Palavras de contar, Palavras de escrever
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Transcript of Palavras de contar, Palavras de escrever
Ele diz que escreve à mão. Mas não é verdade. As pala-
vras de Eduardo Galeano, palavras lutadoras e apaixona-
das, palavras “sentipensantes”, são escritas com o corpo
todo: as veias, as tripas, o coração. São cinqüenta anos de-
dicados ao ofício de denunciar o que incomoda e anunciar
o que pode ser.
O autor de As Veias Abertas da América Latina, da tri-
logia Memória do Fogo, entre outras obras extraordinárias,
lança este mês no Brasil um novo livro: Bocas do Tempo.
Nosso encontro com esse malabarista das palavras, conta-
dor e escutador de histórias, aconteceu no café El Brasile-
ro, o mais antigo de Montevidéu.
O uruguaio Alberto Lechili, motorista de táxi que co-
nhecemos logo depois da entrevista, diz: “Galeano é um
homem que vê o mundo como poucos”. Enquanto seu ve-
lho carro cruza as frias avenidas da capital, acrescenta: “É
um ser humano como poucos”. Alberto tem razão.
Fernando Evangelista - Sempre começamos perguntandosobre a infância do entrevistado. Qual é a imagem maisnítida que você guarda dessa época?O que sei é que nasci em 1940 e o mundo não esperava nada
de bom, aí eu nasci. Minha infância foi um tempo de mui-
ta liberdade. Quando comparo – involuntariamente, não é
uma coisa deliberada – o que foi a minha infância com o
que é a infância dos meninos de hoje, é patético. É muito
triste ver esses meninos andando de triciclo nas varandas
dos prédios, prisioneiros do medo, da insegurança. Isso
numa cidade como Montevidéu, que não é grande e ainda
contém espaços de liberdade. Para não falar da situação dos
extremos sociais, dos pobres pobríssimos prisioneiros da
pobreza, dos ricos riquíssimos prisioneiros do dinheiro, tra-
tados como se fossem dinheiro. Então, a minha infância foi
de muita liberdade, de classe média, numa época em que a
classe média não estava tão prisioneira como hoje. Estava
prisioneira porque sempre está prisioneira dos medos que
inventa. Mas naquele tempo não eram tão evidentes, como
hoje, os níveis de alienação desses setores sociais nos quais
nasci e vivi. Morei num bairro que agora está cheio de
imensos edifícios, mas que naquele tempo era puro verde.
Tive uma infância de muita intempérie, bem guerreira, de
bandos inimigos, de muito futebol na praia. Minha mãe nos
trancava no quarto, meu irmão e eu, para dormirmos a ses-
ta, que era obrigatória, e aí fugíamos pela janela. Nunca
dormi a sesta durante a infância. Foi depois que aprendi a
enorme importância dessa invenção maravilhosa que faz
com que cada dia tenha duas manhãs. Valorizei isso só de-
pois. Agora não posso viver sem a sesta, mas naquela épo-
ca, quando era criança, a sesta era um tempo roubado do
jogo, da brincadeira, das aventuras.
Fernando Evangelista - Sua família é de onde? É uma família de uruguaios de várias gerações. Remota-
mente, tenho uma mistura disso que chamam de sangue –
em que não acredito muito – de britânicos de Gales, italia-
nos de Gênova, espanhóis de Castilha e alemães que não se
sabe muito bem se eram alemães ou holandeses. Uma mis-
tura nada recomendável. Quando se vê o resultado, você
diz: vamos tentar outros experimentos. Darcy Ribeiro di-
zia que eu era um mulato ideológico. Quando ele me escre-
via cartas – algumas guardei, outras o vento levou –, co-
meçava sempre assim: “Meu mulato ideológico”.
Franco Squicciarini - A casa em que você morava era umacasa com biblioteca, com muitos livros?Não, não era. A casa da minha avó materna, sim. Ela lia
muito. Foi daí que recebi essa influência de amor aos li-
vros. Mas eu também não era muito leitor.
Fernando Evangelista - E quando começa essa paixão?Eu não acreditava na sesta, não era muito leitor. Gostava de
ler Salgari, Sandokan, Corsário Negro, essas coisas. Já Júlio
Verne, eu achava chatíssimo, esse negócio da ciência. Era
mais de brincar a vida do que de lê-la. Na verdade, só fiz a
escola primária e um ano da secundária. Naquele tempo
eram seis anos de escola primária e um ano, um ano e meio,
mais ou menos, de secundária. Isso foi tudo que estudei na
vida. Ingressei muito cedo na vida das vinerías, dos cafés
daqui de Montevidéu, que foram a minha universidade. Foi
nos cafés que aprendi a maioria das coisas que sei. Através
dos livros também, claro. Mas, para mim, a experiência
mais importante foi o contato direto com grandes narrado-
res orais que descobri nos cafés de Montevidéu. Agora já
não existe mais isso. Nesse tempo, que não era a pré-histó-
ria da humanidade, Montevidéu tinha muitas vinerías, ou
seja, cantinas, lugares onde as pessoas se encontravam para
beber vinho, acompanhando o vinho de algumas coisas, so-
bretudo de canções e histórias. Isso se perdeu, já não existe
mais. Para mim foi muito importante esse período de for-
mação, foi ali que se deu a revelação do magnetismo do po-
der da palavra. Eu não tinha muita idéia disso. Em parte,
porque achava o pouco que eu tinha estudado de história,
literatura uma chatice e depois porque estava muito mais
inclinado para a coisa plástica. Como projeto de vida, me
sentia muito mais pintor do que escritor. Adorava desenhar,
pintar, passava as horas desenhando. Nos cafés, eu dese-
nhava todo mundo, fazia caricaturas.
