1.499, 1.500, 1.502 e 1.503 do antigo Código Civil (f. 10/12), entendo não poderem os fiadores ser responsabilizados por parcelas ulteriores ao fim do prazo estabelecido no contrato. [TJMG. Apelação Cível n. 1.0074.06.031470-0/001. 11ª Câmara Cível. Rel. Duarte de Paula. DJ 27/8/2008]156.

A regra da interpretação restritiva da fiança também está prevista na

Súmula 214 do STJ, que dispõe: “O fiador na locação não responde por obrigações

resultantes de aditamento ao qual não anuiu”.

Por sua vez, o art. 822 do Código Civil determina que, “não sendo

limitada, a fiança compreenderá todos os acessórios da dívida principal, inclusive as

despesas judiciais, desde a citação do fiador”. Essa determinação é comentada por

Pasqualotto:

Não havendo limitação contratual, aplica-se o princípio de que o acessório segue o principal, e o fiador responderá pelas rubricas cuja existência supõem o núcleo da dívida. [...]. Os acessórios da dívida incluem as despesas judiciais, a partir da citação do fiador, porque assim se preserva a integridade do crédito. O credor, que teve que chegar à medida extrema da ação em juízo para receber o pagamento, será reembolsado a partir de quando se caracteriza o exercício da pretensão, que é da citação do réu – no caso, o fiador – para o processo157.

Isso porque a fiança é um contrato acessório. Caio Mário trabalha o

conceito de acessório e principal ao registrar: “[...] diz-se que é principal uma

obrigação quando tem existência autônoma, independente de qualquer outra. E é

acessória quando, não tendo existência em si, depende de outra a que adere ou de

cuja sorte depende”158.

Por ser a fiança um contrato acessório, ela, ainda que não limitada, não

pode garantir além do valor e/ou do objeto da obrigação principal, porque o contrato

acessório (contrato de fiança) deve acompanhar o contrato principal. “Dentro do

156 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010. 157 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 241-242. 158 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: teoria geral das obrigações, p. 135.

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quanto afiançado, se a dívida diminui, a fiança diminui”159. Assim, nos termos do art.

823 do Código Civil, a fiança que “[...] exceder o valor da dívida, ou for mais onerosa

que ela, não valerá senão até ao limite da obrigação afiançada”.

Em outras palavras, sendo a fiança um contrato acessório, ela não pode

exceder o constante da obrigação principal, porque o acessório não pode ir além do

principal. Diante disso, Othon Sidou entende que a fiança que for mais onerosa que

a obrigação principal é redutível ao limite desta, mas não nula. Ou seja, a fiança

excedente não enseja a invalidade, mas sim a ineficácia da parte em excesso,

mantendo-se a eficácia referente à parte que coincidir com a obrigação principal.

Nesse sentido, também é o entendimento de Pasqualotto160, Pontes de Miranda161 e

Carvalho de Mendonça162.

Assim, pode-se dizer que existem dois contratos: (i) o principal, cujas

partes são devedor e credor e (ii) o acessório ou secundário, cujas partes são credor

e fiador. Em outras palavras, o contrato principal é aquele cujas obrigações a fiança

visa a assegurar o respectivo adimplemento. Portanto, se a obrigação principal não

existe ou não mais poderá existir, o fiador desobriga-se; “se a dívida principal não

existe, não pode existir adimplemento, pois não se há de pensar em adimplemento

de dívida que não existe”163.

Da mesma forma, consoante o art. 824 do Código Civil, “As obrigações

nulas não são suscetíveis de fiança, exceto se a nulidade resultar apenas de

incapacidade pessoal do devedor”. Significa dizer que “Nulo o negócio jurídico ou o

ato jurídico afiançado, nula a fiança. Anulado o negócio jurídico, ou o ato jurídico, a

sentença constitutiva negativa determina a extinção da fiança, ex tunc”164. Ou seja, a

palavra “nulas” que está expressa no mencionado art. 824 do Código Civil abrange

os dois graus do plano da invalidade: nulidade e anulabilidade, sendo que a

obrigação anulável apenas atingirá a validade da fiança, caso aquela for anulada por

decisão judicial. É exatamente a regra da parte final do art. 184 do Código Civil que

determina que “[...] a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações

acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal”.

159 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 129. 160 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 243. 161 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 153. 162 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 822. 163 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 149. 164 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial, p. 139.

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Por sua vez, o art. 824 do Código Civil prevê uma exceção: são

suscetíveis de fiança as obrigações assumidas por pessoa absolutamente incapaz.

Em geral, são nulos os atos jurídicos praticados pelos absolutamente incapazes (art. 3°). Todavia, se o fiador conhecia a incapacidade do devedor e mesmo assim prestou a garantia, esta é válida e exigível. O credor não terá ação contra o devedor, mas terá contra o fiador. Este, pagando a dívida, não se sub-roga nos direitos do credor (art. 831), haja vista a nulidade da obrigação principal165.

Ainda no que tange a acessoriedade da fiança, deve-se ressaltar que

essa regra não obsta a possibilidade de se afiançar dívida futura ou condicional.

Caracterizada, determinada e identificada a dívida futura, esta poderá ser

afiançada, sendo que a fiança acompanha a dívida futura em virtude de seu caráter

acessório. Ou seja, a fiança apenas produzirá efeitos depois que a obrigação futura

vier a existir. Se a obrigação futura não chegar a existir, resolve-se a fiança. Da

mesma forma, não existindo o termo ou a condição necessária para a garantia da

fiança, esta se resolverá.

Outrossim, sob qualquer ângulo, para que o fiador possa ser demandado,

é preciso que a obrigação principal esteja certa e líquida166. Por outro lado, o fiador

de obrigação futura ou condicional não poderá exonerar-se, antes que essa

obrigação se caracterize. “Ora, quem é condicionalmente obrigado não pode retratar

sua obrigação antes do advento da condição”167.

3.3 A outorga conjugal após a vigência do Código Civil de 2002 e a fiança

No item anterior deste capítulo, viu-se que a fiança é garantia fidejussória

(pessoal) de qualquer dívida juridicamente exigível. Sua finalidade é garantir o

adimplemento de dívida contraída pelo devedor principal, sendo que, na

inadimplência deste, o patrimônio do fiador será exposto à execução do credor. Por

165 PASQUALOTTO, Adalberto. Contratos nominados III: seguro, constituição de renda, jogo e

aposta, fiança, transação, compromisso, p. 244. 166 Art. 821 do Código Civil. “As dívidas futuras podem ser objeto de fiança; mas o fiador, neste caso,

não será demandado senão depois que se fizer certa e líquida a obrigação do principal devedor.” 167 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 817.

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essa razão, quando o fiador for casado, a fiança requer a autorização ou outorga do

cônjuge. Tal exigência já era prevista pelo Código Civil de 1916 que, nos termos do

inciso III, do art. 235, dispunha que o marido não poderia, sem o consentimento de

sua mulher, qualquer que fosse o regime de bens, prestar fiança. Da mesma forma,

o inciso I, do art. 242, daquele mesmo ordenamento civilista, determinava que “A

mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I − praticar os atos que este

não poderia sem o consentimento da mulher”.

A doutrina e a jurisprudência sempre divergiram sobre as consequências

da fiança prestada sem a outorga conjugal.

De acordo com Carvalho de Mendonça, na hipótese de o marido prestar

fiança sem a outorga uxória, a meação da mulher não poderá ser atingida168.

Lado outro, Venosa, na vigência do Código Civil de 1916, entendia que a

fiança prestada sem outorga conjugal seria ato anulável:

Questão maior nesse tópico é saber se a fiança prestada sem a outorga conjugal é nula ou anulável. Não há que se referir apenas a ‘outorga uxória’ porque esta se refere apenas à autorização da mulher. A conclusão majoritária é tratar-se de nulidade relativa. De fato, o ato admite suprimento judicial e ratificação, só podendo a eiva ser alegada pelo cônjuge preterido ou por seus herdeiros (art. 239). Não pode sustentar essa nulidade o próprio fiador. Essa a opinião que se harmoniza com o sistema do ordenamento e assentada atualmente na jurisprudência. De outro lado, uma vez decretada a nulidade da fiança, a pecha inquina todo o negócio. Não há nulidade parcial, ficando preservada fiança no tocante à meação do cônjuge fiador. Muitas foram as decisões no passado que sufragaram esse entendimento. Tal não impede, porém, que o cônjuge defenda sua meação por meio de embargos de terceiro, o que não discute a higidez da fiança. Conclui-se que se o consorte pode optar pelo mais, que é demandar a nulidade da fiança, pode pleitear o menos, qual seja, pedir exclusão de sua meação, com base no art. 263, inc. X169.

Percebe-se, portanto, que, para Carvalho de Mendonça, a fiança prestada

sem outorga conjugal, era ineficaz com relação ao cônjuge que não havia anuído

com a garantia. Por sua vez, para Venosa, a fiança prestada sem a outorga

conjugal, na vigência do Código Civil de 1916, era ato anulável.

168 CARVALHO DE MENDONÇA, Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro, p. 824. 169 VENOSA, Sílvio de Salvo. Manual dos contratos e obrigações unilaterais de vontade, p. 301.

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Nesse mesmo sentido, Sílvio Rodrigues destaca que a fiança prestada

sem a outorga conjugal, na vigência do Código Civil de 1916, apesar de não

apresentar tal solenidade determinada pela lei (autorização do cônjuge), não seria

ato nulo, mas sim anulável:

Problema que se propõe, neste campo, é o de saber se a fiança, sem outorga uxória, é ato nulo ou anulável. Em favor da nulidade se encontra o argumento legal, pois o art. 145, IV, declara nulo o ato em que for preterida solenidade que a lei declara essencial. Ora, a outorga uxória é solenidade essencial, portanto a fiança, dela desacompanhada, é ato nulo. Ora, o ato nulo é imprescritível, irratificável e pode ser alegado por qualquer interessado, pelo Ministério Público, e deve ser declarado de ofício, pelo juiz, quando encontrar provado. A possibilidade óbvia de ratificação da fiança e o fato de só poder ser argüida pela mulher ou outro interessado, a meu ver, tiram o ato do campo restrito das nulidades absolutas. Aliás, não há lesão a um interesse coletivo. De modo que o mínimo que se poderá dizer é que o ato se situa em um campo intermédio, como a demonstrar que a realidade nem sempre cabe dentro dos quadros teóricos, rigidamente elaborados pela doutrina170.

Conforme estudado no primeiro capítulo deste trabalho, Marcos Bernades

de Mello corrobora ao destacar que, além dos casos que a própria norma jurídica

imputa a anulabilidade como sanção, a falta de assentimento de terceiro que a lei

considera imprescindível para a realização de determinados atos jurídicos, também,

é causa de anulabilidade171.

No que tange à jurisprudência, na vigência do Código Civil de 1916, havia

entendimento no sentido de que a fiança prestada sem a outorga conjugal seria ato

anulável, visando tão somente a proteger o patrimônio do cônjuge que não anuiu

com a garantia, devendo, pois, esta ser limitada ao patrimônio do fiador,

considerando que este não pode se valer de sua própria torpeza para se eximir da

obrigação prestada:

[...] A fiança foi mesmo prestada só pela embargante mulher, que se declarou casada, e não pelo marido dela. Apesar disso, e respeitado o entendimento do douto voto vencido, não é nula a fiança, mas anulável e, ainda assim, apenas para afastar a meação do cônjuge que não afiançou, subsistindo em relação àquele que prestou a garantia. [STJ. Recurso Especial n.

170 RODRIGUES, Sílvio. Direito civil, p. 137-138. 171 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de validade, p. 21.

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73

246829-SP. 5ª Turma. Relator Min. Jorge Scartezzino. DJU 5/6/2000, p. 24]172. [...] Até porque tenho me posicionado no sentido de que a inexistência de outorga uxória torna o contrato de fiança apenas anulável, a fim de se proteger apenas o patrimônio do cônjuge que não a prestou. Devendo, portanto, a mesma ser eficaz em relação ao cônjuge/fiador, quando limitada ao seu patrimônio, o que ocorre no caso concreto. Nesse ínterim Maria Helena Diniz, com suporte em considerável posicionamento jurisprudencial (RT 518/225, 527/299, 530/133), em comentário ao art. 235, ensina que: ‘A fiança prestada sem o consentimento do outro cônjuge será anulável’ (Código Civil Anotado, p. 250). Ressaltam-se, ainda, os seguintes julgamentos deste egrégio Tribunal no sentido de que a fiança prestada sem autorização marital é apenas anulável: ‘EMENTA: EXECUÇÃO − CONTRATO DE LOCAÇÃO − ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA − EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE − LEGITIMIDADE PARA ALEGAÇÃO DA NULIDADE DA FIANÇA APENAS DA MULHER OU DOS HERDEIROS − EXPRESSA PREVISÃO LEGAL − ARTIGO 239 DO CÓDIGO CIVIL. O fiador não tem legitimidade para argüir a nulidade de fiança que prestou sem a outorga uxória, que, por constituir negócio anulável, não pode ser decretado de ofício pelo Magistrado, mas apenas em resposta a pedido formulado pela mulher em ação própria’ (AC n. 355.161-9 − Relatora Juíza Teresa Cristina da Cunha Peixoto − data do julgamento 6/3/2002). ‘EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE FIANÇA − AUSÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA − ACORDO EM AUDIÊNCIA, PRESERVANDO A MEAÇÃO DA AUTORA − POSTERIOR ARREPENDIMENTO − APELAÇÃO VISANDO ANULAR A HOMOLOGAÇÃO − NÃO PROVIMENTO. A transação homologada nos autos dispôs sobre direitos patrimoniais disponíveis, firmada por ambas as partes, absolutamente capazes, e, ainda, representada a apelante por suas duas advogadas. A respeito da fiança prestada pelo cônjuge sem a outorga uxória, é de se trazer a abalizada doutrina de Maria Helena Diniz, com suporte em considerável posicionamento jurisprudencial (RT 518/225, 527/299, 530/133), em comentário ao art. 235: 'A fiança prestada sem o consentimento do outro cônjuge será anulável' (Código Civil Anotado, p. 250). Anulável, portanto, o referido ato, e não nulo de pleno direito, não incorreu o acordo homologado nos autos na alegada ofensa ao art.

172 Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: 22 mar. 2010.

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74

1.026 do Código Civil. − Diante do que restou pactuado nos autos, restando preservada a meação da autora em relação à obrigação assumida por seu marido, foi atingida a finalidade, a verdadeira razão de ser do dispositivo legal que exige a anuência da esposa à fiança prestada por seu cônjuge. Recurso não provido’ (AC n. 346404-0 − Rel. Juiz Delmival de Almeida Campos − data do julgamento 18/12/2001) [Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais. Apelação Cível n. 400.012-8. Relator Mauro Soares de Freitas. DJU 27/8/2003]173.

Verifica-se, portanto, que as decisões citadas acima consideravam

anulável a fiança prestada sem outorga conjugal. No entanto, eventual declaração

de anulabilidade não impedia a produção de efeitos da garantia fidejussória, na

medida em que apenas eram desonerados os bens do cônjuge que não havia

autorizado a fiança.

Nesse sentido, o Estatuto da Mulher Casada (Lei n. 4.121 de 1962), em

seu art. 3° prevê que “Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um

só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente

responderão os bens particulares do signatário e os comuns até o limite de sua

meação”174.

Sobre a introdução desse dispositivo, Werter Faria entende que:

o art. 3° da Lei 4.121/1962 estendeu a incomunicabilidade às obrigações de um e outro cônjuge, independentemente do regime de bens entre eles, com relação aos títulos de dívida, de qualquer natureza, firmados por um só dos esposos. Quando se tratasse de fiança sem autorização do outro cônjuge, respondiam os bens particulares do obrigado e os bens comuns até o limite de sua meação. A disposição do estatuto da mulher casada alterou a regra sobre a incomunicabilidade das dívidas. Em primeiro lugar, todos os débitos de um dos cônjuges, contraídos sem autorização do outro, foram excluídos da comunhão. Em segundo lugar, a exclusão aplicava-se aos regimes de bens em geral175.

173 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010. 174 Ressalta-se que apesar de o Estatuto da Mulher Casada ter entrado em vigor antes da

promulgação da Constituição da República de 1988, que igualou homens e mulheres, o art. 3° daquele ordenamento não pode ser considerado revogado, porque se refere a cônjuges, ou seja, não faz qualquer distinção entre homens e mulheres.

175 FARIA, Werter R. Do aval, no código civil e os bancos. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 54.

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75

Com o advento do atual Código Civil, não há mais razão para a discussão

doutrinária e jurisprudencial sobre ser nula, anulável ou ineficaz a fiança prestada

sem a outorga conjugal.

O Código Civil de 2002 manteve a necessidade do consentimento do

cônjuge para se prestar fiança, com uma relevante modificação, na medida em que

o art. 1.647 dispõe que, salvo no regime de separação absoluta de bens, nenhum

dos cônjuges pode, sem autorização do outro prestar fiança176. É que “estipulada a

separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um

dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real” (art. 1.687

do CC).

Além dessa modificação, o art. 1.649 do Código Civil determina

expressamente que a fiança prestada sem a outorga conjugal é ato anulável177: “A

falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará

anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois

anos depois de terminada a sociedade conjugal”.

Assim, a fiança deixará de produzir seus efeitos, caso a sua anulabilidade

seja decretada por decisão judicial. Havendo a arguição da anulabilidade da fiança

dada sem o devido consentimento, essa garantia fidejussória será anulada não

apenas quanto à metade do cônjuge que não deu o seu consentimento, mas por

inteiro. Ou seja, a fiança deixará de produzir a totalidade de seus efeitos. Isso

porque, conforme estudado no capítulo anterior, desconstituído ato, em razão da

decretação da invalidade deste, desconstituem-se os efeitos que produziu. É

exatamente nesse sentido a súmula n. 332 do Superior Tribunal de Justiça que

assim dispõe: “A fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a

ineficácia total da garantia”.

Não obstante o texto normativo do art. 1.649 do Código Civil, há julgados

que, confundindo os planos da validade e da eficácia, registram que a fiança

prestada sem a outorga conjugal seria ato nulo, e não anulável:

176 “Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do

outro, exceto no regime da separação absoluta: [...] III − prestar fiança ou aval;”

177 “Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.”

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76

[...] Em relação ao mérito, alega a recorrente que o seu marido não teria prestado a fiança, figurando no contrato como simples testemunha, e que, caso se entenda de modo diverso, a fiança seria nula, por lhe faltar a devida outorga uxória. Quanto à condição de fiador do marido da recorrente, vê-se que a questão é controversa e que não há nos autos, quaisquer elementos para a sua apreciação. No entanto, a existência da fiança e a ausência de outorga uxória na mesma, é fato reconhecido pelo próprio recorrido sendo, assim, incontroverso. É certo que um cônjuge não pode prestar fiança, sem o consentimento do outro, conforme dispõe o art. 1.647, inc. III, do Código Civil, in verbis: ‘Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: [...]; III − prestar fiança ou aval;’ Todavia, existe na doutrina e na jurisprudência uma enorme controvérsia acerca dos efeitos da fiança prestada sem outorga do cônjuge. Para alguns, preserva-se apenas os bens daquele que não anuiu; para outros, a nulidade ou anulabilidade atinge toda a garantia, liberando-se tanto o cônjuge como o próprio fiador. A meu ver, a fiança prestada sem a outorga do cônjuge é nula de pleno direito, atingindo a garantia por completo, liberando-se tanto o cônjuge que não anuiu como o próprio fiador, nos exatos termos do entendimento hoje pacífico no Superior Tribunal de Justiça: ‘PROCESSUAL CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. PREQUESTIONAMENTO. INEXISTÊNCIA. SÚMULAS 282/STF E 211/STJ. AUSÊNCIA DA OUTORGA UXÓRIA. NULIDADE RELATIVA. ARGÜIÇÃO PELO CÔNJUGE QUE PRESTOU A FIANÇA. ILEGITIMIDADE. DECRETAÇÃO DE OFÍCIO PELO MAGISTRADO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. É pacífica a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que é nula a fiança prestada sem a necessária outorga uxória, não havendo considerá-la parcialmente eficaz para constranger a meação do cônjuge varão. 2. É inadmissível recurso especial pela alínea ‘a’ do permissivo constitucional, quando os dispositivos infraconstitucionais tidos por violados não foram debatidos no acórdão recorrido, malgrado tenham sido opostos embargos declaratórios, restando ausente seu necessário prequestionamento. Tal exigência tem como desiderato principal impedir a condução ao Superior Tribunal de Justiça de

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questões federais não examinadas no tribunal de origem. Aplicação das Súmulas 282/STF e 211/STJ. 3. Nos termos do art. 239 do Código Civil de 1916 (atual art. 1.650 do Novo Código Civil), a nulidade da fiança só pode ser demandada pelo cônjuge que não a subscreveu, ou por seus respectivos herdeiros. [TJMG. Apelação cível n. 1.0433.06.175806-9/001. 15ª Câmara Cível. Relator Wagner Wilson. DJU 8/2/2007]178. [...] No que tange ao procedimento adequado para se pleitear a nulidade de fiança prestada por cônjuge verifica-se que os embargos de terceiro são também procedimento próprio. Ora, o parágrafo 3º do artigo 1046 do CPC rege § 3º. Considera-se também terceiro cônjuge quando defende a posse de bens dotais, próprios, reservados ou de sua meação’. Assim, pode o cônjuge pleitear a nulidade de fiança prestada pelo outro, sem autorga uxória, em embargos de terceiro. É pacífico que a fiança prestada pelo cônjuge sem outorga do outro é passível de nulidade do ato por inteiro − inteligência dos artigos 239, 248, III e 249 do CC/16 e 1650, 1.647, III do CCB/02, sendo o procedimento dos embargos de terceiro, expediente que visa afastar da constrição judicial bem da propriedade dou posse do embargante ou do casal, também via própria para conhecer da nulidade da fiança materializada sem a autorga uxória. Neste sentido: 116065311 − PROCESSUAL CIVIL E LOCAÇÃO − TEMA NÃO VENTILADO NA INSTÂNCIA A QUO − INADMISSIBILIDADE − AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO − SÚMULAS 282 E 356/STF − FIANÇA − OUTORGA UXÓRIA − EXISTÊNCIA − REEXAME DE PROVAS − INCIDÊNCIA DE SÚMULA 07/STJ − RECURSO DESPROVIDO − I − Nos termos das Sumulas 282 e 356/STF, é inviável em sede de Recurso Especial a apreciação de matéria cujo tema não fora objeto de discussão no acórdão recorrido, uma vez que cabe ao Tribunal a quo manifestar-se sobre o tema, tendo em vista a exigência do indispensável prequestionamento. II − O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência uniforme no sentido de que é nula a fiança prestada sem a necessária outorga uxória, não havendo como se considerá-la parcialmente eficaz para constranger a meação do cônjuge varão. Não restando caracterizada a ausência da outorga uxória, não há que se falar em nulidade absoluta da fiança. III − É inviável em sede de Recurso Especial a apreciação de matéria envolvendo o reexame de provas, a teor da Súmula 07/STJ, que assim dispõe: ‘A pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial.’ IV − Agravo interno desprovido. (STJ − AGA 595895 − SP − 5ª T. − Rel. Min. Gilson Dipp − DJU 20/9/2004 − p. 00326)179. Com tais razões de decidir, nego provimento ao apelo. Custas, pelo apelante, observando-se o artigo 12 da Lei 1.060/50. (TJMG. Apelação Cível n. 2.0000.00.482270-2/000. 6ª Câmara Cível. Relator Sebastião Pereira de Souza. DJU 28/9/2005)180.

178 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010. 179 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010. 180 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 22 mar. 2010.

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Lado outro, a doutrina citada abaixo, apesar da promulgação do Código

Civil de 2002, entende que a fiança prestada sem outorga conjugal não seria ato

anulável, mas sim ineficaz no que tange à meação do cônjuge que não deu sua

vênia:

[...] o reconhecimento da nulidade traz injustificável benefício ao garantido e ao garantidor, em prejuízo do credor, que pode ficar impossibilitado de satisfazer seu crédito. Sedutora é a vertente jurisprudencial que se inclina por entender, ainda que contra dispositivo expresso de lei (CC 1.649), que a fiança conferida sem a vênia conjugal não é nula e tampouco anulável, mas válida, tendo apenas sua eficácia reduzida à meação do fiador. Ou seja, é ineficaz somente em relação ao cônjuge anuente. Em sede de responsabilidade patrimonial dos cônjuges, mister atentar que ao menos um artigo do Estatuto da Mulher Casada não se encontra revogado (EMC 3°): Pelos títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um só dos cônjuges, ainda que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares do signatário e os comuns até o limite de sua meação. Essa norma permanece no sistema jurídico, nunca foi derrogada, pois jamais outra lei dispôs sobre o tema. Inclusive sua vigência é referendada na lei civil ao afirmar, ainda que de forma pouco clara, no mesmo sentido (CC. 1.663 § 1°): as dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito que houver auferido181.

No entanto, não se pode concordar com o entendimento citado acima.

Isso porque, o art. 1.649 do Código Civil prevê expressa e claramente que a fiança

dada sem outorga conjugal é ato anulável. Outrossim, o art. 176 desse mesmo

ordenamento civilista confirma a anulabilidade da fiança prestada sem o

consentimento do cônjuge, ao dispor que: “Quando a anulabilidade do ato resultar

da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente”.

Assim, nos termos dos arts. 1.649 e 1.650182 do Código Civil, a fiança

prestada sem a outorga conjugal poderá ser anulada pelo cônjuge que não

concedeu autorização para tanto ou pelos herdeiros dele, sendo que o prejudicado

com a decisão judicial que anulou a garantia fidejussória terá direito regressivo

181 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p. 196-197, grifo nosso. 182 “Art. 1.650. A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou

sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros.”

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contra o cônjuge que prestou a fiança sem a outorga conjugal (art. 1.646 do CC183).

Ademais, obviamente, o cônjuge que proporcionou a invalidade da fiança não tem

legitimidade para arguir a anulabilidade da garantia, na medida em que não pode se

valer de sua própria torpeza184.

183 “Art. 1.646. No caso dos incisos III e IV do art. 1.642, o terceiro, prejudicado com a sentença

favorável ao autor, terá direito regressivo contra o cônjuge, que realizou o negócio jurídico, ou seus herdeiros.”

184 AÇÃO DE DESPEJO. OUTORGA UXÓRIA. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA FIANÇA PELO PRÓPRIO FIADOR. IMPOSSIBILIDADE. NEGÓCIO JURÍDICO PERFEITO. SENTENÇA MANTIDA. I − A alegação de nulidade da fiança não favorece o próprio garantidor, porquanto estaria valendo-se de sua própria torpeza, cabendo somente ao cônjuge ou aos herdeiros prejudicados tal argüição, o que não é o caso. (TJMG. Apelação Cível n. 1.0024.06.097996-0/001. 13ª Câmara Cível. Relator Alberto Henrique. DJU 6/11/2008. Disponível em: www.tjmg.jus.br Acesso em: 22 mar. 2010)

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4 OS TÍTULOS DE CRÉDITO E A OUTORGA CONJUGAL

Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a outorga conjugal,

autorização que era exigida tão somente para os atos que envolvem o Direito Civil,

passou a ter interferência também no Direito Comercial, na matéria de títulos de

crédito, porque o art. 1.647, inciso III, daquele ordenamento civilista dispôs que “[...]

nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da

separação absoluta: [...] prestar aval [...]”.

Tal exigência determinada pelo art. 1.647, inciso III, do Código Civil,

merece um estudo e análise, na medida em que poderá descaracterizar a função

primordial dos títulos de crédito que é a dinamicidade e facilidade de sua circulação,

com segurança. Para que se possa refletir sobre isso, é mister que se investigue a

estrutura, os princípios, a função e a importância dos títulos de crédito, instrumentos

estes em que, exclusivamente, pode-se encontrar o aval.

4.1 Da importância dos títulos de crédito

O homem nunca se conteve com as suas próprias aptidões e recursos.

Desde a sociedade mais primitiva, o ser humano sempre esteve em busca de bens

para suprir as suas necessidades e vontades.

Originariamente, com o objetivo de saciar as suas necessidades, o

homem se aproximava uns dos outros para realizar trocas de produtos excedentes

de seus trabalhos. Tratava-se da economia de troca ou economia de escambo que

se caracterizava pelas trocas em espécie185.

Naquela época, adotava-se como instrumento de troca os produtos mais

comuns e, consequentemente, aqueles que existiam em excesso, como, por

exemplo, animais e sal. Posteriormente, utilizou-se de metais preciosos (cobre,

prata, ouro) para a realização das trocas (tráfico mercantil), chegando, depois, a era

da economia de mercado (economia monetária).

185 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, p. 4.

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Evoluiu-se, portando, da economia natural (troca in natura) para a fase

monetária, em que o dinheiro (moeda manual) passou a ser o instrumento de troca

principal.

No entanto, em razão do grande aumento das operações mercantis em

todo o mundo e da necessidade e do interesse de todos em realizá-las de maneira

mais ágil, segura e eficaz, tornou-se necessária a criação de outro instrumento de

troca – que não o dinheiro – para possibilitar as aquisições e vendas de bens e de

serviços no mercado.

Fato é que a moeda manual (dinheiro) é o bem aceito por todos para o

desempenho de qualquer negócio ou operação mercantil, dos mais simples aos

mais complexos. Como confirma Amador Paes:

O dinheiro é o instrumento de troca por excelência. Na expressão de Carvalho de Mendonça, é a mercadoria por todos voluntariamente aceita para desempenhar as funções intermediárias nas aquisições de outras mercadorias e na obtenção de serviços indispensáveis, satisfazendo as necessidades humanas no convívio social; é, ainda, o meio normal de pagamento186.

Não obstante, apesar de a moeda manual ser o “instrumento de troca por

excelência”, ela, por si só, não consegue acompanhar a dinamicidade das atividades

econômicas. Com efeito, para se efetuar um negócio ou operação mercantil,

utilizando-se o dinheiro como o único instrumento de troca, o adquirente de eventual

bem e ou de serviço deverá dispor da respectiva quantia no ato do negócio, o que

certamente dificulta e, até mesmo, impede a dinâmica das atividades econômicas, já

que, na maioria das situações negociais, a necessidade de adquirir um bem ou um

serviço não coincide com a disponibilidade do respectivo valor em espécie.

Em outras palavras, com o crescimento da produção e do consumo e da

necessidade de se ter velocidade nas operações mercantis – o que caracteriza a

economia moderna – tornou-se mister a criação de um meio de circulação de

riquezas mais rápido que aquela permitida pelo dinheiro: o crédito.

Nesse particular, Rosa Jr. esclarece que:

[...] as operações comerciais não se realizam sempre no mesmo momento em que ocorrem todos os seus pressupostos, como a

186 ALMEIDA, Amador Paes de. Teoria e prática dos títulos de crédito, p. 2.

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exteriorização da vontade das partes para a prática do ato, a fixação do preço, o pagamento, a quitação e a transferência do bem que constitui o seu objeto. Em regra, o pagamento, no todo ou em parte, fica diferido no tempo porque o negócio mercantil depende do entrosamento entre a vontade do vendedor, consubstanciada na necessidade e condições por ele estabelecidas para venda, e a vontade do comprador, traduzida por sua necessidade e disponibilidade econômicas. Dessa maneira, o negócio resulta de uma adaptação da situação econômica do vendedor à situação do comprador, e nesse momento surge o crédito, permitindo que o pagamento do preço, ainda que de forma parcial, possa ocorrer posteriormente à celebração do negócio jurídico, facilitando a sua celebração187.

Sobre o crédito, o economista Gide, citado por Bulgarelli, entende que

o crédito tem tomado tal importância nas sociedades contemporâneas que se é tentado a atribuir-lhe virtudes miraculosas. Falando a cada instante das grandes fortunas fundadas sobre o crédito, verificando que as mais vastas empresas da indústria moderna têm por base o crédito, nasce a persuasão invencível de que o crédito é um agente da produção que pode, com a terra e o trabalho, criar a riqueza. Pura fantasmagoria. O crédito não é agente da produção; mas apenas modo especial de produção, o que é muito diferente, como são a troca e a divisão do trabalho. Consiste, segundo vimos, em transferir a riqueza, o capital desta àquela mão e transferir não é criar. O crédito não cria os capitais, como a troca não cria as mercadorias188.

Assim, pode-se dizer que, na concepção econômica, o crédito não é um

criador de capitais, mas sim um fator que fomenta a economia, porque possibilita o

aumento de recursos para as operações mercantis.

Já sob o aspecto jurídico, o crédito é o direito de uma pessoa física ou

jurídica exigir o pagamento de uma prestação e ou cumprimento de uma obrigação.

Por sua vez, há também a definição de crédito em seu aspecto moral,

sendo a confiança que uma pessoa deposita em outra, em razão dos atributos

morais dessa outra, entregando um bem presente para, no futuro, receber coisa

equivalente.

