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O CAVALEIRO DA ESPADA CHAMEJANTE Autor H. G. EWERS Tradução RICHARD PAUL NETO Digitalização e Revisão (P- 5O2)

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O CAVALEIRO DAESPADA CHAMEJANTE

AutorH. G. EWERS

TraduçãoRICHARD PAUL NETO

Digitalização e RevisãoARLINDO_SAN

(De acordo, dentro do possível, com o Acordo Ortográfico válido desde O1/O1/2OO9)

(P-5O2)

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Estamos chegando ao fim do mês de julho do ano 3.441, tempo terrano. Perry Rhodan, que voltou há pouco tempo da galáxia Gruelfin para a Terra, deparou com os destroços daquilo que fora construído num trabalho de séculos. Deixou a nave Marco Polo, que já mostrara quanto valia, no porto da frota em Terrânia e juntamente com sessenta companheiros, entre eles Gucky e Atlan, entrou na Good Hope II, uma corveta especialmente equipada, para fazer mais uma viagem ao desconhecido.

Perry Rhodan não teve alternativa, embora a eliminação das condições caóticas reinantes na Terra exija o trabalho incansável de todos os seres humanos não atingidos pelo processo de deterioração mental. Depois que apareceu o misterioso enxame, há cerca de seis meses, o caos está em toda parte. Atinge não somente o Sistema Solar, mas estende-se a toda a galáxia, conforme se deduz das informações e dos pedidos de socorro expedidos pelos seres inteligentes que permaneceram imunes.

Perry Rhodan tem a intenção de pesquisar o enxame. Acha que deve ser possível encontrar um antídoto contra a manipulação gravitacional realizada pelo enxame, manipulação esta que causa a deterioração mental de quase todos os seres inteligentes, ou ao menos impedir o enxame de atravessar a Via-Láctea.

Perry Rhodan vai tentar uma coisa que pode parecer impossível, da mesma forma que os membros do governo solar de emergência tentam reverter a situação desesperadora reinante na Terra e em outros planetas. Michael Rhodan, também conhecido como Roi Danton, vai para Olimpo, onde só existe uma pessoa capaz de pôr fim ao caos: O Cavaleiro da Espada Chamejante...

= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =

Bossa Cova — Um homem que acredita que mora num castelo encantado.

Aine e Doreen — Companheiras de Bossa Cova.

Shar ter Troyonas — Chefe dos imunes de Olimpo.

Roi Danton — O filho de Perry Rhodan que vai ver o que há de errado em Olimpo.

Rocus Ypteron e Júpiter Koslow — Dois representantes do Homo superior.

Anson Argyris — O cavaleiro da espada chamejante.

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Tu me atiraste nas profundezas, no meio do mar, de tal forma que as águas me cercaram, todas as tuas ondas passaram por cima de mim, fazendo com que eu acreditasse que tivesse sido expulso da tua presença, que nunca mais veria teu templo sagrado.

Jonas, 2-4-5.

Bossa Cova levantou e olhou por um instante para as duas moças. Aine estava dormindo, mas Doreen começava a abrir os olhos.

— Vou dar uma olhada lá fora — disse e enfiou-se na capa manchada cheia de remendos.

— Tome cuidado, Bossa — disse Doreen com a voz sonolenta.Bossa Cova riu e espreguiçou-se muito disposto. Era um tipo atlético. Apesar de

seus trinta e oito anos continuava em plena forma física. A luz das duas lamparinas a óleo fazia sua pele negra brilhar como ébano polido. Bossa enfiou o cabo do machado embaixo do cinto largo, colocou a mochila feita por ele mesmo e pegou o escudo de madeira revestido de couro. Só então saiu do setor dos camarotes.

Nem Bossa Cova, nem Doreen ou Aine sabiam que se encontravam no interior da Macabono, a nave-capitânia de mil e quinhentos metros de diâmetro, pertencente ao armador Bossa Cova, que já fora um homem rico.

Bossa Cova ergueu o escudo num gesto instintivo quando a escotilha se abriu automaticamente à sua frente. Toda vez que passava pela “porta mágica” assustava-se com ela, pois não tinha nenhuma ideia de como funcionava, nem sabia que, da mesma forma que as outras instalações da Macabono, era abastecida por um reator de emergência. Mais que isso, Bossa se mostraria perplexo e incrédulo diante de qualquer pessoa que tentasse explicar-lhe o funcionamento das escotilhas. Mas até então ninguém tentara.

Bossa Cova murmurou uma fórmula para conjurar os espíritos quando passou pela escotilha blindada da sala de comando, que tinha sido destruída por um tiro. Naquele pavilhão gigantesco moravam os demônios da traição; mais de uma vez Bossa vira tremer luzes estranhas ao passar por lá e tivera a impressão de ouvir vozes sussurrantes. Não tentou ver o que havia do lado de dentro, pois sabia perfeitamente que lá havia alguma coisa capaz de prendê-lo com seu encanto se olhasse por muito tempo — fosse lá o que fosse essa coisa.

Queria chegar à apertada escada em espiral junto ao poço antigravitacional principal. A abertura, tão convidativa que podia ser confundida com uma porta, era mais um dos terríveis segredos do castelo metálico encantado. Certa vez Bossa expulsara dois homens da horda dos Noles que tinham penetrado em seu castelo. Os dois tinham saltado pela fresta escura para escapar à sua ira. Bossa ouvira-os gritar por muito tempo enquanto caíam no submundo. Seus gritos terminaram no momento em que os demônios das profundezas os agarraram e lhes quebraram os ossos.

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Bossa Cova pôs os pés na escada em espiral e iniciou a descida. Levou meia hora para chegar ao fim do poço. Lá havia outra escotilha, mas esta não se abria sozinha. Precisava de uma magia especial.

Bossa pôs a mão no bolso e tirou o bastão mágico do tamanho de um dedo humano. Fazia tempo que não sabia que se tratava de uma chave de impulsos.

— Um bastão mágico — murmurou enquanto a segurava na mão direita estendida. — Não me abandone num momento destes. Ponha sua força a meu serviço.

Em seguida apertou a extremidade marcada em vermelho do bastão em determinado ponto da escotilha, ponto este que — e disso ele se orgulhava muito — ele já descobrira no dia em que havia muitos homens no castelo mágico. Os outros tinham deixado o castelo. Só ficaram Coreen e Aine — e ele mesmo. Parecia haver fantasmas em toda parte, mas certas forças emocionais o mantinham preso a este lugar.

A escotilha subiu chiando.Bossa saiu num salto enorme. Sabia que a estranha porta voltaria a descer depois de

algum tempo e não queria ser esmagado por ela. Bossa saltou para dentro da noite com suas inúmeras luzes cintilantes, presas na campânula de vidro que separava a terra e o céu.

A primeira coisa que fez foi olhar atentamente em volta. Depois enfiou o bastão mágico no bolso. Não havia ninguém por perto, nem o pessoal da horda dos Noles nem as pessoas vindas de Traci, um monte de pedra revolto que ficava mais ao norte. Mas o mais importante era que não tinha descoberto nenhum Ypteron. Tratava-se de gente medonha que possuía forças terríveis. Nunca deviam descobrir que havia alguém morando no castelo mágico.

Um cachorro ladrou ao longe, outros acompanharam-no. A fumaça ardida de um fogo que ardia por perto penetrou no nariz de Bossa, que girou o corpo até descobrir a direção da qual vinha a fumaça. Bossa Cova viu línguas de fogo se agitando nos arredores da casa recheada.

Resolveu dar uma olhada para ver o que estava acontecendo. Era possível que um dos bandos de fetiches de Rob o Terrível, surpreendido e enxotado quando fazia saques, tivesse acendido o fogo por vingança.

Bossa Cova saiu correndo num trote calmo e descontraído para economizar as forças. Quando chegou mais perto viu que o fogo estava consumindo a choupana miserável que servia de residência ao velho Kos. Soltou um rosnado gutural e saiu correndo em direção aos três homens que dançavam em volta do fogo. Quando o viram, precipitaram-se sobre ele em meio a uivos estridentes. Bossa defendeu-se dos bastões de ferro com o escudo e matou um dos homens. Os outros dois fugiram.

O que restava da cabana desmoronou crepitando. As chamas aumentaram antes de

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diminuir cada vez mais. Bossa descobriu o velho Kos a poucos metros dos escombros em chamas; estava morto.

Bossa mordeu o lábio inferior. De repente ouviu alguma coisa choramingando atrás dele. Virou-se e descobriu Knurr, o cachorro magro que vivera com Kos. Knurr aproximou-se assustado, parou de novo, encolheu o rabo e uivou.

Bossa atirou o machado para o lado e voltou a pegá-lo. Knurr recuou e olhou fixamente para ele.

— Seu dono está morto — disse Bossa. — Trate de arrumar outro antes que alguém lhe arrebente a cabeça.

Bossa virou-se e saiu andando, mas estacou de repente. Uma luz pálida desceu do céu. Seguiu-se um zumbido que foi aumentando até transformar-se num rugido acompanhado por uma espécie de uivos e apitos. Bossa voltou a guardar o machado no cinto, protegeu os olhos com a mão e olhou para cima. Um monstro aproximou-se em velocidade alucinante cuspindo fogo, um dragão do inferno.

Bossa Cova não teve a menor dúvida de que o monstro o escolhera como vítima. Saiu correndo. Queria chegar à casa recheada. Lá talvez estivesse em segurança. Naquele momento os fetiches de Rob o Terrível lhe pareceram menos apavorantes que o dragão do inferno. Knurr corria ao lado dele.

Bossa não chegou em tempo.O dragão do inferno aproximou-se numa velocidade incrível. Mas devia ter perdido

Bossa de vista. Bateu no chão, bem longe dele. A onda de abalo causada pelo impacto foi tão forte que derrubou o homem, que caiu batendo com a cabeça no revestimento do porto espacial. Perdeu os sentidos e não viu mais o dragão do inferno deslizar pelo campo de pouso em meio a um rangido terrível, roçando os destroços duma espaçonave queimada e passando a descrever um movimento de rotação. Finalmente bateu com um estrondo em uma das espaçonaves espalhadas em toda parte, arrancou-a de cima das colunas de sustentação e só então imobilizou-se.

Bossa Cova acordou com alguém jogando água em seu rosto. Abriu os olhos e viu o rosto estreito de um jovem de cabelos negros debruçado em cima dele. Um par de olhos azuis fitava-o atentamente.

Bossa esperou até recuperar mais ou menos o controle do corpo. Depois disso suas mãos saltaram para a frente e agarraram a garganta do desconhecido. Bossa puxou-o rapidamente para perto de si e bateu com o joelho levantado no ventre do homem.

O desconhecido amoleceu, mas de repente voltou a entesar-se. Mãos duras agarraram os pulsos de Bossa e com uma força irresistível tiraram seus dedos do pescoço do desconhecido. Bossa contorceu-se, mas desistiu ao notar que se tratava de um dos ídolos de Rob o Terrível.

O desconhecido endireitou o corpo, apalpou a garganta e foi sacudido por uma tosse áspera.

— Por que tentou matar-me? — perguntou.— Todos lutam contra todos — respondeu Bossa. — Agora você vai me matar.O desconhecido sorriu, tirou uma caixinha de um dos bolsos de suas vestes

prateadas brilhantes e pegou um bastão branco. Enfiou-o na boca e tirou uma caixinha brilhante menor. Colocou-a embaixo da ponta do bastãozinho e fez saltar a chama. Em seguida aspirou o ar com força e soprou uma nuvem de fumaça.

— Não vou matá-lo — disse e voltou a tossir. Bossa não se espantou; quem inalava fumaça não podia deixar de tossir. — Meu nome é Shar ter Troyonas. Estou montando guarda com alguns amigos para evitar que o transmissor de containers seja destruído.

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Bossa Cova franziu a testa e pôs-se a refletir.— Que é isso, um transmissor de containers? E como se explicava que Shar não

quisesse matá-lo? Talvez estivesse mentindo.— Você não sabe o que vem a ser um transmissor de containers? — perguntou

Shar.Bossa fez que não. Shar suspirou.— Que pena! Pensei que tivesse encontrado mais um mentalmente estável.

Acontece que você carrega uma chave de impulsos. Como é seu nome e de onde veio?— Meu nome é Bossa Cova. Não lhe direi mais nada a meu respeito e não sei o que

vem a ser uma chave de impulsos.Shar chegou perto de Bossa e pôs a mão no bolso esquerdo superior do jaleco.

Bossa tentou empurrá-lo com a cabeça, mas o ídolo de Rob o Terrível segurou-o com mãos de ferro.

— Eis aqui uma chave de impulsos — disse Shar e ergueu o bastão mágico de Bossa.

— Devolva-me isso! — exigiu Bossa. O desespero tomou conta dele. Se Shar ficasse com o bastão mágico, Bossa nunca

mais poderia entrar em seu castelo mágico.Shar sacudiu a cabeça. De repente teve um forte acesso de tosse. Quando o acesso

passou, estava com o rosto banhado em suor. Atirou para longe o bastãozinho de fumaça, pegou uma caixa e tirou uma coisa negra achatada, enfiando-a na boca.

— Você o receberá depois que me contar mais alguma coisa a seu respeito, Bossa Cova — disse Shar. — Encontrei você lá fora quando saí com um grupo de robôs para ver se na nave que fez um pouso forçado havia sobreviventes. Você estava inconsciente. Você se encontra em uma das salas do depósito central. Acho que vocês costumam chamá-lo de casa recheada. Então? Onde você mora?

Bossa reconheceu que Shar estava em vantagem. Como precisava do bastão mágico, talvez seria melhor responder às suas perguntas.

— Num castelo mágico ao leste da casa recheada.— Você certamente se refere a uma espaçonave — murmurou Shar. — É um lugar

quente? Você tem luz?— Lá sempre é quente e há luz — respondeu Bossa. — Mas não gostamos da luz.

Preferimos as lamparinas de óleo.— Ah! Parece que pelo menos ainda há um reator funcionando. É estranho que os

superiores ainda não tenham descoberto. Você não vive só naquele lugar, amigo. Quem mais mora no castelo mágico?

— Não conto.— Que é isso? — Shar colocou o bastão mágico à frente do rosto de Bossa. —

Você quer esta chave de volta, não quer?— Doreen e Aine — murmurou Bossa. — Mas elas são minhas, se puser as mãos

nelas eu lhe torço o pescoço.— Você já tentou fazer isso — disse Shar com um sorriso irônico.Neste momento ouviu-se um zumbido fraco. Uma faixa larga que Shar trazia no

pulso esquerdo mostrou um olho de demônio brilhante. Shar dobrou o cotovelo e passou os dedos da mão direita sobre a faixa. De repente apareceu uma imagem na placa de vidro que até então fora negro. E a imagem se mexia. Era uma mulher; provavelmente uma bruxa.

— Olá, Lisa! — disse Shar à bruxa. — Qual é a novidade?

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— Olá, chefe! — respondeu a bruxa. — O bando de Myrus está nos atacando. Isso não seria tão grave. Acontece que ao mesmo tempo um grupo de superiores desceu no Polo Norte e tenta entrar no centro de captação.

— Droga! — respondeu Shar. — Avise a Arlinda. Diga-lhe que voe para a estação polar levando Levusin e alguns robôs. Se necessário terá de usar armas paralisantes para pôr os superiores fora de ação. Chegarei aí dentro de alguns minutos.

Em seguida dirigiu-se a Bossa Cova.— É uma pena, mas não tenho mais tempo para ocupar-me com você, amigo. Mas

espero que ainda nos encontremos.Shar enfiou a chave eletrônica no bolso de Bossa.— Pronto. Assim você poderá entrar em seu castelo mágico. O robô o levará á

superfície. Até logo mais.Confuso, Bossa deixou que o robô o conduzisse a uma galeria escura. A máquina

ligou suas luzes — e de repente ela e Bossa subiram flutuando. O homem ficou rígido de pavor. Nunca vira uma magia igual a esta, mas também era a primeira vez que tinha um contato tão íntimo com um dos ídolos de Rob o Terrível.

Quando chegaram à extremidade superior da galeria, o robô e Bossa entraram flutuando numa sala pequena. Uma porta abriu-se e o robô empurrou o homem para fora.

Bossa Cova ficou na escuta por algum tempo, no meio da noite, antes de sair andando. Pensamentos estranhos atravessavam sua cabeça, mas ele não era capaz de interpretá-los de uma forma lógica.

Uma coisa inexplicável modificara a constante gravitacional da quinta dimensão na galáxia da humanidade e — provavelmente — essa coisa privara a maior parte dos seres pensantes de seus conhecimentos e da possibilidade de compreender processos técnicos complicados...

* * *

Shar ter Troyonas esperou que o robô e Bossa Cova desaparecessem antes de sair do depósito. Seu planador o esperava num pequeno hangar.

Shar saltou para dentro do veículo semi-esférico e sentou atrás dos controles. Enfiou um cigarro entre os lábios, mas não o acendeu. A porta do hangar abriu-se a um impulso em código. O planador saiu em alta velocidade. As duas metades da porta voltaram a fechar-se atrás dele.

Shar acelerou ao máximo. Estremeceu ao ver uma coluna de fogo disparar para o céu mais para o norte, no lugar em que ficava Trade City. Dali a pouco ouviu-se o ribombar de uma forte explosão. Provavelmente mais uma vez um mentalmente deteriorado brincara com certas instalações técnicas das quais não entendia nada.

A situação era caótica. Desde que fora manipulada a constante gravitacional da quinta dimensão havia poucas pessoas em Olimpo que eram capazes de lidar com os equipamentos técnicos e compreendiam o perigo que ameaçava toda a população do planeta. As massas de seres mentalmente deteriorados saqueavam os depósitos que não contavam com uma boa guarda de robôs. Por enquanto ainda encontravam alimentos em quantidades suficientes, mas um dia as reservas acabariam. Quando isso acontecesse, a maior parte deles morreria de fome, a não ser que antes disso sucumbisse às epidemias.

Quando avistou a área extensa do transmissor de containers, Shar distinguiu três grupos de mentalmente deteriorados que tentavam entrar nas instalações. Lutavam com fundas primitivas e barras de metal para enfrentar os defensores e seus robôs. Havia

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atacantes paralisados espalhados pelo campo de batalha, mas seus companheiros não se intimidaram com isso.

Shar ter Troyonas fez descer o planador e reduziu a velocidade. Descreveu uma curva ampla e aproximou-se de um dos grupos de atacantes. Fez recuar a cobertura transparente e disparou o paralisador contra os atacantes. Alguns homens e mulheres caíram imóveis, enquanto outros saíram correndo apavorados. Em sua ignorância artificialmente criada achavam que o planador era um demônio voador.

Os defensores aproveitaram a confusão nas fileiras dos atacantes para realizar um contra-ataque. Shar ficou contrariado por que alguns robôs de combate muitas vezes erravam o alvo quando atiravam. Tratava-se quase sempre de modelos obsoletos e gastos. Quase todos os robôs pertencentes às séries mais recentes possuíam uma componente de plasma com cérebro positrônico e tinham sido inutilizados porque as componentes de

plasma eram atingidas pelo processo de deterioração mental da mesma forma que o cérebro da maior parte das pessoas.

Shar foi obrigado a realizar mais alguns ataques aos outros membros do bando de Myrus antes que os saqueadores recuassem.

Quando pousou, Eucal Rorros veio correndo em sua direção. Rorros era um especialista da USO que se encontrava em Olimpo quando teve início o processo de deterioração mental. Fora submetido há anos a um procedimento de estabilização mental, e por isso conservara a inteligência.

— Conseguiu alguma coisa, Shar? — perguntou Rorros.

Por alguns segundos viu-se um lampejo de esperança em seus olhos. Estava totalmente exausto, da mesma forma que os outros defensores das instalações do transmissor.

Shar abanou a cabeça e saiu do veículo.— Os tripulantes da nave morreram. Um

mentalmente deteriorado deve ter desligado os neutralizadores de pressão durante o pouso.

Rorros empalideceu. Engoliu em seco e respondeu:— Isso é mau. Quem dera que pudéssemos agarrar as criaturas que fizeram isso.

Gostaria de saber por que agem assim.Shar deu de ombros.— Receio que ainda tenhamos outras surpresas desagradáveis, Eucal. Por enquanto

praticamente só sabemos que o tal do enxame apareceu por aí. Mas gostaria de fazer uma pergunta: o que vem a ser mesmo esse enxame?

Mais um homem veio em direção ao planador. Era Jussuf Calligan, o homem com metade do cérebro. O lado esquerdo de seu rosto era todo de metal e plástico. Os cirurgiões cosméticos não puderam fazer um implante de biofólio plástico e por isso ele era obrigado a exibir o fragmento horrível de seu rosto original. Mas a metade do cérebro que lhe restava aprendera num treinamento positrônico a assumir as funções da outra

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metade, destruída num acidente. A lesão cerebral protegera Calligan contra o processo de deterioração mental.

— A via de containers voltou a entrar em pane — informou. — E isto logo quando começamos a enviar à Terra uma série de recipientes com alimentos concentrados.

O rosto de Shar assumiu uma expressão ainda mais sombria.— Levem o paralisado daqui! — ordenou e aproximou-se do segmento de esfera de

metal plastificado em cujo interior tinha sido instalado o centro de controle principal do sistema de transmissores.

Quando chegou á escotilha blindada sofreu um ataque de fraqueza. Cambaleou e apoiou-se na parede até enxergar de novo. Depois disso abriu a escotilha com a chave de impulsos.

Lisaweta Nurjewa virou a cabeça quando ele entrou no centro de controle. Ao vê-la, Shar experimentou um aumento na secreção de adrenalina. Até chegou a exibir um sorriso.

— Olá, Lisa! — Shar segurou-se no encosto da poltrona que ficava perto dele e examinou ligeiramente os controles. — Que houve com a via de containers, moça?

Lisaweta fez um movimento abrupto com a cabeça para jogar para trás os longos cabelos negros e disse:

— Deve ter sido uma falha na estação de captação. Tomara que Arlinda consiga expulsar os superiores. Gostaria de saber quem lhes deu este nome. Não pensei que a espécie Homo superior fosse assim.

