Paleo Estatistica

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1Departamento de Ciências Biológicas, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte ([email protected]); 2Museu Câmara Cascudo/UFRN ([email protected]). Revista de Geologia, 2002, Vol. 15: 17-21 17 1 KLEBERSON DE OLIVEIRA PORPINO & 2 MARIA DE FÁTIMA CAVALCANTE FERREIRA DOS SANTOS O ESTUDO DOS MAMÍFEROS PLEISTOCÊNICOS NO NORDESTE BRASILEIRO E A NECESSIDADE DE ABORDAGENS COMPLEMENTARES: UM EXEMPLO POTIGUAR RESUMO Neste trabalho a importância dos estudos tafonômicos para a pesquisa paleontológica é ressaltada. São propostos e discutidos alguns procedimentos metodológicos visando a recuperação de dados tafonômicos a partir de material coletado nas assembléias fossilíferas quaternárias do Rio Grande do Norte, o que tornará possível discutir de maneira mais concreta problemas relacionados à formação das assembléias fossilíferas e à paleoecologia do Pleistoceno potiguar. ABSTRACT This paper emphasizes the importance of taphonomy to paleontological research, as a complementary approach to morphological and systematics works. Metodological procedures for data retrieval from pleistocenic fossil assemblage from Rio Grande do Norte State are proposed. That approach will allow more comprehensive analysis of paleoecology related problems. INTRODUÇÃO As pesquisas paleontológicas nos depósitos quaternários no interior do Rio Grande do Norte, iniciadas de maneira mais sistemática no final da década de 60, têm resultado na coleta de uma relevante quantidade de fósseis de mamíferos pleistocênicos. Seguindo-se a prática comum na pesquisa paleomastozoológica brasileira, o referido material serviu de base para diversos trabalhos de ordem taxonômica, os quais representam, sem dúvida, uma etapa fundamental de qualquer investigação paleontológica. Graças a este tipo de abordagem são possíveis, por exemplo, análises paleobiogeográficas bem como considerações paleoclimáticas e estudos comparativos da biodiversidade regional pretérita, como exemplificados pelos trabalhos de Ranzi (2000) para o Pleistoceno do Acre e Tonni et al. (1999) para Pleistoceno Tardio-Holoceno dos Pampas argentinos. Além disso, as descrições anatômicas detalhadas são essenciais para o estabelecimento das relações filogenéticas dos táxons reconhecidos a partir do registro fóssil (Shipman, 1981). Porém, com bastante freqüência, programas de pesquisa que se detêm prioritariamente nos aspectos morfológicos e sistemáticos não constituem uma base suficiente para inferências paleoecológicas acuradas. Como apontam Wing et al. (1992), a caracterização ecológica de espécies extintas, por exemplo, requer a análise integrada de fatores como o significado funcional da morfologia, anatomia e feições ligadas aos contextos sedimentológico e tafonômico. Neste trabalho é apontada a necessidade de uma intensificação dos estudos tafonômicos, que com algumas exceções, são raros com relação aos fósseis oriundos de sedimentos pleistocênicos no território potiguar. Alguns procedimentos metodológicos pertinentes são sugeridos. A TAFONOMIA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A PESQUISA PALEONTOLÓGICA Os processos tafonômicos contribuem para o estabelecimento de discrepâncias entre a associação original de espécie e o que se observa no registro fóssil tornando imprescindível à compreensão dos tendencionamentos que atuaram na formação das assembléias fossilíferas (Wing et al. 1992, Simões & Holz, 2000). Cabe, portanto, à tafonomia reconhecer se uma determinada característica de uma associação fossilífera, como a diversidade taxonômica, representa apenas um artefato dos processos de preservação ou se reflete com maior fidelidade um aspecto real das comunidades pretéritas das quais os fósseis são evidências (Figura 1). Avanços conceituais recentes tornam mais claras as relações entre os dados tafonômicos e os dados de ordem morfológico-sistemática.

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1Departamento de Ciências Biológicas, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte ([email protected]); 2Museu Câmara Cascudo/UFRN ([email protected]).

