Paixão pelos antigos
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Paixão pelos antigos
No país que tem a quinta maior produção de carros, em meio à instantaneidade de um
novo modelo, colecionadores de automóveis chamam a atenção pela exclusividade – e
qualidade – dos seus antigos
Lá embaixo, na Avenida Rio Branco, corsas, gols, peugeots, clios e outros
veículos enfileiram-se para, dentro de alguns segundos, seguirem pelas ruas do centro
de Florianópolis. Lá em cima, no oitavo andar do Centro Comercial Barão do Rio
Branco, Arno Duarte Filho não se separa dos seus: um Alfa Romeo 1972 e um 1974. As
miniaturas expostas ao lado do sofá não têm a mesma cor que os originais; em seu
escritório, o 1972 conversível é preto e o 1974, branco. Longe dalí, suas relíquias são
vermelhas, ou Rosso Alfa, como a cor é chamada oficialmente.
Arno é um catarinense de 56 anos, radicado no Paraná e que já morou no Rio de
Janeiro. Quando estava em Petrópolis, comprou o Alfa Romeo 1972, esportivo
produzido na Itália e que atrai admiradores do mundo inteiro. Era dezembro de 1997.
Quem acredita em destino não teria dúvidas de que a circunstância naquele dia foi
planejada por ele.
Arno estava procurando um carro antigo havia algum tempo. Enquanto dirigia
pelas ruas de Petrópolis, viu ao longe um Alfa Romeo. “É que nem minha mulher
quando vê uma loja de sapato”. Não bastando percebê-lo, Arno foi conferir o carro mais
de perto. Encurtar a distância também permitiu descobrir que o automóvel estava à
venda. O resultado já era previsível; uniu-se a fome com a vontade de comer.
A paixão pelos carros antigos é aparente enquanto conta a sua história com os
Alfa Romeos. Ele classifica os antigomobilistas em três categorias, mas bem longe de
tornar as coisas objetivas e frias. Existem aqueles que são apaixonados por carros,
aqueles que guardam boas recordações da infância e por isso querem os automóveis da
época, e um terceiro grupo que os coleciona pela sua arte. “Eu estou no primeiro
grupo”, antecipa o catarina, ainda com um sotaque fluminense.
Para exemplificar a terceira categoria, Arno pega a miniatura do seu italiano
1972 e tenta descrever a arte por detrás do carro. Linhas fluidas, suaves, precisão
mecânica, design simplificado, mas ao mesmo tempo elegante – dignas de Pininfarina,
mesmo designer da Ferrari - são algumas das qualificações soltas pelo admirador, que
sem perceber também se enquadra na última categoria. Ainda assim, muitas vezes o
pulmão de Arno se enche de ar e nenhum adjetivo sai, só fica o olhar de paixão pelo
carro. Alguns adjetivos podem ser menores do que um Alfa realmente é.
Uma vez por mês, Arno tem a chance de se encontrar com outros 76 sócios do
Veteran Car Club de Florianópolis, um clube de apaixonados por carros antigos. Eles
expõem seus veículos em frente ao bar Koxixo’s, na Beira Mar, e conversam sobre o
que mais entendem. Nesses encontros também está Joi Cletison, historiador e
antigomobilista. Em outros tempos, Joi chegou a ter cinco carros, dentre eles um Aero
Willys 1962 e um Ford 1958, ambos americanos. Com essa paixão no seu auge, outra
chegava ao fim. A separação da esposa também ocasionou a separação dos carros que
tinha. Joi teve que vendê-los todos.
Três anos depois de Arno comprar o seu italiano, era a vez de Joi voltar a ser
dono de um antigo. Em 2000, o catarinense negociou um Opel 1951, carro alemão que
tem até hoje. O nome pode parecer diferente para quem não conhece a história dos
carros, mas na verdade é um Chevrolet. Isso porque a General Motors, empresa norte-
americana, comprou a Opel em 1929, impedindo a falência da maior empresa de
automóveis alemã. Na América do Sul, a Opel passou a chamar-se Chevrolet – com
exceção do Chile, que ainda utiliza o nome europeu, lembra Joi.
