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Vamos a um exemplo bem simples: quando eu nasci, a minha mãe e o meu pai, felizes que estavam com a minha chegada, católicos que eram, e tão logo quanto possível, marcaram o meu batizado. Eu fui en- tão sendo criada desde bebê assinalada para acreditar em Deus e tornar-me católica pelos costumes de minha família: minha mãe me ensinando a rezar antes de dormir; dizendo “Graças a Deus!” quando uma boa coisa acontecia, ou “Deus me livre!”, quando sabia de uma notícia ruim; dizendo “Vai com Deus!” quando eu saía para a escola. Não me foi dada escolha em relação à religião que eu gostaria de seguir futuramente dentre as tantas existentes – Catolicismo; Protestantismo; Judaísmo; Espiritismo; Umbanda; Islamismo; Budismo; Hinduísmo etc. – ou mesmo a opção de não seguir religião alguma. Agora pense como seria se eu fosse criada sem marcação religiosa no cotidiano da minha casa, da escola e tal, e quando chegasse a certa idade me fossem apresentadas todas ou ao menos uma gama de opções dentre religiões existentes; que me fosse dada a oportunidade de entender as religiões na história, o que elas representam, como se desenvolveram etc. Seria bem diferente, não acha? Acredito que eu poderia, aí sim, dizer que escolhi ser católica e não que fui ser católica por obrigação ou, o que mais interessa aqui, por não conseguir sequer cogitar que poderia ser diferente. Essa é uma das razões pelas quais quando entramos na universidade, por exemplo, sofremos um cho- que tremendo pois, de modo mais geral, a universidade é laica – a ao menos deveria ser – ou seja, não assinala ou professa nenhum credo religioso. A ideia de universidade é aquela que pode abrigar todos os credos e, inclusive, credo algum. Este é um princípio-base da democracia. A universidade é lugar de conhecimento e não de profissão de uma fé em particular. O lugar de praticar a fé é outro: a igreja, o templo, o terreiro, a sinagoga, a mesquita. Fico sempre me perguntando o quanto um festival de dança contemporânea se faz também e talvez sobretudo pelas frestas da programação. Frequentá-lo é uma aposta. Esperamos que a curadoria pos- sa ter tecido boas oportunidades, bons motivos para os encontros entre as pessoas. Dos dissensos à partilha. Na partilha, uma política. A aposta é também na mutualidade como única e precária certeza de que a dança possa ainda ser aquilo que nos une na constituição de um comum. Pequenos e fortes encontros reafirmam um tipo específico de amizade tecido à distância. Cada um dos parceiros, na maioria das vezes sem o saber, colabora com o outro na invenção compartilhada de mundo. Aliás, a parceria é anterior, é condição. Muitas vezes em um festival de dança contemporânea, nos descobrimos parceiros de alguém. Antes, de um nome que conhecemos pela referência em um catálogo. É o seu trabalho, sua ação no mundo, que alimenta a amizade cujo exercício mudo – exercício não exercido – nos une. Trata-se de um tecido de afetos em potencial, uma filia ainda não realizada que desconstrói o futuro (o progresso) em favor de devires-mundo e de devires-dança. Sem o saber, a programação de um festival tece, sem objetivo ou programa, uma rede silenciosa de devires. E isso também é uma política. x pág. 21 pág. 53

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Vamos a um exemplo bem simples: quando eu nasci, a minha mãe e o meu pai, felizes que estavam com a minha chegada, católicos que eram, e tão logo quanto possível, marcaram o meu batizado. Eu fui en-tão sendo criada desde bebê assinalada para acreditar em Deus e tornar-me católica pelos costumes de minha família: minha mãe me ensinando a rezar antes de dormir; dizendo “Graças a Deus!” quando uma boa coisa acontecia, ou “Deus me livre!”, quando sabia de uma notícia ruim; dizendo “Vai com Deus!” quando eu saía para a escola. Não me foi dada escolha em relação à religião que eu gostaria de seguir futuramente dentre as tantas existentes – Catolicismo; Protestantismo; Judaísmo; Espiritismo; Umbanda; Islamismo; Budismo; Hinduísmo etc. – ou mesmo a opção de não seguir religião alguma.

Agora pense como seria se eu fosse criada sem marcação religiosa no cotidiano da minha casa, da escola e tal, e quando chegasse a certa idade me fossem apresentadas todas ou ao menos uma gama de opções dentre religiões existentes; que me fosse dada a oportunidade de entender as religiões na história, o que elas representam, como se desenvolveram etc. Seria bem diferente, não acha? Acredito que eu poderia, aí sim, dizer que escolhi ser católica e não que fui ser católica por obrigação ou, o que mais interessa aqui, por não conseguir sequer cogitar que poderia ser diferente.

Essa é uma das razões pelas quais quando entramos na universidade, por exemplo, sofremos um cho-que tremendo pois, de modo mais geral, a universidade é laica – a ao menos deveria ser – ou seja, não assinala ou professa nenhum credo religioso. A ideia de universidade é aquela que pode abrigar todos os credos e, inclusive, credo algum. Este é um princípio-base da democracia. A universidade é lugar de conhecimento e não de profissão de uma fé em particular. O lugar de praticar a fé é outro: a igreja, o templo, o terreiro, a sinagoga, a mesquita.

Fico sempre me perguntando o quanto um festival de dança contemporânea se faz também e talvez sobretudo pelas frestas da programação. Frequentá-lo é uma aposta. Esperamos que a curadoria pos-sa ter tecido boas oportunidades, bons motivos para os encontros entre as pessoas. Dos dissensos à partilha. Na partilha, uma política.

A aposta é também na mutualidade como única e precária certeza de que a dança possa ainda ser aquilo que nos une na constituição de um comum. Pequenos e fortes encontros reafirmam um tipo específico de amizade tecido à distância. Cada um dos parceiros, na maioria das vezes sem o saber, colabora com o outro na invenção compartilhada de mundo. Aliás, a parceria é anterior, é condição.

Muitas vezes em um festival de dança contemporânea, nos descobrimos parceiros de alguém. Antes, de um nome que conhecemos pela referência em um catálogo. É o seu trabalho, sua ação no mundo, que alimenta a amizade cujo exercício mudo – exercício não exercido – nos une. Trata-se de um tecido de afetos em potencial, uma filia ainda não realizada que desconstrói o futuro (o progresso) em favor de devires-mundo e de devires-dança. Sem o saber, a programação de um festival tece, sem objetivo ou programa, uma rede silenciosa de devires. E isso também é uma política.

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Os festivais de dança contemporânea podem funcionar como escolas informais de formação – um lugar de confrontações do olhar, do gosto, do juízo. Mas uma escola sem professor que ensina. Uma escola que proporciona oportunidades de construção a partir de suas fissuras, de suas dúvidas, de seus intervalos, do “entre”. Somente deste lugar, posso me dar a pensar honestamente qualquer curadoria.

Improvisar é esquecer.Rudolf von Laban

Poderíamos, então, entender o intérprete (e a intérprete, sempre, não nos cansaremos de repetir) como uma espécie de presságio da dança, que está sempre conjuntamente com ela a devir (passado e futu-ro), nos pequenos manejos e acordos que faz; em seu próprio corpo, portanto. Não poderia ter nascido assim um Nijinski? Ou um Merce Cunningham nascente no seio da pesada gramática de Martha?

xSe cada ideia de dança inaugura no corpo uma técnica, isso pode ser compreendido como um modo específico de esquecer. É exatamente porque e quando esquece que o corpo transita entre o já-criado e o por-criar próprios da tensão composicional comum a qualquer obra de dança. Nos pequenos acor-dos que realiza sequencial e intensivamente em seus movimentos, o/a intérprete maneja o lembrar/esquecer como um jogo de fidelidade/infidelidade à dança: tanto àquela composição em particular quanto à dança de modo geral.

As ideias de dança escrevem no corpo do intérprete o que ele deve lembrar e – ali mesmo – conjunta e paradoxalmente desenvolve procedimentos que o habilitam a esquecer – a dançar, portanto. E o fa-zem por inaugurarem no corpo uma técnica: um modo específico de operação de descontinuidade, de trânsito, entre o passado e o futuro. Assim, colaboram com o desdobramento (e não com o progresso) estético-histórico da dança em seu jogo de permanência/mudança.

xSe dançar é esquecer e o corpo não esquece jamais, onde, então, a dança se produz? Notas para pos-síveis respostas:

1. Entre a arte e a técnica e não ou a arte ou a técnica. O corpo não conhece ou a arte ou a técnica.

2. O corpo não conhece a dicotomia. O corpo só conhece o paradoxo;

3. O corpo não conhece acumulação. O corpo aprende por substituição;

4. O corpo só dança uma dança a cada vez;

5. Se o corpo dança é porque nele nasce uma técnica;

6. Toda dança traz consigo a sua própria técnica;

7. A dança não reconhece na técnica nenhum universal;

8. O intérprete dança porque compõe. Todo intérprete é autor de sua dança;

9. Quando dança, o corpo não executa; Se executa, o corpo não dança;

10. O corpo só dança se aprende a esquecer.

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Há uma filosofia espontânea na sala de aula de dança. Isabelle Launay e Isabelle Ginot

A filosofia está sempre lá, a questão é o quanto nos damos conta dela e, assim, com qual ou com quais filósofos pensamos e, neste jogo, o quanto de autoria tem o meu próprio pensamento. A formação de um pensamento autoral e autônomo parte da assunção das implicações do meu modo de pensar nos meus fazeres; dito de outro modo, implica responsabilizar-me: – Que mundo estou ajudando a inventar com a minha prática? Se o que eu penso é o que eu pratico, e não poderia ser diferente, o quanto sou responsável por meu próprio pensamento/prática? Há inevitavelmente um ajuste muito fino entre téc-nica e conceito. Não há técnica sem conceito.

xPor que a formação em dança, qualquer dança, não pode nutrir-se dos estudos contemporâneos da educação? Como dialogar presencialmente com esta moçada, hoje com pleno acesso às tecnologias de produção e de veiculação da informação? A quem interessa perpetuar, na sala de aula de dança, relações pedagógicas baseadas na sujeição? A que serve ainda hoje ensinar sem contar o segredo, interditando ao artista-em-formação o acesso à origem e, assim, ao sentido de seu gesto dançado?

xAquilo que eu falo em sala de aula, distinguindo o ensino de dança contemporânea do ensino com dança contemporânea, serve também para este livro como um todo, pois ele pode muito bem servir a todos da dança que desejem desenvolver um pensamento contemporâneo em dança relacionável, e não aplicável, veja-se bem, a qualquer dança.

Do mesmo modo como historicamente o discurso LGBT soube passar de um século a outro atuali-zando-se na substituição, por exemplo, do termo opção sexual pelo da condição sexual e, mais re-centemente, pelo da orientação sexual para dar conta dos processos de singularização próprios da homossexualidade, já podemos começar a inquirir severamente a diversidade e seu lugar no discurso da dança. No lugar da falaciosa diversidade, a constituição de uma singularidade do comum. Neste caminho, necessário diferir singularidade de individualidade.

Não estamos aqui diante de individualidades, pois a individualidade trata de algo que se move em um espaço consistencial, uma realidade substancial: algo que tem uma alma, uma consistência por sepa-ração a, em relação a, uma totalidade (conjunto). Algo que tem uma potência centrípeta. O conceito de indivíduo é colocado a partir da transcendência. A relação não é entre mim, você e ele, mas entre o indivíduo e a transcendência absoluta que dá a esta pessoa uma entidade, uma consistência. Sujeito?

Seguindo o que me interessa aqui, o ser só existiria na relação, na dignidade da cooperação; uma rela-ção de singularidade e cooperação, sendo a cooperação uma nova forma de razão – não mais a razão

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abstrata ou transcendente – uma razão que imediatamente conecta o saber à prática. Nestas relações, a interdependência é fundamental; não há verdade que não nasça junto, que não nasça desta interde-pendência.

É o sentido comum dessa massa de ações que cria a consistência do trabalho hoje. Singularidade e cooperação se tornam fundamentais na produção de qualquer coisa. E na singularização, um modo de resistência hoje: um novo ethos.

xAlgumas categorias de sujeito e de indivíduo: centramento, separação, propriedade.

xExperiência comum, gestão do comum.Esse um do comum como artigo indefinido entendido como qualquer um.Não é inclusão de todos, mas de qualquer um. Quando falamos de uma instância que ela é pública, é porque pode acolher qualquer um: qualquer um pode participar e não todos.

Embutir em consagradas assertivas filosóficas a palavra “dança”. Fazer emergir os modos como a dan-ça problematiza consagradas categorias do pensamento.

Comecemos com Aristóteles e a sua conhecida frase: “O ser se diz de muitas maneiras”. Sabemos o quanto o filósofo empenhava-se em pensar a multiplicidade do fenômeno, qualquer fenômeno, frente à suposta unidade indiscernível do Ser, princípio inevitável de uma metafísica em plena construção. Metafísica que foi repetida e exaustivamente denunciada por tantos outros filósofos. Inseridos neste caloroso debate, o que poderíamos pensar com a paráfrase a dança se diz de muitas maneiras?

Se pensarmos com Aristóteles que a dança se diz de muitas maneiras, partiremos de um princípio indiscutível, uma premissa: a dança é. Ou seja, a dança não só existe, como sabemos de antemão, por princípio, o que ela seja e podemos, a partir daí, pensar todas as manifestações da dança, toda a pretensa riqueza de sua diversidade. Partindo deste princípio, desta unidade identitária, a dança pode, então, se multiplicar em infinitas variantes, mas somente ao nível do predicado, pois todas as variações partiriam de uma raiz comum: a Dança. Assim, assegurada em uma lógica de identidade e predicação, as variações seriam aquilo que deriva de uma origem já dada, aquilo que a partir da origem vem-a-ser, ou seja, torna-se possível.

O mesmo princípio se aplica ao Ser da frase de Aristóteles que admitia a variação, mas partindo, diga-mos assim, de um sujeito de proposição, este sim invariável. Tudo varia, menos um fato: o Ser é. A partir daí, digamos assim, o ser se diz de muitas maneiras. Ele se desdobra a partir de uma raiz ou de uma essência, para usar a terminologia do grego. As coisas todas variam no mundo, mas somente depois de terem assegurado na origem, no começo, no antes de tudo, sua essência, sua identidade. Sendo assim, a Rosa 2, por exemplo, nunca poderia ser completamente outra em relação à Rosa 1. Continuando a paráfrase-provocação, desenvolveríamos com Aristóteles, ou seja, amparados em um pensamento de base metafísica, a dança, partindo do seguinte princípio:

Sabemos o que é dança.Dancemos a partir daí.

