Papel da Memória

35
.-v na li se d o di sc urso 2. Hist or ia 3. L in gu ag em .iistori a -1- . M em or ia ( Fi lo s of i a) 5 . S em io ti ca Sociolingutstica I. Ac hard. Pier re . II. Davallon. " z I II . D ur an d, J ea n- Lo ui s. I V. P ec heu x, M ic he l, -' ~-1 9S~. V. O rla nd i, E ni Pu cc ine lli, 1 942 -. ' .: un ,, '. J os e H or ta . V II . T it ul o. DEDALUS - Acervo - FFCLRP 11111111111111111111111111111111111111111111111111111111 111111111 20800022026 Da do s I nt er na ci on ai s de Cat alog aca o n a P uh li ca ca o ( CI P) ( Ca ma ra Br asil e ir a d o Li vr o, SP , Br as il ) ~~:cd da memoria iPierre Achard ... [et al.] ; . r. id uc ao c in tro du ca o Jo se Ho rta N un es. - C ampinas, SP Pontes, 1999. O mr os au t or es : J ea n D av al lo n, Je an - Lo ui s __:~"j. "!ie he l P ec he ux . En i P uc cin elli Or la nd i . CDD-401.4 Indices para ca ta lcgo sistemat ico: :"' in gu agc m e h isto ria -1 -0 1. 4

Transcript of Papel da Memória

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 1/35

.-vnalise do discurso 2. Histor ia 3. Linguagem

.iistoria -1-.Memoria (Filosofia) 5. Semiotica

Sociolingutstica I.Achard. Pierre. II. Davallon.

"z III. Durand, Jean-Louis. IV. Pecheux, Michel,

-'~-19S~. V. Orlandi, Eni Puccinelli, 1942-.

' .:un,, '. Jose Horta. VII. Titulo.

DEDALUS - Acervo - FFCLRP

1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

20800022026

Dados Internacionais de Catalogacao na Puhlicacao (CIP)

(Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

~~:cd da memoria iPierre Achard ... [et al.] ;

. r. iducao c introducao Jose Horta Nunes. -

Campinas, SP Pontes, 1999.

Omros autores: Jean Davallon, Jean-Louis

__:~"j. "!iehel Pecheux. Eni Puccinelli Orlandi .

CDD-401.4

Indices para catalcgo sistematico:

:"' inguagcm e historia -1-01.4

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 2/35

Copyright © 1999 dos Autores

Direitos de traducao gentilmente cedidos para a

Pontes Editores

Coordenacdo Editorial: Ernesto Guimaraes

Capa. Claudio Roberto Martini

Reuisdo: Equipe de revisores da Pontes Editores

iNDICE

Introducao 7

Memoria e Producao Discursiva do Sentido 11

A Imagem, uma Arte de Memoria 23

Memoria Grega 39

Papel da Memoria .49

PONTES EDITORES

Rua Maria Monteiro 1635

13025.152 Campinas SP Brasil

Fone (019) 252.6011

Fax (019) 253.0769

e-mail: [email protected]

Maio de 1968: Os Silencios da Memoria 59

1999

Impresso no Brasil

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 3/35

INTRODUr;AO

o conjunto de quatro textos que ora apresentamos cons-

titui a sessao tematica «Papel da Memoria» inserida em Histo-

ria e Linguistica, uma publicacao das Atas da Mesa Redonda

«Linguagem e Sociedade», realizada na Escola Normal Superi-

or de Paris em abril de 1983. Esse coloquio reuniu especialistas

de divers as areas, tendo como ponto de encontro a relacao entre

lingua e historia. 0 tema particularmente enfocado aqui, a me-

moria, e visto sob diferentes aspectos: lembranca ou reminis-

cencia, memoria social ou coletiva, memoria institucional, me-

moria mitologica, memoria registrada, memoria do historiador.

Atravessando os artigos, a questao: 0que e produzir memoria?Como a memoria se institui, e regulada, provada, conservada,ou e rompida, deslocada, restabelecida? De que modo os aeon-

tecimentos - historicos, mediaticos, culturais - sao inscritos ou

nao na memoria, como e1essao absorvidos por ela ou produzem

nela uma ruptura ?

Estas quest6es se desenvolvem nos artigos atraves de di-

ferentes perspectivas disciplinares, inc1uindo-se elementos de

historia, serniotica, sociolingufstica, analise de discurso. Alern

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 4/35

disso, a memoria e analisada em sua materialidade complexa,

com enfase para a relacao do texto com a imagern, para a passa-

gem do visfvel ao nomeado. Por urn lado, os textos fundadores

de memoria: mitos, relatos, enunciados, parafrases, Por outro, a

eficacia simbolica da imagem: a reproducao pictorica, 0meio

televisual e ate objetos arqueologicos, Ficam expostas ao leitor

diferentes praticas memoriais presentes na sociedade ocidental,

sejam aquelas da Grecia antiga, sejam as que emergem com as

recentes mudancas tecnologicas.

arquiteturas, etc.), como operadores de memoria social, traba-

lham no sentido de entrecruzar memoria coletiva (lembran<;a,

conservacjin do passado, foco da tradicao, monumento de remi-

niscencia) e historia (quadro dos acontecimentos. conhecimen-

to, documento historico),

Analisando a construcao discursiva do sentido e 0 funci-

onamento dos irnplfcitos, Pierre Achard mostra que a memoria

nao pode ser provada, nao pode ser deduzida de urn corpus,

mas ela so trabalha ao ser reenquadrada por formulacoes no

discurso concreto em que nos encontramos. 0 implfcito de urn

enunciado (Achard analisa 0 enunciado: «Neste memento, 0

crescimento da economia e da ordem de 0,5%») nao contern sua

explicitacao, nao se pode provar que ele tenha existido em al-

gum lugar. 0 que funcionaria entao seriam operadores

linguageiros imersos em uma situacao, que condicionariam 0

exercfcio de uma regularidade enunciativa. Haveria, deste modo,

a colocacao em serie dos contextos e das repeticoes forrnais,

numa oscilacao entre 0 historico e 0 lingiifstico. Atraves das

retomadas e das parafrases, produz-se na memoria urn jogo deforca simbolico que constitui uma questao social.