Para chegar às suas mãos, o Opel de cor grená fez uma longa viagem. O
historiador já o conhecia de Curitiba, mas quando decidiu comprá-lo pela internet o
carro estava no Pará. Foram muitas trocas de fotos e vídeos com o proprietário até que
Joi se decidisse pela compra. “Às vezes o filme não estava bom. Eu pedia para o
proprietário filmá-lo de novo”, relembra. Na hora de fechar negócio, mais exigências:
ele depositaria a metade do valor do carro, que custava R$ 10 mil, antes do despacho, e
só enviaria a segunda metade quando tivesse o recibo da compra. O dono aceitou o
negócio.
Era fevereiro, Carnaval e chovia muito. Resultado: o caminhão que trazia o Opel
demorou dois meses para chegar a Florianópolis. O recibo veio antes e Joi pagou todo o
valor do carro sem nem ao menos vê-lo pessoalmente. Hoje em dia, a história só aguça
o ouvido dos interessados, porque o Opel é sinônimo de orgulho, não de problema: viaja
para Curitiba fazendo até 90 km/h e exibe a placa preta que comprova pelo menos 80%
de originalidade do carro.
Placa Preta
A placa fixada no Opel de Joi foi uma conquista para os clubes de carros antigos
espalhados pelo Brasil, já que os donos dos automóveis não teriam mais que adaptá-los
às obrigações de trânsito, como o uso do cinto de três pontos, que surgiu em 1959, por
exemplo. Com isso, os carros preservariam a originalidade. Antes de 21 de maio de
1998, quando o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) regulamentou a
concessão de placa preta, a lei já fazia menção aos carros antigos, porém apenas para
distingui-los dos outros, sem que houvesse uma legislação específica para eles.
O decreto válido só foi sair mesmo em 6 de agosto de 2001, porque o anterior
tinha um erro de informação. Ao invés de 30 anos, tempo que o carro precisa ter para
ser considerado antigo, a lei diminuía esse período para 20. Fora isso, as outras
obrigações continuaram a valer: o carro precisa integrar uma coleção e conservar as
características originais de fábrica.
Os dois carros de Arno também possuem placa preta. No escritório onde
trabalha, uma pasta vermelha guarda os certificados de originalidade dos seus veículos,
necessários para serem classificados como antigos. Para que fossem certificados, os
automóveis passaram por um exame - tanto melhor se o clube examinador for filiado à
Federação Brasileira de Veículos Antigos (FBVA) -, prática que não é normatizada pelo
Denatran.
O manual da FBVA lista 11 situações que desclassificam os carros em “teste”,
todas com o objetivo de preservar a originalidade do carro. Uma pintura que difere do
catálogo de cores da época, o rebaixamento da suspensão, bancos diferentes dos
originais, adaptação de combustível (não existia instalação de gás na época, então,
atualmente ela não é permitida) são algumas das situações.
Arno pagou a restauração de seu conversível após muita pesquisa histórica, para
que o automóvel conservasse a originalidade. No laptop, ele mostra o relatório de 56
páginas que esmiúça a história do Alfa Romeo Spider 2000, modelo que possui apenas
dois assentos. “Spider quer dizer aranha em inglês. Mas por que alguém daria a um
carro esse nome?”, ele mesmo pergunta. A resposta está no documento e na ponta da
língua do pesquisador. Spider era o nome dado a carruagens puxadas por cavalos, no
século XIX, que tinham rodas finas e um corpo leve, parecendo aranhas. Todos os
antigomobilistas fazem uma pesquisa histórica assim? “Só os malucos”, brinca.
“Já não estamos mais falando de carros”
O conversível Rojo Alfa que leva Arno para passeios em Curitiba, Rancho
Queimado e estradas do Rio Grande do Sul é famoso. Se não tivesse sido fabricado em
1972 e se conservasse a traseira redonda como nos primeiros anos de produção, seu
carro poderia ser confundido com o que Dustin Hoffman dirigia durante as gravações de
“A primeira noite de um homem”, em 1967.
Mas para ter a aparência de uma estrela de cinema, o esportivo teve que ficar
três anos em restauração, de 2001 a 2004. As fotos inclusas no relatório do catarinense
mostram a evolução de um carro totalmente desmontado, sem pintura, para outro, com
direito a estofado novo idêntico ao original e peças vindas da Internacional Auto Parts e
Spider Point, dos Estados Unidos e Alemanha, respectivamente. Para fechar com chave
de ouro, o volante de madeira foi reformado por um luthier. “Viu? Nós já não estamos
mais falando de carros”, comenta Arno, referindo-se aos artistas das três empresas de
restauração que fizeram tudo aquilo acontecer.