Revista de Geologia, 2002, Vol. 15: 17-21 17

1KLEBERSON DE OLIVEIRA PORPINO & 2MARIA DE FÁTIMA CAVALCANTE FERREIRA DOS SANTOS

O ESTUDO DOS MAMÍFEROS PLEISTOCÊNICOS NO NORDESTE BRASILEIRO E A NECESSIDADE DE ABORDAGENS COMPLEMENTARES: UM EXEMPLO POTIGUAR

RESUMO Neste trabalho a importância dos estudos tafonômicos para a pesquisa paleontológica é ressaltada. São propostos e discutidos alguns procedimentos metodológicos visando a recuperação de dados tafonômicos a partir de material coletado nas assembléias fossilíferas quaternárias do Rio Grande do Norte, o que tornará possível discutir de maneira mais concreta problemas relacionados à formação das assembléias fossilíferas e à paleoecologia do Pleistoceno potiguar.

ABSTRACT This paper emphasizes the importance of taphonomy to paleontological research, as a complementary approach to morphological and systematics works. Metodological procedures for data retrieval from pleistocenic fossil assemblage from Rio Grande do Norte State are proposed. That approach will allow more comprehensive analysis of paleoecology related problems.

INTRODUÇÃO As pesquisas paleontológicas nos depósitos quaternários no interior do Rio Grande do Norte, iniciadas de maneira mais sistemática no final da década de 60, têm resultado na coleta de uma relevante quantidade de fósseis de mamíferos pleistocênicos. Seguindo-se a prática comum na pesquisa paleomastozoológica brasileira, o referido material serviu de base para diversos trabalhos de ordem taxonômica, os quais representam, sem dúvida, uma etapa fundamental de qualquer investigação paleontológica. Graças a este tipo de abordagem são possíveis, por exemplo, análises paleobiogeográficas bem como considerações paleoclimáticas e estudos comparativos da biodiversidade regional pretérita, como exemplificados pelos trabalhos de Ranzi (2000) para o Pleistoceno do Acre e Tonni et al. (1999) para Pleistoceno Tardio-Holoceno dos Pampas argentinos. Além disso, as descrições anatômicas detalhadas são essenciais para o estabelecimento das relações filogenéticas dos táxons reconhecidos a partir do registro fóssil (Shipman, 1981). Porém, com bastante freqüência, programas de pesquisa que se detêm prioritariamente nos aspectos morfológicos e sistemáticos não constituem uma base suficiente para inferências paleoecológicas acuradas. Como apontam Wing et al. (1992), a caracterização ecológica de espécies extintas, por exemplo, requer a análise integrada de fatores como o significado funcional da morfologia, anatomia e feições ligadas aos contextos sedimentológico e tafonômico. Neste trabalho é apontada a necessidade de uma intensificação dos estudos tafonômicos, que com algumas exceções, são raros com relação aos fósseis oriundos de sedimentos pleistocênicos no território potiguar. Alguns procedimentos metodológicos pertinentes são sugeridos.

A TAFONOMIA E SUA IMPORTÂNCIA PARA A PESQUISA PALEONTOLÓGICA Os processos tafonômicos contribuem para o estabelecimento de discrepâncias entre a associação original de espécie e o que se observa no registro fóssil tornando imprescindível à compreensão dos tendencionamentos que atuaram na formação das assembléias fossilíferas (Wing et al. 1992, Simões & Holz, 2000). Cabe, portanto, à tafonomia reconhecer se uma determinada característica de uma associação fossilífera, como a diversidade taxonômica, representa apenas um artefato dos processos de preservação ou se reflete com maior fidelidade um aspecto real das comunidades pretéritas das quais os fósseis são evidências (Figura 1). Avanços conceituais recentes tornam mais claras as relações entre os dados tafonômicos e os dados de ordem morfológico-sistemática.

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Fase bioestratinômica Fase fossildiagenética

Processos de fossilização

Comunidade Original

Táxon 1

Táxon 2

Figura 1 - Exemplo de tendencionamentos afetando uma assembléia fossilífera hipotética.