— Esta espécie na verdade não existe — respondeu Shar e deixou-se cair numa poltrona. — O que anda aí com a marca do Homo superior não passa de uma brincadeira macabra da natureza.

Shar acendeu um cigarro.— Será mesmo? — murmurou em tom pensativo. — Talvez não se trate de um

desvio biológico que fez com que o raciocínio basicamente correto do Homo superior caísse no extremo. É possível que só tenham criado uma falsa ideologia para distinguir-se dos seres inferiores da espécie Homo sapiens.

— Será que era uma forma de consciência elitista?— Mais ou menos. No que se refere às funções do espírito, eles de fato são

superiores ao Homo sapiens, mas eles não aproveitam de forma coerente sua superioridade mental.

Uma tela iluminou-se. Shar reconheceu o rosto de Arlinda Jursuf.Apesar de mostrar-se exausta, Arlinda sorriu.— Olá, Shar! Vejo que já está de novo na central. Faça o favor de verificar o

funcionamento da via de containers. A esta hora vocês já deveriam estar recebendo toda a energia de que precisam.

— Ótimo. Um instante.Shar olhou para Lisaweta, que estava mexendo em alguns controles. Teve de

esperar mais tempo pelo resultado que de costume, uma vez que o computador central fora posto fora de ação por causa dos suplementos de plasma. Foi necessário usar um computador antiquado, exclusivamente positrônico, que já deveria ter sido reduzido a sucata.

Finalmente Lisaweta levantou os olhos.— O transmissor voltou a funcionar de novo.Shar informou a Arlinda e pediu que ela voltasse ao centro de controle.

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— Irei depois que tivermos checado os robôs vigilantes — respondeu Arlinda. — Precisarão duma nova programação, para que não possam ser enganados mais pelo Homo superior.

— Está bem — respondeu Shar. A tela escureceu.Shar ter Troyonas ficou sentado um instante em silêncio, mas logo foi sacudido por

um violento acesso de tosse. Deixou cair o cigarro. Cuspiu no lenço, recostou-se gemendo e respirou profundamente algumas vezes. Finalmente esmagou o cigarro com o pé.

Lisaweta contemplou-o e sacudiu a cabeça.— O senhor deveria deixar de fumar, Shar. Acaba se arruinando. Ainda não

descobrimos nenhum médico que tenha permanecido estável.Shar fez uma careta. Pegou um tablete negro e enfiou-o na boca.— De qualquer maneira acabaremos todos morrendo, mais cedo ou mais tarde.Shar teve de fazer um grande esforço para levantar e dirigiu-se á sala de hiper-rádio.

Mark Pruther, um rapaz de doze anos, mexia nos seletores de canal do potente aparelho. Shar ficou parado algum tempo perto da escotilha, ouvindo os inúmeros sinais de emergência vindos pelos diversos canais. Além dos sinais tipicamente terranos, como help, mayday ou SOS, chegavam constantemente pedidos de socorro de saltadores, arcônidas, acônidas e outros povos astronautas da galáxia. Parecia que a catástrofe atingira todas as inteligências galácticas.

— Ainda não conseguiu fazer um novo contato com a Terra, Mark? — perguntou Shar, depois de algum tempo.

O rapaz virou-se sorrindo.— Ainda não, senhor. Mas transmitimos sem parar. Deighton acabará nos ouvindo.Shar ter Troyonas acenou com a cabeça e sentou perto do rapaz. Encontrara Mark

há cinco anos na metrópole devastada de Olimpo e o salvara dum bando juvenil. Mark informara que no momento em que começara a catástrofe seus pais se encontravam em seus locais de trabalho no centro de controle de um dos doze portos espaciais dispostos em círculo em torno do transmissor de containers. Saíra á sua procura, mas não os encontrara. Deviam estar mortos, uma vez que o centro de controle do porto espacial fora destruído por uma nave desgovernada dos saltadores. Logo se descobrira que a mente de Mark permanecera estável, e por isso ele fora treinado para trabalhar no centro de hiper-rádio. Aprendeu depressa o que tinha de fazer, apesar de, naturalmente, não compreender em todos os detalhes o funcionamento da gigantesca aparelhagem. Mas isso não era mesmo necessário.

— Deixe-me sentar no seu lugar por algumas horas, Mark! — ordenou Shar. — Você precisa comer um pouco e dormir algumas horas.

Mark Pruther hesitou.— Faz alguns dias que o senhor não dorme! — protestou. — Parece que vai

desmaiar daqui a pouco.— Não se eu ficar sentado, rapaz. — Shar tentou exibir um sorriso despreocupado.

— Além disso quem dá as ordens aqui sou eu. Saia daqui!Mark obedeceu a contragosto.Depois que tinha saído, Shar suspirou e mudou de lugar. O cansaço era tamanho

que via manchas negras diante dos olhos, enquanto estava sentado na poltrona de Mark. Mordeu os lábios, teve de fazer um grande esforço para inclinar o corpo e apertou uma placa de controle...

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* * *

Rocus Ypteron sorriu ligeiramente quando soube que seu pessoal da estação do Polo Norte fora expulso.

— Troyonas e seu pessoal ficarão tão alegres porque a via de containers está funcionando de novo que nos deixarão em paz algum tempo — disse a Júpiter Koslow, que era seu homem de confiança.

— Além disso o bando de Myrus os manteve ocupados por algum tempo — respondeu Koslow. — Acho que poderemos executar nosso plano sem problemas.

— Tudo preparado? — perguntou Ypteron.— Tudo preparado, Ypteron — respondeu Koslow.— Tem certeza absoluta de que a bioestação do robô imperador fica bem embaixo

do palácio? Será que não fica em outro lugar do planeta?— Tenho certeza absoluta. Não se esqueça de que comandei a guarda palaciana

durante seis anos. A história da bioestação que fica muito longe e do centro de controle secreto não passava de um boato espalhado de propósito, para enganar os agentes inimigos.

Rocus Ypteron acenou com a cabeça.— O robô imperador representa um perigo para o Homo superior, mesmo que a

componente plasmática de seu cérebro positrônico se tenha deteriorado. A parte positrônica acabará assumindo o controle do corpo do robô sem a interferência do plasma mentalmente deteriorado. Isso representaria uma grande ajuda para o grupo de Troyonas.

Os dois saíram do palacete em que tinham instalado seu quartel-general. Antes da catástrofe a casa pertencera a um armador de navios muito rico. Ele estava em viagem com seu navio quando forças desconhecidas modificaram a constante gravitacional da quinta dimensão. Devia estar vagando entre as estrelas, senão tinha morrido. Ypteron e Koslow tinham desativado os robôs domésticos, já que nenhum Homo superior seria capaz de recorrer aos serviços de uma máquina desse tipo.

Do lado de fora esperava o grupo-tarefa escolhido para a ação contra o imperador Anson Argyris. Era formado por quarenta homens e mulheres. Todos usavam equipamentos especiais que lhes permitiam desativar os robôs de combate de uma distância segura. Estavam espalhados por quatro planadores de carga. Apesar de recusar tudo quanto era máquina, desde o reator de fusão até o trator atômico, eles não podiam deixar de, vez por outra, usar máquinas desse tipo para alcançar seus objetivos.

Rocus Ypteron e Júpiter Koslow sentaram no primeiro planador. Depois disso a coluna começou a movimentar-se. Os veículos sobrevoaram a paisagem de parques a pouca altura. Esta paisagem se estendia entre Trade City e o palácio imperial. Em certo momento foram obrigados a desviar-se de uma horda de homens e mulheres esfarrapados, que atiraram neles com fundas e bestas primitivas.

Ainda se encontravam a dez quilômetros do palácio, quando Koslow apontou de repente para a direita e para baixo.

Ypteron inclinou-se e viu que quatro homens iam atacar uma mulher.— Vamos intervir! — decidiu.O planador desceu em alta velocidade. Um dos homens virou a cabeça e viu o

veículo. Soltou um grito e saiu correndo. O grito alertou seus companheiros, que também fugiram.

O planador pousou. Rocus Ypteron e Júpiter Koslow desceram e foram para onde estava a mulher, que os encarava apavorada.

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— Não tenha medo; só queremos ajudar — disse Ypteron com sua voz cheia. Ergueu-a juntamente com Koslow. — Acho que chegamos bem em tempo. Koslow, leve-a ao planador. Ela irá conosco.

— Que pretende fazer com ela? — perguntou Koslow.— Temos de levá-la para longe desses tipos brutais. Talvez no palácio encontremos

um lugar em que possa ficar. Ela precisa de um banho e de roupas novas.Ypteron retorceu o rosto ao ver os farrapos imundos que cobriam seu corpo.Koslow pegou a mulher nos braços e levou-a ao planador. Ypteron foi atrás dele.Dali a dez minutos os veículos estavam descendo perto do palácio. Havia uma

casinha nas proximidades. Os saqueadores tinham quebrado as portas e janelas.— Se o suprimento de energia estiver continuando, estaremos no palácio daqui a

quinze minutos — disse Koslow. — Esta casinha serve para camuflar um transmissor secreto que trabalha com um código. Teremos de ser transportados todos ao mesmo tempo, porque meu emissor de código é o único que está em condições de ser usado.

— E a mulher? — perguntou Javas Halimur, um homem magro de pele morena.— Tranque-a no planador — respondeu Ypteron. — Por enquanto não podemos

ocupar-nos com ela.Halimur obedeceu.Depois disso os homens e mulheres pertencentes ao grupo-tarefa se comprimiram

no único recinto da casinha. Foi tudo muito devagar, porque tinham de combater o nojo. Havia fezes espalhadas que tinham atraído verdadeiros enxames de moscas verde-brilhantes.

Finalmente o último Homo superior conseguiu entrar.— Depressa, Koslow! — disse Ypteron. — Estou me sentindo mal.Júpiter Koslow já estava com o emissor de código na mão. Ele o levara do palácio

quando começou a catástrofe. O aparelho só funcionava quando absorvia diretamente as emissões individuais de Koslow, num contato com a pele. Koslow digitou o grupo de impulsos e apertou os dois botões de acionamento.

Um forte rugido saiu debaixo do assoalho. As paredes tremeram e o que restava das lâminas de glassite caiu.

Ypteron nem percebeu a desmaterialização. Só tomou consciência da rematerialização. Uma dor ligeira penetrava em sua nuca. Não era tão forte que tivesse que neutralizá-la por meio da concentração mental. Ypteron viu que se encontravam num pavilhão circular. Uma luz branca-leitosa filtrava através do teto translúcido. Alguns enxames de moscas que tinham acompanhado a transmissão subiram zumbindo e bateram na superfície luminosa.

— Que transmissor foi este? — perguntou Ypteron. — Não vi nenhuma coluna energética.

— É uma versão aperfeiçoada dos antigos transmissores de matéria dos arcônidas — respondeu Koslow.

Em seguida abriu uma pesada escotilha blindada, usando um emissor de códigos como da outra vez. Um corredor de perfil quadrado estendia-se à sua frente. As paredes eram feitas dum material verde-claro, iluminado por dentro.

— Sigam-me! — disse Koslow. — Até o fim do corredor não haverá nenhum perigo. Atrás dele fica um posto de controle que geralmente é guarnecido por dois robôs esféricos.

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Os Homo superior atravessaram o corredor em silêncio. Koslow correu na frente e esperou até que os dois homens armados de integrador o alcançassem. Depois disso ativou seu emissor de código. A escotilha que fechava o corredor deslizou para cima.

Os dois homens ergueram os desintegradores assim que viram os robôs de combate esféricos que permaneciam imóveis numa sala vazia. As faixas de detecção luminosas eram o único sinal de que os robôs não tinham sido desativados.

Koslow deu um passo para a frente.— Sou o Coronel Koslow, comandante da guarda palaciana. Trago uma tropa de

apoio para o imperador Argyris.Sua voz tinha um som oco.— Somos onze e o imperador e queremos ajudar — rangeu a voz de um dos robôs.

— Elétrons aos milhares serão a recompensa.— O impossível é a quintessência da contabilidade — rangeu o outro. Ergueu um dos braços armados e disparou contra o teto. Uma onda de calor atingiu

os superiores. A faixa de detecção do robô fundiu-se.— As temperaturas do serviço meteorológico ficam dois traços para bombordo e

parecem marrons — rangeu o primeiro robô. — Desligo, desligo, desligo...Ouviu-se uma coisa arranhando antes que o robô ficasse em silêncio.— Acho que podemos passar — disse Koslow.— Não seria bom destruir os robôs? — perguntou um dos homens que estavam

atrás dele.— Não. Quem sabe se apesar do defeito em seu cérebro não reagem muito

depressa?Koslow passou devagar entre as duas máquinas de guerra, que permaneceram

imóveis. Era possível que tivessem sido definitivamente paralisados pelo dispositivo de segurança de seus cérebros positrônicos, já que não eram capazes de controlar seus atos.

Depois de passar pelo ponto de controle, o grupo passou por um corredor em linha reta. Depois entraram num labirinto formado por campos energéticos pertencentes a dimensões superiores. Se Koslow não os guiasse, ficariam irremediavelmente perdidos. Atrás do labirinto vinha a entrada de um poço antigravitacional duplo. Koslow saltou dentro do poço polarizado de cima para baixo. Os outros homens e mulheres seguiram seu exemplo sem dizer uma palavra.

O poço do elevador parecia não ter fim. Só chegaram ao fundo depois de terem percorrido quatro quilômetros. Dali entraram numa via pneumática. Havia três carros cilíndricos parados nos trilhos energéticos desativados. A proa de cada um deles apontava para um tubo diferente.

Koslow caminhou diretamente em direção a um dos veículos e entrou. Usou o controle remoto para ativar os trilhos energéticos enquanto o grupo estava entrando. Quando o campo de força se formou, o veículo foi levantado alguns centímetros. Havia um campo energético invisível entre ele e o trilho.

Júpiter Koslow conhecia o lugar. O veículo foi movimentado por meio da polarização da superfície de contato e da regulagem da intensidade do campo energético. Entrou no tubo em silêncio, acelerou cada vez mais e dali a pouco freou.

— Temos de atravessar mais um transmissor — informou Koslow. — A entrada comum é muito vigiada.

Isso era uma mentira. A bioestação e o centro de controle secreto do imperador dos livres-mercadores não possuíam nenhuma entrada normal. Estavam guardados numa gigantesca esfera de inquenite, que por sua vez era protegida por campos energéticos de

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grande potência, dentro de um espaço cavernoso cheio de magma na crosta planetária. Os preciosos objetos tinham sido guardados nesse lugar desde a invasão dos takerers. Mas Koslow queria guardar um trunfo só para si. Percebera que, ao contrário dos outros, Rocus Ypteron não tinha escrúpulos.

Depois de uma transmissão de pequena distância, o grupo viu-se à frente dos dois portões blindados. Não havia nenhum sensor sobre o qual se pudesse colocar as mãos, como acontecia na estação secreta antiga. Graças à sua inteligência sobre-humana, Koslow conseguira conquistar a confiança ilimitada de Argyris e arrancara-lhe a senha secreta que dava acesso a todas as instalações. Qualquer um que tentasse conhecer a senha seria morto pelas inúmeras instalações defensivas.

A senha era uma palavra tirada de uma das numerosas línguas terranas pré-cósmicas, a maior parte das quais tinha caído no esquecimento.

— Cheminée! — gritou Koslow.Três escotilhas de aço pesadas subiram com muito barulho. O grupo comprimiu-se

na câmara de uma eclusa que ficava atrás delas. As escotilhas voltaram a descer antes que uma única escotilha se abrisse à frente do grupo.

Júpiter Koslow ouviu alguém fungando baixo atrás dele. Sorriu. Os quarenta e sete corpos humanos pendurados em cabides especiais deixavam aflito qualquer um que os visse pela primeira vez.

— São as máscaras de cocon pseudovariáveis do robô imperador — explicou. — Quarenta e sete. O vário-robô está usando a quadragésima oitava, a de Anson Argyris.

— Destruam as peles sobressalentes do monstro! — ordenou Rocus Ypteron com a voz estridente.

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2

Bossa Cova observava atentamente o que se passava em torno dele antes de pegar o bastão mágico e abrir a porta de seu castelo. Ninguém devia saber que este era habitado. Já vira alguns ypterons expulsando um grupo de homens, mulheres e crianças de um castelo, e, em seguida, enfeitiçá-lo a tal ponto que ele se tornou inabitável.

Bossa voltou a saltar para uma abertura. Dali a pouco a pesada porta desceu de novo. Bossa iniciou a subida cansativa. Apesar de suas excelentes condições físicas, esta consumia três vezes mais tempo que a descida. Enquanto subia, resolveu levar algumas provisões.

Bossa desceu no convés certo sem fazer a contagem. De qualquer maneira não seria capaz de contar um número tão alto, mas a perda de parte de sua capacidade intelectual ativara alguns instintos primitivos que estavam em estado de hibernação, entre eles o da orientação.

Quando se dirigia ao depósito Q-34-Beta passou pela abertura de um corredor largo. Olhou para dentro dele e viu um olho vermelho brilhante num lugar em que antes só havia escuridão.

Bossa Cova recuou apavorado. Mas viu que o olho incandescente continuava no mesmo lugar e ficou mais corajoso. Pegou o machado que trazia no cinto e entrou no corredor sem fazer barulho. Antes do encontro com Shar e o ídolo de Rob o Terrível nunca se teria arriscado a fazer uma coisa dessas, mas o fato de ter sobrevivido ao encontro fez com que se sentisse mais confiante.

Bossa parou no meio do corredor para escutar melhor. Nada. Avançou cuidadosamente. Quando chegou bastante perto para lançar um ataque-relâmpago contra o olho de demônio, hesitou. Pôs-se a refletir. Por que iria atacar o olho se este não mostrava que queria lhe fazer algum mal? Talvez seja errado a atacar tudo e a todos, pensou. Não precisaria ter atacado Shar, porque ele não lhe queria mal.

Bossa deixou cair a mão que segurava o machado e chegou mais perto. Seus olhos já se tinham habituado à escuridão e ele viu que o olho de demônio estava incrustado numa parede metálica. Bossa segurou o machado no braço protegido pelo escudo e esticou o corpo para pôr a mão no olho de demônio. Era muito alto e ele foi obrigado a desistir. Apoiou-se na parede metálica — e caiu para a frente. A parede se abrira.

Bossa Cova cambaleou no meio de uma claridade ofuscante e conseguiu recuperar o equilíbrio antes de cair no chão. Soltou seu grito de guerra e voltou a segurar o machado na mão direita.

Mas não havia nenhum amigo com o qual pudesse lutar. Pelo menos não aparecia nenhum. Mas apesar disso Bossa ficou com medo e recuou um passo.

O que seus olhos viam só podia ser uma obra de magia. Bossa sabia perfeitamente que era noite, mas estava ao ar livre e o sol já se encontrava bem alto.

Aos poucos Bossa foi se acalmando. A curiosidade foi mais forte que o medo. Seus olhos depararam com uma estranha paisagem. Arvores secas formavam grupos pequenos no meio do capim ressequido, água saía murmurando de uma fonte num lago seco, e uma brisa suave fazia farfalhar os galhos dos arbustos. Bossa seguiu devagar, deu uma volta em torno da lagoa e passou por um caminho de lajotas entre dois grupos de arbustos. De repente descobriu um objeto brilhante. Tocou nele com o pé e, como não aconteceu nada,

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levantou-o com muito cuidado. Era uma caixa negra achatada com um olho cintilante morto em um dos lados e estranhas saliências.

Bossa passou os dedos pelas saliências. De repente a face oposta ao olho se abriu. Uma folha rígida caiu da caixa.

Bossa olhou fixamente para ela. Numerosas rugas profundas formaram-se em sua testa. A folha era um quadro de bruxas. Mostrava três pessoas que lhe pareciam conhecidas, apesar de usarem vestes diferentes e também serem diferentes sob outros aspectos. Um homem estava de pé à frente de uma gigantesca torre de metal prateado e abraçava duas moças. O rosto do homem era parecido com o de Bossa. Vira-o muitas vezes quando se refletia em paredes metálicas polidas ou num espelho de água. Os rostos das moças eram de Doreen e Aine.

Bossa usou o cabo do machado para virar o quadro e recitou uma fórmula mágica. Depois saiu andando com muito cuidado, preparado para novas surpresas.

A maior surpresa veio quando de repente chegou ao fim do mundo, a uma parede metálica que parecia subir até o firmamento de vidro. Bossa estremeceu ao contemplá-la. Depois ficou caminhando junto ao fim do mundo e teve outra surpresa. Foi quando chegou ao portão pelo qual tinha vindo. Já não entendia mais nada.

Sua passagem pelo portão foi uma fuga. Bossa jurou que nunca mais entraria na área enfeitiçada.

Depois de alguns minutos alcançou a entrada do depósito, que estava aberta. Cuspiu três vezes no chão para exorcizar eventuais espíritos antes de entrar. Estava escuro, mas ele conhecia o lugar e era capaz de orientar-se. Depois de procurar por algum tempo conseguiu encher uma mochila com conservas e resolveu voltar.

Quando chegou perto das duas moças, elas tinham levantado. Bossa tirou a mochila e tirou as preciosidades que trouxera. Ainda abriu uma lata. Continha carne prensada, vários tipos de verduras e queijo. Em outras latas havia suco de frutas e em outras fatias redondas de pão que exalavam um cheiro delicioso, cuidadosamente separadas por folhas de papel.

Depois que acabaram de comer, Bossa dirigiu-se ao grande conjunto de salas que ficava ao lado. Depois dos primeiros choques desistira de quebrar a cabeça para descobrir de onde vinha a água quente e por que, de vários buracos na borda da tina, saía uma espuma purificadora assim que alguém entrasse nela. Bossa tomou banho sem fazer perguntas, as quais de qualquer maneira não teriam resposta. Foi para baixo da ducha de ar quente e do aparelho de massagem. Em seguida foi para o quarto e deitou na gigantesca cama redonda.

Dali a pouco Doreen e Aine também foram para a cama. Bossa já dormia profundamente.

Depois de dormir um pouco, Bossa Cova levantou e mudou de roupa. As moças acordaram.