Sob qualquer ângulo, fato é que o crédito é um instrumento imprescindível

para qualquer tipo de negócio, porque permite que uma pessoa possa adquirir um 187 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 4. 188 GIDE, Charles. Compêndio d’economia política apud BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p.

19-20.

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83

bem ou um serviço sem ter de dispor, de imediato, de dinheiro em espécie.

Consequentemente, o crédito permite a maximização de lucros nas atividades

empresárias, porque facilita e torna mais veloz a circulação de riquezas.

A partir desses conceitos, verifica-se que o crédito apresenta dois

elementos: a confiança e o tempo.

De acordo com Rosa Jr., o elemento confiança deve ser analisado sob o

aspecto subjetivo e sob o objetivo. No primeiro aspecto, o elemento confiança é a

crença que o credor tem na pessoa de seu devedor, em razão dos atributos morais

deste. O credor acredita que seu devedor, por ter os requisitos morais básicos,

assumirá com a obrigação, dentro do prazo acordado. Já no segundo aspecto, a

confiança consiste na certeza que tem o credor de que o devedor possui capacidade

econômica suficiente para cumprir com a obrigação, no tempo fixado. Nesse

particular, ressalta-se que o elemento confiança nem sempre se referirá,

exclusivamente, à pessoa do devedor. Mediante a apresentação de garantias (reais

ou fidejussórias), o credor terá uma maior segurança de que receberá a prestação

futura.

Por sua vez, o elemento tempo é o período entre o momento do

cumprimento da prestação presente e o da prestação futura, a qual deverá ser

satisfeita pelo devedor189.

O crédito, portanto, pressupõe segurança na solvabilidade do devedor e

prazo para que este cumpra com a sua obrigação.

Não obstante, apesar de o crédito ser considerado um instrumento

facilitador das operações empresariais ou de qualquer negócio entabulado entre

pessoas, a economia moderna precisou também da criação de uma forma que

permitisse a circulação dos direitos creditórios, com uma garantia para o credor, no

caso de inadimplência do devedor. E isso somente foi possível com a utilização do

instituto dos títulos de crédito.

De acordo com Ascarelli, o instituto dos títulos de crédito foi o que mais

contribuiu para a formação da economia moderna:

A vida econômica moderna seria incompreensível sem a densa rêde de títulos de crédito; às invenções técnicas teriam faltado meios jurídicos para a sua adequada realização social; as relações

189 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 3-4.

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comerciais tomariam necessàriamente outro aspecto. Graças aos títulos de crédito pôde o mundo moderno mobilizar as próprias riquezas; graças a eles o direito consegue vencer tempo e espaço, transportando, com a maior facilidade, representados nestes títulos, bem distantes e materializando, no presente, as possíveis riquezas futuras190.

Da mesma forma, Wille Duarte Costa registra a grande importância dos

títulos de crédito na economia moderna, ressaltando que estes solucionaram o

problema da transferência do crédito, questão esta que o direito comum, por meio da

cessão de crédito, não conseguiu solucionar191. Nesse mesmo sentido, Haroldo

Verçosa e Nancy Franco corroboram:

[...] um dos instrumentos mais utilizados para a difusão do crédito são, precisamente, os títulos de crédito, os quais, em vista da certeza da obrigação neles mencionada e da segurança de que se revestem em sua circulação, têm sido um recurso importantíssimo para os produtores e comerciantes para revestir de certeza e liquidez suas operações comerciais, das quais decorre a utilidade deste título de crédito192.

Em suma, sem o instituto dos títulos de crédito, a circulação de riquezas

por meio do crédito estaria comprometida e, portanto, assim também estariam a

facilidade e agilidade nas operações. Isso porque, ao contrário do sistema de cessão

de crédito − regido pelo direito civil − os títulos de crédito, em razão de seus

princípios e elementos próprios, permitem a certeza do seu direito e a segurança na

sua circulação, satisfazendo, portanto, às necessidades da economia.

190 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1969, p. 3. 191 COSTA, Wille Duarte. Atributos, princípios gerais e teorias dos títulos de crédito: o direito que

precisa ser repensado. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, p. 145. 192 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc; FRANCO, Nancy Gombossy de Melo. Crédito e títulos de

crédito na economia moderna. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 96-104.

Page 87: OUTORGA CONJUGAL NO AVAL: uma análise no plano da eficácia ...

85

4.2 Da origem dos títulos de crédito

Conforme mencionado, o crédito surgiu em razão do aumento da

produção e do consumo e da necessidade de se ter maior velocidade na circulação

de riquezas, ensejando um crescimento nas operações mercantis e,

consequentemente, na economia.

Por sua vez, os títulos de crédito constituíram no instrumento mais eficaz

para possibilitar a circulação dos direitos creditórios com segurança e dinamicidade.

Não obstante, a ideia de circulação de crédito foi, vagarosamente e com

muita resistência, sendo absorvida pelo direito romano. Para se transferir crédito

utilizava-se do instituto de cessão de crédito e, ainda, por meio de procuração em

causa própria.

De acordo com Rosa Jr., no direito romano, não se podia admitir a

circulação de direitos creditórios, porque a obrigação do devedor se vinculava com a

sua pessoa, ou seja, o credor tinha direito sobre a pessoa do devedor, e não sobre o

patrimônio deste. Assim, caso houvesse a mudança da pessoa do devedor, a

respectiva obrigação estaria extinta. Outrossim, a falta de proteção do terceiro

adquirente do crédito desmotivava a circulação dos direitos creditórios, uma vez que

o devedor podia opor ao terceiro as suas exceções pessoais baseadas na relação

causal pactuada com o credor primitivo. Apenas no ano 428 a.C. é que a Lex

Poetelia Papiria considerou que a obrigação do devedor tinha natureza patrimonial,

e não mais pessoal, permitindo, assim, a execução dos bens do devedor.

De qualquer forma, o instituto dos títulos de crédito apenas se

desenvolveu na Idade Média193.

Não há doutrina que afirme com exatidão o momento certo do surgimento

dos títulos de crédito. Apenas se pode afirmar que a letra de câmbio é o mais antigo

dos títulos de crédito.

Na antiguidade, é certo que o comércio já existia (troca in natura), no

entanto, os romanos não realizavam os escambos, por meio da letra de câmbio, ou

seja, eles não conheceram a circulação dos títulos de crédito. Nesse sentido,

Marcos Paulo Félix afirma que:

193 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 39-40.

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86

Produto genuíno dos usos e costumes mercantis, das práticas e dinâmicas do comércio, o instituto jurídico dos títulos de crédito não era conhecido pelo direito romano. Originários da Idade Média, período histórico caracterizado principalmente, sob o ponto de vista econômico, pela ebulição da atividade mercantil, tiveram os títulos de crédito, na precursora letra de câmbio, o iniciar de sua concepção moderna194.

Eunápio Borges, ao citar Kuntze e Valery registra:

Para Kuntze, os costumes dos cambialistas italianos, a prática dos florentinos e genoveses dos séculos XIII, XIV e XV, devem considerar-se a única fonte de tôda matéria cambiária. Aliás, como salienta Valery, não há uma só das instituições mercantis modernas cuja fonte não se encontre no jus mercatorum formado nas corporações medievais italianas195.

Em suma, apenas pode-se afirmar que o instituto dos títulos de crédito

teve a sua primeira aparição na Idade Média, quando surgiu a multiplicidade de

pequenos Estados, principalmente na Itália, onde cada uma das comunas italianas

tinha a sua própria moeda.

A doutrina majoritária196 apresenta a evolução do instituto dos títulos de

crédito em quatro fases: (i) período italiano, até 1650; (ii) período francês, de 1650 a

1848; (iii) período alemão, de 1848 a 1930 e (iv) período do direito uniforme, de 1930

até o presente.

O período italiano desenvolveu-se na Idade Média e apresenta essa

denominação, porque o centro das operações mercantis àquela época estava

localizado principalmente nas cidades marítimas italianas, onde se realizavam as

feiras.

Com a evolução das feiras ou mercados medievais, fazia-se necessário o

transporte de grande quantidade de dinheiro, em espécie, para se efetuar compras

194 SILVA, Marcos Paulo Félix da. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas,

p. 27. 195 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, p. 37. 196 Cf. COSTA. Wille Duarte. Títulos de crédito. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006; ROSA JÚNIOR,

Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007; BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2001; MARTINS, Fran. Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória segundo a lei uniforme. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 2001.

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87

em outras feiras ou cidades, sendo que o risco de ter o dinheiro roubado ou perdido

era enorme. Diante dessa situação, surgiu a ideia da carta (littera) ou documento

chamado quirógrafo. Este documento trouxe a seguinte solução: o

comerciante/comprador procurava um banqueiro, em sua cidade, e entregava a este

um determinado valor em moeda local. Diante disso, aquele banqueiro entregava ao

comerciante a littera, a qual informava a outro banqueiro – representante na cidade

de destino do comerciante – que este tinha a autorização de receber valor

correspondente àquele entregue, na cidade de origem, em moeda da cidade de

destino.

No que tange à littera, Rosa Jr. registra:

[...] surgida no século XIII, não apresentava ainda as características da cambial moderna, porque tinha a função de mero instrumento de pagamento e não de instrumento de crédito. Inicialmente, a sua emissão exigia o preenchimento de dois requisitos básicos: a) distancia loci, significando que o documento só podia ser criado se o lugar da emissão fosse distinto do lugar do pagamento; b) permutatio pecuniae, exigindo que fossem distintas as espécies de moeda da praça de emissão e da praça do pagamento. A existência desses requisitos para a criação da letra de câmbio caracteriza o documento como instrumento de pagamentos internacionais, constituindo-se no ponto de partida da evolução do título de crédito197.

Em suma, a littera proporcionava maior segurança aos comerciantes, mas

não podia ser considerada como um verdadeiro título de crédito, mas sim como uma

contribuição para o início da estrutura das letras de câmbio nas cidades italianas e

nas feiras medievais.

O período francês, segunda fase da evolução histórica da letra de câmbio,

foi marcado pelo surgimento da cláusula à ordem, na França, permitindo, portanto, a

circulação dos direitos registrados naquele título de crédito.

O beneficiário do título tinha o direito de transferi-lo a quem quisesse e

sem a necessidade de qualquer autorização. Por sua vez, aquele que recebesse o

título, em razão da cláusula à ordem, poderia transferi-lo novamente e o portador

final tinha o direito de exigir o valor do título de qualquer obrigado anterior,

197 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 42-43.

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88

passando, portanto, a ser um legítimo instrumento de pagamento e não mais de

simples troca.

Ademais, a letra de câmbio, nesse período, passou a ser emitida por

qualquer pessoa, não importando se esta se tratava de comerciante ou não.

Também, esse documento passou a ser emitido em decorrência de diversos

negócios, o que excluiu a exigência do requisito distancia loci.

Todavia, para a validade do saque da letra de câmbio ainda era

necessária a existência do prévio depósito de fundos em mão do sacado. A letra

devia ser apresentada ao sacado para que este aceitasse ou não a ordem de

pagamento, surgindo, portanto, a declaração do aceite.

Nesse período surgiu o endosso, facilitando, em muito, o desenvolvimento

do crédito, já que é o meio próprio e mais seguro para a circulação dos títulos de

crédito. O endosso nasceu sem qualquer formalismo. Para a sua existência, bastava

a assinatura do endossante, o que o diferenciava da cessão de crédito, em que se

exigia as assinaturas do cedente e do cessionário.

O período alemão – terceira fase – iniciou-se em 1848, quando surgiu na

Alemanha a Ordenação Geral do Direito Cambiário, ordenamento este que codificou

as normas da cambial, separando-as das normas do direito comum.

Rosa Jr. discrimina os pontos importantes destacados por aquela

legislação cambial alemã:

a) a letra de câmbio foi considerada instrumento de circulação no interesse do comércio; b) o título correspondia a uma obrigação literal e inteiramente desvinculada de qualquer vínculo formal com o contrato de câmbio, e, assim, a criação do título não mais dependia de prévio contrato, pois valia por si mesmo e o direito cambiário decorre do título em si, e não da relação causal que o originou; c) estabeleceu-se a distinção entre a obrigação decorrente da relação causal e a obrigação emanada do título, viabilizando a circulação da obrigação cambiária independentemente da obrigação consubstanciada na relação causal; d) a letra podia circular por endosso independentemente de conter a cláusula à ordem, bastando apenas que nela figurasse a sua denominação, mas, inicialmente, só se admitia endosso em branco, ou seja, consistente na mera aposição no título da assinatura do endossante, sem identificar a pessoa do endossatário; e) a pessoa que aceitasse a letra assumia a obrigação de devedora principal perante o sacador e o terceiro portador; f) a obrigação era caracterizada como cambial quando resultasse de título regido e transmitido de acordo com a lei; g) protegia-se o terceiro de boa-fé, tornando-o invulnerável às exceções pessoais argüidas pelo devedor, com base na sua relação com o

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credor originário, enquanto o cessionário adquire direito derivado, vale dizer, o mesmo direito do cedente; h) a letra estava desvinculada de sua causa pela consagração cambiária, e o título de crédito passou a corresponder o documento constitutivo de direito novo (cartular), deixando de ser mero documento probatório da relação causal; i) o título passou a ser considerado como bem móvel e sujeito, portanto, ao princípio que rege a circulação de tais bens (a posse de boa-fé vale como propriedade)198.

Portanto, pode-se dizer que o período alemão foi aquele em que o direito

do possuidor do título passou a ser autônomo, nascendo ainda o princípio da

inoponibilidade das exceções pessoais. Trata-se da fase em que o título mais

evoluiu, consolidando-se em um verdadeiro instrumento de crédito com uma fácil e

rápida circulação.

Por sua vez, no período do direito uniforme – quarta fase da evolução dos

títulos de crédito – não obstante a grande influência alemã, muitos países ainda

adotavam os sistemas italiano e francês.

No entanto, em razão do aumento do comércio internacional e

considerando que os títulos de crédito eram os instrumentos mais utilizados para

tanto, fazia-se necessária a uniformização da legislação para facilitar ainda mais a

circulação do crédito e, consequentemente, a economia.

Assim, este período é marcado pela uniformização da legislação

cambiária que decorreu da Conferência de Genebra, em 1930, quando foi aprovado

o Anexo I – Lei Uniforme de Genebra sobre letra de câmbio e nota promissória – e,

em 1931, a matéria sobre cheques.

4.3 Da formação da Teoria dos Títulos de Crédito

Para De Lucca “A palavra teoria exprime, ao lado do conceito de

conhecimento especulativo puramente racional, a doutrina ou o sistema acerca dos

princípios fundamentais de uma arte ou ciência”199. Teoria é a construção e o

apontamento de noções e definições gerais sobre um determinado instituto.

198 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 45-46. 199 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 3.

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90

Assim, pode-se dizer que a Teoria dos Títulos de Crédito é a formação de

um sistema que estabelece caracteres e princípios comuns às diferentes espécies

de títulos de crédito existentes. Para Marcos Paulo Félix:

A teoria geral dos títulos de crédito estabeleceu princípios dominantes, já bem sedimentados na doutrina e jurisprudência brasileira, a partir dos quais extrai-se as noções gerais dos títulos de crédito, esclarecem-se as normas jurídicas disciplinadoras da matéria e balizam-se os debates legislativos na produção das leis, além de determinar a diferenciação dos títulos de crédito de outros documentos, identificando-os, por conseqüência, como tais200.

De acordo com Ascarelli, traçar uma teoria para os títulos de crédito é

estabelecer quais são os princípios e as exigências jurídicas desse instituto. Não

obstante, o autor afirma que:

O problema dos títulos de crédito é, mais que qualquer outro, um problema de técnica jurídica, pois com freqüência, a dificuldade não reside na interpretação da norma ou na individuação do fim visado pelo legislador, mas na coordenação da norma do sistema geral. E justamente por isso lembramos que o problema dos títulos de crédito tem origem no contraste entre as exigências da circulação e as regras do direito comum201.

No que tange à Teoria dos Títulos de Crédito, De Lucca também aponta

uma questão problemática:

[...] todo o âmbito da teoria geral foi se construindo sobre a cambial, elemento isolado, a que se relacionou, de forma íntima, outro elemento que é a nota promissória, embora possa se vislumbrar a recíproca influência existente entre os elementos e a totalidade, cada um guarda uma autonomia própria que advém das alterações dos mecanismos da troca. Em outras palavras, a teoria geral representa uma totalidade que está em permanente transformação, não apenas pela variação no número de elementos que a compõem (o número de títulos de crédito não é fixo mas variável), como pela modificação dos próprios elementos específicos, sujeitos às mais variadas influências do comércio nacional e internacional.

200 SILVA, Marcos Paulo Félix da. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas,

p. 28. 201 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1969, p. 13.

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Dir-se-á, com alguma dose de razão, que os títulos atípicos que forem surgindo não são de molde a alterar a essência da teoria geral de vez que eles promanam de princípios ditados pela última. Um novel título de crédito atípico, nascido em razão de determinada exigência operacional de um certo mercado, viria caracterizado por aqueles traços fundamentais delineados pela Teoria Geral dos Títulos de Crédito202.

Percebe-se, portanto, a dificuldade de se estabelecer uma teoria para os

títulos de crédito, já que estes são diversos e, além de serem regidos por princípios

comuns, também possuem autonomias e características próprias. Ou seja, é difícil

uma construção de um sistema unitário, porque os títulos de crédito evoluem de

acordo com as relações econômicas e são criados em momentos distintos, em razão

das necessidades mercantis.

Assim, pode-se dizer que a Teoria dos Títulos de Crédito estará em

eterna evolução, acompanhando as necessidades das relações econômicas,

podendo surgir requisitos que não se enquadrem aos já existentes.

De qualquer forma, é essa teoria que sempre explicará as normas

disciplinadoras dos títulos de crédito e o porquê do predomínio dessas normas sobre

as regras do direito comum.

No decorrer deste capítulo pretende-se demonstrar a Teoria dos Títulos

de Crédito, apresentando a conceituação dos títulos de crédito, seus atributos e

princípios fundamentais.

4.3.1 Conceito

De acordo com Ascarelli203, a primeira definição dos títulos de crédito foi

formulada pelo jurista alemão Brunner, que os entendia como sendo quaisquer

documentos cuja apresentação era imprescindível para o exercício do direito neles

referido. Tal conceito era o adotado na Alemanha. Para este país, qualquer

documento que fosse utilizado para provar a existência de dívida seria um título de

crédito. Ascarelli destaca, ainda, que o conceito de Brunner reunia, “em uma única

202 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 28. 203 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1969, p. 19-20.

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categoria, hipóteses heterogêneas e que mal se prestam a ser regulamentadas

pelas mesmas regras gerais”204.

Em outras palavras, pode-se dizer que o conceito formulado por Brunner

é tão amplo que abrange diversos documentos inclusive aqueles que não

apresentam os princípios dos títulos de crédito.

Por sua vez, José Maria Whitaker, ressaltando a importância econômica

dos títulos de crédito, entende que estes são documentos que permitem a realização

imediata do valor que eles representam205.

De fato, conforme já estudado, o instituto dos títulos de crédito foi o que

possibilitou a circulação de riquezas por meio do crédito com facilidade e agilidade.

No entanto, o referido conceito não é completo, porque não registra os princípios

comuns dos títulos de crédito, conforme será estudado adiante.

Já Eunápio Borges conceitua o título de crédito como sendo “O

documento, no qual se materializa, se incorpora a promessa da prestação futura a

ser realizada pelo devedor, em pagamento da prestação atual realizada pelo

credor”206. O referido doutrinador entende que o direito está incorporado no título de

crédito, concordando, pois, com a teoria da incorporação elaborada por Savigny. De

acordo com a conceituação de Eunápio Borges e com a teoria de Savigny: “I – o

direito não existe sem o documento no qual se materializou; II – o direito não se

transmite sem a transferência do documento; III – o direito não pode ser exigido sem

a exibição e a entrega do título ao devedor que satisfez a obrigação nele

prometida”207.

Lado outro, o jurista italiano Cesare Vivante, com o objetivo de enquadrar

todos os títulos de crédito em um único conceito e de criar uma teoria para eles,

fixando-lhes princípios comuns, definiu o título de crédito “como o documento

necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”208. A

definição de Vivante registra os princípios fundamentais dos títulos de créditos que

ainda serão analisados. Para Rodríguez Zavala, citado por Adolfo Rovillon, o

conceito de Vivante permite não só explicar o que são os títulos de crédito, como

204 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1969, p. 19-20. 205 WHITAKER, José Maria. Letra de câmbio, p. 18 apud ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da.

Títulos de crédito, p. 51. 206 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1972, p. 8. 207 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1977, p. 10. 208 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, p. 21.

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93

também incluir os títulos de crédito legislados como os que não o estão, mas que

podem aparecer mais tarde no comércio209.

Ainda, consoante a definição de Vivante, percebe-se que, de forma

diferente da teoria da incorporação, o doutrinador entende que o direito não está

“contido” no título de crédito, mas nele “mencionado”.

Vivante criticou a teoria da incorporação, porque, para ele, a perda do

título de crédito (documento) não, necessariamente, implica na perda do direito nele

“mencionado”. Pode acontecer de o possuidor do título de crédito não ser o

verdadeiro titular/proprietário do direito real. Ainda, “[...] com a perda do título não

ocorre o desaparecimento do direito. Ele torna-se (o direito) suspenso até que o

título seja substituído por outro equivalente”210.

Nesse diapasão, De Lucca corrobora:

Decorre, para nós, que o direito, embora guardando profunda conexão com o documento e daí resultando o fenômeno da cartularidade, não tem sua existência estritamente condicionada à cártula. O direito é algo imaterial, e, como tal, não desaparece com o documento, como afirmou VIVANTE, porque sua conexão – mesmo íntima com o documento – não pode destruir a sua imaterialidade que extrapola os limites da cártula [...]. Entendemos que o reconhecimento da prevalência do elemento real sobre o obrigacional nos títulos de crédito não leva necessariamente à conclusão de que, por isso, o direito ‘incorpora-se’ no documento. A concretização do título de crédito como coisa móvel atendeu à finalidade precípua da circulação e, de certa forma, explica-se pelo fenômeno da cartularidade, aqui empregada em seu mais amplo sentido: propriedade emergente do título211.

Ascarelli também entende que a expressão “incorporação” não é

adequada, já que o desaparecimento do título (documento) não enseja a perda do

direito nele “mencionado”. Ainda, para o autor é verdade que

o possuidor do título, por força da legitimação derivada da posse (I), vale como proprietário, legitima-se como proprietário do título e pode, por isso, exigir a prestação (2); mas, titular do direito, é o proprietário e, não, o possuidor.

209 Tradução nossa: El concepto de Vivante permite no sólo explicar lo que son los títulos de crédito,

sino incluir los títulos de crédito legislados como los que no lo están, pero que pueden aparecer más tarde en el comercio. (ZAVALA, Carlos Juan Rodríguez. Código de comercio comentado apud ROUVILLON, Adolfo A. N. Digesto practico la ley: procesos de ejecucion y títulos valores I, p. 11)

210 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 12-13. 211 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 13.

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94

Tanto isso é verdade que provando-se não ser, o possuidor, proprietário do título, não poderá exigir a satisfação da prestação e será vencido no conflito com o proprietário212.

Para Ascarelli, então, o documento serve para dar suporte ao direito nele

mencionado, havendo entre aquele e este uma conexão, em razão da necessidade

do documento para o exercício e a transferência do direito. Portanto, apesar da

ligação entre o documento e o direito nele representado, verifica-se uma verdadeira

distinção entre eles, podendo-se dizer, pois, que a definição de Vivante sobre os

títulos de crédito é a mais adequada e completa. Nesse particular, Wille Duarte

Costa comenta que:

Com esta definição todos concordam, pois tem sido repetida seguidamente pelos autores e por todos que querem fazer um estudo sério sobre os títulos de crédito. É dela que vamos extrair os elementos necessários aos conhecimentos desses títulos chamados de crédito, tão importantes, que sempre serviram de sustentação para a evolução da economia, em todos os tempos até os dias de hoje213.

O Código Civil Brasileiro de 2002, em seu art. 887, fundamentado na

conceituação elaborada por Vivante, define214 os títulos de crédito da seguinte

forma: “O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e

autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos de

lei”.

A uma simples leitura do mencionado dispositivo, poder-se-ia dizer que

este quase que reproduziu o conceito de Vivante, porque teria apenas acrescentado,

ao final do texto da norma, a necessidade de se respeitar as formalidades do

documento, para que este possa ser enquadrado como um título de crédito215. No

212 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 261. 213 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 67. 214 Sobre a conceituação dos títulos de crédito registrada pelo Código Civil de 2002, Jean Carlos

Fernandes chama à atenção para o fato de não se enquadrar nas funções do legislador ministrar conceitos e definições, porque estas “[...] de nada adiantam num texto e fogem à missão simplesmente normativa” [...]. “Muitas vezes, as definições feitas pelo legislador obstam a evolução de determinados institutos jurídicos, uma vez que, embora a doutrina e a jurisprudência os atualizem, o texto legal impede o seu aprimoramento, o que dependeria de uma burocrática e morosa alteração legislativa”. (FERNANDES, Jean Carlos. (Re)leitura dos princípios dos títulos de crédito: por uma superação da visão clássica. Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 11 set. 2010)

215 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 22.

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95

entanto, conforme já registrado, para Vivante o direito não está “contido” no

documento (art. 887 do CC), apenas nele “mencionado”, o que distingue, em

grandes proporções, a definição de Vivante da do texto normativo registrado pelo

art. 887 do Código Civil. Nesse sentido, Marcos Paulo Félix destaca que:

[...] não é correto afirmar que o Código Civil reproduziu fielmente o conceito de Cesare Vivante. Em verdade, o art. 887 deturpa o conceito de Vivante ao definir que o título de crédito é um documento que contém um direito literal e autônomo. O vocábulo ‘contido’ traz consigo a idéia, combatida por Vivante, de incorporação do direito pelo documento. Contudo, se efetiva incorporação existisse, perdido o título, perdido estaria o direito216.

Em suma, mediante a análise das referidas definições, ressaltando-se a

de Vivante que deve ser considerada a mais adequada e, considerando a função

econômica dos títulos de crédito, pode-se entender que estes são documentos

formais e necessários para o direito de satisfazer ou de exigir o valor neles escrito

de forma imediata e sem a necessidade de qualquer autorização217.

De acordo com Giuseppe Gualtieri e Ignacio Winisky, citado por Adolfo

Rovillon, entende-se que,

além da função probatória do documento como coisa, o título de crédito é normalmente um documento constitutivo, pois é necessário para o nascimento do direito cartular e normalmente para que esse direito tenha seu ciclo vital e dispositivo, porque é necessário dispor essencialmente do documento para obter a prestação ali prometida. Também é um documento formal porque deve apresentar um conjunto de requisitos legais mínimos prescritos218.

216 SILVA, Marcos Paulo Félix da. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas,

p. 29-30. 217 Ainda no que tange ao conceito dos títulos de crédito, Coelho da Rocha ressalta que estes não

podem ser tratados como os atos jurídicos classificados, no Direito Civil: “Ao mesmo tempo em que entende-se os títulos de créditos como escapando à natureza contratual, nascidos, a rigor, da simples vontade expressa de seu emitente, eles não se confundem inteiramente, de outro modo, como os atos obrigacionais puramente unilaterais, como a gestão de negócios, pela própria carga obrigacional toda própria das cambiais, pelo aspecto tão importante da circulabilidade autônoma e formal – dos títulos de crédito”. (ROCHA. João Luiz Coelho da. Os títulos de crédito e o código civil vigente. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico Financeiro, p. 55)

218 Tradução nossa: Amén de la función probatória del documento como cosa, el título circulatorio es normalmente un documento constitutivo pues es necesario para el nacimiento del derecho cartular y normalmente para que ese derecho recorra su ciclo vital; y dispositivo, pues es necesario disponer esencialmente del documento para obtener la prestación allí prometida. También es un documento formal por cuanto debe presentar un conjunto de requisitos mínimos legalmente prescriptos. (GUALTIERI, Giuseppe; WINISKY, Ignacio. Títulos circulatorios apud ROUVILLON, Adolfo A. N. Digesto practico la ley: procesos de ejecucion y títulos valores I, p. 11)

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Ademais, conforme o próprio nome sugere, os títulos de crédito são

documentos que necessitam de crédito para existirem. Assim, os títulos de crédito

sempre trarão consigo os elementos essenciais do crédito que são o tempo e a

confiança. Nesse particular, Wille Duarte Costa ressalta que:

Sem crédito não há título de crédito. Se, ao contrário, ocorrer a confiança do credor, este deve conceder tempo para que o débito seja liquidado, podendo surgir daí o título de crédito que materializa a relação creditícia. Havendo só a confiança, sem permissão de tempo para liquidação de débito, não há também crédito e menos ainda título de crédito. Mas pode ocorrer que a confiança venha da garantia oferecida: garantia pessoal ou fidejussória (aval) ou garantia real (penhor, hipoteca, etc)219.

Percebe-se, portanto, que, antes de tudo, para se ter um título de crédito,

o crédito, em si, e seus elementos essenciais – tempo e confiança – devem estar

presentes.

Da mesma forma, para que os títulos de crédito possam ser válidos, eles

devem obedecer aos requisitos exigidos por lei, sendo certo que as formalidades

poderão variar de acordo com o tipo de título de crédito regido por sua respectiva

legislação específica. Daí ser dito que os títulos de crédito são documentos formais.

Consoante os ensinamentos de Fran Martins, lê-se que

é, assim, o formalismo o fator preponderante para a existência do título e sem ele não terão eficácia os demais princípios próprios dos títulos de crédito. [...] Cada espécie de título possui, assim, uma forma própria. Isso se obtém através do cumprimento de requisitos, expressamente enumerados na lei. Devem, desse modo, tais requisitos constar obrigatoriamente dos títulos, e do modo preconizado na lei. Porque, assumindo as pessoas, nos títulos de crédito, obrigações mediante o lançamento de suas assinaturas nos documentos, a simples posição dessas assinaturas no documento pode acarretar diversidade no cumprimento da obrigação assumida. Os requisitos que devem figurar nos títulos são enumerados de acordo com as espécies dos mesmos; em regra, se faltar no documento ao menos um daqueles requisitos considerados essenciais, o escrito não terá valor de título de crédito, não se beneficiando, assim, do direito especial que ampara esses títulos220.

219 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 68. 220 MARTINS, Fran. Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória segundo a lei uniforme, p.

11.

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97

Nem sempre a ausência de requisitos impostos pela lei gera a

insubsistência do título de crédito. Há requisitos facultativos e os essenciais. Apenas

a falta dos essenciais poderá gerar a nulidade do título de crédito.

No entanto, ressalta-se que há a possibilidade de se preencher os vários

requisitos legais dos títulos, inclusive os essenciais, após o saque ou emissão do

título de crédito e, até mesmo depois de sua circulação, sendo certo que a má-fé do

possuidor pode invalidar os efeitos do título de crédito.

A legislação cambiária não determinou o momento em que o título deve

apresentar todos os seus requisitos essenciais para que ele possa ser válido. Assim,

conclui-se que essas exigências formais devem estar presentes no momento em

que será exercido o direito consubstanciado no título de crédito, sendo, portanto,

autorizado o portador a preencher os requisitos legais, até esse momento. É nesse

sentido, a súmula n. 387 do STF que assim dispõe: “A cambial emitida ou aceita

com omissões, ou em branco, pode ser completada pelo credor de boa-fé antes da

cobrança ou do protesto”.

Por fim, ainda no que tange à conceituação do título de crédito, destaque-

se que, sendo este um documento, é considerado um bem móvel221 e, portanto, está

sujeito às regras e aos princípios que regulam a circulação de tais bens, por

exemplo, a posse de boa-fé equivale à propriedade. O portador de boa-fé do título

deve justificar a sua propriedade com uma série ininterrupta de endossos222.

221 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p. 63. ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos

de crédito, p. 55. 222 “[...] independentemente da diferente extensão, nas diversas legislações, da proteção do possuidor

que, de boa fé, adquiriu o título, podemos afirmar ser, titular do direito cartular, o proprietário do título, quer seja tal o possuidor de boa fé (como no sistema italiano e, em geral, quanto aos títulos cambiários), quer a tutela da boa fé não compreenda a hipótese dos títulos extraviados ou furtados (como no sistema francês, a não ser quanto aos títulos cambiários). O proprietário do título é, por isso mesmo, titular do direito (I); diante do antigo proprietário prevalece quem atualmente (é o que afirma também o art. 20) possue (sic) o título em virtude de aquisição de boa fé e sem culpa grave. Quando o possuidor do título não é proprietário, porque não o adquiriu de boa fé (2), prevalece o proprietário, embora este não seja o possuidor”. (ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 260)

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98

4.3.2 Do conteúdo normativo dos princípios

Para Paulo Márcio Cruz, os princípios “não estão acima ou além do

Direito. Não são metajurídicos. Eles fazem parte, numa visão que supera as

concepções tradicionais e absolutistas das fontes normativas, do ordenamento

jurídico, convivendo com as regras e orientando a sua produção”. Acrescenta o autor

que os princípios

assumem um papel cada vez mais importante e vital para os ordenamentos jurídicos, segundo a doutrina contemporânea, principalmente se analisados sob a égide dos valores neles compreendidos. São eles que devem nortear, com o prestígio e destaque que lhes são peculiares, a interpretação, aplicação e mutação do Direito pelos tribunais”

Nesse diapasão, conclui o autor que os princípios são “normas inscritas

nos textos constitucionais destinados a estabelecer valores fundamentais para a

interpretação, integração, conhecimento e aplicação do Direito”223.