Elis Motta - Foi fazendo caricaturas que você começou nojornalismo, não?É, comecei no jornalismo como caricaturista, num sema-
nário socialista. Eu tinha 14 anos quando publiquei as pri-
meiras charges, que eram caricaturas. Depois comecei a re-
conhecer nas palavras um poder de comunicação que eu
não sabia que elas tinham. E então começo a escrever. Mas
isso não foi revelado pelos livros, foi revelado pelas pessoas.
Foi revelado por caras que não existem mais, que já mor-
reram, que eram velhos. Os melhores narradores são os ve-
lhos. Eram, porque agora já não existem mais. Nem velhos,
nem jovens, nem nada. Mas naquele tempo existiam mui-
tos narradores velhos. Daqueles maravilhosos que conta-
vam como deuses.
Ricardo Viel - E por que não existem mais esses narradores?Não sei. Acho que os tempos mudaram. Existem ainda, es-
tou exagerando. Mas não é tão freqüente como era encon-
trar esses transmissores da memória coletiva. Ainda em al-
guns lugares, quando morre um velho, se diz que é uma bi-
blioteca que se incendeia. São pessoas que, com conheci-
mento acumulado no espírito, encarnam um tempo, às ve-
zes uma cidade, um país. Às vezes, uma rua apenas. Para
palavras de falar,palavras de escreverA OPORTUNIDADE DE ENTREVISTAR
EDUARDO GALEANO SURGIU COM OLANÇAMENTO NO BRASIL DE UM
NOVO LIVRO DELE. MAS, PARA OUVIRTAMANHO CONTADOR DE HISTÓRIAS, O
PRETEXTO É O QUE MENOS IMPORTA
Entrevistadores: Fernando Evangelista, Elis Motta, Ricardo Viel e Franco Squicciarini
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galeano - evangelista 30.07.04 9:53 PM Page 34
CAROS AMIGOSA G O S T O2 0 0 4 35
mim, era um prazer imenso essa convivência. Eu passava
todo o tempo que podia escutando aqueles narradores.
Uma vez, escutei uma discussão interessantíssima sobre a
quiniela clandestina, que é uma forma de jogo do bicho,
uma espécie de loteria. Tinha uma quiniela legal e uma ou-
tra clandestina, que pagava prêmios maiores, porque não
tinha imposto público. Naquela época, a quiniela clandes-
tina era muito importante. Tinha os quinieleros que anda-
vam pelos cafés e eram muito confiáveis. Aliás, os únicos
banqueiros confiáveis deste país eram os quinieleros clan-
destinos. Tinha um tal de Húngaro que parava sempre no
café da avenida Rivera. Uma vez chegou um cara... espera,
não tenho tanta certeza de como era a história... Ah, sim,
lembrei. Era um cara que chega, procura esse Húngaro e
diz: “Olha, ontem tive um sonho, sonhei com o número
88”. E aí o Húngaro o aconselhou: “Se você sonhou com o
número 88, viu ele bem clarinho, então é certo que sai a la
grande, o prêmio maior. Se sonhou assim com essa certe-
za, pode apostar tranqüilo que vai ganhar”. O Húngaro
continua: “Você sonha sempre com número?” “Não, nun-
ca, primeira vez na vida”, responde o outro. “Então é garan-
tido que ganha.” E aí o cara apostou tudo que tinha. Sema-
na seguinte, ele volta e diz pro Húngaro: “Você disse que
eu ia ganhar e não ganhei. Apostei no 88 e saiu o 99”. Aí, o
Húngaro pergunta pra ele: “Pelo que vejo, você usa óculos,
é míope?” “Sou, sim”, ele respondeu. “E você dorme de ócu-
los?” “Não, pra dormir eu tiro.” “Então, a explicação é essa.
Você sonhou bem, mas viu mal.” (risos) Esse é só um exem-
plo. São milhões de histórias que eu ia escutando, pegan-
do. Sou um depósito de histórias.
Franco Squicciarini - E todas essas histórias você foi re-colhendo e botando no papel?Algumas escrevi, outras não. Tem histórias que são faladas
e outras são escritas. Tem histórias para falar e histórias
para contar por escrito. Não é a mesma coisa, são regras
diferentes. Foi a partir do contato com pessoas que eram
capazes de contar o que acontecia e o que tinha aconteci-
do antes que tive essa revelação de que escrever podia va-
ler a pena, de que a palavra como instrumento de comuni-
cação podia ser tanto ou mais importante que a imagem.
Porque eu sempre sentia aquela distância entre o que que-
ria dizer e o que conseguia dizer na pintura, no desenho.