Doreen apoiou-se nos cotovelos, bocejou e perguntou:— Você sempre tem de sair, Bossa? Aqui tem tudo de que precisa.Bossa sacudiu a cabeça, mas não respondeu à pergunta. Não sabia por que, de vez

em quando, uma força irresistível o arrastava para fora do castelo encantado.Quando chegou á porta, parou e virou-se.— É possível que desta vez demore bastante. Vou a Traci.— O que vai fazer lá? — perguntou Doreen. Bossa deu de ombros e saiu.

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Desta vez saiu do castelo encantado no início da tarde. Bossa Cova caminhou para o norte. Não se encontrou com ninguém até chegar à periferia da cidade. Lá deu com um grupo de homens, mulheres e crianças maltrapilhas que acabavam de saquear um depósito. Estavam distribuindo a presa, que incluía muitos objetos cuja finalidade nem eles nem Bossa conheciam.

O homem solitário não se preocupou com o grupo. Seguiu seu caminho. Precisava encontrar um lugar para passar a noite, uma vez que o sol vermelho estava chegando perto do fim do mundo. Dali a pouco mergulharia no mar infinito dos sonhos para no dia seguinte aparecer, descansado e radiante, do outro lado do mundo.

Bossa Cova acabou escolhendo um edifício de oito andares. Os dois andares de cima tinham sido destruídos por explosões. Depois de passar pela porta, Bossa teve de passar por cima do cadáver de um cachorro de pelos grandes, cujo crânio fora esmagado. Não podia ter sido há muito tempo, pois o cadáver ainda estava quente.

Bossa refletiu se devia tirar a pele do cadáver e cortar um pedaço de carne. Resolveu que não. Trazia boa quantidade de mantimentos.

Bossa subiu por uma escada em caracol e chegou ao quarto andar, onde revistou cuidadosamente as salas para evitar surpresas desagradáveis.

De repente sentiu um cheiro familiar.Homens!Havia seres humanos em uma das salas ao lado.Bossa segurou o machado na mão direita, depois de verificar de onde vinha o odor.

Saiu caminhando devagar em direção à porta, mas ela não se abriu sozinha. Bossa parou para pensar. De repente seus olhos cintilaram. Lembrou-se vagamente de como a porta se abrira sob o efeito do olho de demônio. Bastava executar certos movimentos mágicos.

Bossa encostou a palma da mão no metal frio da porta e puxou-a para baixo. Não aconteceu nada. Bossa franziu a testa. Se havia seres humanos do outro lado da porta, eles deviam ter encontrado um meio de entrar. Talvez houvesse outra entrada.

Bossa Cova foi para a escada e subiu um andar. Ficou em silêncio ao ouvir uma horda barulhenta passando pela rua. Em seguida continuou nas buscas. Sorriu ao descobrir um grande buraco na sala a que chegou. Então era esta a outra entrada. Nada mau. Quase chegou a simpatizar com as pessoas que tinham escolhido este lugar como esconderijo. Mas não podia permitir que alguém pernoitasse na mesma casa que ele. Poderia ser atacado e morto enquanto dormisse.

Bossa encostou o escudo ao corpo e saltou.Foi parar no chão da sala debaixo e fez um giro rápido para evitar um ataque pelas

costas.Uma moça de seus dezesseis anos estava agachada num canto, com os joelhos

encolhidos. A seu lado estava de pé um menino que devia ter treze ou quatorze anos. Segurava uma faca e parecia disposto a lutar.

Bossa baixou o machado e disse:— Bossa não luta com crianças. Guarde a faca, rapaz.— Vá embora! — gritou o menino com a voz estridente. — Nós moramos aqui.Bossa sacudiu a cabeça.— Não quero expulsá-los. Pensei que houvesse saqueadores escondidos aqui

embaixo e quis ter certeza de que não me matariam enquanto estivesse dormindo. Quem são vocês?

— Eu sou Io e este é meu irmão Sarkh — disse a moça.— Fique quieta! — gritou Sarkh. — Todo desconhecido é um inimigo.

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— Meu nome é Bossa Cova — disse Bossa.— Vá embora! — disse o menino. — Deixe-nos em paz.Bossa contemplou o menino magro. Usava tanga e uma camisa muito grande. Os

pés estavam sujos e descalços, os cabelos desgrenhados pareciam ter sido aparados de qualquer maneira com uma faca.

Bossa olhou para a moça. Também era magra, mas não tão franzina quanto o rapaz. Tinha olhos grandes e os longos cabelos negros estavam presos por uma fita trançada.

Ao lado da moça via-se uma mochila cheia pela metade e à frente dela algumas latas. Mais adiante Bossa descobriu uma escada de corda com dois ganchos em uma das extremidades.

O homem refletiu se devia deixar as crianças sós. Sentia pena deles. Se não conseguissem juntar-se a um bando, acabariam tendo uma morte cruel.

Antes que chegasse a uma conclusão, ouviu passos no andar debaixo. Eram passos de duas ou três pessoas, acompanhados de murmúrios.

Io soltou um grito de pavor e cobriu os lábios com a boca. Uma expressão decidida surgiu nos olhos de Sarkh.

Bossa Cova observou as crianças. Até parecia que imaginavam que estavam andando no pavimento debaixo.

— Não se preocupem — cochichou. — Estou do lado de vocês.O menino não disse nada, mas a menina fitou-o com uma expressão confiante.Dali a pouco, passos pesados subiram ruidosamente pela escada. Depois disso um

cachorro uivou bem à frente da porta da sala. Punhos cerrados bateram na porta e uma voz masculina áspera gritou:

— Sarkh e Io! Abram. Sabemos que vocês estão aí. Bossa colocou um dedo sobre os lábios e recuou para a parede, para não ser visto de

cima.A voz masculina voltou a chamar mais algumas vezes, pancadas ruidosas atingiram

a porta, e depois disso os três ouviram alguém confabulando aos cochichos. O cachorro ladrou, gemeu e uivou. Os passos de dois homens afastaram-se.

Dali a pouco os passos vieram de cima deles. Bossa fez um sinal para que o rapaz não se mexesse. Ele mesmo ficou em posição de alerta, segurando o machado na mão direita.

Não esperou muito. Um homem passou pelo buraco no teto, um homem ruivo de estatura robusta com uma barba longa e cheia. Usava uniforme de bordo, do tipo usado nas naves dos saltadores.

Bossa Cova matou-o antes que percebesse que não se defrontava somente com crianças. Ouviu-se um grito vindo de cima, e em seguida outro homem foi parar no chão. Também era ruivo, barbudo e robusto. Rolou para o lado e pôs-se de pé com movimentos ágeis.

Bossa atacou, mas o inimigo aparou o golpe com um pequeno escudo metálico redondo. Depois disso uma lança curta roçou o braço de Bossa.

Bossa Cova recuou saltitando. O ruivo riu, dando a impressão de que a cena o divertia. Desta vez foi ele quem passou para o ataque. Bossa conseguiu fazer resvalar a lança em seu escudo. Levantou abruptamente o machado com o braço estendido e teria atingido a axila do inimigo se ele não tivesse girado com a velocidade de um relâmpago. No mesmo instante o homem de porte atlético precipitou-se com uma violência tremenda sobre Bossa. Os escudos bateram ruidosamente um no outro. Bossa recuou cambaleante. Era muito forte, mas seu inimigo era uma verdadeira montanha de músculos.

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O impacto seguinte abriu o escudo de Bossa. O inimigo preparou-se para desferir o golpe decisivo com a lança...

De repente ele se deteve. Seus olhos se arregalaram, a lança escapou-lhe da mão e ele tombou para a frente, batendo com o rosto no chão.

Bossa contemplou estupefato a faca cravada nas costas do ruivo. Em seguida olhou para Sarkh e disse:

— Obrigado, rapaz. Você me salvou.Bossa tirou a faca da ferida e devolveu-a ao menino. Um cão ladrou à frente da

porta. Alguém praguejava. Finalmente ouviram-se passos descendo ruidosamente pela escada.

— Quem foram estes homens, Sarkh? — perguntou Bossa. Desta vez quem respondeu foi Io. Apontou para o homem que morrera em primeiro

lugar e disse:— Este era o patriarca Elandos e esse aí — a moça apontou para o outro cadáver —

era seu filho mais velho, chamado Brumonir. Elandos e seu clã nos tinham aprisionado.— Queriam vender Io ao chefe da horda de Nole — observou Sarkh. —

Conseguimos fugir e pretendíamos pernoitar aqui. Mojes deve tê-los ajudado a encontrar nossa pista. Mojes é o cachorro. Io e eu já podemos procurar outro lugar para ficar.

Bossa Cova acenou com a cabeça.— Vamos continuar juntos, Sarkh?Sarkh virou-se para a irmã. Io acenou com a cabeça sorrindo.— Está certo, Bossa — disse Sarkh.Bossa ofereceu-lhe a mão e o rapaz segurou-a. De repente seu corpo franzino foi

sacudido por um soluço. Seus olhos encheram-se de lágrimas.Bossa puxou o menino para junto de si e passou-lhe a mão pelos cabelos.— Está tudo bem, rapaz — murmurou. — Tudo bem.

* * *

Os dois homens que estavam atrás de Koslow levantaram os desintegradores. Numa questão de minutos os disfarces do robô imperador se desmancharam em nuvens de gases.

— Agora vamos cuidar de Vário! — disse Rocus Ypteron.Júpiter Koslow virou-se e saiu caminhando à frente do grupo. Achava que sabia

perfeitamente onde Anson Argyris se encontrava. Afinal, tivera tempo de sobra para estudar seu comportamento. Como Argyris não interferira nos acontecimentos que se desenrolaram no planeta dos livres-mercadores, ele não conseguira controlar o corpo somente com a componente positrônica de seu cérebro. Por isso certamente desativara voluntariamente seus dispositivos móveis, para evitar que o estado de esquizofrenia o levasse a cometer erros fatais. Além disso devia ter procurado um lugar seguro, onde pudesse tentar calmamente recuperar o domínio do setor positrônico do cérebro. Não havia lugar mais seguro que o centro de controle secreto. Afinal, ele não podia saber que o antigo comandante da guarda palaciana era um agente do Homo superior.

Depois de abrir a entrada do centro de controle da mesma maneira que fizera com a da bioestação, ele esperou que Ypteron o alcançasse.

— Peço-lhe que tenha o maior cuidado — disse. — Não sabemos se o vário-robô, que se encontra em estado de passividade, é dominado completamente por sua componente positrônica.

— O senhor não disse que isso era muito provável, Koslow?

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— Muito provável não é absolutamente certo. Vário só é inofensivo se for governado exclusivamente pelo setor positrônico e portanto pelas leis da robótica, e isto mesmo somente para quem conhece perfeitamente estas leis.

— Eu as sei de cor — respondeu Ypteron em tom grosseiro. — Vamos em frente. O robô tem de ser posto fora de ação antes que Troyonas e seus mentalmente estáveis saibam de nossa operação. Os bárbaros certamente não terão a menor dúvida em usar a força bruta para salvar seu robô imperador.

Júpiter Koslow acenou com a cabeça. Fez um sinal para os dois homens armados de desintegrador e disse:

— Como sabem, enfrentaremos um robô. A liga de atronital de seu envoltório não pode ser destruída com desintegradores. Por isso somente poderão eliminar a máscara de Anson Argyris. Isto é absolutamente necessário, para que todos saibam que realmente só estamos lidando com um robô. Portanto, não percam tempo quando nos defrontarmos com o Imperador Argyris.

Koslow saiu andando de novo, atravessou um corredor em forma de tubo e, usando mais uma vez o emissor de código, abriu a escotilha blindada do hall do centro de controle.

Parou instintivamente ao ver o robô imperador de pé no meio da sala. Estava acostumado há muito tempo a ver no monarca um ser superior e tratá-lo como tal, prestando-lhe obediência.

Anson Argyris abriu a boca.— O senhor aqui, Coronel Koslow? Veio como amigo ou como inimigo?— Vim como amigo de todos os seres inteligentes — respondeu Koslow sem tratar

Argyris pelo título. — Meus amigos e eu queremos construir um futuro novo e melhor. Pertencemos a um novo tipo humano, o Homo superior. Acontece que o senhor representa um obstáculo a um futuro melhor. É este o principal motivo por que não podemos permitir que continue iludindo a humanidade sobre sua verdadeira natureza.

Koslow fez um sinal para os dois homens que estavam a seu lado. Feixes de raios verde-pálidos saíram dos canos em espiral dos desintegradores, banhando a figura do imperador dos livres-mercadores e dissolvendo sua máscara dentro de instantes.

Lá estava Vário 500, aparentando aquilo que realmente era — ao menos do ponto de vista puramente material: uma estrutura metálica oval com braços e pernas telescópicas e um pescoço também telescópico, sobre o qual assentava uma cabeça de rastreamento esférica de dez centímetros de diâmetro.

Os dois homens suspenderam o fogo.— O senhor se arrisca muito, Coronel Koslow — disse o vário-robô. — Se quisesse

poderia destruí-lo juntamente com seus companheiros.Rocus Ypteron passou por Koslow e plantou-se bem à frente do robô.— Por que não nos destrói, robô? Por que não me mata? Não me contento em ver

que perdeu a máscara. Quero pô-lo fora de ação para sempre. Mate-me e você estará livre.

O braço direito do vário-robô tremeu ligeiramente, subiu alguns centímetros e voltou a imobilizar-se.

Ypteron acompanhou atentamente o fenômeno. Sabia que no oco do braço direito do robô ficava a arma térmica intervalar, capaz de dar trinta tiros por segundo. No braço esquerdo havia um desintegrador.

Quando o braço direito de Vário parou, Ypteron sorriu satisfeito.

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— Você não pode matar-me, não é? A primeira lei da robótica não permite que faça isso. Um robô não deve ferir um ser humano ou permitir que se fira em virtude de sua inatividade. Não é verdade?

— É verdade — respondeu Vário. — Mas no meu caso isto só vale enquanto eu mantiver bloqueada a componente plasmática de meu cérebro.

— Não é bem assim — retrucou Ypteron em tom sarcástico. — A componente positrônica de seu cérebro possui um comando especial. Você pode matar um ser humano, desde que com isso salve a vida de um maior número.

— É o que acontece, ao menos segundo as ideias daqueles que o programaram. Perry Rhodan queria que você se empenhasse por uma civilização feita de superlativos técnicos, por uma humanidade cujas espaçonaves são capazes de destruir sistemas solares, em resumo, por uma humanidade agressiva e expansionista.

— Pois eu não quero uma humanidade destas. Farei com que em todos os planetas dominados pelo homem sejam destruídas as usinas atômicas, os estaleiros de espaçonaves, as fábricas de armamentos e os demais instrumentos que estão a serviço de um expansionismo agressivo. No fim de tudo isto teremos o governo do Homo superior. Os seres humanos se contentarão com os mundos em que nasceram. A violência contra a natureza terá um fim. Educaremos a humanidade para viver em paz com seu ambiente natural e o cosmos.

— Isso são apenas fantasias — contestou o robô. — Pelo menos nos mundos densamente povoados os homens não podem sobreviver sem usinas atômicas e outros equipamentos técnicos. Além disso a humanidade precisa da navegação espacial, a não ser que queira cair num estado que levará inevitavelmente à decadência. Também precisa de recursos bélicos, porque sempre existirão outras civilizações que querem subjugá-la ou prejudicá-la.

— A civilização que almejamos não representa uma ameaça ou concorrência para ninguém — respondeu Ypteron. — Poderemos viver em paz.

— Seus argumentos estão em contradição evidente com os fatos e por isso não têm nenhuma lógica. Desta forma o senhor e sua organização se transformam num perigo grave para a sobrevivência da humanidade. O senhor se condenou à morte.

Vário ergueu os dois braços armados.Ypteron levantou a mão. Pingos de suor brilharam em sua testa. Estava disposto a

sacrificar-se pelo futuro do Homo superior se isso fosse necessário, desde que com isso o vário-robô fosse posto fora de ação. Mas esta tarefa só seria executada pelo próprio Argyris, se ele fosse lançado num verdadeiro conflito robótico.

— Calma! — gritou. — Não se esqueça de que não estou só, robô. Em Olimpo e em outros planetas habitados por seres humanos existem milhões de exemplares do Homo superior. Matando-me não deterá a evolução.

Vário 500 ficou calado. Os canos expostos de seus braços armados apontavam para Ypteron, mas ele não atirou.

Rocus Ypteron respirou aliviado. Talvez nem precisasse sacrificar-se. Talvez o conflito insolúvel para um sistema positrônico levasse o robô a destruir-se. Koslow o informara que uma instalação deste tipo existia no tronco oval da máquina.

De repente houve um forte estalo no corpo do robô. Ouviu-se um zumbido fraco e os braços armados baixaram.

Ypteron virou-se.— Sheldon!

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Um jovem de pele negra adiantou-se. Segurava um aparelho em forma de caixa na mão direita. Contornou lentamente o vário-robô, com a face dianteira do aparelho na altura do tronco do robô.

Depois de algum tempo baixou o aparelho e fez um sinal para Ypteron.— Está morto. O robô desativou todos os sistemas. É apenas a imagem esculpida

em aço duma época bárbara.Atrás de Ypteron os homens e mulheres pertencentes ao grupo irromperam em

manifestações de júbilo.Rocus Ypteron apertou a mão de Koslow e disse em tom calmo:— Vamos embora. Aqui não temos mais nada a fazer.

* * *

Shar ter Troyonas estremeceu ao ouvir o sinal de chamada estridente do videofone. Cochilara na poltrona.

Shar ativou o aparelho. O rosto de Arlinda Jursuf apareceu na tela.— Olá, Arlinda! Qual é a novidade?— Estou no centro de rastreamento — disse Arlinda. — Os hiper-rastreadores

detectaram uma nave que se aproxima do planeta. É de formato esférico, com os polos fortemente achatados. Deve ser uma nave acônida.

— Obrigado, Arlinda — disse Shar. — Tentarei fazer contato pelo rádio. Tomara que haja algumas pessoas mentalmente estáveis a bordo. Ficaremos em contato.

Shar ligou o hipercomunicador e ativou todas as faixas de frequência. O aparelho rastreou todas as frequências de hiper-rádio conhecidas, enquanto enviava pedidos de identificação conhecidos dos povos astronautas da galáxia.

Demorou quase dez minutos até que o rastreador de frequências se fixasse numa faixa que já tinha sido sinalizada seis vezes e a tela se iluminasse.

Shar viu o rosto encovado e barbudo dum homem projetado no cubo de trivídeo. Os olhos estavam vermelhos e cercados de rugas profundas.

— Quem chama? — perguntou o homem em intercosmo, a língua galáctica universal.

— Aqui fala a central de transporte de containers de Olimpo — disse Shar. — Meu nome é Troyonas. Parece que o senhor permaneceu estável. Como está a tripulação de sua nave? Pode realizar o pouso segundo o sistema de marcação de rádio? Nossos sistemas de pouso eletrônico não estão funcionando.

O homem suspirou.— Aqui fala Vatrim de Akailos, da nave Oronte, pertencente ao comando

energético acônida — do antigo comando energético. Sou o único que permaneceu estável a bordo. Pus meu pessoal para dormir por meio de gás. Que aconteceu mesmo, Troyonas? Parece que a galáxia se transformou num hospício.

— Seres desconhecidos fizeram uma modificação de oitocentos e cinquenta e dois megakalups na constante gravitacional da quinta dimensão em nossa galáxia, causando a deterioração mental de todos os seres inteligentes. Existem poucas exceções. Mas espero que sobre isso possamos conversar em outra oportunidade. Como é? Acha que é capaz de fazer pousar a nave sozinho por meio do sistema de marcação pelo rádio?

— Acho que sim. Felizmente nosso centro de computação positrônico de bordo não possui nenhuma componente de plasma.

Shar franziu as sobrancelhas.

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— Como soube que as componentes de plasma dos sistemas positrônicos terranos enlouqueceram, Vatrim de Akailos?

O acônida sorriu ligeiramente.— É o que se deduz das suas informações, Troyonas. Se todas as inteligências

foram atingidas pelo processo de deterioração mental, este também deve ter afetado as componentes de plasma dos cérebros positrônicos terranos. Acho que no seu caso as consequências foram ainda mais catastróficas que na maior parte dos seres humanos.

— Sem dúvida. Atenção. Dentro de alguns minutos lhe darei o impulso de orientação. O senhor será conduzido a uma das vagas do porto espacial CTT-Epsilon. O senhor mesmo escolherá o lugar exato. Cuidado, que há muitos destroços espalhados pela pista. Enviarei um comando de recepção. Não abra as eclusas antes que tenha chegado o comando. Além dos mentalmente deteriorados há uns tipos muito perigosos andando por aí. Meu pessoal se identificará por meio de uma bandeira vermelha.

— Obrigado, Troyonas — respondeu Vatrim. — Muito obrigado. Fico satisfeito em saber que em Olimpo existem algumas pessoas que permaneceram estáveis.

Shar fez um gesto cansado e começou a programar o transmissor de impulsos de direção e enfiá-lo no setor de recepção dum canal de transmissão. Depois disso voltou a sentar-se á frente da grande tela de hipercomunicação e acendeu um cigarro. Queria manter contato com os acônidas, para poder aconselhá-los se houvesse uma emergência.

Mas teve de cortar a comunicação com o Oronte quando soou o sinal estridente de determinado canal de hiper-rádio. Ativou o canal que fora combinado entre ele e o Imperador Argyris. De repente ficou bem desperto. Sabia que Argyris desligara seu sistema de locomoção e de ação física, para não fazer loucuras se a componente plasmática deteriorada de seu cérebro dominasse o conjunto. Parecia que o imperador isolara definitivamente a componente de plasma.

O símbolo do imperador dos livres-mercadores apareceu na pequena tela. Argyris começou a falar com a voz monótona.

— Aqui fala Vário 500. De acordo com a programação especial Albatroz, coloquei definitivamente todos os meus sistemas na posição zero. O motivo é uma situação de conflito insolúvel, segundo Asimov. A situação foi provocada pela argumentação de um exemplar da espécie Homo superior. Final.