Do contemporaneo pass amos para 0 antigo. Jean-Louis

Durand faz uma interrogacao envolvendo as praticas memoriais

da Grecia classica. Ele coloca uma questao de enunciacao im-

portante: quem fala e com que direito, ao se produzir memoria?

No caso da Grecia antiga, a producao da memoria so se daria na

presenca do poeta epico - de Homero - por meio de urn texto

produzido fora do domfnio da cidade. No entanto, ha uma con-

tradicao na memoria, com a oposicao dos valores de grupo, dos

textos hornericos, aos valores eticos, politicos, sociais em umadada situacao. Ao examinar a imagem de urn vasa grego, Durand

nota a possibilidade de remissao ao mesmo tempo a urn heroi da

epopeia e a urn simples combatente da cidade, um guerreiro

anonirno. Se pensarmos nos sistemas atuais de memoria, pode-

remos ver a relacao das praticas memoriais greg as com as me-

morias heroicas estabelecidas em nossa sociedade.

Jean Davallon aponta, depois do aparecimento da im-

prensa, 0 desenvolvimento dos meios de registro da imagem e

do som como fatores que deslocam a questao da memoria soci-

al, que nao se encontraria mais nas «cabecas» dos indivfduos,

mas nas mfdias. 0 autor esboca uma reflexao sobre a imagem

contemporanea como operadora de memoria. Pela analise do

registro televisual de urn acontecimento (a posse do presidenteMitterrand na Franca), e questionada a distancia que separa a

«realidade» do «fato de significacao», DavaIIon lanca a hipote-

se de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes,

Em seguida 0 livro, 0 artigo de Pecheux faz uma retoma-.

da das exposicoes anteriores, situando-as no contexto das pes-quisas em analise de discurso. Ele discute como as questoes de

lingiifstica e de discurso aparecem nos estudos sobre memoria,

introduzindo urn debate sobre as disciplinas de interpretacao.

Nesse sentido, ele pergunta: a lingufstica e uma disciplina pura-

mente experimental ou ela tern algo a ver com as disciplinas de

interpretacao? Por sua vez, a analise de discurso cada vez mais

busca se distanciar, afirma Pecheux, das evidencias da proposi-

cao, da frase e da estabilidade parafrastica. Ademais, ela permi-

te, apos os trabalhos de Benveniste e Barthes com a nocao de«significancia», avancar teoricamente e tecnologicamente na

relacao do texto com a imagem.

89

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 5/35

Os textos aqui reunidos guardam as marcas do debate

em meio ao qual foram concebidos, com 0 tom urn pouco colo-

quial e as freqiientes remissoes a outros expositores. Como re-

sultado dessas discussoes, salientamos 0 seguinte comentario

de Pecheux: «A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse

debate e que uma memoria nao poderia ser concebida como

uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais histori-

cos e cujo contetido seria urn sentido homogeneo, acumulado

ao modo de urn reservatorio: e necessariamente urn espaco mo-

vel de divisoes, de disjuncoes, de deslocamentos e de retoma-

das, de conflitos de regularizacao ... Urn espaco de desdobra-

mentos, replicaspolemicas e contra-discursos». Pouco mais de

dez anos depois, este e urn momenta bastante apropriado para

retomar esse acontecimento, atualiza-lo, inseri-lo em nosso con-

texto para que produza sentido e memoria.

MEMORIA E PRODU9AO DISCURSIVA DO

SENTIDO

,,it.

Acrescentamos ainda nessa edicao 0 texto de Eni Orlandi

"Maio de 1968: os silencios da memoria", em que a autora apre-

senta uma reflexao sobre a relacao entre memoria e censura no

contexto da ditadura no Brasil. Neste caso rnostra-se que ha aeon-

tecimentos que nao se inscrevem na memoria, como se nao ti-

vessem ocorrido: os sentidos de Maio de 68, entre eles, os rela-

cionados a palavra "liberdade", sao evitados em urn processo

historico-polftico silenciador, de modo que se estabelece umafalta na memoria.

Jose Horta Nunes

Se, a partir de uma posicao de analise de discurso, que-

remos falar do papel da memoria, e, por conseguinte, do estatu-

to dos implfcitos, logo encontramo-nos em posicao delicada.

Mas se este e urn ponto em direcao ao qual e perigoso se aven-turar - sendo real 0 risco de uma interpretacao psicologista dos

implfcitos - e no entanto necessario se preocupar com ele. Ten-

tarei entao falar sobre isso, considerando que a estruturacao dodiscursivo vai constituir a materialidade de uma certa memoria

social. Bern entendido, nao se trata de avancar 0 termo

"materialidade" como mascara retorica para explicacoes que

seriam da ordem do inefavel ou do inconsciente coletivo, nem

de dar ao termo "memoria social" urn valor tal que nao terfamos

finalmente outro meio de analisa-lo senao coloca-lo.

Procurarei entao mostrar que e possfvel colocar urn cer-to mimero de hipoteses concernentes ao funcionamento formal

no discurso, hipoteses a relacionar com a circulacao dos discur-

sos; esta relacao deve permitir que nos afastemos de interpreta-

coes psicologicas da memoria em termos de "realmente-ja-ou-

10 11

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 6/35

vido", memoria fono-magnetica ou registro mecanico, Para isso,

apoiar-me-ei sobre alguns exemplos.

memorizacao de uma forma maxima completa. Alern disso, esta

mernorizacao repousaria sobre urn consenso. Ora. se olhamos

mais de perto, a explicitacao desses irnplfcitos em geral nao enecessaria a priori, e nao existe em parte aIguma urn texto de

referencia explfcita que forneceria a chave. Essa ausencia nao

faz falta, a parafrase de explicitacao aparece antes como urn

trabalho posterior sobre 0explfcito do que como pre-condicao.

o que e pressuposto, esse consenso sobre 0 implfcito, e sornen-te uma representacao.

