Páginas Despidas
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Páginas Despidas
Ozias Filho
Prefácio: Sílvia Furtado
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A convulsão das palavras
Sílvia Furtado
As epígrafes escolhidas por Ozias para Páginas Despidas, seusegundo livro, já dão uma pista sobre a temática poética: o silêncio e apalavra. A princípio, os signos silêncio e palavra dão a impressão de seremos representantes de pares opostos; e, em determinados momentos, até o são,mas o que há de interessante na poesia de Ozias é a possibilidade que ele criade um total reviramento de sentido.
Em Páginas Despidas, a temática poética vai se constituindo a partirde desdobramentos, que aparecem sob a dicotomia dentro/fora, sentido/não-senso, presença/ausência, para citar alguns. Esses pares, que se pretendemopostos, assumem imagens enviesadas, que escapam ao sentido, e assumemseu valor na mensagem poética, convocando o leitor a encontrar um atalhoque o brinde com um sentido, ainda que efémero.
Diferentemente de seu primeiro livro, em que o poeta verseja o dueloentre Eros e Tânatos para falar da fragmentação do eu, a poesia deste seusegundo livro remete a um encontro desnudo e desmedido com a radicalidadeda palavra. Nesse momento poético, embora alguns poemas ainda guardemtraços do primeiro livro, como apocalipse, o silêncio por detrás da porta, ouainda a bela homenagem a Adriana Calcanhoto, o calcanhar na língua, o quese nota é a convocação de um “para além”, de um “esburacamento”fundamental do sentido. Destacam-se, nessa vertente, os poemas páginasdespidas I, páginas despidas II, faca certeira..., a pena escreve a razão..., quetrazem a convulsão das palavras e (re)vestem o homem com o manto dapoesia.
Em outros poemas, entretanto, a dicotomia não aparece na oposiçãosígnica, mas nasce dos interstícios das palavras que se tocam por umsignificante comum e criam um laço metonimicamente artificial, como nopoema abaixo:
este imenso lago de tintaesconde o silêncio da pintura a maquilhagem do seu rosto
Os significantes tinta e maquilhagem são tangenciados pelosignificante pintura, e este abre margens para convocação de sentidos,indicando diferentes trilhamentos de leitura, a possibilidade de um passeiopelo bosque, no dizer de Umberto Eco.
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Em Génesis, Ozias, convocando as escrituras, num percurso àsavessas, introduz a questão do dentro e fora com relação à linguagem:
(...)e no princípioera o silêncio(...)
e, a partir da criação divina, tudo é linguagem. Mas, silêncio e palavranão se substituem. O silêncio, que a princípio constituía o fora, é colocadodentro do homem. A partir desses versos, podemos pensar que a linguagemé, portanto, o lugar do Outro, que ela é constituída a partir do Outro, naconcepção de Lacan, ou é o “tesouro dos significantes”, para Saussure, ou,ainda nas palavras de Rimbeaud, “Je est um Outre”.
Em outros poemas, como em Páginas despidas I, as palavras seinterligam a partir de uma espécie de vertigem, que faz com que o sentido doverso anterior se quede e se perfaça no verso subseqüente, num movimentode mise-en-abime:
(...)e que escorregam dos lábios ao peito ao sexo aos pésda página imperfeitamente virgem.(...)
mas, nesse longo poema, Ozias também cria outros mimetismos: odesejo, o arrebatamento, a entrega, o amor, a vivência, os encontros, osaber e outros tantos sentimentos e imagens são sobrepostos, entrelaçam-se e os limites que definem o ser e a escrita quase que se apagam,transfundem-se.