Shar ter Troyonas empalideceu. Deixou cair o cigarro, inclinou-se para a frente e gritou:

— Um momento, imperador Argyris. Não desligue! Vamos ajudá-lo. Ouça.Troyonas cerrou os lábios com força quando viu que a tela se apagara e o canal

estava morto.— Quer dizer que os pseudo-super-homens conseguiram! — gritou furioso. —

Usaram suas sutilezas dialéticas para pôr Vário 500 fora de ação e dar cabo de nós.Shar levantou e correu para o centro de comando, onde quase esbarrou em Arlinda

Jursuf.Arlinda fitou-o com uma expressão de espanto.— Que houve com você, Shar? Onde você arranjou de repente toda essa energia?Shar fez um sinal para que ela se calasse.— Fique quieta por enquanto, Arlinda. Aconteceu uma coisa horrível. Os superiores

conseguiram fazer com que Vário se desligasse para sempre.— O quê...? — perguntaram Arlinda e Lisaweta a uma voz. Shar acenou com a cabeça. Parecia zangado.

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— Foi a última que aprontaram. Daqui em diante vamos caçá-los e eliminá-los! — gritou.

Arlinda fez um sinal para Lisaweta. Em seguida segurou Shar pelos ombros e sacudiu-o com força.

— Você ficou louco, Shar. Ninguém será eliminado. — Arlinda pegou um copo de água cheio de uísque que lhe fora entregue por Lisaweta e levou-o aos lábios de Shar. — Beba!

Shar ter Troyonas obedeceu. Esvaziou o copo. Quis devolvê-lo a Arlinda, mas de repente ele lhe caiu da mão e despedaçou-se no chão. Shar teria caído se Arlinda não o amparasse.

— Ajude-me a levá-lo à sala de repouso ao lado — disse Arlinda a Lisaweta.Depois de colocar Shar num sofá, as duas se entreolharam com uma expressão séria.— O que aconteceu com Vário representa um golpe duro, Lisa. Mas nem penso em

concordar com a destruição do Homo superior. Pelo contrário. Temos de levá-lo a ajudar-nos a organizar o abastecimento da população.

— Shar estava exausto, muito exaltado e com os nervos à flor da pele — respondeu Lisaweta em tom contemporizador. — Em outras palavras, não podia ser responsabilizado por seus atos por algum tempo. Depois que tiver dormido pensará de maneira diferente. Mas...

Lisaweta interrompeu-se ao ver Mark Pruther enfiar a cabeça pela porta.— Que está acontecendo? — perguntou Mark. — Não há ninguém no centro de

comando, a sala de rádio está desguarnecida. Onde está o chefe?— O chefe sofreu um colapso nervoso. — respondeu Arlinda e deu um passo para o

lado para que o jovem pudesse ver o chefe dormindo.— Ah, sim! — fez Mark. — É por isso que no centro de comando há cacos de vidro

com cheiro de uísque.Mark retirou-se às pressas quando viu que Lisaweta queria atirar um vaso.— Assumirei a sala de rádio! — gritou.— E eu tenho de voltar ao centro de controle — informou Lisaweta.As duas mulheres saíram.De repente Mark apareceu de novo. Estava radiante.— Deighton! — gritou. — Voltamos a estabelecer contato com Deighton. Com a

Terra!Arlinda passou correndo por ele e foi à sala de rádio. Lisaweta seguiu-a um pouco

mais devagar. Mark também voltou à sala de rádio.A imagem em trivídeo do Marechal-Solar Galbraith Deighton aparecia na tela

principal do hipercomunicador mais potente. Estava ligeiramente distorcida e coberta por véus fugazes.

Arlinda Jursuf sentou-se à frente do aparelho.— Olá, Miss Jursuf! — disse Deighton. Sua voz também parecia distorcida. O

motivo era a falta de duas naves retransmissoras HF da corrente que ligava Olimpo à Terra. Eram as únicas tripuladas por seres humanos.

— Olá, senhor! — disse Arlinda. — Como estão as coisas na Terra?— Estão ruins, sem alteração. Poderia fazer o favor de chamar Troyonas?— Sinto muito, senhor. Shar sofreu um colapso nervoso e está dormindo. O senhor

terá de contentar-se comigo.Deighton sorriu. Por causa da distorção teve-se a impressão de que os cantos da

boca iriam alcançar as orelhas.

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— Está bem, Miss Jursuf. Primeiro uma pergunta. Roi Danton chegou bem?— Roi Danton? — perguntou Arlinda em tom de espanto. — Não senhor. Pelo

menos eu não sei disso. Viria numa nave?— Não. Pretendia ir pelo transmissor. Pelo amor de Deus, moça! Mande investigar

imediatamente. Houve uma falha nos transmissores nestes últimos dias?— Houve. Os superiores andaram brincando com nossa estação do Polo Norte. Mas

o transporte de containers já voltou a funcionar perfeitamente.Galbraith Deighton soltou um palavrão.— Vamos verificar, senhor — apressou-se Arlinda em dizer. Depois dirigiu-se a

Lisaweta: — Cuide disso.Lisaweta Nurjewa foi até a porta. Lá virou-se e disse:— Seu namorado tentou estabelecer contato com uma nave que vem para cá. Não

sei se conseguiu.— Vamos verificar — disse Arlinda. Voltou a dirigir-se ao Marechal-Solar. — Um

momento, senhor.Usando certos registros puramente positrônicos, Arlinda descobriu logo em que

frequência fora feito um contato de hiper-rádio. Fez passar os registros para não ter de fazer perguntas supérfluas. Finalmente transmitiu um sinal de chamada.

Vatrim de Akailos respondeu ao chamado sem demora. Seu rosto marcado pelas preocupações iluminou-se quando viu Arlinda.

— Olá, terrana! Transmita meus agradecimentos a Troyonas pelo impulso de orientação. Estou fazendo a manobra de aproximação. Detectei uma forte radiação difusa na quinta dimensão perto da área de destino. Será que é o transmissor de containers?

— O senhor adivinhou-o. Faça o possível para não descer entre as colunas energéticas. Vou desligar. Temos mais alguns problemas.

Arlinda interrompeu a ligação e recostou-se respirando com dificuldade.— Marechal-Solar, o senhor nem imagina o que acontece por aqui. Somos atacados

ora pelos saqueadores ora pelos superiores. E agora os superiores, os pregadores do segundo paraíso que exalam superioridade por todos os poros, puseram nosso Anson fora de ação. Lançaram-no num conflito que o obrigou a desligar seus sistemas. Foi isto que derrubou Shar.

Galbraith Deighton gemeu e enxugou o suor da testa. Não se sabia se era por causa de Arlinda, que falara que nem uma matraca, ou por causa da desdita de Argyris.

Antes que a conversa fosse retomada, Lisaweta entrou na sala de rádio. Havia uma expressão de perplexidade em seu rosto.

— O filho de Rhodan não chegou — disse.— Passou ontem pelo transmissor solar da via de transmissores! — retrucou

Deighton. — Há cerca de dezoito horas.— Há dezoito horas o transmissor não estava funcionando, senhor — disse Arlinda.

— Lisa, não podemos fazer nada por ele?Lisaweta enrugou a testa e pôs-se a refletir. Finalmente disse em tom hesitante:— Se o senhor mandar interromper todos os transportes, marechal-solar, posso

tentar com uma série de modulações energéticas. Como sabe, sou hiperfísica e antes da catástrofe especializei-me nas técnicas de retorno no caso de panes do transmissor.

— Excelente — disse Deighton. — Por favor, faça tudo para salvar o filho de Rhodan.

— Naturalmente, marechal-solar — disse Lisaweta. — Começarei imediatamente.Depois que Lisaweta saiu da sala de rádio, Deighton disse:

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— É muito importante que Roi Danton chegue ao destino, Miss Jursuf. Não somente por ser filho de Rhodan, mas também porque leva uma cassete de programação para reativar Anson Argyris.

— Não se esqueça de que o descontrole da componente de plasma de Sua Majestade o colocou num estado de esquizofrenia, senhor. Na melhor das hipóteses se transformaria num monumento pensante.

Galbraith Deighton sacudiu a cabeça.— O programa especial o tornaria capaz de reprimir a componente de plasma de seu

cérebro para ficar em plena forma. Miss Jursuf, estão me chamando. Por favor, mantenha o canal aberto. Voltarei a fazer contato. Final.

— Final — confirmou Arlinda.Em seguida ativou um canal de telecomunicação à prova de escuta e providenciou

para que um pequeno grupo voasse para o porto espacial CTT-Epsilon acompanhado de um robô de combate para receber o acônida. Não precisavam se preocupar com certos detalhes. A Oronte não era a primeira espaçonave que tentava pousar em um dos doze portos espaciais que cercavam o transmissor central.

E não seria a última...

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3

Bossa Cova e as duas crianças procuraram duas horas antes de encontrar outro lugar para ficar.

Encontravam-se constantemente com grupos de pessoas que arrombavam armazéns para saqueá-los. As lojas de Trade City já estavam vazias. Às vezes chegavam à violência física para disputar as presas. Entre os saqueadores havia membros de todos os povos galácticos que costumavam fazer negócios com Olimpo.

Havia incêndios em vários lugares. A maior parte dos edifícios fora construída com materiais à prova de fogo e por isso os incêndios não se propagavam muito. Apagavam-se quando não encontravam mais nenhum material combustível.

Bossa escolheu o andar superior de um edifício de escritórios para passar a noite. Havia máquinas e móveis de escritório de todas as espécies espalhados na rua à frente do edifício. Os carregadores os haviam levado para fora do prédio e jogado fora porque não serviam para nada. Bossa acreditava que já não havia ninguém que se interessasse por um edifício no qual não havia alimentos.

Naturalmente os elevadores antigravitacionais não funcionavam mais. Era bem verdade que Bossa e as duas crianças nem se arriscariam a entrar nos tubos misteriosos. Usaram a escada de emergência do poço principal para subir no meio da escuridão. Todas as portas estavam abertas. Na maior parte tinham sido arrebentadas. Felizmente a maioria das janelas de glassite também fora quebrada, senão as três pessoas que não desconfiavam de nada morreriam sufocadas porque as máquinas de climatização e ventilação não funcionavam mais.

Numa pequena sala encontraram um sofá cujo forro tinha sido cortado, mas que apesar disso servia para deitar. Bossa Cova deixou que as crianças dormissem nele. Ele mesmo foi para a janela quebrada pela metade e olhou por cima do deserto urbano, para o sul, onde havia um castelo mágico no meio da escuridão.

Estava muito cansado, mas não podia dormir. Pensamentos e fragmentos de ideias atropelavam-se em sua cabeça e ele não sabia o que fazer com eles. Deviam ser lembranças de sonhos antigos, porque giravam em torno de coisas que não tinham nenhuma ligação com o mundo real.

Bossa estreitou os olhos ao ver um fogo branco ofuscante bem alto no céu, mergulhando o deserto urbano em sua luz.

Mais um dragão cuspindo fogo!O dragão sobrevoou Traci na direção sul. Bossa Cova começou a sentir-se nervoso.

Tomara que o dragão não roube meu castelo encantado! Bossa lembrou-se de Doreen e Aine. Bem que gostaria de estar perto delas.

Bossa resolveu que, por enquanto, não sairia mais do castelo encantado. Lá tinham tudo de que precisavam e não estavam ao alcance dos demônios com suas armadilhas nem dos espíritos maus. Io e Sarkh também estariam em segurança.

De repente foi dominado pelo cansaço. Arrastou-se até a porta, deitou á frente dela e adormeceu no mesmo instante.

Quando acordou já era dia. Levantou e viu as crianças paradas junto à janela. Viraram-se quando ouviram o ruído de seus movimentos.

— Bom dia, tio Bossa! — disse Io com um sorriso confiante.

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Sarkh também sorriu. A desconfiança contra Bossa desaparecera depois da luta com os dois homens.

Bossa espreguiçou-se.— Espero que tenham dormido bem. Temos uma caminhada longa pela frente.

Gostaria de levá-los para meu castelo encantado.— Um castelo encantado de verdade? — perguntou Sarkh em tom exaltado. —

Você é um mágico, Bossa?Bossa sacudiu a cabeça sorrindo.— Não. Lá só existem alguns objetos encantados e algumas armadilhas montadas

por demônios. Mas se a gente se cuida não acontece nada. Vive-se bem por lá. É um lugar aquecido, há muitos mantimentos e água em abundância. Doreen e Aine certamente terão muito prazer em conhecê-los.

— Doreen e Aine — disse Io com sua voz aguda de criança. — São crianças como nós, tio Bossa?

Bossa riu.— Não. São duas mulheres jovens. São muito gentis.— Que bom! — exclamou Io e bateu palmas. — Vamos ter duas mamães, Sarkh.O menino olhou para ela com uma expressão sombria.— Onde estão seus pais? — perguntou Bossa.— Morreram — respondeu Sarkh. — Foram mortos pelos homens de Elandos

porque... O menino interrompeu-se e disse: — Prefiro não falar sobre isto, Bossa.Bossa colocou o braço sobre seus ombros.— Está bem. Vamos comer alguma coisa e depois iremos embora daqui. Ficarei

satisfeito quando tiver saído de Traci.Pelo meio-dia avistaram a grande praça na qual fora erguido o castelo encantado de

Bossa. O homem puxou as crianças para trás de um talude, quando viu uma coluna de homens marchando pela estrada, na direção norte. Perguntou-se de onde podiam ter vindo. Nunca se encontrara com eles.

Os três ficaram escondidos até que a coluna passasse. Depois seguiram seu caminho.

Depois de algum tempo Bossa Cova apontou seu castelo encantado, que ficava perto de inúmeros castelos destruídos ou abandonados.

— Eis aí... — principiou, mas interrompeu-se de repente.— Que houve, Bossa? — perguntou Sarkh. Bossa franziu a testa.— Vejo um castelo encantado que ontem não estava lá. Bem perto do meu. Hum!— Se é um castelo encantado, é porque um mágico o colocou lá, tio Bossa — disse

a menina. — Como brilha! Mas seu castelo encantado é muito maior e mais bonito, tio Bossa.

Bossa não ouvia mais o que ela dizia. Refletia sobre a ligação que podia haver entre o dragão que vira cuspindo fogo na noite anterior e o novo castelo encantado. Não era a primeira vez que via um milagre igual a este, depois de ter visto ou ouvido um dragão cuspindo fogo. Quem sabe se os mágicos ou as bruxas não cavalgavam esses seres temíveis para criar castelos mágicos?

Bossa ficou satisfeito quando finalmente se viram diante do portão de seu castelo mágico. As crianças não tiraram os olhos dele quando tirou o bastão mágico, murmurou uma fórmula de exorcização e encostou o bastão ao metal frio do portão. Arregalaram os olhos de espanto quando viram o portão subir.

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— Entrem! Depressa! — disse Bossa e empurrou as crianças para dentro dum recinto iluminado.

Quando tinham subido mais ou menos a metade da passarela, Io não aguentou mais. Bossa colocou-a sobre os ombros. Era tão leve que mal sentia seu peso. Sarkh continuou valente, mas via-se por seu rosto que cada passo lhe exigia um grande esforço.

Quando tinham percorrido três quartos do caminho, Bossa viu que Sarkh precisava de uma pausa. Ninguém podia deitar na escada estreita. Por isso levou-o a uma sala que ficava à direita dela.

A sala era mais escura que os aposentos de Bossa. Era inundada por uma luz avermelhada mortiça que saía de fontes de luz quadradas embutidas nas paredes.

Sarkh estremeceu.— Isto me mete medo.— Não tenho medo — respondeu Io. — Tio Bossa está conosco.Bossa Cova deu uma risada áspera e colocou a menina no chão.— Deitem para descansar. Ficaremos aqui algum tempo.— Não acha que deveríamos fazer um reconhecimento, Bossa? — perguntou o

menino.Bossa sacudiu a cabeça e sentou com as costas apoiadas na parede.— Num castelo encantado é melhor deixar a curiosidade de lado, Sarkh. Não se

esqueçam de uma coisa. Nunca passem por uma porta se não souberem o que há atrás dela. E agora tratem de descansar.

As crianças logo adormeceram. Bossa sorriu. Sem perceber resvalou para um mundo de sonhos. Nesse mundo atravessava a cavalo uma estepe sem-fim. Os cascos produziam um ruído monótono, pássaros descreviam círculos em cima dele e o disco solar cor de sangue quase tocava a linha do horizonte.

De repente viu outro cavaleiro ao longe, vindo em sua direção. Observou-o atentamente. Quando estava a algumas centenas de metros, viu que usava uma armadura cinza-chumbo e perneiras revestidas de placas de metal. Havia uma longa espada pendurada junto a seu corpo e a cabeça estava coberta por um capacete que terminava em ponta com uma faixa larga sobre o nariz, dois apoios de mandíbulas e um par de chifres branco-amarelados dobrados para cima.

Quando os dois estavam a uns vinte metros um do outro, eles puxaram as rédeas dos cavalos.

O homem de armadura ergueu a mão.— Receba os cumprimentos do cavaleiro cinzento, Bossa Cova!Sua voz ressoou pela estepe. Bossa também levantou a mão.— Receba os cumprimentos de Bossa Cova, cavaleiro cinzento! Como sabe meu

nome?O cavaleiro cinzento riu. Foi uma risada oca, parecida com o ribombar do trovão.— Já me falaram de você e das suas façanhas, Bossa Cova. Saí de Januswharam

para vir ao seu encontro e perguntar se quer juntar-se a mim. O pelotão de ferro está à sua espera. Veja...!

O cavaleiro levantou o punho blindado e apontou para o sul.Bossa olhou na direção indicada. Viu um exército gigantesco de corpos metálicos

brilhantes e dali a pouco ouviu as batidas de inúmeros pés.Neste instante acordou.Bossa Cova levou algum tempo para livrar-se da miragem. Estava confuso, mas de

forma alguma deprimido. Pelo contrário. A esperança enchia seu subconsciente.

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Bossa bocejou ruidosamente, acordando Sarkh.— Vamos continuar? — perguntou o menino.Bossa acenou com a cabeça, foi para perto de Io, que dormia, e colocou-a nos

braços robustos.— Sim, vamos em frente, Sarkh.

* * *

Quando acordou, Shar ter Troyonas ficou algum tempo sem saber onde estava. Sentou e olhou em volta.

De repente lembrou-se. Saltou do sofá e correu para o centro de controle. Mas o pouco tempo de sono quase não representara nenhum descanso. Manchas negras dançavam à frente dos olhos de Shar e ele cambaleava; esbarrou numa mesa e segurou-se nela.

Lisaweta Nurjewa veio da sala ao lado. Correu para perto de Shar e apoiou-o.— Deite, Shar! — disse. — O senhor ainda está completamente exausto.— Nada disso, Lisa! Como vai a nave acônida?— Já pousou. O comandante vem para cá.— Café! — disse Shar. — Arranje um café — um café preto bem forte. E alguma

coisa para comer. Onde está Arlinda?— Está enxotando alguns superiores que querem desmontar a central energética de

nosso conjunto. Não se preocupe. Ela vai dar um jeito. Jussuf e Javas estão com ela.— Malditos superiores! — Shar entrou cambaleando no centro de controle,

enquanto Lisaweta mexia na máquina de café. Shar ter Troyonas ativou alguns monitores para ter uma ideia ; da situação reinante

no transmissor de containers. Parecia que as colunas energéticas vermelho-pálidas do terminal de recepção e expedição, com cinquenta metros de diâmetro e seiscentos de altura, permaneciam estáveis. Mas o carregamento causava problemas. Os aparelhos de descarga não estavam funcionando, já que o transporte vindo do Sistema Solar fora interrompido para não perturbar a operação de resgate de Roi Danton. Vários robôs-trabalhadores e algumas pessoas mentalmente estáveis cuidavam das gigantescas empilhadeiras e das vias energéticas. Mas o fluxo de containers era constantemente interrompido.

Shar cerrou fortemente os lábios quando viu dezoito containers colidirem por causa de uma falha no sistema de sucção e nos projetores de pressão.

Lisaweta, que estava trazendo o café, parou ofegante. Teria deixado cair a bandeja, se Shar não a tivesse segurado.

— Por Júpiter, que houve com a senhorita? — perguntou. — Isso acontece algumas vezes por dia.

Shar encheu a xícara e tomou um pequeno gole. Lisaweta apoiou-se no console em curva.

— É por causa de Roi Danton. O filho de Rhodan deve vir pelo transmissor, dentro de um container. Foi o que Deighton informou.

— O quê...? — gritou Shar e por pouco não deixou cair a xícara. — E só fico sabendo disso agora?

Shar fez uma ligação de telecomunicador com a equipe de apoio e deu ordem para que os recipientes vazios vindos do Sol não passassem pelos campos de descontaminação. Deviam ser revistados à procura de um eventual passageiro.

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Com isto a equipe teve a atenção distraída e os containers seguintes destinados ao Sistema Solar não levaram alimentos. Saíram vazios ou com uma carga de sucata. Durante quinze minutos reinou uma confusão incrível. Depois disso a situação voltou ao normal. O chefe da equipe informou pelo telecomunicador que não havia ninguém nos containers. Estavam completamente vazios.

Shar enxugou o suor da testa e tomou seu café. Enquanto isso Lisaweta lhe comunicou o que tinha acontecido durante a pequena pausa que passara dormindo. Estava terminando quando chegaram Arlinda e o acônida.

Vatrim de Akailos apertou a direita que Shar lhe ofereceu e sacudiu-a com força. Parecia relativamente descansado.

— Fico satisfeito por estar em companhia de gente sensata, Troyonas — disse. — Que tipo de pessoas são estas que vocês chamam de superiores?

— Vatrim ajudou-me a expulsar os superiores da central energética — informou Arlinda. — Este acônida é um cara da pesada.

Shar encarou Arlinda com uma expressão contrariada. Não gostava que ela usasse constantemente expressões de uma época passada da humanidade; e gostou muito menos ainda que ela se entusiasmasse pelo acônida.

Troyonas pigarreou.Também fico satisfeito em poder acolher em nosso meio mais um homem estável,

Vatrim. Estes superiores são um presente de Satanás. De certa forma representam um novo tipo humano. Por isso são conhecidos como Homo superior ou simplesmente superior. Suas faculdades mentais são muito superiores à média, mas o fato é que são loucos.