Era sempre uma distância enorme, um fosso profundo que
não dava para atravessar, um abismo fundo demais. Come-
cei a escrever para ver o que acontecia, mas me custou
muito. Agora me custa mais. Custa mais porque o nível de
exigência, de auto-exigência, cresce com os anos, pelo me-
nos no meu caso. Sou cada vez mais auto-exigente e cada
vez trabalho mais o texto.
Fernando Evangelista - Escrevendo sempre à mão?Primeiro, à mão: uma, duas, três, vinte vezes. E hoje em dia
passo para o computador, daí imprimo e volto a trabalhar
o texto. Mas tenho muita desconfiança das máquinas, dos
ordenadores, computadores, computers. Durante muito
tempo eu não queria nem ouvir falar neles. Mas, finalmen-
te, me rendi, foi uma derrota desonrosa. Continuo descon-
fiando das máquinas, acho que elas bebem de noite quan-
do ninguém vê. E que, por isso, durante o dia fazem as coi-
sas que fazem. Essa desconfiança tenho ainda, e é confir-
mada pela conduta no mínimo enigmática das maquini-
nhas, da quantidade imensa de coisas absurdamente in-
compreensíveis que acontecem. A única explicação é que
elas bebem à noite. Mas agora reconheço que podem ter
utilidade, sobretudo para mim, que vivi sempre ameaçado
de perto pelos cães das erratas.
Fernando Evangelista - Você poderia falar um pouco mais
do início de sua carreira? Com 14 anos, você entrou nasredações dos jornais, e com 20 já era diretor... Fui chefe de redação do Marcha quando tinha 19 anos.
Marcha era um semanário importante daqui. E depois,
com 22, fui diretor do Época, um jornal diário.
Fernando Evangelista - Época que era o reduto dos malu-cos de Montevidéu.Maluquíssimos. Inacreditável. Inacreditável porque era um
jornal que não pagava nunca. Então, cada um dos redato-
res vivia de outras coisas, não eram profissionais. Faziam
isso pela fé, pela vontade, pela torcida por um Uruguai di-
ferente. Às vezes havia na redação quinhentos jornalistas, e
às vezes três. Aí, cada um tinha de fazer tudo, porque nor-
malmente publicávamos 24 páginas por dia, às vezes 32,
nessas condições amadoras. A média de idade era 20, 22, 23
anos. Era uma maravilha, uma aventura em um país intei-
ramente diferente deste país que vocês estão vendo. Isso
aconteceu no ano 1963, 1964, por aí. E agora, quarenta anos
depois, o Uruguai é um país de velhos, um país de onde os
jovens foram todos embora. A impressão que dá é muito
deprimente. É um país cansado, desalentado, vazio de
energia. Vamos ver se agora, com a ascensão previsível da
Frente Ampla, as coisas mudam. Mas virou um país muito
dark, muito deprimente. Naquele tempo não era assim. O
próprio Época era uma prova disso. Vendíamos, mais ou
menos, de 25.000 a 30.000 exemplares por dia. Isso, em um
país pequeno e nessas condições, trabalhando sem saber
nunca se íamos conseguir o papel para a próxima edição.
Acabávamos o trabalho às 2 da manhã, aí tirávamos todas
as mesas, máquinas, pegávamos uma bola e jogávamos fu-
tebol. Uma, duas horas... aí, quando estávamos todos bem
mortos, íamos ver o amanhecer. Era um mundo muito di-
ferente do que seria o mundo de uma redação formal. Era
muito lindo, muito bom. Ali aprendi a fazer tudo, tudo: eu
era diretor, mas fazia também o horóscopo. Fazia os edito-
riais, ou seja, as opiniões seriíssimas da casa, o que implica-
va guerra contínua contra cada um dos inumeráveis gru-
pos e movimentos de esquerda dos quais Época era a ex-
pressão. Expressão disso que se chamava, e se chama ain-
da, esquerda independente. Naquele tempo, existiam o jor-
nal do Partido Comunista e o nosso, que era a esquerda in-
dependente. Era uma briga constante com aqueles caras
que chegavam seriíssimos, ingressavam na redação em
nome de um dos partidos trotskistas, olhando aquelas pa-
redes cheias de mulheres nuas, já comprovando que toda
desconfiança tinha fundamento. Vinham para pedir uma
discussão política que ia levar horas, imagina a paciência.
Eu era blindado, era de aço puro.
Fernando Evangelista - Sem contar os outros loucos queapareciam, tem histórias lindas.Ah, milhões... Tinha aquele que dizia que quando abria a
torneira saíam formigas, não saía água, saíam formigas e era
a CIA que estava fazendo isso com ele para enlouquecê-lo.
Um outro fez um projeto imenso de um canhãozinho para
apagar incêndios com areia. Tinha uma quantidade imensa
de loucos, malucos, maluquíssimos.
Fernando Evangelista - Isso foi mais ou menos na épocaem que você entrevistou o Che Guevara?Sim, entrevistei o Che em julho de 1964. Ele era ministro
naquele tempo. Antes de encontrá-lo, fomos advertidos de
que ele não teria tempo, que dispunha só de dois minutos,
só para nos cumprimentar. Éramos três uruguaios. Bom,
aceitamos e, no momento em que o Che abriu a porta do
escritório, eu, com a maior cara-de-pau, coloquei uma foto
na cara dele e lhe disse: “Traidor!” Era uma foto publicada
no jornal Granma que o mostrava jogando beisebol. Ele
teve uma experiência insólita. Ficamos três horas conver-
sando.