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Diferente deste caminho, se nos aproximássemos de Nietzsche, que dizia “A diferença está no cerne do Ser”, talvez nos déssemos a pensar a dança de um outro modo. Parafraseando-o, poderíamos dizer que a diferença está no cerne da dança. E partindo desta premissa, chegar até a afirmar que a dança está no cerne do Ser. Mas fiquemos por ora com a primeira proposição.

Se embutirmos a diferença na origem da dança, naquilo que a define, em seu desdobramento, cada dança em particular não deriva de uma origem imóvel já dada, mas volta-se sobre a origem, esboroan-do a identidade em um movimento de constante mudança. Cada gesto de dança estaria a interrogar a identidade da dança, perguntando-lhe com a franqueza de todo gesto nascente: “O que é isso, a dan-ça?”. Com Nietzsche, antepomos na origem a diferença – o movimento de diferenciação como produ-tor de inúmeros e inevitáveis devires de dança desapegados de uma lógica essencial que, assegurando a raiz, legisla sobre o seu futuro. Assim, pensamos conjuntamente a política implícita na metafísica já denunciada por diversos outros filósofos.

Sim, pois se pensarmos com Aristóteles, toda variação é o que se tornou possível (o vir-a-ser) a partir da origem fixa – identidade posta como tal; uma lógica excludente que demite da variação todas as outras possibilidades imprevistas e imprevisíveis à origem. Se eu sei o que a dança é, controlo seu vir-a-ser. Ela pode vir-a-ser um infinito de possibilidades, todas as variações possíveis, mas somente aquelas admitidas no seio da essência da dança.

Antepondo na origem a diferença, ou seja, quando admitimos que nunca se sabe de fato o que ela é, uma vez que ela está sempre a esboroar sua própria identidade quando alguém dança, não controlo o vir-a-ser da dança. Incluo todas as possibilidades como possíveis, abro a dança ao eterno retorno de seu devir, de sua diferença. E talvez nos déssemos a pensar assim:

A dança não se sabe.A dança não se sabe nunca.A dança não sabe nunca de si.Voltemos sempre aí.

Falávamos da sintomática líquida (Bauman me cansa um pouco) que rege os afetos hoje e do quanto é contraditório que nossos projetos de dança falem da mutualidade como política e do quanto é difícil que de fato nos encontremos. Circunstância de mundo – situação de dança.

Pensei em amigas e amigos coreógrafos com quem eu não encontro, senão mui raramente. Aliás, encontrar para ensaiar tornou-se um transtorno, parei e pensei. Lembrei-me de circuitos europeus de festivais cujo tráfego aéreo exige malas cada vez menores e mais leves; roupas cada vez mais desmar-cadas de gênero, a meio caminho entre a roupa de ensaio e a roupa de passeio. A proliferação de com-putadores Macintosh, portáteis e prontos a tecer relações – quase um fetiche descolado da geração líquida, igualzinho a este aqui no qual digito este texto agora.

Sem lamentos, pensei também o quanto malas menores metaforizam certo desterro e o quanto isso colabora, sem qualquer relação de causa e efeito, na constituição de uma rede, bela rede, e na possível desconstituição de um ambiente de dança. Penso no quanto nossas relações de dança, de uns tem-pos para cá, estão sempre intermediadas pelo projeto; o quanto o risco do encontro está roubado de antemão pelo elogio da colaboração. Pensei na colaboração, tão festejada na dança de uns tempos para cá, como um sintoma. E como ela se ampara contraditoriamente numa rede de relações sempre intermediadas pelas granas do projeto ou do edital. Eu me encontro com você, a não ser que o edital ou o programa não o proporcione.

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A singularidade entendida como princípio e fim do dançar: interesse pela experiência dançante como elemento constitutivo da fatura coreográfica.

xA criação de intensas paisagens físicas nas obras de dança.

xNão basta que se esteja fazendo movimentos harmoniosos e tecnicamente bem executados ao som de uma música para que aquilo que se performa seja uma dança, quero dizer, para que aquilo constitua uma poética em dança.

xCada coreógrafo desenvolverá, então, uma linguagem própria, uma assinatura, ancorada em uma pes-quisa de movimento singular. É preciso inventar a língua mas, também, sua gramática e sua semântica para constituir uma escrita de dança autoral, o que marca a entrada de uma criadora ou um criador no seleto ambiente da carpintaria coreográfica. É preciso criar, ainda, o uso e também os modos, ou seja, caberá a cada coreógrafo-pesquisador de dança contemporânea inventar também uma metodologia de investigação de sua própria linguagem. Invenção, portanto, de um novo corpo, a cada vez.

Não nos parece contraditório, portanto, o fato de que a maioria das companhias de dança contem-porânea nascidas nas décadas de oitenta e noventa carreguem em seus nomes o próprio nome da coreógrafa ou coreógrafo que a criou e a dirige. Um modelo organizacional e uma economia de produ-ção reunindo agentes de dança em companhias centradas na figura do criador-diretor (e da criadora-diretora, sempre), que nortearão e mapearão uma topologia específica na primeira geração de dança contemporânea.

Modelo e economia em larga transformação neste momento. Hoje, a cena é outra. Lidamos com um panorama de dança contemporânea muito mais marcado pela proliferação de trabalhos independen-tes, ora organizados em torno da figura de um criador-centro, mas que faz a si criador-intérprete do próprio trabalho muitas vezes de caráter solista; ora pela multiplicação de trabalhos de colaboração em que a autoria encontra-se em deslocamento e, por que não, em questão.

xO trabalho de criação é da ordem dos ensaios, das tentativas, dos inventos experimentados por cada um que, tomando a si mesmo como prova, inventa conjuntamente seu próprio destino. Neste ambien-te, dançar é sinônimo de pesquisar. Por isso, a improvisação é uma das moedas de troca no studio. Dela depende uma qualidade muito particular de pesquisa a ser desenvolvida, um estudo dos movimentos nascentes da/na experiência de mover-se. No caso, um mover-se próprio ao próprio mover-se. Um corpo atento, sensível, permissivo, trespassado pelo gosto da invenção e desapegado da dança bien faite – a boa dança, a bela dança –, de onde pode surgir literalmente qualquer coisa. São regimes de criação nos quais o intérprete deixa de fazer uma coisa para tornar-se (esta coisa) e, ao fazê-lo, deixa de ser coisa, passando a processo intensivo.

Ao aprofundar-se nesta pesquisa de si, o intérprete é levado a perceber que cada experimento con-voca certos estados no corpo, ou como diria certeiramente Laurence Louppe, certos estados de cor-po e, com eles, um determinado feixe de movimentos afins. Esta compreensão o torna apto a fazer a passagem do material sensível à matéria artística e a atuar nas práticas dialógicas de criação em dança contemporânea. Acontece que, em muitos casos, a coisa não para por aí. Dos estados de corpo

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insistentes, recorrentes e afins, muitas vezes, nasce um vocabulário de movimento – uma espécie de assinatura corporal – fazendo a passagem do material sensível à matéria artística, levando o intérprete ao caminho da composição propriamente dita. O material que nasce destes estados de corpo pode então ser desdobrado em linguagem. De dança? Não necessariamente, pois isto não está dado (decidi-do) de antemão. Pelo contrário, está franqueada a formação de tantos novos meios ou gêneros quanto possibilite a pesquisa corporal.

xFalando um pouco da história da dança contemporânea no Brasil, a assinatura corporal, ao transfor-mar-se em assinatura artística de uma linguagem autoral de movimento, interessou ao entendimento do vocábulo dança contemporânea no decurso da década de noventa. Neste contexto, a célebre noção de coreografia como combinação de passos segundo uma escritura espacial/cênica baseada na lógica da espetacularidade entrou em xeque. Coreografar significava agora inventar movimento e, conjunta-mente, tanto a lógica de composição, quanto os regimes de visibilidade de sua apresentação pública. “O coreógrafo é um pesquisador!”, não cansaríamos de ouvir essa frase no decurso de uma década. Autoria de movimento e invenção de meios, tudo partindo da assinatura corporal, eram passagem só de ida ao destino quase inevitável: dança contemporânea.

xOs estados corporais nomeiam as modificações corporais, os acontecimentos corporais, nascentes na experiência dançante a partir da coemergência, imediatidade, imanência, por fim, entre o cinético, o estésico e o estético. Neste caminho, os estados de corpo podem ser entendidos como fundantes e fundados do/no sentido dançado próprio a cada uma das poéticas de dança contemporânea confor-madas no decurso do século XX e que carregam a assinatura dos coreógrafos correspondentes. E que se são assim, deveriam carregar, do mesmo modo, a assinatura dos intérpretes correspondentes.

O devir aí em jogo não é sinônimo de tornar-se, mas de um vir-a-ser que nunca é. Devir que, apesar de ser um verbo, não é conjugável no tempo dos tempos verbais. O verbo permanece, portanto, no infinitivo, assegurando uma noção invisível de gerúndio: passado, presente e futuro não se encontram mais em uma condição de sucessão, mas de simultaneidade: o tempo como um emaranhado; não mais uma linha, nem mesmo um rio de tempo.

Assistir a espetáculos e mesmo a vídeos de espetáculos que trazem de além-mar as novidades da vanguarda mundial da dança contemporânea pode caracterizar um método informal de educação e formação estética de um coreógrafo? Pode um festival funcionar como escola informal de criação?

Alguns espetáculos constituem-se como marcos na percepção de criadores de dança e, talvez, a par-tir deles uma determinada perspectiva coreográfica passe a ter lugar. Funcionando tais como feridas

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narcísicas, estas rupturas podem ser responsáveis pelo nascimento de uma linguagem de dança, seja pelo aproveitamento, seja pela recusa daquilo que ele viu e, principalmente, daquilo que experimentou ao ver. Do ponto de vista antropofágico, recusa e aproveitamento são faces de um mesmo processo de deglutição cultural. Até que ponto espetáculos de outras pessoas influenciam esteticamente um coreógrafo cuja poética está em formação? A hipótese é que estas obras fornecem parâmetros para perto ou para longe dos quais as incipientes linguagens coreográficas podem se localizar, encontrando e fortalecendo, assim, seus traços singulares.

A noção de influência aqui apresentada não poderia ser outra senão a crítica, na medida em que desa-creditamos do desenvolvimento do processo histórico-cultural tal e qual uma árvore genealógica em que a geração futura provém da geração anterior e cuja trajetória retroativa nos levaria a encontrar-lhes uma raiz. Seguindo Nietzsche pela leitura de Foucault, não buscamos a origem genealógica, mas tentamos fazer a genealogia da origem. E isto não é um mero jogo de palavras.

De qualquer modo, o questionamento sobre o papel exercido pelos festivais não-competitivos de dan-ça na formação do olhar do criador de dança constitui-se como vasto campo de indagação e investi-gação. A tarefa é identificar o papel histórico exercido pelos festivais não competitivos de dança e seus reflexos mediatos e imediatos na criação artística que em torno deles se formaliza.

Há muito se sabe do interesse das criadoras e dos criadores de dança contemporânea pela filosofia, muito embora haja ainda muita a coisa a se dizer/saber desta aproximação. É curioso observar con-ceitos filosóficos aparecendo nos releases dos espetáculos de dança, sendo citados em entrevistas feitas com tais criadores, ou mesmo sendo referidos como objeto de estudo realizado em paralelo ao processo de criação.

Talvez isso se explique, entre outros tantos argumentos plausíveis, pelo caráter filosofante que a dança contemporânea comporta dentro de si, pela produção de pensamento dançado a que dá ensejo no miolo de seu fazer, pois não se trata propriamente de dançar conceitos filosóficos cunhados para longe da sala de ensaio e para dentro do solipsismo do gabinete. São antes e, sobretudo, conceitos-dança que emergem do próprio dançar. Para isso, requisitam não corpos que dançam, mas corporeidades dançantes que sejam capazes de acolhê-los; mais precisamente, os conceitos-dança ali iminentes con-vocam corporeidades dançantes nas quais eles possam desdobrar-se da carne de que são feitos.

xNessa nossa difícil contemporaneidade, novos fazeres instituem novos espaços de articulação e diá-logo entre categorias muitas vezes apartadas. Interessa-me afirmar entre a dança e a filosofia, entre o corpo e o pensamento, entre a teoria e a prática, um entre. Importa pensar para além do bem e do mal. E é urgente pensar para fora das velhas dicotomias, levando em consideração, entretanto, que os problemas delas provenientes ainda estão vigentes, enfrentando-os com o rigor, o fôlego e a conse-quência necessários.

xA tarefa, entretanto, não implica constituir a dança como pensamento sob outro ponto de vista, mas passar do óptico ao háptico. Um olhar tátil. Assim, quem conhece já não se percebe nem no interior, nem no exterior daquilo que conhece. Nem dentro, nem fora, mas uma intersticialidade. Corpo.

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Composição de pensamento que emerge da própria dança e como dança. Não sobre a dança, mas em dança ou de dança.

xO intento passa por trançar a escrita sobre arte pela escrita de arte, em um exercício desafiado pela hibridação entre o seu formato e a natureza do objeto investigado. No caso da dança contemporânea, a pertinência do entrelace começa pelo próprio conceito que lhe dá sustentação. E sustentação já se-ria nome inadequado, uma vez que tanto a produção de pensamento quanto a de dança – produções que possam manter alguma familiaridade com o conceito de contemporaneidade – não o fazem, senão sobre bases semoventes.

xQualquer narrativa ou teoria que se prezem, face à complexidade contemporânea das artes e do pen-samento, escavam os próprios fins (término; futuro; meta; finalidade) e começos (razão; princípio; motivo) e instituem, no lugar, as potências de vida.

xComo construir conceitos-dança?

xA filosofia tem, digamos, o seu trabalho finalizado com a dança todas as vezes em que se torna, por procedimentos intrínsecos ao processo, superada por ela, ou seja, quando a dança pensada a partir da filosofia torna-se uma filosofia da dança, ou ainda melhor, uma dança-filosofia. 

E para começo de conversa, bem começo mesmo, o que o senso comum nos leva a pensar é que te-mos um corpo e não que somos um corpo. Não podemos deixar de falar de um filósofo em específico – René Descartes (1596|1650) – a quem podemos remeter este pensamento que, ao longo da história, passou de filosofia a senso comum.