Seguindo a mesma linha de pensamento do autor citado acima, Karl

Larenz, citado por Humberto Ávila

[...] define os princípios como normas de grande relevância para o ordenamento jurídico, na medida em que estabelecem fundamentos normativos para a interpretação e aplicação do Direito, deles decorrendo, direta ou indiretamente, normas de comportamento [...] os princípios seriam pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são regras suscetíveis de aplicação, na medida em que lhes falta o caráter formal de proposições jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma conseqüência jurídica. Daí por que os princípios indicariam somente a direção em que está situada a regra a ser encontrada, como que determinando um primeiro passo direcionador de outros passos para a obtenção da regra224.

Observa-se, mediante os citados conceitos, o conteúdo normativo dos

princípios. Estes não são meros valores que podem influenciar o ordenamento

jurídico, eles são, ao lado das regras, autênticas normas jurídicas. 223 CRUZ, Paulo Márcio. Os princípios constitucionais. In: _____. Princípios constitucionais e direitos

fundamentais, p. 12. 224 LARENZ Karl. Richtiges Recht, p. 26 apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à

aplicação dos princípios jurídicos, p. 35-36.

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No entanto, esse caráter normativo atribuído aos princípios somente teve

lugar com a influência pós-positivista. O jusnaturalismo e o positivismo jurídico não

veem os princípios como normas jurídicas. Bonavides destaca que “A juridicidade

dos princípios passa por três distintas fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-

positivista”225.

O jusnaturalismo é uma das doutrinas clássicas de pensamento jurídico

que trabalha com a existência de princípios apriorísticos, universais e de uma lei

natural eterna e imutável, previamente legislada, em razão da ordem natural das

coisas ou da consciência do homem. “Ainda, para o jusnaturalismo – mormente

naqueles autores do moderno jusnaturalismo –, é o ideal de justiça,

permanentemente perseguido, que configura o fim do Direito, fazendo-se dos

princípios, elementos fundamentais na busca da realização deste ideal”226. No

entanto, o jusnaturalismo não entende que os princípios são normas jurídicas. Sobre

isso, Fábio Corrêa Sousa de Oliveira explica que:

Na etapa iusnaturalista, que remonta aos primeiros momentos da cultura humana, os princípios gerais, na sua maior parte, possuem uma juridicidade nula ou beirante ao ínfimo. A sua normatividade quando não totalmente desprezada é duvidosa. Os princípios estão postos numa dimensão abstrata e metafísica, um tanto distante da prática jurídica comum227.

Ainda no que tange aos princípios na fase jusnaturalista, Berberi

corrobora e completa:

[...] os princípios contém grande carga valorativa voltada, principalmente, para o ideal de justiça. Todavia, esta carga é metafísica, predeterminada e imutável, o que faz com que os princípios não tenham a condição de espelhar as transformações sociais que ocorrem cotidianamente (afora sua ambientação distante da sociedade). São, destarte, supra-sociais, o que os torna apenas meros pontos de referência, ficando deveras reduzida sua importância. [...] Em assim sendo, quem admite tal identidade conceitual, por esta perspectiva, coloca os princípios jurídicos fora do ordenamento, como elemento de transcendência, sendo eles buscados, assim,

225 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 259. 226 BERBERI, Marco Antônio Lima. Os princípios na teoria do direito, p. 48. 227 OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Por uma teoria dos princípios: o princípio constitucional da

razoabilidade, p. 22.

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numa outra dimensão que não a jurídica por excelência. Sem embargo da importância que tal escola dispensa aos princípios gerais de Direito, posto estarem localizados no âmbito do Direito Natural, e, por isso, em posição de preponderância sobre as normas de direito positivo (as quais devem a eles se amoldar), é inafastável; contudo, a sua caracterização como verdadeiros dogmas, verdades preestabelecidas e imutáveis, categoria comum no pensamento Jusnaturalista. Por serem configurados como normas de Direito Natural, não é dado aos homens a sua não observância, muito menos a possibilidade de criticá-los, tudo isso indicado pela própria racionalidade da escola jusnaturalista228.

Em suma, não existe o caráter normativo dos princípios na fase

jusnaturalista. Para este pensamento jurídico, a concepção dos princípios gerais do

Direito está ligada a um ideal de justiça posto por verdades derivadas da lei divina

ou humana e, por isso, os princípios, para a fase jusnaturalista, são

hierarquicamente superiores às normas positivadas, imutáveis e eternos229.

Por sua vez, com o objetivo de se almejar segurança jurídica, inicia-se a

fase juspositivista ou do positivismo jurídico. Nessa fase, os princípios ingressam

nos códigos como fonte normativa subsidiária e, portanto, sua importância é

minimizada, na medida em que são hierarquicamente inferiores às regras ou normas

jurídicas (tratando-se aqui como sinônimas). Berberi esclarece:

[...] pelo referencial teórico do positivismo jurídico é possível se inferir que aos princípios jurídicos seria reservada uma posição inferior àquela destinada às regras ou normas jurídicas, delas se derivando e servindo, pelo tratamento dado pela Lei de Introdução ao Código Civil, como instrumentos de preenchimento de lacunas no sistema, no caso de omissão legal. Sendo assim, resta claro que, estando os princípios positivados, expressos no ordenamento, são tratados como regras; caso contrário, estando implícitos, são tratados como princípios gerais de Direito, localizados em plano diferente daquele referente às regras ou normas (mantendo-se, ainda aqui, a identidade entre os institutos), desempenhando, por elementar, função distinta e de menor importância, decretando-se, via de conseqüência, sua inferioridade hierárquica230.

228 BERBERI, Marco Antônio Lima. Os princípios na teoria do direito, p. 49-50. 229 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 261. 230 BERBERI, Marco Antônio Lima. Os princípios na teoria do direito, p. 63-64.

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O positivismo jurídico considera o Direito como um conjunto de normas

positivadas, sendo estas o seu elemento primordial. Daí a minimização dos

princípios, no Direito, para a fase juspositivista.

Por sua vez, na fase pós-positivista, os princípios deixam de ser tratados

de forma, hierarquicamente, inferior às regras. O pensamento jurídico pós-positivista

coloca os princípios em uma posição de imperatividade ao lado das regras, não mais

se concebendo, pois, utilizar, como sinônimas, as expressões “normas” e “regras”.

Nesse sentido, Berberi explica que:

[...] diante da imperatividade de que são dotados os princípios, é preciso que se lhes dê um lugar na teoria da norma, diferente do que lhes atribui o jusnaturalismo e o positivismo jurídico. E para isso, necessário se faz o abandono da superposição dos conceitos de norma e regra e, por conseguinte, a construção de uma nova teoria da norma. Neste passo, a distinção entre norma e regra se impõe, até porque, em assim não se procedendo, resta uma dificuldade intransponível de se atribuir normatividade aos princípios, o que se explica pela seguinte indagação: se norma e regra são a mesma coisa, e princípio (não positivado) não é regra – e, portanto, não é norma –, como os princípios podem ser dotados de normatividade? [...] a lei é um fato gráfico, o qual permanece o mesmo até que sobrevenha um ato legislativo que o modifique ou o retire do ordenamento. A norma, por seu turno, é produto mental, sendo portanto derivada da interpretação que se faz do texto. Pode haver, por isso, tantas normas quantas forem as cabeças dissidentes, o que engendra a idéia de que de uma regra possam ser derivadas várias normas. [...] a regra é um critério: um critério de valor. A regra penal, por exemplo, é um critério de desvalor da conduta. Portanto, é possível sustentar que a lei, enquanto fato gráfico, é ‘montada’ sobre determinado critério. [...] Conclui-se, então, que o texto ou o enunciado (lei) traz consigo uma regra (critério de valor), da qual, por meio da interpretação, cria-se (mentalmente) uma norma para o caso que se está analisando.

Portanto, pode-se dizer que para se compreender o conteúdo normativo

dos princípios, é necessária a distinção entre as expressões “normas” e “regras”. Do

contrário, estar-se-ia esvaziando o conteúdo normativo dos princípios. Estes não são

regras. Nesse particular, apenas a título de esclarecimento, é válida a citação de

Humberto Ávila que destaca que a doutrina que analisa a distinção entre princípios e

regras apresenta quatro critérios:

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Em primeiro lugar, há o critério do caráter hipotético-condicional, que se fundamenta no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto [...]. Em segundo lugar, há o critério do modo final de aplicação, que se sustenta no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto tudo ou nada, ao passo que os princípios são aplicados de modo gradual mais ou menos. Em terceiro lugar, o critério do relacionamento normativo, que se fundamenta na idéia de a antinomia entre as regras consubstanciar verdadeiro conflito, solucionável com a declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, ao passo que o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, solucionável mediante ponderação que atribua dimensão de peso a cada um deles. Em quarto lugar, há o critério do fundamento axiológico, que considera os princípios ao contrário das regras, como fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada231.

Em suma, pode-se dizer que, apesar da distinção entre regras e

princípios, ambos são utilizados e analisados, sem qualquer posição de hierarquia,

para a boa aplicação do Direito, ou seja, a norma jurídica se divide em princípios e

regras jurídicas. Esse é o pensamento jurídico pós-positivista cujo precursor foi

Ronald Dworkin. “Para Dworkin, o juiz não possui discricionariedade judicial

exatamente porque o ordenamento jurídico não é formado apenas por regras

jurídicas, como acreditava Hart, mas também por princípios”232.

No entanto, Berberi adverte que “nem todos os princípios estão expressos

no ordenamento jurídico. Há vários deles que não se encontram positivados mas

nem por isso são de somenos importância”233.

Diante do conteúdo normativo dos princípios, pode-se dizer que, no

campo do direito cambiário, a cartularidade, a autonomia e a literalidade são

verdadeiros princípios dos títulos de crédito. Isso porque, conforme se verá adiante,

a cartularidade, a autonomia e a literalidade são os próprios fundamentos do direito

231 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 39. 232 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 57. 233 BERBERI, Marco Antônio Lima. Os princípios na teoria do direito, p. 86.

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cambiário, são elas que identificarão os títulos de crédito e, portanto, darão

norteamento a esses documentos formais.

Não obstante, a doutrina se diverge com relação à designação da

cartularidade, da literalidade e da autonomia dos títulos de crédito. Uns entendem

que se trata de características234; outros, de atributos235; outros, de elementos ou

requisitos essenciais236; outros ainda, de princípios237.

Conforme já destacado, o presente estudo traz o entendimento de que a

cartularidade, a literalidade e a autonomia são verdadeiros princípios dos títulos de

crédito e não meras características ou atributos.

Nesse particular Jean Carlos Fernandes explica com categoria que

a cartularidade, a literalidade e a autonomia não podem ser tratadas meramente como elementos de qualificação dos títulos de crédito (característica, atributos, elementos, predicados e requisitos), mas, sim, como fundamento de julgamento do direito cambiário, ‘com o que se enrijece o seu sistema e se lhe permite ser disciplina inconfundivelmente separada das outras’. [...] Para o direito cambiário, portanto, a cartularidade, a literalidade e a autonomia não são meras características, requisitos, elementos ou atributos, mas verdadeiramente princípios, ou seja, normas voltadas, sobretudo para uma continuidade personificada, como sugere a tese dworkiana. Referir-se, assim, à cartularidade, literalidade e autonomia como ‘princípios’ é mais adequado, levando-se em consideração que se constituem em verdadeiros comandos normativos da teoria geral dos títulos de crédito, servindo como alicerce de todo o instituto. Segundo Magalhães, ‘A literalidade, a autonomia, a abstração, a formalidade e a cartularidade são considerados princípios porque enrijecem o Direito Cambiário e permitem disciplinar o instituto distinguindo-os dos outros’. São, portanto, os princípios que norteiam os títulos de crédito os responsáveis pela certeza e a segurança esperada por aqueles que depositam na cártula a confiança para a consecução de seus negócios jurídicos. Tais princípios, sem dúvida alguma, são frutos do esforço da doutrina que culminou numa das melhores

234 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, p. 321. ALMEIDA, Amador Paes de. Teoria e

prática dos títulos de crédito, p. 3. 235 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 68; BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1971,

p. 12. 236 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p. 64. 237 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 61. MARTINS, Fran. Títulos de

crédito: letra de câmbio e nota promissória segundo a lei uniforme, p. 7; SILVA, Marcos Paulo Félix. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas, p. 28.

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demonstrações da capacidade criadora de ciência jurídica nos últimos séculos, chegando, inclusive, a restarem positivados238.

De Lucca corrobora e registra que é “razoável concluir-se, assim, que a

teoria geral dos títulos de crédito refere-se ao sistema de princípios próprios

aplicáveis a tais instrumentos”239.

Em outras palavras, a cartularidade, a autonomia e a literalidade

compõem o próprio sistema jurídico dos títulos de crédito, ou seja, a teoria geral dos

títulos de crédito. Por essa razão são princípios: normas jurídicas com,

consequentemente, caráter imperativo. Logo, é necessário o estudo desses

princípios para que se consiga entender com clareza o conceito e a função dos

títulos de crédito.

Sobre o princípio da literalidade, destaque-se que o adjetivo literal

significa o que é conforme a “letra” do texto de forma restrita, objetiva e clara.

Vivante, citado por Newton de Lucca, define com precisão a literalidade: “Diz-se que

o direito mencionado no título é literal, porquanto ele existe segundo o teor do

documento”240. De forma semelhante, Carvalho de Mendonça citado por Ascarelli,

em nota de rodapé, entende que a literalidade “tem como conseqüência que o

devedor não é obrigado a mais, nem o credor pode ter outros direitos senão aqueles

declarados no título”241.

O conceito de literalidade elaborado pelo jurista italiano Messineo dispõe

que: “O direito decorrente do título é literal no sentido de que, quanto ao conteúdo, à

extensão e às modalidades desse direito, é decisivo exclusivamente o teor do

título”242.

A literalidade, portanto, é princípio comum aos títulos de crédito que

determina que o direito do credor corresponde àquilo que está, restrito e

literalmente, mencionado no título de crédito.

Eunápio Borges acrescenta ainda que a literalidade não pode ser

confundida com:

238 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 59-60. 239 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 4. 240 VIVANTE, Cesare. Trattato di diritto commerciale apud DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria

geral dos títulos de crédito, p. 48. 241 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1969, p. 37-38. 242 MESSINEO, Francesco. Titoli di credito apud ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de

crédito, 1969, p. 37.

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[...] independência, plenitude – a completezza dos autores italianos – porque ela não exclui a possibilidade de virem a integrar a declaração constante do título elementos estranhos ao documento e por ele invocados de modo explícito ou implícito. E assim o título, embora literal, pode ser incompleto, porque a configuração do direito dele resultante – do direito cartular – fica na dependência de elementos que não figuram no título mas, por ele invocados, ficam fazendo parte integrante da declaração cartular243.

A situação exposta pelo referido autor pode ser exemplificada quando há

o registro, no verso de um título de crédito, de que este documento estaria vinculado

a um determinado contrato.

Ainda, Eunápio Borges244 entende que a literalidade apresenta duas

direções, em relação às partes, uma positiva e uma negativa. Sob o aspecto

positivo, a literalidade não permite que o credor exija direitos ou elementos além

daqueles escritos no título de crédito. Já com relação ao aspecto negativo, tal

princípio não permite que nem o credor nem o devedor invoquem contra a relação

cartular fato ou elemento não emergente do título de crédito. Diante disso, para

Osvaldo Gómez, citado por Adolfo Rovillon, a característica de literalidade dos títulos

de crédito traz confiança, possibilitando a fácil negociação dos títulos antes de seu

vencimento, permitindo a função de crédito própria dos mesmos245.

Ressalta-se que a literalidade não pode ser confundida com o formalismo:

por este entende-se que os títulos de crédito devem respeitar os requisitos impostos

por lei. De acordo com Fran Martins:

Indispensável se torna que o documento se revista de certas exigências impostas pela lei para que tenha a natureza de título de crédito e assegure ao portador os direitos incorporados no mesmo. É, assim, o formalismo o fator preponderante para a existência do título e sem ele não terão eficácia os demais princípios próprios dos títulos de crédito. Tanto a autonomia das obrigações como a literalidade e a abstração só poderão ser invocadas se o título estiver legalmente formalizado, donde dizerem as leis que não terão o valor

243 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1972, p. 13. 244 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1972, p. 13. 245 Tradução nossa: La caractererística de literalidad de los títulos circulatorios produce la suficiente

confianza como para posibilitar la fácil negociación de los títulos antes de su vencimiento, permitiendo la función de crédito propria de los mismos. (GÓMEZ, Osvaldo Leo. Intituciones de derecho cambiario: títulos de crédito, apud ROUVILLON, Adolfo A. N. Digesto practico la ley: procesos de ejecucion y títulos valores I, p. 12)

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do título de crédito os documentos que não se revestirem das formalidades exigidas por ditas leis246.

Já o princípio da literalidade, conforme analisado, visa à subordinação do

direito cartular, exclusivamente, àquilo que está literalmente escrito no título de

crédito.

Por sua vez, ressalta-se que a relação cartular existente entre o credor e

o devedor é distinta e independente da eventual e anterior relação causal ou

extracartular. Wille Duarte Costa explica que tal fato ocorre em decorrência do

princípio da autonomia que pode ser visto sob três aspectos: autonomia do direito,

autonomia das obrigações e autonomia do título.

No que tange à autonomia do direito, o mencionado autor destaca que o

direito do portador do título de crédito é autônomo ou independente em relação aos

possíveis direitos dos anteriores possuidores do título. Por isso, surge a

inoponibilidade das exceções pessoais247.

A inoponibilidade das exceções pessoais protege o terceiro adquirente de

boa-fé ao impedir que o devedor do título possa arguir, contra aquele terceiro

adquirente, defesa pessoal oponível a um possuidor anterior do mesmo título de

crédito.

Lado outro, destaque-se que, caso haja vícios na relação cartular como,

por exemplo, falsificação do conteúdo do título de crédito, homônomos, declarações

cambiárias falsas ou de incapazes, tais vícios poderão ser arguídos, pouco

importando a boa-fé do terceiro portador.

Assim, em decorrência do princípio da autonomia do direito e da

inoponibilidade das exceções pessoais, quando um título de crédito circula, o

endossatário adquire um direito originário, totalmente desvinculado da relação

causal que deu origem ao título de crédito e, portanto, autônomo, mas não

derivado248. É exatamente nesse sentido o entendimento de Osvaldo Gómez, citado

por Adolfo Rovillon:

246 MARTINS, Fran. Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória segundo a lei uniforme, p.

11. 247 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 69. 248 Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções

fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor (Lei Uniforme de Genebra).

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O caráter autônomo dos títulos de crédito significa que quem adquire o direito contido no mesmo, o faz de forma originada, ou seja não derivada, pois o novo titular não é sucessor do sujeito que transmitiu o título. Por consequente, o novo portador regular do título de crédito pode exercer um direito próprio, distinto, independente e não vinculado às relações jurídicas existentes entre os possuidores anteriores do título e o devedor249.

Nesse particular, vale destacar os ensinamentos de Ascarelli. Segundo o

autor, dois são os sentidos do princípio da autonomia:

a) segundo um significado, ao falar em autonomia quer-se afirmar que não podem ser opostas ao subseqüente titular do direito cartular as exceções oponíveis ao portador anterior, decorrentes de convenções extracartulares, inclusive, nos títulos abstratos, as causais [...]; b) segundo um outro significado, ao falar em autonomia, quer-se afirmar que não pode ser oposta ao terceiro possuidor do título a falta de titularidade de quem lho transferiu [...]250.

Note-se que o segundo sentido apresentado por Ascarelli é exatamente o

que consagra a 2ª alínea do art. 16 da Lei Uniforme de Genebra (LUG)251.

No que tange à autonomia das obrigações, Wille Duarte Costa explica

que as declarações cambiárias são independentes entre si, não se vinculando umas

com as outras. Caso haja, no título de crédito, uma declaração nula, esta não afetará

as demais252. Isso está positivado no art. 7° da Lei Uniforme de Genebra, nos

seguintes termos:

Art. 7°. Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi

249 Tradução nossa: El carácter autónomo de los títulos de crédito significa que quien adquiere el

derecho cartáceo contenido en el mismo, lo hace en forma originaria, es decir por no derivada, pues el nuevo titular no es sucesor del sujeto que le transmitió el título. En consecuencia, el nuevo portador regular del título de crédito puede ejercitar un derecho próprio, distinto, independiente y no restingible por las relaciones jurídicas existentes entre los anteriores poseedores del título y el deudor. (GÓMEZ, Osvaldo Leo. Intituciones de derecho cambiario: títulos de crédito, apud ROVILLON, Adolfo A. N. Digesto practico la ley: procesos de ejecucion y títulos valores I, p. 13)

250 TULLIO, Ascarelli. Teoria geral dos títulos de crédito apud DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 188.

251 “Se uma pessoa foi por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente, não é obrigado a restituí-la, salvo se a adquiriu de má-fé ou se adquirindo-a, cometeu uma falta grave”.

252 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 69.

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assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.

Por fim, Wille Duarte Costa explica o aspecto da autonomia do título, nos

seguintes termos:

O endosso, isto é, a transferência do título e do direito dele emergente para uma terceira pessoa, que não participou da causa que fez nascer o título, implica na desvinculação do título do negócio que lhe deu origem. Neste caso, endossado o título a terceiro, desvincula-se o mesmo da causa da qual surgiu. Por isso, ainda que anulada por qualquer razão a causa debendi originária, o título continua produzindo seus efeitos253.

Nesse particular, é importante analisar a hipótese em que um título de

crédito esteja vinculado a um contrato (relação causal), o que é bem comum

hodiernamente. Nesse caso, Rosa Jr. entende que o título de crédito perde a sua

autonomia, podendo inclusive o devedor opor as exceções pessoais contra o

terceiro portador do título:

[...] a lei não protege o terceiro adquirente de má-fé, que fica vulnerável às exceções pessoais do devedor para com o credor com quem se relaciona diretamente no título. Isto ocorre, por exemplo, quando a nota promissória está expressamente vinculada a contrato porque o emitente poderá opor ao terceiro adquirente a relação causal entre ele e o beneficiário do título. Isso porque a vinculação do título ao contrato faz com que perca a sua autonomia e o terceiro adquire o direito derivado254.

Wille Duarte Costa corrobora ao registrar que: “Se o título circular por

endosso, desvincula-se da causa que lhe deu origem, a não ser que,

expressamente, fique nele próprio consignada a sua vinculação ao negócio original,

caso em que o portador não pode alegar desconhecimento e boa-fé, para se

desligar da causa que deu origem ao título”255.

Nesse mesmo sentido, é o entendimento do Desembargador Elias Camilo

do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

253 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 70. 254 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 69. 255 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 71.

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[...] Estando preenchidos os requisitos do art. 585, II, do CPC, é possível a execução de título constituído por contrato firmado entre as partes. A nota promissória vinculada ao contrato não é título executivo independente, porquanto despida da autonomia e abstração indispensáveis, devendo estar acompanhado do contrato a que se vincula [TJMG. Autos n. 1.0024.05.798602-8/002(1). 14ª Câmara Cível. Relator Elias Camilo. Julgado em 2/8/2007]256.

De outro norte, é o entendimento do Desembargador Alberto Henrique,

componente da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

Mesmo sendo inexeqüível o contrato de confissão de dívida por não ter sido assinado por duas testemunhas, ação pode prosseguir em relação à nota promissória, tendo em vista a sua autonomia [TJMG. Autos n. 1.0024.08.217658-0/001(1). 13ª Câmara Cível. Alberto Henrique. Julgado em 5/3/2009]257.

Com efeito, deve-se concordar com o entendimento de que, apesar da

nota promissória – citada na jurisprudência acima – ter sido vinculada a um termo de

confissão de dívida sem a assinatura de duas testemunhas, ela não perde a sua

executividade. No entanto, consoante os outros entendimentos doutrinário e

jurisprudencial demonstrados, pode-se dizer que essa mesma nota promissória teria

perdido a sua autonomia já que vinculada a um contrato. Nesse particular, ressalta-

se, ainda, a súmula n. 258 do STJ que assim dispõe: “a nota promissória vinculada a

contrato de abertura de crédito não goza de autonomia em razão da iliquidez do

título que a originou”.

Em outras palavras, o título de crédito que tenha, em seu conteúdo, o

registro de vinculação a um negócio extracartular perderá a sua autonomia,

devendo-se analisar o caso concreto, ou melhor, o respectivo contrato vinculado ao

título, para se verificar se este também perderá a sua executividade. Por exemplo,

uma nota promissória vinculada a um contrato ilíquido, também absterá de liquidez,

sendo impossível executá-la:

A nota promissória vinculada a contrato de cessão de estabelecimento comercial não goza de autonomia, tendo em vista a própria iliquidez do título que a originou [STJ. Agravo Regimental no

256 Disponível em: www.tjmg.gov.br. Acesso em: 30 maio 2009. 257 Disponível em: www.tjmg.gov.br. Acesso em: 30 maio 2009.

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110

Agravo de Instrumento n. 221302/SP. 4ª Turma. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Publicado em 14/2/2000]258.

Portanto, é certo que os títulos de crédito vinculados perdem a sua

autonomia. Entretanto, dependerá de análise do caso concreto, diga-se da relação

causal vinculada, para conseguir analisar a perda ou não da executividade.

Ainda no que tange ao princípio da autonomia, mister ressaltar a

abstração dos títulos de crédito. Para Ascarelli, a abstração é um princípio do direito

cambiário:

A introdução do endosso, a difusão da cambial como instrumento de crédito independentemente de um contrato de cambio e a multiplicação das clausulas que se referiam a um ‘valor recebido’ em mercadorias, conduziram Eineccius a afirmar a literalidade e a abstração da cambial; o princípio da abstração foi retomado e reelaborado no seculo findo por Eintert, Liebe e Thoel e foi recebendo adesões cada vez mais numerosas259.

Explica o mencionado autor que, pelo princípio da abstração, “o negocio

cambiario não só não menciona a causa, como tambem pode, na realidade, no caso

concreto, por um lado, resultar, de relações fundamentais diversas (venda, mutuo,

etc.), por outro, preencher a variedade de funções peculiar aos negocios abstratos

(de garantia, pagamento, etc.)”260. Em outras palavras, o princípio da abstração

permite que o título de crédito surja em decorrência de qualquer relação causal e

dela se desvincule após a sua criação.

Sobre o princípio da abstração, Eunápio Borges registra que:

[...] há títulos que além de autônomos, são abstratos, no sentido de que circulam isolados e desprendidos da causa de que se originaram. É claro que em qualquer caso, quer a emissão, quer a negociação do título está prêsa a uma causa concreta – compra e venda, mútuo etc. – mas a lei – em certos títulos – faz completa abstração de tal causa. São títulos abstratos e neutros no sentido de que não se prendem legalmente a nenhuma causa certa e determinada, podendo servir de molde para qualquer obrigação. Qualquer que seja a natureza e a origem desta, poderá ela incorporar-se no título abstrato, cuja absoluta independência em relação à causa desconhecida constitui

258 Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 30 maio 2009. 259 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 100. 260 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 104.

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111

fator de maior segurança e tranqüilidade para os sucessivos adquirentes de títulos – como a letra de câmbio, a nota promissória e o cheque –: é a abstração ou abstratividade (a astrattezza dos autores italianos) – que Valeri diz constituir a exacerbação da autonomia, do mesmo modo que o formalismo é a exacerbação da literalidade261.

Ainda sobre o negócio abstrato, Bulgarelli acrescenta que:

Entre as partes, obviamente, a causa dessa emissão ou criação do título poderá ser invocada, processualmente, por via do direito pessoal do réu contra o autor ou em decorrência da lei que os criou. Necessário é, a propósito, distinguir-se a causa da relação fundamental (o negócio jurídico entre as partes, ou seja, mútuo, compra e venda, doação etc.) da causa da emissão ou criação do título (esta chamada pela doutrina de convenção executiva, ou seja, negócio distinto da relação fundamental, embora decorrente dele, como: pagamento, garantia, crédito, declaração etc.), daí por que o negócio abstrato se caracteriza como um negócio de segundo grau, conseqüência de um negócio causal entre as mesmas partes262.

Ascarelli esclarece a distinção entre a relação fundamental, o negócio

abstrato e a “convenção executiva”, nos seguintes termos:

É evidente que, embora possa preencher em tese um grande numero de finalidades, o negocio abstrato no entanto, em cada caso concreto, visa um único fim. Para verificar qual esse fim, não podemos recorrer ao proprio negocio, justamente porque é abstrato, mas devemos recorrer a um negocio diferente havido entre as partes, juridicamente distinto, embora psicologicamente conexo com o primeiro, e em que aquele fim é determinado (pagamento, garantia, credito, declaração etc.). É este negocio o que se costuma chamar convenção executiva. O fim do negocio abstrato não pode, por seu turno, ser determinado na convenção executiva, sinão com referencia a uma relação distinta incorrente entre as partes (relação fundamental), pois independentemente dessa referencia, o negocio abstrato não poderia preencher nenhuma função. Portanto, a convenção executiva determina a função a ser preenchida corretamente pelo negocio abstrato, isto é, a sua conexão com a relação fundamental.

261 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, p. 17. 262 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p. 71.

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É em substancia, essa a consequencia da propria abstração do negocio, isto é, de sua separação da causa. Daí, de um lado a sua distinção de uma relação fundamental logicamente anterior e, de outro, a necessidade de determinar a sua conexão com essa relação fundamental. Assim, realizo uma compra ou obtenho um emprestimo (negocio fundamental); assino, por isso, uma cambial (negocio abstrato); entregando-a seja pro soluto; seja pro solvendo (convenção executiva)263.

Conforme exposto pelo autor, mediante o princípio da abstração, percebe-

se que o título de crédito se desvincula da relação fundamental que lhe deu origem,

sendo que esta, pois, não poderá, futuramente, ser invocada para invalidar as

obrigações decorrentes do título. Nesse particular, verifica-se que o princípio da

abstração está intimamente relacionado com o princípio da autonomia dos títulos de

crédito, mormente quando analisado sob o aspecto da “autonomia do título”,

destacado por Wille Duarte da Costa, conforme registrado nos parágrafos acima.

Lado outro, em uma análise diferente de Wille Duarte da Costa, Fran Martins

diferencia o princípio da abstração do da autonomia, nos seguintes termos:

Outro princípio característico dos títulos de crédito é a abstração. Significa isso que os direitos decorrentes do título são abstratos, não dependentes do negócio que deu lugar ao nascimento do título. A abstração às vezes tem sido confundida com a autonomia mas, na realidade, são coisas diferentes. Abstratos são os direitos porque independem do negócio que deu origem ao título. Uma vez o título emitido, liberta-se de sua causa, e, assim, a mesma (que tem sido chamada de relação fundamental ou negócio fundamental) não poderá ser alegada futuramente para invalidar as obrigações decorrentes do título, pois esse, uma vez emitido passa a conter direitos abstratos, não cabendo, de tal modo, a exigência de contraprestação para poder ser satisfeita a obrigação264.

Para Fran Martins, o princípio da autonomia se restringe à autonomia das

obrigações que são independentes umas das outras. Lado outro, o da abstração

está ligado à ideia da desvinculação do título com a respectiva relação fundamental,

no momento em que ele é posto em circulação.

263 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 91-92. 264 MARTINS, Fran. Títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória segundo a lei uniforme, p.

10-11.

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Por sua vez, Jean Carlos Fernandes registra que o princípio da abstração

está diretamente ligado ao princípio da autonomia sob o aspecto da “autonomia do

título”:

A autonomia dos títulos de crédito compreende dois aspectos: autonomia do título (abstração) e autonomia das obrigações nele assumidas (independência das obrigações cambiais). Pela abstração temos que os direitos decorrentes dos títulos são abstratos, independentes do negócio que deu lugar ao seu surgimento. A abstração não se confunde com a autonomia das obrigações cambiais (princípio da independência das obrigações cambiais). Aquela traz a regra de que uma vez emitido o título este se libera de sua causa e esta disciplina que as obrigações assumidas no título são independentes umas das outras265.