Fernando Evangelista - Desse encontro, qual é a lembran-ça mais forte que você tem do Che?O olhar. Era um cara excepcional, extraordinário. E estava
nos olhos, tinha uma luz nos olhos, uma coisa meio mes-
siânica, de iluminado. Eram olhos também muito confiá-
veis. Olhos de alguém que não vai mentir, olhos de alguém
capaz de dizer o que pensava e fazer o que dizia. Ele pen-
sava, dizia, fazia. A comunhão entre essas três coisas se
dava de maneira excepcional. E a prova de que essa coe-
rência existia estava nos olhos. Acho que essa coerência,
tão excepcional, é a chave, a explicação da imensa popula-
ridade que o Che Guevara carrega tantos anos depois de
sua morte. A explicação dessa teimosa capacidade de so-
breviver está nessa comunhão entre a palavra e o ato. É
uma comunhão muito difícil de encontrar, tão excepcio-
nal, que ele virou excepcional também. Muitas das coisas
que o Che pregou em vida, a formulação das idéias do Che
Guevara, lidas hoje, são de acesso difícil. Mas isso não im-
pede em nada que milhões e milhões de jovens do mundo,
de lugares mais diversos, continuem se reconhecendo
nele. Acho que se reconhecem nele não no sentido de que
ele pregou a luta armada, ou que era um inimigo mortal
dos estímulos materiais no processo de construção do so-
cialismo, não, nada disso. Esses garotos nem sabem do que
ele estava falando. Mas percebem que foi um homem ex-
traordinário porque nunca mentia e era coerente com o
que acreditava. Isso é uma coerência insólita. Na América
Latina, sobretudo, é quase um milagre quando a palavra e
o ato se encontram; quando se encontram, não se reco-
nhecem e por isso não se cumprimentam.
Fernando Evangelista - Ele chegou a ler a entrevista?Não sei, porque ele sumiu pouco depois. Deve ter sido uma
das últimas, provavelmente a última entrevista que ele
deu. Mas, na verdade, não foi uma entrevista, o que fiz foi
registrar a conversa tal como eu lembrava que era. Cada
vez que eu tirava a caneta do bolso para anotar algo que
ele tinha dito, aí ele me olhava sério e ficava quieto. Então,
acabei por confiar inteiramente na memória. O problema
com a memória é que ela tem filtros e nem sempre você
está de acordo com o filtro que ela usa.
Elis Motta - Você assistiu ao filme Diários de Motocicleta?Não, ainda não. Não foi exibido aqui.
Elis Motta - O filme mostra justamente essa imagem, a deum homem que não mente, um homem solidário, sensível.Sim... E era também um homem que, às vezes, estava em
conflito com as suas próprias teorias. Por exemplo, quan-
do ele dizia que um guerrilheiro tinha de funcionar como
uma máquina, sem esquecer a ternura, mas que tinha de
ser como uma máquina na eficácia, na eficiência, você per-
cebia uma tensão interior nesse homem que era uma ten-
são tão fecunda, tão vital, mas também tão cheia de dor,
uma tensão entre a paixão e a razão. Ele era muito conti-
do, muito reprimido.
Fernando Evangelista - Reprimido?Sim, sim. Um cara que tinha uma concepção muito austera
e puritana do processo revolucionário. Ele era muito intole-
rante, muito puritano, muito auto-exigente. Depois, ele exi-
gia dos demais, mas em primeiro lugar era auto-exigente.
Era o exercício do dever cotidiano em contradição com es-
sas energias que ele continha e que viviam reprimidas de al-
guma maneira. Então, essa tensão de forças que lutavam
dentro dele era o motor da imensa energia que ele transmi-
galeano - evangelista 30.07.04 9:53 PM Page 35
tia. Transmitia uma certeza que não era burocrática, certe-
zas verdadeiras, nascidas de conflitos muito profundos. Ele
era um apaixonado, mas também um racionalista severíssi-
mo. Alguém que carregava sobre as costas a cruz e as dores
do mundo, mas que conservava essa capacidade de humor,
de alegria, que muito dificilmente ele conseguia exprimir
sem sentir que estava traindo o dever de serviço à humani-
dade, para o qual tinha nascido. É um negócio complicadér-
rimo, mas naquelas três horas ele morreu de rir. Foi uma ex-
periência inesquecível.
Fernando Evangelista - Houve uma empatia entre vocês.Não, o que houve foi aquela foto do beisebol, a palavra
“traidor”. Foi isso o que houve.
Ricardo Viel - Falando em Che, foi muito dolorido escrevero artigo “Cuba Dói”? (artigo publicado em abril de 2003) Foi. Cuba dói porque dói escrevê-lo. Esse texto escrevi
quando aconteceram aquelas penas de morte, quando fo-
ram parar na cadeia essas dezenas de dissidentes, dissiden-
tes entre aspas, porque estavam sendo pagos pela embaixa-
da dos Estados Unidos etc. etc. Mas o fato de a revolução
punir com o cárcere esse delito, para mim, era inaceitável.