— Sentem-se infinitamente superiores à espécie do Homo sapiens — observou Lisaweta. — Em sua arrogância acreditam que têm de privar-nos de nossos perigosos brinquedos — que são os recursos da técnica moderna — para que não possamos fazer estragos. Querem que regridamos a uma vida agrária, em contato com a natureza, enquanto eles mesmos se dedicam à meditação e às belas artes.

— Isso é uma loucura! — exclamou Vatrim apavorado. — Deve ser um efeito da deterioração mental.

— De forma alguma — contestou Shar. — Os superiores não são atingidos pelo processo. Já existiam antes da catástrofe, mas só depois dela se manifestaram abertamente porque acreditavam que já estavam com o jogo ganho. Calcula-se que existem alguns milhões deles em Olimpo e também na Terra, bem como provavelmente em muitos outros planetas habitados por seres humanos.

— E podem agir à vontade, porque quase todos os seres humanos foram atingidos pela deterioração mental — disse Vatrim de Akailos. — Em minha opinião só se pode fazer uma coisa: corrigir quanto antes este capricho da natureza.

— Não! — objetou Arlinda. — Nem devemos pensar numa ação de extermínio, mesmo que Shar pense mais ou menos da mesma forma que o senhor.

Shar sorriu.— Quando disse isto estava superexcitado e com os nervos á flor da pele. Mas

agora já não penso assim. Temos de colaborar com os superiores, temos de levá-los a ajudar os homens indefesos e mentalmente deteriorados a organizar o abastecimento e tomar providência contra os saques e a mortandade.

Vatrim de Akailos suspirou.— Vocês terranos sempre foram uns sentimentais, Troyonas. Vamos encarar a

realidade. A deterioração mental das massas é um fato que não pode ser mudado, mas o

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fato de que em toda parte existem pessoas imunes à influência prejudicial, dá-nos a possibilidade de criar uma estrutura elitista na galáxia.

— Pare com esse discurso! — disse Arlinda em tom enérgico. — O simples fato de termos ficado imunes ao processo de deterioração mental não nos transforma numa elite. Além disso não devemos esquecer que os seres que provocaram a catástrofe certamente tiveram seus motivos para isso. Talvez quisessem escravizar as inteligências deterioradas ou fixar-se nos mundos habitados. Tenho certeza de que a deterioração mental só foi o começo.

— Não vamos discutir — disse Shar. — Vatrim de Akailos, o senhor poderá ser-nos muito útil, mas quem decide o que será feito em Olimpo são os terranos. Fui bem claro?

— Olimpo não é meu mundo, Troyonas. Ficarei fora da política. Onde posso tomar um banho e fazer a barba?

— Em lugar algum! — respondeu Shar em tom resoluto. — O senhor está em melhores condições que eu. Logo, deve entrar em ação imediatamente. Arlinda, instrua-o sobre sua tarefa. Acho que por enquanto poderá ser destacado para o grupo de vigilância.

Shar passou a mão pela testa.— Outra coisa. Como vai sua tripulação, Vatrim?— Acho que já devem ter acordado. Não poderão fazer nenhum estrago. Tomei

minhas providências. A nave está praticamente morta. Abri todas as escotilhas e eclusas para que possam sair dela.

Shar ter Troyonas acenou com a cabeça. Olhou para o acônida enquanto ele era conduzido para fora por Arlinda. Para seu gosto ele cedera depressa demais. Deviam ficar de olho nele, para que não caísse na tentação de querer assumir o poder em Olimpo.

Shar acabou de tomar seu café e resolveu ir à sala de rádio para saber as novidades. Mas não teve tempo. O homem que montava guarda no grande distribuidor de energia do transmissor de containers informou que um grupo de aproximadamente cem superiores tentava entrar na cúpula.

Shar fez uma ligação de telecomunicador. Requisitou seis homens e dez robôs para o setor ameaçado e saiu correndo para ver se alcançava Arlinda e Vatrim.

Quando chegou perto deles, informou-os ligeiramente sobre a ação mais recente dos superiores.

— Vamos para lá — disse.Quando o planador em que viajavam chegou perto da cúpula do distribuidor

principal, os superiores já tinham arrombado o portão. Estavam equipados com ferramentas especiais, com as quais podiam desmontar as instalações energéticas.

Os seis homens e dez robôs formavam um cordão que tentava afastar os superiores. Só conseguiram em parte. Nos lugares em que atuavam os superiores não resistiam mais que alguns minutos, mas eles sempre voltavam a reagrupar-se para investir contra o portão.

Vatrim de Akailos fungou zangado. Precipitou-se no meio do conflito e distribuiu pancadas. Shar não perdeu tempo. Seguiu seu exemplo, no que logo foi acompanhado pelos outros.

Depois de algum tempo teve-se a impressão de que o método estava dando certo. Os superiores sairiam correndo assim que alguém viesse em sua direção. Mas de repente soou a sereia de alarme do distribuidor de energia. Alguém devia ter danificado o revestimento da cúpula.

— Os robôs ficam aqui para bloquear a entrada, os outros me acompanham! — gritou Shar.

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Entrou na cúpula passando pelo portão, e correu entre gigantescos blocos conversores. Bem acima dele brilhavam, em meio a potentes campos de força, as condensações de energia que garantiam um fluxo constante de força. Mas só se ouvia um rugido surdo. Era como se houvesse uma forte ressaca por perto.

Shar ter Troyonas viu os superiores quando tinha atravessado dois terços do pavilhão. Entravam por um buraco queimado no revestimento da cúpula e começaram imediatamente a desmontar os aparelhos que não estavam recebendo energia.

Shar levantou a arma energética e atirou por cima das cabeças dos intrusos. O raio energético abriu uma cratera na parede de terconite e derramou pingos de metal derretido nos superiores que estavam por perto.

Os que foram atingidos gritaram apavorados e recuaram. Mas parte dos superiores enfrentou Shar e seus companheiros. Entre eles Troyonas reconheceu o chefe dos superiores que há muito tempo espalhavam a insegurança na área em torno do transmissor de containers. Rocus Ypteron também estava armado.

— Ypteron — disse Shar, fazendo um grande esforço para controlar-se. — Gostaria que desse ordem para que seu pessoal se retirasse. Agora. Depois poderemos discutir nossos pontos de vista.

Rocus Ypteron exibiu um sorriso arrogante.— Mr. Troyonas, não tenho o menor interesse em conhecer o ponto de vista de um

ser infinitamente inferior. Com sua inteligência pouco desenvolvida o senhor nunca será capaz de compreender que se defronta com inteligências superiores, que são as únicas que poderão trazer a paz à galáxia.

Shar estendeu o braço para deter o acônida que queria investir contra Ypteron.— É mesmo? Como acha que conseguirá pacificar a galáxia, Ypteron?— Por que quer ouvir essas bobagens? — perguntou Vatrim de Akailos em tom

zangado. — Se estes caras não quiserem nos ouvir, atiraremos.Ypteron dirigiu-se aos companheiros e gritou:— Vocês acabam de ouvir mais uma vez a voz do homem primitivo. Seus

argumentos são a violência e a destruição. Mr. Troyonas, saia do nosso caminho! O Homo superior cuidará com um carinho e uma bondade paternal das criaturas que se encontram num nível de evolução do qual ele mesmo saiu.

Shar ter Troyonas mordeu o lábio. Ficou se perguntando que argumentos usaria contra essa arrogância sem limite. Além disso Vatrim fornecera novos argumentos aos superiores com sua atitude descontrolada. Ypteron era um homem perigoso; provavelmente mais perigoso que os outros superiores.

— Podemos nos defender do senhor e de seu pessoal sem matá-los — explicou Shar. — Basta, por exemplo, usar as armas paralisantes. Dou-lhe um minuto. Quem depois disso ainda se encontrar perto do distribuidor de energia será paralisado.

Um brilho traiçoeiro surgiu nos olhos de Ypteron. Shar percebeu que ele iria atirar nele, quando sua própria arma estava guardada no cinto.

De repente Ypteron baixou a arma. Seu rosto mudou de cor. Olhou para alguma coisa que estava atrás de Shar.

Shar não acreditou no que viram seus olhos.Roi Danton aproximou-se vindo dos fundos do pavilhão. Era acompanhado por

Eucal Rorros e Jussuf Calligan. Usava traje de combate pesado e estava com o capacete jogado para trás.

— Senhor... — disse Shar.Roi fez um sinal para que ele se calasse.

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— Mr. Rorros já fez um relato da situação. Quer dizer que são estes os superiores de Olimpo.

— O filho do déspota! — soou um grito vindo da multidão de superiores.Roi Danton fez uma mesura.— Eu deveria sentir-me lisonjeado por ser confundido como filho de um de seus

chefes — disse em tom sarcástico. — Acontece que nunca gostei de déspotas. Pelo que sei os senhores querem que o Homo sapiens volte ao seu torrão, trabalhando com cavalos, arados manuais, montes de esterco e outras imundícies.

— Queremos evitar que o Homo sapiens se mate com seus brinquedos técnicos! — gritou Ypteron. — Perto de nós vocês são umas crianças, incapazes de construir uma ordem verdadeiramente humana.

Roi cruzou os braços sobre o peito.— A expressão “verdadeiramente humana” é típica dos demagogos, caro super-

homem. Uma coisa é humana ou não é, mas nunca verdadeiramente, realmente ou falsamente humana. Não queremos sua ordem paradisíaca. Deixem-nos em paz e desapareçam daqui. Se de fato querem ajudar a humanidade, cuidem dos mentalmente deteriorados, organizem uma administração e promovam a distribuição de alimentos, tratem de reativar as usinas geradoras da cidade para que possa ser produzida alguma coisa.

Roi chegou perto de Ypteron.— O senhor deve ser o chefe deste grupo. É um pacifista. Estou certo?— Somos todos pacifistas — respondeu Ypteron a contragosto.— Muito bem. Mas se é assim não compreendo por que fica com a arma apontada

para mim.Os olhos de Ypteron brilharam de raiva.— Morra, descendente dum cacique bárbaro! — gritou e levantou a arma.Roi Danton derrubou-a de sua mão. Em seguida bateu com o punho cerrado no

ventre, na têmpora e no queixo do superior. Rocus Ypteron caiu ao chão e escorregou um pedaço antes de ficar deitado, imóvel.

A raiva de Roi desapareceu tão depressa como tinha começado. Os outros superiores quiseram fugir, mas Roi os deteve dizendo algumas palavras.

— O fato de seu chefe ter tentado assassinar-me deveria ter-lhes mostrado que sua posição é muito frágil — disse em tom calmo. — Sei que estão convencidos de que fazem o que é certo. Nós estamos convencidos do contrário. Peço-lhes encarecidamente que deixem de lado essa divergência e nos ajudem a pôr pelo menos um pouco de ordem nos caos reinante em todos os lugares de Olimpo, principalmente em Trade City.

Um homem de estatura baixa e testa alta, calvo e com os dedos finos, separou-se dos superiores. Olhou firmemente para Roi Danton e disse:

— Meu nome é Júpiter Koslow, Mr. Danton. Confesso que o comportamento de Ypteron me deixou chocado. Expulsamo-lo de nossas fileiras; para isto não são necessárias palavras. Ele não pertence á espécie Homo superior.

— Mas nem por isso pensamos em juntar-nos ao senhor. Nossa gente ajudará onde puder, mas não permitirá que as usinas atômicas e outras instalações perigosas sejam reativadas.

Roi suspirou.— Neste caso milhões de seres humanos morrerão de fome, Koslow, e um número

ainda maior sucumbirá às epidemias que sempre acompanham a falta de alimentos. Serei

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bem claro, Koslow. Falarei sem rodeios. Alguém que permite uma coisa destas faz-se culpado dum assassinato em massa.

— Não matamos ninguém, Mr. Danton.— Matam, sim. Matam com a mesma eficiência como quem lança bombas atômicas

nas cidades de um planeta. Acham mesmo que concordarei com isso omitindo-me?Júpiter Koslow hesitou.— Neste momento o telecomunicador de Shar deu o sinal de chamada. Shar ergueu

o aparelho que trazia no pulso, disse algumas palavras e ficou na escuta.— Iremos imediatamente — disse finalmente. Em seguida dirigiu-se a Roi:— Senhor, nosso centro de controle é atacado por centenas de mentalmente

deteriorados. Mataram duas pessoas e estão entrando no pavimento térreo. Temos de ajudá-los. — Shar olhou para os superiores. — Mas se sairmos daqui esse pessoal desmontará o distribuidor de energia. De qualquer maneira não podemos ficar.

As últimas palavras foram pronunciadas em tom de desespero.— Não precisa ficar aqui, Mr. Troyonas — disse Koslow em tom solene. — Iremos

com o senhor para ajudá-lo a expulsar os mentalmente deteriorados.Roi Danton aproximou-se do superior e apertou-lhe a mão em silêncio. Depois disso

os dois saíram correndo à frente dos companheiros, em direção ao planador que estava à sua espera...

* * *

Depois de dar banho e colocar na cama as duas crianças, Doreen e Aine sentaram perto de Bossa Cova e pediram que ele lhe contasse o que tinha acontecido em Traci.

— É uma coisa horrível — concluiu Bossa ao concluir seu relato. — As pessoas matam-se umas às outras, as casas estão frias e escuras e há cadáveres espalhados pelas ruas.

As moças estremeceram.— Não saia mais de perto de nós, Bossa — pediu Aine e chegou mais perto dele. —

Fique aqui para sempre. Você promete?Bossa acariciou sua cabeça.— Não se preocupe. Não existe mais nada que seja capaz de levar-me para Traci ou

qualquer outro lugar. Ficarei em nosso castelo encantado até que a morte me leve.— Ainda falta muito para isso — disse Doreen. Bossa levantou-se e tirou as vestes sujas.— Vão dormir, vocês duas. Vou tomar um banho. Estou tão cansado que prefiro

não comer.As moças foram para o quarto. Bossa Cova tomou um banho prolongado, foi para

baixo da ducha de ar quente e dirigiu-se ao quarto.Quando acordou, Doreen e Aine já tinham se levantado e preparado o café.— Não querem chamar as crianças? — perguntou Bossa.— Eu vou — disse Aine.— Dormi tanto! — disse Bossa e espreguiçou-se. — E estou com uma fome!Doreen empurrou uma conserva de carne para perto dele e colocou sobre a mesa

algumas fatias de pão enlatado.Como o conteúdo da conserva de carne se aquecia automaticamente assim que

alguém abrisse a tampa, Bossa pôde deleitar-se com uma refeição quente.Mal acabara de comer, quando Aine voltou, levando Io pela mão.

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— Não encontrei o menino, Bossa — disse. Bossa virou-se abruptamente e encarou Io.— Onde está seu irmão, Io?— Não sei, tio Bossa — respondeu a criança em tom deprimido. — Quando acordei

não estava lá.— Pelos demônios da luz fria! — exclamava Bossa levantando-se. — Esse

moleque! — Bossa contemplou sua refeição. — Isto tem de ficar para depois.— Não quer acabar de comer? — perguntou Aine. Bossa sacudiu a cabeça.— O castelo encantado está cheio de armadilhas. Quem sabe o que este menino não

aprontou na sua ignorância...Bossa enfiou, às pressas, o sobretudo, pegou o machado e o escudo e saiu à procura

de Sarkh. Como sempre, murmurou uma fórmula de exorcização quando uma porta se abriu automaticamente à sua frente. Saltou para o corredor.

No mesmo instante alguém lhe puxou as pernas. Cova caiu de costas e percebeu apavorado que uma força estranha o carregava. Tentou levantar, mas suas pernas sempre eram puxadas. Bossa passou pela entrada da sala em que estavam escondidos os demônios da astúcia. Brandiu desesperadamente o machado, mas os fantasmas com os quais lutou mostraram-se invulneráveis.

Finalmente conseguiu ficar de pé. Virou-se e tentou voltar pelo trecho que percorrera involuntariamente. Mas por mais que corresse, não avançava um passo.

De repente viu uma luz acender-se na parede à sua esquerda. Pensou que lá encontraria aquele que o maltratava. Saltou de machado em punho, tropeçou e bateu na parede.

Levantou-se imediatamente e quis precipitar-se de novo sobre aquele que acreditava ser seu inimigo. De repente deteve-se. Arregalou os olhos.

Podia ficar de verdade, já não era arrastado. Viu o chão mover-se mais à frente. Do outro lado do corredor o chão se movia em sentido contrário. Mas também lá havia uma faixa de cerca de dois metros de largura que ficava parada.

Um sorriso espalhou-se pelo rosto de Bossa. Finalmente compreendera. Fez um sinal para a luz brilhante contra a qual investira ainda há pouco numa raiva cega.

— Obrigado, duende amável! — disse. — Obrigado por ter-me tirado da fita enfeitiçada e colocado em chão firme.

O duende não respondeu, mas Bossa não ficou nem um pouco admirado. Os duendes raramente falavam com os humanos. Bossa refletiu se devia perguntar ao duende onde estava o menino, mas preferiu não fazê-lo para não deixar contrariado o ser tão prestativo.

Neste momento levou outro susto.Um estalo forte rompeu a escuridão e uma voz clara disse:— Gostaria de saber para que serve esta chave! É estranho. Bem, vou tentar.Bossa não reconheceu logo a voz, mas dali a pouco deu-se conta de que estas

palavras certamente tinham sido proferidas por Sarkh, que devia estar bem perto.— Sarkh! — gritou. — Onde está...A palavra seguinte foi abafada por uivos e apitos estridentes. Parecia que todos os

espíritos, feiticeiros e demônios do castelo se tinham juntado para assustá-lo.Quem sabe se não uivaram de raiva, porque o menino quebrara um tabu?De repente os uivos e apitos pararam. Uma voz — mais uma vez era a voz de Sarkh

— disse:

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— Que bobagem! Num castelo mágico deve ser possível fazer magias de verdade. Não gostei nem um pouco da música. — Ei, por que está sussurrando perto de mim, sua bruxa velha? Espere que eu lhe corto o nariz torto.

Bossa Cova gemeu. Estava desesperado. O que estava fazendo o moleque? Onde se metera?

— Um momento! — murmurou Bossa. — Uma bruxa sussurrando? Pelos demônios das trevas! Ele está metido na sala onde moram os demônios da perfídia.

Bossa saiu decidido para o que desse e viesse. Estava com medo, mas não se humilharia diante de um menino. Se Sarkh podia fazer uma coisa, ele também podia.

Quando chegou perto da sala da perfídia, hesitou. Viu uma luz vermelha mortiça filtrando por uma abertura, quando lá costumava estar escuro, com exceção de alguns pontinhos luminosos.

— Ajude-me, cavaleiro cinzento! — cochichou e entrou na sala enorme.A impressão que teve ao ver as instalações da sala deixou-o confuso. Viu inúmeras

mesas de formas estranhas, nas quais piscavam luzes esquisitas — e através de um buraco na parede até pôde ver os edifícios de Traci. Mas não descobriu nenhum sinal de Sarkh.

De repente ouviu um zumbido atrás das costas. Estremeceu e virou-se abruptamente, de machado em punho. Mas não havia ninguém.

Em compensação, uma voz que não parecia humana disse:— O triângulo náutico é uma esfera de nove cantos projetada no círculo interno de

uma calota. A diferença entre uma bomba atômica e uma luz de gás é que a grama é mais verde. O nada começa onde os problemas logísticos de uma granja de galinhas são segregados são segregados são segregados grrrr.

— Continue, bruxa — disse a voz de Sarkh vinda de uma abertura na parede. — Ei! Você está dormindo?

Os pelos da nuca de Bossa se arrepiaram, mas ele se aproximou lentamente da abertura. Viu uma sala semicircular, fracamente iluminada, cujas paredes estavam cheias de fogos mágicos. O menino estava de pé à frente de uma destas paredes, batendo sem parar com o punho em uma das mesas luminosas enfeitiçadas.

— Que está fazendo? — perguntou Bossa.Sarkh virou-se e, de repente, começou a tremer que nem vara verde. Bossa correu

para junto dele, pegou-o nos braços e dirigiu-lhe palavras tranquilizadoras. Já não sentia medo.

— A bruxa não quer falar mais comigo — disse. — Contou tantas histórias bonitas. Que vem a ser mesmo uma bomba de Árcon?

— Só pode ser uma coisa que não faz parte do nosso mundo, Sarkh. Vamos embora.— As estrelas brilham no fogo das nuvens escuras — voltou a falar a voz não-

humana. Parecia vir de todos os lados ao mesmo tempo. — Cálculos de rota irreais. Pede-se ao comandante que mantenha presa mais uma carga de planetas, pois o que três vezes é logaritmo fora das espaçonaves fechadas. Solicito entrega na estrutura terrestre meio reator. Fechar trajes espaciais, a constante gravitacional...

A voz parou de repente. Dali a pouco ouviu-se uma música estranha.— Que coisa bonita, não é? — perguntou Sarkh. Seus olhos brilhavam de tão entusiasmado que se sentia.— Sons de sereia! — murmurou Bossa Cova. — São ruídos de sereia, rapaz! —

gritou de repente. — Vamos embora antes que fiquemos presos ao encanto destes ruídos.

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Bossa puxou o menino, que tentava resistir. Atravessaram a sala grande, e pararam na faixa imóvel do corredor.

— Cuidado para não pisar em nenhuma faixa enfeitiçada! — alertou, enquanto apontava para os pedaços de chão que se deslocavam em sentido contrário. — Elas o derrubarão e o carregarão. Só aqui e bem do outro lado estaremos em segurança. — Bossa cuspiu na faixa móvel e acompanhou a saliva com os olhos. — Vê como é rápido? Sarkh sorriu.

— Isso nem é tão ruim, Bossa. Usando as faixas enfeitiçadas não se precisa correr. Olhe!

Antes que Bossa pudesse impedi-lo, o menino saltou para a faixa mais próxima e foi carregado em alta velocidade. No início balançou um pouco, mas logo ficou firmemente plantado sobre as pedras. Depois que tinha percorrido dez metros saltou para a faixa lateral imóvel.

— Viu, Bossa? Que coisa boa! Bossa Cova coçou a cabeça.— Onde já se viu transformar uma faixa enfeitiçada em brinquedo — murmurou em

tom chocado. — Senti um vazio no estômago. Venha para cá já, Sarkh. E pare de fazer bobagens, senão lhe dou uma surra.