No entanto, o mencionado autor observa que a jurisprudência tem

limitado a aplicação do princípio da abstração quando inexistente a circulação do

título de crédito, “admitindo, assim, a discussão da causa debendi entre as partes do

negócio subjacente”266:

Não há se falar em aplicabilidade do princípio da abstração, a títulos que não circularam. Neste caso, as exceções pessoais, do pagamento da quantia descrita no cheque, são oponíveis entre devedor e credor que figuraram na relação jurídica causal. No caso de ter havido a circulação do cheque, o princípio da inoponibilidade de exceções pessoais ao terceiro de boa-fé, decorrente do princípio da abstração, veda ao devedor a oposição do pagamento ao possuidor da cártula, fundada em irregularidades no negócio subjacente, uma vez que aquele exerce direito próprio oriundo, tão-somente, do título de crédito. Não é absoluto o princípio da inoponibilidade das exceções pessoais, podendo o devedor se opor ao pagamento do título de crédito apresentado por portador de má-fé. Com efeito, doutrina e jurisprudência são uníssonas em admitir ao devedor tal mecanismo de defesa. Mas cabe a ele o ônus da prova. O cheque no qual não consta o beneficiário e que é preenchido pelo portador, indicando a si como o sacador do valor nele descrito, não tem sua validade comprometida, posto que, antes do preenchimento, já era devido ao portador o pagamento do crédito. A jurisprudência, especialmente desta Corte, vem deixando claro que a emissão de cheque em branco pelo devedor não implica a nulidade deste, posto que configura outorga de mandato tácito àquele a quem foi confiado o título. Não pode ser acolhida a alegação de inexigibilidade do título

265 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 67. 266 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 68.

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exeqüendo, emitido em branco, em face da ausência total de provas de que teria sido preenchido abusivamente [TJMG. Apelação Cível n. 1.0024.05.640561-6/001. 17ª Câmara Cível. Relator Eduardo Marine da Cunha. DJ 28/9/2006]267.

Por meio da análise da citada doutrina que estuda o princípio da

abstração, percebe-se que há divergência de conceituação e de interligação entre

este princípio e o da autonomia.

Assim, com o objetivo de esclarecer e de esgotar qualquer possível

confusão conceitual entre os princípios da autonomia e da abstração, pode-se

simplificar a questão ora estudada, considerando a abordagem que Vinícius Gontijo

faz sobre essa questão nos seguintes termos:

De fato, a autonomia está presente em todos os títulos de crédito, sendo-lhes mesmo essencial, enquanto a abstração é meramente incidental, na medida em que existem títulos de crédito, plenamente válidos, abstratos, e outros, também plenamente válidos, causais. A abstração decorre do fato da lei que criou o título não lhe prever as causas de sua emissão, dessa sorte, como em direito privado o que não é proibido é permitido, o título poderá ser sacado tendo como negócio jurídico subjacente qualquer obrigação lícita [...]268.

Portanto, percebe-se, nitidamente, que, apesar de interligados, os

princípios da autonomia e da abstração não se confundem, mormente porque há os

títulos causais que não são abstratos. Os títulos causais apenas podem ser

originados em decorrência de uma determinada relação causal, como por exemplo,

a duplicata que somente pode ser emitida em razão de uma compra e venda

(duplicata mercantil) ou de uma prestação de serviço (duplicata de prestação de

serviço). Nesse contexto, Ascarelli destaca sobre os títulos causais:

Vale a pena pôr de relevo que, partindo dos princípios agora referidos, fica explicado porque é impossivel, nos titulos causais, uma circulação autonoma do direito derivado da relação fundamental, em concorrencia com o correspondente direito causal, não se pondendo falar, quanto aos titulos causais, em concurso da ação cartular e da derivada da relação fundamental.

267 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 17 jan. 2010. 268 GONTIJO. Vinícius José Marques. Interrupção da prescrição pelo protesto cambial. Revista de

Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 6.671.

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A impossibilidade, a que nos referimos, ressalta de observação que o subscritor do titulo causal, assinando o titulo, declara que o titular deste é credor em virtude de uma determinada relação fundamental (é, por exemplo, o socio de certa sociedade; o destinatario de determinada carga) [...]. Diferente é a situação nos titulos abstratos, a cujo respeito, pela sua propria abstração, não se poderia falar em correspondencia do titulo com uma determinada relação fundamental, sendo, por isso, possivel a diversa circulação dos dois direitos – o cartular e o decorrente da relação fundamental [...]269.

No entanto, vale ressaltar que, embora os títulos causais precisem,

necessariamente, de serem criados por uma relação fundamental determinada, esta

“só poderá ser oposta aos que foram parte na relação fundamental, e ao terceiro

ciente do vício do negócio fundamental. Assim, obviamente, protege-se a circulação

do título [...]”. Em outras palavras, a ausência de abstração de alguns títulos não

retira a autonomia destes. Nesse sentido, Jorge Lobo e Pontes de Miranda, citados

por Jorge Lobo corroboram:

Anote-se, por fim, que não é apenas em relação à letra de câmbio e à nota promissória que a causa do negócio jurídico não pode ser invocada pelo devedor, porém, também, em relação à duplicata, título eminentemente causal, porque sempre oriundo de uma compra e venda mercantil ou de um contrato de prestação de serviços, como se lê em PONTES DE MIRANDA: ‘Até o aceite, ou até o endosso pelo criador do título, não há relação jurídica oriunda da duplicata mercantil, como título cambiariforme; ela apenas duplica a fatura, que é o documento, unilateral, mas bilateralizável, da compra e venda. Lá está até o aceite, ou antes do aceite, prova, reproduzida, do contrato de compra e venda, que entrou no mundo jurídico [...]. Também antes do aceite da letra de câmbio, nenhuma relação jurídica existe entre o sacador e sacado, que seja cambiária. A relação jurídica cambiariforme, nas duplicatas mercantis, surge com o aceite, entre vendedor-subscritor e o comprador-aceitante, ou entre aquele e o primeiro endossatário. A diferença está, portanto, em que a abstração da letra de câmbio é aparente, peculiar à sua forma; ao passo que a abstração da duplicata mercantil somente se pode dar por esvaziamento, com o endosso ou com o aceite, a despeito da aparência da concreção. A letra de câmbio já vai oca, abstrata, para o tomador ou aceitante; a duplicata mercantil, não: parte cheia, concreta, mas esvaziável’ (Tratado de Direito Privado, RT, 3ª ed., reimpressão, Tomo XXXVI, § 4012, n. 8)270.

269 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, p. 178. 270 LOBO, Jorge. As dez regras de ouro dos títulos cambiais. Revista dos Tribunais, p. 159-168.

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Por sua vez, a doutrina indicada abaixo, ao lado dos princípios acima

estudados, apresenta a independência dos títulos de crédito, como um atributo ou

característica de algum deles. Assim como a “abstração”, a “independência” não

abrange todos os títulos de crédito271. De acordo com Rosa Jr. a independência

significa que:

[...] o título de crédito basta a si mesmo, sem necessidade de outro documento para completá-lo porque não surge de nenhum outro documento. Por isso, o direito cambiário pode ser exercitado pelo seu titular independentemente da causa que o originou, porque a ela não se vincula. Cada obrigação constante do título não depende das demais obrigações cambiárias, e o vício existente em uma das obrigações não contamina as demais (Decreto n. 2.044/1908, art. 43, LUG, art. 7°, e LC, art. 13). A doutrina não erige a independência como princípio geral porque existem títulos de crédito que dependem de elementos a eles estranhos, como, por exemplo, a cédula de crédito rural, que é complementada pelo orçamento272.

Eunápio Borges também registra que a independência refere-se aos

títulos de crédito completos, plenos que são bastantes em si mesmo. Para o autor:

Além da literalidade, comum a todos, há alguns títulos de crédito que, por determinação da lei, apresentam outra qualidade, a independência ou compiutezza (Vivante), que poderíamos traduzir por plenitude, ou o formalismo em sentido técnico (Valeri), em virtude da qual tais títulos são completos no sentido de se bastarem a si mesmos, sem necessidade e sem possibilidade de qualquer apelo ou remissão a elementos estranhos a eles273.

Destaque-se que a independência não se confunde com o princípio da

autonomia. Este, sob três aspectos, representa: (i) a independência das obrigações

cambiárias; (ii) a autonomia do direito, no sentido de que o direito do portador do

título não é derivado, mas sim originário e (iii) a autonomia do título, no sentido de

que este está totalmente desvinculado da causa que lhe deu origem. Lado outro, a

independência representa a desnecessidade de documentos complementares ao

título de crédito para que este seja válido.

271 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p. 67. 272 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 72. 273 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1971, p. 17.

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Por fim, a cartularidade é, assim como a autonomia e a literalidade, um

princípio comum aos títulos de crédito, e, portanto, faz parte da própria

fundamentação destes.

O princípio da cartularidade decorre da necessidade da apresentação do

documento para o exercício do direito nele registrado. De acordo com De Lucca,

este princípio resulta da literalidade e da autonomia. “É em razão de ser o direito

mencionado no título literal e autônomo que a apresentação da cártula torna-se

necessária para o exercício desse direito”274. Pelo direito cartular, o documento

impõe-se essencial ao exercício do direito nele mencionado. Da mesma forma, “[...]

sem o documento, o devedor não está obrigado, em princípio, a cumprir a

obrigação”275.

Nesse contexto, ressalta-se que o princípio da cartularidade é

denominado por alguns doutrinadores como incorporação276. Daí se dizer que o

direito se materializa/incorpora no documento.

No entanto, conforme já estudado no tópico acima, a palavra

“incorporação” foi criticada por Vivante, tendo Ascarelli o acompanhado. É que,

deve-se entender que o direito está mencionado no título de crédito, e não

incorporado neste. Isso porque, a perda do título de crédito (documento) não,

necessariamente, implica na perda do direito nele “mencionado”.

De Lucca, com categoria, soluciona a divergência doutrinária sobre a

incorporação do direito no documento ou a menção daquele neste. Para o autor,

entendendo-se que é o direito cartular que se incorpora no título de crédito, não há

diferença prática em utilizar a palavra incorporação, materialização ou menção:

[...] poderíamos dizer que o direito se incorpora no documento (no sentido de direito cartular) mas não se incorpora, por outro lado, diante da hipótese de perda, quando ele será exercido independente da existência do título (tomada a expressão aqui no sentido de direito à recuperação). Decorre que, admitida a existência de ‘dois direitos’, não há erro lógico algum em dizer-se que o direito está e ao mesmo tempo não está incorporado no documento, de vez que a afirmação, na verdade, apenas quer dizer ‘um’ dos direitos está contido no documento (direito cartular) e o outro não se contém nele (direito ao

274 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 57. 275 BULGARELLI, Waldirio. Títulos de crédito, p. 66. 276 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 68. ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos

de crédito, p. 65. BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, p. 12.

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cumprimento da prestação e que no caso se exterioriza como direito de recuperação do título)’277.

Portanto, pode-se dizer que a incorporação abrange tão somente o direito

emergente da cártula, e não o direito de exigir o cumprimento da obrigação. A

apresentação do documento é necessária para o exercício do direito literal e

autônomo nele registrado. Assim, destaque-se que o original do título de crédito, e

não a sua cópia, ainda que autenticada, é imprescindível para a propositura de

eventuais procedimentos executivos.

Por fim, vale destacar que, para Raúl Cervantes Ahumada, a legitimação

é consequência do princípio da cartularidade. Isso porque, de acordo com o autor

mexicano,

para exercer o direito é necessário ‘legitimar-se’ exibindo o título de crédito. A legitimação tem dois aspectos: ativo e passivo. A legitimação ativa consiste na propriedade ou qualidade que tem o título de crédito de atribuir a seu titular [...]. Em seu aspecto passivo, a legitimação consiste em que o devedor obrigado no título de crédito cumpre sua obrigação e, portanto, se libera dela, pagando a quem se apresenta como titular do documento. 278

4.4 Das declarações cambiárias

Várias são as teorias279 que se referem à natureza da obrigação cartular,

sendo que, de acordo com De Lucca, “[...] a discussão entre as teorias

contratualistas e as do ato unilateral deixaram de existir, por evidente predomínio

277 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 60. 278 Tradução nossa: Para ejercitar el derecho es necesario ‘legitimarse’ exhibiendo el título de crédito.

La legitimación tiene dos aspectos: activo y pasivo. La legitimación activa consiste en la propriedad o calidad que tiene el título de crédito de atribuir a su titular [...]. En su aspecto pasivo, la legitimación consiste en que el deudor obligado en el título de crédito cumple su obligación y por tanto se libera de ella, pagando a quien aparezca como titular del documento. (AHUMADA, Raúl Cervantes. Títulos y operaciones de crédito, p. 10-11)

279 “Matéria vastíssima e caracterizada por extrema complexidade é, positivamente, a que diz respeito à natureza da obrigação cartular. São tantas as teorias existentes em torno de tão delicado problema que a simples tarefa de enumerá-las ou de classificá-las importa em considerável sacrifício por parte do estudioso”. (DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 73)

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destas últimas”, mas o autor acrescenta que “[...] as duas variantes da teoria

unilateral (a da emissão e a da criação) ainda suscitam dúvidas entre os autores”280.

Nesse sentido, Ascarelli corrobora:

A doutrina cambiaria já chegou a afirmar, desde o século passado, a unilateralidade do ato em que assenta a constituição do direito cartular. As diversas teorias que alicerçavam a obrigação cambiaria num contrato, foram, aos poucos, vencidas e cederam o lugar às que assentam a referida obrigação num ato unilateral. A discussão permanece, no entanto, no que se refere ao contraste entre a teoria da emissão e a da creação281.

Assim, o presente capítulo, com o objetivo de explicar a natureza da

obrigação cartular e analisar as declarações cambiárias, restringirá o seu exame às

teorias da emissão e da criação.

Para a teoria da emissão, a simples assinatura do título não enseja

vínculo obrigacional, porque a subscrição do título não demonstra a vontade de se

obrigar. “Só após o abandono voluntário da posse, seja por ato unilateral, seja por

tradição, é que nasce a obrigação do subscritor. Sem emissão voluntária não se

forma o vínculo. Se o título foi posto fraudulentamente em circulação, não subsiste a

obrigação” 282. Em outras palavras, para a teoria da emissão, o vínculo obrigacional

apenas pode surgir com a colocação voluntária do título em circulação.

Por sua vez, a teoria da criação entende que o direito deriva da própria

criação do título, a partir da assinatura de seu emitente. Assim, para essa teoria, “A

vontade do devedor já não importa para tal efeito obrigacional: o título é que o

produz. É o título que cria a dívida. A única condição que se impõe a sua eficácia é a

posse pelo primeiro portador, qualquer que seja ela”283. De acordo com essa teoria,

o eventual roubo, furto ou perda do título não faz desaparecer a obrigação do

subscritor.

O Código Civil Brasileiro não se filiou, puramente, a nenhuma das duas

teorias. O Código Civil em vigor, por meio do parágrafo único, do art. 905, adotou a

teoria da criação ao determinar que “a prestação é devida ainda que o título tenha

280 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 84. 281 ASCARELLI, Tullio. Teoria geral dos títulos de crédito, 1943, p. 335-336. 282 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v. 2, p. 325. 283 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, v. 2, p. 325.

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entrado em circulação contra a vontade do emitente”. Lado outro, o art. 909 dispõe

que “o proprietário, que perder ou extraviar o título, ou for injustamente desapossado

dele, poderá obter novo título em juízo, bem como impedir que sejam pagos a

outrem capital e rendimentos”. O texto normativo do art. 909 já está inclinado para a

teoria da emissão. Percebe-se, portanto, uma contradição entre os mencionados

dispositivos, na medida em que um (art. 905) representa a teoria da criação e o

outro (art. 909), a teoria da emissão. Para De Lucca, “[...] não há como evitar a

melancólica conclusão de que se deu um salto para trás na proteção ao terceiro

portador de boa-fé”284.

Não obstante a contradição existente no Código Civil Brasileiro, a Lei

Uniforme de Genebra, da qual o Brasil é signatário, tratou do assunto, adotando,

exclusivamente a teoria da criação. Os arts. 16 e 17 da LUG protegem o terceiro de

boa-fé, diante de um injusto desapossamento do título285. Nesse particular, vale

lembrar que o Código Civil trata-se de lei geral, não podendo, pois, revogar lei

especial (Decreto n. 57.663/66)286.

Assim, pode-se concluir que a obrigação cartular tem natureza de

declaração unilateral de vontade, devendo ser observada a teoria da criação. Pontes

de Miranda destaca que:

o subscritor, subscrevendo, cria o título, porque perfaz o negócio jurídico unilateral (plano da existência). Se o título existe e vale, ou se não vale, é outro problema (plano da validade). Desde o momento em que, após a assinatura, ou simultaneamente à assinatura, pelo subscritor (sacador ou subscritor), ou pelo sacado, ou pelo endossante ou pelo avalista, ou pelo interveniente, o título está na posse do alter de boa-fé, começa a sua eficácia: nasce a dívida287.

284 DE LUCCA, Newton. Aspectos da teoria geral dos títulos de crédito, p. 91. 285 “Art. 16. O detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma

série ininterrupta de endossos, mesmo se o último for em branco. Os endossos riscados consideram-se, para este efeito, como não escritos. Quando um endosso em branco é seguido de um outro endosso, presume-se que o signatário deste adquiriu a letra pelo endosso em branco. Se uma pessoa for por qualquer maneira desapossada de uma letra, o portador dela, desde que justifique o seu direito pela maneira indicada na alínea precedente, não é obrigado a restituí-la, salvo se a adquiriu de má-fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave”. “Art. 17. As pessoas acionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador exceções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador ao adquirir a letra tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor”.

286 “Art. 903. Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código.”

287 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito cambiário, p. 151.

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Portanto, as declarações cambiárias constituem-se em declarações

unilaterais de vontade, por meio de uma simples assinatura aposta no título de

crédito, atendendo aos planos da existência da validade e da eficácia. Nesse

contexto, Wille Duarte Costa registra que:

[...] declaração cambial é a manifestação de vontade do signatário. Daí ser dito que declaração cambial é a manifestação de vontade do signatário no sentido de criar, completar, garantir ou transferir o título de crédito. Na transferência englobam-se o título e o direito dele emergente. Toda e qualquer declaração cambial encerra-se pela assinatura do declarante que, por ela, fica obrigado no título de crédito se tiver capacidade para tanto. Não sendo capaz, o signatário não se obriga, mas sua assinatura não invalida o título e nem afeta as outras obrigações válidas, de agentes capazes. Sem assinatura não há obrigação cambial alguma e, conseqüentemente, não haverá declaração cambial288.

Percebe-se, pois, por meio da assinatura válida, que surge a obrigação do

signatário de qualquer declaração cambiária.

As declarações cambiárias se dividem em (i) necessárias e originárias e

(ii) eventuais e sucessivas. A declaração cambiária necessária ou originária é aquela

que cria o título de crédito e, por isso, é principal e essencial, ou seja, sem a

declaração cambiária originária, o título sequer existe (plano da existência). Trata-se

do saque (na letra de câmbio e na duplicata) e da emissão (na nota promissória e no

cheque)289.

Eunápio Borges chama a atenção para a diferença entre a “declaração”

originária e principal da “obrigação” principal e direta:

Não se confunda, pois, a declaração principal, a declaração originária, que é a única necessária e indispensável para a criação da cambial, com a obrigação principal e direta. Na nota promissória, há coincidência entre as duas, porque a declaração originária – do emitente – dá lugar à obrigação principal, direta, do emitente, isto é

288 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 127. 289 “Na nota promissória a declaração cambial que cria o título chama-se emissão e se completa com

a assinatura do emitente [...]. A declaração corresponde a uma promessa direta de pagamento [...]. Na letra de câmbio, a declaração cambial que cria o título chama-se saque [...], correspondendo a uma ordem de pagamento. Nada impede que possa ser chamada de emissão, pois saque e emissão significam a criação do título. Evidentemente, até mesmo pelo costume, não se vai dizer que a duplicata foi sacada, em vez de emitida. De qualquer forma, tudo isto é mero academicismo.” (COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 128)

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122

do criador do título. Na letra de câmbio, ao contrário, enquanto originária, principal e indispensável – para dar nascimento ao título – é a declaração do sacador, é este um obrigado de regresso, sendo principal e direta a obrigação do aceitante290.

Apenas o saque e a emissão são declarações originárias e indispensáveis

para a criação do título. Criado o título de crédito, podem surgir outras declarações

cambiárias que são, pois, as eventuais e sucessivas.

O aceite, o endosso e o aval são declarações eventuais e sucessivas.

Eventuais porque surgem apenas de acordo com o interesse e a conveniência das

partes, não são, pois, necessárias para a existência do título de crédito; sucessivas

porque somente poderão aparecer após a criação do título com a declaração

originária e necessária (saque e emissão). No entanto, as declarações eventuais e

sucessivas não dependem da validade das originárias e necessárias. Uma vez

existentes estas e, portanto, criado o título, este pode ser aceito (letra de câmbio e

duplicata), circular, por meio do endosso, e/ou ser garantido pelo aval.

O aceite é a declaração cambiária sucessiva e eventual. Por meio desta

declaração o signatário reconhece a ordem de pagamento a ele dada, assumindo o

dever de cumprir com a obrigação de pagar, na qualidade de devedor principal.

Dado o aceite, este produz uma obrigação direta e principal para o aceitante.

O sacado é quem poderá aceitar o título, caso isso ocorra o sacado passa

a ser aceitante.

O aceite pode existir apenas na letra de câmbio291 e na duplicata292. Por

ser declaração sucessiva e eventual, a sua inexistência não interfere na validade do

título de crédito. Eunápio Borges destaca: [...] “fique bem claro que é erro grave –

embora prestigiado às vezes por venerandos acórdãos – dizer-se que, sem o aceite

do sacado, não existe letra de câmbio. Não. A letra pode prescindir do aceite e até,

290 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1971, p. 48-49. 291 Lei Uniforme de Genebra. “Art. 26. O aceite é puro e simples, mas o sacado pode limitá-lo a uma

parte da importância sacada.” “Art. 28. O sacado obriga-se pelo aceite a pagar letra de câmbio à data do vencimento”. O aceite qualificado é aquele em que o aceitante apresente qualquer restrição. Esta pode ser com relação ao valor a ser pago, à data do vencimento e/ou à praça do pagamento.

292 Lei de Duplicatas. “Art. 2º No ato da emissão da fatura, dela poderá ser extraída uma duplicata para circulação como efeito comercial, não sendo admitida qualquer outra espécie de título de crédito para documentar o saque do vendedor pela importância faturada ao comprador. § 1º A duplicata conterá: [...] VIII − a declaração do reconhecimento de sua exatidão e da obrigação de pagá-la, a ser assinada pelo comprador, como aceite, cambial”.

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123

quando sacada à vista, normalmente, não o comporta e deve, neste caso, ser

apresentada ao sacado para o pagamento; e não para o aceite”293.

Assim, a letra de câmbio existirá validamente, já que o aceite não é

necessário para criação nem para validade do título294. Lado outro, caso não haja o

aceite, o sacado não assumirá qualquer obrigação cambiária.

Por sua vez, na duplicata, a inexistência do aceite não gera a ausência de

obrigação cambiária do sacado. A duplicata, ainda que sem o aceite, poderá ser

executada desde que: (i) tenha sido protestada; (ii) haja comprovante hábil de

entrega das mercadorias ou da prestação dos serviços e (iii) não haja recusa

motivada do aceite295.

Da mesma forma que é o aceite, o endosso é declaração cambiária

sucessiva e eventual. É por meio dessa declaração que os títulos de crédito

circulam, ainda que não tenham registrada a cláusula “à ordem”. O endosso próprio,

translativo ou pleno transfere a propriedade do título de crédito, bem como todos os

direitos nele mencionados. Ainda, uma vez endossado o título, o endossante se

obriga no pagamento deste, salvo se houver cláusula em contrário296. Nesta

hipótese, tem-se o endosso sem garantia que está previsto no art. 15 da Lei

293 BORGES, João Eunápio. Títulos de crédito, 1971, p. 63. 294 Pode haver o aceite por intervenção. De acordo com Wille Duarte Costa, “A intervenção é o ato

pelo qual uma pessoa, indicada ou não para aceitar o título, aceita a letra de câmbio para evitar o seu protesto e honrar o nome de alguém já obrigado no título. O aceitante por intervenção age como interveniente e deve indicar a pessoa cujo nome quer honrar”. (COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 167)

295 Lei de Duplicatas. “Art. 15. A cobrança judicial de duplicata ou triplicata será efetuada de conformidade com o processo aplicável aos títulos executivos extrajudiciais, de que cogita o Livro II do Código de Processo Civil, quando se tratar: l − de duplicata ou triplicata aceita, protestada ou não; II − de duplicata ou triplicata não aceita, contanto que, cumulativamente: a) haja sido protestada; b) esteja acompanhada de documento hábil comprobatório da entrega e recebimento da mercadoria; e c) o sacado não tenha, comprovadamente, recusado o aceite, no prazo, nas condições e pelos motivos previstos nos arts. 7º e 8º desta Lei. § 1º Contra o sacador, os endossantes e respectivos avalistas caberá o processo de execução referido neste artigo, quaisquer que sejam a forma e as condições do protesto”.

296 Chama-se à atenção para o art. 914 do Código Civil. Este dispositivo prevê o contrário daquilo determinado pelas Leis Especiais (Lei Uniforme de Genebra e Lei do Cheque). De acordo com o art. 914 do CC, “Ressalvada cláusula em contrário, constante do endosso, não responde o endossante pelo cumprimento da prestação constante do título”. Jean Carlos Fernandes (2009) destaca que esse dispositivo “inverte a norma prevista na Lei Uniforme de Genebra, equiparando, indevidamente, o endosso à cessão de crédito uma vez que a regra geral é ficar o endossante como garantidor do pagamento do título, salvo se, de forma diversa e expressa, se exonerou (“endosso sem garantia”). (FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário na recuperação judicial da empresa, p. 76)

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Uniforme de Genebra297 e no art. 21 da Lei do Cheque298. No entanto, caso o

endossante seja o próprio sacador (nas duplicatas, por exemplo), aquele não poderá

exonerar-se do pagamento. É o que dispõe o art. 9 da Lei Uniforme de Genebra299.

O endosso deve ser puro e simples. Isso quer dizer que não pode ser

condicionado a qualquer cláusula; do contrário, esta será considerada como não

escrita300.

Wille Duarte Costa, ao definir o endosso, distingue esta declaração

cambiária da cessão civil, nos seguintes termos:

O endosso não é cessão. É ato unilateral e abstrato, embora tenha por base um negócio bilateral e causal e que constitui a relação subjacente do nascimento do endosso. Enquanto a cessão é contrato bilateral, o endosso é ato unilateral, sendo que a cessão pode revestir-se de qualquer forma, enquanto o endosso é formal. Na cessão, o cedente transfere o seu próprio direito ao cessionário. No endosso, o endossatário recebe um direito emergente do título e não o direito do endossante. O endossatário sucede ‘ao endossador na posse do título que lhe é transmitido, sem suceder-lhe na relação jurídica existente entre o devedor e o endossador’. O endossatário adquire um direito próprio, literal e autônomo, no momento do endosso, sendo-lhe entregue o título respectivo301.

Portanto, verifica-se que, por meio do endosso, o endossatário adquire

direito novo, abstrato e autônomo, sem qualquer vínculo com a relação causal que

tenha dado origem ao título.

No entanto, há espécies de endossos em que não há a transferência da

propriedade do título nem do direito nele mencionado. De acordo com Adamek:

O endosso nem sempre terá por efeito transferir a propriedade do título. Em muitos casos, efetivamente, surge na prática a

297 “Art. 15. O endossante, salvo cláusula em contrário, é garante tanto da aceitação como do

pagamento da letra. O endossante pode proibir um novo endosso, e, neste caso, não garante o pagamento às pessoas a quem a letra for posteriormente endossada”.

298 “Art. 21. Salvo estipulação em contrário, o endossante garante o pagamento. Parágrafo único: Pode o endossante proibir novo endosso; neste caso, não garante o pagamento a quem seja o cheque posteriormente endossado”.

299 “Art. 9. O sacador é garante tanto da aceitação como do pagamento da letra. O sacador pode exonerar-se da garantia da aceitação; toda e qualquer cláusula pela qual ele se exonere da garantia do pagamento considera-se como não escrita”.

300 Lei Uniforme de Genebra. “Art. 12. O endosso deve ser puro e simples. Qualquer condição a que ele seja subordinado considera-se como não escrita. O endosso parcial é nulo. O endosso ao portador vale como endosso em branco”.

301 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 173, grifo do autor.

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125

necessidade de apenas legitimar uma terceira pessoa a exercer certos direitos cartulares, sem lhe transferir a propriedade do título nem os respectivos direitos. Em casos que tais, poderá o legítimo portador valer-se então de endossos impróprios [...]. Ou seja, os endossos impróprios caracterizam-se por não terem nunca efeito translativo e por conferirem apenas efeitos contidos de legitimação – pois, como visto, apenas se prestam a possibilitar que o endossatário possa exercer certos direitos cartulares [...], sem porém, deles dispor [...]. As duas espécies de endosso impróprio são endosso-mandato e o endosso-caução (ou endosso-penhor). Por serem endossos impróprios: (i) não acarretam a transferência da propriedade do título; (ii) apenas importam na legitimação para o exercício de certos direitos cartulares; (iii) o endossante não se torna responsável cambiariamente perante os endossatários impróprios, que, portanto, apenas poderão exigir o cumprimento da prestação do devedor ou quem no título se obrigou antes do endossante; (iv) por não terem disponibilidade sobre o título, tanto no endosso mandato como no endosso caução, os endossatários somente poderão lançar no título outro endosso-mandato [...]302.

Pelo endosso-mandato, há a transferência apenas da posse do título para

cobrança e recebimento do valor nele mencionado, sendo que qualquer endosso

posterior ao endosso-mandato será considerado endosso a título de procuração

(endosso-mandato). O endossatário-mandatário age em nome do endossante-

mandante, razão pela qual “[...] os devedores podem opor ao endossatário-

mandatário somente as exceções que tiverem contra o endossante-mandante, e não

aquelas que porventura tenham contra o próprio endossatário [...]”303. É que, em

razão de não ser o endossatário o proprietário do título e, por conseguinte, o

proprietário dos direitos nele mencionados, nenhuma exceção poderá ser oponível

contra o endossatário, porque as defesas do devedor só poderão ser oponíveis

contra o legítimo titular do direito (endossante)304. Nesse sentido, o art. 18 da Lei

Uniforme de Genebra dispõe que os obrigados no título “só podem invocar contra o

portador as exceções que eram oponíveis ao endossante”.

302 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Endossos próprios e impróprios, endosso póstumo e circulação

imprópria dos títulos de crédito (Código civil, arts. 919 e 920). Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 69-95.

303 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Endossos próprios e impróprios, endosso póstumo e circulação imprópria dos títulos de crédito (Código civil, arts. 919 e 920). Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 75.

304 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 176.

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126

Por sua vez, no que tange ao endosso-caução ou endosso penhor, o

endossatário age em seu próprio nome e interesse. Por isso, os devedores não

podem opor ao endossatário as exceções pessoais que teriam contra o endossante,

salvo se aquele tiver agido de má-fé.

Por fim, com o objetivo de reforçar a confiança de que o título de crédito

será pago, tem-se a figura do aval que é garantia típica do direito cambiário. O aval

também é uma declaração cambiária sucessiva e eventual e será objeto de análise

no próximo capítulo.

Antes disso, visando à conclusão deste tópico, é necessário destacar que,

de acordo com Wille Duarte Costa305, há também a declaração cambiária sucedânea

prevista no art. 8º da Lei Uniforme de Genebra que assim dispõe: “Todo aquele que

apuser a sua assinatura numa letra, como representante de uma pessoa, para

representar a qual não tinha de fato poderes, fica obrigado em virtude da letra e, se

pagar, tem os mesmos direitos que o pretendido representado. A mesma regra se

aplica ao representante que tenha excedido os seus poderes”.

A declaração cambiária sucedânea surge quando alguém assina um título

de crédito, na qualidade de mandatário ou representante legal de outrem, sem o ser

ou sem que tenha poderes específicos para tanto. Diante disso, aquele signatário

fica diretamente obrigado no título de crédito. Sobre essa declaração, Wille Duarte

Costa esclarece que:

[...] não se trata de uma declaração cambial diferente das outras, uma nova declaração cambial, pois não é. Em verdade, o signatário assume uma responsabilidade equivalente àquela que teria assumido a pessoa que pretendia representar no título, ou seja, ele será sacador (emitente), endossante, avalista ou aceitante, conforme declarar no título. O que ocorre é que, pela falta de poderes, o signatário substitui (sucede) aquele que diz representar. Sua obrigação, portanto, conforme o caso, será pessoal e direta. Se da parte do procurador ou do representante não existe de fato poderes especiais para assinar título de crédito, é o próprio procurador ou representante que se obriga, direta e pessoalmente, sucedendo aquele que deveria ter assinado. Por isso, a declaração cambial por ele assinada chama-se <sucedânea>

306.

305 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 132. 306 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 132.

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127

Assim, a assinatura de alguém em título de crédito, em nome de outrem,

mas sem poderes para tanto, não implica na invalidade do título, porque o signatário

– suposto mandatário ou representante – ficará obrigado ao seu pagamento.

Nesse diapasão, Jean Carlos Fernandes chama a atenção para as

declarações cambiárias prestadas, no plano societário307.