A criação poética se inicia, segundo Octavio Paz, como “violênciasobre a linguagem”, que consiste em um “desenraizamento das palavras”.Fazendo o “desenraizamento” das palavras, Ozias transforma-as em imagenspoéticas que, ao tocarem outras imagens, revelam uma identidade ou umaintimidade que surpreendem porque, no senso comum, são irredutíveis. Essacapacidade de revirar a linguagem, de convocar o não-senso, é própria dosujeito falante, mas é vivida mais intensamente pelos poetas, crianças eloucos. As crianças trazem o riso no espanto das construções impensadas; osloucos, um non-sense desconfortante; os poetas brindam a língua com outrossentidos não instituídos, mas cabíveis, novidades que só se perfazem namensagem. E, assim, valendo-se dessa qualidade, o poeta nos define como“...seres que transbordam/no tênue fio da sanidade...”. Imagens extraor-
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dinárias, colhidas ao acaso, traduzem o deslocamento, um certo desconfortoinstigante, que colocam em relação as mais inesperadas construções:
(...) a verdade é só saliva no fundo do cesto(...) engulo o vazio
Destaca-se ainda o longo poema A viagem da gota, como “um livrodentro do livro”. Já, nos primeiros versos, o poeta reúne o “nada”, o “deserto”,e a “gota” que “cai”, indicando o alinhamento da construção temática, no qualo autor exacerba o trabalho que visa esgarçar, esmiuçar, arranhar, reverter, ousimplesmente procurar as relações possíveis, impossíveis, verossímeis ouinverossímeis entre o silêncio e a palavra. Nos versos que se seguem, o poetasubverte o sentido da epígrafe deste poema, de Brecht “Só a palavra quebrao silêncio”:
só a palavra quebra o silêncioque dá sentido à palavraque quebra o silêncio
e seu sentido
Em um movimento moto-contínuo, o poeta apaga os limites entreprincípio e fim, desfaz a imagem de disjunção entre silêncio e palavra eimbrica-os, construindo dialeticamente a linguagem.
A viagem da gota é uma viagem ao universo do falante, feito desilêncio e palavra. A gota é plural, pode fertilizar ou cair como a lâmina deguilhotina; a gota é a palavra que se faz do silêncio, arranhando-se em outraspalavras, transmutando-se em palavras que guardam traços longínquos daspalavras não-ditas, daquelas mesmas impossíveis de serem ditas, ou seja, oque é dito é sempre Outra coisa:
cai indefinidamente
no rio subterrâneosilenciosa água que ouvimode dentro para forae que infiltra-sepor baixo das raízesmaquilhadas à flor da pele do papele que guardam o velho som das condutas
(...)
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A gota é o falante que se perfaz em poesia; ao mesmo tempo é opoeta e o homem, sendo que o poeta aparece na subtração do homem:
A gota caiIndefinidamente
multiplicae só encontra
palavra subtraída
(...)
Em seu percurso, a “gota” que “cai” “indefinidamente” mas, a partir da“ilusão”, que comparece pela via do amor, “a gota sobe” numa “fantasiamundana” e, ao subir, se especulariza, se deixa seduzir, se articula na fala e,quando atinge o abismo, cai. A gota sinaliza a representação do ser em todasua divisão. Ser poeta é convocar, sem temor, a falta radical de sentido,extraindo desse deserto, algo que nos toca para além do sentido. E, ao mesmotempo, a gota é a personificação do ser falante que se apega às ilusões, nacrença de haver um sentido, e são essas ilusões que emprestam umaestabilidade provisória à vida cotidiana.
Ozias despe a língua de seus sentidos estabelecidos, inventando-lheuma nova alma. Um encontro com palavras que nascem da convulsão dossentidos, e nos afagam com a poesia.