Você provavelmente já ouviu falar de sua célebre frase “Penso, logo existo”. Pois bem, o que estou sugerindo é que na sua vida mais cotidiana, nas suas atitudes mais comuns, inclusive na hora em que você faz uma aula de dança, é mais ou menos como se esta frase estivesse funcionando dentro da sua cabeça, sem que você precise ficar repetindo-a todo o tempo. E o que estou sugerindo também é que este modo de pensar talvez não seja o mais adequado para pensar a dança.

“Penso, logo existo.” é uma espécie de emblema de toda a filosofia cartesiana (de Descartes). A filo-sofia é entendida, neste caso e em muitos outros, como um mar de pensamento criado em torno de uma ilha: o princípio. Mas não é só isso, as ondas deste mar em seu movimento de vai e vem têm que quebrar nas praias sempre desta mesma ilha, a ilha do princípio. O princípio, para a grande maioria das filosofias existentes, é algo, digamos, que está no início e acompanha toda a produção de pensamento do filósofo. Tudo o que ele pensar, disser, escrever tem que concordar, justificar, desenvolver o princí-pio. Mais do que começo, início, princípio é fundamento, pois acompanha tudo o que o filósofo pensa (produz), como se fosse o trilho sobre o qual corre o trem. No caso da filosofia cartesiana, o princípio é: Penso, logo existo.

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Vamos ficar nesta frase um pouquinho. Vamos desdobrá-la juntos. Para isto, peço que você atente para o modo como se construirá toda a argumentação a seguir, pois a filosofia de Descartes se desenvolve segundo um método bastante peculiar no qual as partes se encaixam umas às outras como num que-bra-cabeças. Uma peça parece que pede pela outra com a qual combina logicamente e, à medida que vão se encaixando, as coisas vão fazendo (supostamente) pleno sentido. Isso é o que chamamos de método dedutivo cartesiano, que influenciará nos séculos seguintes o desenvolvimento do tão elogia-do método científico. Até chegar no século XX, quando tudo isso entra em profunda crise – mas esta é uma história para daqui a pouco.

A frase de Descartes está escrita na 1a pessoa do singular, certo? Então, há nela um “eu” que diz que pensa, e isso já é da maior importância aqui, pois Descartes está afirmando que este “eu” pensa e que pensa a partir de si. Parece bobeira. Talvez você se pergunte: – Que coisa mais ridícula! Pra que fazer uma filosofia inteira em torno de uma coisa tão óbvia? Pois é, o fato de você achar banal, corriqueiro, é prova do funcionamento que estou tentando descrever e para o qual utilizei a religião como exemplo aí acima: a filosofia cartesiana de ontem tendo se tornado o senso comum de hoje. É importante lembrar que não foi sempre assim e que Descartes estava filosofando em um momento da história em que era necessário demonstrar, comprovar, explicar tim tim por tim tim, ou seja, detalhadamente, irrefutavelmente, que o homem pensa por si, a partir de suas próprias deduções racionais. E pensar, no caso, é igual a duvidar.

É mais ou menos assim: de tudo devo duvidar, até chegar ao ponto em que não duvidarei mais e terei encontrado algo que é irrefutável, de que não poderei mais discordar, tendo então, só então, produzido conhecimento. De todas as coisas duvidáveis, há uma entretanto da qual não posso duvidar e é o pró-prio método que o demonstra comprovando, inclusive, o ponto de onde parti (o princípio): o fato de que eu duvido. Se duvido, penso; assim, a única coisa da qual não posso duvidar é a de que eu penso. Disso posso ter certeza! Mas não para aí: se duvido, penso, se penso, (não sou eu que estou pensan-do?), ora!, eu existo, caso contrário não duvidaria e portanto não pensaria. Parece lógico, não é mes-mo? E esta evidência aparentemente irrefutável é só o começo de nossos problemas. Continuemos.

Eu penso e existo. Veja que “Eu penso” está antes de atestar a existência de qualquer outra coisa. Assim, a ordem das proposições não pode ser invertida: eu não existo e penso, ou seja, não existo (consisto) antes de pensar; existo porque, quando e se penso, pois até de minha própria existência eu poderia duvidar. Deixo de dela duvidar, quando penso que penso: disso eu sei. Assim, a existência é uma dedução lógica do pensar. Se é assim, se a minha própria existência pode ser comprovada pelo fato de que eu penso, assim deve ser também com todas as outras coisas do mundo.

Mas muita calma nessa hora! Descartes não está afirmando que basta eu pensar, como mágica, para uma dada coisa passar a existir, materializando-se à minha frente. Se fosse assim, nosso pensamento traria a pessoa amada em três tempos, não é mesmo? Mas não é disso que se trata. O que está em jogo é o fato de que o homem, tomando a si como matéria pensante (res cogitans, no latim), difere, pela razão e a au-toconsciência, de todo o resto de matérias extensas (res extensa, idem), as que existem no espaço, que ocupam lugar. Assim, o que define tanto a existência quanto a humanidade do homem é a consciência, a razão e não, por exemplo, o corpo. Vamos caminhar por esta trilha ainda mais um pouquinho.

Ora, se o corpo é meu, o corpo não sou eu. E isso é um grande problema, pois pensamos o corpo como meu, mas o vivenciamos como eu.

Aliás, para falarmos de modo mais adequado a um pensamento em/de dança, teríamos que dizer: “Vivenciamos.” – ponto –, pois “vivenciar o corpo” ainda é continuar dizendo mais ou menos a mesma coisa que Descartes: o corpo como objeto da vivência do eu. Precisamos arrumar um jeito de sair dessa barafunda. De um lado, o corpo; e de outro, portanto dele separado, o eu. Repare que Descartes, e nós

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a partir dele, estamos identificando o eu com a matéria pensante (a consciência, que também poderia ser chamada de alma, razão, ou, mais ordinariamente ainda, de mente) e, para isso, ao mesmo tempo, estamos desidentificando (diferindo) o eu do corpo (matéria não-pensante). Junto com isso, estamos inevitavelmente dizendo que o corpo não pensa...

Então, o eu não é o corpo. Talvez você, jovem do pensamento, gostasse de perguntar: “Mas então, Sr. Descartes, como explicar que o eu/corpo se mova?” E como ele tem resposta para tudo, não pode ne-gar que há entre eles uma relação. “Mas”, talvez você voltasse a argumentar, “dizer que há uma relação já não é formular a questão a partir de coisas separadas?”. Eu concordaria com você e diria: de um lado o eu, de outro o corpo, entre eles uma relação. O que Descartes está propondo talvez tenha tudo a ver com a ótica: há uma separação entre o eu-observador e o objeto-corpo-observado.

Vamos a um exemplo simples: imagine que você segura um lápis e olha para ele. O senso comum lhe dá plena certeza: você não é o lápis, certo? Você olha para ele e supostamente está certo de que vocês dois não são a mesma coisa. Há o lápis-objeto e o você-sujeito que o observa. Muito bem, é mais ou menos isso que está acontecendo entre o eu e o corpo dentro da proposição cartesiana. E você há de concordar comigo que existe um problema aí: o corpo humano não é da mesma natureza, digamos, que todos os outros corpos (objetos) existentes, tais como o lápis, o carro, a mochila etc. E talvez possamos resumir aqui o debate quanto à questão do movimento e, assim, irmos chegando cada vez mais perto da dança.

Geralmente, a não ser em filmes de terror e afins, o lápis, o carro, a mochila não saem por aí movendo-se por si, eles são movidos por alguém. Do mesmo modo, para Descartes, o corpo não tem animação própria. Tal como um relógio ao qual damos corda para que ele funcione, ande, o corpo é uma máquina animada pela matéria pensante. E veja: não pode ser uma simples coincidência histórica que o relógio mecânico seja uma invenção desta mesma época do Descartes, né? Tal como o relógio, o corpo huma-no, neste pensamento, é entendido como um autômato, inerte, que se move graças ao acionamento da consciência/alma/razão/mente.

Seguindo o raciocínio cartesiano, para encurtar o caminho, poderíamos dizer que a gente pensa e age. E já lhe adianto que a questão do movimento é, até a chegada do século XX, um entrave para o pensa-mento filosófico em toda a sua história ocidental. Assim também para Descartes, que o compreende, mas o compreende separando eu e corpo e, mais grave, posicionando o corpo como objeto do eu. Podemos brincar e dizer que Descartes não dançava. Se dançasse, talvez tivesse pensado outra coisa. 

O devido reconhecimento talvez começasse por problematizar a palavra intérprete. Dizer que a dança é o pensamento do corpo, como Helena Katz gosta acertadamente de frisar, não é o mesmo que dizer que ela é o pensamento no corpo ou através do corpo. Aliás, dizer que a dança é o pensamento do corpo é um ato de resistência que entrevê em quem dança outras operações, muito mais complexas, do que o senso comum sugere em seu interpretar.

1. Interpretar não é traduzir um conteúdo de um meio a outro – de coreógrafos a espectadores, por exemplo. 2. O corpo não é tradutor-intérprete da mensagem. Seguindo o pensamento de Katz, por sua vez featuring Marshall McLuhan: o corpo é a mensagem.

Na obra de arte, há sempre uma tensão entre o já-criado e o por-criar. Relação de ambivalência, coo-peração e luta: entre o já-criado e o por-criar naquela obra em seu próprio processo de composição; entre o já-criado e por-criar na obra daquele dado autor (seu conjunto de obras); entre o já-criado e o por-criar em toda a história da arte (passada e futura). Este jogo complexo contém o movimento da própria obra (seu sentido da composição), pedindo pelo próximo gesto. No corpo do bailarino (e da

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bailarina, sempre) está toda a oportunidade de vislumbrarmos esta luta e talvez, nessa luta, possamos nos dar a pensar a técnica em dança de um outro lugar.

Os intérpretes carregam no corpo a potência de fabricação das novidades estéticas e oferecem, talvez, a mais inquietante metáfora do animal-técnico. O intérprete é aquele que faz, naquele gesto, ao mes-mo tempo, potentemente uma só coisa e potencialmente todas as outras. É uma espécie de luta trava-da no corpo e ela sinaliza perdas no processo. Assim, não há lugar para continuidade por reprodução.

O grande intérprete é aquele que acaba de fazer aquilo ali como se fosse a única possibilidade de algo a ser feito naquele momento e potencialmente carrega, conjuntamente ao nascimento de seu gesto, todas as outras possibilidades daquilo mesmo – mesmo e outro, identidade e diferença, sempre em paradoxo, sempre em trânsito. De todas as possibilidades cogitáveis naquele breve instante, o corpo escolheu aquela. E ela parece ser a escolha mais justa, aquela que bem interpreta, ou seja, bem ad-ministra a tensão e a luta entre as partes ali em litígio, (ouvindo) o movimento de sentido que ali se fabrica. É uma escolha sim, mesmo rápida, diria instantânea – outro paradoxo. Há escolha na esponta-neidade? É uma escolha, eu diria, kinestética (faço remissão aqui ao conceito de resposta kinestética da americana Anne Bogart): uma que media princípio e momento; preparação e experimento; compo-sição e improvisação.

No corpo que dança, há uma profusão de escolhas sequenciais que se dão a partir do desenvolvimen-to, nele, de uma inteligência formada por duas linhas de força em entrelace íntimo: o cinestésico e o estético. Acontece um sofisticado trabalho sobre a percepção em seu duplo aporte: a percepção do sentido do movimento (Laban), a partir da organização somática do corpo e da experiência psicofí-sica do mover-se, conjugada à percepção do que chamaríamos de senso estético – arbítrio acerca da pertença ou pertinência dos movimentos a uma dada linguagem de dança. Ambos são, digamos, ferra-mentas com as quais o corpo inteligente judica instantaneamente acerca do que fazer.

Importa, no kinestético, o papel relevante que exerce o juízo estético na tessitura do dançar, revelando a ocupação ou responsabilidade específica do bailarino em suas escolhas. E não fazemos aqui qualquer distinção entre o bailarino-criador – que improvisa e colabora na criação de movimentos integrantes da coreografia – e o bailarino-executor – aquele que aprende os movimentos criados pelo coreógrafo. Nosso esforço, aqui, é exatamente desconstruir esta distinção e a própria ideia, inacreditavelmente ainda vigente, de bailarino-executor. É sempre criação o que o bailarino faz quando dança. Ele é um intérprete-criador que, em qualquer contexto, é autor de seu próprio movimento.

Para isso, todas as possibilidades, repito, todas elas têm que ter sido cogitáveis na metodologia de preparação. Esta preparação remonta ao passado imediato do aprendizado/desenvolvimento daquela coreografia em particular e ao passado imemorial do aprendizado/desenvolvimento dos alunos em dançarinos. Quais são os acordos que ele aprendeu a fazer com sua dança? Sob que pedagogia apren-deu a ser intérprete – uma pedagogia da autonomia ou uma pedagogia da sujeição? A sujeição implica a formação de um sujeito na própria acepção da palavra – aquele que se sujeita. Em pauta, novamente o difícil tema da formação em dança, resistente entrave. A porca…

Quando vejo um grande intérprete, ou seja, um forte agente de dança, no palco, fico sempre me per-guntando como terá sido sua formação. No palco, talvez estejamos vendo alguém que se tornou bai-larino apesar do e não graças ao que aprendeu.

Como pedir de um intérprete que ele crie, que ele escolha, tendo passado anos de sua vida em uma sala de aula, alienado dos devires do mundo e dos devires estéticos da arte, sendo muitas vezes osten-sivamente humilhado e desinvestido da intimidade de seu próprio movimento, fazendo de seu corpo, e a si, um instrumento? Se lhes ensinarmos a fazer passos e não a escolher, provavelmente estamos rou-bando-lhes correlativamente, por mais contraditório que possa parecer, a possibilidade de dançar. Até que ponto estamos dispostos a admitir o artista-em-formação como um agente autônomo e respon-sável que escolhe e decide? Este ponto será o limite vivido futuramente pelo intérprete na assunção autônoma e criativa de sua responsabilidade em decidir kinesteticamente quando dança.