Porque eu achava, e acho ainda, que uma revolução, como a
revolução cubana, que gerou um país novo com um altíssi-
mo sentido de dignidade nacional, nesse país novo bastaria
denunciar que esses caras eram profissionais a serviço de
uma potência inimiga para desacreditá-los completamente.
E que, levando-os para o cárcere, para a cadeia, estariam
lhes oferecendo o prestígio de mártires. É isso que ainda
acho, e acho também que o bloqueio, que é uma realidade
trágica e dolorosa, muitas vezes atua como um álibi mági-
co para escusar a burocracia da barbaridade que comete.
Eram coisas que eu já havia falado antes. No livro, o De Per-
nas para o Ar, isso está dito também. Tem um capítulo que
fala das experiências lastimáveis do mundo do Leste, onde
se fala de Cuba com muito carinho, como falo sempre. Fon-
seca Amador, dirigente sandinista da Nicarágua, tinha toda
razão do mundo quando dizia que o amigo de verdade, o
verdadeiro amigo, é aquele que é capaz de te criticar pela
frente e te elogiar pelas costas. Minha relação com os cuba-
nos sempre foi de uma lealdade total. Acredito que a solida-
riedade pode e deve ser exercida a partir da liberdade de
consciência, e não a partir do dever de obediência. Aquela
tradição stalinista que impõe a solidariedade como um de-
ver, e como um dever nascido da obediência, comigo não
funciona. Acho que não funciona com ninguém, porque
não é de longa duração. Veja o que aconteceu com essas ex-
periências lastimosas do fim do século 20, com esses siste-
mas que foram derrubados num sopro. Não tinham emba-
samento nenhum. Continuo acreditando que Cuba é dife-
rente. E é por isso que Cuba está onde está, porque é dife-
rente. Mas também me reservo o direito de não concordar
com essa estrutura de poder que é o resultado de um isola-
mento de mais de quarenta anos. Os cubanos não fizeram o
que queriam, fizeram o que podiam. Continuo acreditando
na dignidade desse povo exemplar, em um mundo faminto
de dignidade, onde a dignidade está cada vez mais escassa
e mais difícil de encontrar. Mas também continuo com
aquela velha certeza minha de que a onipotência do Estado
não é a resposta justa à onipotência do mercado.
Fernando Evangelista - A onipotência do mercado que éfruto da ditadura do pensamento único. Tem uma frase nosindicato dos jornalistas de Buenos Aires que diz assim:“A ditadura não me deixava escrever aquilo que penso. Opensamento único não me deixa pensar o que escrevo”.Muito boa essa frase, de quem será? A necessidade que
sinto hoje, com mais força do que nunca, é afirmar a diver-
sidade do mundo. E também a necessidade de afirmar a
diversidade dos projetos de outros mundos possíveis. Por-
que senão, se você tiver um único projeto de outro mundo
possível como alternativa a esse mundo submetido à dita-
dura do pensamento único, vai trocar uma ditadura por
outra. E isso não vale a pena. Não é para isso que tanto
sangue foi derramado, tanto sangue, tantas esperanças fo-
ram quebradas, não foi para isso.
Fernando Evangelista - Mas existem esses projetos?Sim, existem por toda parte. Muitos desses projetos não
têm ainda uma articulação visível, mas existem e estão aí.
Ninguém poderia imaginar que aquele projeto do Fórum
em Porto Alegre teria o sucesso que teve e que vai conti-
nuar tendo de maneira crescente. Porque é a expressão da
necessidade de uma quantidade imensa de grupos, movi-
mentos – alguns deles pequeninos, outros grandes – que o
mundo tem e que estão começando a se conhecer e a ar-
ticular movimentos conjuntos.
Fernando Evangelista - Uma das coisas que me atraem nasua obra é essa capacidade da denúncia, mas do anún-cio também.Sim, uma denúncia que anuncia.
Fernando Evangelista - Uma capacidade de anunciar queas coisas podem ser diferentes, de não ter perdido a espe-rança, de não ter se desumanizado. De onde vem isso?Acho que a explicação está no fato de que, afortunada-
mente, a vida é contraditória. Com 18 e 19 anos, fiz um
curso de marxismo aqui em Montevidéu com um profes-
sor argentino, Henrique Roque, um cara que sabia muito.
Fizemos em grupo uma leitura de O Capital durante dois
anos, levados pela mão de alguém com imensa capacida-
de de tradução. Tradução dos conceitos filosóficos e da
terminologia econômica para fazê-lo compreensível a um
grupo de gente jovem que estava tentando mergulhar nes-
sas águas difíceis. Em grupo é a única maneira de ler O Ca-
pital, não sei se alguém tentou ler sozinho, mas acho que
só é possível ler em grupo. O mais importante que recebi
daqueles dois anos dessa leitura, com mais força, de uma
maneira mais inesquecível, além do muito que aprendi de
economia, foi a certeza da contradição como motor da
vida e da história. Isso continua sendo para mim uma
“chave abre portas” que me permite entender o que na
aparência não é compreensível. O livro Dias e Noites de
Amor e Guerra começa com uma frase de Marx sobre as
contradições, que é assim: “Na história, como na natureza,
a podridão é a fonte da vida”. Tive um problema com essa
frase. Esse livro é uma obra de exílio, foi escrito quando eu
estava saindo da Argentina, no começo do exílio europeu.