É que, as declarações cambiárias prestadas por administradores de

sociedades, sem terem poderes específicos para tanto, podem vincular a própria

sociedade, em razão da teoria da aparência e considerando a boa-fé do terceiro

(portador legitimado do título de crédito).

Como exemplo, pode-se pensar na suposição em que uma sociedade

preveja em seu contrato social que seus administradores não podem prestar aval.

Não obstante essa limitação de poder, um administrador dá essa garantia cambiária,

em uma nota promissória, para estabelecer negócio com terceiro. Tal caso é

hipótese da prática de excesso de poder e pode vincular a sociedade, não sendo

oponível ao terceiro, em razão da aparência e da boa-fé deste. Luiz Gastão Paes de

Barros Leães destaca que “a limitação dos poderes de administração é somente

oponível a terceiros que tenham dela conhecimento, ou devessem ter em razão da

profissionalidade de seus atos, dada a circunstância de que a verificação dos

poderes dos diretores no Registro de Empresas não é fácil, nem entrou nos hábitos

do homem comum”308.

Da mesma forma, Haroldo Verçosa pontua que, quando há a prática

reiterada de um ato realizado com excesso de poder por um administrador, tal ato

ilícito poderá ser imputado à sociedade, em razão da Teoria da Aparência309.

Não obstante a aparência e a boa-fé de terceiros, de acordo com Jean

Carlos Fernandes, “o Código Civil de 2002 retrocedeu ao permitir, em seu art. 1015,

parágrafo único, que a sociedade possa opor a terceiros o excesso por parte dos

administradores [...]”310. Tal dispositivo dispõe que311:

307 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 137. 308 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barro. Sociedade por ações; atos praticados por seus diretores, em

razão de administração; responsabilidade daquela e destes, solidariamente, se agiram com culpa ou contrariamente aos estatutos (comentário a acórdão), Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 74-81.

309 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Curso de direito comercial − Teoria geral das sociedades: as sociedades em espécie do código civil, p. 197.

310 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário na recuperação judicial da empresa, p. 137.

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128

Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir. Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I − se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II − provando-se que era conhecida do terceiro; III − tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.

Portanto, nos termos do art. 1.015 do Código Civil vigente – que se aplica

à sociedade simples, em comandita simples, em nome coletivo e à sociedade

limitada quando regida, supletivamente, pelas normas da sociedade simples – o

sócio ou o administrador que apuser a sua assinatura em um título de crédito, sem

ter poderes específicos para tanto (excesso de poder), ficará pessoalmente obrigado

ao seu pagamento. Essa hipótese representa justamente uma declaração cambiária

sucedânea, não sendo, conforme já visto, capaz de invalidar o título de crédito.

311 “Em um exercício de dogmatismo jurídico, a disposição do Código Civil somente se aplica às

sociedades simples, em nome coletivo e em comandita simples, excetuando-se a sociedade limitada – quando contratualmente estiver regida supletivamente pela Lei n. 6.404, de 1976 – e as sociedades por ações”. (FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário na recuperação judicial da empresa, p. 138)

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129

5 DA INTRODUÇÃO DO ART. 1.647, INCISO III, NO CÓDIGO CIVIL DE 2002, E O

AVAL

O Código Civil Brasileiro vigente (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002),

de uma forma inédita, trata, em seus arts. 887 a 926, sobre a matéria de títulos de

crédito312.

Ainda, o art. 1.647, inciso III, do mesmo ordenamento civilista, apesar de

estar inserido no Livro IV que regula o Direito de Família, trata de instituto do Direito

Cambiário, ao exigir a outorga conjugal para se dar o aval, sob pena de este ser

anulado (art. 1.649).

No entanto, é importante destacar que tais atos inovadores, nem de perto,

representam uma unificação do Direito Privado (Direito Civil e Direito Comercial).

Vinícius Gontijo destaca a impossibilidade de se acabar com a dicotomia

entre o Direito Civil e o Direito Comercial. Esclarece que, por uma questão de

“diversidade de espírito” e diferença ética, qualquer pretensão de unificação do

Direito Privado seria impossível:

[...] o Direito Empresarial tem entre os seus princípios o individualismo e a onerosidade presumidos nas relações. Isso gera no empresário uma mentalidade, uma ética, um estado de espírito e atitudes diversas daquelas do cidadão comum. Quando determinada pessoa assume a atividade empresarial, ela paulatinamente absorve essa forma de pensar e agir, que não se coaduna com aquela que se dá ou pelo menos se espera que se dê em relação ao civil, à cooperativa, ao servidor público ou a uma sociedade simples, cuja ética, atitudes, maneira de pensar espera-se (pelo menos o legislador nisso acreditou) sejam diversas da do empresário313.

Não obstante a inexistência da unificação do Direito Privado, alguns dos

mencionados dispositivos do Código Civil de 2002 apresentam relevantes

divergências com aqueles tratados pelas respectivas leis especiais, principalmente 312 O Código Civil de 1916, no Capítulo I do Título VI, que integrava o Livro III da Parte Especial,

tratava dos títulos ao portador. Arnaldo Rizzardo registra que o Código Civil de 1916 “[...] cuidava dos títulos ao portador, mais atinentemente aos direitos do detentor ou portador, às garantias oferecidas ao subscritor ou emissor; à defesa assegurada a tais pessoas, relativamente àquele que exige a prestação neles contida. Adiante, tratava das medidas reservadas à pessoa injustamente desapossada do título, bem como do procedimento para preservação de direitos, e para recuperação do título no caso de extravio.” (RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: lei n.° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, p. 1)

313 GONTIJO, Vinícius José Marques. O empresário no código civil brasileiro. RJTAMG, p. 35.

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130

no que tange à declaração cambiária do aval, que é o objeto deste estudo. Tal fato

trouxe discussões doutrinárias sobre a aplicação ou não do Código Civil de 2002

para os títulos de crédito regulados por leis especiais.

O presente estudo tem como objetivo primordial analisar a introdução do

art. 1.647, inciso III, do Código Civil. Para tanto, faz-se mister estudar,

primeiramente, o histórico, conceito, a natureza jurídica e as características do aval.

5.1 Da origem e histórico do aval

A maior parte da doutrina não dispõe acerca do histórico do instituto do

aval, e não há autor que aponte com segurança e certeza a data da origem e o local

em que, pela primeira vez, essa garantia tivera a sua aparição. Somente há o

conhecimento certo de que seu surgimento se dera nas feiras medievais por volta do

século XIII, acompanhando a origem da letra de câmbio.

Eunápio Borges registra que, quando do encerramento das feiras

medievais, por imposição de uma organização pública, exigia-se a realização de um

balanço geral dos negócios cambiários ocorridos. Para tanto, apurava-se o débito e

o crédito de cada negociante, sendo que as contas podiam ser liquidadas em

dinheiro ou por meio de letras de câmbio. Diante dessa hipótese, nas negociações

realizadas por meio da letra de câmbio, o credor exigia, como um reforço de garantia

ao negócio realizado com o devedor, outra letra de câmbio emitida por um banqueiro

que apresentasse bom saldo financeiro. Explica também o autor que essa letra de

câmbio emitida, como garantia ao negócio, gerava uma obrigação subsidiária, mas

independente e paralela daquela obrigação garantida por esse título. Ainda

acrescenta o autor que “Destas compensações (scontrata) e liquidações efetuadas

nas feiras resultou o giro-avallo, no qual se confundiam os institutos embrionários do

aval e do endosso”314.

314 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1975, p. 18.

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131

Por sua vez, Rosa Jr., ao discorrer sobre a origem do aval, também afirma

que este surgiu com a garantia dada pelos banqueiros, em ato separado da letra de

câmbio, nas feiras medievais315.

Na Alemanha, a legislação não reconhecia o aval como um instituto

próprio, mas previa que se obrigava, cambialmente, todo aquele que subscrevesse o

saque, o aceite ou o endosso, ainda que apenas como garantia.

Na França, o aval foi regulamentado pela Ordonnance du Commerce, de

1673. Nos termos desse ordenamento, o aval devia ser prestado no próprio título,

sob pena de ter validade de fiança. Ainda, o aval poderia garantir a simples

promessa de emissão da letra de câmbio, sendo que, nesse caso, a garantia

cambiária deveria ser dada sobre o documento que continha a promessa.

O Code du Commerce, de 1807, alterou a forma de se prestar aval,

permitindo que este fosse dado, com os mesmos efeitos, em um documento à parte.

Essa prática francesa foi defendida, quando da elaboração da Lei Uniforme de

Genebra, o que gerou a redação da reserva de número 4 (quatro), nos seguintes

termos, “Por derrogação da alínea primeira do art. 31 da Lei Uniforme, qualquer das

Altas Partes Contratantes tem a faculdade de admitir a possibilidade de ser dado um

aval no seu território por ato separado em que se indique o lugar onde foi feito”.

Em outras palavras, essa reserva permitiu que a França e demais países,

onde havia o aval dado em ato separado, pudessem adotar a Lei Uniforme,

mantendo-se sua tradição cambiária.

Curioso registrar ainda que, de acordo com Azeredo Santos, “A lei inglêsa

de 1882 não acolheu aval, apenas dispondo que a pessoa que assinar letra de

câmbio, em qualidade diferente da do sacador ou aceitante, assume, para com o

portador, as obrigações do endossador”316.

No Brasil, apesar do Código Comercial de 1850 não fazer referência

sobre o instituto do aval, os arts. 380 e 442 desse ordenamento mencionavam o

abono como, de acordo com Rosa Júnior317, um tipo de fiança comercial solidária.

Com a entrada em vigor do Decreto n. 2.044, de 31/12/1908, o aval foi

disciplinado pela primeira vez no Brasil, em matéria de letra de câmbio e nota

315 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p 281. 316 SANTOS, Theophilo de Azeredo. Manual dos títulos de crédito, p. 173. 317 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 278.

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promissória, nos arts. 14 e 15, sendo que, com a posterior vigência da Lei Uniforme

de Genebra, esses dispositivos foram derrogados318.

O aval também é disciplinado pela Lei n. 7.357, de 2/9/1985, em matéria

de cheque; aludido pela Lei n. 5.474, de 18/7/1968, e regrado pelo Código Civil de

2002, em seus arts. 897 a 900.

5.1.1 Conceito e natureza jurídica

Acompanhando as incertezas sobre a primeira aparição certa do aval,

Rosa Jr. mostra que a expressão que deu origem ao termo desse instituto também é

muito controvertida. O autor, ao comentar a origem etimológica do termo aval,

registra quatro correntes distintas.

A primeira seria a derivada da antiga doutrina francesa que aponta a

expressão latina a valere, ou a sua equivalente em francês, faire valoir ou à valoir,

que significa o ato que dá valor ao título de crédito. Essa corrente foi criticada,

porque não correspondia à evolução histórica do aval.

A segunda corrente indica a expressão árabe hawala que significa

obrigação de garantia. Esse entendimento baseou-se na ideia de que o direito

cambiário europeu teria surgido da prática cambiária árabe do século VIII. Essa

corrente também é criticada, porque há dúvidas dessa influência árabe na formação

do direito italiano cambiário nos últimos séculos da Idade Média.

A terceira corrente, criada por autores alemães, entende que o termo aval

originou-se das expressões italiana avallo ou francesa à val, oriundo de a valle, em

razão de significarem firmare a vallo, ou seja, assinar em baixo de outra firma,

considerando que a assinatura do avalista é abaixo da do avalizado. No entanto,

essa corrente também é questionada, porque, nem sempre, a assinatura do avalista

está abaixo da de seu avalizado. A quarta e última corrente entende que o termo

318 “[...] com o advento da Lug alguns autores acharam que o Decreto 2.044, de 31/12/1908, ficara

revogado pela Lei Uniforme. Mero engano e precipitação deles. O que houve foi a derrogação em grande parte da velha norma. Várias de suas disposições continuam em pleno vigor, tais como o art. 19 (vencimento extraordinário); arts. 28 a 33 (protesto cambial, revogados em parte pela Lei 9492, de 10/09/1997); art. 36 (ação de anulação); art. 48 (ação de locupletamento) e várias outras disposições”. (COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 111).

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133

aval teria se originado das expressões latinas vallatus, vallare, que depois evoluíram

para advallare, avallare, e, ainda para, avallo, com o significado de reforçar

obrigações319.

Independentemente da corrente adotada, pode-se dizer que todas elas

traziam como origem termos que se assemelham à palavra garantia, contribuindo,

assim, para a definição do conceito de aval.

O aval é uma garantia que pode ser utilizada nos títulos de crédito em

geral, mas tão somente nestes. Não há aval fora desses documentos320. Pode ser

dado por pessoa jurídica ou natural (estranha à relação cartular ou que já figure com

outra obrigação cambiária distinta), mediante assinatura no próprio título ou em uma

319 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 279-280. 320 Não obstante o aval ser garantia exclusiva dos títulos de crédito, a jurisprudência entende pela

possibilidade da responsabilidade daquele que avalizou outros documentos, em razão da intenção consubstanciada na declaração de vontade. Veja-se: “AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL − EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE − INSTRUMENTO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA − CLÁUSULA DE CO-OBRIGAÇÃO − VALIDADE − ILEGITIMIDADE PASSIVA − INOCORRÊNCIA. − A exceção de pré-executividade consiste em procedimento simplificado, não regulamentado pelo Código, por meio do qual a parte leva ao conhecimento do juízo questões de ordem pública, as quais podem ser conhecidas a qualquer tempo pelo juiz, até mesmo de ofício, enquanto não extinto o processo de execução. − Em que pese a impossibilidade da figura do aval nos contratos de confissão de dívida, por ser instituto próprio dos títulos de crédito, entende-se que as agravantes estão co-obrigadas ao pagamento da dívida. É que, segundo as normas de interpretação contratual, notadamente o da boa-fé, deve-se atentar mais à intenção consubstanciada nas declarações de vontade do que ao sentido literal da linguagem”. (TJMG. Agravo de Instrumento n. 1.0016.07.071094-8/001. 18ª Câmara Cível. Relator Elpídio Donizette. DJ. 9/12/2008. Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 26 abr. 2010. “PROCESSUAL CIVIL − APELAÇÃO − EMBARGOS DO DEVEDOR − CONTRATO DE FINANCIAMENTO − IMPROPRIEDADE DO TERMO AVALISTA UTILIZADO NO CONTRATO − GARANTIDOR DA DÍVIDA − LEGITIMIDADE PARA FIGURAR NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO.- Ainda que conste do contrato de financiamento, inapropriadamente, a denominação "avalista", tal fato não exime a responsabilidade do apelante como co-obrigado, pois, ao anuir aos termos do referido instrumento, concordou em figurar como garantidor solidário da obrigação contratada.- Como garantidor solidário da dívida exeqüenda, o avalista designado no contrato tem legitimidade para figurar no pólo passivo da execução” (TJMG. Apelação Cível n. 1.0024.07.542365-7/001. 17ª Câmara Cível. Relator Irmar Ferreira Campos. DJ 24/1/2008. Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 26 abr. 2010) "PROCESSO CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CONTRATO VINCULADO A NOTA PROMISSÓRIA. AVALISTA QUE SE OBRIGOU NO CONTRATO COMO 'DEVEDOR SOLIDÁRIO', 'COOBRIGADO', 'CO-DEVEDOR', 'GARANTE-SOLIDÁRIO'. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO. I − Resultando inequívoca a intenção das partes contratantes no sentido de que os rotulados 'avalistas' respondem solidariamente com o devedor principal pelos encargos assumidos no instrumento contratual, não se mostra admissível o excessivo apego ao formalismo para, sob o simples argumento de não haver aval em contrato, excluir a responsabilidade daqueles que, de forma iniludível e autonomamente, se obrigaram pelo pagamento de integralidade da dívida. II − A imprecisão técnica não pode servir de subterfúgio aos que desejam esquivar-se do cumprimento de compromissos livremente pactuados, principalmente se, além de figurarem nos títulos como 'avalista', se obrigam, nos contratos a que se acham as cártulas vinculadas, como devedores solidários." (STJ. Recurso Especial n. 200.421/ES. Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. DJ 15/8/2000. Disponível em: www.stj.gov.br. Acesso em: 26 abr. 2010)

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folha anexa321, nos termos do art. 31 da LUG. O Brasil não adotou a quarta reserva,

do Anexo II, da LUG, que permite a dação de aval em um documento anexo.

Trata-se, assim como as demais assinaturas em um título de crédito

(saque, emissão, aceite, endosso), de uma declaração unilateral de vontade, pelo

que se torna eficaz somente por meio da assinatura do declarante que passa a se

responsabilizar pelo pagamento do título de crédito.

O aval representa uma declaração cambiária eventual e sucessiva. É

sucessiva, porque apenas existirá após a formalização da declaração cambiária

necessária que é aquela que irá originar o título de crédito (emissão na nota

promissória e no cheque, saque na letra de câmbio e na duplicata). É eventual,

porque pode ou não existir. A sua ausência não descaracteriza o título de crédito.

Wille Duarte Costa corrobora:

Aval é a declaração cambial, eventual e sucessiva, pela qual o signatário responde pelo pagamento do título de crédito. É uma garantia cambiária que não existe fora do título de crédito. É escrito no próprio título ou numa folha anexa. O avalista garante o pagamento do título de crédito e não a pessoa do avalizado. Inexiste em qualquer outro documento fora do título de crédito322.

Aberg Cobo também conceitua o aval com o mesmo sentido registrado

acima:

No direito cambiário, existe uma forma peculiar de garantia independente do que supõe a existência dos diversos assinantes da letra (aceitante, sacador ou endossantes), e ela é o aval, instituto adotado na maioria das legislações, salvo no direito angloamericano, que tem, porém, uma garantia equivalente: o security. Tenho dito que essa garantia é peculiar, porque se diferencia da estrutura geral da fiança civil ou comercial, dando ao credor maiores seguranças e procedimentos mais dinâmicos e rápidos para efetivar a obrigação do título de crédito garantido, cuja circulação e importância é maior, quanto maior seja a confiança em seu oportuno cumprimento323.

321 Entende-se por folha anexa o prolongamento do título que se dá quando não há mais espaço para

registrar assinaturas no título. Não se trata de um documento anexo. 322 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 195. 323 Tradução nossa: En el derecho cambiário existe una forma peculiar de garantía, independiente de

la que supone la existencia de los diversos firmantes de la letra (aceptante, librador o endossantes), y ella es el aval, institución adoptada en la mayor de las legislaciones, salvo el derecho angloamericano, que tiene, empero, una aproximadamente equivalente, el security.

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Rosa Jr. assim dispõe sobre o conceito de aval:

A definição de aval não é tarefa do legislador, cabendo à doutrina elaborar o seu conceito. Aval é a declaração cambiária sucessiva e eventual decorrente de uma manifestação unilateral de vontade, pela qual uma pessoa natural ou jurídica, estranha à relação cartular, o que nela já figura, assume obrigação cambiária autônoma e incondicional de garantir, total ou parcialmente, no vencimento, o pagamento do título nas condições nele estabelecidas. A dação do aval implica na existência do avalista, que é a pessoa que firma o aval, do avalizado, pessoa em relação a quem o aval é dado, e do beneficiário, que é o portador do título324.

Em seguida o autor explica que o aval é declaração unilateral de vontade,

porque não depende da aceitação do avalizado nem do portador do título, sendo,

ainda, uma obrigação autônoma. Por isso, ainda que a obrigação do avalizado seja

nula, falsa ou imprestável, a de seu avalista subsistirá, salvo se houver um vício de

forma.

Nesse particular, deve-se destacar que o normal é se dar aval a favor

daquela pessoa que já está obrigada no título de crédito. Todavia, o contrário pode

acontecer: pode-se prestar aval em relação a alguém que ainda vai se obrigar no

título, sendo que, nessa hipótese, ter-se-á o aval cuja existência dependerá de um

requisito formal do próprio título de crédito, qual seja: a existência futura da firma do

avalizado325.

He manifestado que dicha garantía es peculiar, por cuanto se aparta de la estructura general de la fianza civil o comercial, presentando al acreedor mayores seguridades, y procedimientos más expeditivos y rápidos para hacer efectiva la obligación, en beneficio evidente del título o papel de comercio garantido, cuya circulación e importancia es lógicamente mayor, cuanto más grande sea la confianza en su oportuno cumplimiento. (COBO, Martin Aberg. El aval en el derecho argentino, p. 9)

324 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 283. 325 “[...] existe uma acessoriedade formal, de tal forma que o aval antecipado só prevalece se existir

formalmente a obrigação avalizada. É que, por força das disposições do art. 32 da LUG, o avalista ‘é responsável da mesma maneira’ que a pessoa por ele avalizada, acrescentando-se que sua obrigação se mantém, mesmo no caso da obrigação por ele garantida ser nula por qualquer razão, que não seja um vício de forma. Por vício de forma da obrigação cuja equiparação é pretendida há de se entender a falta ou ausência da assinatura do avalizado ou falta de requisito essencial no título. Fixe bem: a obrigação decorrente do aval antecipado só subsiste se ocorrer de maneira formal a obrigação do avalizado, ainda que eivada de nulidade. Em outras palavras, o aval antecipado é dependente da existência formal da declaração do avalizado. Por isso, se tal obrigação surge completa-se a obrigação do avalista que, a partir de tal momento, torna-se autônoma. O que importa é a existência de um avalizado cuja obrigação seja aparentemente válida e eficaz”. (COSTA, Wille Duarte.Títulos de crédito, p. 200) Nesse mesmo diapasão, deve-se concluir quando, em letra de câmbio, o avalista indica, como avalizado, o sacado. É que, conforme pontua Fran Martins, “[...] o aval dado ao sacado trazendo sempre uma declaração expressa (Em aval do sacado ou equivalente) para mostrar a quem o

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Conceituado o aval, para que se possa compreender, por completo, esse

instituto, deve-se analisar também a sua natureza jurídica.

Como já registrado, para se prestar aval não há necessidade de se ter a

autorização do avalizado nem mesmo do beneficiário do título. Assim, o aval, como

qualquer outra declaração cambiária, não tem natureza jurídica de contrato. Isso já

está pacificado, conforme estudado no capítulo anterior.

Outrossim, dúvidas não há de que o aval é uma garantia fidejussória, ou

seja, uma garantia pessoal. Por outro lado, não obstante o aval ser uma garantia

pessoal, este não pode ser considerado como fiança. Nesse sentido, Eunápio

Borges registra que:

De sua função de garantia de obrigação alheia, surgem as semelhanças com a fiança, e desta analogia as maiores divergências entre os doutrinadores, quando se trata de fixar o verdadeiro conceito do instituto. Nossa Lei Cambial – a que melhor disciplinou o aval, no autorizado dizer de Saraiva – não deixou margens a dúvidas, afastando de modo claro e inequívoco, a menor possibilidade de confundi-lo com a fiança, cujo característico essencial é ser obrigação acessória de outra principal – de que depende – ao passo que a responsabilidade do avalista subsiste, mesmo quando nula e juridicamente inexistente a obrigação garantida326.

Ainda no que tange à natureza jurídica do aval, de acordo com os

ensinamentos de Eunápio Borges, a doutrina majoritária alemã entende que o aval é

uma garantia cambiária, substancialmente, autônoma e independente, porque, ainda

que falsa a assinatura do avalizado, a obrigação do avalista permanece. Lado outro,

a mesma doutrina registra que, formalmente, o aval é uma obrigação acessória com

relação à principal. Nesse particular, o autor italiano Marguieri, citado por Eunápio

Borges explica o que seria “formalmente acessório”:

É obrigação direta e própria de quem dá aval, porque a aposição de uma firma sobre o título cambial acarreta ipso facto a

avalista deseja equiparar a obrigação que vai assumir na letra é admissível, pois se pode garantir uma obrigação futura, mas só se torna efetivo se o sacado aceitar a letra. Não aceitando, o aval é insubsistente, por inexistir obrigação do sacado; aceitando-a com modificação ou limitação, a obrigação do avalista irá apenas ao limite da restrição, do mesmo modo que acontece com a obrigação do aceitante que restringe a ordem que lhe é dada (Lei Uniforme, art. 26)”. (MARTINS, Fran. Títulos de crédito, p. 150)

326 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1975, p. 25.

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responsabilidade do signatário. É, porém, ao mesmo tempo, obrigação acessória, porque não pode haver no título, e pelo título, outra obrigação principal além da que assume o aceitante, nem outras obrigações essenciais além da do sacador ou dos endossantes327.

Pode-se dizer que esse entendimento corrobora, em parte, com o

conceito exposto acima. Isso porque, conforme destacado, entende-se que o aval é

uma garantia cambiária que gera uma obrigação autônoma do pagamento do título

de crédito. Lado outro, apenas na hipótese exclusiva do aval antecipado, a

existência deste fica condicionada a um requisito formal: a existência da assinatura

do avalizado.

Ademais, é certo que o saque e a emissão são os únicos atos essenciais

para a criação do título, ou seja, são as obrigações originárias. De qualquer forma,

uma vez originado o título, por meio desses atos essenciais, o eventual aval será,

em relação a eles, autônomo e independente. Portanto, pode-se entender que a

forma mais adequada para se expressar o entendimento da doutrina dominante

alemã corroborado pelo referido autor italiano seria no sentido de qualificar o aval

como uma declaração cambial unilateral sucessiva, porque somente poderá existir

após a aposição da assinatura da obrigação principal (saque ou emissão).

O autor italiano Bonelli, citado por Eunápio Borges, totalmente contrário à

ideia de que, sob qualquer ângulo, o aval seria uma obrigação acessória, vai mais

além nas suas explicações, afirmando que, ao contrário da fiança, o aval é uma

obrigação objetiva. Veja-se:

Na própria cambial, a obrigação dos endossadores, e até a do sacador, quando o título for aceito, é simples obrigação de garantia, embora suas firmas não tenham a garantia como fim direto e imediato. Característico da fiança é a dependência estreita entre a obrigação de garantia e a da pessoa garantida, de sorte que a existência daquela depende da existência desta de modo tão íntimo, que a fiança não pode subsistir sem a obrigação principal, sem cuja existência material ou jurídica não existirá tampouco a fiança. Nula por qualquer motivo a obrigação principal, será igualmente nula a obrigação acessória de garantia. A acessoriedade não pode de modo algum ser considerada caráter acidental da fiança, ou caráter da fiança propriamente dita, como se fosse admissível uma outra espécie de fiança, menos verdadeira ou menos própria, isenta daquele caráter.

327 MARGUIERI. Diritto commerciale italiano apud BORGES, João Eunápio. Do aval, 1975, p. 32.

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Por outro lado, propriedade característica de toda obrigação cambial é a sua perfeita independência de qualquer outra obrigação, de tal modo que uma das regras fundamentais do direito cambiário, pelo menos nas legislações mais adiantadas, é que toda firma lançada em uma cambial formalmente válida é vinculativa por si mesma, sem embargo da validade das outras firmas, inclusive dos devedores diretos [...]. O aval é, pois, obrigação cambial, e, por isso mesmo, formal e substancialmente, independente de qualquer outra; sua garantia é dada objetivamente à cambial e não a qualquer pessoa determinada. Nenhuma significação tem a designação da pessoa pela qual se avaliza o título, além da de determinar a espécie de obrigação que o avalista entende assumir, isto é, se quer garantir o pagamento, de modo direto, ou apenas subsidiariamente como devedor de regresso, e, neste caso, em que ponto preciso na série dos endossantes328.

Percebe-se que o referido autor descreve perfeitamente a ideia da

natureza jurídica do aval, destacando que se trata de uma garantia pessoal e

totalmente desvinculada às demais obrigações, porque autônoma e independente,

visando, ainda, a garantir o pagamento do título e não a pessoa avalizada. Por isso,

para se prestar aval não há a necessidade de se ter autorização do avalizado e,

muito menos, do obrigado principal e/ou beneficiário do título. Esse também é o

entendimento da doutrina argentina, consoante Aberg Cobo:

O artigo 679 do nosso Código de Comércio, inspirado no 475 do Espanhol de 1829, define a instituição da qual tratamos nos seguintes termos: ‘O aval é obrigação escrita dada por um terceiro para garantir, no vencimento, o pagamento de uma letra de câmbio. O aval é uma obrigação particular e independente das que contraem o endossante e o aceitante’329.

Em suma, pode-se afirmar que o aval é uma garantia própria dos títulos

de crédito e, portanto, com características, eminentemente, cambiárias. Por isso, o

aval não se confunde com as garantias do direito comum, por exemplo, a fiança que

também é garantia fidejussória.

As diferenças existentes entre o aval e a fiança são bastante

consideráveis.

328 BONELLI, Gustavo. Della Cambiale apud BORGES, João Eunápio. Do aval, 1975, p. 32. 329 Tradução nossa: El artículo 679 de nuestro Código de Comercio, inspirado en el 475 del Español

de 1829, define la institución que nos ocupa en los siguientes términos: El aval es la obligación escrita que toma un tercero de garantir a su vencimiento el pago de una letra de cambio. El aval es una obligación particular independiente de las que contraen el endosante y el aceptante. (COBO, Martin Aberg. El aval en el derecho argentino, p. 12)

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A fiança trata-se de um instituto regulado pelo direito comum – Código

Civil, arts. 818 a 839 – e pode ter natureza civil ou comercial – um título de crédito

pode ter a fiança como garantia. Ou seja, a fiança pode garantir qualquer obrigação,

sendo que pode ser prestada no próprio contrato que será garantido ou em um

documento separado.

Já o aval é instituto próprio do direito cambiário, sendo que sempre terá

natureza comercial e somente pode ser dado no próprio título de crédito ou, como já

destacado, em seu prolongamento. O fato de o Código Civil de 2002 também dispor

sobre esse instituto não lhe retira a característica de garantia, eminentemente,

cambiária.

Nos termos do art. 818 do Código Civil330, a fiança tem forma de contrato.

Lado outro, conforme já registrado, o aval não tem natureza jurídica de contrato,

trata-se de uma declaração unilateral de vontade.

Ainda, consoante o art. 821 do Código Civil, “As dívidas futuras podem

ser objeto de fiança; mas o fiador, neste caso, não será demandado senão depois

que se fizer certa e líquida a obrigação do principal devedor”. Ou seja, a fiança pode

garantir obrigações ilíquidas, enquanto o aval apenas garante obrigações líquidas,

haja vista que a liquidez é característica imprescindível da obrigação cambiária.

A fiança é uma obrigação acessória, porque nula a obrigação principal do

devedor, nula também será a fiança. Do contrário, como já mencionado quando da

conceituação do aval, esta garantia é autônoma e independente, sendo que, ainda

que a assinatura do avalizado seja falsa, a obrigação do avalista subsistirá. Em

razão dessa autonomia, ao contrário da fiança331, o avalista não pode opor as suas

exceções pessoais ao credor, trata-se do princípio da inoponibilidade das exceções

pessoais decorrente da autonomia das obrigações cambiárias, dentre elas, o aval.

Portanto, diferentemente da fiança – garantia subjetiva – a garantia do

aval é objetiva, salvo se a nulidade da assinatura do avalizado decorrer de vício de

forma, hipótese esta em que a garantia cambiária não poderá manter-se 332.

330 “Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação

assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.” 331 “Art. 837. O fiador pode opor ao credor as exceções que lhe forem pessoais, e as extintivas da

obrigação que competem ao devedor principal, se não provierem simplesmente de incapacidade pessoal, salvo o caso do mútuo feito a pessoa menor.”

332 “Art. 32. O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma.

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Ainda, a fiança, consoante os arts. 827, 828 e 839, do Código Civil,

comporta benefício de ordem, ou seja, uma vez demandado o fiador, este pode

requerer que o credor execute primeiramente o afiançado. Tal possibilidade não

existe para o instituto do aval, porque as obrigações cambiárias são solidárias,

podendo o credor do título de crédito propor ação cambial contra qualquer um dos

obrigados, independentemente da ordem pela qual se obrigaram no título (art. 47 da

LUG333).

Rosa Jr., ao discriminar as diferenças entre aval e fiança, acrescenta que:

O fiador que paga sub-roga-se em todos os direitos do credor, mas só poderá demandar a cada um dos outros fiadores pela respectiva quota (CCB, art. 831), adquirindo direito derivado, enquanto o avalista que paga adquire direito originário, autônomo, novo, decorrente do título em relação à pessoa avalizada e aos devedores que garantem, dos quais poderá haver o total pago (LUG, art. 32, al. 3°, LC, art. 31, § único)334.

Sobre isso, deve-se apontar que há duas solidariedades, a solidariedade

comum – registrada pelo Código Civil – e a solidariedade cambiária – regulada pelo

art. 47 da LUG. Assim, como explicado pelo referido autor, em razão da

solidariedade cambiária, o avalista que paga o débito escrito no título de crédito

poderá cobrar dos devedores anteriores e do avalizado, o valor total pago.

Todavia, caso haja vários avalistas de um mesmo avalizado, ou seja, co-

avalistas, na hipótese de um destes pagar o valor total do título, aquele que pagou

poderá cobrar dos demais co-avalistas apenas a quota parte respectiva de cada.

Nesse caso, trata-se da solidariedade comum existente entre os avalistas de mesmo

grau.