Aceitar esta suposição poderia nos levar a pensar que, quando dança, o bailarino não executa. Ele cria, compõe. Indo mais longe – exatamente porque e quando não executa, dança. Na descontinuidade que se impõe inevitavelmente entre o que aprendeu e o que faz é que o bailarino dança. Na passagem de um movimento (Gesto 1) a outro (Gesto 2) na partitura coreográfica; na passagem do movimento do professor ao aluno ou do coreógrafo ao bailarino, o mesmo enigma entre Rosa 1 e Rosa 2. Ao dançar,

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o intérprete cria a partitura de movimentos previamente estabelecida na coreografia – e não recria, como usualmente se diz –, na medida em que é ele quem arbitra acordos entre aquilo que o gesto dançado pretendia ser e o que ele pode inaugurar aqui e agora na lida com o chão e com o tempo. É neste sentido, então, que improvisar poderia, aqui, constituir o próprio sentido do dançar – qualquer dançar, se entendermos improvisar como medida de negociação do bailarino (e da bailarina, sempre) entre o já-criado e o por-criar; medida de sua presença nas escolhas e decisões a serem tomadas em uma partitura de dança que escreve em seu corpo fortes tensões de uma luta travada entre algo que tenta permanecer e algo que tenta se instaurar.

Aí talvez esteja a arte da dança em sua conjuntura com a técnica. Se a diferença está no cerne da dan-ça, é porque a técnica, tal como uma cantilena, sussurra ao ouvido do intérprete pedindo: a diferença, a diferença, a diferença ... Aí, ele esquece. Quando esquece, dança. Quando dança, o corpo é necessa-riamente infiel aos princípios.

É justamente a técnica que faz do intérprete um partícipe e não um instrumento da criação. O intérpre-te é aquele que se abre para o pressentimento do sentido da dança – a diferença – que se avizinha de todo gesto nascente. Não há arte na dança, senão quando o bailarino toma parte na natureza, na ori-gem do gesto dançado. Produzindo-o, está a produzir-se. Por isso, o gesto dançado não é um produto, mas um intersticial – aquilo que, ao fazer, a pessoa não faz outra coisa, senão inventar-se. Inventar-se como? Não como identidade mas, junto com a dança, como diferença. Ao dançar, o intérprete, este animal-técnico, estaria a fazer de si, seus outros. Tal como sugere Rimbaud: Eu é um outro.

O criador contemporâneo de dança é um inventor de meios. Tanto no sentido dos suportes, quanto no sentido de procedimentos ou estratégias para criar.

xProcedimento e modos são palavras caras à arte contemporânea em sua crítica pertinen- te e conse-quente ao excesso de Estética na/da arte e, por isso mesmo, em suas frequentes e variadas hibridações éticas e políticas. Provavelmente porque essa grande narrativa, aqui adequadamente grafada com letra maiúscula, não dê mais conta de dizer os fazeres. Transformar o assunto em procedimento, atentar para os modos e menos para as razões talvez resulte de uma busca pela efetividade da arte diante dos difíceis problemas que nos constituem nestes dias que correm.

xDiante de uma tal profusão de poéticas vigentes na arte contemporânea, não há mais como apostar em chave única, universal, dada pela Estética para dar conta dos processos implicados em todos e em cada um dos casos, do mesmo modo implicados tanto no fazer quanto no fruir das obras. A improprie-dade da Estética não se mede somente por sua unicidade frente à multiplicidade, mas principalmente pela profusão não ser somente numérica, mas ontológica.

xQualquer coisa pode tornar-se uma coisa de arte. Qualquer coisa, repito. Entretanto, dizer que qualquer coisa pode ser arte não é o mesmo que dizer que tudo é. Do mesmo modo, dizer que qualquer coisa pode tornar-se de arte não é o mesmo que dizer que já o seja. Enquanto o sistema de arte, mesmo manco, ainda se mantiver de pé, há um processo ao longo do qual aquela coisa vai tornar-se de arte. Isso não nos impede de perguntar: a quem e a que interessa ainda operar nos escombros do edifício da arte? Conseguimos operar de outros modos? Não para fora dele, ou para além dele, mas para aquém.

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Imaginemos a seguinte hipótese: em um palco italiano, uma mulher caminha da coxia à esquerda em direção ao centro do palco. Lá, um homem se encontra de pé, parado, os braços ao longo do corpo. Ele olha para o chão. Ela caminha na sua direção. Quem não leria entre os dois já e imediatamente um casal? Dependendo do modo como ambos se movam, da posição da cabeça dele, a relação do rosto dela com a velocidade do andar, quem não leria já um passado de uma situação em curso? Quem está seguindo o caminho futuro deste passado? Os dois intérpretes em cena ou somos nós que decalcamos sobre eles nossas inferências?

Se, no palco, um homem puxa uma arma, na sua cabeça de espectador-expectador, ele já matou, cer-to? Você já completou a sequência de acontecimentos pelo que espera que aconteça. Você já atribuiu um destino para aquilo ali e exterminou, antes mesmo de nas- cerem, todos os futuros inéditos e inau-ditos com os quais uma cena no palco ou uma cir- cunstância na vida poderia brindá-lo/a.

As infinitas possibilidades de sequência de uma dada situação são limitadas pelos prová- veis des-dobramentos cuja coerência inferimos e mesmo exigimos dos corpos. O possível é exterminado pelo provável. Quantos futuros possíveis cabem em uma determinada situ- ação? A resposta poderia ser: “todos os possíveis”. Infelizmente, não é bem assim. Quan- do a cena está em curso, nós, como espec-tadores-expectadores, já estamos dando a ela alguns futuros prováveis, todos eles, mesmo que muitos, ainda em número inferior, se comparado ao número infinito de possíveis.

Está em curso, junto com a suposta cena de nosso exemplo, o nosso olhar exterminador de futuros (possíveis) e com ele o que Michèle Febvre chama de apetite semiotizante do espectador. Trocando em miúdos, isso seria o mesmo que uma fome de entender. O correspondente do apetite semiotizante, da fome de entender, é o corpo-tradutor. Entrou em cena, já está sob acusação. Quando é que a gente absolve o corpo? Quando ele se torna legível, quando ele se confessa tornando legíveis, inteligíveis, os gestos corporais. E você, refestelado/a confortavelmente na cadeira do teatro, sorri, dizendo: “Ah, sim! Agora eu entendi.” Isso acontece na circunstância cênica, acontece de modo análogo ao casal em silêncio sentado à mesa do bar.

A pergunta que não quer calar é: e quem foi que disse que somos compostos tão somente de matéria corporal, comportamental, inteligível? E quem foi que disse que a arte tem que se balizar tão somente por estas exigências de inteligibilidade? O que acontece quando a composição de movimentos em dança não se organiza pela consecução de movimentos prováveis e, por isso mesmo, legíveis e inteligí-veis? O olhar-exterminador reconhece neles uma espécie de delito. Arregaça as mangas e rapidamente aponta o dedo em riste, dizendo: “Isso não pode”. Pois é, para a dor e a delícia de lidar com obras de dança contemporânea, pode.

A dança, assim chamada de contemporânea, não é uma, mas várias. São várias obras e, mais grave, muito diferentes entre si. Então podemos imaginar o termo dança contemporânea como um grande conceito guarda-chuva embaixo do qual se abrigam obras de diferentes naturezas. Nada entre elas coincide necessariamente: nem o tipo de movimentação que fazem os bailarinos; nem o modo de en-

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cenar a dança (por exemplo, se vai ser em um palco propriamente dito, na rua, no apartamento de al-guém, ou através de uma ligação telefônica); se for num palco, se vai ser em um palco grande para uma grande plateia ou diante de uma cadeira reservada para um espectador a cada vez; se haverá pessoas se movimentando ao som de uma música, no silêncio, ou ao som de um discurso; não temos sequer segurança se haverá de fato algo a ser visto; por último, bem grave, mas ainda totalmente possível, não temos segurança sequer se haverá dança.

“Ora!”, você poderia agora objetar, “diante de uma tal disparidade como ainda podemos falar de uma dança contemporânea?”. Aparentemente, numa olhada superficial, se você não tiver paciência ou for mal-humorado/mal-humorada, nada restará senão a impressão de uma generalidade absurda, de um reino da gratuidade total, do oba-oba, de um relativismo sem regra e sem rigor. Mas se você se detiver um pouquinho, prestar um pouquinho mais de atenção, verá que não é bem assim. Estamos sim, não vou mentir, nos movendo no território do qualquer. Sim, qualquer coisa pode ser utilizada como ma-téria para a dança, inclusive o movimento mais ordinário, como andar, por exemplo. Saímos da dança entendida como domínio do extraordinário, do espetacular, do especial. Isso entretanto não quer dizer que esteja proibido compor em dança contemporânea com materiais desta natureza (espetacular, ex-traordinário, original, especial), mas é o oposto que deixou de ser proibido. Na dança contemporânea, podemos trabalhar com o ordinário e o comum, pois não é isso que definirá mais se aquilo que faze-mos é “de arte” ou não. E aliás, até isso está em questão, se queremos fazer arte dando continuidade à narrativa histórica deste conceito (da história da arte) ou se vamos nos perguntar acerca do que faz uma obra ser de arte ou não, ou mesmo, e ainda mais radical, se a arte ainda tem lugar no mundo de hoje e, mais importante, como e por que.

Vou te contar uma coisa que talvez você não vá gostar muito de saber, mas, depois da experiência do século XX, não temos mais garantia dada antes do fazer de aquele fazer será ou não considerado de arte. Pois é preciso que você saiba: uma coisa que fazemos, um espetáculo, por exemplo, não está dado de antemão que ele seja de arte, só porque você o queira, só porque você assim o entende. O que vai determinar se uma obra é ou de arte são vários agentes, dentre eles você, mas também o público, as outras pessoas que trabalham com arte (curadores, críticos, professores, outros artistas etc.) e o tempo ou a posteridade, mesmo que seja uma posteridade bem próxima.

Muito bem, o fato de que hoje a arte (contemporânea) seja um reino onde, a rigor, qualquer coisa é possível não é culpa de ninguém em específico, mas foi um movimento, ao longo do século XX, em que muitos agentes, sem necessariamente terem combinado entre si, assim foram entendendo e foram entendendo a partir das obras feitas. É mais ou menos como se o artista levantasse uma hipótese: isto que estou fazendo, por mais esquisito que possa parecer, e se isso fosse considerado “de arte”? Ele co-loca a hipótese no mundo, estreia um espetáculo, por exemplo, e a partir de então não é mais somente ele quem decide, mas o processo pelo qual a obra vai passar.

Então, no caso da dança contemporânea, alguns artistas foram levantando hipóteses de dança nas quais a admissão do qualquer foi aparecendo (qualquer movimento pode ser de dança; a dança pode acon-tecer em qualquer espaço; os tempos internos à movimentação podem ser irregulares ou quaisquer; os acontecimentos podem ser ordinários e comuns; pode haver beleza ou não etc.). Isso entretanto, enten-da bem, não é o mesmo que dizer que não haja rigor, que não haja, nestas obras, composição ou, ainda antes, projeto estético. E esse é um ponto interessante de ser compreendido: cada obra, cada artista, ao invés de seguir caminhos de composição já garantidos, porque já feitos e repetidos em muitas obras diferentes ao longo dos anos, inventa os seus próprios caminhos, os seus próprios modos de compor, o seu rigor interno, as suas próprias regras, que definirão conjuntamente o que aquela obra vai ser.

xÉ um rol de criações que se acomodam, entretanto não comodamente, debaixo do amplo e elástico guarda-chuva da dança contemporânea. O que estas danças têm vocação, desde o seu nascimento, talvez seja de não-ser e, com isso, conjuntamente elas denunciem que o grande problema não está nelas, mas no nosso olhar sobre elas e o verbo ser com o qual tentamos formula-las e categoriza-las segundo um estilo, uma modalidade ou mesmo um gênero de dança.

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A dança contemporânea é contemporânea do seu não-ser.

A dança é contemporânea do seu próprio não-ser, quando ela acontece desapegada (desgarrada) da expressão de sua própria identidade.

A dança é contemporânea quando subverte-se.

A dança é contemporânea quando ela admite aquilo que a corrói, aquilo que destrói seu ser.

xA dança contemporânea não existe, ela se declara.

O exercício da escrita sempre foi, em mim, a descoberta do corpo. Escarificar, no corpo, o texto da norma e encontrar a carne da escrita. É também por isso que a minha carne é feita de letra. Nesse exercício, as palavras podem então trabalhar entre si na fabricação de um pensamento mudo. O pen-samento mudo para Lygia Clark liberta o ato de pensar de seu jugo pela representação.

As palavras podem então ser retomadas, não para constituir um todo que se estira como sentido entre a origem e a finalidade, mas para evidenciar os vazios, as lacunas. Assim, podemos nos abrir juntos para o pressentimento do sentido. A única noção de sentido que importa. Tentando constituir alguma coisa que fosse a meio caminho entre uma fala sobre dança, uma fala de dança e uma escritura de dança. Foi o que tentamos fazer aqui.

Nessa proposta, a teoria não antecede, nem sucede. Ela é concomitante ao acontecimento, explorando suas frestas não para completá-las, mas para dançar junto. Traço peculiar de uma fala na qual conteúdo e gesto não se distinguem tão facilmente. Poderíamos talvez chamá-la de uma fala corporal. É também por isso que, aqui, não há lugar para qualquer cartilha. Aliás, na dança, já estamos fartos de cartilhas. No lugar da cartilha, proponho a partilha. Aqui, antes de qualquer coisa, uma conversa de dança.

É uma conversa de dança atravessada pela contrapartida de uma escuta atenta que se interessa pelo encontro que a mediação da fala de arte pode proporcionar. Já não se trata propriamente de teoria, mas de uma poiesis do pensamento que precisa do outro para se realizar. É relacional. A aposta é na colaboração. Trata-se de apresentar o conteúdo contando o segredo, disponibilizando não só a infor-mação, mas investindo em estratégias de posse autônoma por parte daquele que aqui não aprende, antes e sobretudo elabora junto.

As palavras servem tão somente de contorno. Cercar de palavras para constituir o silêncio. Um em redor de silêncio. Um vazio que se parece tão somente com a ausência de todo o resto. A ausência do mundo. Que não se parece com nada de fato.

Alguma coisa se passa entre a fala e o silêncio. É o murmúrio do corpo. Todo o pensa- mento, e em par-ticular o que entra em uma relação afetiva, é acompanhado de gestos que o próprio pensamento não poderia pensar e que exigem um corpo para poderem se dizer. Toda fala é um ato de fala. Toda a fala se prolonga em múltiplos gestos que convocam outros gestos, enquanto a fala continua a escapar ao ato.

xA matéria da palavra é a carne. A medida da palavra é o gesto.

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O gesto dançado pode deslizar entre a linguagem falada e a dança, como se ele estives- se a um milí-metro de tornar-se fala. Ou melhor, é o que resta de horizonte de sentido quando a palavra iminente foi retirada. O que sobra é o corpo — produtor do sentido, um sentido, entretanto, sem significado — tal como o entendemos aqui.