O menino parou.— Se você quiser bater em mim, salto para a fita enfeitiçada.O menino mostrou a língua e fez o que tinha dito.Bossa praguejou e saltou atrás do menino. Balançou violentamente para a frente e

para trás antes de recuperar o equilíbrio, mas depois de algum tempo essa forma de locomoção que não cansava começou a lhe dar prazer. Bateu com as mãos nas coxas e ficou alegre como uma criança.

Mas quando se afastou dos lugares que conhecia, Bossa ficou preocupado. Deu ordem para que o menino saísse da faixa enfeitiçada, mas Sarkh nem pensou nisso. Bossa hesitou muito tempo antes de dar um passo na faixa deslizante. Quando viu que não sofreu nenhuma queda, seguiu adiante, devagar e com muito cuidado, até alcançar o menino.

— Não sei como faremos para voltar — disse. — O castelo mágico é muito grande. Por que não me obedeceu, Sarkh?

— Por que é tão bom. Além disso podemos voltar quando quisermos.O menino apontou para a faixa que deslizava em sentido contrário.O rosto de Bossa ficou com uma expressão radiante. De repente deixou cair o

queixo e olhou fixamente para uma abertura irregular para a qual estavam sendo levados pela faixa enfeitiçada.

Segurou o braço do menino.— A sala dos demônios da perfídia! Voltamos indo para a frente. Salte!Os dois saltaram ao mesmo tempo e voltaram para junto de Doreen, Aine e Io, para

contar suas terríveis aventuras.

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4

Shar ter Troyonas olhou para o último dos mentalmente deteriorados enquanto eles fugiam em pânico. Havia cerca de duzentos e cinquenta destas pobres criaturas deitadas no chão. Tinham sido paralisadas. Seriam colocadas em planadores e libertadas bem longe dali.

Fora uma luta dura. Os mentalmente deteriorados voltavam ao ataque com uma incrível obstinação. Alguns chegaram a avançar até o setor de irradiação do transmissor de containers, sendo alcançados pelo campo de desmaterialização.

Shar sorriu ao ver Júpiter Koslow vindo em sua direção. Os superiores tinham feito um bom trabalho. Não quiseram aceitar as armas paralisantes, mas formaram um cordão e evitaram a penetração dos mentalmente deteriorados em alguns lugares, embora isso lhes tivesse rendido muitos ferimentos.

— Fico-lhe muito grato, Koslow — disse.Quis apertar a mão do Homo superior, mas sofreu outro ataque de fraqueza que o

fez balançar. Koslow apoiou-o.— Mr. Troyonas está completamente exausto — disse a Roi Danton, que se

aproximava do outro lado. O filho de Rhodan apresentava uma ferida perfurante na testa. A ferida fora fechada por Arlinda Jursuf, que aspergira plasma biológico sobre ela.

— Não é por menos — disse Roi. — Aqui todos estão mais ou menos na mesma situação. Fiquei sabendo que só conseguem ficar de pé tomando estimulantes.

Shar recuperou-se, sacudiu a cabeça e apalpou o bolso de seu traje de combate leve, mas não conseguiu enfiá-la.

— Ajude-me, por favor! — cochichou. — Estimulante ara verde. Cataplasma de injeção. — Shar pôs a mão na nuca. — Aqui.

Koslow não parecia disposto a ajudá-lo. O superior cerrou os lábios ao ver Roi Danton tirar uma caixa quase vazia com cataplasmas de injeção verdes dos aras e colocar um na nuca de Shar.

Dali a trinta segundos o corpo cansado de Shar empertigou-se, os olhos emitiram um brilho de febre e as faces se coloriram ligeiramente.

— Que pretende fazer, Koslow? — perguntou com a voz clara.O Homo superior suspirou.— É claro que o senhor ainda não percebeu que a humanidade tem de encontrar o

caminho de volta para uma vida simples e pacata...— A humanidade nunca teve uma vida pacata — interveio Roi. — Nunca pôde,

porque sempre esteve sob a ameaça dos mais variados fatores ambientais. Logo, não pode voltar a uma vida pacata.

— Isso são meros jogos de palavras, Mr. Danton — retrucou Koslow. — Digamos então que pela primeira vez em sua história sangrenta a humanidade deverá levar uma vida pacata. Tem de adaptar-se ao ambiente em que vive para não ser ameaçada por ele, Mr. Danton.

— Hum! — fez Roi. — O raciocínio não deixa de ser válido. Talvez devêssemos sentar a uma mesa e discutir seriamente o assunto — depois que a situação em Olimpo se tiver normalizado um pouco e o perigo do enxame tiver sido eliminado. O senhor ouviu falar nisso, não ouviu?

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Júpiter Koslow refletiu antes de responder.— É claro que ouvimos, Mr. Danton. Evidentemente não podemos excluir a

possibilidade de que o enxame — seja lá o que for ele — só tenha causado o processo de deterioração mental para atravessar a galáxia sem envolver-se em operações bélicas...

— É mesmo! — disse Roi numa ironia mordaz. — Pois permita que eu lhe pergunte por que resolveram atravessar nossa galáxia? Por que não vão diretamente ao destino? Não, Koslow, o pior ainda está para vir. Será que diante de tudo isso o senhor acha justo deixar-nos indefesos, desmontando as instalações necessárias à nossa defesa e ao funcionamento da economia?

Júpiter Koslow olhou nos olhos de Roi e acenou lentamente com a cabeça.— Aceito sua proposta, Mr. Danton. Depois que Ypteron foi excluído de nossa

comunhão, assumi o comando de cerca de meio milhão de Homo superiores. Quanto a nós, suspenderemos todas as operações de montagem e até reativaremos as usinas e equipamentos de produção por nós paralisados. Além disso tentaremos restabelecer uma certa ordem e organizar o abastecimento de alimentos, roupas e medicamentos.

— Obrigado — disse Roi. — E os outros Homo superiores de Olimpo?— Aí temos um problema. Farei tudo que estiver ao meu alcance para levá-los a

seguirem nosso exemplo. Mas não posso garantir que serei bem-sucedido com todos os grupos.

— Ótimo. Isso já representa um bom início. Falta encontrar Anson Argyris e reativá-lo. Depois que ele recuperar o domínio do setor plasmático de seu cérebro, ele poderá ajudar-nos bastante.

— Argyris foi colocado na posição zero, senhor — objetou Shar. — Os superiores levaram-no a fazer isso precipitando-o num conflito insolúvel.

Júpiter Koslow sorriu.— Foi completamente paralisado. Aliás, fui eu que levei o grupo-tarefa ao centro de

controle secreto.— O senhor...? — Roi Danton fitou o Homo superior com uma expressão de

perplexidade. Depois respirou profundamente. — Um momento. Tenho a impressão de que já o conheço, Koslow. Antigamente não andava com o imperador?

— De fato, Mr. Danton. Era o comandante da guarda do palácio, antes de haver a catástrofe. Acho que enganar um robô não é nenhum crime.

Roi deu uma risada áspera.— O senhor conhece as leis, Koslow. De fato, enganar um robô não é nenhum

crime. Muito bem. Não guardo ressentimentos, mas gostaria que me entregasse o emissor de códigos que usou para entrar no centro de controle de Argyris.

— Por quê, Mr. Danton? O senhor deve ter um.— Mais que isso — garantiu Roi em tom zangado. — Não é por isso que o quero,

Koslow. Não desejo que o aparelho caia em mãos estranhas.Koslow suspirou.— Está certo. Farei o que pede, embora seja contra meus princípios. Acontece que o

vário-robô não serve para mais nada.Roi Danton não deu nenhuma resposta. Recebeu o emissor de códigos, guardou-o

em um dos bolsos de seu traje de combate e despediu-se de Koslow.— O senhor poderá entrar em contato comigo a qualquer momento pela estação de

rádio do centro de controle da via de containers, Koslow. Conhece as frequências, pelo que eu sei do senhor e de seus companheiros.

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Júpiter Koslow deu uma risada e foi para perto dos companheiros, que estavam reunidos, à sua espera.

Roi dirigiu-se a Troyonas.— Quanto tempo ainda pode aguentar com o ara verde? Shar hesitou um pouco, mas acabou dando de ombros e respondendo:— O senhor não pode mudar nada, senhor. Normalmente os efeitos do estimulante

duram dezoito horas. Mas como, da mesma forma que a maioria de nós, estou tomando o medicamento constantemente há várias semanas, esse tempo foi reduzido para seis horas. Tenho de tomá-lo com mais frequência.

— Até que se verifique o colapso total — respondeu Roi. — Bem, só espero que o senhor e seus companheiros possam dormir algum tempo, depois que o imperador tiver sido reativado.

— Será que um dia ele será, senhor? Roi sorriu.— Não se trata de um robô igual aos outros, Troyonas. Dou-lhe quinze minutos

para pôr em ordem as coisas em sua sala de comando. Depois pegaremos um planador e iremos ao palácio.

— Nunca vai deixá-lo em paz? — perguntou Arlinda Jursuf, que estava descendo e ouvira as últimas palavras de Roi. — Roi transformou-se numa ruína humana.

— E a senhora? — perguntou Roi.— Estou em melhores condições. Além disso Shar trabalhou muito mais que eu. É o

chefe. A propósito: faz uma semana que também tomo ara verde.Roi Danton acenou com a cabeça.— Pois é. Na Terra a maior parte dos imunes só consegue manter-se acordada por

meio de estimulantes. Atravessamos tempos difíceis. Aliás, na Terra também conseguimos fazer um acordo com o Homo superior. Meu querido papai mexeu todos os paus.

Shar ter Troyonas colocou o braço sobre os ombros de Arlinda.— Venha. Vamos informar nosso pessoal a respeito do acordo que celebramos com

os superiores de Koslow e organizar o trabalho daqui em diante.Roi Danton sorriu enquanto seguia com os olhos os dois que se iam afastando. Mas

seu sorriso logo se apagou. De repente parecia ter envelhecido muitos anos, um homem cansado que diante da catástrofe presente aguardava apavorado as próximas ações do enxame. Por enquanto ninguém sabia quais eram as intenções do enxame — nem sequer sabia o que era ele. A única coisa que se sabia era que consistia numa quantidade incrível de espaçonaves, astros e outros objetos ainda não identificados, tudo cercado por campos energéticos desconhecidos, provavelmente numa extensão de alguns anos-luz. Além disso havia os manips em forma de arraia, que voavam fora do enxame e provavelmente cuidavam da manipulação da constante gravitacional da quinta dimensão.

Era muito pouco para enfrentar o perigo com alguma possibilidade de sucesso.Roi suspirou e saiu para organizar um planador. Eucal Rorros, um antigo

especialista da USO, levou-o ao depósito de veículos.O filho de Rhodan escolheu um planador elíptico fechado com uma forte

blindagem, com um canhão narcotizante montado numa cúpula giratória.Dali a pouco Shar ter Troyonas voltou a juntar-se a ele. Os dois entraram no

planador. Roi cuidou da direção; Shar sentou à frente dos controles de tiro.Chegaram sem incidentes ao palácio imperial. Mas viram que não poderiam entrar

sem lutar. O palácio estava ocupado por milhares de saqueadores. Em toda parte as

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pessoas se comprimiam. Havia até alguns veículos voadores blindados estacionados na área em frente do palácio.

— Deve ser o bando de Myrus — disse Shar e apontou para os estranhos símbolos vermelhos pintados com tinta nos veículos versáteis. — Palong Myrus é um ertrusiano. Deve ter ficado imune ou foi pouco afetado. Organizou o maior bando nesta região. Sem dúvida quer governar o planeta.

— Não permitiremos que isso aconteça — respondeu Roi em tom zangado.O filho de Rhodan levou o planador para os fundos do palácio. Algumas trilhas

energéticas passaram rente ao veículo. Eram tiros energéticos disparados por blindados voadores. Parecia que os homens que estavam sentados atrás dos canhões sabiam lidar com as armas, mas não eram capazes de usar as complicadas miras.

— Prepare-se para um confronto violento, Troyonas — disse Roi. — Não poderemos entrar pelos portões. Logo, abalroarei o edifício com o planador para abrir uma brecha na parede.

Foram recebidos por um fogo violento de fuzis energéticos quando Roi fez o planador descer quase na vertical, para voltar à horizontal junto ao solo. Mas os tiros passaram por cima do veículo, sem causar estragos.

O planador seguiu em direção a um grupo armado. Os homens atiraram-se no chão e o planador bateu ruidosamente na muralha do palácio, deslizou pelo chão de um pavilhão, atravessou algumas colunas e finalmente foi parar numa sala que antigamente servia de sauna.

Não se via ninguém, mas isso poderia mudar bem depressa. Os homens soltaram os cintos de segurança, pegaram as armas e correram para o hall que ficava ao lado. Antes de viajar para Olimpo Roi Danton gravara na memória a planta do palácio. Por isso conduziu o grupo.

Para seu espanto constatou por meio de um detector universal que o labirinto energético que cercava o poço energético geminado pelo qual se chegava ao centro de controle do imperador não existia mais.

— Algum imune que possui conhecimentos na área esteve aqui antes de nós — murmurou. — Fechar capacetes, ligar campos defensivos, comunicar-se através dos radiocapacetes.

Estava bem na hora. A ordem mal tinha sido cumprida quando vieram tiros energéticos do fim do hall. Um grupo de mentalmente deteriorados aproximou-se correndo.

Roi e Shar usaram os paralisadores, até que se defrontaram com um homem enfiado num traje de combate leve e protegido por um campo defensivo. Devia ser um imune. Comandava outro bando de mentalmente deteriorados.

O campo defensivo entrou em colapso sob o fogo concêntrico das armas de Roi e Shar. O homem queimou-se e arrastou mais dois companheiros para a morte. Os outros entraram em pânico e fugiram.

— Só conseguimos uma pausa, Shar — disse Roi. — Temos de chegar ao transmissor secreto antes que chegue outro grupo de atacantes.

Felizmente não faltava muito para chegarem à entrada do elevador geminado. Os dois usaram os propulsores de suas mochilas para descer mais depressa. Enquanto estivessem dentro do tubo estreito ficariam praticamente indefesos contra um ataque vindo de cima ou de baixo.

Mas tiveram sorte. Chegaram sãos e salvos à estação do trem energético, entraram em um dos veículos e seguiram em direção ao transmissor, que era o único acesso ao

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centro de controle secreto de Argyris. Os restos mortais de quatro homens mortos a tiros energéticos amontoavam-se à frente da entrada do transmissor.

— Idiotas! — esbravejou Roi. — Queriam usar o transmissor sem possuir o emissor de códigos. Deviam ter imaginado que aqui existem sistemas automáticos de defesa.

O filho de Rhodan dobrou o cotovelo direito, enquanto com a mão esquerda mexia em alguns controles da larga faixa de comando que trazia no pulso. Depois entrou no transmissor. Shar ter Troyonas seguiu-o.

Mais uma vez Roi Danton recorreu à sua pulseira de comando. As colunas energéticas vermelho-pálidas acenderam-se, e no mesmo instante os dois se viram no campo de rematerialização do outro terminal.

Roi olhou atentamente em volta.— De fora não se vê nenhum sinal de que pessoas não autorizadas tenham estado

aqui.Shar esboçou um sorriso débil.— Bem, eles estavam autorizados, tanto que possuíam um emissor de códigos.— Conseguiram a autorização de maneira fraudulenta, meu caro — respondeu Roi.

— Chame-me de Roi. Combinado?— Sim, Roi.Os dois apertaram-se as mãos e seguiram adiante.Menos de um minuto depois disso estavam diante do corpo de robô despido do

imperador dos livres-mercadores. Vário 500 permaneceu imóvel.— E apenas o envoltório inútil de uma série de equipamentos inúteis — observou

Shar.Roi Danton tirou um aparelho azul brilhante com a forma de metade de uma bola de

tênis.— Acho que isso pode ser mudado — disse e aproximou-se do robô.

* * *

Ansioso, Shar viu Roi Danton comprimir a base da semi-esfera contra o corpo oval do robô. Quando retirou o aparelho, havia uma placa retangular grudada nele.

— Pois é! — disse Roi. Estava com a nuca coberta de suor. — Se não fosse meu pequeno Abre-te Sésamo, Sua Majestade teria explodido à nossa frente.

Em seguida tirou uma placa de metal de um dos bolsos externos de seu traje de combate.

— Esta foi a primeira que aprontamos, logo vem mais — murmurou. Sua voz não soava alegre, mas tensa.Roi fez a placa de metal passar pela abertura. Houve um clique ligeiro. Roi voltou a

fechar a tampa. Recuou devagar.— Vejamos se a cassete-programa é capaz de restituir a vida a nosso amigo, Shar.Os dois prenderam a respiração ao ver a cabeça de rastreamento do vário-robô

mexer-se. Uma superfície quadrada iluminou-se na pulseira de comando de Roi.— Está rastreando nossos impulsos individuais — cochichou o filho de Rhodan.De repente as saliências em ponta da cabeça de rastreamento que antigamente

controlavam os movimentos da boca da máscara começaram a mexer-se. Uma abertura minúscula formou-se entre elas.

— Identificação concluída. Os senhores foram identificados como Michael Reginald Rhodan, também conhecido por Roi Danton, e Shar ter Troyonas, diretor técnico da divisão de manutenção do transmissor de containers.

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“De acordo com a nova programação as seguintes pessoas estão autorizadas a me dar instruções: Perry Rhodan, Michael Reginald Rhodan, Reginald Bell, Julian Tifflor e Atlan. Destas pessoas só Michael Rhodan está presente.

“Estou às suas ordens, senhor.— Obrigado, Majestade — respondeu Roi radiante. — Domina seu corpo

exclusivamente por meio do sistema positrônico?— Pelo tom isso foi uma pergunta. Sim senhor. A componente plasmática de meu

cérebro foi completamente isolada. Quais são as ordens, senhor?— O senhor deve agir de acordo com sua nova programação — disse Roi. —

Precisamos de sua ajuda, para restabelecer quanto antes a paz e a ordem em Olimpo. Além disso devo informá-lo de que bandos de saqueadores ocuparam seu palácio.

— Eu sei, senhor. Meus detectores me deram esta informação. Como deu ordem para que aja de acordo com minha nova programação, peço-lhe que me dê licença por algum tempo.

— De acordo.Roi e Shar viram o robô abrir uma porta invisível nos fundos da ante-sala do centro

de comando e desaparecer por ela.— O que ele pretende fazer? — cochichou Shar.— Deixemos que ele nos surpreenda.— Quer dizer que o senhor não sabe? Roi sacudiu a cabeça.— Ninguém conhece a programação mais secreta de Vário. Natã elaborou-a há

muito tempo e em seguida apagou os dados relacionados com ela. Desta forma torna-se impossível que alguém traia o segredo, mesmo num caso extremo.

Enquanto esperavam, Shar ter Troyonas acendeu um cigarro. Depois de algumas tragadas teve um acesso de tosse e jogou-o fora.

— O senhor deveria deixar de fumar, Shar — disse Roi. — A única coisa que pode arranjar com isso são acessos de tosse.

Shar foi-se recuperando aos poucos e limpou a boca com o lenço.— O senhor tem razão, Roi.Numa súbita decisão Roi pegou seu maço de cigarros cheio pela metade, jogou-o no

chão e esmagou-o com o pé.Dali a pouco os dois ouviram passos pesados, acompanhados do tilintar de metais,

além de alguma coisa batendo e fungando. Recuaram instintivamente e sacaram as armas paralisantes.

De repente uma grande porta abriu-se à sua direita — e dela saiu uma figura com aspecto bárbaro, um tipo atlético com o rosto marcado pelas intempéries, um capacete redondo que terminava em ponto e armadura de cavaleiro. O pescoço e o tórax estavam protegidos por um colete de correntes. Em cima dele o atleta usava uma armadura cor de chumbo. Um cinto largo com inúmeros controles mantinha unidas as pernetas de couro revestidas com placas de metal. Uma espada guardada numa bainha enfeitada com diamantes chegava até os joelhos do cavaleiro. O capacete era enfeitado por um par de chifres voltado para dentro. A proteção do nariz e das mandíbulas encobria grande parte do rosto.

Mas o que mais impressionou os homens foi o cavalo que o cavaleiro conduzia pela rédea. Era um garanhão branco protegido por uma armadura de terconite azul. Carregava uma sela pesada com chapas de metal nos flancos e trazia um escudo comprido pendurado do lado direito do corpo.

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O atleta parou e ergueu o punho blindado.— Queiram receber os cumprimentos do cavaleiro cinzento, excelências. Lutemos

por tudo que nos é caro.— Não é possível! — exclamou Shar.Roi Danton riu e também ergueu o punho.— Receba meus cumprimentos e meus agradecimentos, cavaleiro cinzento!

Parbleu, se eu contar isso ao papai. É o senhor, Majestade.O cavaleiro cinzento aproximou-se fazendo tilintar a armadura. Os sapatos enormes

produziam um ruído oco ao bater no chão.— Não sou mais majestade e ainda não voltei a ser o imperador, senhor. Sou apenas

Vário 500 com outra figura. Peço que meu aspecto arcaico seja aceito como um fator psicologicamente necessário.

— Caramba! — espantou-se Shar ter Troyonas. — Está todo embrulhado em aço. Vário... bem, cavaleiro cinzento, como é mesmo o nome da camisa-de-força em que o senhor está enfiado?

O cavaleiro bateu com a palma da mão na parte do colete de correntes que aparecia no seu peito, atrás de um recorte na armadura.

— É o colete de correntes, também conhecido como couraça, senhor. — O cavaleiro tirou o capacete. — As juntas dos cotovelos são chamadas de braçadeiras. É bem verdade que proporcionam uma liberdade de movimentos muito maior que as braçadeiras dos cavaleiros terranos da Antiguidade. E minha espada contém uma arma energética de grande potência. Mas vamos passar à ação, que já trocamos muitas palavras.

— Muito bem, muito bem! — disse Roi sorrindo. — Mais uma pergunta. Este cavalo é um cavalo de verdade?