Por fim, presume-se que a assinatura dada no anverso do título de

crédito, que não seja do sacador ou do aceitante da letra nem do emitente da nota

promissória e do cheque seja o aval dado a favor do emitente da nota promissória

Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra.”

333 “Art. 47. Os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra são todos solidariamente responsáveis para com o portador. O portador tem o direito de acionar todas estas pessoas individualmente, sem estar adstrito a observar a ordem por que elas se obrigaram. O mesmo direito possui qualquer dos signatários de uma letra quando a tenha pago. A ação intentada contra um dos coobrigados não impede acionar os outros, mesmo os posteriores àquele que foi acionado em primeiro lugar.”

334 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 286.

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ou do cheque e a favor do sacador da letra de câmbio. Lado outro, a fiança não se

presume.

Diante de todas as diferenças assinaladas, percebe-se que, apesar de

fiança e aval serem garantias fidejussórias (pessoais) esses dois institutos

apresentam características específicas, não podendo ser confundidos.

5.1.2 Formas e características

No que se refere à forma, o aval deve ser expresso e, por conseguinte,

exige forma escrita e deve ser lançado no próprio título de crédito ou no

prolongamento deste. A Lei Uniforme de Genebra estabelece que o aval se exprime

pelas palavras “bom para aval” ou qualquer fórmula equivalente, sendo considerada

aval a simples assinatura do dador, aposta no anverso da letra, salvo se se tratar de

assinatura do sacado ou do sacador (art. 31 da LUG). Fora isso, não há qualquer

outra exigência quanto à forma para se dar aval:

[...] a lei não exige nenhuma fórmula sacramental para o ato do aval. O avalista pode indicar o nome do obrigado a cuja responsabilidade quer equiparar a sua, escrevendo então, ‘em aval’ a fulano, ‘por aval’ a sicrano, etc., sendo suficiente declarar ‘pelo aceitante’, ‘pelo sacador’, etc., sem mencionar o nome dêste ou daquele coobrigado. O direito cambial não se preocupa com as pessoas e nomes; interessam-lhes firmas e obrigações335.

Será considerado aval em branco quando a declaração do avalista não

indicar expressamente a pessoa a quem se beneficia com o aval. Nessa hipótese,

conforme já destacado no item anterior deste trabalho, o aval será presumido. Na

letra de câmbio, presumir-se-á que o avalizado será o sacador, quando não houver

aceite, ou será o sacado, quando este aceitá-la (art. 31 da LUG). Na nota

promissória e no cheque (art. 30 da Lei do Cheque), sendo dado o aval em branco,

será presumido que esse aval beneficiará o emitente. No que tange à duplicata, a

Lei n. 5.474/68, em seu art. 12, determina que: “O pagamento da duplicata poderá

ser assegurado por aval, sendo o avalista equiparado àquele cujo nome indicar; na

335 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1955, p. 61.

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falta da indicação, àquele abaixo de cuja firma lançar a sua; fora desses casos, ao

comprador”.

Noutro norte, será considerado aval em preto quando, na declaração do

avalista, estiver registrado o nome de quem se beneficia com o aval.

De qualquer forma, sendo em branco ou em preto, o aval não precisa ser

datado, mas o registro da data pode ser útil, em algumas circunstâncias, como por

exemplo, para se certificar se o avalista tinha ou não capacidade jurídica para se

obrigar no momento em que lançou a sua assinatura no título de crédito.

O aval pode ser gratuito ou oneroso. Sobre isso, Eunápio Borges destaca

que:

Nenhuma dúvida de que, economicamente considerado, o aval pode ser gratuito ou oneroso, conforme as circunstâncias que o motivaram. Mas, como acontece com qualquer declaração cambial, a obrigação do avalista é abstrata, desprende-se de sua causa, que nenhuma influência tem nas relações cambiais que daquela decorrem. Daí ser pacífico, em nosso direito, que, embora dado gratuitamente, em declaração de mero favor, da qual não decorre lucro ou vantagem para o avalista ou sua massa falida opor ao credor exceções derivadas da relação fundamental que possa ocorrer entre avalista e avalizado e à qual o credor é estranho336.

Nesse particular, Wille Duarte da Costa manifesta que “Não há dúvida de

que o aval pode ser prestado gratuitamente ou de forma onerosa”. No entanto,

acrescenta o autor que não se pode admitir que o aval seja considerado ato a título

gratuito “[...] quando há interesse de companhia em jogo”337.

É que tanto a pessoa física quanto a pessoa jurídica podem prestar aval.

“A capacidade para dar aval é a mesma para assumir qualquer outra vinculação

cambiária”338.

Por sua vez, Rosa Jr. distingue o aval em simples e plural. Para o autor, o

aval será simples quando dado apenas por uma pessoa e será plural quando

lançado por duas ou mais pessoas339.

336 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1955, p. 48. 337 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 199. 338 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito cambiário: letra de câmbio, p.

369. 339 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 296.

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143

Duas ou mais pessoas podem ser avalistas, no mesmo título de crédito.

Dá-se o nome de co-avalistas para aqueles que assinam, como avalistas, o mesmo

título.

Lado outro, são considerados avais simultâneos os que são dados em

benefício do mesmo avalizado e, por isso, os avalistas serão devedores do mesmo

grau. Nessa hipótese, conforme já destacado neste estudo, haverá solidariedade do

direito comum, porque, em havendo pagamento, aquele que pagou somente poderá

exigir de seu afim a quota-parte à qual cada um se coobrigou340.

De forma distinta, são sucessivos os avais em que um avalista se

equipara expressamente a outro avalista no mesmo título (aval de aval). No que

tange aos avais sucessivos, Rosa Jr. manifesta que:

Ocorrem avais sucessivos quando há aval de aval, que não é vedado por lei porque as obrigações cambiárias são autônomas e independentes (LUG, art. 7º, Decreto n. 2.044/1908, art. 43, e LC, art. 13) e porque o avalista não garante pessoa determinada mas o pagamento do título (LUG, art. 30, e LC, art. 29). Por isso, a pessoa que avaliza outro avalista terá o mesmo grau de responsabilidade do avalizado. [...] Tratando-se de avais sucessivos, somente existem relações jurídicas de natureza cambiária e todos os signatários do título serão devedores solidários cambiários, inclusive os avalistas, e a solidariedade terá natureza sucessiva e não simultânea341.

Por fim, deve-se ressaltar que, em 13/12/1963, o Supremo Tribunal

Federal decidiu que “avais em branco e superpostos consideram-se simultâneos e

não sucessivos” (súmula n. 189). Tal entendimento também foi adotado pela Lei

Uniforme de Genebra que determina, em seu art. 31, alínea 3ª, que não indicada a

pessoa avalizada, entender-se-á que o aval foi dado pelo sacador da letra de câmbio

340 “Os obrigados cambiários são considerados de mesmo grau quando co-signatários de uma

mesma obrigação, como dois ou mais emitentes, sacadores, endossantes ou avalistas. Obrigados de grau diverso são aqueles que assumem obrigações autônomas, como emitente, sacador, aceitante, endossante e avalista. A solidariedade entre obrigados do mesmo grau não tem natureza cambiária, mas simultânea, do direito comum, enquanto a solidariedade entre obrigados de grau diverso tem natureza cambiária. [...] Sendo os co-avalistas devedores do mesmo grau, configurando uma única figura jurídica, a relação jurídica que os envolve reger-se-á pelas normas da solidariedade do direito comum [...]. Avalista que paga o valor do título tem ação cambiária pelo total pago contra o avalizado (devedor solidário cambiário) e ação não cambiária contra o co-avalista, mas só pode cobrar a sua cota, porque a relação entre os avalistas simultâneos é regida pela solidariedade do direito comum (CCB, art. 283)”. (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 296-298)

341 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 299.

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e pelo emitente da nota promissória. A Lei do Cheque contém a mesma disposição

legal: no caso de aval em branco, considera-se avalizado o emitente do cheque (art.

30, parágrafo único). O art. 899 do Código Civil também dispõe que, na falta de

indicação do avalizado, o avalista equipara-se ao emitente ou devedor final342. Lado

outro, no que tange às duplicatas, conforme pontua Rosa Jr., “[...] a referida Súmula

continua cabente para resolver o problema decorrente de avais superpostos em

branco na duplicata, porque o art. 12 da LD reza, como regra, que o avalizado é o

devedor abaixo de cuja assinatura o avalista apôs a sua firma”343. Ou seja, o texto

normativo da mencionada lei, não resolve, por si só, a hipótese de haver avais em

branco e superpostos, devendo-se aplicar nesse caso a súmula n. 189 do STF.

342 Sobre a expressão “devedor final” utilizada pelo Código Civil de 2002, De Lucca observa que: “A

expressão “devedor final”, consoante do final do caput do artigo, é de inafastável dubiedade...Quem é devedor final de um título de crédito? Mercado Jr., com inteira razão, afirma que ela seria “não só ambígua como inusitada em matéria de títulos de crédito”. A ambigüidade decorre de haver duas possíveis interpretações para ela: ou bem se entende que ela foi inutilizada como sinônima de emitente ou não. Na primeira hipótese – a mais provável, segundo me parece –, causa perplexidade a substituição da expressão “sacador”, tão comum e, ao mesmo tempo, absolutamente técnica, pelo “devedor final”, desconhecida, vaga e até mesmo imprecisa...O sacador ou emitente – a sinonímia entre estas duas expressões é evidente e inquestionável – não são, na verdade, “devedores finais” de um título de crédito, a menos que se queira dizer que a palavra “finais” tenha a mesma significação da palavra “solidários”... Segundo a teoria geral dos títulos de crédito – muito pouco analisada, infelizmente, em nosso meio, mesmo entre aqueles que teriam notória responsabilidade profissional de fazê-lo –, fundamentalmente estruturada a partir dos estudos sobre a cambial, tanto os sacadores e aceitantes, quanto os endossantes e avalistas de um título de crédito, todos são solidariamente responsáveis para com o portador... Na segunda hipótese, seria possível supor-se, então, que o legislador – ao utilizar “emitente ou devedor final” – não quis dizer que se tratava de expressões sinônimas e sim distintas, sendo este último (devedor final) pessoa diversa da do emitente. Tal esforço exegético, porém, parece revelar-se inteiramente inócuo...Se o “devedor final” é um neologismo muito inadequado, criado pelo legislador pátrio, para designar a tradicional e inconfundível figura do sacador ou emitente de um título de crédito...” (LUCCA, Newton de. Comentários ao novo código civil, p. 215-216)

343 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 301-302.

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145

5.1.3 O aval e o Código Civil de 2002

Conforme já destacado, neste trabalho, o Código Civil de 2002 dispôs

sobre a matéria de títulos de crédito. Entretanto, tal fato não representou a

unificação do Direito Privado, ensejou, sim, uma discussão doutrinária sobre a razão

do tratamento dessa matéria específica pelo ordenamento civilista.

Sobre a introdução da matéria de títulos de crédito, no Código Civil de

2002, Fran Martins manifesta que:

Segundo se depreende da leitura de sua disposição contida na obra ‘O Novo Código Civil Comentado’, 1ª ed., 2ª tiragem, ed. Saraiva, 2002, p. 788, coordenado por Ricardo Fiuza, o legislador pretendeu estatuir regras gerais de estabelecimento da disciplina do instituto, sem revogar as diversas leis e convenções internacionais adotadas pelo Brasil que regulam esse assunto, sendo que a legislação brasileira anterior ao novo Código Civil sobre títulos de crédito é específica para cada tipo de título. O novo Código Civil também é inovador por conter normas gerais que definem os títulos de crédito e enunciam suas características básicas. Dito isto, se conclui que o novo diploma civil não revogou a legislação anterior, a qual continua em pleno vigor, segundo se depreende da leitura do art. 903 [...]344.

Nesse particular, Wille Duarte Costa entende que a introdução da matéria

sobre títulos de crédito no Código Civil de 2002 foi desnecessária, inútil,

entendendo-a como “imitação piorada do Codice Civile de 1942”:

Não entendemos mesmo por qual razão foram introduzidas normas sobre títulos de crédito, criando disposições em tudo supérfluas para não dizer desnecessárias, que não melhoraram tais títulos, na medida em que foram mantidas as atuais e vigentes disposições sobre os títulos típicos cambiais e cambiariformes. A pretensão não foi a unificação dos Códigos e a absorção do Direito Comercial pelo Civil? Por que, então, a dicotomia estabelecendo normas diferentes das disciplinadas pelo Direito Cambiário, mantendo-se este?345

344 MARTINS, Fran. Títulos de crédito, p. 5. 345 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 64.

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Arnaldo Rizzardo346 também faz críticas à introdução da matéria de títulos

de crédito no Código Civil de 2002. Para o autor, “[...] os títulos de crédito existentes

no direito brasileiro são regulamentados por normas próprias. Daí que as regras

contidas no Código Civil se tornam praticamente inaplicáveis [...]”.

Theophilo de Azeredo Santos347 afirma que: “Infelizmente, o Título VIII –

Dos Títulos de Crédito e Livro II – Do Direito de Empresa – da Lei n. 10.406, de 10

de janeiro de 2002, não conseguiu alcançar os objetivos perseguidos, pois estão

incompletos, com enganos e até redação incompleta”.

Sílvio de Salvo Venosa também registrou o seu desacordo quanto às

disposições do Código Civil de 2002 sobre títulos de crédito:

Melhor seria que toda essa matéria fosse extirpada do novo Código, pois sua presença neste estatuto é injustificável em todos os sentidos. O novel legislador não usou da mínima cautela, não se apercebendo, ou não querendo aperceber-se, de que a matéria de títulos de crédito está de há muito solidificada por uma massa perfeitamente compreensível de normas em nosso direito348.

Observa-se que a introdução da matéria de títulos de crédito no Código

Civil de 2002 desencadeou diversas críticas, na medida em que não se verifica

qualquer necessidade daquele ordenamento civilista dispor sobre os títulos de

crédito, mormente porque estes já estão regulamentados pelas leis especiais.

Ninguém terá levado tão longe e de forma tão aguda as críticas de uma disciplina geral dos títulos de crédito, num texto de lei, quanto Messineo e Ascarelli, críticas essas que – talvez fosse escusado dizê-lo – têm inteira pertinência ao nosso Código. [...] Para o segundo deles (Ascarelli), autor dos estudos mais aprofundados que já se escreveram sobre os títulos de crédito, os óbices existentes para essa disciplina geral seriam ainda mais significativos. De forma grosseira, assim poderiam ser resumidas as suas agudas e percucientes considerações: ao transportar para as ‘Disposições Gerais, o conceito de título de crédito formulado por Vivante (e definitivamente consagrado pela tradição doutrinária universal), o legislador dá azo a que duas

346 RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, p. 2. 347 SANTOS, Theophilo de Azeredo. Os títulos de crédito no código civil. Revista Magister de Direito

Empresarial, Concorrencial e Do Consumidor, p. 5. 348 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: contratos em espécie apud SILVA, Marcos Paulo Félix da.

Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas, p. 59.

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hipóteses possam ocorrer. Na primeira delas, ele estaria simplesmente repetindo, sob designação genérica, as normas especiais de cada um dos títulos de crédito singularmente considerados. Na segunda, o legislador estaria abrindo a possibilidade de livre criação dos chamados títulos atípicos349.

Os autores destacados abaixo defendem que – para que se possa

conseguir atribuir qualquer utilidade para o tratamento da matéria sobre títulos de

crédito pelo Código Civil de 2002 – o legislador pretendeu possibilitar a criação dos

títulos de crédito atípicos ou inominados. Paulo Roberto Colombo Arnoldi e Marcos

Paulo Félix, ao analisarem o texto da Exposição de Motivos do Anteprojeto do

Código Civil escrito por Mauro Brandão Lopes, explicam, nesse sentido, quais foram

os objetivos do Código Civil de 2002, ao inserir, em seus dispositivos, a matéria

sobre títulos de crédito:

É imprescindível ter em mente que o novo Código contém uma disciplina geral para os títulos de crédito idealizada com os objetivos de: a) autorizar a criação dos títulos de crédito atípicos ou inominados; b) servir de disciplina suplementar aos títulos de crédito nominados ou típicos, naquilo em que houver compatibilidade; e c) conferir aos títulos novos ou aos que vierem a ser criados uma disciplina referencial para emissão, visto que as leis específicas de vários títulos determinam que a eles se apliquem, quando cabíveis, subsidiária ou completamente, as normas sobre as cambiais. Não houve o intuito de conformar uma disciplina geral de títulos de crédito visando a enumeração e reunião dos dispositivos comuns de parte ou da totalidade das inumeráveis espécies existentes de títulos de crédito. Optou-se por arquitetar uma disciplina básica, genérica, direcionada para os títulos de crédito, criados de conformidade com as exigências e dinâmica dos negócios, porém não previstos em lei. A regulamentação geral não se aplicada, destarte, diretamente aos títulos de crédito definidos e disciplinados em leis especiais (cédulas de crédito, duplicatas, nota promissória, letra de câmbio etc.), a não ser quando compatíveis com estes e em caráter suplementar (art. 903)350.

Para os mencionados autores, a introdução da matéria sobre títulos de

crédito no Código Civil de 2002 não foi uma simples afirmação das regras gerais dos

títulos de crédito, mas sim uma abertura para possibilitar a criação de títulos de

crédito atípicos, ou seja, aqueles não regulados por leis especiais, com o objetivo de

fomentar “a dinamicidade dos negócios, possibilitando concretizar a criatividade das

349 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 120-121. 350 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Os títulos de crédito no novo

código civil. Revista dos Tribunais, p. 15-16.

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fontes materiais do direito empresarial”351. Nessa linha de pensamento, Paulo

Roberto Colombo Arnoldi e Marcos Paulo Félix registram que:

Entendemos por títulos típicos aqueles definidos por um modelo geral, ou melhor, consiste na impossibilidade de emitirem títulos de crédito que não estejam definidos pela própria lei. Os títulos típicos, ou com previsão legal, são numerus clausus e só podem ser emitidos quando especialmente regulados por lei. Ao revés, os títulos atípicos designam um documento não expressamente previsto na legislação, mas que nem por isso estão inteiramente afastados dos princípios reguladores dos títulos típicos ou nominados352.

No que se refere à adoção dos títulos atípicos, verifica-se que nem todos

os autores concordaram com essa linha de pensamento. Há doutrina353 que

condena a adoção dos títulos, sob o argumento de que essa criação proporciona

uma confusão, na prática, para se distinguir os títulos típicos dos atípicos. Essa

reprovação está registrada, também, nos ensinamentos de Ascarelli seguido por De

Lucca e Fábio Konder Comparato354:

[...] mesmo admitindo-se a sua função na criação de novos títulos, é importante notar o ‘círculo vicioso’ em que se encontra a matéria. Fábio Konder Comparato relata, com base nos ensinamentos de Ascarelli, da seguinte forma: tentou legislar, nas ‘disposições gerais’, a criação de títulos de crédito atípicos ou inominados. Porém, os títulos de crédito, conforme conceituação transcrita nestas mesmas ‘disposições gerais’, são documentos necessários para o exercício do direito literal e autônomo nele contido (mencionado), produzindo efeito quando preenchidos os requisitos da lei. Para aplicação destas ‘disposições gerais’ seria necessária a determinação de uma ‘fatispécie’, criada por lei. E, como os títulos atípicos não são regulados por lei, não estariam sujeitos a estas ‘disposições gerais’355.

351 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Os títulos de crédito no novo

código civil. Revista dos Tribunais, p. 13. 352 ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Os títulos de crédito no novo

código civil. Revista dos Tribunais, p. 13. 353 Nesse sentido entendem Newton De Lucca, Fábio Konder Comparato e Rubens Requião.

(ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Os títulos de crédito no novo código civil. Revista dos Tribunais, p. 14)

354 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil. op. cit. p. 121/123. 355 SILVA, Fernanda Aparecida Mendes e. Teoria geral dos títulos de crédito e o novo código civil: a

questão da relativização de seus atributos. Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, p. 34.

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Ainda, o jurista Antônio Mercado Júnior “mostrou-se duvidoso em relação

à adoção dos títulos atípicos, com o argumento que poderia trazer perigo ao público

em geral a criação indiscriminada de novos títulos de crédito”356.

Nesse mesmo sentido, Von Adamek manifesta que:

Os títulos de crédito atípicos serão sempre títulos novos, surgidos da prática negocial, sem parâmetros predefinidos e, portanto, de per si irão suscitar dúvidas e desconfianças do devedor e possíveis avalistas, tanto mais de credores e sucessivos endossatários. Se, para além disso, a regulamentação deles ainda fosse estrita, amarrada, possivelmente os títulos atípicos jamais iriam conseguir circular, tornando estéril e inútil a sua própria regulamentação: os títulos de crédito destinam-se a mobilizar o crédito; se não têm como circular, simplesmente perdem a sua razão de ser357.

Em suma, deve-se concordar com a posição de Wille Duarte da Costa

(citada acima)358, no sentido de que a introdução da matéria sobre títulos de crédito

pelo Código Civil de 2002 foi desnecessária. Isso porque, ainda que se considere a

ideia da adoção dos títulos atípicos, é certo que estes não existem. Não há títulos de

crédito atípicos, tornando-se desnecessários os dispositivos introduzidos pelo

Código Civil de 2002359. Nesse ponto, vale também reprisar os ensinamentos de

356 Observações sobre o Anteprojeto de Código Civil, quanto à matéria dos títulos de crédito,

constante da Parte Especial, Livro I, Título VIII. Revista de Direito Mercantil 9/117. (Apud ARNOLDI, Paulo Roberto Colombo; SILVA, Marcos Paulo Félix da. Os títulos de crédito no novo código civil. Revista dos Tribunais, p. 14)

357 ADAMEK, Marcelo Vieira Von. Endossos próprios e impróprios, endosso póstumo e circulação imprópria dos títulos de crédito (Código civil, arts. 919 e 920). Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 80.

358 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 64. 359 Sobre a criação dos títulos de crédito atípicos, Wille Duarte Costa ressalta: “Ora, se os títulos de

crédito atípicos, regulados pelo novo Código Civil, não são passíveis de protesto e nem têm ação executiva, de que valem tais títulos como títulos de crédito? Que crédito é esse que não pode ser recuperado pela ação própria caso não sejam liquidados? Então, tais títulos chamados também ‘de crédito’ são, em verdade, imprestáveis, de nada servem. Se procuram definir ‘títulos de crédito’, copiando VIVANTE, porque não definiram “títulos atípicos”, dando a noção exata ao intérprete? Daí que, pela precariedade que tais títulos chamados ‘de crédito’ apresentam no novo Código Civil, eles não passam de papéis insignificantes, sem qualquer valor representativo dos títulos de crédito, como a ‘entrada de teatro’, a ‘passagem de avião’, o ‘vale-refeição’ e muitos outros do mesmo tipo”. (COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 23-24) Fato é que ainda não se tem exemplos certos de títulos atípicos, mormente porque estes são criados com a prática. Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. entende que aqueles papéis exemplificados acima por Wille Duarte Costa são comprovantes de legitimação. O autor ressalta que “Os títulos de crédito, como documentos de legitimação, não se confundem com os títulos impróprios porque estes, embora também exerçam uma função de legitimação, não visam à circulação de direitos. Isso porque são meros documentos probatórios da sua causa e não encerram operações de crédito. Os títulos impróprios dividem-se em comprovantes de legitimação e títulos de legitimação. Os comprovantes de legitimação são documentos cuja titularidade não decorre do documento em si mas de contrato ou de simples fato (lugar em uma fila), tendo os documentos função meramente

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Ascarelli no sentido de que as “disposições gerais” previstas pelo ordenamento

civilista, em matéria de títulos de crédito, não poderiam sequer ser aplicadas aos

eventuais títulos atípicos, porque “Para aplicação destas ‘disposições gerais’ seria

necessária a determinação de uma ‘fatispécie’, criada por lei. E, como os títulos

atípicos não são regulados por lei, não estariam sujeitos a estas ‘disposições

gerais”’360.

Ainda nessa linha de pensamento, Werter Faria361 e Jean Carlos

Fernandes362 destacam que a regulação sobre a matéria de títulos de crédito pelo

Código Civil de 2002 apresenta dois efeitos: (i) a inaplicabilidade das disposições

gerais do Código Civil aos títulos de crédito regulados por leis especiais; e (ii) o

surgimento do conflito entre as disposições do Código Civil de 2002 que regulam a

matéria de títulos de crédito e aquelas contidas nas leis especiais.

Quanto ao primeiro efeito, é certo que todas as disposições já existentes

ou que ainda venham existir em leis especiais referentes aos títulos de crédito

prevalecerão sobre o Código Civil de 2002. É exatamente nesse sentido o disposto

no art. 903 do Código Civil que determina que: “Salvo disposição diversa em lei

especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código”. Assim, as

probatória da sua causa, para qualificar o apresentante como contraente originário, como, por exemplo, bilhetes de passagem de ônibus, ingressos para espetáculos públicos etc. Esses documentos, em regra, são intransferíveis e devem ser apresentados para o cumprimento da obrigação. Nesse tipo de documento a legitimação age exclusivamente em favor do devedor porque considera-se exonerado de sua obrigação, adimplindo-a em relação ao apresentante do documento que comprove ser o titular do direito, salvo nos casos de má-fé ou culpa quanto à falta de titularidade do apresentante. Por isso, o devedor pode recusar-se a cumprir a obrigação, se o possuidor não provar ser o verdadeiro titular do direito que pretende exercitar porque, em regra, o documento é intransferível. Os títulos de legitimação conferem ao portador o direito de receber uma prestação de coisas ou de serviços, são também documentos probatórios da sua causa, mas distinguem-se dos comprovantes de legitimação porque: a) são transferíveis por cessão a terceiro, independentemente de notificação ao devedor; b) o devedor pode pagar validamente ao possuidor do documento que se legitima, quer como contraente originário, quer como cessionário, não podendo recusar o cumprimento da obrigação, salvo se provar a inexistência da cessão; c) o contraente originário, não possuidor do título, só poderá opor-se ao exercício do direito pelo possuidor, provando a inexistência da cessão. Daí o título de legitimação ser documento que opera tanto a favor do devedor quanto a favor do credor. São exemplos de títulos de legitimação os vales postais e as cautelas de penhor ao portador”. (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 75-76)

360 SILVA, Fernanda Aparecida Mendes e. Teoria geral dos títulos de crédito e o novo código civil: a questão da relativização de seus atributos. Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, p. 34.

361 FARIA, Werter R. Os títulos de crédito e o código civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 70.

362 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário na recuperação judicial da empresa, p. 70.

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“disposições gerais” do Código Civil poderão ser utilizadas, no que tange aos títulos

de crédito regulados por leis especiais, somente de forma subsidiária.

No que se refere ao segundo efeito, Jean Carlos Fernandes363 ressalta

que:

Igualmente, o segundo efeito é dissipado pelos mesmos dispositivos, com reforço do artigo 887 do Código Civil brasileiro que, ao conceituar o título de crédito, condicionando a sua eficácia ao preenchimento dos requisitos da lei, demonstra o caráter subsidiário das normas civis em relação às leis especiais. [...]. O Código Civil inicia o elenco de normas gerais sobre os títulos de crédito, invocando os seus princípios basilares: cartularidade, literalidade e autonomia, que constituem base essencial, para a existência, validade e eficácia dos atos (negócios) jurídicos celebrados no âmbito do direito cambiário. E o fez em seu artigo 887, nos seguintes termos ‘O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido , somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei’. Mantém-se, assim, a consagrada autonomia do direito cambiário e da própria disciplina dos títulos de crédito. Os artigos 887 e 903 citados arredam as dúvidas sobre a aplicação do Código Civil aos títulos de crédito hoje existentes, os quais, somente produzirão efeitos quando preenchidos os requisitos dispostos nas leis especiais que o regulam.

Assim, em razão da aplicação subsidiária do Código Civil de 2002 no

tocante aos títulos de crédito, é importante analisar as disposições daquele

ordenamento civilista para que se possa certificar qual ou quais artigos prevalecerão

diante de eventuais lacunas nas leis especiais. O presente estudo focará essa

análise nos dispositivos do Código Civil de 2002 que tratam sobre a declaração

cambiária do aval.

De acordo com o art. 897 do Código Civil, “O pagamento de título de

crédito, que contenha obrigação de pagar soma determinada, pode ser garantido por

aval”.

Conforme observou De Lucca, o mencionado dispositivo parece limitar a

utilização do aval aos títulos cambiários (letra de câmbio e nota promissória) e

cambiariformes (cheque e duplicata) ou aos títulos que expressam obrigação de

363 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 70-71.

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pagar quantia certa (títulos monetários). No entanto, acrescenta o autor que “[...]

essa interpretação deve ser recusada [...] sob pena de não se compadecer com o

espírito de livre possibilidade de criação de títulos atípicos [...]”364.

Noutro norte, Marcos Paulo Félix ressalta que o aval, de acordo com o art.

897 do Código Civil, somente é cabível aos títulos de crédito que representem

obrigação de pagamento de soma em dinheiro:

Tendo em vista o princípio da liberdade de criação e emissão de títulos atípicos ou inominados, viga mestra de todo o Título VIII, a resposta não pode ser outra senão a de que, pelo novo diploma civil, somente os títulos representativos de obrigação pecuniária ou que representem obrigação de pagamento de soma em dinheiro podem ser garantidos por aval (art. 897), não cabendo, portanto, aval noutros títulos atípicos, como os que têm por objeto a prestação em mercadorias365.

Nesse particular, deve-se discordar do mencionado autor. Não há

qualquer sentido em restringir a utilização do aval para apenas os títulos de crédito

que representem obrigação de pagamento de soma em dinheiro; indiferentemente

de se concordar ou não com a ideia da adoção dos títulos atípicos. Isso porque, o

aval tem como função facilitar a própria circulação dos títulos de crédito e, portanto,

não deve ser restringido entre eles. É nesse sentido o entendimento de De Lucca:

[...] em se tratando de títulos não legalmente previstos – nos quais, diga-se, a segurança jurídica oferecida aos terceiros adquirentes de boa-fé não seria, em princípio, idêntica àquela que se outorga aos títulos nominados ou típicos –, a garantia exteriorizada pelo aval, quer se trate de títulos que expressem quantia determinada, quer se cuide daqueles que representem outros tipos de valores, afigura-se mais conveniente do que nunca... 366

Portanto, pode-se afirmar que o aval é garantia cambiária que pode ser

utilizada para os títulos de crédito em geral.

Por sua vez, o parágrafo único do art. 897, do Código Civil veda o aval

parcial. Tal dispositivo entra em choque com as leis especiais que regulam os

principais títulos de crédito: letra de câmbio e nota promissória (art. 30, alínea

364 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 192. 365 SILVA, Marcos Paulo Félix da. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas,

p. 76. 366 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 192.

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primeira, da Lei Uniforme de Genebra)367, cheque (art. 29, da Lei n. 7.357/85)368 e

duplicatas (art. 12 c/c art. 25, da Lei n. 5.474/68)369, para os quais é admissível o

aval parcial. Sendo assim, o parágrafo único, do art. 897, do Código Civil, não é

aplicável às referidas espécies de títulos de crédito, prevalecendo, pois, os

dispositivos das leis especiais.

De qualquer forma, para Wille Duarte Costa, “[...] andou bem o novo

Código, ao proibir o inútil aval parcial [...]”. Isso porque, para o autor: “Ninguém,

exigindo um aval no título, vai permitir que este seja parcial, porque é o credor quem

conduz isto e exige do devedor a garantia que quiser, sob pena de não realizar o

negócio”370.

Já para De Lucca, a vedação do aval parcial determinada pelo Código

Civil de 2002 contraria a lógica de todo o sistema cambiário, bem como a própria

razão de ser das disposições gerais sobre títulos de crédito tratadas no

ordenamento civilista. Para o autor:

Fica um tanto quanto difícil, com efeito, conciliar a idéia de que o aval parcial seja possível nos principais títulos de crédito existentes – letra de câmbio, nota promissória, cheques e duplicatas – e não possa ser justamente nos títulos de crédito atípicos ou inominados para os quais, presumivelmente, toda e qualquer garantia adicional, ainda que meramente parcial, deveria ser tida por bem-vinda371.

Nesse particular, vale ressaltar o entendimento defendido por este estudo,

no sentido de que não há títulos de crédito atípicos. Todavia, pode-se concordar

com a afirmação registrada por De Lucca de que a vedação do aval parcial pelo

Código Civil de 2002 contraria sim todo o sistema cambiário, uma vez que o aval,

sendo uma garantia, ainda que parcial, enseja uma maior segurança para a

circulação dos títulos de crédito.

367 “Art. 30. O pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval. Esta garantia

é dada por um terceiro ou mesmo por um signatário da letra.” 368 “Art. 29. O pagamento do cheque pode ser garantido, no todo ou em parte, por aval prestado por

terceiro, exceto o sacado, ou mesmo por signatário do título.” 369 “Art. 12. O pagamento da duplicata poderá ser assegurado por aval, sendo o avalista equiparado

àquele cujo nome indicar; na falta da indicação, àquele abaixo de cuja firma lançar a sua; fora dêsses casos, ao comprador. Parágrafo único. O aval dado posteriormente ao vencimento do título produzirá os mesmos efeitos que o prestado anteriormente àquela ocorrência. Art. 25. Aplicam-se à duplicata e à triplicata, no que couber, os dispositivos da legislação sôbre emissão, circulação e pagamento das Letras de Câmbio.”