Palavra e dançaPalavra dançaPalavra-hífen-dança — é deste entre que se trata.

xVocativa é a vontade de escrita como conversa que não suspeita do registro, uma vez que a única coisa que o registro guarda é o espaço, o lugar de futuras inscrições.

Com as contribuições da arte, da filosofia e da Teoria da Relatividade no século passado, podemos conceber, por exemplo, que o espaço não antecede o corpo. Eis uma mutação ocorrendo na concep-ção espacial, para a qual contribuem largamente os princípios das Geometrias não-Euclidianas que nos habilitaram, ao longo do século XX, a falar mais generalizadamente de um espaço não-euclidiano. São suposições espaciais que nascem da incorporação da geometria pela física e que adicionam, às três dimensões espaciais, uma quarta: o tempo.

A dificuldade do senso comum em compreender a quarta dimensão temporal (do espaço) se explica também pela suposta solidez da também suposta concepção tridimensional de tudo o que há. O espa-ço euclidiano corresponderia ao modo como em geral entendemos o espaço. Assim, qualquer sala ou palco de dança, por exemplo, preexiste ao momento e ao fato de que nela entremos. Mais uma vez, é o senso comum que não se dá conta, nem trabalho, de perceber que há nessa certeza um a priori, ou seja, uma formulação, e segue achando que aquilo que é óbvio simplesmente é.

Para aqueles que se aventuram a pensar para além do óbvio, supor as geometrias não-euclidianas atravessadas pela dimensão temporal implica pensar: (a) O espaço não é um lugar estável ou fixo; (b) O espaço não é um lugar que contém os objetos; (c) O espaço não é um lugar que antecede os aconte-cimentos; (d) Em resumo, o espaço não é um lugar. Por isso, é importante, a partir de agora, na leitura deste texto, entender espaço já como espaço-tempo.

Muitas danças surgidas no decurso do século XX parecem ter estreita relação com tudo isso, pois as infi-nitas possibilidades de composição nelas nascentes fazem nascer conjuntamente infinitas possibilidades de composição de espaço-tempo. Neste contexto de criação e experimento, nem espaço, nem tempo antecedem a dança, mas são fabricados junto com ela. Não por ela, pois a dança não os antecede, sendo deles a causa. A dança também não os sucede, sendo deles a consequência. Espaço-tempo e dança são fabricados juntos, fabricando-se um ao outro. Não há relação de causa-consequência aplicável.

E isso acontece porque, nestas danças, o corpo opera a passagem de objeto a processo; de materiali-dade a intensidade; de produto a produção; de instrumento a corporeidade/subjetividade, e o faz por-que já não se move dentro de um espaço euclidiano. Isso implica a percepção, ou seja, a compreensão vivencial de que o corpo fabrica espacialidade, manufatura o seu entorno; de que o corpo não é um objeto circundado por um espaço já dado.

Assim, dentro e fora do corpo já não são categorias aplicáveis, pois uma reversibilidade aí se produz. O fora está dentro, melhor dizendo, é dentro, assim como o dentro do corpo está fora, é fora. Não há

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fronteira, mas contiguidade. Corpo e espaço são intersticiais e perfazem avesso e direito um do outro, justaposição que, entretanto, não é fixa.

Como a figura não está parada, se o corpo é o avesso do espaço, à (mesma) medida que se movimenta, é o espaço que já se converte em seu avesso, passando corpo e espaço a não conhecerem outra coisa um do outro, senão o avesso do avesso do avesso. Se o corpo, em seu dançando, por exemplo, puxa o espaço para perto de si, é porque imediata e correlativamente, ou seja, neste durante que ali se esta-belece, o espaço encontrou analogia, transformando-se em corpo. O espaço suporta o corpo, o mesmo corpo que é, do espaço, o porteur. Paradoxo.

Admitir o espaço-tempo não antecedendo o corpo, mas sendo fabricado conjuntamente à movência, inaugura uma mutação profunda nos fazeres em dança, aos quais primeiramente será conferido o epíteto de dança moderna, mutação esta que só se agravará e multiplicará ao longo do século XX. Tra-ta-se de uma ambiência, um modo particular de habitar o lugar como tempo. Espaço-tempo. Dançar neste contexto implica constituir modos no corpo de transformar as coordenadas espaciais em coor-denadas temporais, e vice-versa.

No estudo do tempo-como-espaço-como-tempo, o bailarino aprende a se ajustar ao fluxo com as mesmas fineza e precisão de um surfista que não pode atrasar nem antecipar a subida na prancha, sob pena de perder o espaço-tempo da onda formante (semovente). A atenção ao momento ajustado não é suficiente. Faz-se necessária uma consubstancialidade surfista-onda a partir de sua fina leitura psicofísica do lugar ao movimento, ou seja, do momento em que o lugar seguinte vai acontecer. Da metáfora do surf de volta à dança: o bailarino não se submete ao fluxo, mas maneja-o numa consubs-tancialidade ao espaço-tempo ali formante.

O tempo pensa na dança.

xEm dança, se nos ativermos a verificar o quanto a (suposta) tridimensionalidade espacial acorda com a (suposta) tridimensionalidade corporal entretecendo um espaço-corpo do vivido (corporeidade), nós nos restringiremos à noção fenomenológica do corpo, conquista que, apesar de importante aos estudos em dança no decurso do século XX, detém-se onde deveria avançar.

Se, na dança, o corpo opera a passagem de objeto a processo, se o corpo deixa de ser um objeto coe-xtensivo aos outros objetos do mundo, como ainda se pode falar de corpo? Para seguir o caminho que o levaria definitivamente de objeto a processo, de coisa extensa a processo intensivo, será necessário corromper definitivamente a integridade do corpo pela heterogeneidade do tempo, abrindo-o para a diferença. Neste caminho, o corpo puxa para perto de si uma temporalidade singularizante, uma per-turbação temporal (um tempo da diferença, ou em diferença). E isso é o mesmo que dizer que o tempo pensa na dança.

Neste modo de pensamento, é importante perceber qual a noção de tempo que a ele se afeiçoa, pois, diferente do que gostaria o senso comum, há outras possibilidades de pensá-lo para longe da aparen-temente insuperável noção cronológica, representada por uma seta linear progressiva designando um fluxo sucessivo e intermitente, de pulsação regular, que liga passado-presente-futuro. Esta é a preg-nante noção homogênea de um tempo que, movendo-se para frente, rouba a vida à medida que passa, pois à mesma medida que se presentifica, mata o presente atrás de si.

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De tão propalada, ao longo de tantos séculos, para nós ocidentais, esta noção de tempo tornou-se “o” tempo: um tempo que passa e que pode ser medido de acordo com marcadores espaciais. Os números do relógio de ponteiros, por exemplo, nada mais são que marcadores espaciais do tempo – o tempo entendido como espaços percorridos – e, por serem representações espaciais do tempo, não são ne-cessariamente a natureza do tempo.

A condição, ou se quisermos a novidade, que o corpo na dança do século XX enuncia é a de que este tempo (cronológico) não é a natureza do tempo, mas um dos modos de convencioná-lo. A natureza do tempo é de múltiplas temporalidades e o corpo na dança contemporânea ao mesmo tempo as constitui e é por elas constituído.

O tempo não passa necessariamente. O tempo pode durar, no sentido de que ele pode se estender para além daqueles instantes que supostamente se passaram (perdurar). Ele pode ainda estender-se, ali mesmo, enquanto supostamente passa, durando muito mais do que o tempo do relógio contabili-zou. Quando beijamos a pessoa amada, por exemplo, o tempo do beijo é como se ele se desdobrasse infinitamente para dentro.

O tempo pode ainda e também ser circular, espiralado, infinito como uma Fita de Moebius, intermitente e irregular, fragmentário, serial, processual etc. Mesmo assim, é importante ressaltar, o círculo, a espiral, a dobra, o relógio, também o rio, ainda são representações do tempo. A natureza do tempo, em suas múltiplas temporalidades, talvez seja de fato irrepresentável. Isso não impede, entretanto, que ela seja enunciada no/como corpo, constituída e constituinte do corpo, e parece que a dança (contemporânea) tem tudo a ver com isso.

xTempo de imanência – uma pergunta da dança ao tempo – o que seria maneira mais poética de dizer que a dança constitui-se pela imanência do tempo a si.Imanência, uma dança.

xDançar aprendendo a ver as horas dos relógios outros próprios do tempo processual.

A dança contemporânea se desenvolveu como algo que se pode definir por um teatro da experiência; um teatro que, através do confronto direto, faz a realidade comunicada de uma forma estética, tangível como uma realidade física.

Os acontecimentos não se ligam uns aos outros por causalidade. Tampouco se organizam no espaço em uma composição cênica que se ofereceria à visão em um único relance. A conexão entre as cenas se faz por livre associação, sem necessidade de enredo, ou psicologia de personagem. As imagens e ações li-vremente associadas formam cadeias de analogias, tecem uma teia complexa de ligações. Toda tentativa de se pregar sobre as obras uma perspectiva de sentido pensado a priori é desacreditada e desinvestida.

Cenas autônomas convivem dividindo um espaço que não se organiza para um ponto de fuga privile-giado e ideal para o espectador captar o todo da cena. Os eventos competem entre si pelo olhar do espectador que fatalmente escolhe. Incapaz de perceber o Todo, incapaz de tomar a cena num único relance, o espectador é levado a ter uma participação ativa de sua percepção, já que ele é obrigado a montar seu próprio espetáculo.

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Nenhum fio tenso de narrativa se estira entre princípio e fim dos espetáculos. As obras não perseguem a variação sistemática de um tema único predeterminado pelo/a autor/a. Cada cena imbrica uma mul-tiplicidade de fenômenos colidindo no mesmo espaço. Assim, a coerência só se torna aparente durante o processo de recepção. As obras são incompletas. Para que se desenvolvam completamente, elas demandam um espectador ativo.

A chave fica com o público que, diante da cena, não é mais testemunha de uma suposta tradução da realidade. O que vê o espectador nas obras de dança contemporânea? Não vê. É muito mais uma es-pécie de contágio, a relação cena-plateia.

O que lhe será proposto é uma qualidade de espectação laboriosa, que trabalha junto com a obra, completando o que ali se apresenta apenas sob o signo da sugestão. Ele será insistentemente convi-dado a deixar o lugar da expectativa na espectação. No palco, a linguagem elogia a poiesis (criação), intrínseca à recepção. E neste caso, já não é de recepção que trata a atividade do espectador. Aliás, na arte, nunca é.

A experiência do devir, também dos devires-outros de si, é o que o espectador encontra no tempo dos espetáculos que apresentam o movimento como evento, como um fenômeno sempre novo. A única coisa que ali se repete, o que retorna, portanto, é a repetição da diferença.

Vamos imaginar o seguinte: a pessoa comprou o ingresso e sentou-se na plateia de um teatro para assistir a uma obra de dança. Quando toca o terceiro sinal, convenção que separa os tempos – o su-postamente real do supostamente ficcional que está para começar –, é como se esta pessoa lá senta-da sacasse de seu bolso uma lista e uma caneta. Ela vai assistir ao está por vir na firme convicção de poder ticar cada um dos itens de sua lista de modo a sair da casa de espetáculos segura e feliz de ter assistido a uma obra de arte. Os itens desta lista são em número de seis e equivalem, cada um deles, mas principalmente em conjunto, às exigências do espectador em relação àquilo pelo que ele pagou; por aquilo que o pagamento do ingresso equivocadamente parecia assegurar-lhe: de que ali naquele espaço-tempo, dá-se uma relação mediada exclusivamente pelo consumo. Mas não é só isso. Cada item da lista corresponde separada e conjuntamente àquilo que a tradição chancelou como sendo as propriedades da obra de arte.

Vamos passar agora à outra valiosa metáfora: a do edifício. Vamos imaginar que, ano após ano, década após década durante os cinco ou seis séculos que separam o XIV do XX, andar sobre andar, um edifício foi sendo construído. Vamos dar-lhe o nome de Edifício da Tradição Artística. Como tal, como qualquer construção que se preze e que se sustenta firme de pé, ele vai sendo construído sobre certos pilares e estes pilares sobre uma pedra fundamental. Os pilares, e a pedra fundamental sob eles, estão afixados na terra e invisíveis embaixo do prédio, sustentando-o sem se darem a notar. São seis pilares no total que, por terem sustentado durante tanto tempo o firme prédio da Arte, confundem-se com a definição do que seja arte, ou seja, se houver um fazer supostamente artístico que não seja produzido seguindo estes mesmos fundamentos, o produto ou obra não será considerado de Arte. Outra questão que a imagem do prédio ainda permite metaforizar é a do artista em formação, ou seja, qualquer pessoa que deseje tornar-se artista vai bater às portas do prédio pois, para tornar-se artista, é necessário pertencer a ele ou nele entrar.

Você já deve estar percebendo que a conta de seis itens na lista do espectador do início de nossa narrativa e a de seis pilares do Edifício da Tradição Artística ser a mesma não é à toa, certo? As pro-priedades que o espectador exige da obra de dança, quando vai lhe assistir, são as mesmas que his-toricamente, até a chegada do século XX, acreditava-se que eram as propriedades da obra de arte.

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Elas davam garantia a todos de ter diante de si não uma coisa qualquer, mas coisa artística. Por isso, é curioso que este espectador pense que sua opinião sobre a obra seja sua, tão sua, exclusivamente sua se, para julgá-la como sendo boa ou ruim, como sendo uma coisa qualquer ou uma obra de arte, ele está fazendo corresponder propriedades que a história, por seus mecanismos intrínsecos, instituiu como tais. Essas propriedades, de tão repetidas, rearranjadas, revisitadas das mais variadas maneiras, desapareceram como opções e foram tomadas quase como regras da arte, como se fossem a própria vocação da Arte, a ponto de serem reclamadas por quem as consome, mesmo hoje. Em resumo, tor-naram-se hegemônicas.

Que a obra: 1. Seja bela (bonita); 2. Comunique alguma emoção; 3. Conte uma história; 4. Conte uma história na qual ele possa acreditar; 5. Tenha personagens reconhecíveis; 6. Reifique a separação social entre espaço da arte e espaço da vida são as exigências feitas pelo espectador à obra que correspon-dem a cada um dos seis pilares do edifício da Arte que durante séculos foi sendo erigido e, junto com ele, construída uma noção de tradição que lhe correspondeu: o Belo; a Expressividade; a Narratividade; a Verossimilhança; a Figuração, o Espaço hieraquizado, respectivamente. E a pedra fundamental? A própria noção de representação que baliza todo o resto. Ticou cada uma delas na lista: é arte; é bom; ele gosta. Não ticou? Não é arte, não é bom, não gosta.