O cavaleiro cinzento também sorriu.— Não senhor. Trata-se de um robô com máscara de cavalo. Sabe fazer tudo que

um cavalo de verdade faz — e mais algumas coisas. Seu nome é Pégaso.Pégaso achou que a conversa era com ele. Levantou a cabeça e relinchou com força.

O rabo tremia entre as pernas traseiras. As mantas não lhe davam muito espaço.— É impressionante — disse Roi. — Pégaso, o cavalo alado. Não tenho dúvida de

que é capaz de voar, apesar de não ter asas. Onde está seu exército, cavaleiro cinzento?— A caminho do palácio, para onde também iremos para impor respeito aos

cavaleiros salteadores. Vamos lá!Apesar da armadura saltou com muita agilidade para cima do cavalo e estalou com

a língua.O cavalo passou por Roi e Shar. Era maior que qualquer cavalo que os dois já

tinham visto. Tiveram de correr para não ser deixados para trás.Quando chegaram ao palácio, depois de passar pelo transmissor e pelo poço do

elevador, o fragor da batalha se fazia ouvir em todos os lados.Dali a pouco Roi Danton e Shar ter Troyonas foram testemunhas de uma luta que

parecia uma batalha de fantasmas. Sentiram-se transferidos para uma época bárbara da história. Centenas de combatentes de aço — eram robôs humanóides dos mais diversos tipos — investiam contra os saqueadores com espadas, machados e lanças.

— Eis aí meus companheiros de luta! — gritou o cavaleiro cinzento. — São robôs antiquados que iam ser transformados em sucata. O Imperador Argyris comprou-os a um preço de pechincha, mandou fazer uma revisão geral e os recondicionou. Existem milhões deles em Olimpo.

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— Por que usam armas arcaicas? — perguntou Roi. — Também possuem armas energéticas, senhor — respondeu o cavaleiro. — Mas

só as usam em último caso. Queremos evitar que apareçam como seres superiores. Lá está Palong Myrus, o infame.

O cavaleiro aplicou as esporas em seu cavalo e saiu em direção ao ertrusiano, que tentava atravessar a confusão enfiado num traje de combate para poder interferir pessoalmente na luta.

Quando viu o cavaleiro cinzento, o ertrusiano deixou cair o queixo e encarou-o como se fosse um fantasma.

— Venha cá, Palong! — berrou o cavaleiro com a voz potente. — Vamos enfrentar-nos num duelo.

Palong Myrus recuperou-se do susto.— Já vou, anãozinho! — berrou. O ertrusiano tinha dois metros e meio de altura e

podia permitir-se essa brincadeira. — Esmagá-lo-ei juntamente com a lataria em que está enfiado.

Palong empurrou seu pessoal para o lado, destruiu dois robôs com uma arma energética enorme e saltou sobre o cavaleiro cinzento.

Pégaso esquivou-se no último instante e deu um golpe no ertrusiano com a parte traseira do corpo. Myrus soltou um grito de raiva e dor, recuou cambaleante e ergueu o fuzil energético.

O cavaleiro cinzento apontou a espada em sua direção. Dela saiu o relâmpago — e uma nuvem de fumaça começou a espalhar-se no lugar em que pouco antes estivera o ertrusiano.

Quando os saqueadores viram que seu chefe tinha sido morto, saíram gritando.

O cavaleiro cinzento levou seu corcel para o meio dos fugitivos, espalhando o

pânico com sua simples presença. Dentro de trinta minutos o palácio e seus arredores ficaram livres de saqueadores.

O cavaleiro cinzento voltou para junto de Roi e Shar.

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— Não me atrevo a afirmar que a programação de Natã seja errada — disse Roi. — Mas será que essa ação violenta foi necessária? Afinal, lidamos com seres humanos que não têm culpa do estado de confusão mental em que se encontram.

O cavaleiro desceu do cavalo e tirou o capacete.— Não há dúvida de que estas pessoas não têm culpa do estado de confusão mental

em que foram jogadas, senhor — respondeu em tom sério. — Mas a confusão, ou deterioração mental, para quem preferir chamá-la assim, não as transformou automaticamente em bandidos. Juntaram-se de propósito para saquear a propriedade alheia e abatem qualquer resistência pela força bruta. Por isto tornaram-se culpados.

O cavaleiro apontou para os veículos estacionados na área em frente do palácio.— Contando com os blindados voadores e outras armas tiradas de meu arsenal, os

membros do bando de Myrus dentro em breve se voltariam contra o transmissor da via de containers. Acho que sua tropa numericamente inferior seria pega de surpresa. Depois disso interromperiam a ligação com o Sistema Solar, condenando milhões de seres humanos a morrer de fome.

O cavaleiro cinzento fez sinal para que dois robôs se aproximassem e apontou para Troyonas.

— Conduzam este homem ao aposento mais luxuoso de minha fortaleza. Já avisei um dos medo-robôs. Troyonas será colocado num estado de sono profundo.

— Tenho de voltar para junto de meu pessoal! — protestou Shar e tentou livrar-se das garras do robô.

— Quer envenenar-se de vez com ara verde, Shar? — perguntou Roi. — Submeta-se às ordens do cavaleiro cinzento e trate de dormir vinte e quatro horas.

Shar ter Troyonas conformou-se. Pouco antes de os robôs saírem, gritou:— Por que relógio devo guiar-me, Roi?— Guie-se pelo relógio solar, se quiser! — respondeu Roi. — Mas não se preocupe.

Cuidarei de sua amiga.— Não cuide demais, Roi.O filho de Rhodan sorriu e sacudiu a cabeça.— Este cara não se deixa abater. Que pretende fazer agora, cavaleiro cinzento?— Formarei um exército e assaltarei as muralhas de Trade City, senhor. Em outras

palavras, livrarei a cidade dos ladrões e darei novas esperanças aos cidadãos.Roi acenou calmamente com a cabeça.— Cuidado para que seus robôs não ataquem os superiores. Celebrei um acordo

com eles. Obrigaram-se de ajudar a população em tudo que é possível.— Um robô não guarda ressentimentos, senhor — respondeu o cavaleiro cinzento.

— Providenciarei para que o pessoal que cuida do transmissor de containers tenha um bom sono. Será que poderiam ceder-me um planador? Aquele em que viemos Shar e eu não serve.

— Já providenciamos, senhor.Em seguida conduziu Roi ao elevador antigravitacional que os levou à cobertura do

edifício, onde dois robôs com espada na cintura estavam saindo de um planador de luxo.— Entre, por favor, senhor — pediu o cavaleiro. — Desejo-lhe uma boa cavalgada.O cavaleiro soltou uma estrondosa gargalhada.Roi Danton acompanhou-o e entrou no planador. Ativou o propulsor e fez decolar o

veículo. Deixou para trás uma fortaleza supermoderna, atulhada de robôs.

* * *

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Bossa Cova estava sonhando.Sentado numa poltrona adaptada ao seu corpo, tinha à sua frente uma mesa de bruxa

e, em cima dela, uma janela pela qual via as torres vazias de Traci.Sobre estas torres formavam-se as nuvens, transformando-se num quadro

gigantesco do cavaleiro cinzento. O cavaleiro puxou a espada e espetou o ar; uma claridade chamejante saiu da ponta da espada, rompendo a noite e criando oceanos de fogo no firmamento.

Uma voz rugiu como o trovão, a voz do cavaleiro cinzento:— Bossa Cova, estou chamando você!— Estou ouvindo, cavaleiro cinzento — murmurou Bossa dormindo.— Bossa Cova, existem muitos dragões de fogo, mas poucos homens capazes de

cavalgá-los. Estamos todos em perigo. Enfrentamos um perigo horrível, misterioso. Sele seu corcel de fogo e saia à procura daqueles que vagam entre as estrelas.

— Gostaria de fazer isso, mas não sei como — murmurou Bossa.— Preste muita atenção, Bossa Cova! Dirija-se à sala que você chama de sala dos

demônios da perfídia. Sente na poltrona que fica numa plataforma elevada e aperte essa placa com força.

Um dedo indicador nebuloso atravessou a parede e apontou para a placa vermelho-brilhante na qual estava gravado um sinal mágico.

— A placa ficará verde — explicou a voz do trovão. — Não se assuste se ouvir minha voz. Ela dirá que é o sistema positrônico de emergência lhe dirigindo a palavra. Mas na verdade será um espírito colaborador que entrará em contato com você. Pergunte a ele como se faz para chegar ao ponto de salvamento Square Seven. Repita o nome!

— Ponto de salvamento Square Seven — murmurou Bossa.— Excelente. O espírito colaborador dará a resposta. Faça exatamente o que ele

disser, na mesma sequência. Se não compreender alguma coisa, pergunte. Também pergunte se quiser saber alguma coisa. Não tenha medo, pois você foi escolhido para realizar grandes feitos, Bossa Cova. No ponto de salvamento Square Seven você encontrará aqueles que vagam entre as estrelas. Estarão em dificuldade, mas você os salvará e o espírito colaborador o ajudará. Vá, amigo. Desejo-lhe tudo que é bom.

A visão desapareceu.Bossa Cova ergueu-se de olhos fechados, passou cuidadosamente por cima de

Doreen, que dormia, e saiu do quarto. Atravessou a sala de estar e dirigiu-se à porta que dava para o corredor. A porta abriu-se e Bossa saiu por ela. Evitou as faixas que corriam em sentido contrário e caminhou em passos seguros para a abertura atrás da qual ficava a sala dos demônios da perfídia. Bossa não perdeu tempo. Entrou e dirigiu-se — sempre de olhos fechados — à poltrona indicada. Sentou nela.

Neste momento acordou.Não se assustou, porque pensou que voltara ao reino dos sonhos. De fato a mesa da

bruxa iluminada estava à sua frente, e em cima dela a grande janela pela qual se viam as torres de Traci. Só faltava o cavaleiro cinzento. E não era noite; o dia estava amanhecendo.

Bossa murmurou uma fórmula de exorcização antes de aproximar a mão da placa vermelha brilhante. Apertou-a resolutamente. Houve um clique, e a placa mudou de cor, passando para o verde.

Uma voz fraca disse:— Atenção. Aqui fala o sistema positrônico de emergência Macabono! Atenção,

aqui fala o sistema positrônico de emergência Macabono! — Um olho vermelho de

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demônio brilhou embaixo da janela que ficava à frente de Bossa. — Estabeleci contato com o senhor, Bossa Cova. Aguardo suas ordens.

Bossa engoliu em seco e olhou fixamente para o olho de demônio. Mas logo lembrou-se das instruções do cavaleiro cinzento e disse:

— Espírito serviçal, diga-me como devo fazer para chegar ao ponto de salvamento Square Seven.

Ouviu-se um zumbido, e uma luz forte se acendeu. Bossa olhou em volta e viu olhos de demônio vermelhos brilhando nas paredes.

— Bossa Cova — disse a voz metálica. — Sou um cérebro inteiramente positrônico e estou sujeito às leis da robótica. Logo, devo obedecer às suas ordens, mas também devo cuidar para que não seja ferido nem sofra qualquer coisa por causa de minha atividade.

— O senhor acaba de me chamar de espírito serviçal, amo. Isso me obriga a fazer uma pergunta. Esta em boas condições mentais?

Bossa transpirava. Achava que as coisas seriam muito mais simples. Em vez de responder às suas perguntas, o espírito serviçal contava histórias que ele não compreendia.

— Tenho de chegar ao ponto de salvamento Square Seven! — disse em tom insistente. — Estamos todos em perigo. Devo procurar aqueles que vagam entre as estrelas.

O espírito serviçal não respondeu logo. Depois de algum tempo respondeu:— Sondei a nave. Não há ninguém a bordo, além de duas pessoas adultas do sexo

feminino, uma menina e um menino. O sistema de observação externa revela que deve ter acontecido uma catástrofe. Desta forma existe uma situação de emergência grau Beta. Por isso ativei o circuito HFA. Ativarei todos os sistemas necessários ao voo para Square Seven. Além disso ativei cinco robôs que...

A voz interrompeu-se. Só voltou a falar depois de algum tempo.— Os cinco robôs reagem de forma irregular. Fui obrigado a desativá-los. Examinei

os dois únicos robôs que não possuem um suplemento plasmático e verifiquei que funcionam perfeitamente. Isto me leva a concluir que qualquer sistema nervoso central que funciona em base orgânica só consegue agir limitadamente conforme mandam as circunstâncias, porque foi afetado por influências desconhecidas.

— Que devo fazer? — perguntou Bossa, que se sentia ainda mais confuso com as explicações de seu espírito serviçal.

O cavaleiro cinzento não lhe dissera que os contatos com o espírito seriam tão difíceis.

— Fique bem calmo, Bossa Cova. Tudo acabará bem. Junte-se aos outros seres humanos que estão a bordo e comunique-lhes que enviei dois servos de aço para arranjar trajes espaciais para todos vocês. Meus servos os ajudarão a colocar esses trajes. Depois vocês virão para cá que eu lhes direi o que será feito dali em diante. Final.

Bossa respirou aliviado. Até que enfim o espírito serviçal usava uma linguagem que ele compreendia. O cavaleiro cinzento dissera que ele devia fazer tudo que o espírito serviçal dissesse. Por isso o homem levantou e foi para junto dos companheiros.

Acordou-os e explicou o que iria acontecer. Doreen e Aine pareciam confusas e assustadas, mas as crianças pareciam felizes porque iriam enfrentar uma aventura.

Dali a uns dez minutos entraram dois ídolos de Rob o Terrível. Primeiro Bossa sentiu-se apavorado. Mas como já se encontrara com um destes ídolos sem que ele lhe tivesse feito nada, logo se acalmou.

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— Somos os servos do espírito serviçal — disse um dos ídolos e apontou para o peito, sobre o qual brilhava um sinal de bruxaria em tinta ainda fresca. — Este símbolo significa Um. É como vocês me chamarão. — Sua mão de aço apontou para o sinal de bruxaria no peito do outro ídolo. — Este sinal significa Dois. É como vocês chamarão o outro servo.

Dois saiu pela porta. Quando voltou empurrava uma placa mágica que flutuava no ar. Sobre essa placa viam-se vestes estranhas.

Ajudados pelos dois servos, as pessoas enfiaram-se nos trajes espaciais, sem saber o que eram.

Depois que estavam ali, completamente transformados, Um apontou para um botão vermelho na fivela do cinto de Bossa.

— Em todos os trajes vocês encontrarão este botão. Vocês terão de apertá-lo quando nós dissermos. Aí os capacetes se fecharão.

— Vamos à sala de comando — disse Dois e virou-se para a porta.Bossa Cova não tinha a menor ideia do que vinha a ser uma sala de comando, mas

seu instinto lhe disse que se tratava da sala dos demônios da perfídia. Colocou os braços sobre os ombros de Doreen e Aine e levou-as para fora. As crianças acompanharam-nos sem mostrar medo. Sarkh até chegou a tocar em Um e Dois sem que os servos o castigassem por isso.

Uma vez na sala, os servos os conduziram a diversos lugares e colocaram cintos em seus corpos. Bossa voltou a ficar na poltrona mais elevada.

Neste momento o espírito serviçal disse:— Espaçonave Macabono preparada para decolar. Coordenadas de destino fixadas.

Será uma decolagem completamente automática. Assim que estivermos no espaço — mais precisamente no vazio entre as estrelas — Bossa Cova, tentarei um programa de reabilitação, que deverá torná-los capazes de desempenhar um número cada vez maior de funções. Atenção. Decolaremos depois que termine a contagem regressiva de dez até zero.

A voz metálica fez a contagem de dez para zero. O castelo mágico trepidou. Um rugido, uivo e estrondo diabólico encheu o ar. Bossa olhou pela janela central. Viu Traci desaparecer no chão. Dali a pouco nuvens passaram pela janela; uma incandescência medonha turbilhonava perto da nave.

Depois disso os ruídos diminuíram, transformando-se num murmúrio constante. O ar tingiu-se de preto e os turbilhões incandescentes desapareceram. Em compensação viam-se perfeitamente as luzes que só costumavam brilhar de noite na abóbada transparente do céu.

Bossa compreendeu que seu castelo mágico se desprendera do chão e voava em direção à abóbada de vidro cheia de luzes.

— A abóbada! — gritou. — O corcel de fogo baterá na abóbada!Mais uma vez o instinto lhe dissera que seu castelo encantado se transformara num

corcel de fogo.— A que abóbada se refere, meu amo? — perguntou o espírito serviçal.Bossa explicou o que queria dizer.— Não se preocupe — respondeu o espírito. — Existe uma abertura na abóbada. Já

passamos por ela. O que vocês vêem é o espaço cósmico. As luzes que aparecem nele são as estrelas. Trata-se de sóis distantes, parecidos com aquele que ilumina o mundo de vocês.

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— Acho que está na hora de iniciarmos o programa de reabilitação. Preste muita atenção ao que vou dizer, Bossa Cova, e faça sempre o que eu mandar.

Bossa acenou com a cabeça.Seguiu as instruções do sistema positrônico de emergência, primeiro hesitante, mas

à medida que as explicações iam removendo camada após camada o terrível bloqueio de seu espírito passou a sentir-se mais seguro. Depois de algumas horas já foi capaz de executar correções de rota e teve uma vaga ideia do que vinham a ser energia elétrica, jatopropulsores, aceleração e velocidade. Além disso ficou conhecendo o nome e as funções de várias chaves e teclas.

A nave entrou no espaço linear — e de repente Bossa Cova lembrou-se de quem era e compreendeu que se encontrava na nave-capitânia de sua frota comercial.

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5

Quando a Macabono retornou ao espaço normal, Bossa Cova contemplou apavorado o sinal ótico vermelho-brilhante do sistema positrônico de emergência. Percebeu que muita coisa que sabia ainda há pouco estava sendo levada de seu cérebro.

Mas alguma coisa ficou: aquilo que fora redespertado com o auxílio do sistema positrônico de emergência — além de outros conhecimentos.

Com o que lhe restava de compreensão surgiu a ideia insistente de que devia encontrar um meio de salvar a si e aos seus colegas do pavor.

— Vamos entrar no espaço linear! — disse com a voz tensa. — Está me ouvindo, sistema positrônico de emergência? Coloque a nave em voo linear. Aí seremos normais.

— Estou ouvindo — respondeu o sistema positrônico de emergência. — Acontece que a fuga para o semi-espaço não resolve o problema. A nave não pode permanecer lá para sempre. Voltaria ao espaço normal depois que os conversores do voo linear estivessem queimados e ficaria à deriva entre as estrelas.

— Tanto faz! — gritou Bossa e estendeu a mão para a chave que, segundo se lembrava vagamente, transformava-o no dono exclusivo da nave.

Mas neste momento uma mão de aço agarrou seu braço.Bossa Cova tentou defender-se — e de repente o véu que ainda há pouco cobria sua

inteligência caiu. Enxergava as coisas como realmente eram, apesar de não estar no semi-espaço — e sua mente já não era obnubilada pela crença em espíritos, demônios, bruxas e ídolos.

— Você é um robô, Um, e tem de obedecer às minhas ordens. Sou um ser humano. Solte meu braço e afaste-se.

— Sinto muito, senhor — respondeu Um, embora não fosse capaz de sentir nada. — Acontece que sua ordem está em contradição com a primeira lei da robótica.

Reconheço que o senhor recuperou grande parte de sua capacidade de raciocínio — disse o sistema positrônico de emergência. — E isso sem a proteção resultante da permanência no semi-espaço. Provavelmente é um imune latente e só precisa de alguns estímulos para recuperar a plenitude de suas faculdades mentais. Mas o fato é que ainda não se recuperou completamente. Todavia, cheguei à conclusão de que é muito provável que dentro de pouco tempo recupere o gozo pleno de suas faculdades mentais.

— É tudo tão estranho, tão irreal — respondeu Bossa. — Sei muitas coisas, mas algumas delas são desconexas.

— Tudo voltará ao normal, meu amo. Mas tenho uma pergunta importante. Por que quer seguir para o ponto de salvamento Square Seven? Alguém lhe deu ordem para isso?

Bossa acenou com a cabeça.— Sim, o cavaleiro cinzento. — Bossa estacou. — Mas foi apenas um sonho! O

cavaleiro cinzento não existe. Acho que devemos voltar para Olimpo.— Pois eu recomendo que continuemos a perseguir o mesmo objetivo — respondeu

o sistema positrônico de emergência. — Geralmente os sonhos não têm nenhuma importância, mas o funcionamento do cérebro humano é muito mais complicado que o de qualquer sistema positrônico. É possível que quando está sonhando tenha uma visão intuitiva do futuro e por assim dizer se auto-programe para alcançar um objetivo que o subconsciente diz ser correto. Mas mesmo que isso não tenha acontecido no seu caso, meu amo, um voo ao ponto de salvamento Square Seven não pode fazer mal a ninguém.

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O senhor já recuperou muitas lembranças e capacidades e os novos estímulos que receber durante o voo poderão completar sua imunidade.

— Acho que compreendo mais ou menos o que você quer dizer — afirmou Bossa Cova com a voz apagada. Estava exausto. — Por favor, continue com o mesmo objetivo. Square Seven. Voe para Square Seven.

Bossa recostou-se e adormeceu num instante. Doreen, Aine e as duas crianças já estavam dormindo há uma hora. Os dois robôs tinham-lhes aplicado injeções de sedativos potentes, porque tiveram um ataque de histeria quando durante o voo linear perceberam o que tinha acontecido com eles.

Quando Bossa acordou, a Macabono já havia completado a segunda etapa de voo linear. Um silêncio estranho reinava na nave. Na tela frontal — Bossa já sabia que não se tratava de uma janela — aparecia uma esfera de metal na escuridão do espaço.

— Onde estamos? — perguntou.— No destino, meu amo. O ponto de salvamento Square Seven está à nossa frente.

Trata-se de uma esfera de metal de dez quilômetros de diâmetro. Contém tudo de que pode precisar um astronauta em dificuldades: naves de pequeno porte, deutério altamente catalisado, água potável, alimentos, hipertransmissores e uma clínica. Square Seven é uma base secreta de apoio dos livres-mercadores de Olimpo.

— Bossa Cova, o senhor e as duas crianças tornaram-se muito úteis a toda a humanidade. Devo levá-los de volta para Olimpo sãos e salvos. Lá decerto existem alguns imunes que precisam muito de sua ajuda. Mas seu espírito está praticamente livre. Por isso deixo a decisão a seu encargo. O senhor resolverá se quer entrar na estação Square Seven ou não.