,I

t

t

Meu primeiro exemplo concerne ao funcionamento da

palavra "crescimento" no domfnio da Economia Polftica. Urn

enunciado como: "Neste momento, 0 crescimento da economiae da ordem de 0,5 %" faz apelo a urn certo mimero de irnplfci-

tos, dos quais evocarei apenas alguns. 0 primeiro deles e indu-

zido pela pressuposicao de que sepode aplicar uma "taxa" a um

"crescimento da economic", quer dizer, que a economia pode

ser medida (e nao simplesmente "verificada", como se diz da

temperatura em ffsica elementar). 0 segundo implfcito, que e

tambern urn implfcito segundo (quer dizer, que so toma seu sen-

tido em relacao ao primeiro), e a equivalencia, do ponto de vista

da taxa, entre as diferentes medidas possfveis. Particularmente,nesse caso, a diferenca entre PIB e PNB nao sera pertinente.

Em terceiro lugar, pressupoe-se implicitamente que esse cresci-

mento seja calculado dentro do prazo de um ano, prazo consi-

derado como evidente. Enfim, numa ordem urn pouco diferen-

te, 0 local desse crescimento nao e indicado; isto implica que

me situo em urn universo descritivo nacional, e que falo por

conseguinte do crescimento da economia francesa - ou, mais

exatamente, do crescimento da economia que conCerne a nacao,

ao pafs no qual a enunciacao se situa. Eo que da a este implfcitourn estatuto diferente dos precedentes, ja que ele remete mais a

"situacao" que a "memoria". A "memoria" intervem, no entan-

to, para enquadrar implicitamente a situacao no espaco nacio-

nal, pela falta. Esse enquadramento pode ser explicitamente

deslocado (podemos falar de "crescimento da economia mun-

dial") ou utilizado no seu nfvel abstrato atraves da retomada em

urn percurso C'em media, no mundo, 0 crescimento foi ...").

Urn outro exemplo desse fato foi discutido na oficina

sobre os manuais escolares I : ainda que se considere que eles

constituam uma vulgata em relacao a textos mais "elaborados",

o exame dos manuais concretos e sua confrontacao permite co-

locar em evidencia nao somente que eles estao sujeitos a cntica,apresentam variacoes consideraveis de urn a outro, sao

insatisfatorios para 0 que se espera deles, mas ainda que e ao

nfvel dos proprios implfcitos supostos por eles que eles chegam

a constituir a dita vulgata. Em suma, eles constituem a ilustra-

t;ao do fato de que, enquanto um registro discursivo supoe uma

vulgata para funcionar, a tentativa de escIarecimento, de

explicitacao desta vulgata, jamais "contem" 0 que seria neces-

sario para funcionar na retomada, e constitui na melhor das hi-

poteses uma primeira retomada da vulgata.

A representacao usual do funcionamento dos implfcitosconsiste em considerar que estes sao sintagmas cujo conteiido e

memorizado e cuja explicitacao (insercao) constitui uma para-

frase controlada por esta memorizacao - no nosso exemplo,

Do ponto de vista discursivo, 0 implfcito trabalha entao

sobre a base de urn imaginario que 0 representa como memori-

zado, enquanto cada discurso, ao pressupo-Io, vai fazer apelo a

sua (rejconstrucao, sob a restricao "no vazio" de que eles res-

peitem as formas que permitam sua insercao por parafrase. Mas

jamais podemos provar ou supor que esse impIfcito

(re)construfdo tenha existido em algum lugar como discurso

autonomo.

Se levamos em conta os elementos enunciativos que es-

ses implfcitos comportam, podemos ver em que esse problema

12 13

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 7/35

de (rejconstrucao dos implfcitos corresponde tambem aquele

que Robert Lafont, em 0 trabalho e a lingua, designa como

"regulagem do praxema'? . Com efeito, 0 funcionamento do dis-

curso (e e nisso que a nocao de discurso se distingue da de fala

no sentido do CLG), supoe que os operadores linguageiros s6

funcionam com relacao a imersao" em uma situacao, quer dizer,levando-se em consideracao as praticas de que eles sao porta-

dores. De outro modo, 0passado, mesmo que realmente memo-

rizado, s6 pode trabalhar mediando as reformulacoes que per-

mitem reenquadra-lo no discurso concreto face ao qual nos en-

contramos.

Para ilustrar de maneira menos elementar a dialetica en-

tre repeticao e regularizacao, utilizarei, de modo metaf6rico,

urn imaginario topol6gico. Creio que esta analogia e relativa-

mente bern fundada. Tomemos uma serie numerica, que seja,

para utilizar urn exemplo simples, a serie 0, 112,2/3, 3/4, (... ).

Dizer que esta serie tende a 1 pode ser formulado dizendo quetoda vizinhanca de 1 contern toda a serie exceto urn numero

finito de termos. Assim, se admitimos que 0 termo geral da serie

e da forma s = (n - l)1n, vemos que a vizinhanca de 1 definida

como 0 conjunto dos mimeros compreendidos entre 999 999

999/1 000000000 e 1 000000001/1 000000000 compreende

todos os term os da serie exceto urn mimero finito de termos (os

1 000000000 primeiros). Bern entendido, s6 posso reconhecer

que esta serie tende a 1 porque substitui a enumeracao dos pri-

meiros termos pela regra que permite formular 0 termo gera!.