São Luís do Maranhão, 19 de novembro de 2002
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... Que as palavras forcem seu limite e eu, que as destruo em mim,em mim as force e no seu absurdo me esbanje e grite…
(Nauro Machado, do livro “Campo Sem Base”)
génesis
e no princípioera o silêncio
e Deuscriou o verbo
e aprisionou para sempreo silêncio dentro do homem
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páginas despidas I
deslizar por sobre a imensidão de incógnitasem cada poro, cada plano, cada curvamanipular o teu corpo é o que apetecemesmo que nele resida um carrossel de tormentos
a convulsão da palavra não-escritaimplora vidasob o espesso azul
essas sedutoras sussurradas ao pé do ouvidoque brotam uma após outrae que escorregam dos lábios ao peito ao sexo aos pésda página imperfeitamente virgem
viagem na vaga vagina de Pandoraonde o cheiro do papel inebriaesta relação corrupta
corromper e ser corrompidotransformar pedra pão palavra em vinhosagradas escriturasinequívoco corpo de descanso e de pecados
que arrebenta ao roçar do canino afiadosangue e margempara tudo que é ladotecido por explorar
não importadormirdentro de tisó
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e tu acordas sempre rejuvenescida
o hímen refeito
as linhas perfeitas
à espera do profanador
que viola, maltrata, rascunha e de novo
dilacera a carne
nem sempre quem está por detrás
do espesso azul aparece
o desespero da espera
não coaduna com o suicídio
mais vale morrer de velho
sem ter vertido linhas neste corpo
vale o voto de castidade
se a entrega não se quer total
mas há sempre um suicida à espreita
um cão andaluz
que não se importa de cortar o próprio olho
só para ver o efeito sobre a cega face da morte
e o ritual recomeça:
transfundir
sangue noutro sangue
sublimar
corpo noutro corpo
num dissídio sem tréguas
(o poeta é um doador
incompatível
àquele que tudo aceita)
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quantas dádivas
sentimentos por parir
silêncios prisioneiros
anseiam o inequívoco verbo
dos deuses?
(amar no vácuo
das cores
a eterna explicação
do silêncio)
às vezes melhor é deixarmo-nos à deriva
na cartografia dos desejos sem relevo
mas é impossível estar à tona
sem ouvir os sons que vêm do teu corpo
vozes que sentimos como um desconforto
como impossível é livrarmo-nos
das camadas e camadas de peles
acumuladas sobre
camadas e camadas
de folhas
que intentámos em cada metamorfose
os índios pressentem o inimigo
no âmago da terra
comboio previsível
que se avoluma até que
a cabeça e o sangue pendam sobre os trilhos
ó corpo-teatro
que se compadece desse gozar intermitente
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ó sedutor
de tantas personagens aceites e recusadas
ó escultor fiel
que arrasta correntes por opção
ó sedutora dama
rendida ao símbolo fálico
no cárcere da tradução
ó corpo que mente ao leitor desatento
pergaminho vazio que deseja ser escrito
palavra levitada que não tarda
(despe-se ao chão
do teu corpo)
ó imenso caudal de possibilidades
(imerso em possibilidades
exíguo
quando o poeta vai morto)
onde está o tecto
as paredes
o chão
da tua página?
o que vai no útero
o magma
o mundo
a alma?
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e no inícioo silêncio
e do silêncioo verbo
e do verboo rioa confusão
e da confusãoo homemque se perdeu
e se achouno silêncioda impossível respostasob o azul
mas que desnuda-sesobre o espessomanto branco do teu regaço
e lentamente acordas
olhas o outroolhas o outro lado da rua
o autocarro que passaas luzes acesas do bar
olhas as letras indómitas sobre o papelolhas o ponto, quase final, sob o papelque te sorri debochado por um quase segundo
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olhas o silêncio que está dentro de tique está dentro do outroque está do outro lado da ruaque passeia no autocarro
olhas o silêncio iluminado do barolhas a tradução do silêncio sobre o papelolhas o ponto, quase final, nunca silêncio, sob o papelque te sorri desafiando-te a outra batalha
entretantoum copo quebra-sealgures
um corpo refaz-se
acordasescreveste um poemanão a guerra
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verdade submersa
trabalhar incessantemente a mentira da palavrao discurso viola a abstracçãoda boca que o pronunciaa língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulopelo encantador de serpentesenquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto
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sobre o sentido
busco o sentido
flores indesejáveis
contrapontos do silênciosobre o papel
e não encontro
como o surdo sente a palavra sóo silêncio da palavra só?
viverá também elea imposição da metáfora e do sentido?