Então, quando escrevi o livro, não tinha nada à mão para
consultar. O livro era a minha memória que eu estava ten-
tando abrir para os outros, para os demais, e que era uma
memória cheia de gente, uma memória com muita gente
dentro. Quando terminei o livro, achei que essa seria uma
boa frase de apresentação. Aí, o livro foi traduzido em al-
gumas línguas, entre outras, a língua alemã. O tradutor
alemão, muito “alemãmente”, quer dizer, germanicamente,
como só um alemão é capaz, procurou a frase nas obras do
Marx, e não achou. Então, o tradutor me diz: “Olha, tentei
encontrar essa frase e não a achei, ela não aparece”.
Franco Squicciarini - Mas a frase existe, é do Marx?Essa frase nunca apareceu. Também tentei procurar e não
achei. Mas, depois, aquele tradutor alemão e meus amigos
coincidem, não sei se por razão ou por consolo, por amor ou
por compaixão, em dizer que, se a frase não é de Marx, me-
rece ser. Quer dizer, é uma definição perfeita do que ele
achava que era. Assim ficou, não sei se é dele ou não, mas,
se não é, merece ser. E eu, de verdade, acredito que há essa
comunhão contraditória entre o dia e a noite, a vida e a
morte, o amor e o ódio... enfim, todas as antíteses da exis-
tência que estão o tempo todo te desafiando e colocando
novas tensões das quais aparecem outras contradições. A
única resposta digna de ser acreditada é a que formula uma
nova pergunta. Acho que daí, algo em conexão com isso,
deve ser a explicação de que no que escrevo ainda há algu-
ma coisa muito parecida com a esperança. Que não é uma
esperança ditada pela consciência. Não é o fato de ser um
escritor inteiramente responsável pelo que escrevo, que não
tenho o direito de semear o derrotismo, o desalento. Não.
Não é nada disso. Esse tipo de raciocínio não dá, porque
todo resultado será uma literatura não verdadeira, na qual
você não está dizendo o que realmente quer dizer, mas o
que você acha que deve ser dito. Isso é a pior coisa que pode
acontecer, porque depois o resultado não transmite ao lei-
tor a energia, não transmite essa eletricidade que, em boa
medida, vem da dúvida. Porque a dúvida é uma fonte mo-
triz muito importante, de todas as certezas.
Fernando Evangelista - Em um recente artigo, A Confis-são do Torturador, você diz que “Guantánamo é o símbo-lo dos tempos que nos esperam”. É uma frase bastantepessimista, não? Não... dos tempos que nos esperam do ponto de vista do
poder que está planificando esses tempos. Isso não signifi-
ca que não existam, e afortunadamente existem, respostas
para esse projeto que implica uma aniquilação dos direitos
conquistados ao longo de muitas civilizações pela espécie
humana. Em primeiríssimo lugar, o direito à sobrevivência,
que está posto em jogo agora porque ninguém sabe se va-
mos ou não ter século 22. Esse mundo está sendo extermi-
nado por seus proprietários. O que eu dizia nesse artigo é
que é muito estranho encontrar a palavra tortura pronun-
ciada com todas as letras, porque ninguém fala da tortura
dizendo tortura. Se dizem abusos, erros, insistências ile-
gais, milhares de coisas, mas a palavra tortura é uma pala-
vra difícil de aceitar. O que aconteceu depois da queda das
torres gêmeas é muito revelador. Mostra a capacidade que
o sistema tem de manipular o medo em escala coletiva.
Houve uma pesquisa de opinião em seguida, na qual a per-
gunta continha a palavra tortura, assim como soa: tor-tu-
ra. A pergunta era se as pessoas achavam que a tortura po-
deria ser necessária, se aplicada contra os terroristas. En-
tão, 45 por cento da população dos Estados Unidos disse
que sim, que aprovava a tortura. Uma coisa terrível.
Fernando Evangelista - Isso me faz lembrar um outro tex-to seu, bem mais antigo, de uma outra época. Foi escrito
galeano - evangelista 30.07.04 9:53 PM Page 36
em 1968, chama-se “Crônica da Tortura e da Vitória”. Ésobre um argentino torturado pela ditadura. É impressio-nante porque extremamente atual... Isso foi uma entrevista com um cara da juventude peronis-
ta, Jorge Rulli, que tinha sido terrivelmente torturado na
Argentina. Ele me contou sua experiência, eu registrei. É
verdade, é muito impressionante. A idéia fundamental que
fui confirmando, somando tudo que pude aprender sobre a
tortura, desde os tempos da Santa Inquisição, é que a tor-
tura não é eficaz para obter informação. Confirmei isso não
através de experiência própria porque, afortunadamente,
nunca fui torturado, mas muitos dos meus amigos foram,
muitos. Também escutei muita coisa nos dias em que fi-
quei preso aqui no Uruguai, que por sorte foram poucos.