Pelas necessidades da analise, vamos supor urn funcio-

namento linguageiro que comporta apenas urn registro

discursivo, e colocar af 0 problema do "sentido de uma pala-vra". Admitiremos (como hip6tese lexicol6gica) que 0 que ca-

racteriza a palavra e sua unidade, sua identidade a si mesma,

que permite reconhece-la em seus diferentes contextos. De ou-

tro modo, colocarei aqui a palavra como uma unidade simb6li-

ca cujo reconhecimento a identificacao permite definir em ter-

mos de repeticao. Cada nova co-ocorrencia dessa unidade for-

mal fornece entao novos contextos, que vern contribuir a cons-

trucao do sentido de que essa unidade e 0 suporte. Mas para

poder atribuir urn sentido a essa unidade, e preciso admitir quesuas repeticoes - essas repeticoes - estao tomadas por uma regu-

laridade' .E uma regularidade desta ordem que supomos com 0

termo "crescimento" no registro econ6mico. Essa regularidade,

no entanto, nao se deduz do corpus, ela e de natureza hipotetica,

ela constitui uma hip6tese do analista. No caso do crescimento,

a hip6tese de analise que utilizei consistiu em supor que "cres-

cimento" e urn termo operador que comanda urn certo ruimero,

fixo, de posicoes. 0 aparecimento em diversos textos das dife-

rentes posicoes me permite fazer urn inventario delas e estabe-lecer suas regularidades, e me permite em seguida designar, la

onde elas nao sao explicitamente instanciadas, os tipos de im-

plfcito por que elas clamam.

Sem esta formulacao, nada garante que, com relacao a

uma vizinhanca suficientemente pequena, 0 mimero das exce-

coes continue finito. E como existe certamente uma infinidade

de series que comecam pelos mesmos termos, nenhuma obser-

vacao ernpfrica do comeco de uma serie nos permite deduzir a

regra. Em term os linguisticos, isso corresponde a constatar que

o corpus nunca e suficiente para fundar a gramatica, e que a

regularizacao repousa sobre urn jogo de forca. Acrescentamosaqui que 0jogo de forca pode designar 0 sentido como limite".

Urn procedimento desta ordem parece necessario se que-

remos abordar a sernantica de outro modo que nao como uma

semantica dos enunciados, que seria baseada em uma lista uni-

versal de traces semanticos pre-existentes e em sua combinat6ria.

A hip6tese de uma construcao discursiva do sentido e certa-

mente discutfvel, mas parece frutffera, pela abertura as praticas

que podemos estudar ao nfvel da dialetica entre repeticao e re-

gularizacao. Com efeito, 0 fechamento exercido por todo jogo

de forca de regularizacao se exerce na retomada dos discursos e

constitui uma questao socia!. Se situamos a mem6ria do lado,

14 15

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 8/35

nao da repeticao, mas da regularizacao, entao ela se situaria em

uma oscilacao entre 0historico e 0 Iingufstico, na sua suspensao

em vista de umjogo de forca de fechamento que 0 ator social ou

o analista vem exercer sobre discursos em circulacao. Este even-

tual jogo de forca e suportado pelas relacoes de formas, mas

estas sao apenas 0 suporte dele, nunca estao isoladas. Elas estaoeventualmente envolvidas em relacoes de imagens e inseridas

em praticas,

mada se localiza nesse nfvel ,

A regularizacao se ap6ia necessariamente sobre 0 reco-

nhecimento do que e repetido. Esse reconhecimento e da ordem

do formal, e constitui urn outro jogo de forca, este fundador.

Nao ha, com efeito, nenhum meio ernpfrico de se assegurar de

que esse perfil grafico ou fonico corresponde efetivamente a

repeticao do mesmo significante. E preciso admitir esse jogo deforca simbolico que se exerce no reconhecimento do mesmo e

de sua repeticao. Por outro lado, uma vez reconhecida essa re-

peticao, e preciso supor que existem procedimentos para esta-

belecer deslocamento, comparacao, relacoes contextuais. E nessa

colocacao em serie dos contextos, nao na producao das superff-

cies ou da frase tal como ela se da, que vemos 0 exercfcio da

regra. De outro modo, e engendrando, a partir do atestado

discursivo, parafrases, a considerar como derivacoes de posst-

veis em relacao ao dado, que a regularizacao estrutura a ocor-rencia e seus segmentos, situando-os dentro de series. 0 que

desempenha nessa hipotese 0papel de memoria discursiva sao

as valorizacoes diferentes, em termos por exemplo de familiari-

dade ou de Iigacao a situacoes, atribufdas as parafrases, que

entretern entao, gracas ao processo controlado de derivacao, re-

lacoes reguladas com 0 atestado. Na hipotese discursiva, pois,

ao contrario do modelo chomskiano, 0 atestado constitui um

ponto de partida, nao 0 testemunho da possibilidade de uma

frase, e a memoria nao restitui frases escutadas no passado masjulgamentos de verossimilhanca sobre 0que e reconstitufdo pelas

operacoes de parafrase. Estas consideracoes deslocam 0 estatu-

to do que e provavel historicamente, porque a operacao de reto-

o que distingue entao 0 analista de discurso do sujeito

historico nao e uma diferenca radical mas um deslocamento. A

analise de discurso e uma posicao enunciativa que e tambern

aquela de um sujeito historico (seu discurso, uma vez produzi-

do, e objeto de retomada), mas de urn sujeito hist6rico que se

esforca por estabelecer um deslocamento suplementar em rela-

c;ao ao modelo, a hipotese de sujeito historico de que fala. 0

que proponho neste texto e urn modelo de trabalho do analista,que tenta dar conta do fato de que a memoria suposta pelo dis-

curso e sempre reconstrufda na enunciacao. A enunciacao, en-

tao, deve ser tomada, nao como advinda do locutor, mas como

operacoes que regulam 0 encargo, quer dizer a retomada e a

circulacao do discurso. Entre outras consequencias desta con-

cepcao, levaremos em conta 0 fato de que urn texto dado traba-

lha atraves de sua circulacao social, 0 que supoe que sua

estruturacao e uma questao social, e que ela se diferencia se-

guindo uma diferenciacao das memorias e uma diferenciacao

das producces de sentido a partir das restricoes de uma forma

unica.