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o verbo do não-dizer
expiaro beijo não-dadoo coração apressadocalado no
intervalo
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a palavra no fundo
abaixo do lagoabaixo do medoabaixo do não
no fundo do fossoo discurso lodosodo verbo
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a bala a flor a palavra
que a palavraa balaabra a florde Maiodo meio da boca
palavra comodeveser flortotal aberta
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este imenso lago de tintaesconde o silêncio da pinturaa maquilhagem do teu rosto
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o que vejo é o brancodo alto desta torre sobre o azula impossibilidade da escrita
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a palavra incerta
mora no interior do corpo:árvorefeita livro
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a pena escreve a razãoe não o que sinto
é pena que escrevaminha pena
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um mundo por parirde que vale
se não podemos brincaraos deuses?
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página despidasumo concentrado
do que somos
nós
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faca certeirana jugular da palavra
os conceitos libertos da penaque estancará a feridaquando o sonho adormecer
32
calou-me a saliva no papele a boca já vai secaengulo o vazioe dele me alimento
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a página
a sua luzme contradizoume contraluz?
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há lodo no belo
o lixopor baixo do belo
o ladodo lixo das coisas
o lado o lododo belo
a viagem da gota(o livro dentro do livro)
O que expressamos com palavras já está morto em nossos corações.
Sempre haverá algo desprezível no acto da fala.
(Nietzsche, “O Crepúsculo dos Ídolos”)
II
Só a palavra quebra o silêncio
(Bertold Brecht)
a torneira entreaberta
a porta escancarada
para o nada
a viagem no deserto
entretanto...
uma gota cai
indefinidamente
procura o chão
o subjectivo
a queda espontânea do martelo
ininterrupto
descompassado
arritmado
demissionário do tempo oficial
o silêncio de quem cria no limbo
no limo das palavras escorregadias
a gota cai
indefinidamente
desce no vácuo quimérico do silêncio total
III
só a palavra quebra o silêncio
que dá sentido à palavra
que quebra o silêncio e seu sentido
a gota caiindefinidamente
não a vejoescuto-a
lâmina de guilhotinazinindo por sobre o pescoço
gota da contradição
que caiindependente da tempestade que se aproxima
e na queda
estuda as paredes
(permeáveisarenosas)
pedras soltasnotas de um pianovulcão de silêncios sísmicos
a gota caiindefinidamente
no ascensor naturalde Morfeu
pois que os sonhossó existem
IV
por fora do azula normalidade mora dentroe louco são os outrosque metaforizam o contrário
a gota caiindefinidamente
no livro da saudadeno estômago de Esopoque fermenta fábulas de alcova
cai
na tormentaque circula na corrente sanguíneaaté que o étera leve ao cimo da pele
a gota cai
sabe que cainão sabe para onde cainem porque cai
indefinidamente
a gota cai
rente à parede de sons externos
rente à membrana
rente ao imã de pólos iguais
cai
na pequena tempestade que sobra
V
após noites de ressaca
no barco
à deriva das ínfimas tentações
cai
no sal que cristaliza
para além do descanso de Eros