Para a dor e a delícia de lidar com coisas de arte ao longo do século XX, circunstância que se radicaliza ainda mais nesta paisagem, estranha paisagem, que nos acostumamos a chamar de arte contempo-rânea, e dentro dela a dança contemporânea, todos os pilares que sustentavam o Edifício da Tradição Artística não se sustentam mais como tais. E talvez estejamos hoje andando perigosamente sobre os escombros, os cacos e estilhaços de uma tal construção. Nada foi definitivamente ultrapassado, tam-bém não está mais desavisada e portentosamente vigente. Não há mais garantias tão seguras a sus-tentar nossos passos. Isso não é o apocalipse, mas um outro momento da história em que as diferenças convivem, e não pacificamente.

Sabemos que, na era industrial, os fins coincidiam com as etapas consecutivas de execução, visando produzir um objeto cuja finalidade corroborava a origem. Importava inquirir a alienação do indivíduo em relação às etapas e a consecução do produto final. Esse era assunto urgente, por exemplo, de uma dança expressiva nascente no início de um século cuja sintomatologia Carlitos, frente à esteira daque-les tempos modernos, tão bem exemplificava.

xSe problematizarmos a miopia tecnicista que reduz o papel da universidade à formação profissiona-lizante, voltada para um suposto mercado de trabalho, vamos à universidade e nos matriculamos em um curso de dança para quê?

xEntender campo (de atuação) profissional como campo de invenção.

xDepois da universidade, sejamos francos, não há emprego. Longe de se tornar um epitáfio, esta frase pode nos falar de um grande começo. Está em jogo a decadência do emprego em uma era que supos-tamente soube, com maior ou menor competência, substituir o capitalismo industrial pelo capitalismo da informação.

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xÉ necessário cautela para que não formulemos perguntas modernas para respostas contemporâneas.

xDeixar de pensar não mais o lugar no qual vou inserir-me; antes e mais urgentemente quais são as condições de possibilidade que inventarei para existir e permanecer (resistir).

xSe o desemprego é a agonia do capitalismo, talvez seja o desemprego agora o novo modelo das re-lações. Ao invés de chorarmos um capitalismo agonizante, podemos aproveitar a oportunidade e nos voltarmos para o desemprego e não mais para o capitalismo, como modelização de nossos gestos e de nossa subjetividade. Talvez retomarmos a força política do desejo para buscarmos a solução.

xSe não nos cabe sonhar, cabe-nos certamente inventar. Não mais criar um objeto que faça coincidir em suas etapas executórias o fim com a origem; o sentido com a função. Inventar não objetos propriamen-te, mas relações. Cabe-nos permanecer no tempo inventando as condições desta insistência. Sigamos, portanto. Sigamos a máxima do mestre Oiticica: – Da adversidade vivemos!

xSe olharmos agudamente para a dança, seja como campo de saber ou de atividade profissional, e logicamente estas não são categorias autoexcludentes, veremos que a dança está no ainda antes do depois, inventando, pulsante e pulsátil, o que ela pode ainda ser. Por isso me debato tanto no desapego da afirmação, e por que não do controle, do que a dança é, pois o que a dança é é o que ela devém a partir de cada uma de nossas invenções. Estas não são invenções já circunscritas por uma fantasia cha-mada mercado de trabalho. Não existe mercado de trabalho. Ponto. Existe o que inventarmos desse mercado, que se estabeleça como possibilidade de novas singularizações.

Experimentar torna-se então sinônimo de errar: vaguear sem destino certo; deambular: prática de exílio; gosto de errância; desterro; travessia. Contraditória e logicamente, na errância não há erro. Tam-bém não há acerto. Sendo assim, experimentar torna-se sinônimo de errar e isto é o mesmo que dizer que experimentar torna-se sinônimo de acertar. De todo modo, vaguear sem destino certo pressupõe necessariamente transitar pelo território do não-saber. E transitar pelo não-saber, para um bailarino treinado a cumprir tarefas, equivale a cruzar uma fronteira, a experimentar um interdito, a adentrar um território novo, inicialmente bastante desagradável. É um tipo de travessia que ele só pode fazer por si e que o levará do prazer de executar ao gosto de fazer (fabricar) e, assim, a tomar gosto por experien-ciar a sua dança. (Prazer e gosto, no caso, não são sinônimos entre si.)

xCom qual filosofia estou pactuando quando danço? Que mundo estou ajudando a inventar com a minha prática? Que futuro estou fabricando com meu passo? Nos procedimentos de composição, nos expe-dientes escolhidos para abordar o intérprete de dança, no lugar de onde o próprio intérprete permite ser olhado dentro da criazção, nos modos de encenar a composição, o que necessariamente determina qual o lugar do espectador, nos atos de fala aparentemente mais ingênuos até, inocula-se uma ética.

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xÉ uma escolha irredutível de existência: exercícios de si pelos quais se poderá, ao longo de toda a vida, viver a existência como experimentos de autonomia, estes que nada mais são que exercícios criadores de novos sujeitos éticos. Técnicas do trabalho sobre si como lugar de uma experiência, de ensaios de existir.

xUma vida artista baseada na autonomia, na capacidade de responder a partir de si: este é o único cami-nho que eu conheço para a construção de uma inteligência corporal. De um corpo que pensa. Por que a dança de um Dominique Mercy interessa? Porque ali há um corpo que pensa. E quando pensa, dança.

Se o corpo faz uma pergunta a si, é porque nele já se inaugurou uma vontade de pesquisa. Isso, em dança, envolve a dor e a delícia de interrogar o passado para poder reaprender a pisar o chão a partir de si. Nessa genealogia de si, crítica por natureza, inaugura-se no corpo como corpo um processo de invenção impulsionado pela busca da dança de cada um, como sugeria Isadora Duncan, uma vez que “a mesma dança não pode pertencer a duas pessoas”. Isso nada mais é que a busca por transformar um modo particular de mover, em dança.

A medida de prudência continua válida a nos lembrar que um modo particular de mover não é neces-sariamente equivalente à expressão da individualidade monadária e identitária que faz coincidir o si com o si mesmo – base da noção de sujeito cunhada na modernidade. Singularidade não é sinônimo de individualidade, tampouco de identidade. No caso de nossa perspectiva, muito pelo contrário. O método genealógico assegura que a busca seja atravessada por um gosto pela diferença e, assim, pelos devires-outro (outridades) do indivíduo como corpo. E isto não é um “teatro do eu”, mas uma espécie de fabricação de si em diferença em relação a si mesmo, um trabalho estético-político de criação de si.

xE se um tal processo envolve a invenção, isso é o mesmo que dizer que a produção de corpo aí de-sejada deixou-se atravessar por um coeficiente interno de diferença. Talvez pudéssemos chamá-la de diferença discreta ou menor, marca de um processo que aqui chamamos de contemporaneidade e que passa a habitar a corporeidade dançante.

Assim, de corpo a corpo, uma descontinuidade estará prescrita nas relações em dança intermediadas pela dança contemporânea todas as vezes em que os modos de trabalho forem questionados em sua política. Isso serve para pensarmos as razões pelas quais, no decurso do século XX, práticas dialógicas serão exigidas nos contratos coreógrafo-intérprete de criação em/de dança, e, da mesma maneira, nos contratos professor-aluno de educação em/de/com/através da dança.

O professor não se perpetua no aluno: o que se perpetua é a própria ética da não-perpetuação. A cada dança, a dança de cada um. O pacto em sala de aula passa não somente a admitir, mas principalmente a professar a singularização nas relações de ensino/aprendizagem. Quando a singularização, a produ-ção de diferença, é reconhecida como inerente à educação, já não se pode falar mais de transmissão via continuidade, mas de diálogo, trânsito, partilha. Diferenças fazem diferenças.

Se a dança contemporânea assegura aos processos educacionais em/de/ com/através da dança a pro-dução de diferença, é também porque ela está, por seus próprios mecanismos intrínsecos, produzindo

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diferença o tempo todo em relação a si. Por isso mesmo, ela não pode ser fim, mas meio. Deixa-se a equivocada atenção ao objeto, ao conteúdo, disfarçada nas perguntas “Que dança?” — acerca da ori-gem — e “Para que (qual) dança?” — direcionada à finalidade —, e volta-se para o processo, para os meios, os procedimentos, para os modos, propositadamente na recusa de dizer método.

xPor que a formação em dança, qualquer dança, não pode nutrir-se dos estudos contemporâneos da educação? Como dialogar presencialmente com esta moçada, hoje com pleno acesso às tecnologias de produção e de veiculação da informação? A quem interessa perpetuar, na sala de aula de dança, relações pedagógicas baseadas na sujeição? A que serve ainda hoje ensinar sem contar o segredo, interditando ao artista-em-formação o acesso à origem e, assim, ao sentido de seu gesto dançado?

xPor exemplo, Laban não se perpetua igual em Kurt Joss, tampouco este em Pina Bausch. Do mesmo modo, Mary Wigman não se eterniza em Susanne Linke. De um a outro, encontra-se prescrita a des-continuidade inerente à invenção de corporalidades distintas, variadas linguagens de cena e de movi-mento, possíveis quando se cria dança a partir de si. É uma outra regência de ensino-aprendizagem e principalmente outra política da criação que encontrarão solo fértil no que se convencionou chamar de dança contemporânea.

xPensar uma política do gesto na dança implica verificar até que ponto o bailarino toma para si a fabri-cação do tempo e, assim, torna-se autor da produção de sentido dançado. Infelizmente, esse princípio não está dado de antemão, pois depende intimamente dos modos como ele aprendeu a dançar.

Na busca por promover processos de singularização dos quais dependem, os modos de pesquisa/composição em dança contemporânea desenvolvem procedimentos, estratégias, rigores, para que o par sujeição/repetição, treinado diariamente na sala de aula de dança, seja desconstruído e transfor-mado em autonomia/invenção. E, neste contexto, nenhum universal. A cada obra, os seus próprios procedimentos, diretamente relacionados ao sentido dançado que aquela obra em particular deseja inaugurar no/como corpo.

xÉ precisamente aí onde se inocula o que poderíamos chamar de pedagogia da sujeição. O reverso da sujeição, entretanto, não é o livrar-se ou o liberar-se. Neste processo, torna-se inevitável o ques-tionamento da noção de liberdade – quimera tão ansiada pelos indivíduos, ou mesmo, tomada como finalidade da aventura do sujeito. Dessa liberdade, deve-se desconfiar, pois ela parece ser a contraface do sujeito, daquele que se sujeita. Contraditória e ao mesmo tempo logicamente, na perspectiva aqui em jogo, o poder só se exerce efetivamente sobre homens livres. No lugar da liberdade, entendida aqui como contraface da sujeição, a autonomia. E isso não é um mero jogo de palavras, apesar da diferença entre as perspectivas ser sutil.

Resumidamente, enquanto a liberdade é o objetivo da busca, a autonomia é o próprio processo de buscar tomado a partir de uma renúncia. A autonomia recusa-se a ter a liberdade por objetivo, pois não deseja mais nenhum tesouro a ser encontrado seguindo o arco-íris ao fim da estrada de tijolos amarelos. Ela sabe que a quimera da liberdade infantiliza o pensamento, um estado no qual deixamos toda a responsabilidade e decisão nas mãos dos outros. A autonomia dá-se na passagem das normas interiorizadas/obedecidas por meio da disciplina e do medo da punição à autodeterminação em fun-ção de princípios construídos a partir de si e através dos quais aprende-se a dizer a própria palavra e a pensar por si. A autonomia é, portanto, um exercício, um estudo, uma pesquisa de si.

Mas veja: é preciso cuidado para entender essa autodeterminação requerida na autonomia. Isso não é o mesmo que insuflar ainda mais o narcisismo constituinte do “eu”, do sujeito que se sujeita. É jus-tamente o “eu” que está sob suspeita, pois ele é a razão de ser do sujeito que se sujeita. Ele se sujeita

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justamente para dizer “eu”. Pensar não mais com o “eu” centrado, finalizado e coincidente consigo. Eis o que a autonomia faz pela pessoa: libera-a da tirania do eu.

xÉ caminho que, uma vez trilhado e descoberto, pode sempre ser trilhado novamente, pois a autonomia não é da ordem do conquistado. À autonomia, nunca se chega. Tal como a dança contemporânea, a autonomia é meio, não é fim e depende de um trabalho constante sobre si.

xUma qualidade muito particular da dança nasce no corpo do intérprete quando ele/ela de fato se in-teressa pelo que está a fazer; quando se interessa pelo movimento, por aquilo que o movimento lhe faz conhecer de si pela primeira vez, em outras palavras, por aquilo que desconhece de si e descobre a cada vez. Ele/ela toma a si mesmo como matéria humana desconhecida: o corpo como zona de apare-cimentos, de explosões, de descobertas. Isso diz respeito a uma qualidade muito particular de atenção.

xNa busca por promover processos de singularização dos quais dependem, os modos de pesquisa/composição em dança contemporânea desenvolvem procedimentos, estratégias, rigores, para que o par sujeição/repetição, treinado diariamente na sala de aula de dança, seja desconstruído e transfor-mado em autonomia/invenção. E, neste contexto, nenhum universal. A cada obra, os seus próprios procedimentos, diretamente relacionados ao sentido dançado que aquela obra em particular deseja inaugurar no/como corpo.

Que corporeidades são fundadas e dadas a existir nas bases e a partir das bases em que a dança se dá? A ideia de um chão firme a sustentar os nossos passos, conformando as bases seguras sobre as quais se assenta estavelmente o edifício do futuro, não para de produzir e reproduzir a ideologia, pelo chão, literalmente sustentada. Para trazermos esta ideologia às claras, é sempre importante repetir: as palavras não são vãs ou ingênuas, burras tampouco. Por isso, é importante questionar, digamos, até o talo, a recorrência da palavra “chão”, ou mais certeiramente, da palavra “base”, metaforizando tantos aspectos no uso corrente da linguagem, quanto também, e sobretudo, em dança.