Pierre Achard

16 17

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 9/35

BIBLIOGRAFIA

LAFONT, R. (1978), Le travail et la langue, Flamarion, Paris

SAUSSURE, F . (1964), COUTS de linguistique generate, publ.

por charles Bailly e Albert Secheye, com a colab. de A.

Riedlinger, Payot, Paris (Ira. ed. 1915)

19

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 10/35

NOTAS

I. (NDT) As oficinas, exposicoes e textos do col6quio citados neste livro

encontram-se publicados em Histoire et Linguistique, Pierre Achard,

Max-Peter Gruenais , Dolores Jaulin (Orgs). Edi tions de la Maison des

Sciences de I 'Homme, Paris , 1984.

2. Lafont, 1978.

3. Saussure, 1964.

4. A nocao de imersao ("plongement") - que, nas matematicas, e urn con-

ceito - sup6e ao mesmo tempo a possibilidade de urn ponto de vista

intrinseco, e propriedades induzidas pela consideracao da situacao no

espa~o da irnersao.

5. Esse efeito, alias, e reforcado sobretudo pela existencia de varios regis-

t ros art iculados nos discursos reais. Por exemplo, em economia da edu-cacao, 0 discurso econ6mico desenvolve 0 papel de urn registro maior

no qual sao retomados e articulados os registros da pedagogia, registros

de consideracoes tecnol6gicas, politicas, etc., tornados como englobantes

ou englobados, conforme 0 caso, 0 que faz com que haja sempre, na

retomada metaf6r ica das palavras, urn deslocamento de uso que s6 pode

repousar sobre a regularizacao suposta do funcionamento da palavra no

registro fonte.

6. Bern entendido, os matematicos nao se interessar iam tanto pelas series

se elas convergissem sistematicamente a ruimeros, como 1,ja definidos

em outro lugar. E na medida em que as series permitem definir novos

mimeros que elas sao interessantes. Do mesmo modo, a perspectiva que

proponho por analogia tern essencialmente por interesse propor pers-

pectivas para uma sernantica que nao se limite a uma combinat6ria de

semas pre-existentes,

21

illl;

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 11/35

A IMAGEM, UMA ARTE DE MEMORIA?

o aparecimento da imprensa parecia ja ter tornado fora

de uso as "artes da memoria" antigas e medievais! . Com razao

mais pertinente, 0 desenvolvimento dos m eios de registro da

imagem e do som (essas extens5es de nossos sentidos, se acre-

ditamos em Me Luhan), que permitem estocar depois restituir 0

saber quase tao bern quanta os acontecimentos, parece hoje nos

afastar definitivamente da necessidade de situar uma parte damem6ria social na "cabeca" dos (ou de certos) sujeitos sociais:

a mem6ria social estaria inteiramente e naturalmente presente

nos arquivos das mfdias.

Uma tal concepcao tecnicista da mem6ria social, que

em muitos pontos assimila esta a "memoria" do computador,

supoe resolvidas duas quest5es maiores. A primeira e bastanteingenua: registrar, descrever, representar a realidade (saber ou

acontecimento) e suficiente para produzir mem6ria? Ou ainda:

a partir de quando, e do que, urn acontecimento constitui me-

m6ria? A segunda e sociol6gica: 0 que ocorre, nessa reducao

tecnicista, com os processos de manutencao da coesao social;

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 12/35

com a instituicao/re-instituicao societal de que 0 funcionamen-

to da memoria e 0 lugar, e mais particularmente ainda, com a

reproducao das relacoes sociais e polfticas fundada sobre a

dominancia desse funcionamento da memoria social?

Pensemos, a proposito, numa cerimonia politica comoaquela da posse do Presidente da Republica: com os multiples

jogos que surgem entre a referencia, de urn lado, a uma memo-

ria social ja existente (0 Panteao, os herois republicanos) e, de

outro lado, a producao de uma nova memoria, Pois 0 registro do

"acontecimento' deve constituir memoria, quer dizer: abrir a

dimensao, entre 0 passado originario e 0 futuro, a construir, de

uma comernoracao .

Com esta alusao rapida a urn exemplo politico contern-poraneo, vemos que entre 0 simples registro da realidade e a

memoria social; que entre a reproducao de urn acontecimento e

a funcao social de instituicao/re-instituicao do tecido social atri-

buida a memoria, ha toda a distancia que separa a "realidade"

do "fate de significacao", Faria essa distancia pensar, em suma,

que a memoria, como Jato social, comportaria uma dimensao

semiotica e sirnbolica que Ihe seria intnnseca ?

Assirn, e em vista dessa dupla dimensao da memoria so-

cial (como fato societal e como fato de significacao) que gosta-

ria de esbocar aqui uma reflexao sobre a imagem contempora-

nea como operadora dememoria, mas convern antes indicar com

algumas palavras 0 que e preciso entender par memoria social

quando nos interessamos pelos objetos culturais ' .

24

Memoria social e producoes cuIturais

Uma primeira constatacao se impoe imediatamente: para

que haja memoria, e preciso que 0 acontecimento ou 0 saberregistrado saia da indiferenca, que ele deixe 0dommio da insig-

nificancia. E preciso que ele conserve uma forca a fim de poder

posteriormente fazer impressao, Porque e essa possibilidade de

fazer impressao que 0 termo "lembranca" evoca na linguagem

corrente, Urn sociologo urn pouco esquecido hoje, e verdade,

mas que uma sociologia do conhecimento nao poderia ignorar -

a saber, M. Halbwachs - caracterizaria alias a memoria como "0

que ainda e vivo na consciencia do grupo para 0 individuo e

para a comunidade+.