cai
indefinidamente
no lago de dejectos
forte nas margens
mas longe
do centro da resposta
cai
indefinidamente
no rio subterrâneo
silenciosa água que ouvimos
de dentro para forae que infiltra-sepor baixo das raízesà flor da pele do papele que guarda o velho som das condutas
a gota cai
enquanto caigota a gotamatura a parede
VI
alimenta a árvore e libertaintraduzível respiração
o ciclo da gota tempestadenesta boca de solfejos
a gota caiindefinidamente
não há caminho de voltabasta apenas começardescodificar decompor desistir
a palavra é natimorta
a gota caiinfiltra-se
rompe o revestimento de tinta(por dentro da pedra a carne é mais tenra)
sente-seo ser que vive na pedra
a gota cai
multiplicae só encontra palavra subtraída
a gota cai
na falésia do amor
escorregabrinca
gira
VII
quer explodir as paredes
não cabe em sigota inchada de prazer
indefinidamente
indefinidamente
(ilhada pelo amoriludida pelo amor)
a gota sobe
no balão da fantasia mundana
procura o vulgar ao cimodo vulcãoconvencido de toda a tradução
a gota sobe
carrega às costas a estrelada nossa medida existência
não desconfia que o amoré o seu próprio espéculo
entanto
a gota sobe
desliza
brinca
gira
na falácia do amor
VIII
quer explodir as paredes
encanta-se com a imagem para além da seda
indefinidamentea gota sobe
no seu casulo de festano sorriso cariadoque o mundo de fora expôs
a gota sobesabe que sobe
indefinidamente
na direcção da luzque se fundena fé do amor que tudo cega
a gota sobe
da boca do estômagoà boca das palavras
cheia de dentes línguas saliva
a perdição que corre o seu curso
a gota sobe
sabe que sobe
à boca do tanque
à borda do abismo
gota equilibrista de um quase segundo
IX
mas que
cai
indefinidamente
no charco da submissão
não mais gota plural
não mais gota amor
gota reflexo pálido do que fora
por dentro
a gota cai
no alfabetosem palavra
gota vulgar
que há-de renascer sempre
na lágrima cinzana metamorfoseno prenúncio das tempestades
indefinidamente
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vidas de papel
vidas que se inscreveme que o vento apagano instante seguinte
instáveis vidas que escrevo
que o fogo há-de levarque a água há-de lavarque o tempo há-de amarelar
e que as religiões reduzirão a pó
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o encontro
e tu chegastecomo a palavra quede súbitoirrompe a madrugadade tempestadese eras a calmariaaparentecom a tempestadedentro de tie eu, tempestadeaparente,aguardava a calmariaque vinha de tie de repenteencontramo-nostempestade e calmariacalmaria e tempestadeuma dança inevitávelcomo o sentimentoque escolheo par perfeito
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ilhas flutuantes
um caminho sem voltaquando nele se embarcasabe-se de onde se parteaté ao momento em que se parte
pois que no instante seguinteo ponto de partidavira portos de fantasmascasas de outros outrora sua casa
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um instante um olhar
a Maranto
e num instanteroubaste o silêncio para nós dois
calaram-se as pessoascalaram-se os carroscalaram-se os pássarose a eterna mímica das asas
o próprio ventoemudeceu no vácuo de palavras
sentes o sublime perfume da terra que se levantapé ante pé sob as nossas pegadascom o cuidado volátil dos dias?
a onomatopeia das paisagens mudas e a areia queentorna sem as molas do tempo?