A opinião de Arno encontra na realidade seu suporte: na R&E Restaurações,
empresa tradicional de São Paulo, um dos sócios é arquiteto; o outro, bacharel em Belas
Artes. Foram eles que restauraram o Rolls-Royce Silver Wraith com que, em janeiro,
Dilma Rousseff provavelmente desfilará na cerimônia de posse.
A
restauração do
Alfa Romeo
Spider lhe custou
R$10.600. No
relatório, o
proprietário
comenta que a
previsão para o
trabalho era de seis
meses, mas que a
falta de
organização na
primeira oficina
aumentou o tempo de restauração para três anos. E o preço do carro? “A gente não
conta”, ele diz rindo, mas dá a dica de que 25 a 50% do valor pago no carro já foi gasto
com conserto.
Falar de carros antigos é falar de arte e também de amizades. No Clube Alfa
Romeo Br, outro que Arno participa, os colecionadores – e amigos - são chamados de
mafiosos. “Não dá para falar só de carros. Tem que falar de gente”, diz.
O segundo carro antigo dele só é chamado de seu porque os amigos o acharam,
em 2006. “Você tem que comprar”, foi o que eles lhe disseram por telefone. O Alfa
Romeo Gran Turismo Velace 1974 estava em Joinville, Arno nunca o tinha visto
pessoalmente e assim foi até completarem-se três meses da compra. Esse tempo foi
necessário para que os amigos trocassem alguns itens do carro, como cinto de
segurança, pneus e jogo de amortecedores a gás, sempre pedindo a autorização
financeira por telefone. Em 2010, o proprietário exibiu o Alfa quatro portas no desfile
de 7 de setembro, quando o clube Veteran Car foi convidado para o evento em
Florianópolis.
Depois de restaurado, o Spider ganhou cinto de segurança da TAM. “Meu carro também é um avião, só voa mais baixo”
Como tatuagem
Quem tem carro antigo, dificilmente fica só com um. “Parece que faltava alguma
coisa”, diz Joi ao falar da compra de seu segundo antigo. O automóvel foi a conquista
de um desejo da adolescência. “Com 20 anos, todo mundo queria ter um carro novo. Eu
queria um Karmann guia”. Dezenove anos depois, em 2000, chegava a vez de tê-lo. O
carro é um esportivo de 1968, mas com um design de 1955, ano em que começou a ser
produzido. Ele é chamado assim em homenagem aos seus criadores: o alemão Wilhelm
Karmann e o italiano Ghia.
Diferente do Opel, Joi foi ao encontro
do Karmann guia em São Paulo. Na
capital, escolheu o “vermelho Ferrari”
que tem hoje, dentre 30 a 40 Karmann
guias à venda. O carro alemão é um
“hot”, nomenclatura usada para
classificar um automóvel mexido, sem
preocupação com a originalidade. Joi
conta que deixou o carro mais fiel à
época em que ele pertence, a partir de
peças originais de fábrica. A restauração
foi mais cara do que os 8 mil reais
pagos no carro. Vieram de São Paulo,
por exemplo, duas grades pequenas
para ventilação, que ficam na frente
do carro. Cada uma custou mil reais.
Ainda assim, o Karmann guia não tem placa preta.
Outro sem placas pretas, mas apaixonado por carros antigos, João Manuel de
Araújo é um dos fundadores do Veteran Car Club. O manezinho da Costeira poderia se
esquecer da lista enorme de antigos que já teve, mas pergunte para ele e, como uma
máquina, o senhor vai computando nome, cor e data dos automóveis.
Atualmente, ele tem nove carros, sendo que dois ainda não são considerados
antigos, porque não completaram trinta anos de fabricação. São eles: um Volkswagen
1969, “branco sujo”; um International 1951, verde; um Aero Willys 1964, bege; um
Chevrolet 1952, azul; um DKV 1966, marrom; um Volkswagen 1972, verde; um Corsel
1976, verde e mais dois fuscas Itamaraty, 1994, de cores azul e bege metálico. “Quer
saber das motos também?”, João pergunta. Sim, porque ele tem duas lambretas e duas
vespas, uma delas legitimamente indiana.