De acordo com Fernández-López (1991), pode-se classificar a informação passível de recuperação nas concentrações fossilíferas em dois grupos: a informação paleobiológica compreendendo as propriedades morfológico-estruturais e filogenéticas inferíveis a partir dos fósseis e a informação tafonômica gerada pelos eventos bioestratinômicos e fossildiagenéticos. Para alguns autores as vicissitudes tafonômicas atuariam como filtros sucessivos para a informação paleobiológica (Kidwell & Behrensmeyer, 1988) enquanto que ao mesmo tempo produziriam informação do outro tipo (Fernández-López, 1991). Esta distinção caracteriza o modelo evolutivo de tafonomia que atribui ênfase à modificação tafonômica e retenção diferencial dos elementos de origem orgânica, além de considerar que a fossilização permite a recuperação não só de dados sobre os organismos produtores dos restos preservados, mas também dos processos biológicos e geológicos implicados na conservação destes restos (Martínez & Santoja, 1994). A Figura 2 representa um modo pelo qual os diferentes tipos de informação, contidas nas depósitos fossilíferos, podem ser interrelacionadas.

Assembléia fossilífera

Informação paleobiológica

Informação tafonômica

Análise tafonômica

SistemáticaPaleobiogeografia

Morfologia funcional

Outros estudos:SedimentologiaEstratigrafia

Interpretações Paleoecológicas

Informações docontexto

sedimentar eestratigráfico

Figura 2 - Modelo das interrelações entre os tipos de informação contidas em uma assembléia fossilífera.

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INFORMAÇÃO TAFONÔMICA NAS ASSEMBLÉIAS FOSSILÍFERAS DO PLEISTOCENO POTIGUAR A descoberta de fósseis de mamíferos no interior do estado do Rio Grande do Norte, de maneira semelhante ao que ocorre em outros estados do nordeste brasileiro, é geralmente fortuita, coincidindo com a escavação dos depósitos do tipo tanque em época de estiagem ou a exploração de grutas em busca de fontes de água. Decorre daí uma freqüente descaracterização dos jazigos associada à perda de relevante quantidade de informação de importante valor paleontológico. Tal situação se traduz, por exemplo, na destruição de evidências da orientação dos fósseis na matriz, a organização das camadas, o grau de empacotamento entre outros parâmetros essenciais para uma análise tafonômica profunda. Apesar disso, em algumas situações, feições observáveis diretamente nas próprias peças encontram-se inalteradas e portanto disponíveis para investigação. É nessa categoria de dados que pode incidir, de imediato, a pesquisa futura. Para exemplificar melhor esta possibilidade são listadas a seguir algumas destas feições as quais são reconhecíveis em material coletado em depósitos potiguares e que integra a coleção de paleovertebrados do Museu Câmara Cascudo:

a) Ausência de vestígios de micromamíferos entre os fósseis coletados em tanques. Tal fato pode estar relacionado a seletividade dos processos tafonômicos, a ausência real de mamíferos de pequeno porte na paleocomunidade, ou mesmo a exclusão involuntária por parte do pesquisador no ato de coleta;

b) Evidência de processos de fossilização distintos constatados em fósseis provenientes de depósitos semelhantes, como tem sido demonstrado por estudos recentes (Santos, 2001);

c) Ocorrência, em algumas peças, de fendas de dessecação e feições similares, provavelmente indicando condições de exposição subaérea do material antes do soterramento;

d) Quebras com bordas arredondadas e marcas de desgaste evidenciando algum tipo de transporte pré-deposicional, ou, principalmente no caso dos tanques, sucessivas fases de retrabalhamento no interior do depósito;

e) Predominância de determinada classe de elemento em relação à outra, ex.: maior abundância de ossos curtos em detrimento de ossos longos.