o olhar e o que somospor detrás da alegoriano exacto instante
da intersecção
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o calcanhar na língua
a Adriana Calcanhoto
eu vou arranharo calcanhar direitode Adrianatirar o verso da perna
amanhar o verbo da pedraconjugar o calcanharno presente do futuro
eu vou mastigar a palavrano lado esquerdo da alma:
a cal que desceo sal que escorredas palavrascaídas
o calcanhar que fala o silêncio deAdriana
ela brinca ela brindaintroduzo verbo que sabe a chão
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roubado ao PCP
que ninguém se caleporque a palavra é quasena aparência de tudo
portanto
que ninguém se caleenquanto não inventaremmelhor discurso
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o silêncio por detrás da porta
os olhos que contemplam a pedra de calo mar que parece não se contera língua que rouba o verso na boca
à porta de casaos corpos contidos em tintos coposos cúmplices que não se olham
com medo do que hános olhos no sexo
na química assombrada de palavras e
silêncios
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o rosto não aguenta por muito tempoportasartificialmente abertas
o que está sobinevitavelmente sobesobrea pele de papel crepon
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o tectoa parede esquerdaa parede direitae o chão
não limitam o silêncio
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páginas despidas II
era então a memória das portasabertas
à espera das estações
o outono e seus mortos caídosno fim da batalha
o coração suspensono inverno das emoções vestidas
o amor possível nos glaciaresna dança embalada de azul
a primavera e o despertar do geloestalando em mil flores de poesia
o verão e os corpos levitadosno engodo da cervejana sedução volátil dos suores
era então a memória das portasabertas
acordando lendasacasalando sílabastecendo enigmas
na alma incompletae no corpo concreto
decepado
tudo fora de portasaguardando
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levianas históriasde contradição
vermelhos amarelos e azuiso intraduzívelde toda uma gama de cinzasno espelho
à captura do voo únicodo lírico de cada unicórnioescondido em raro diamante:
o marteloo esboçoa imagemque ganha o contornosob a maquilhagem
a sombraque na cal da parede
traduz a árvore de imateriais sumose cheirosdesalojados do limbo
reminiscências sem página
só então a memória das portasabertas
cerzeia tramasdo alto da torre difusa:
vértebrasinundadas de dor
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amoresno horizonte
parcos vestígios de aventura
a páginaquase escrita página
o repositório
só então a memória das portasabertas
preserva dignas comportasdo que somos:seres que transbordamno ténue fio da sanidade
só então a memória das portasabertas
reabilita a nossa atomicidadeestamos sósindivisíveismas parte do todo
só então a memória das portasabertas
organiza roteirosaos desconhecidos da casa:
às moldurasao póao éter bordado nos tecidosaos cheiros do ter-sidoaos objectosque descansam na árvoresem rosto
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só então a memória das portasabertas
revela a máquinaa correntezao animalque sem chãodeixa-se levar pelocansaço da comporta aberta
só então a memória das portasabertas
retira o véu dos retratosdestitui o deus e o homem futuro
pois o passadoé o exacto instanteque hoje se desvela
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apocalipse
é precisoimplodir a palavra
desconstruiro edifício
libertaro silêncio
Voo do pássaro para a formaque não existe: a perfeição.Voo do verbo, voo da arte,voo perfeito, voo são. Reali-dade irreal.
Pedra lapidada que contéma génese, que circula oprincípio e circunda o óbvio,pedra que não é pedra, éforma, que forma o todo quevem de si.
O autor e a Ardósia AssociaçãoCultural comprometem-se em nãoreeditar este livro com as caracterís-ticas técnicas e artísticas aqui apre-sentadas. Desta obra foram impres-sos quinhentos e cinquenta exem-plares, sendo quinhentos numera-dos sequencialmente em algarismosárabes e os restantes cinquentaexemplares são de divulgação e nãoestão numerados. Todos os exem-plares estão rubricados pelo autorOzias Filho. O livro Páginas Despi-das foi composto em Garamond,sobre papel Modigliani Cândido320 g para as capas e ModiglianiNeve 95 g para o miolo. Impressono mês de Outubro de dois mil ecinco.
Exemplar número:
COLECÇÃO PASÁRGADA
Projecto e Edição:OZIAS FILHO
Título:PÁGINAS DESPIDAS
AutorOZIAS FILHO
PrefácioSÍLVIA FURTADO
Concepção Gráfica:CRISTINA PEREIRA E OZIAS FILHO
FotografiaISADORA CAPA
Título da Fotografia:“ANDROGENIA”
Criação da Capa:OZIAS FILHO
Logotipos Ardósia e Pasárgada:MARCOS ORIÁ
Tiragem:550 EXEMPLARES
Data de impressão:OUTUBRO DE 2005
1ª e única edição
Impressão e acabamento:GC DESIGN
Depósito Legal:?????????/??
ISBN:972-99487-2-0
© Ozias Filho
Ardósia Associação Cultural
www.ardosia.com.pt
As receitas obtidas com a venda
deste livro revertem para
o financiamento de outras
propostas literárias da Colecção
Pasárgada.