Ali via passar alguns torturados, chegavam completamen-
te desfigurados, nas últimas. As informações que você tira
através da tortura são muito duvidosas porque a dor, nes-
ses níveis altíssimos, como digo nesse artigo, converte
qualquer um em grande novelista. É insuportável. Então,
você inventa o quer for. Pode ter uma proporção de infor-
mação verdadeira tirada através de meios de tormentos
sistemáticos, mas é uma proporção mínima. Na verdade, a
tortura é eficaz como meio de humilhação do prisioneiro,
para quebrar sua dignidade humana, para reduzir o prisio-
neiro à condição de bicho, e, sobretudo, é importante para
semear o medo. O Uruguai foi, segundo a Anistia Interna-
cional, campeão de tortura durante os anos da ditadura
militar. Quando já não éramos campeões mundiais no fu-
tebol, conseguimos ser campeões mundiais em tortura. O
Uruguai foi o país com a maior quantidade de presos polí-
ticos no mundo e com a maior quantidade de torturados
no mundo. Então, aqui, quando a ditadura militar aplicou
a tortura sistematicamente, usou-a como instrumento de
difusão do medo e dos gases paralisantes do medo. O medo
paralisa as pessoas. E iam torturando qualquer um em
qualquer lugar. Há uma quantidade imensa de casos no
Uruguai que você não consegue explicar por que a pessoa
foi torturada. E era exatamente para isso que a tortura era
feita. No último livro, Bocas do Tempo, há uma história que
tem a ver com isso que estamos falando. É uma história
atribuída a um imperador chinês, que ninguém sabe o
nome nem o tempo em que existiu. Deve ser verdadeira e,
se não é, deveria ser. É assim: o conselheiro do imperador
estava muito preocupado e falou para ele: “Ninguém tem
medo de você”. O imperador diz: “Por que não? Enforquei
os que não pagaram imposto, cortei o pescoço dos que não
se inclinaram quando eu passava etc.”. E o conselheiro diz:
“Sim, mas esses eram os culpáveis. Se você castiga só os
culpáveis, só os culpáveis vão ter medo, e o poder sem
medo é como um pulmão sem ar”. Aí, o imperador ficou
pensando por um longo tempo e mandou cortar a cabeça
do conselheiro. O conselheiro foi a primeira vitima de uma
longa lista e o imperador desfrutou do poder durante mui-
tos anos, até o fim dos seus dias.
Ricardo Viel - Queria que você falasse sobre esse novo li-vro, Bocas do Tempo, que está sendo lançado no Brasil. Foram oito anos de trabalho escolhendo histórias que es-
tão conectadas entre si. É parecido com o Livro dos Abra-
ços, mas também é bastante diferente. Vai percorrendo os
diferentes territórios: a infância, o amor, a terra, a água, a
palavra, a imagem, o som, diferentes territórios, como um
rio. Um trabalho imenso de muitos anos, de seleção de tex-
tos, de muito trabalho nos textos. São 333 histórias. Vi que
eram 333 histórias no fim, quando fiz o índice. Ficou fora
quase a mesma quantidade, pelo menos trezentas ficaram
de fora. As eleitas, fios de cores que coincidiam para tecer
esse tecido, foram 333. Isso descobri depois, mas é um nú-
mero que dá boa sorte, soa bem.
Ricardo Viel - Qual é a sua principal motivação para escrever?Evidente que é a necessidade de comunicação. É uma ne-
cessidade inexplicável de comunicação com os demais,
que acho que também pode ser chamada de necessidade
de comunhão. Porque, quando você se comunica verdadei-
ramente, está de alguma maneira comungando com o lei-
tor. Quando um livro está vivo, te toca, tem dedos, toca a
tua face. As palavras são como dedos que te tocam tam-
bém. Tenho essa necessidade imensa de comunicação e de
comunhão. Nunca concordei com o queridíssimo mestre
Juan Carlos Onetti quando ele dizia que escrevia para si
mesmo. Quando ele mentia, usava o prestígio dos nomes
mágicos e dizia uma frase do James Joyce: “Eu escrevo para
um cara que se chama James Joyce, que está ali sentado es-
cutando o que leio”. Aí, eu dizia para ele: “Muito bem, se
você escreve para você, por que não coloca o que escreve
em um envelope, fecha e vai até o correio? Até vou se você
não quiser, porque você passa o tempo inteiro deitado aí
nessa cama, bebendo vinho. Você me dá o envelope e o levo
até correio e o envio com o seu nome e endereço. E aí você
recebe aquilo que você escreveu para você”. Ele dizia: “Não,
não...”. Olhando para a fumaça que se perdia pelo teto, sem
dar a menor bola. Passava um tempo e eu dizia: “Se você
publica, escreve para outros que vão te ler. É uma mentira,
você não escreve para você, se escrevesse para si mesmo,
não publicaria”. (imita Onetti fumando, olhando para o
teto) Aí, eu ia embora e ele não me cumprimentava.