Evidentemente outras características não relacionadas acima poderão ser adicionadas a lista. De capital importância é reconhecer que estes padrões evidenciam a necessidade de um tratamento mais detalhado. O primeiro passo nesta direção seria a implementação de uma metodologia adequada de análise. Sugere-se aqui alguns procedimentos visando uma melhor contrastação das feições evidenciadas o que permitirá uma avaliação inicial do seu significado:

1) Avaliar a representatividade (porcentagem relativa) de cada tipo de elemento esqueletal como vértebras, dentes, costelas, podiais e metapodiais, ossos cranianos, etc.2) Reconhecer as marcas deixadas pelos diversos processos de intemperismo e transporte, como abrasão e marcas de dessecação.3) Discriminar, a localização, a quantidade e os tipos de quebras ocorrentes nos elementos individuais (Shipman, 1981).4) Confeccionar lâminas delgadas que permitam examinar alterações ocorridas na microestrutura das peças, como preenchimento ou substituição. Este procedimento possibilita a verificação dos tipos de fossilização predominante em cada jazigo.5) Utilizar definições padronizadas e objetivas de preferência aquelas de uso comum na literatura especializada.6) Comparar as feições evidenciadas em fósseis provenientes de jazigos distintos avaliando as causas prováveis das diferenças e semelhanças detectadas;7) Utilização, quando necessário, de técnicas estatísticas;

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Figura 3 - Predominância de ossos curtos evidenciada em material proveniente de assembléia fossilífera no município de Rui Barbosa. Escala =5cm.

Estas etapas poderão ser incrementadas, ou substituídas por outras técnicas que se mostrem mais adequadas para cada caso particular. Com relação ao item sete, a utilização indiscriminada de termos sem os devidos esclarecimentos em ralação ao seu significado pode comprometer qualquer comparação entre assembléias distintas analisadas por diferentes autores que utilizem terminologia similar cujos termos, porém, tenham diferentes sentidos (Lyman, 1994). No contexto do Pleistoceno potiguar, o objetivo específico destes procedimentos seria a resolução (ou um passo importante nesta direção) de problemas que não encontram solução em pesquisas puramente sistemáticas ou mesmo de cunho estratigráfico e sedimentológico como, por exemplo, a origem e subseqüentes modificações do conteúdo fossilífero dos

CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora a perda irrecuperável de parte da informação disponível nas assembléias fossilíferas do Pleistoceno Potiguar seja evidente, tal fato não impede a reavaliação e/ou recuperação de feições tafonômicas a partir da análise de peças coletadas em diferentes jazigos e prospecções distintas. Os dados assim obtidos podem representar um avanço importante na elucidação dos processos atuantes na história preservacional dos restos da megafauna pleistocênica, permitindo uma expansão e refinamento da pesquisa paleomastozoológica, especialmente no que diz respeito à aspectos paleoecológicos, complementando as inferências realizadas a partir de estudos morfológicos e sistemáticos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Kidwell, S.M. & Behrensmeyer, A.K. 1988. Overview: Ecological and evolutionary implications of taphonomic processes. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, 63: 1-13.

Lyman, R.L. 1994. Relative abundance of skeletal specimens and taphonomic analysis of vertebrate remains. Palaios, 9: 288-298.

Martínez, N.L. & Santoja, J.T. 1994. Paleontología, conceptos y métodos. Madrid, Ed. Sintesis. 334p.Ranzi, A. 2000. Paleoecologia da Amazônia- Megafauna do Pleistoceno. Florianópolis, Editora da UFSC.

101p.Santos, M.F.C.F. 2001. Geologia e Paleontologia de depósitos fossilíferos pleistocênicos do Rio Grande do

Norte. Natal, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Dissertação de Mestrado, 70p.Shipman, P. 1981. Life history of a fóssil. Massachusetts, Havard University Press. 221p.Simões M.G. & Holz, M. 2000. Tafonomia: processos e ambientes de fossilização. In: CARVALHO, I.S. ed.

Paleontologia. Rio de Janeiro, Editora Interciência. P. 19-37.Tonni, E.P.; Cione, A. L.; Figini, A.J. 1999. Predominance of arid climates indicated by mammals in the

pampas of Argentina during the Late Pleistocene and Holocene. Palaeogeography, Paaleoclimatology, Palaeoecology, 147: 257-281.

Wing, S.L.; Sues, H.D.; Potts, R.; DiMichele, W.A.; Behrensmeyer, A.K. 1992. Evolutionary Paleoecology. In: Behrensmeyer, A.K.; Damuth, J.D.; DiMichele, W.A.; Potts, R.; Sues,H.D.; Wing, S.L. ed. Terrestrial ecosystems through time. Chicago, The University of Chicago Press, 1-13.