370 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 29. 371 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 193.

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Acrescenta ainda De Lucca que o texto normativo do art. 897 do Código

Civil “é omisso quanto à possibilidade de poder o aval ser prestado não apenas por

um terceiro como, igualmente, por um dos signatários do título”372.

Nos termos do art. 30, alínea segunda, da Lei Uniforme de Genebra, o

aval pode ser dado por um terceiro ou mesmo por aquele que já é signatário do

título. Da mesma forma, em matéria de cheque, o aval pode ser prestado por um

signatário do título ou mesmo por terceiro, excetuado o sacado (art. 29 da Lei n.

7.357/85).

Considerando o silêncio do Código Civil de 2002 e os mencionados

dispositivos das leis especiais, De Lucca, adotando a ideia dos títulos atípicos,

entende que, pelas “disposições gerais” do ordenamento civilista, também deve se

permitir a prestação do aval por quem já seja signatário no título de crédito. Para o

autor, “[...] não se encontra nenhuma razão axiologicamente relevante para que os

títulos de crédito atípicos, isto é, títulos não previstos adredemente por um modelo

legal, venham a ser livremente criados com características diferentes daqueles que,

pela sua função e estrutura, já foram devidamente reconhecidos pelo sistema

jurídico”373.

Por sua vez, o art. 898 do Código Civil determina que o aval deve ser

dado no verso ou no anverso do próprio título, sendo que “Para a validade do aval,

dado no anverso do título, é suficiente a simples assinatura do avalista”(§1°).

Da leitura do mencionado dispositivo pode-se concluir que a declaração

cambiária do aval, quando feita no verso do documento, deve ser seguida de

expressão que a indique, como por exemplo, “bom para aval” ou outra

equivalente374. Diante disso, deve-se analisar a hipótese em que haja uma simples

assinatura no verso do título, sem qualquer cláusula de garantia, e que não abranja

a cadeia ininterrupta de endossos. Nesse caso, De Lucca destaca algumas

correntes de pensamento:

A primeira corrente de pensamento, sustentada por uma plêiade invejável de juristas, entende que a assinatura de que se cuida não poderá ser considerada como aval porquanto este deve ser prestado no anverso da letra ou, se outorgado for no verso, existir a menção

372 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 194. 373 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 195-196. 374 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 200. RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de

crédito: lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, p. 99.

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inequívoca que caracterize a assinatura com essa qualidade. [...] para os adeptos dessa corrente de pensamento, a assinatura prestada no verso, sem declaração de garantia, ficaria desprovida de qualquer valor cambiário pela sua insuficiência formal. Vale dizer: não será considerada nem aval, nem tampouco endosso em branco. Para uma segunda posição, defendida por Stranz: ‘Se a assinatura no verso, sem qualquer menção de garantia, não pode ser considerada nem aval e nem aceite, só poderia ser tida como um endosso em branco, ainda que não corresponda à cadeia de endossos existentes no título, porquanto se estaria diante de um problema de responsabilidade e não de interrupção da série de endossos’. [...]. Para uma terceira posição, a assinatura no verso da letra, ainda que sem qualquer menção de garantia, deveria ser considerada como aval (desde que a mesma interrompa a cadeia de sucessivos endossos). Sustenta Angeloni: ‘Ninguém apõe a própria assinatura numa cambial sem que tenha a intenção de assumir uma obrigação cambiária, sendo interesse do portador, por outro lado, que a cambial tenha um obrigado a mais’. [...]. Rossi combate a posição de Angeloni lembrando que ‘nos encontramos diante de requisitos de forma no exame dos quais devem ser afastadas, da maneira mais categórica, as considerações relativas à intenção do signatário. A simples firma aposta sobre o verso da cambial – prossegue Rossi – ‘não pode ser considerada, de modo algum, uma firma de aval, uma vez que faltaria um requisito essencial de forma, qual seja o da cláusula da garantia’375.

Ao final, De Lucca registra que a posição de Rossi é a que prevalece na

doutrina e que corresponde ao pensamento de Vivante. Não obstante, complementa

o autor que a corrente que entende que a simples assinatura aposta no verso do

título pode ser considerada aval – sob o argumento de que não existem assinaturas

inúteis no título – está ganhando novos adeptos376. A jurisprudência mineira atesta

isso:

Diante da literalidade e autonomia da nota promissória, o credor nada tem que provar a respeito da sua origem, sendo ela válida e eficaz, mesmo se vinculada a algum tipo de contrato. Não existem assinaturas inúteis no título de crédito, em face de tal fato, é entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência a possibilidade de o aval ser prestado em qualquer parte do mesmo. O embargante,

375 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 201-203. 376 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 203-204.

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no momento em que resiste à pretensão do exeqüente de satisfazer o seu crédito, deve invocar fatos capazes de impedir, modificar ou extinguir o direito do credor (art, 333, II, do CPC), demonstrando-os, com precisão, para que o Juiz valorize suas assertivas, do contrário a improcedência dos embargos se impõe [TJMG. Apelação Cível n. 1.0024.96.100294-6/001. 18ª Câmara Cível. Relator Unias Silva. Data do julgamento 28/8/2007]377. Restando clara a finalidade de garantia da assinatura aposta no verso da cártula, desacompanhada de qualquer expressão explicativa, deve-se entender tratar-se de aval, até porque manifesta a sua distinção do endosso em branco. − Havendo resistência legítima e dentro dos moldes facultados pela legislação processual, inteiramente afastada a argüição de litigância de má-fé [TJMG. Apelação Cível n. 1.0702.04.166.250-4/001. 14ª Câmara Cível. Relator Elias Camilo. Data do julgamento 15/12/2005]378.

É nesse sentido também o entendimento de Raúl Cervantes Ahumada,

que assim registra: O aval será dado, por meio da expressão, “por aval”, “em

garantia” ou outra equivalente, mas somente a assinatura de um indivíduo aposta na

letra de câmbio, sem que a ela possa atribuir-se outra qualidade, será tida como

aval379.

Já o § 2°, do art. 898, do Código Civil, considera não escrito (ineficaz) o

aval cancelado, dando-se a entender pela possibilidade do cancelamento da

garantia cambiária. Trata-se de disposição inovadora, considerando que a Lei

Uniforme de Genebra é omissa quanto a isso. Sobre esse entendimento do

cancelamento da garantia cambiária, Arnaldo Rizzardo registra:

A regra tem grande importância prática. Todavia, uma vez formalizado o título, encaminhado ao credor, não mais se admite o cancelamento unilateral, ou por vontade do devedor. Chegando às mãos do titular do crédito, consuma-se a relação contratual, como exigibilidade da quantia perante aqueles que se obrigaram. Unicamente se declarada alguma nulidade tem-se, então, o cancelamento380.

Assim, considerando o silêncio da Convenção Cambiária, deve-se

entender que o dispositivo do § 2°, do art. 898, do Código Civil, que considera “não

377 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 16 mar. 2010. 378 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 16 mar. 2010. 379 Tradução nossa: El aval se expresará en la fórmula ‘por aval’, ‘en garantía’ u outra equivalente;

pero la sola firma de un individuo puesta en la letra de cambio, si no se le puede atribuir otra calidad, se tendrá como aval. (AHUMADA, Raúl Cervantes. Títulos y operaciones de crédito, p. 70)

380 RIZZARDO, Arnaldo. Títulos de crédito: lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, p. 99.

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escrito o aval cancelado” pode ser aplicado aos títulos de crédito regulados pela lei

cambial e por aqueles outros, cujas leis especiais são omissas quanto a isso (art.

903 do CC).

Em seguida ao mencionado dispositivo, o art. 899 trata da equiparação do

aval ao avalizado: “O avalista equipara-se àquele cujo nome indicar; na falta de

indicação, ao emitente ou devedor final”381.

Percebe-se que o texto normativo está em consonância com a Lei

Uniforme de Genebra, que prevê, em seu art. 32, 1ª alínea, que: “o dador de aval é

responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”382. Em outras

palavras, o avalista responde pela obrigação do pagamento da dívida, assumindo a

mesma posição do avalizado.

O § 1°, do art. 899, do Código Civil, reserva ao avalista o direito de ação

de regresso contra o seu avalizado e os demais coobrigados anteriores nos

seguintes termos: “Pagando o título, tem o avalista ação de regresso contra o seu

avalizado e demais coobrigados anteriores”. Significa dizer que o avalista, ao pagar

o valor mencionado em um título de crédito, adquire todos os direitos dele

emergentes contra o avalizado e contra os demais coobrigados anteriores para com

este, podendo acionar um ou todos conjuntamente. É também nesse sentido o texto

normativo do art. 32, alínea 3ª, da Lei Uniforme de Genebra que assim dispõe: “Se o

dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a

pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em

virtude da letra”.

O § 2°, do art. 899, do Código Civil, registra o princípio da autonomia,

porque determina que “Subsiste a responsabilidade do avalista, ainda que nula a

obrigação daquele a quem se equipara, a menos que a nulidade decorra de vício de

381 No que tange à expressão “devedor final”, o Código Civil de 2002 deixa dúvidas se tal expressão

está ou não equiparada ao “emitente” do título de crédito. Sobre isso, De Lucca (2003) conclui que: “[...] seria possível supor-se, então, que o legislador – ao utilizar ‘emitente ou devedor final’ – não quis dizer que se tratava de expressões sinônimas e sim distintas, sendo este último (devedor final) pessoa diversa da do emitente. Tal esforço exegético, porém, prevalece revelar-se inteiramente inócuo... Se o ‘devedor final’ não é o emitente (ou sacador), quem poderia ser ele? Caberia, então, perguntar... À míngua de uma resposta segura para tal questão, só resta concluir mesmo pela primeira hipótese, isto é, ‘devedor final’ é um neologismo muito inadequado, criado pelo legislador pátrio, para designar a tradicional e inconfundível figura do sacador ou emitente de um título de crédito...” (DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 216)

382 A expressão afiançada trata-se de um erro grosseiro de tradução. O correto seria adotar a palavra “avalizada”, já que, conforme estudado, fiança e aval são garantias fidejussórias distintas.

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forma”. Portanto, ainda que inválida ou falsa a assinatura do avalizado, a validade do

aval permanece, salvo se houver vício formal, ou seja, ausência de requisito no

próprio título de crédito.

O art. 32, 2ª alínea, da Lei Uniforme de Genebra, firma o mesmo princípio:

“A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser

nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.

Por fim, o art. 900 do Código Civil determina que “O aval posterior ao

vencimento produz os mesmos efeitos do anteriormente dado”. Trata-se do aval

póstumo, isto é, aquele dado depois do vencimento do título de crédito, e de uma

verdadeira inovação, já que as leis específicas que tratam dos títulos de crédito não

preveem essa hipótese. Assim, considerando os termos do art. 903 do Código Civil,

deve-se entender que a mencionada previsão sobre a eficácia do aval póstumo

também é aplicada aos títulos de crédito já existentes – regulados pelas leis

especiais. Ou seja, não há diferença entre o aval oferecido antes do vencimento do

título de crédito e aquele oferecido depois; em ambas as situações ocorrerão todos

os efeitos que são característicos ao aval.

Esses são os dispositivos específicos sobre o aval tratados pelo Código

Civil de 2002. No entanto, o ordenamento civilista não parou por aí. O Código Civil

de 2002, ao tratar da matéria de Direito de Família, também se intrometeu na

regência dos títulos de crédito, prevendo a necessidade da outorga conjugal para se

dar aval, nos termos do art. 1.647, inciso III, do Código Civil. Sobre esse ponto

específico, tecer-se-á o estudo abaixo.

5.1.4 A outorga conjugal e o aval

Ainda na vigência do Código Civil de 1916, discutiu-se sobre a validade

do aval dado sem a outorga uxória, com fundamento no art. 235, inciso III, do

Código Civil de 1916, que proibia a prestação de fiança pelo marido sem o

consentimento de sua mulher. É o que registra João Eunápio Borges:

É anulável o aval prestado pelo homem casado, sem a outorga da mulher?

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Não, respondem quase unânimes a doutrina e a jurisprudência. É anulável, responde Magarinos Tôrres, anulável pela mulher ou pelos herdeiros dela; enquanto não fôr anulado, é ato cambial válido e obriga a meação da mulher. [...] A solução não podia ser outra, lògicamente, para quem, como Magarinos, conceitua o aval como simples modalidade de fiança, incluído, necessàriamente, na proibição do artigo 235, 3°, do Cód. Civil. Não pretendemos afirmar, porém, que o problema se resolva de modo contrário à tese de Magarinos, pela simples demonstração de não ser o aval fiança, mas garantia puramente objetiva, indene de qualquer vínculo de acessoriedade em relação à obrigação avalizada383.

Percebe-se que, ao contrário de Magarinos Torres, Eunápio Borges, na

vigência do Código Civil de 1916, sustentava a impossibilidade da aplicação do

artigo sobre fiança para aval, alegando que a exigência da outorga uxória para a

validade do aval é incompatível com as características cambiárias dessa garantia e,

por consequente, com a função e os princípios próprios dos títulos de crédito.

Nesse mesmo sentido, José Maria Whitaker384 também refutou a posição

de Magarinos Torres e registrou a incompatibilidade da exigência da outorga uxória

para se dar o aval:

Sobre tudo esta disposição, porque de todas as restrições impostas á liberdade da fiança, é esta a mais inconciliavel com os principios funadamentaes do direito cambiario. A letra é essencialmente um titulo de circulação. Todos os privilegios que a singularisam entre os institutos tem como causa e como fim a facilidade e a segurança desta circulação. Como, pois, submetel-a a uma exigencia que, restringindo a capaciadade cambiaria, obrigaria os adquirentes da letra a uma indagação prévia fora della, a respeito do estado civil dos respectivos avalistas? Allega-se que outro modo seria vã a cautela da lei civil, por isso que os maridos imprudentes darão pelo aval a garantia que lhes não seria permitido dar pela fiança. Mas este argumento, apesar de sua autorizada proveniencia – Magarino Torres, na Revista de Direito, vol. 44, pag. 49 – é, certamente, da classe daquelles que provam de mais, visto que não ha como não applical-o o também ás outras

383 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1955, p. 40-41. 384 WHITAKER, José Maria. Sobre a natureza do aval. Revista dos Tribunais, p. 139-141.

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obrigações cambiarias, sobretudo ao endosso, que, mais talvez do que o aval, é, entre nós, utilizado para uma função de mera garantia. A proteção ao lar, ou mais propriamente, ao patrimonio do lar, é uma santissima aspiração, mas seria contraproducente querer realizal-a, tornando praticamente inaccessivel ao chefe da familia o uso de um instrumento de credito precioso como é a letra de cambio. A lei cambiaria, de resto, é anterior ao Codigo Civil. A questão portanto, já era conhecida e se não foi nelle resolvida de uma maneira expressa, não é licito pretender fazel-o, ampliando para um instituto diverso um dispositivo de excepção, contra a regra expressa no art. 6º do mesmo Codigo Civil. Não: o preceito do Codigo Civil que restringe o direito do homem casado, é uma excepção a regras geraes, só abrange, portanto, o caso a que se refere. O preceito é para a fiança; o aval não é fiança; escapa portanto á sua desconfianda influencia.

Conforme já destacado, neste estudo, sem o instituto dos títulos de

crédito, a circulação de riquezas por meio do crédito e, portanto, a facilidade e

agilidade nas operações estariam comprometidas. Isso porque, ao contrário do

sistema de cessão de crédito − regido pelo direito civil −, os títulos de crédito, em

razão de seus princípios e elementos próprios, permitem a certeza de seu direito e a

segurança na sua circulação, atendendo, portanto, as necessidades da economia.

O aval, declaração unilateral de vontade, trouxe ainda aos títulos de

crédito uma maior segurança, mormente porque, como as demais declarações

cambiárias, é uma garantia autônoma e independente de qualquer condição.

No entanto, ao que parece, o Código Civil de 2002 desprezou tudo isso,

ao inserir em seu art. 1.647, inciso III, a necessidade de outorga conjugal para se

dar aval. É o que destaca Rachel Sztajn e Haroldo Malheiros:

A explicação e alerta de Ascarelli quanto à importância dos títulos de crédito, entretanto, parece ter sido abandonada pelo novo Código Civil. Talvez tenha faltado harmonizar dispositivos legais topograficamente distantes: os de direito cambiário e os de direito de família, dois subsistemas dentro do novo Código Civil. O Título VIII do novo Código Civil, ao dispor sobre títulos de crédito (atípicos talvez), cuida de apoiar a disciplina dessas declarações unilaterais sobre a literalidade, cujo controle se faz pela análise formal do documento que deve preencher requisitos mínimos. A seguir, passa-se ao controle da legitimação do portador que é, igualmente, formal. Assim, o que deve estar no documento decorre

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de prescrição legal (art. 889), sem o quê o documento não será título de crédito (art. 888). Depreende-se desse tratamento que o legislador tinha, na disciplina específica dos títulos de crédito, como meta a tutela da segurança na circulação, sem que os títulos de crédito perdem sua função sócio-econômica. Mas o mesmo legislador, mais adiante, ao se ocupar de matéria de família, deveria ter outras preocupações. E, como não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo, criou-se dicotomia perversa. De um lado, busca-se permitir que particulares criem documentos cambiários oferecendo suporte normativo. De outro, escolhe-se tutelar a família e, com isso, se exige a outorga do cônjuge para a concessão de aval. A lição de Camposso, tal como a de Ascarelli, foi ignorada e os institutos associados. O formalismo que suporta a segurança do direito na circulação do documento e que torna os títulos de crédito instrumentos ágeis, seguros e fundamentais no tráfico negocial, tenderá ser ignorado no Brasil?385

De acordo com o art. 1.647, III, do Código Civil, nenhum dos cônjuges,

salvo se casados sob o regime de separação de bens386, poderá dar aval sem a

autorização do outro. Trata-se de uma inovação do Código Civil de 2002, já que o

ordenamento civilista anterior exigia essa autorização apenas para se prestar fiança.

Apesar de o aval e a fiança serem garantias pessoais ou fidejussórias,

esses dois institutos, conforme já registrado neste trabalho, não se confundem,

sendo consideráveis as diferenças existentes entre eles. A fiança, garantia

fidejussória acessória, trata-se de um instituto regulado pelo Direito Comum –

Código Civil, arts. 818 a 839. Já o aval, garantia cambiária autônoma e

independente, é instituto próprio do Direito Cambiário, sendo que sempre terá

natureza comercial e somente pode ser dado no próprio título de crédito. O fato de o

Código Civil de 2002 também dispor sobre esse instituto não lhe retira a

característica de garantia, eminentemente, cambiária e, por isso, prevalece a sua

função e os seus princípios.

385 SZTAJN, Rachel; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Durlec. A disciplina do aval no novo código civil.

Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, p. 37-38. 386 Conforme já destacado neste trabalho, a Terceira Turma do STJ entendeu que a ressalva

determinada pelo art. 1.647, III, do CC/02, no sentido de não ser necessária a outorga conjugal, quando os cônjuges forem casados sob o regime de separação absoluta de bens, não abrange a hipótese em que ao casal tiver sido imposto, legalmente, o regime da separação absoluta (STJ. Recurso Especial 1163074/PB. Terceira Turma. Rel. Massami Uyeda. Julg. 4/2/2010. Disponível em: www.stj.js.br. Acesso em: 22 mar. 2010).

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No entanto, a exigência da autorização prévia do cônjuge para que o

outro possa dar aval, indubitavelmente, afeta a função primordial dos títulos de

crédito que é a dinamicidade e a rapidez de sua circulação, bem como as

características eminentemente cambiárias do aval:

De qualquer sorte, embora a legislação anterior não previsse expressamente a autorização conjugal para a concessão de aval, fato é que muito já se discutiu, na doutrina, sobre essa questão. Nada originais são, com efeito, as críticas que se manifestam contrariamente à exigência legal, o que, a propósito, ganha adesão deste texto. É difícil conceber uma exigência de tal monta, manifestamente contrária aos princípios sobre os quais repousam a rapidez e a segurança da circulação cambiária. Como conciliar com tais princípios uma exigência que obriga os adquirentes do título a procederem a uma indagação prévia, fora dele, a respeito do estado civil dos respectivos avalistas? A proteção do patrimônio do casal é uma aspiração acima de tudo louvável, mas é contraproducente querer realizá-la tornando praticamente inacessível ao cônjuge casado na condição acima referida o uso de um instituto precioso como o título de crédito. O ditame aí está, e dele não se pode afastar, restando apenas apontar alguns caminhos para que a exigência legal não interfira na rotina empresarial – dinâmica e célere, por natureza – a ponto de se tornar, em determinadas ocasiões, um verdadeiro empecilho à consecução de seu fim, que é o lucro387.

Com efeito, a necessidade da prévia autorização do cônjuge para que o

outro possa prestar aval atrapalha, como já comentado, a dinamicidade da

circulação dos títulos de crédito e o próprio desenvolvimento da economia388. Sobre

387 GALIZZI, Gustavo Oliva; FÉRES, Marcelo Andrade. O aval e a outorga conjugal instituída pelo

código civil de 2002. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7526>. Acesso em: 9 nov. 2007.

388 Ressalta-se que o falecido deputado Ricardo Fiuza elaborou o Projeto de Lei n. 7.312 de 2002 que prevê, dentre outras alterações, a modificação da redação do art. 1.647 do CC/02, com o objetivo de excluir desse dispositivo a palavra “aval”. De acordo com a “justificação” do mencionado projeto de lei: “Pretende a nossa proposta, acolhendo sugestão aprovada na I Jornada de Direito Civil realizada pelo Conselho da Justiça Federal, sob os auspícios do Superior Tribunal de Justiça, suprimir a expressão “ou aval” do inc. III do art. 1.647 do novo Código Civil. Efetivamente “exigir anuência do cônjuge para a outorga de aval é afrontar a Lei Uniforme de Genebra e descaracterizar o instituto. Ademais, a celeridade indispensável para a circulação dos títulos de crédito é incompatível com essa exigência, pois que não se pode esperar que, na celebração de um negócio corriqueiro, lastreado em cambial ou duplicata, seja necessário, para a obtenção de um aval, ir à busca do cônjuge e da certidão do seu casamento, determinadora do respectivo regime de bens””. O referido projeto de lei foi arquivado em 31/1/2007, nos termos do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados que assim dispõe: “Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as:

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isso, Marcos Paulo Félix também corrobora ao registrar que: “A aprovação definitiva

pelo Congresso Nacional da redação do inciso III, do art. 1.647, nem de longe tem

contribuído para o desenvolvimento da economia brasileira, ao revés, tem causado

sim perplexidade, no círculo empresarial pelos efeitos letais que vem produzindo

contra muitas iniciativas privadas importantes”389.

De Lucca também condena a inserção do art. 1.647, inciso III, do Código

Civil:

Inteiramente desarrazoada, a meu ver, tal inserção. Cabe anotar, em primeiro lugar, que ela não se compadece com a função eminentemente circulatória dos títulos de crédito. Seria abstruso que a outorga de um aval passasse a depender do exame de uma certidão de casamento a fim de exigir-se que, não sendo o regime de bens do casamento de separação absoluta, a autorização do outro cônjuge para a outorga do aval...Parece fora de propósito, com efeito, que numa simples operação de empréstimo, lastreada numa duplicata mercantil ou de serviços, absolutamente corriqueira em nosso meio, seja introduzida uma complicação desse tipo [...]. Ao lado da função eminentemente circulatória dos títulos de crédito, a exigir que o direito neles mencionado subsista de forma literal e autônoma, independentemente de fatores outros que não se expressem na própria materialidade cartular, alia-se a circunstância de todo ponderável de que o instituto do aval, conforme já frisado anteriormente, tem a função precípua de garantia, outorgando ao título maior segurança quanto ao seu pagamento. A exigência em tela, como se percebe, colide frontalmente com tais propósitos390.

Não obstante a certeza de que a introdução do art. 1.647, inciso III, do

Código Civil, impede a dinamicidade da circulação dos títulos de crédito e vai contra

aos próprios princípios cambiários (normas), a doutrina destacada adiante entende

pela aplicação do mencionado dispositivo aos títulos de crédito regulados pelas leis

especiais, em razão do disposto no art. 903 do Código Civil, ou seja, pela

anulabilidade do aval, caso dado sem o consentimento do cônjuge.

I − com pareceres favoráveis de todas as Comissões; II − já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno; III − que tenham tramitado pelo Senado, ou dele originárias; IV − de iniciativa popular; V − de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da República. Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou Autores, dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura subseqüente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava”.

389 SILVA, Marcos Paulo Félix da. Títulos de crédito no código civil de 2002: questões controvertidas, p. 81.

390 DE LUCCA, Newton. Comentários ao novo código civil, p. 205-206.

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É nesse sentido, o entendimento de Wille Duarte da Costa:

Porque o aval não se equipara à fiança, não é nulo o aval de pessoa casada sem consentimento do outro cônjuge, mas pode ser invalidado pelo cônjuge que não deu seu consentimento para o aval. Com exceção, se o casamento deu-se pelo regime de separação absoluta de bens, o aval não pode ser invalidado (inciso III do art. 1.647 do novo Código Civil) [...]. Um aspecto a ser observado é que alguns têm entendido que tais disposições sobre o aval não se aplicam aos títulos típicos. No entanto, é mero engano, pois as leis que regem os títulos de crédito típicos não exigem autorização do cônjuge e nem impedem a invalidação do aval. Logo, aquelas leis são omissas. Se o art. 903 do novo Código Civil dispõe que ‘salvo disposição diversa em lei especial’, regem-se os títulos de crédito pelo disposto naquele Código, por falta de disposições aplicáveis nas leis especiais deve prevalecer a letra do Código Civil391.

Nesse diapasão, Werter R. Faria corrobora:

O art. 1.647, III, do Código Civil proíbe o cônjuge de prestar fiança, bem como aval, sem autorização do outro, exceto no regime de separação. Essa norma pertence às disposições gerais do regime de bens entre os cônjuges. O direito cambiário não possui regras próprias acerca da capacidade para assumir obrigações por atos unilaterais de vontade. A capacidade passiva cambiária regula-se pelo Código Civil, que exige a autorização da mulher para o marido prestar aval e vice-versa392.

Fernanda Aparecida Mendes também registra o mesmo entendimento ao

afirmar que “Também foi regulamentado pelo Novo Código Civil a necessidade da

outorga uxória para o aval, conforme dispõe o art. 1.647 e seu inciso II (sic). E, como

não há previsão alguma quanto aos títulos típicos, subsidiariamente restaram

regulados da mesma maneira”393.

A esse respeito, também elucida Nelson Nery Júnior:

Aval. Autorização conjugal. Para ser válido, o aval dado por pessoa casada − salvo se no regime da separação absoluta (convencional) de bens − tem de vir acompanhado da autorização do outro cônjuge. Essa restrição do direito de família nada tem a ver com a autonomia

391 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 198, grifo do autor. 392 FARIA, Werter R. O aval, o código civil e os bancos. Revista de Direito Mercantil, Industrial,

Econômico e Financeiro, p. 49. 393 SILVA, Fernanda Aparecida Mendes e. Teoria geral dos títulos de crédito e o novo código civil: a

questão da relativização de seus atributos. Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, p. 37.

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do aval e de seu regramento pelos princípios do direito cambiário. A autorização conjugal é requisito de validade do aval dado por pessoa casada sob regime de bens que não seja o da separação absoluta convencional. Prestado o aval sem a observância desse requisito (autorização conjugal), o aval é anulável (CC 1649, caput). A anulabilidade do aval não contamina a higidez da obrigação principal que decorre do título394.

O Desembargador Tarcísio Martins Costa, integrante da 9ª Câmara Cível

do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em voto de sua relatoria, também manifesta

o entendimento pela possibilidade da invalidade do aval prestado sem o

consentimento do cônjuge:

[...] In casu, tenho que eventual irregularidade no aval, obrigação cambiária autônoma, não contamina a validade do título, até mesmo porque o aval prestado sem outorga uxória não é nulo e sim anulável, devendo, portanto, eventual discussão acerca de sua irregularidade, ser objeto de ação própria em que seja assegurado o contraditório e a ampla defesa. A respeito, dilucida Nelson Nery Júnior, em sua obra Código Civil Anotado, RT, 2ª, ed, p. 737: ‘Aval. Autorização conjugal. Para ser válido, o aval dado por pessoa casada − salvo se no regime da separação absoluta (convencional) de bens − tem de vir acompanhado da autorização do outro cônjuge. Essa restrição do direito de família nada tem a ver com a autonomia do aval e de seu regramento pelos princípios do direito cambiário. A autorização conjugal é requisito de validade do aval dado por pessoa casada sob regime de bens que não seja o da separação absoluta convencional. Prestado o aval sem a observância desse requisito (autorização conjugal), o aval é anulável (CC art. 1.649, caput). A anulabilidade do aval não contamina a higidez da obrigação principal que decorre do título’ [TJMG. Agravo de Instrumento n. 2.0000.00.488448-4/000(1). 9ª Câmara Cível. Relator Tarcísio Martins. Data do julgamento 27/9/2005]395.

No entanto, deve-se discordar do entendimento registrado pela doutrina e

jurisprudência supracitadas. É que, não obstante o texto normativo do art. 903 do

Código Civil, a exigência da outorga conjugal prevista no art. 1.647, inciso III, do

Código Civil, não pode ser aplicada aos títulos de crédito regulados pela lei cambial,

ainda que subsidiariamente.

394 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código civil anotado e legislação extravagante, p.

737. 395 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 16 mar. 2010.

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Isso porque, ao contrário do nobre entendimento exposto por Wille Duarte

da Costa, a Lei Uniforme de Genebra não é omissa no que tange à desnecessidade

da outorga conjugal para a prestação do aval.

A Lei Uniforme de Genebra invoca o princípio da autonomia das

obrigações cambiárias, em seu art. 7º, nos seguintes termos: “Se a letra contém

assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas,

assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não

poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi

assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas”.

Da mesma forma, o art. 13 da Lei do Cheque dispõe que “As obrigações contraídas

no cheque são autônomas e independentes”.

Em outras palavras, de acordo com o princípio da autonomia das

obrigações, uma declaração cambiária aposta no título de crédito não está vinculada

e nem condicionada a qualquer fator, salvo os requisitos de validade de todo o ato

jurídico396. O aval é declaração unilateral de vontade, porque não depende da

aceitação do avalizado nem do portador do título, sendo, como declaração

cambiária, uma obrigação autônoma. Por isso, ainda que a obrigação do avalizado

seja nula, falsa ou imprestável, a de seu avalista subsistirá, salvo se houver um vício

de forma. Vale frisar que o vício de forma dá-se mediante a ausência de requisito no

próprio título de crédito, ou seja, nem de longe, a outorga conjugal – que não é uma

declaração cambiária – pode ser considerada um requisito formal.

Ainda, sobre a incondicionalidade do aval, Rosa Jr. ressalta que “o aval,

como qualquer obrigação cambiária, deve corresponder a um ato incondicional, não

podendo a sua eficácia ficar subordinada a um evento futuro e incerto porque

dificultaria a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua”397. Ou seja,

a autonomia da garantia cambiária não permite que esta seja dependente de

consentimento de outrem para ter validade.

Ressalta-se que os princípios não são meros valores que apenas podem

influenciar o ordenamento jurídico, eles são, ao lado das regras, autênticas normas

jurídicas. Conforme já destacado neste trabalho, diante do conteúdo normativo dos

princípios, pode-se dizer que o princípio da autonomia, em conjunto com os

princípios da literalidade e da cartularidade, traz os próprios fundamentos do direito 396 O art. 104 do CC elenca os requisitos de validade de todo negócio jurídico. 397 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 284.

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cambiário; é o que identifica os títulos de crédito e, portanto, o que norteia esses

documentos formais.

Em suma, a exigência da outorga conjugal para se dar aval contraria o

conteúdo normativo do princípio da autonomia das obrigações, positivado pela Lei

Uniforme de Genebra e pela Lei do Cheque, razão pela qual o art. 1.647, inciso III,

do Código Civil, não se aplica aos títulos de crédito regulados pela lei cambial, ainda

que subsidiariamente. Sobre isso, Jean Carlos Fernandes afirma:

Os artigos 887 e 903 citados arredam as dúvidas sobre a aplicação do Código Civil aos títulos de crédito hoje existentes, os quais, somente produzirão efeitos quando preenchidos os requisitos dispostos nas leis especiais que os regulam. [...] É de se observar que o Código Civil em nada inovou quanto aos títulos de crédito, justificando, pois, a opinião da doutrina no sentido da generalidade de tais disposições, que na sua grande maioria, revelam-se apenas como repetição de dispositivos da Lei Uniforme de Genebra. Na realidade, o Código Civil, não modificou a teoria geral dos títulos de crédito; não alterou os efeitos do endosso nos títulos regidos por leis especiais (endosso sem garantia); não tornou inválido o aval por falta de outorga; muito menos criou ou possibilitou a criação de títulos virtuais, desprovidos de cartularidade398.