Uma segunda constatacao complementa a prime ira: lem-

brar urn acontecimento ou urn saber nao e forcosamente mobili-

zar e fazer jogar uma memoria social. Ha necessidade de que 0

acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e sobretu-

do, e preciso que ele seja reconstruido a partir de dados e de

nocoes comuns aos diferentes membros da comunidade social.

Esse fundo comum, essa dimensao intersubjetiva e sobretudo

grupal entre eu e os outros especifica, diz-nos Halbwachs, a

memoria coletiva". Mas a contrapartida seria que a memoria

coletiva "so retem do passado 0 que ainda e vivo ou capaz de

viver na consciencia do grupo que 0mantem. Por definicao, ela

nao ultrapassa 0 limite do grupo'" .

Estas duas constatacoes convidam a salientar 0 carater

paradoxal da memoria coletiva: sua capacidade de conservar 0

passado e sua fragilidade devida ao fato de que 0 que e vivo na

consciencia do grupo desaparecera com os membros deste ulti-

mo. Alias, em paginas que mereceriam uma outra atencao e uma

outra apresentacao, que estas rapidas e alusivas evocacoes nao

permitem, Halbwachs pode assim opor a memoria coletiva a

25

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 13/35

historia, 0 "foco da tradicao" ao "quadro dos acontecimentos"? ,

a "lernbranca" (corrente de pensamento continua no seio do gru-

po social) ao "conhecimento" (descontinuo e exterior ao pr6-

prio grupo). Em compensacao, a hist6ria resiste ao tempo; 0

que nao pode a mem6ria.

monumento de recordacao,

Se a distincao efetuada por Halbwachs entre "memoria

coletiva" e "historia" permite desse modo compreender melhor

por que registrar ou ainda lembrar urn acontecimento nao e obri-

gatoriamente ipso facto urn fato de mem6ria social, ela nos in-

troduz acima de tudo em uma problematic a dos objetos cultu-

rais considerados como operadores de mem6ria social. Eu me

explico.

Por conseguinte, apoiando-nos sobre essa oposicao en-

tre "memoria coletiva" e "historia" para considerar os objetos

culturais, poderfamos adiantar, a tftulo de hip6tese. que ~stes

ultirnos van no sentido nao de urn antagonisrno, mas antes deuma conjuncao, de urn entrecruzamento, de uma smtese entre

mem6ria coletiva e hist6ria.

Evoquemos novamente 0 exemplo da ernissaotelevisionada que "representava" a posse do Presidente da Re-

publica. Compreenderemos muito facilmente a questao politica

e a importancia sociol6gica que estao ligadas a possibilidade de

"casar" hist6ria e mem6ria coletiva: de entrecruzar, de aliar a

resistencia ao tempo que caracteriza uma e 0poder de impres-

sao - vivacidade - da outra. Assim, 0acontecimento, como acon-

tecimento "memorizado" podera entrar na hist6ria (a mem6ria

do grupo podera perdurar e se estender alem dos limites ffsicos

do grupo social que viveu 0 acontecimento); mas enquanto "his-torico". ele podera se tomar, em cornpensacao, elemento vivo

de uma mem6ria coletiva. Esta ultima adquirira entao uma ou-

tra dimensao: aquela, se podemos dizer, de uma memoria

societal. Como esse entrecruzamento se opera? Qual e 0 seu

instrumento? 0 acontecimento - no caso, a cerimonia do Panteao

-, por ser representado (0 que e mais e outra coisa do que ser

simplesmente registrado ou difundido), tomara 0 valor de uma

especie de ponto originario da comunidade social: 0 aconteci-

mento se dara em urn momenta singular do tempo; mas a essen-cia do ato se encontrara para sempre na pr6pria estrutura do

objeto que 0 representara (a ernissao televisionada, por exem-

plo)". Ele se tornara indissociavelmente documento hist6rico e

Trata-se af de uma simples hip6tese de trabalho, mas ela

nao me parece sem interesse no quadro de uma reflexao sobre 0

papel da mem6ria. Ela torna com efeito a adiantar que os obje-

tos culturais abrem a possibilidade de urn controle da mem6ria

social; que esse controle esta de fato estreitamente ligado ao

funcionamento formal e significante desses objetos; e que, porultimo, ele e urn fato social nao desprezfvel. Eis, a meu ver, 0

que merece ser examinado; embora nao seja questao de preten-

der encarar, no estado atual, a verificacao des sa hip6tese, seria

em compensacao uma atitude bastante heurfstica voltar-se so-

bre aquilo que autoriza sua formulacao.

IIE 0 que veremos a prop6sito da imagem.

A imagem, operador de memoria social

Por que a imagem? Porque ela oferece - ao menos em

um campo hist6rico que vai do seculo XVII ate nossos dias _

uma possibilidade consideravel de reservar a forca: a imagem

representa a realidade, certamente; mas ela pode tambern con-

servar a forca das relacoes sociais (e fara entao impressao sobre

o espectador).