Enquanto a Fiat expunha quatro carros
atuais em frente à Reitoria da UFSC, em uma
sexta-feira, João chegava à universidade com
seu Volkswagen 1969, o “Zé do Caixão”. O
apelido foi adotado porque suas partes dianteira
e traseira são parecidas, lembrando uma caixa.
Há boatos que ligam o carro ao cineasta José
Majica Marins, que lançou o filme “O estranho
mundo de Zé do Caixão” meses antes do
lançamento do carro.
Dentre tantos veículos que possui, o
“Zé” é visivelmente seu xodó, tanto é que João
O Karmann Guia 1968 é um hot, carro modificado; o motor é novo, mas o design é de 1955
O Volks 1600, modelo que João tem, foi produzido apenas nos anos 1969 e 1970
o adotou como o seu carro diário. A cor “branco sujo” é propícia para as “viagens” da
Costeira para o Estreito, onde semanalmente participa das reuniões do Veteran Car
Club. E se para João o antigo é importante, para a história dos carros ele também é. O
Volkswagen 1600 foi o primeiro quatro portas da Volks fabricado em todo o mundo.
Local de (in)segurança
A dedicação de João ao clube não é medida apenas pelas participações nas
reuniões. Ele se diz o “interventor” do Veteran. Sempre que o clube ia “morrer”, João
assumia e não deixava que isso acontecesse. Agora, com 70 anos, ele fala em vender os
seus carros, porque logo não vai mais dar conta de mantê-los sozinho. “A minha filha
diz que é pra guardar um pra ela, a minha neta diz que é pra guardar um pra ela, tudo
assim”. Mas na hora de cuidar, arrumar, quem mete a mão na massa é João e seu
sobrinho. É o parente que, inclusive, guarda dois de seus carros. Outros seis ficam na
garagem de sua casa e um fica no clube, o que lhe custa 70 reais por mês.
O senhor ainda tem sorte de conseguir guardar a maior parte dos carros em casa.
Para a maioria dos que possuem automóveis antigos, esse é um problema. João conta
que existem cerca de 200 carros antigos em Florianópolis. Para muitos donos, o aluguel
de garagens é a única solução.
Com Arno é assim. Ele aluga três garagens para seus carros, já que a sua é
ocupada pelo automóvel da esposa – nem o seu carro de uso diário, um Alfa Romeo ano
2000, escapa do aluguel. Uma das vagas fica no shopping Beira-Mar, outra em Curitiba
e outra em uma oficina de manutenção, onde um dos antigos recebe reparos. Com Joi
não é diferente. Um dos carros fica na garagem do apartamento, outro fica em uma
garagem alugada e o Vectra, de uso diário, fica na rua. Por sorte, no dia seguinte estará
inteiro.
João, por sua vez, não teve a mesma felicidade. Seu International 51, mesmo em
uma garagem, foi vítima de maus tratos. Certo dia, quando o proprietário foi ver o carro,
os vidros tinham sido quebrados, o letreiro com o nome do carro, arrancado, e ainda
havia vestígios de uma vela acesa no interior do veículo. Ele diz que mendigos estavam
dormindo lá dentro.
Ainda assim, os prazeres compensam os desprazeres ocasionados pelos antigos.
Por mais que fale em vender todos os carros, a conversa é da boca para fora. “Carro
antigo só dá prejuízo para o bolso”, diz João. E só para o bolso, porque paixão antiga
não se acaba tão fácil. No caso dele, começou de criança, quando limpava os taxis dos
tios, na década de 50.
Sem perceber, João já faz planos para o futuro. Conta que em 2004 levou uma
noiva até a igreja com seu Aero Willys e convida a repórter para entrar um dia na igreja
com um carro antigo do clube. Joi também tem planos, um pouco mais concretos. Em
janeiro, irá até o Uruguai – celeiro de carros antigos – comprar um Impala 1960 que está
negociando. O objetivo é torná-lo seu carro diário, a exemplo de João.
A respeito de toda essa paixão, Arno tenta compará-la a outra, para que não dê a
impressão de que eles, os colecionadores de carros antigos, são seres de outro mundo. O
catarinense lembra-se de Mindlin e sua biblioteca particular. A coleção inteira de Alfa
Romeos, Arno não tem, mas duas das 190 obras raras que circulam pelo país já são
suas. Claudia Mebs Nunes