— É claro que voarei para lá — respondeu Bossa. Percebeu que só uma parte minúscula de suas recordações continuava encoberta. — Preciso saber por que a visão que tive num sonho me fez vir para cá.

— Sugiro que não use uma balsa comum, mas o barco espacial M-l — disse o sistema positrônico. — Está equipado com um transmissor que lhe permitirá voltar à Macabono caso isso se torne necessário, deixando para trás o barco espacial.

— Posso ir com o senhor, Bossa? — perguntou o menino com os olhos brilhantes.Depois de refletir um instante, Bossa Cova acenou com a cabeça.— Tenho uma objeção, meu amo! — disse o sistema positrônico. — Não é

necessário que dois seres humanos preciosos se oponham ao risco.— Objeção rejeitada — decidiu Bossa. — Onde poderemos encontrar armas, Um?O robô levou-os a um armário embutido no qual estavam penduradas cerca de trinta

armas energéticas, além de algumas armas paralisantes. Bossa escolheu duas armas, uma energética e uma paralisante. Ao menino entregou uma arma paralisante pequena de cabo ricamente enfeitado.

Depois disso o próprio Bossa encarregou-se de encontrar o caminho. Queria ver se conseguia chegar sozinho ao hangar 1 — e conseguiu. Rindo de tão alegre que estava, abriu a escotilha inferior e saltou para dentro da nave.

Mas o robô teve de ajudá-lo na manobra de saída da M-l, e durante a manobra de aproximação. Quando estavam a apenas dois quilômetros de Square Seven, uma escotilha de hangar se abriu na esfera.

Bossa olhou para o painel de instrumentos, que indicava as medidas.— Dá para nós passarmos — disse. — Um, encarregue-se da manobra de entrada.O robô obedeceu. Dali a instantes a M-l ficou suspensa nos suportes energéticos do

hangar. A escotilha da eclusa voltou a fechar-se atrás do veículo.

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De repente o receptor de hipercomunicação deu um estalo. A voz metálica do sistema positrônico de emergência disse:

— Cuidado, perigo! Um forte campo defensivo foi erguido em torno de Square Seven. Recomendo que voltem imediatamente pelo transmissor.

Bossa Cova refletiu um pouco antes de perguntar:— Você acha que é possível que o campo energético tenha sido criado por um ato

do sistema biopositrônico de Square Seven?— Quanto a isso praticamente não existe nenhuma dúvida, meu amo. Sabemos que

os complementos plasmáticos dos cérebros biopositrônicos estão sujeitos ao processo de deterioração mental da mesma forma que a maior parte dos seres humanos.

— Excelente. Quer dizer que o sistema biopositrônico provavelmente não está em condições de saber o que pretendo fazer. Vamos sair do barco. Oportunamente voltaremos a fazer o contato.

— Irei na frente, meu amo — disse Um. Bossa sacudiu a cabeça.— Você não irá, Um. Vai cuidar do barco espacial até voltarmos.— Isso representaria uma violação da primeira lei da robótica, meu amo. Não devo

permitir que sofram qualquer coisa por causa de minha inatividade.Bossa sorriu ironicamente. Depois de ter recuperado a inteligência sentia-se

superior a qualquer robô.— É exatamente o que você faria se abandonasse a nave, meu caro. Não se esqueça

que o transmissor tem de ser defendido por ser nossa principal possibilidade de salvação. Você será responsável por seu funcionamento.

— É verdade, senhor. Sua ordem é válida.— Obrigado — disse Bossa em tom irônico. — Vamos, Sarkh!Antes de sair do barco espacial os dois fecharam os capacetes esféricos e ativaram

os rádios neles embutidos.— Só nos comunicaremos quando isso for absolutamente necessário — disse Bossa

ao menino. — Prefiro não dizer o motivo. Talvez você mesmo o descubra.— Mas é claro, Bossa! — O menino estava radiante. — É para que eles...— Quieto! — disse Bossa em tom enérgico.— Quem está falando? — perguntou uma voz desconhecida. — Será que estou

enganado, ou trata-se mesmo de dois seres humanos cuja inteligência ainda funciona mais ou menos?

Era uma voz cheia e profunda saída dos receptores instalados nos capacetes.Bossa esperou alguns segundos, mas logo chegou à conclusão de que aquela não

podia ser a voz de um sistema positrônico deteriorado. Além disso nem um sistema positrônico deteriorado nem um ser humano com a mente deteriorada era capaz de ter consciência de seu estado e, portanto, falar sobre ele.

— Aqui fala Bossa Cova. Sou um armador de Olimpo. Meu companheiro é um menino. Faz pouco tempo que nos tornamos completamente imunes. Quem fala aí?

Bossa ouviu alguém respirar profundamente. Depois uma voz grave começou a falar.

— Aqui fala o Major Patulli Lokoshan, da Segurança Solar. Viajava num jato espacial para levar uma mensagem ao Marechal de Estado Bell. Encontrei-me com a nave de um pegador de animais. Mas nem sei por que estou contando isto. O fato é que estou numa armadilha, juntamente com Boobu, um menino de quatro anos. É uma criança-prodígio. Olga come da sua mão.

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— Quem é Olga?— Uma dama de sáurio, meu amigo. Arre! Não fique me lambendo, seu bicho

nojento.Bossa riu. Depois de refletir um pouco, disse:— Farei o possível para libertá-lo, major. Por favor, descreva o lugar em que se

encontra.— É simples, Mr. Cova. Um momento! Será que o senhor é Cova, aquele cachorro

louco que há dez anos sobreviveu a uma expedição a Vurla, o planeta dos fantasmas?— Isso mesmo. O cachorro louco sou eu. Mas vamos logo ao que importa, Major

Lokoshan.— Lokoshan. Patulli Lokoshan. Meu nome completo é Patulli Shangrinonskowje

Batulatchino Sagrimat Lokoshan, mas não exijo que o senhor pronuncie todo ele.— Mesmo que o senhor pedisse eu não faria. Diga-me uma coisa. O senhor

realmente é um imune ou não passa de um louco genial?— Sou um kamashita completamente normal, Mr. Cova. Ai! Tire o pé daí, Olga!

Isso. Hum, vamos ao assunto. Não fique me distraindo, Mr. Cova. Boobu, Olga e eu nos encontramos num armazém vazio atrás do hangar da eclusa onde está guardado nosso barco salva-vidas. Há campos energéticos mantendo fechadas as escotilhas. Estas informações bastam?

— Ainda falta alguma coisa — respondeu Bossa com um gemido baixo. — Mas não se preocupe. Nos próximos cem anos haverei de encontrá-lo. Final.

Bossa regulou o telecomunicador instalado em seu capacete para um alcance de dez metros e fez a mesma coisa com o telecomuniçador de Sarkh.

— Vamos, rapaz — disse.— Com os dados de que dispomos nunca encontraremos o Major Lokoshan —

respondeu o menino.— Eu sei. Seria inútil tentar encontrá-lo nesta estação enorme. Mas tive uma ideia.

Prefiro não falar a respeito.Bossa pretendia pôr fora de ação o sistema biopositrônico. Este sistema devia ficar

no centro da estação. Portanto, ele e Sarkh ainda tinham um bom trecho a percorrer. Só lhe restava fazer votos de que o cérebro que funcionava de forma irregular não percebesse suas intenções e trancasse o caminho.

Os dois alcançaram o elevador de tubos geminados polo a polo, quando uma voz de fantasma cochichou:

— Venham cá, minha gente! Entrem em meu palácio. Todos os tesouros do Universo estão à sua espera.

Uma escotilha abriu-se à direita dos dois. Ouviu-se uma música.Bossa segurou o menino, que se dirigia à escotilha aberta. Empurrou-o para a

escada de emergência.“Além de se ter deteriorado, o sistema biopositrônico de Square Seven

transformou-se num perigo público!”, pensou.— Por quê...? — principiou Sarkh.— Quieto! — ordenou Bossa. — Mais tarde explicarei.— O luar dança em minha face — cantou a voz de fantasma. — Vocês não foram

ao palácio. Venham, oh! Venham, meus queridos.— Mais depressa! — disse Bossa ao menino. Esperava que a qualquer momento o sistema biopositrônico impedisse sua subida,

mas não aconteceu nada disso. Chegaram ao centro da esfera sem incidentes.

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Bossa sorriu como quem soubesse de alguma coisa quando viu que todas as escotilhas de ambos os lados do corredor principal estavam abertas. Provavelmente o cérebro enlouquecido esperava que examinassem uma das salas. Aí, a única coisa que teria de fazer seria fechar a respectiva escotilha e cercar sua prisão com o campo energético.

Quando se viram à frente do centro da estação, o sorriso desapareceu de seu rosto. A pesada escotilha blindada estava fechada e protegida por um campo energético de grande potência. Seria impossível forçar a entrada, mesmo com a arma energética.

Bossa virou-se abruptamente ao ouvir passos pesados. Um robô de combate aproximava-se, vindo da esquerda. Bossa sacou a arma e fez pontaria para a máquina.

O robô parou bem à sua frente.— Posso ajudar em alguma coisa, senhor? — dirigiu-se a Bossa.Bossa Cova respirou aliviado. O robô devia ser exclusivamente positrônico.— Pode. Queremos chegar ao sistema biopositrônico.— Devo alertá-lo para que não vá, senhor. O sistema biopositrônico funciona de

maneira irregular. Deixou de obedecer às leis da robótica, da mesma forma que os robôs com cérebros biopositrônicos, que tivemos de desligar.

— Pois então o sistema biopositrônico também tem de ser desativado — disse Bossa. — Você pode ajudar-nos a chegar perto dele?

— Posso, sim senhor. Mas não seria capaz de desligá-lo. Minha programação não permite que desative uma unidade de categoria superior.

— Pois eu posso. Leve-nos para lá.O robô levou-os à escada de emergência do elevador principal e os fez descer três

conveses. Desceram, seguiram por um corredor e chegaram a uma sala onde havia elementos positrônicos empilhados em inúmeras prateleiras.

— Esta é uma das portinholas de manutenção — disse o robô e apontou para uma escotilha.

Em seguida abriu-a.Bossa não quis entrar numa armadilha. Por isso deu ordem ao robô para que fosse

na frente. A máquina obedeceu.Mal tinham entrado no corredor que ficava atrás da escotilha, quando se ouviram

gritos estridentes saídos de inúmeros alto-falantes. De vez em quando soavam fragmentos de melodias e a voz de fantasma voltava a sussurrar.

— Não prossigam, queridos. Uma coisa terrível lhes está reservada.— Aqui! — disse o robô e apontou para um nicho na parede do corredor, no qual se

via uma alavanca vermelha blindada.— Não! — gritou o sistema biopositrônico. — Não me matem! Quero viver que

nem vocês.Bossa respirou profundamente e baixou a chave. O lacre rompeu-se e no mesmo

instante o sistema biopositrônico se calou.— Obrigado, robô — disse Bossa. — Vamos ver se a sala de comando continua

trancada.Encontraram a sala de comando aberta. Bossa Cova foi à sala de rádio e informou

ao sistema positrônico de emergência de sua nave de que o sistema biopositrônico enlouquecido fora desligado. Ficou sabendo que o campo energético que cercava Square Seven fora desligado. Bossa ativou os monitores e logo descobriu o porão de carga em que estava trancado o major e seus companheiros.

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Bossa fez uma ligação de intercomunicação e pediu a Lokoshan que examinasse a escotilha do porão. Dali a pouco o kamashita voltou e informou que as escotilhas podiam ser abertas e não estavam mais trancadas por barreiras energéticas.

— Entre em seu barco salva-vidas — ordenou Bossa. — Abra a eclusa de seu hangar usando o controle remoto. Contornarei a estação com minha nave para recolhê-lo. Final.

Dali a pouco a grande porta da eclusa de um dos porões de carga da M-l fechou-se atrás do barco salva-vidas de Lokoshan. A proa do barco salva-vidas levantou-se e Bossa, que fora ao porão de carga para receber seus hóspedes, arregalou os olhos ao ver um sáurio do tamanho de um elefante, de pescoço comprido, corpo desajeitado e pernas curtas, caminhar preguiçosamente através da abertura. Havia um menino seminu sentado no lombo do animal, perto do pescoço, segurando-se numa corda presa ao pescoço do animal.

O menino acenou com o braço e fitou Bossa com uma expressão radiante.— Olá, titio! Brrr, Olga!Olga parou à frente de Bossa e baixou a cabeça para encarar o armador.Finalmente apareceu Patulli Lokoshan.Usava traje espacial prateado e estava com o capacete jogado para trás. Bossa pôde

ver seus cabelos verdes amarrados em trancas. Comparado com o armador, Lokoshan era um anão.

— Olá, Mr. Cova! — exclamou em tom alegre. — Que bom termos podido ajudá-lo, não é mesmo?

Bossa Cova engoliu em seco, mas esboçou um sorriso. Não sabia se Lokoshan era um imune ou um mentalmente deteriorado que podia enlouquecer de um momento para outro.

O kamashita parou à frente de Bossa.— Então? Que acha de Olga? Tomara que disponha de um bom alojamento para

nossa querida. Não vai convidar-me a tomar um uísque? É costume entre os astronautas.O kamashita riu.Bossa Cova voltou a engolir em seco. Finalmente disse com a voz firme:— Não temos um alojamento de luxo para Olga, nem um uísque, major. Voaremos

imediatamente para a Macabono, entraremos na nave e depois seguiremos para Olimpo. Quem dá as ordens aqui sou eu. Fui bem claro?

Lokoshan piscou os olhos.— Naturalmente. Quer dizer que vamos para Olimpo...! — O major esfregou as

mãos. — Já estou contente porque vou me encontrar com meu velho amigo Anson...

* * *

A Macabono pousou no dia 6 de agosto de 3.441, ao meio-dia, no lugar de sempre. Bossa Cova fora completamente reabilitado e assumira o comando do sistema positrônico de emergência e dos dois robôs.

Durante a manobra de aproximação viu através da ampliação setorial que parte das numerosas naves destroçadas fora removida e que um campo energético de grande potência cobria a área em que ficava o transmissor de containers.

— Parece que Olimpo é mais abençoada de robôs que a Terra — disse o Major Lokoshan e apontou para a galeria panorâmica. Viam-se perfeitamente milhares de robôs trabalhando na área do sistema de transporte de containers.

Bossa franziu a testa.

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— Para mim isto é uma novidade, major. Lá vem nosso planador. Diabo! Que é isso?

Uma nave esférica descia em alta velocidade, arrastando uma cauda enorme de gases incandescentes. As ondas de pressão trovejantes fizeram estremecer a Macabono. A nave passou bem perto acima do planador prateado brilhante, correu em direção ao campo energético que protegia a via de containers, bateu nele e começou a desmanchar-se enquanto era atirada para trás.

Um barco elíptico balançava atrás deles, conseguiu sair do redemoinho que se formara na esteira da nave grande e, apesar de tudo, se teria desmanchado no campo energético da via de containers, se no último instante não tivesse aparecido uma fresta em sua estrutura.

Bossa Cova soltou com violência a respiração que prendera. Viu que o planador que viera para levá-los resistira ao inferno.

— Sarkh, Io, vocês ficam com Doreen e Aine enquanto o major e eu formos ao centro de controle da via de containers. Não demoramos.

As crianças acenaram rapidamente com a cabeça. Pareciam não ter medo. Mas Doreen e Aine estavam confusas.

Bossa foi para perto delas, beijou Doreen e Aine e saiu da nave atrás do Major Lokoshan.

À frente do gigantesco segmento de esfera de metal plastificado em que tinha sido instalado o centro de controle da via de containers os dois foram recebidos por um robô que os conduziu a uma sala que ficava ao lado do centro de comando.

Bossa Cova viu que já havia três homens na sala. Um deles era Roi Danton, filho de Rhodan, o nome do outro era Shar — encontrara-se com ele quando ainda estava com a mente deteriorada — e o terceiro era um tipo atlético de ombros largos, enfiado num traje espacial. Tinha pele moreno-clara brilhante, cabeça calva e um rosto que parecia esculpido em granito.

O rosto de Roi assumiu uma expressão radiante quando viu o kamashita. Os dois correram um para o outro e abraçaram-se.

— Pensei que tivesse morrido, Patulli — disse Roi.— E eu pensei que o senhor estivesse morto — respondeu Lokoshan enquanto

brincava com uma estatueta negra do tamanho de um polegar humano pendurado numa corrente em torno de seu pescoço.

Bossa Cova sorriu para Shar.— Se não me engano foi o senhor quem quis fazer chantagem comigo usando

minha chave de impulsos!Shar ter Troyonas apertou sua mão.— E o senhor é o cara que quase torceu meu pescoço.— Sinto muito, Shar — disse Bossa e olhou atentamente para o terceiro homem. —

Quem é este?O homem sorriu de uma forma estranha.— Toque em mim e o senhor descobrirá. Fique à vontade. Ou será que tem medo de

mim?— Não posso resistir a um convite como este — disse Bossa. Como o desconhecido parecia ser um homem robusto, ele não se constrangeu.

Cobriu-o com uma série de golpes duros que teriam derrubado qualquer um. Mas o homem ficou sorrindo. Estendeu as mãos, agarrou Bossa pelo cinto e levantou-o com uma das mãos como se fosse uma criança.

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— O senhor é um oxtornense! — exclamou Bossa quando voltou a pôr os pés em chão firme.

— Isso mesmo. Meu nome é Mundus Hawk. — O oxtornense deu a mão a Bossa. — A tripulação de uma nave mercante de Olimpo salvou-me de dentro de minha nave destruída a tiros.

— Um instante! — pediu Roi Danton. — Mr. Hawk, sua nave foi destruída por unidades pertencentes ao enxame?

— Não — respondeu Mundus Hawk. — Estava me dirigindo a uma base terrana para apresentar um relato a respeito do enxame por mim detectado. Parece que a tripulação ficou mentalmente deteriorada, pois abriu fogo contra mim. Conseguiu fugir para o espaço e fui resgatado pelo pessoal da Zapotrack.

— Pode dar alguma informação a respeito do enxame? — quis saber o filho de Rhodan.

— Pouca coisa. É grande, muito grande mesmo. Alguns dias depois pousamos com a Zapotrack num planeta cujas inteligências humanóides apresentavam reações normais. Classificaram-nos como astronautas duma civilização mais desenvolvida que a sua. Dentro de algumas horas passaram a adorar-nos como deuses. Suas mentes se tinham deteriorado. Mal conseguimos decolar e escapar no semi-espaço.

O rosto de Hawk assumiu uma expressão sombria.— Mas quando íamos pousar em Olimpo, um dos mentalmente deteriorados

colocou os neutralizadores de pressão na posição zero. Sobrevivi, mas os outros não. Durante a queda consegui entrar num barco salva-vidas e mover a chave de decolagem de emergência. Depois disso ficou tudo escuro.

Um menino apareceu na porta da sala ao lado e dirigiu-se a Roi.— Senhor, o Administrador-Geral está chamando.— Obrigado, Mark — disse Roi Danton e saiu às pressas. Bossa Cova contemplou o oxtornense com muito interesse.— Diga uma coisa, Mr. Hawk. O senhor é parente do lendário oxtornense chamado

Omar Hawk, que segundo dizem viveu há mais de mil anos?Mundus Hawk sorriu.— Espero que ainda esteja vivo, Mr. Cova. Desapareceu há bastante tempo com

Tengri Lethus, o guardião da luz, mas nunca foi esquecido pelos oxtornenses. Todos os filhos de Hawk procuram encontrar uma pista sua assim que se tornam adultos — e um dia havemos de encontrá-la.

Todos levantaram os olhos quando Roi voltou.— Meu pai pediu que lhes transmitisse seus cumprimentos — disse Roi sorrindo.

— Aproximou-se do enxame com sua nave Good Hope II, mas também não pôde vê-lo em toda a extensão. Tentará determinar sua rota é examinar algum mundo habitado antes e depois de sua passagem.

— Já foi possível estabelecer contato com Tahun? — perguntou Patulli Lokoshan.Danton sacudiu a cabeça.— Ainda não. Mas tenho muita esperança de que Merceile tenha permanecido

imune. Como sabemos é uma pedotransferidora, isto é, uma mutante. E até agora todos os mutantes ficaram imunes.

Roi virou-se para Hawk.— E um oxtornense! Como estão os outros oxtornenses? Ficaram todos imunes? Ou

o senhor é uma exceção?Mundus Hawk deu de ombros.

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— Não sei.Neste instante ouviu-se o som de uma fanfarra. Todos viraram-se abruptamente para

a parede trivídeo.Bossa arregalou os olhos.Uma tropa de cavaleiros parou à frente do centro de comando. Havia cerca de vinte

robôs atrás deles. Mas à frente da tropa Bossa Cova viu um garanhão branco e uma figura que já vira em sonho: o cavaleiro cinzento.

— Eis aí o velho imperador em nova apresentação — explicou Shar ter Troyonas aos recém-chegados. — Atravessa o planeta de lado a lado e profere discursos chamejantes. Mas não é só. Também cuida para que as pessoas mentalmente deterioradas voltem a ter uma vida mais ou menos normal.

“E aparece nos sonhos de outros mentalmente deteriorados para dar ordens!”, pensou Bossa Cova.

— Estou ansioso para conhecer o cavaleiro cinzento, Shar — disse em voz alta.

* * ** **

Graças à atuação de Roi Danton e do cavaleiro cinzento, foi possível fazer alguma coisa no planeta comercial Olimpo. Pelo menos conseguiu-se evitar o caos completo e estabilizar a situação até certo ponto.

Depois disso a cena mudará. Vamos dedicar nossa atenção a Perry Rhodan e à sua nave, a Good Hope II. A pequena espaçonave encontra-se atrás do enxame — seu destino é o Planeta dos Cavadores...

O Planeta dos Cavadores — é este o título do próximo volume da série Perry Rhodan.

Visite o Site Oficial Perry Rhodan:www.perry-rhodan.com.br

O Projeto Tradução Perry Rhodan está aberto a novos colaboradores. Não perca a chance de conhecê-lo e/ou se associar:

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