Franco Squicciarini - Queria mudar um pouco o rumo daconversa. Hoje, os governantes dos países ditos de Primei-ro Mundo, de Berlusconi a Bush, me parecem extrema-mente ignorantes. O nível intelectual dos que nos gover-nam caiu vertiginosamente. Como você vê essa realidade?O mundo tem os chefes que merece. O mundo de hoje é
conduzido por uns poucos chefes de Estado que expres-
sam uma única verdade, como se ela fosse capaz de conter
todas as outras verdades. E essa verdade é: o que é rentá-
vel é bom. E o que não é rentável não merece existir. En-
tão, para promover isso, não é necessário um nível intelec-
tual altíssimo. Mas muito cuidado para não se confundir.
Para mim, também é fácil brincar com as barbaridades
que Carlos Menem cometeu aqui ao lado, por exemplo. Ele
disse, entre outras coisas, que tinha lido as obras comple-
tas de Sócrates. Só que Sócrates nunca escreveu um livro.
Quando Menem inaugurou a fundação Borges, fez um dis-
curso inesquecível, dizendo que ele, Menem, era um admi-
rador incondicional de toda a obra de Borges, mas, sobre-
tudo, dos romances. Borges nunca escreveu romances. É
fácil rir dessas coisas, mas o problema é mais complicado.
Devemos saber por que as pessoas os elegem. Menem foi
eleito duas vezes pela maioria do povo argentino. Na pri-
meira vez, foi votado por pessoas que esperavam dele uma
política diferente, mas ele vendeu, nesse primeiro período,
o país a preço de banana. E foi eleito outra vez. Então
acontece o mesmo com Berlusconi, com Aznar, com
Bush... Temos de nos perguntar por que as pessoas votam
nesses personagens.
Fernando Evangelista - Mas a eleição de Bush foi fraudada.De qualquer forma, obteve milhões e milhões de votos. No
início da guerra do Iraque, nos primeiros meses, quando já
haviam matado mais de 7.000 civis, o que é proporcional a
93.000 norte-americanos, Bush foi ao Congresso e ao Se-
nado e recebeu uma ovação porque era o líder triunfante
da guerra, da guerra patriótica. E a cheerleader era a Hil-
lary Clinton, a mais histérica, a que aplaudia com mais fer-
vor o filho da puta do Bush. É verdade que ele é um tipo
muito bruto, mas cabe a pergunta: por que as pessoas vo-
tam? As boas respostas são as que geram novas perguntas.
Franco Squicciarini - Por que as pessoas os elegem? Porque o movimento progressista, porque a nova esquer-
da, em tantos países, em tantos lugares, não foi capaz de
formular alternativas viáveis nas quais as pessoas se
identificassem a partir da ascensão da ideologia de mer-
cado. Uma ideologia completamente oca e que está de
antemão condenada ao fracasso porque não pode dar de
comer à maioria da humanidade e porque não pode sa-
tisfazer as necessidades da maioria da humanidade em
matéria de direitos humanos, direitos trabalhistas, digni-
dades elementares da vida. Como é possível que se impo-
nha isso, que soa tão estúpido, tão oco? Bom, em parte,
essas perguntas desembocam na outra: por que não fo-
mos capazes de chegar às pessoas de outra maneira? E
isso tem muito a ver com a linguagem da esquerda e com
as impotências de comunicação que têm sido até agora,
acredito, o nosso problema principal. Essa dificuldade
enorme para chegar aos demais, para que as pessoas se
sintam tocadas por nós. Ao contrário desses demagogos
sem-vergonhas, ocos da cabeça, que tiveram a capacida-
de de tocar as pessoas.
Fernando Evangelista - Para encerrar, qual a sua leiturado governo Lula?Creio que seria uma falta de respeito eu opinar sobre o
governo Lula daqui do Uruguai, ou seja, não vou vender
gelo aos esquimós. Mas o que posso dizer, que se aplica
ao Brasil e a todos os nossos países, e também à Frente
Ampla, que muito provavelmente vai ganhar as próximas
eleições aqui no Uruguai, e que se aplica aos diferentes
projetos, partidos e movimentos, é uma lembrança que
guardo da minha infância. É uma lembrança meio apaga-
da, como costuma acontecer com essas lembranças de
quando tínhamos 12, 13 anos. Vi um filme dos irmãos
Marx. Não me lembro exatamente como era. Mas, se não
estou enganado, Groucho Marx perseguia um delinqüen-
te em um trem, e o trem ia ficando sem lenha. Ele vai per-
seguindo o delinqüente e vai colocando lenha no forno
da locomotiva e, em um momento, ele vai pegar a lenha
e não tem mais. Então, com um machado, ele começa a
quebrar os vagões de madeira, um atrás do outro, para
alimentar o forno da locomotiva. Porque o importante
era chegar. O delinqüente seguia correndo e ele tinha de
persegui-lo. O importante era chegar, chegar ou chegar. E,
ao final, a lembrança que tenho do filme é que Groucho
Marx consegue chegar, mas só a locomotiva chega, por-
que todos os vagões haviam sido sa-cri-fi-ca-dos. Então,
o trem chega, mas chega sem trem.
CAROS AMIGOSA G O S T O2 0 0 4 37
“MENEM DISSE QUE TINHA LIDO
AS OBRAS COMPLETAS DE
SÓCRATES. SÓ QUE SÓCRATES
NUNCA ESCREVEU UM LIVRO.”
galeano - evangelista 30.07.04 9:53 PM Page 37