L. Marin alias mostrou muito bern como, por exemplo,

no funcionamento do poder absoluto na idade classica, 0 retrato

do rei expbe em uma viva pintura as qualidades reais descritas-

26 27

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 14/35

"contadas" - no relato de suas acoes; de tal maneira que estas se

transformam em substancia real. Do relato desse acontecimento

a imagem do rei, 0 que era 0 menos representavel, 0 menos

mernorizavel (a forca), torna-se 0mais presente na ocasiao da

representacao do personagem hist6rico do rei. Posso somente

aqui remeter as analises de Marin no que concerne ao modocomo esse uso das imagens se ap6ia sobre seu pr6prio funcio-

narnento" .

se poderia esquecer este ponto - com que a irr.agerr: c':"'.rY'e

urn program a de leitura: ela assinala urn cerro Jugal ao ·~5pc2[J-

dor (ou melhar: ela regula uma serie com a passagem de urna a

outra posicao de receptor no curso da recepcac c ,,:::

"rentabilizar" par si mesma a competencia semiotic c . c ':.: C e '

desse espectador!". Este e urn fato bastante conhecido pelospublicitarios,

Adicionemos que poderiamos, em contraponto a essa

analise e de urn modo comparavel, mostrar como a publicidade,

desta vez, utiliza a imagem em complementaridade com 0enun-

ciado lingtifstico para apresentar - tornar presentes - as qualida-

des de urn produto e conduzir assim 0 lei tor a se recordar de

suas qualidades, mas tambern a faze-Io se posicionar em meioao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a

se representar esse lugar. No entanto, desenvolver essas anali-

ses nos levaria longe demais e demandaria muito tempo; note-

mos entao somente que esses dois exemplos indicam, para cer-

tos perfodos e segundo diferentes modalidades, a eficacia da

imagem em poder se inscrever em uma problernatica da mem6-

ria societal.

Se procuramos 0que serve de fundamento a eficacia sim-

b61ica da imagem, duas caractensticas semi6ticas parecem en-

tao bastante consideraveis,

Em primeiro lugar, uma imagem pode ser compreendida

ou recebida segundo dois nfveis diferentes. Cada urn desses dois

nfveis possui regras de funcionamento que Ihes sao, ao menos

parcial mente, pr6prias. Par exemplo, os c6digos perceptivos

mudam menos rapido que os c6digos iconol6gicos: par isso,

ficamos sensiveis a composicoes ou representacoes de quadros

da Renascenca (ou de publicidades do infcio do seculo) de que

ignoramos parcialmente a significacao: a potencia perceptiva

perdura, enquanto as significacoes se perdem. Resta uma orga-

nizacao formal que continua a constituir urn dispositive.

Eis 0 que nos conduzira talvez a encarar a imagem soburn prisma particular: rnenos a nos interessar pelo que a imagem

pode representar (as objetos do mundo), ou ainda pela informa-

<;;aoque ela pode oferecer, nem mesmo pelo modo como ela

efetua urn ou outro desses processos, do que a pres tar atencao a

maneira como certa imagem con creta e uma producao cultural-

quer dizer, a levar em consideracao sua eficacia simb6lica. Com

efeito, aquele que observa uma imagem desenvolve uma ativi-

dade de producao de significacao; esta nao Ihe e transmitida ou

entregue toda pronta. Esse estado de coisas abre, como alias

insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpreta-

<;;ao0que quer dizer que 0conteudo "legfvel", ou antes "dizfvel",

pode variar conforme as leituras); mas 0que faz tambern - e nao

Sabemos, desde 0 artigo em muitos aspectos fundador

de E. Benveniste, aparecido em Semiotica em 1969, que exis-

tern dois modos de significacao: urn semiotico, fundado sobre 0

reconhecimento de unidades de significacao previamente defi-

nidas (eu reconheco 0 sentido das palavras), outro semdntico e

meta-semantico, fundado sobre a cornpreensao do senti do do

texto em sua totalidade (eu compreendo 0 sentido do conjunto

de uma frase, por exemplo) e que inclui os mecanismos da

enunciacao, Benveniste adianta que a imagem funciona antesde tudo sob 0modo sernantico e que ela nao pode conjugar os

dois modos de significacao (somente a lingua poderia operar

essa conjuncao) e ha urn largo acordo entre os semioticistas para

reconhecer que a imagem depende de uma abordagem textu-

2829

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 15/35

al". De minha parte, resumirei as coisas como segue: existe

uma especie de aproximacao entre as oposicoes formais (de for-

ma, de cor e de topologia) e a instancia textual e enunciativa: na

publicidade, por exemplo, certa relacao de cor ou certo contras-

te de forma retem 0 olhar e, ao mesmo tempo, quer nos dizer da

qualidade que distingue urn produto dos outros. Essa aproxima-

r.:aoescamoteia - se posso dize-Io - urn nivel interrnediario que

teria por homologo na linguagem 0nivel das palavras; a lingua-

gem supre alias essa escamoteacao (pode-se sempre descrever

uma irnagem):". Em cornpensacao, essa aproximacao possui a

vantagem de trabalhar sobretudo com os sistemas de oposicao e

simultaneamente com as relacoes entre emissor, receptor, men-

sagem e contexto.E porque a imagem e antes de tudo um dispo-sitivo que pertence a uma estrategia de comunicacdo: dispositi-

vo que tem a capacidade, por exernplo, de regular 0 tempo e as

modalidades derecepcao da imagem em seu conjunto ou a emer-

gencia da significacao!'. E e um dispositivo, lembremo-nos, quepor natureza e duravel no tempo.

Em segundo lugar, a imagem e um operador de

simbolizacao. Conviria observar, a esse proposito, que a difi-

culdade, conhecida por todos os semioticistas da imagem, em

segmentar esta se deve menos a sua ma-formacao semiotica do

que a aproxirnacao que eu assinalava logo acima entre oposi-

coes formais e instancia textual e enunciativa, entre a

materialidade e 0 sentido. Entrecruzando esses dois niveis, a

imagem teria assim capacidade para integrar os elementos que a

compoem em uma totalidade. E porque compreenderiamos 0

sentido global antes de reconhecer a significacao dos elemen-

tos; e atingirfamos primeiro 0 efeito dessa integracao; estarfa-

mos sob 0 charme desse efeito formal, estetico; toda imagem

pareceria assim se apresentar como iinica origem dela mesma

assim como de sua significacao; e enfim, ela introduziria uma

diferenca de natureza, um saIto qualitativo entre os componen-

tes (os que a analise pode repertoriar) e ela mesma considerada

em sua totalidade.