Trata-se da ilusão, talvez, de um pensamento programático, assegurado (seguro e ao mesmo tempo afiançado) pela noção de pedra fundamental que daria ao porvir, ao que vem, a sua razão e a sua ló-gica; um princípio regente e um modo de funcionamento: a correlativa sensação de um pleno avançar sem obstáculos, supostamente livre, cuja única liberdade é a recusa de perceber as condições, ali ali-sadas, de um solo previamente preparado para tal. Estamos já (e sempre) a falar de uma dança. E já a conversar com André Lepecki.

Não há literalmente como tomar o chão acidentado, irregular, indeterminado como base segura para um livre e leve avançar. O tropeço é iminente e inevitável. A hesitação, a topada, o titubeio; o escor-regão, o deslize; errar, vacilar, cambalear, enfraquecer, cair, conformam entre si um errar dos pés que convocam uma dança, e por que não, um modo de existência movidos por outros verbos, por outros motivos. O “quicar”, na linguagem mais comum das salas de dança no Brasil, deixa de ser o outro da dança – o indesejável, a vergonha fatal, aquilo a ser desesperadamente evitado –, para tornar-se a pró-pria condição ética e política do dançar.

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Em que bases se dá esta dança que ora ensino? Em que bases se dá esta dança que ora aprendo? A base, aqui, com sentido desde sempre alargado, abarcando tanto o sentido de chão, quanto o sen-tido de princípio ou fundamento. Penso que seja possível ensinar/aprender a dança, qualquer dança, a partir de um chão que escapa a si; sobre uma base cujo princípio é nunca principiar propriamente, mas encantar-se desde sempre com a potência do desvio. Possível também ensinar/aprender a dançar a partir de nenhum fundamento – o fundamento um que se desdobraria no dois, no três e assim su-cessivamente. O que um tal convite supõe e modifica em nossas aulas? O que um tal convite supõe e modifica em nossas danças? Podemos nos interessar por isso? Temos medo? Um tal pensamento con-temporâneo interessaria tão somente ao ensino/aprendizagem de dança contemporânea, ou podemos trançar o ensino de qualquer dança com um pensamento contemporâneo de dança?

xAprender a dançar implica agir ética e efetivamente na base sobre a qual a dança se dá: literal e onto-logicamente, não a partir do chão, mas no chão, no modo de os pés se relacionarem com ele no movi-mento. Correlativamente, o chão deixa de ser um a priori, um já dado, ao dançar, passando a dar-se no dançar, pelo simples fato, de tão simples e tão difícil de ser aprendido, de eu nunca pisar o mesmo chão.

Existe um mundo-vasto-mundo a ser descoberto de apoios milimétricos, de diferentes matizes e quali-dades que as plantas dos pés performam com o chão. Trata-se de perceber a miríade de microaciden-tes que um chão permanentemente lembrado e agido traz ao movimento. Não um lugar para a dança (preparado para tal e esquecido como tal), mas um lugar à dança (que é permanentemente lembrado por dar-se como tal).

Ao invés de um movimento executado sobre a planaridade do chão, é o chão agindo no corpo, produ-zindo corpo. Ao mesmo tempo, é um chão que não antecede ao dançar, mas que se fabrica enquanto se dança, nesta mediação conformante entre os pés e a própria base por eles conformada, base esta semovente também.

Nesta ambiência, o acidente pode, então, ser entendido como incidente. Ampliando o sentido de um chão acidentado, por que não falarmos então de um chão incidental? Um chão incidental dá-se como circunstância. O incidente diz de circunstâncias que sobrevêm, que estão sempre sobrevindo, aconte-cendo, precipitando-se, ocorrendo, em resumo, incidindo. Falar então de um chão incidental implica falar de um chão que incide, que se enfia entre os pés, pois já são os próprios pés que o fabricam nesta reciprocidade que, entre eles, entre os devir-pés e o devir-chão, precisamente ali, está sendo negociada.

Sobre estas outras bases, quem ousará repetir bobices tão festejadas por aí? De um lado, os imperia-listas dizendo “ballet é a base de tudo”; de outro, os relativistas com suas máximas “ballet não muda”; “ballet enrijece”; “ballet é antianatômico”. Falsos problemas. Por um lado, ballet não é a base de tudo, simples e efetivamente, pois ele não é sequer a base de si mesmo. A depender dos modos de ensino, pode conformar-se como uma volta genealógica, e necessariamente crítica, sobre a própria noção de base. Klauss Vianna não nos deixa mentir. Por outro, ballet muda sim, muda sempre, pois só muda o que permanece, do mesmo modo só permanece o que se modifica.

xNinguém pisa o mesmo chão.

Ninguém pisa o mesmo chão que outra pessoa.

Ninguém pisa o mesmo chão que si mesmo.

A pisada é uma marca tão intransferível quanto a impressão digital. Diz respeito à história de cada corpo, dos modos como aquele corpo alcançou a difícil condição da bipedia e aprendeu a empurrar o chão a partir de si. (Percebe a importância da dança na história de qualquer pessoa?) Só que, diferente da impressão digital, a pisada é uma marca em movimento (mesmo parados estamos o tempo todo em movimento) e é, por isso mesmo, a melhor definição de identidade que poderíamos ter.

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Impertinente pergunta que insiste: como um ente pode conjuntamente ser e não ser? Esta questão enun-cia parte da problemática do tempo no pensamento com a qual a filosofia e a ciência se debatem, e que o corpo em condição de dança enuncia. A dança é a condição (paradoxal) do corpo acontecendo como tempo, não no tempo, paradoxo presente no par de frases que diz: a dança só acontece como aquilo que ainda não é e aquilo que acabou de deixar de ser. A dança só ocorre como algo que ao mesmo tempo ainda não é e ainda não deixou de ser. O e problematiza o é e desarticula a ontologia metafísica.

Afinal de contas, a quem pertence a cidade? O corpo contemporâneo responderá à desvinculação en-tre a carne e a pedra, entre o homem e o lugar onde vive, machucando a cidade: a violência sobrevem. O anseio daquele que intervém violentamente na cidade é violá-la para possuí-la. Seguindo o mesmo princípio, ele violará também o outro com quem não estabelece qualquer vínculo. Como diria o ban-dido da luz vermelha, no filme homônimo de Rogério Sganzerla, nos idos de 1968, “quando a gente não consegue fazer a coisa direito, a gente avacalha”. E peço muita calma aos incautos e apressados, pois não há neste texto qualquer condenação.

xTarefas emergenciais têm sido prescritas por artistas contemporâneos em vários centros urbanos do mundo para tratar das mazelas da cidade, que são também mazelas do corpo. A ocupação do espaço público é um recurso frequente.

Destacando-se das espacializações convencionais e hierarquizadas do museu e da casa teatral, a arte vai para a rua ao encontro dos transeuntes febris. Diante de toda esta mobilização, perguntamos: o que pode a dança? À mobilidade urbana contemporânea marcada pela impassibilidade diante do ou-tro, a dança pode responder com uma proposta de encontro, ou mesmo de confronto. É um convite: o corpo que se move na coreografia pode propor aos corpos que se movem pelas veias da cidade uma relação de copresença.

Ações inusitadas da dança podem surgir literalmente em qualquer lugar e vindas de qualquer dire-ção, em um banco, na varanda de uma casa, na janela de uma outra, na faixa de pedestres, ou mesmo perigosamente entre os carros, em uma mesa de bar, na fachada de um prédio ou em uma esquina qualquer. Deslocado dos usos habituais do espaço público e dos usos cotidianos do corpo, o movi-mento da dança combina a estranheza de não ser pertinente àquele contexto com a contradição de pertencer completamente àquele lugar.

O espaço cênico é o espaço qualquer. Da mesma maneira, os variados pontos de vista conferem à dança perspectivas quaisquer. Esta, longe da casa teatral, não está protegida pelo espaço privilegiado e hierarquizado do palco. Ela compete pela percepção do espectador do mesmo modo como todos os objetos do mundo na vida cotidiana rivalizam para ter um lugar aos nossos olhos. A dança, assim em trânsito, mostra-se nas suas precariedades, nos seus mecanismos intrínsecos, em uma espécie de franqueza, para a qual os espectadores sentem-se convidados.

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Tudo isso remenda por alguns instantes a ruptura ética entre a carne e a pedra. Corpo e cidade são reunidos através das sensações táteis, das sensações cinestésicas que a dança é capaz de provocar. Inventa-se aí um teatro da temporalidade, da transitoriedade.

Habitar temporariamente o espaço e nele intervir cria novas possibilidades de acesso e novas memó-rias. A cidade torna-se propriedade sem fronteiras, devolvendo aquela pedra àquela carne e reavivan-do a pertença daquela carne àquela pedra.

A cidade encarna no corpo através dos modos que este encontra para percebê-la e agir nela: olhares, paradas, gestos e velocidades. Estes índices de movimento são traços de uma grafia sempre transitó-ria, de cujos arranjos fazemos, às vezes, dança. Quando devolve a carne ao mundo, a dança se afirma contemporânea de seu tempo.

Em que medida revisitar o passado já não é uma ação presente? Agora, neste presente momento, o outrora está acontecendo num gerúndio interminável. O passado é matéria plástica. E a memória, uma espécie de fábrica do devir.

Do ponto de vista da memória, as coisas são ao mesmo tempo muito longe e muito perto; tão agora e tão outrora. Porque é ela, a memória, o dispositivo que dá à vida sempre uma nova chance. As tem-poralidades que habitamos são, dessa maneira, diretamente tributárias da memória, pois é com ela e a partir dela que se revelam, velam e se desvelam. Habitar temporalidades, constituir tempo, talvez seja isso também o dançar.

A memória e seus dispositivos de funcionamento são tema mais que atual. Trata-se de uma preocu-pação presente nas mais diversas áreas do conhecimento. Da saúde à filosofia, a atenção demasiada à memória, nosso desconhecimento acerca de suas leis, talvez seja um sintoma de nosso tempo, um indicativo de nossa sensibilidade contemporânea. Talvez o Mal de Alzheimer encerre uma metáfora algo misteriosa e inquietante acerca do que nos constitui na atualidade.

É também por isso que não nos acreditamos aqui caçadores de nenhuma arca perdida. Já não comete-ríamos tal ingênua aproximação primitivista com a matéria que aqui importa. É, sobretudo, uma atitude política o modo como lidamos com o passado. De qual passado se trata, afinal? Esta atitude revela a noção de história que acreditamos praticar. Nossa arqueologia busca o passado da única maneira que nos importa: procurando a diferença. Escavando as frestas da diferença.

O presente é justamente o que se ausenta no acontecimento. E o acontecimento: a própria teoria do devir. E o sentido aqui é sempre de mão dupla: o devir como a própria teoria do acontecimento, uma vez que, na iminência do acontecimento, é a diferença interna do tempo que de fato acontece. Isso esclarece a confusão entre acontecimento e acontecido.

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Graças à sua diferença interna, o acontecimento ensina ao tempo sua natureza – a imanência. Um devir imanente à sua própria diferença desapega-se definitivamente da irreversível continuidade e de sua representação como tempo que irrevogavelmente flui arrastando tudo o que há, correnteza adiante.

O acontecimento aparece, então, como possibilidade de corte no fluxo e como contradispositivo cor-poral à fluidez. Esta não será mais a inevitável condição do dançar. E são múltiplas as temporalidades se atravessando umas às outras, assim, o tempo do acontecimento não revoga necessariamente o tempo da duração ou o trágico tempo que passa, não toma o seu lugar.

O tempo pensa na dança quando o movimento se dá sob a condição do corpo imanente ao tempo do devir, ou seja, tanto o tempo quanto o corpo, em diferença em relação a si.

xEsbarro sutil, me detenho um pouquinho e corrijo o rumo, o rumo de uma busca que parece exigir todo o tempo que esperemos, pois é uma busca que parece caminhar por si. Uma busca sem objeto. Sempre gostei de pensar a composição por aí, como algo cujo sentido se anuncia por si e da qual o artista é agente, mas não é autor, pois maneja o sentido, sem contudo controlar-lhe o rumo. Um sentido que se faz por si.

xPermanecemos, então, nesse estado de indecisão entre a sugestão e o acontecimento. “Não saber para onde ir é diferente de não saber o que se está a fazer”, já dizia um coreógrafo português em tempo real. Qual o sentido?

O sentido que interessa nesta pergunta é da ordem da potência, do paradoxo, da abertura para séries possíveis, produzidas pela emergência da diferença. O sentido é uma pulsação e um rumor. Podemos ouvi-lo com o corpo.

xTão disseminada quanto equivocada é a associação do ofício do bailarino (e da bailarina) à execução e não à criação. Se, no momento da apresentação, é ele quem efetivamente dança a dança que ali se dança, pergunto se não seria sempre criação o que faz. Os regimes composicionais em dança contem-porânea agravam esta discussão, quando tentam assegurar ao próprio jogo coreográfico procedimen-tos que tornem inevitável a participação do bailarino como criador do (seu) ato de dançar ao dançar.

xA pertinência da ação está na pré-ação. O sentido do movimento está no pré-movimento. A contempo-raneidade da ação e do movimento. O sentido é o da preservação da contemporaneidade do sentido.

O conceito de hibridismo foi uma chave importante para a compreensão das obras que, no decurso das décadas de 1980 e 1990, começaram a ser chamadas de dança contemporânea. Ele servia de fer-ramenta conceitual para a compreensão, digamos, da contemporaneidade da dança contemporânea. O termo procurava nomear os fenômenos de fronteira, de mistura e indistinção, os estados de ambi-guidade e a coexistência de diferentes gêneros artísticos em uma mesma obra.