Nesse diapasão, Rosa Jr. acrescenta:

A LUG não reza expressamente que o aval deva ser puro e simples, como o faz em relação ao aceite e ao endosso. Entretanto, isso não significa que o aval possa ser condicional porque nenhuma declaração cambiária pode ter a sua eficácia subordinada a um evento futuro e incerto, para não contrariar o princípio da literalidade e não dificultar a circulação do título de crédito. Além disso, o aval condicional deixaria o portador do título na incerteza da ocorrência ou não do evento futuro e incerto, sem saber, portanto, se o avalista teria ou não obrigação cambiária. Deve-se considerar como não escrita a cláusula que beneficia o devedor (Decreto n. 2.044/1908, art. 44, IV, vigente em razão do silêncio da LUG)399.

Em outras palavras, em razão de o princípio da autonomia das obrigações

estar positivado na Lei do Cheque e na Lei Uniforme de Genebra, esses

398 FERNANDES, Jean Carlos. Cessão fiduciária de títulos de crédito: a posição do credor fiduciário

na recuperação judicial da empresa, p. 71-73. 399 ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio Franco da. Títulos de crédito, p. 295.

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ordenamentos jurídicos não precisam dispor, em seu texto, de forma literal, que a

outorga conjugal não é necessária para a validade do aval. Tratar-se-ia, caso assim

fosse, de repetição de uma norma.

Lado outro, deve-se ressaltar o que foi estudado no capítulo anterior: o

ordenamento jurídico não é formado apenas de regras, mas também de princípios.

Ademais, ainda que o princípio da autonomia das obrigações não

estivesse positivado, poder-se-ia manter o entendimento ora apresentado, porque,

de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello:

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão dos seus valores fundamentais, contumélia irreversível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra400.

Em suma, sob qualquer ângulo, pode-se afirmar que a exigência legal da

outorga conjugal no aval não é aplicável aos títulos de crédito já existentes.

Ressalta-se ainda que a outorga conjugal exigida pelo art. 1.647, inciso

III, do Código Civil, não é declaração registrada no título de crédito, por isso não

pode ser considerada como um requisito formal para a validade desse documento.

Trata-se de um fator totalmente externo aos títulos de crédito, o que reforça o

entendimento de que a mencionada autorização é desnecessária para a validade do

aval. Se, em razão do princípio da autonomia das obrigações, o aval não pode ser

anulado ainda que a assinatura do avalista seja, quanto menos poderia ser em razão

da ausência de uma autorização que é registrada fora do próprio título de crédito.

Nesse particular, Rachel Sztajn e Haroldo Malheiros ressaltam que:

[...] a legislação de títulos de crédito limita taxativamente a expressão da literalidade prevendo, conseqüentemente, somente alguns tipos específicos de posições cambiais, por meio das devidas assinaturas: sacador ou emitente, sacado/aceitante, endossante e avalista. Não existe a figura do ‘autorizador’. Disso decorrem dois efeitos jurídicos possíveis. Em primeiro lugar, de acordo com a Lei Uniforme em matéria de Letra de Câmbio (Decreto 57.633/1966), os elementos constantes de

400 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, p. 748.

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sua literalidade específica constam do art. 1º. Estipulações não autorizadas pela Lei Uniforme recebem dois destinos: ou são consideradas não escritas (v.g. juros, art. 5º, 2ª alínea; endosso condicionado, art. 12, 1ª alínea) ou são nulas (v.g. endosso parcial, art. 12, 2ª alínea). Aplicando-se tais regras para o aval, a ‘autorização’ do cônjuge será considerada não escrita ou nula, levando indiferentemente à sua falta de efeito cartular. Considerando-se que a Lei Uniforme resulta de um tratado internacional do qual o Brasil faz parte, para que a regra introduzida pelo novo Código Civil, institucionalizadora da autorização pudesse vir a afastar aquele texto, teria sido necessária a denúncia do tratado, o que não ocorreu. Daí que não seria eficaz para o fim pretendido uma cláusula do tipo ‘Outorgo a presente autorização exclusivamente para os fins do art. 1.647 do novo Código Civil’. Em segundo lugar, ainda que se venha a aceitar como regularmente presente no título e para os seus devidos efeitos a chamada autorização do cônjuge (outorga) deverá ser considerada necessariamente como aval, por exclusão, isto é, por haver no título uma assinatura que não é saque, aceite ou endosso. Isto quer dizer que, assinando o documento, o signatário será ‘co-avalista’ com o outro cônjuge.

Do contrário, Gustavo Galizzi e Marcelo Féres entendem ser possível a

outorga conjugal aposta no próprio título de crédito:

Se por um lado a LUG não previu, expressamente, a necessidade de autorização conjugal para prestação de aval, por outro, também não a coibiu. Não há, de fato, na legislação cambiária (ainda) em vigor, um só dispositivo que desautorize textualmente a outorga conjugal, razão pela qual, aliás, a questão sempre se reportou ao direito comum. Como o Código Civil de 1916 era também omisso quanto à questão, não se exigia a outorga para a concessão do aval, mas apenas para fiança. Entretanto, o diploma de 2002 disciplina o assunto de modo explícito, estendendo a exigência legal também à garantia cambiária, emergindo, daí, a inconteste validade da autorização em exame401.

Deve-se concordar com o entendimento de Rachel Sztajn e Haroldo

Malheiros, no sentido de que, a Lei Uniforme de Genebra limita taxativamente os

tipos específicos de aposições cambiais, não estando dentre estes a figura da

outorga conjugal, razão pela qual esta, caso aposta no título de crédito, ou será tida

como não escrita ou será nula ou será considerada aval. Conforme já destacado

401 GALIZZI, Gustavo Oliva; FÉRES, Marcelo Andrade. O aval e a outorga conjugal instituída pelo

código civil de 2002. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7526>. Acesso em: 9 out. 2007.

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acima, é entendimento jurisprudencial majoritário que a simples assinatura dada no

verso do título – que não esteja incluída na cadeia ininterrupta de endossos – será

considerada aval. Em outras palavras, caso o cônjuge, com o objetivo de apenas dar

o seu consentimento, simplesmente assine o título de crédito, também será

responsável cambiariamente como avalista402.

Lado outro, ressalta-se que na hipótese de ambos os cônjuges lançarem

as suas assinaturas em títulos de crédito, expressamente, como avalistas, ter-se-á o

aval conjunto e, obviamente, a autorização tácita de ambos.

Em suma, deve-se ressaltar que a disposição expressa no art. 1.647,

inciso III, do Código Civil, não é aplicável aos títulos de crédito regulados pela lei

cambial, ainda que subsidiariamente.

Sendo assim, pode-se afirmar que o aval dado, sem a outorga conjugal,

nesses títulos de crédito, é válido. É o que concluiu a 17ª Câmara Cível do Tribunal

de Justiça de Minas Gerais:

[...] Ressalte-se que a exigência da assinatura de duas testemunhas é mera exigência legal para que o contrato seja considerado título executivo extrajudicial e não requisito essencial de sua validade. Ora, o contrato somente seria anulável se apresentasse vício de consentimento e nulo se houvesse vícios em sua formação, como não há qualquer alegação nem provas nos autos neste sentido, a meu ver o contrato de fls. 09 mostra-se válido. Quanto à questão da ausência da outorga uxória nos avais dado nas notas promissórias executadas, cabe esclarecer que, ao contrário do que afirmou o apelante, a inexistência de tal instituto não torna o aval nulo, nem lhe retira a validade, porque este independe da outorga marital. A propósito, é essa a lição de Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. em sua obra ‘Títulos de Crédito’: ‘O art. 235, II, do CCB (novo CCB de 2002, art. 1.647, III) exige outorga marital ou uxória para que pessoa casada preste fiança sob

402 Vale registrar que esse não é o entendimento de alguns doutrinadores, conforme destaca Fran

Martins: “Certo é que pode surgir o problema, já assinalado por Silva Pinto, de ser encontrada numa letra de câmbio simples assinatura no verso, não podendo essa assinatura ser identificada como um endosso em branco, como, por exemplo, se a letra circulou sempre com o endosso em preto. Pela lei brasileira o caso era fácil de se resolver, pois tal assinatura seria considerada um aval; como, entretanto, a Lei Uniforme requer que, quando, aposto no verso da letra, o aval traga sempre uma declaração (‘Bom para aval’ ou outra semelhante), parece-nos que a solução é considerar essa assinatura como sem efeito, de acordo com o pensamento de Silva Pinto, que é, por sinal, o mesmo de Mossa, Supino, De Semo e Arminjon et Carry, por ele citados”. (MARTINS, Fran. Títulos de crédito, p. 145)

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pena de nulidade. Esta regra não se aplica ao instituto do aval porque não se confunde com a fiança, sendo, portanto, válido o aval dado por pessoa casada sem a outorga uxória ou marital’ (Luiz Emygdio F. da Rosa. Jr. Títulos de Créditos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 301). Desta feita, não há falar em nulidade do aval, nem tampouco da nota promissória em razão de tal instituto não ter vindo acompanhado de outorga uxória [Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0604.06.999875-4/001. 17ª Câmara Cível. Relator Luciano Pinto. DJ 20/4/2006]403.

Portanto, a ausência da outorga conjugal não é capaz de invalidar o aval,

mas o patrimônio do cônjuge que não deu o seu consentimento não poderá ser

atingido.

É exatamente nesse sentido o Enunciado n. 114 do Centro de Estudos

Judiciários do Conselho da Justiça Federal: “o aval não pode ser anulado por falta

de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a

inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu".

De acordo com os trechos dos votos citados abaixo, esse também é o

entendimento majoritário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

[...] A outorga uxória é a autorização dada por um dos cônjuges ao outro, para a prática de determinados atos, sem a qual estes não teriam validade. Sua ausência no título acostado aos autos da execução em conexo (vide f. 06), ao contrário do que entende a recorrente, não enseja a nulidade da assinatura do seu marido ali constante, permanecendo íntegra a garantia prestada. A melhor exegese do disposto no art. 1.647, III, do CC/02 é segundo o que restou assentado na Jornada STJ 114, que: ‘O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inc. III, do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu’ (in Código Civil Anotado e Legislação Extravagante, Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, RT, 2ª ed., 2004, p. 738). Conclui-se, portanto, que inexiste a nulidade da assinatura prestada pelo cônjuge da apelante, conforme sustenta, sendo o aval firmado sem outorga uxória apenas anulável, para afastar a meação do cônjuge que não o prestou, subsistindo em relação àquele que firmou

403 Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em: 28 mar. 2010.

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a garantia [TJMG. Apelação Cível n. 1.0134.07.090325-4/001. 11ª Câmara Cível. Relatora Selma Marques. DJ 21/1/2009]404. [...] Com o advento do novo Código Civil, a matéria aqui tratada sofreu alteração legislativa, vez que se passou a exigir a outorga uxória de um dos cônjuges para que o outro figure como avalista em título de crédito, como é o caso da nota promissória de fls. 21 dos autos em apenso, garantidora do contrato de renegociação de cheque especial de fls. 20 deste mesmo feito, avalizada pelo marido da apelante, Hipólito Mendonça Netto. Contudo, a jurisprudência, acampando a conclusão a que chegou o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, durante a Jornada de Direito Civil, no período de 11 a 13 de setembro de 2002, firmou-se no sentido de que o aval firmado sem a devida vênia conjugal não deverá ser anulado, mas será tão somente inoponível em relação ao cônjuge que com ele não consentiu. Veja-se o teor do supracitado enunciado: ‘114 − Art.1.647: o aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inc.III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu’ [Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível n. 1.0647.07.074944-3/001. 14ª Câmara Cível. Relator Rogério Medeiros. DJ 9/10/2008]405. [...] De fato, reza o Código Civil que: ‘Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: [...] III − prestar fiança ou aval. Na espécie dos autos, porém, o marido da apelante, Sr. Emídio Alves Ferreira Neto, autorizou, de forma expressa e indene de dúvidas − veja-se, a propósito, o documento reproduzido às f. 13 −, que sua esposa prestasse fiança e/ou avalizasse notas promissórias ‘em garantia de quaisquer operações creditícias’ firmadas com o Banco Mercantil do Brasil S.A. Trata-se, ao meu viso, de declaração de vontade firmada por agente capaz e que, portanto, somente poderia ser objeto de ataque nos casos previstos na lei civil e que, de certo, parecem não existir. Não bastasse, já existe o Enunciado 114, aprovado na Jornada de direito civil, promovida em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual: ‘o aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu’. [Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

404 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010. 405 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010.

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Apelação Cível n. 1.0287.05.020359-8/001. 16ª Câmara Cível. Relator Mauro Soares de Freitas. DJ 16/8/2006]406.

Demais Tribunais Estaduais corroboram:

[...] Convencendo-se o julgador de que a matéria focada prescinde de provas outras alem das carreadas aos autos, pode dispensar o ato solene, conhecendo diretamente do pedido, consoante permissivo insculpido no art. 330, inc. I, do código instrumental. II − Embargos de terceiro. Execução de titulo extrajudicial. Arguição de nulidade de aval ante a ausência de outorga uxória improcedência. Inobstante o novel código civil ter estabelecido a necessidade da venia conjugal para a concessão do aval por um dos cônjuges − Sob pena de anulação do ato, ex vi do disposto nos artígos 1.647, inc. III, combinado com o 1.649, caput, segundo entendimento jurisprudencial a respeito, a ausencia de outorga uxoria não acarreta, ipso facto, a invalidação da garantia, ensejando, apenas, a sua inaplicabilidade em relação ao conjuge que não o prestou, subsistindo plenamente em relação aquele que firmou a garantia, resguardando-se, outrossim, a meação da esposa. Apelo conhecido e desprovido [Tribunal de Justiça de Goiás. Apelação Cível n. 140421-0/188. Relator João Waldeck Félix de Sousa. DJ 31/7/2009]407. [...] A interpretação do artigo 1.647, inciso III, do Código Civil deve direcionar-se à garantia do terceiro de boa-fé que firma o negócio jurídico, no sentido de que o avalista, como no presente caso, responsabiliza-se pelo cumprimento das obrigações assumidas pelo avalizado. II dispõe o Enunciado n. 114 do cej: O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu. III assim, protege-se a meação do cônjuge, o qual possui meio próprio para resguardar-se, que são os embargos de terceiro, desde é claro que haja comprovação da inexistência de conversão da dívida em proveito da família, questão de fácil dedução, porquanto se trata de aval. IV em razão do disposto na Súmula n. 26/STJ, ainda que se reputasse nulo o aval pela inexistência de outorga uxória, a responsabilidade dos signatários subsistiria em decorrência de terem assumido a condição de devedores solidários nos termos contratados. Apelação provida [Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n. 0594298-3. 13ª Câmara Cível. Relator Juiz Convocado Fernando Wolff Filho. DJ 17/12/2009]408. [...] Comprovada na inicial, pelos fundamentos de fato e de direito, a necessidade do autor de estar em juízo, e a utilidade do provimento judicial pleiteado, encontra-se presente o interesse de agir, como condição da ação. Estará legitimado o autor para a ação quando for

406 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010. 407 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010. 408 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010.

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o possível titular do direito pretendido, ao passo que a legitimidade do réu decorre do fato de ser ele quem, em sendo procedente o pedido, suportará os efeitos da sentença, observando-se a titularidade dos interesses em conflito. ‘o aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inc. III, do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu’ [Tribunal de Justiça da Paraíba. Apelação Cível n. 200.2006.060273-3/001. Relator Juiz Convocado Carlos Martins Beltrão Filho. DJ 17/12/2009]409.

No que tange ao Superior Tribunal de Justiça, este ainda não teve a

oportunidade de debater sobre o tema de uma forma abrangente e satisfatória.

Nesse ponto, vale transcrever trechos do voto de vista da Ministra Nancy Andrigh,

em julgamento de recurso especial, em que se entendeu que o regime de separação

obrigatória de bens não está abrangido pela ressalva do art. 1.647 do Código Civil:

[...] A questão enfrentada neste processo é de elevada complexidade, tendo sido bem descrita e bem decidida pelo i. Min. Relator. Entendo que as matérias aqui versadas, notadamente a aplicabilidade da Súmula 377/STF aos casamentos celebrados após o advento do CC/02 e a eficácia do aval prestado sem a participação do cônjuge ainda propiciarão muito debate nesta Corte, até sua pacificação definitiva. De todo modo, respeitadas as peculiaridades da hipótese em julgamento, não tenho nenhum reparo a fazer no voto proferido pelo i. Min. Relator, que acompanho na íntegra [Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1163074/PB. 3ª Turma. Relator Massami Uyeda. Data do Julgamento 4/2/2010]410.

Veja-se que, embora o mencionado julgamento não tenha discutido,

especificamente, sobre a validade ou não do aval prestado sem a vênia conjugal,

percebe-se que a Ministra antecipou o seu possível entendimento, ao mencionar a

expressão “eficácia”, levando-se a crer que a sua análise sobre a outorga conjugal

no aval abrangerá o plano da eficácia, e não o da validade.

Portanto, sob qualquer ângulo, não há que se falar em anulabilidade de

aval, em razão da ausência de outorga conjugal, para os títulos de crédito regulados

pela lei cambial, ainda que subsidiariamente, e para o cheque cuja lei específica

também invoca o princípio da autonomia das obrigações. Assim, na hipótese de

ausência da outorga conjugal, haverá é a ineficácia parcial da garantia cambiária,

409 Disponível em: www.editoramagister.com. Acesso em: 28 mar. 2010. 410 Disponível em: www.stj.js.br. Acesso em: 22 mar. 2010.

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porque o patrimônio/meação do cônjuge que não deu o seu consentimento não

poderá ser atingido.

Noutro norte, esclarece-se que não há proibição legal sobre a

possibilidade da existência da outorga conjugal dada para a prestação do aval.

Independentemente de se entender pela validade ou não da outorga

conjugal aposta no próprio título de crédito, caso isto ocorra, – e haver a aposição

expressa da autorização do cônjuge –, deve-se concluir pela a ausência de

responsabilidade cambiária do cônjuge que, claramente, registrou a sua intenção de

apenas dar o seu consentimento:

Sendo plenamente eficaz uma declaração posta nesses termos em um título de crédito, torna-se lógico afirmar que a assinatura do cônjuge que outorga a autorização não se trata de outro aval, mas, tão-somente, de uma autorização, exigida por força de lei. Seria, nesse contexto, excessivo admitir resulte obrigação jurídico-cambiária de uma declaração que manifeste a intenção expressa de não a contrair, e que, assim, jamais poderia iludir a um terceiro de boa fé. De fato, achando-se a assinatura precedida de palavra ou de palavras que exprimam, justamente, a negação de qualquer vínculo ou responsabilidade cambial, não há como se admitir resulte dela obrigação cambiária [...]411.

Nessa mesma linha de pensamento, Eunápio Borges manifesta que

[...] o rigor do direito cambiário não exige que se atribua responsabilidade cambial a uma declaração que, embora supérflua, por desnecessária à constituição e perfeição do título, não pode acarretar para quem quer que seja uma obrigação que o signatário – de maneira formal, expressa e visível – manifestou não querer assumir. Do próprio título, de modo claro e inequívoco, consta a prova imediata de que não houve vontade de obrigar-se cambiàriamente. E, em matéria cambial, a declaração prevalece sempre sôbre a vontade real (que não se manifestou ou que se manifestou mal) quando esta contrasta com aquela. Quando, porém, na declaração, que não pode enganar a boa-fé de ninguém, existe justamente a tradução da vontade: não obrigar-se cambialmente, seria iníquo e exorbitante, mesmo em face do rigorismo cambial, atribuir a uma assinatura um significado que evidentemente não tem. Diz a lei que vale a simples assinatura. Não pode, porém, valer a assinatura que sofre a restrição expressa da declaração que estamos examinando412.

411 GALIZZI, Gustavo Oliva; FÉRES, Marcelo Andrade. O aval e a outorga conjugal instituída pelo

código civil de 2002. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7526>. Acesso em: 9 out. 2007.

412 BORGES, João Eunápio. Do aval, 1955, p. 55.

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Assim como na fiança, o cônjuge que apenas concedeu autorização para

que o outro preste aval, não poderá ter a meação de seu patrimônio atingido, já que

não configura como avalista, mas sim como mero outorgante.

No entanto, de acordo com Wille Duarte Costa, na hipótese de o cônjuge,

que apenas consentiu com o aval, ter se beneficiado da garantia prestada pelo

outro, aquele poderá sim ter a sua meação atingida, caso acionado o avalista para

pagamento:

Antes do novo Código Civil, o que é observado é a defesa da meação que pode ser feita pela mulher com base no art. 3° da Lei 4.121, de 27/08/1962. Acreditamos, diante do texto da Constituição antes mencionado, que também o homem pode assim defender a sua meação, em razão de igualdade de direitos. Mas é preciso ficar dito que, quanto à defesa da sua meação, a mulher casada só terá sucesso se demonstrar, de forma bem clara, que o aval dado pelo marido não a beneficiou de forma alguma, direta ou indiretamente. Assim, se o aval que o cônjuge presta à sociedade (civil ou mercantil) de que faça parte beneficia o casal, direta ou indiretamente, a defesa da meação fica prejudicada. Pode ser dito que o cônjuge que apenas consente no aval não é avalista, daí poder defender sua meação. A hipótese é viável, como achamos, mas não pode o aval beneficiar direta ou indiretamente o casal, pois neste caso a defesa da meação torna-se infrutífera. Quem apenas autoriza o aval não é avalista e não responde pelo aval dado pelo outro413.

O julgado citado abaixo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais também

entende que a meação do cônjuge que apenas consentiu com o aval não pode ser

atingida, desde que este comprove que não se beneficiou com isso.

A esposa do executado é parte legitima nos embargos de terceiro na execução proposta contra seu marido. Se a parte autora tem necessidade de obter através do processo a proteção ao interesse substancial alegado na inicial, uma vez que sofrerá prejuízo não propondo a demanda, necessitando da intervenção dos órgãos jurisdicionais, não há que se falar em falta de interesse de agir. Admite-se a oposição pela mulher casada, dos embargos de terceiro, como meio de defender a sua meação no patrimônio comum do casal, afetado por ato de constrição judicial determinado em autos de ação de execução, decorrente de dívida avalizada pelo marido, cabendo-lhe, contudo, comprovar que a transação não foi benéfica para a família [TJMG. Apelação Cível n. 1.0713.08.080605-0/001.

413 COSTA, Wille Duarte. Títulos de crédito, p. 99.

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15ª Câmara Cível. Relator José Affonso da Costa Côrtes. Data do julgamento em 25/6/2009]414.

Veja-se, pois, que, de acordo com a doutrina e com o julgado

mencionados acima, o prejuízo do cônjuge consorte é presumido, cabendo a ele o

ônus da prova de demonstrar que não se beneficiou com a garantia cambiária

prestada.

De forma diferente é o caso em que o administrador ou sócio de pessoa

jurídica avaliza títulos de crédito em benefício da sociedade. Nessa hipótese, o

prejuízo do cônjuge consorte não é presumido. Sobre essa situação em que o

prejuízo não é presumido, Gustavo Galizzi e Marcelo Féres destacam que:

O entendimento acima mencionado difere, apenas, no que toca àquela que é, na praxe mercantil, a hipótese mais corriqueira de prestação de aval, qual seja, quando o administrador de uma sociedade empresária, geralmente uma sociedade limitada, garante, em nome próprio, e com seu patrimônio pessoal, uma obrigação contraída em benefício da pessoa jurídica. Nesse caso em especial, o prejuízo do consorte não é presumido; não se inverte o ônus da prova, pelo que se desejar o exeqüente atingir todo o patrimônio do casal, e não somente a parcela que cabe ao cônjuge garantidor, deve comprovar habilmente o proveito econômico revertido em favor da família415.

A jurisprudência corrobora:

A simples outorga conjugal é mero ato para a validade do aval, não lhe acarretando o mesmo ônus que cabe ao avalista. − Se o financiamento foi concedido a uma pessoa jurídica da qual a embargante não é sócia nem tem participação, resta evidente que não é beneficiária do empréstimo, pois que a pessoa jurídica possui vida distinta da pessoa física, segundo a regra do art. 20 do CC de 1916, regra aplicável ao caso em questão. (Juiz Armando Freire) [Extinto TAMG. Apelação Cível n. 419.103-3. 5ª Câmara Cível. Relator Armando Freire. Data do julgamento 19/2/2004]416.

Em suma, é patente que o cônjuge que apenas consente com a prestação

do aval – desde que não tenha se beneficiado com este – não sofrerá as

consequências que terá o avalista, caso seja este demandado a pagar o título de 414 Disponível em: www.tj.mg.jus.br. Acesso em: 21 mar. 2010. 415 GALIZZI, Gustavo Oliva; FÉRES, Marcelo Andrade. O aval e a outorga conjugal instituída pelo

código civil de 2002. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 858, 8 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7526>. Acesso em: 9 out. 2007.

416 Disponível em: www.tj.mg.jus.br. Acesso em: 21 mar. 2010.

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crédito. No entanto, para que isso fique bem definido, na hipótese de se entender

pela validade da outorga conjugal registrada no próprio título de crédito, o cônjuge

que assina o título apenas para registrar o seu consentimento deve indicar essa sua

intenção claramente, sob pena de sua assinatura ser considerada uma garantia

cambiária/aval.

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6 CONCLUSÃO

Existir, valer e ser eficaz são situações distintas pelas quais podem

passar os fatos jurídicos. Trata-se de planos diferentes, sendo, portanto, impossível

considerar como sinônimos os termos “existência”, “validade” e “eficácia”.

O plano da existência é o plano do ser; passam por ele todos os fatos

jurídicos, sejam lícitos, sejam ilícitos. É a base para o plano da validade e o da

eficácia. Não se pode ter um ato válido, inválido, eficaz ou ineficaz sem que ele,

primeiramente, exista.

Já o plano da eficácia será o momento em que os fatos jurídicos

produzirão seus respectivos efeitos, criando, extinguindo, modificando ou

substituindo relações jurídicas.

Por seu turno, o plano da validade corresponde à análise da perfeição do

ato jurídico (ausência de qualquer vício invalidante) e da existência de defeito

invalidante. Para que se possa certificar se determinado ato jurídico é inválido ou

não, devem ser verificados seus pressupostos de validade expressos no

ordenamento jurídico, sendo que a invalidade do ato jurídico pode ser aplicada em

dois diferentes graus: (i) nulidade e (ii) anulabilidade.

Nesse particular, ressalte-se, além dos casos que a própria norma jurídica

imputa à anulabilidade como sanção, a falta de assentimento de terceiro que a lei

considera imprescindível para a realização de determinados atos jurídicos, também,

é causa de anulabilidade.

É exatamente nesse sentido que o texto normativo do art. 1.647, inciso III,

combinado com o do art. 1.649, ambos do Código Civil de 2002, assim dispõe:

Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: [...] III − prestar fiança ou aval; [...] Art. 1.649. A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.

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180

No que tange à fiança – garantia fidejussória de qualquer dívida

juridicamente exigível –, o Código Civil de 2002 manteve a necessidade do

consentimento do cônjuge, que já era prevista pelo Código Civil de 1916, com duas

relevantes modificações: (i) a ressalva do regime de separação absoluta de bens e

(ii) a determinação expressa de que a fiança prestada sem a outorga conjugal é ato

anulável.

Assim, nos termos dos arts. 1.649 e 1.650417, ambos do Código Civil de

2002, a fiança prestada sem a outorga conjugal poderá ser anulada pelo cônjuge

que não concedeu autorização para tanto ou pelos herdeiros dele, sendo que o

prejudicado com a decisão judicial que anulou a garantia fidejussória terá direito

regressivo contra o cônjuge que prestou a fiança sem a outorga conjugal.

Nesse particular, destaque-se que a fiança trata-se de um instituto

regulado pelo direito comum – Código Civil, arts. 818 a 839 – e pode ter natureza

civil ou comercial. É contrato acessório, ou seja, não tem existência autônoma.

Já o aval é instituto próprio do direito cambiário, ou seja, sempre terá

natureza comercial e somente pode ser dado no próprio título de crédito. É garantia

autônoma, sendo que o fato de o Código Civil de 2002 também dispor sobre esse

instituto não lhe retira a característica de garantia eminentemente cambiária.

O Código Civil de 2002 dispôs sobre a matéria de títulos de crédito.

Entretanto, tal fato não representou a unificação do Direito Privado. Isso porque

todas as disposições já existentes ou que ainda venham a existir em leis especiais

referentes aos títulos de crédito prevalecerão sobre o Código Civil de 2002. É

exatamente esse sentido que está disposto no art. 903 do Código Civil quando este

determina: “Salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito

pelo disposto neste Código”. Assim, as “disposições gerais” do Código Civil poderão

ser utilizadas, no que tange aos títulos de crédito regulados por leis especiais,

somente de forma subsidiária.

São os princípios cambiários e as legislações específicas dos títulos de

crédito que os regulamentam e lhes permitem a certeza de seu direito e a segurança

na sua circulação, atendendo, portanto, às necessidades da economia. O aval,

417 “Art. 1.650. A decretação de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou

sem suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia concedê-la, ou por seus herdeiros.”

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declaração unilateral de vontade, também trouxe aos títulos de crédito maior

segurança, sem impedir-lhes a dinamicidade de circulação. Isso porque, como as

demais declarações cambiárias, o aval é uma garantia autônoma e independente de

qualquer condição.

No entanto, o Código Civil de 2002 desprezou tudo isso ao inserir em seu

art. 1.647, inciso III, a necessidade de outorga conjugal para se dar aval.

A exigência da autorização prévia do cônjuge para que o outro possa dar

aval afeta a função primordial dos títulos de crédito, que é a dinamicidade e a

rapidez de sua circulação, bem como as características eminentemente cambiárias

do aval.

Ocorre que, não obstante o texto normativo do art. 903 do Código Civil, a

norma prevista no art. 1.647, inciso III, do Código Civil não é aplicada aos títulos de

crédito regulados pela lei cambial, ainda que subsidiariamente.

É que a Lei Uniforme de Genebra não é omissa no que tange à

desnecessidade da outorga conjugal para a prestação de aval. A Lei Uniforme de

Genebra invoca o princípio da autonomia das obrigações cambiárias, em seu art. 7º,

nos seguintes termos:

Art. 7º Se a letra contém assinaturas de pessoas incapazes de se obrigarem por letras, assinaturas falsas, assinaturas de pessoas fictícias, ou assinaturas que por qualquer outra razão não poderiam obrigar as pessoas que assinaram a letra, ou em nome das quais ela foi assinada, as obrigações dos outros signatários nem por isso deixam de ser válidas.

Da mesma forma, o art. 13 da Lei do Cheque dispõe que “as obrigações

contraídas no cheque são autônomas e independentes”.

Em outras palavras, de acordo com o princípio da autonomia das

obrigações, uma declaração cambiária aposta no título de crédito não está

vinculada, tampouco condicionada a qualquer fator, salvo os requisitos de validade

de todo ato jurídico (art. 104 do Código Civil). Por isso, ainda que a obrigação do

avalizado seja nula, falsa ou imprestável, a de seu avalista subsistirá, ressalvada a

existência de vício de forma. Vale frisar que o vício de forma ocorre mediante a

ausência de requisito no próprio título de crédito, ou seja, nem de longe a outorga

conjugal – que não é uma declaração cambiária – pode ser considerada um requisito

formal.

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Isso quer dizer que a autonomia da garantia cambiária impede que esta

seja dependente de consentimento de outrem para ter validade. Em suma, a

exigência da outorga conjugal para se dar aval contraria o conteúdo normativo do

princípio da autonomia das obrigações, positivado pela Lei Uniforme de Genebra e

pela Lei do Cheque, razão pela qual o art. 1.647, inciso III, do Código Civil não se

aplica aos títulos de crédito regulados pela lei cambial, ainda que subsidiariamente.

Dessa forma, a ausência da outorga conjugal não é capaz de invalidar o

aval, porém o patrimônio do cônjuge que não deu o seu consentimento não poderá

ser atingido. É o que dispõe o Enunciado 114 do Centro de Estudos Judiciários do

Conselho da Justiça Federal: “O aval não pode ser anulado por falta de vênia

conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade

do título ao cônjuge que não assentiu".

Portanto, na hipótese de ausência da outorga conjugal, haverá a

ineficácia parcial da garantia cambiária, porque o patrimônio/meação do cônjuge que

não deu o seu consentimento não poderá ser atingido. Ou seja, a falta do

consentimento do cônjuge para se dar aval está relacionada ao plano da eficácia, e

não ao da validade. Portanto, na ausência da outorga conjugal, o aval dado em

títulos de crédito regulados pela lei cambial, ainda que subsidiariamente, não será

considerado inválido, mas, sim, parcialmente ineficaz porque a meação do cônjuge

que não assentiu com a garantia cambiária não poderá ser atingida.

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