Hibridismo, hibridização ou hibridação são termos emprestados da biologia para a teoria contempo-rânea da cultura e da arte. Na biologia, designam os híbridos que nascem do cruzamento entre seres

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Havia inúmeros sinais de que a economia e a política criativas da dança contemporânea balizadas pelo formato da companhia de dança entravam em certo declínio. Projetos independentes não constavam se-quer no imaginário, quanto menos no vocabulário dos gestores de cultura. Para eles, o formato da com-panhia de dança parecia dar conta de todas as vontades de dança dos criadores. Uma mutação discreta, nem por isso pouco efetiva, voltada para as poéticas e políticas do corpo, da identidade e da perfor-mance ocorria nos modos de criação em/de dança contemporânea brasileira no início do novo milênio.

xEm todos os trabalhos: uma pergunta acerca dos limites da dança; um namoro com procedimentos da arte da performance; um gosto pelo literalismo da arte conceitual; uma denúncia sarcástica da escro-queria da dança, inclusive da contemporânea, entregue às supostas garantias e facilidades dadas pela Dança; um interesse pelo corpo entendido como política; uma permissão de que este mesmo corpo interrogue o dispositivo teatral – a máquina de visibilidade – e seu contrato com a representação.

xDança conceitual: nome pejorativo e perverso na sua piada (azeda e ressentida). Em muitos casos, ’conceitual’ é nome zombeteiro e negligente; é palavra-clichê que, depois da década de setenta, sem-pre retorna como uma espécie de rótulo comum para aquilo que os conservadores dos tipos mais variados repudiam na arte contemporânea.

xRecusa de produzir objetos de arte remissíveis às propriedades constituintes do meio. Às especifici-dades modernistas da pintura como pintura, da escultura como escultura, da dança como dança, a arte responde com a ação potente na esfera social. Qualquer iniciativa pode validar-se, contanto que interrompa a cadeia que sustenta a autonomia do objeto estético e que é por ele sustentada. Iniciativa, ação, procedimento, intervenção, qualquer coisa, ou mesmo e ainda um objeto, que permaneça nesta ambiguidade: não é um objeto estético, mas também não deixa de ser; permanece no limiar de sua recusa em passar a ser objeto estético e sua correlata incapacidade de já não sê-lo.

xEm todas estas manobras, a obra é flagrada no seu processo de fazimento e nas prerrogativas que a sustentam como tal. A tentativa é de um cont(r)ato contingencial com o observador. Nasce daí um im-portante manejo que eu chamaria de performativo da observação. Há uma performance no perscrutar-uma-obra-de-arte. A uma política da representação, corresponde uma performatividade da especta-ção. Novos laços, novos contratos aí se instituem. Ao espiar-sondar-examinar-espreitar, o observador é flagrado e é agora espiado-sondado-examinado-espreitado em todas as prerrogativas que constroem diante de si uma obra de arte. Como já havia argumentado Duchamp, é o espectador que faz a obra.

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provenientes de espécies diferentes. No pensamento contemporâneo, eles servem para descrever o cruzamento de, no mínimo, duas especifidades, gerando um terceiro e novo gênero de arte, campo de conhecimento ou de atuação, de natureza não sintética, uma vez que não pode ser definido simples-mente pela soma das partes constituintes.

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Já não interessa mais o que é arte, acrescentando mais uma obra a confirmar a narrativa de sua história (da história da arte), mas onde ela está e em quais condições ela se dá.

xNo lugar da obra, o procedimento; da exposição, a relação; da propriedade, a coparticipação ou o engajamento; do objeto, a objetidade; do autor, a comunidade; da espectação, o performativo da es-pectação. São estratégias as mais variadas de inserção crítica na realidade social. Não é atualização de materiais, nem criação de novos objetos-fetiche. É um comportamento, um modo de encarar as coisas, as pessoas, as relações, é uma atitude diante do mundo. É o precário como norma, a luta como processo de vida.

A arte se torna então o produto que se estranha como tal. Talvez o produto mais oportuno para fazê-lo. É urgente pensar um produto idêntico ao não-produto. A arte é entendida aqui como uma espécie de vingança dos objetos, de volta dos objetos sobre o sujeito, sujeito supostamente já dado, oferecendo-lhe oportunidades também de desconhecer-se como tal. Neste caminho, a arte não poderia furtar-se de estranhar o modo de ser dos (seus) próprios objetos (obras) de arte. Não mais objetos extraordi-nários, mas coisas, ações, intervenções, estranhas justamente em sua ordinariedade. Um mundo novo pede de nós novos modos de consistir e, como correspondente, outros modos de arte portadores de potência de heterogeneidade, de produção de diferença no ambiente mesmo.

O gesto dançado, descolado de origem e finalidade, se apresenta no palco com desenho e sentido lacunares.

xMuito embora a etimologia da palavra drama, em grego, seja ação, ao longo da história das artes cêni-cas, drama tornou-se sinônimo de um gênero literário específico comportando uma tipologia de texto em diálogo que se destina à representação cênica e que constitui, entre seus acontecimentos, a nar-rativa de uma ação (uma história) permitindo a imitação de ações de indivíduos. Extraia-se do drama toda a parte textual – tanto as palavras dos diálogos quanto o compromisso com a constituição de uma história no palco – e o que restará nesta espécie de teatro mudo é precisamente (ou tão somente) as ações, os acontecimentos. O sentido, ao invés de ser um fim teleológico das ações, é uma derivação, um efeito, ele também um acontecimento.

Enquanto o teatro trabalha com o sentido das ações, a dramaturgia do corpo trabalha com a ação (ou as ações) do sentido. E o intérprete é o autor desta nova escrita – uma escrita de sua própria carne na experiência dançante. Se na dança, o corpo não é meio de comunicação de uma mensagem, ele é a mensagem, a única narrativa que o intérprete é capaz de “comunicar”, ou melhor, constituir, é a sua própria experiência (a isto chamamos de narrativa cinética). O corpo já não conta uma história, mas é a sua própria história rompendo a barreira que separava os intérpretes da obra, pois eles são a obra. Se eles são a obra e a obra é a mise-en-scène de sua experiência movente, entre corpo da cena e corpo do intérprete já não há mais uma relação de continente e conteúdo. Está franqueada à narrativa cinética convocar tantos elementos da linguagem teatral quantos forem necessários à composição da tessitura de seu dizer/fazer.

xO contraste entre os termos Dramatiker e Dramaturg no alemão, língua de onde provém esta diferen-ciação, interessa aqui, sendo Dramatiker o autor do texto teatral que antecede a encenação (drama-

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turgo/a, no português) e Dramaturg, traduzido tardiamente para a nossa língua como dramaturgista, sendo a pessoa que acompanha o processo de criação e atua na tessitura dramatúrgica (e não dramá-tica, cabe a ressalva) do trabalho.

xDramaturgismo e dramaturgista: ambas as palavras não existem no dicionário da língua portuguesa e nomeiam uma atividade que, nas artes cênicas, difere daquela do dramaturgo, tradicionalmente asso-ciada à função da autoria do texto teatral. Apesar de já existente nos dicionários especializados, o ter-mo dramaturgismo não comporta, entretanto, um consenso acerca do rol de atividades cujo território conceitual a palavra circunscreve, dependendo, para isso, da natureza do projeto artístico ao qual se associa ou pelo qual se veja convocado. Na dança, o emprego do termo é tardio e aparece especial-mente no ambiente da dança contemporânea internacional. O caso de Raimund Hoghe é emblemático, pelo acompanhamento feito a Pina Bausch durante muitos anos a partir do início da década de 1980 na montagem dos espetáculos. Seja na dança, ou no teatro, ao dramaturgista cabe perguntar-se, no decurso do tempo de montagem de um trabalho, acerca do sentido, da constituição de sentido/do te-cido de sentido, que ali se fabrica. Pode ladear o diretor ou o coreógrafo, em uma relação nem sempre pacífica, propondo-lhe perguntas, fazendo anotações, trazendo material referencial (leituras, obras de outrem etc.), com o objetivo de criar um espaço de interlocução acerca da tessitura da obra – agindo, portanto, em sua poética. Em alguns contextos, é considerado um crítico avant la lettre, uma espécie de crítica avançada ou antes da hora.

xNo dramaturgismo, há uma espécie de olhar cinestésico, um outro modo de olhar, que não é tão so-mente do sentido do ver e que adere à matéria de movimento procurando nela o (seu) sentido; um olhar que flagra, no espaço-tempo ali formante, uma poética nascente.

Acredito que a própria matéria de trabalho tem um dizer. Gosto de investir neste fio de sentido (ima-nente) que a composição vai apontando, puxando, guiando por si. E basta um pouco de familiaridade com o ato de compor para entender que já não poderíamos chamar de fio de sentido o que nele se busca constituir/perceber. O investimento em um fio de sentido poderia nos levar perigosamente a reduzir o trabalho de criação dramatúrgica à escrita de uma linha de ação dramática.

É, sim, uma dramaturgia – uma dramaturgia do corpo e uma dramaturgia do conceito –, mas é também uma dramaturgia sem drama. O sentido que interessa na/o dramaturgia/dramaturgismo é da ordem da potência, do paradoxo, da abertura para séries possíveis, produzidas pela emergência da diferença – uma espécie de empuxo de devir. O sentido é uma pulsação e um rumor. Podemos ouvi-lo com o corpo.

Se não há qualquer fio de narrativa que anteceda o processo de composição, fornecendo-lhe uma guia para o levantamento de material cênico, por onde exatamente começar a composição? Uma vez começado, o que escolher? Se o plano de composição nunca está dado de antemão e se nele po-demos entrar por qualquer porta, como continuar? Se ainda não há nenhuma célula coreográfica ou cena compostas a priori, quais são os critérios que permitem dirimir entre um movimento significativo e outro não significativo? Ao escolher entre o que reter e o que dispensar, antes ainda, ao notar em meio ao emaranhado de movimentos, na atualidade nascente do gesto, um que parece comparecer à constituição de sentido que se vai constituir no trabalho, como sabê-lo? Os problemas filosóficos relacionados à imanência parecem estar todos enunciados nestas perguntas.

Os acontecimentos de dança não se ligam uns aos outros por nenhuma outra causalidade que não seja uma causalidade sensível. E nesta, não há relação de motivo e dedução, origem e desdobramento, causa e consequência entre unidades de sentido que se sucedam no tempo. Os acontecimentos se ligam uns aos outros como em uma malha que, ao sustentá-los, dar-lhes coesão, é ao mesmo tempo por eles produzida, afinal são os próprios acontecimentos que conformam a malha entre si. Não há an-terioridade ou sequencialidade, mas compossibilidade. O movimento de dança entendido aqui como acontecimento vale, então, no contexto no qual se insere e pelo plano de composição ao qual, ao mes-mo tempo, pertence e conforma. É precisamente esta correspondência que fabrica o tipo de sentido que importa aqui. Quando o plano de composição se constitui é o mesmo quando (correlativa e não sequecialmente) o sensível faz sentido. Um sentido, portanto, imanente.

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xA dramaturgia me ajuda a compreender melhor o processo de composição em seu intrigante jogo de avanços e recuos. É preciso investir, estabelecer uma dada sequência e esperar. Esperar que a repeti-ção do trecho composto peça pelo próximo. Estabelecer modificações mútuas que façam uma matéria aderir-se à outra. A natureza da composição é eminentemente processual. Não há programa, libreto, fórmula, método que o anteceda. A graça reside em descobrir o meio de fazer no meio do fazer.

xA dramaturgia só tem lugar, metafórica e concretamente, quando há essa descoincidência entre o bai-larino e a sua dança. Entre o “mim” e a “minha dança”, abre-se uma rachadura, uma fresta, abrem-se várias nervuras. Curiosamente, na história da dança, o surgimento de uma dramaturgia do corpo é con-temporânea do voltar-se para si destes intérpretes que se tornarão criadores de seu próprio trabalho. O corpo se espaço-temporaliza e o espaço se tempo-corporaliza.

xAtento à experiência-expressão que ora vivencia, o intérprete percebe que ela contém uma linha de sen-sação, um fio de sentido de natureza sensível e não inteligível, espécie de coerência interna à sequência de movimentos do modo como estes se manifestam. Ao agir no sentido da experiência-expressão de seu movimento, o reverso também ocorre: o seu movimento age na experiência-expressão do sentido.

Ao perceber a linha de sentido sensível intrínseca à experiência do movimento e nela investir, o intér-prete necessariamente começa a convocar para si a autoria de um novo tipo de dramaturgia nascente no contexto das artes do corpo no século XX: a dramaturgia do corpo. Uma dramaturgia não-dramáti-ca, uma dramaturgia sem drama. Uma espécie de narrativa cinética.

Dramaturgia física que, no decurso de um século, será aplicada às mais diversas manifestações cêni-cas, mas que na dança significa uma dramaturgia na qual o intérprete põe a si (mesmo) em ação e em estado de investigação.

xGostaria de pensar o sentido como uma sucessão não sucessiva, não subsequente, tampouco conse-quente. Uma sequência intensiva, talvez. De qualquer modo, um tremular e uma força forte.

xA dramaturgia supõe um insistir sobre a obra. A obra – a futura obra sobre a qual nada se sabe – única noção de obra que interessa – tem suas próprias estruturas, cujas regras guiam as escolhas. Procurar, então, esse rigor de deambulação.

Sem dimensão de futuro.

xNada resta ao público/leitor, a não ser a desconcertante assunção de seu próprio desaparecimento como sujeito-espectador/sujeito-leitor e correlativo reaparecimento como motivo da composição – suas expectativas, seu lugar, seu papel no regime da representação.

xCadernos. Cadernos. Cadernos.Uma dramaturgia-moleskine ao gosto de Walter Benjamin.Uma dramaturgia feita tão somente de quotations.De senhas.Senha em francês é mot de passe

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xEsbarro sutil, me detenho um pouquinho e corrijo o rumo, o rumo de uma busca que parece exigir todo o tempo que esperemos, pois é uma busca que parece caminhar por si. Uma busca sem objeto. Sempre gostei de pensar a composição por aí, como algo cujo sentido se anuncia por si e da qual o artista é agente, mas não é autor, pois maneja o sentido, sem contudo controlar-lhe o rumo. Um sentido que se faz por si.

xExatamente porque o conceito de dramaturgia não está dado, dado o conceito ainda estar se fabrican-do, que ela interessa tanto aos fazeres compositivos em dança.

xDramaturgia não é plano de ligação entre partes. Dramaturgia não é roteirização.

xDramaturgia não é dispositivo.

xA dramaturgia é uma fabulação sobre o sentido. Há, portanto, nela uma fabulação do que está por vir. Assim, poderia dizer que há na dramaturgia uma utopia. Mas prefiro não.

xO que vem é o qualquer e o qualquer é irreparável. É irreparável porque é qualquer: nenhuma melhora é possível ou almejada. Depois desse dia é tão somente depois desse dia.

xNeste contexto, a dramaturgia pode ser entendida como dramaturgismo: um fazer de interstício; um tecido de mediação; uma escrita de processo de criação.

xNão há mais uma aposta de que a forma devidamente arranjada seja capaz de promover o experimen-to que está em jogo neste fazer. Procurar ambiência. Será que a noção de circunstância ajuda nesta busca? Uma circunstância estético-social de criação. E uma ética, também.

xInventar modos de acompanhar processos, mais do que descrever estados de coisas. Não o produto, mas a produção. Não o desenho, mas as linhas em seu pleno exercício de composição. O processo em obra na obra. É isso também a dramaturgia.