30

Esse apagamento da passagem dos componentes a tota-lidade tern por consequencia essencial interditar que se reen-

centre a maneira como 0 efeito estetico e significante e produzi-do. A genese se apaga; a (rejconstrucao de uma origem mftica eaberta, com mais urn efeito de forca viva. Entao, comeca a deri-

va indefinida (e nao infinita) que caracteriza toda interpretacao

de imagem; nao obstante, se nos volvemos para essa deriva,

percebemos que essa busca, essa "reproducao" da significacao

do dispositivo, se faz segundo 0proprio programa trazido pelo

dispositivo. Do mesmo modo que a recitacao do mito ou os ges-

tos litiirgicos seguem a estrutura do mito ou do ritual, cada lei-

tura e em si mesma uma pequena recitacao, Momento central,

ato que fornece a imagem sua razao de ser, que esta fora do

espaco da imagem, assim como, alias, 0acontecimento memo-

rizado.

Conclusao

Eis entao 0que leva a pensar a imagem como um opera-

dor de memoria social no seio de nossa cultura. Assim, volte-

mos a nossa hipotese, Com efeito, se a imagem define posicoes

de leitor abstrato que 0 espectador concreto e convidado a vir

ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tern sob os olhos,

isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade -

urn acordo - de olhares: tudo se passa entao como se a imagem

colocasse no horizonte de sua percepcao a presenca de outros

espectadores possfveis tendo 0mesmo ponto de vista. Do mes-

mo modo como - explicava Halbwachs - a reconstrucao de urn

acontecimento passado necessita, para se tornar lembranca, da

existencia de pontos de vista compartilhados pelos membros da

comunidade e de nocoes que lhes sao comuns':"; assim a ima-

gem, por poder operar 0 acordo dos olhares, apresentaria a ca-

pacidade de conferir ao quadro da historia a forca da lembran-ca. Ela seria nesse momenta 0 registro da relacao intersubjetiva

e social.

31

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 16/35

Restaria, entao e enfim, considerar como a imagem in-

tervern concretamente no estabelecimento de uma forma de

memoria societal propria a nossa epoca e a nossa sociedade; e

sobretudo, qual e a relacao que se instaura entre 0 que poderfa-

mos chamar "a memoria interna" (aquela situada nos membros

do grupo) e "a memoria externa" (aquela dos objetos culturais),

mas isto seria perguntar sobre as caracterfsticas das estruturas

mentais de nossa cultura e se engajar na psicologia historica" .

Jean Davallon

32

BIBLIOGRAFIA

ALBERA, F. (1980), "Introduction a S. M. Eisenstein",Cinematisme: peinture et cinema. Bruxelas, Ed. Complexes.

BENVENISTE, E. (1974), Problemes de linguistique generate,

t. 2, Paris, Gallimard.

DAVALLON, J. (1981), "Les fetes revolutionnaires: une

politique du signe", Traverses, 21-22, pp. 187-195.

__ (1983a), "Reflexions sur I'efficacite symbolique des

productions culturelles", Langages et Societe, nO24, pp. 37-52.

__ (1983b). "Voyages au pays d' Air France: l'espace de la

"lecture" dans I'irnage", Actes semiotiques, Documents, V. 49.

HALBWACHS, M. (1950), La memoire collective, Paris, Presses

Universitaires de France.

MARIN, L. (1950), Le portrait du roi, Paris, Ed. de Minuit.

METZ, Ch. (1975), "Le percu et Ie nomme", in: Vers une

33

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 17/35

esthetique sans entraves: melanges offerts a Mikel Dufrenne,

Paris, Union Generate d'Edition (10/18, Call. Esthetique, 931).

MEYERSON, 1 . (1948), Les fonctions psychologiques et les

oeuvres, Paris, Vrin.

NOTASSCHEFER, J.L. (1969), Scenographic d'un tableau, Paris, Ed.

du Seuil.

YATES, F . A. (1975), L 'a rt d e fa m em oire, Trad. do ingles [The

art of memory, 1966] par D. Arasse, Paris, Gallimard.

1.. Como assinala Yates, 1966. Lembremos que 0autor define assim a arte

da mem6ria: "Esta arte visa permitir a memorizacao gracas a uma

tecnica de 'lugares' e 'de imagens ' que impressionam a memoria".

2. Penso particularmente na "cerimonia da memoria" que se desenrolou

durante as jornadas de posse de F. Mitterand, em 21 de marco de 1981.

o que esta entao emjogo, para alem da referencia decJarada ao cerimo-

nial repub1icano herdado em grande parte das festas revolucionarias

(ou ao menos de sua ideologia), e 0 estatuto que se atribui aos meios de

difusao e de representacao do acontecimento - no caso: it ernissao

televisionada desta cerim6nia.

3. Entendo por "objetos culturais" 0 conjunto dos objetos concretos (l i-

vros, escritos , imagens, f ilmes, arquiteturas, etc.) que resultam de uma

producao formal e que sao dest inados a produzir urn efeito simb61ico.

Sobre esse ponto ver Davallon, 1983.

4. Halbwachs, 1950, p. 70.

5. Ibid., p. 13: "Niio basta reconstruir pe(;a por peca a imagem de um

acontecimento passado para se obter uma lembranca. E preciso que

essa reconstrucdo se opere a partir de dados e de nocoes comuns que

se encontram tanto em nosso espirito quanta no dos outros, porque

eles passam sem cessar destes aquele e reciprocamente, 0 que so Ifposs ivel se eles jazem e continuam afazer parte de uma mesma soci e-

dade. Somente assim podemos compreender que uma lembranca possa

ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruida",

3435

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 18/35

- Ibid., pp. 74-79. Na sequencia da exposicao. empregarei 0 termo "es-

p ec tad or u m m ovim en to q ue u ltra pa ssa a sim ples co mp ree nsiio do es-p etd cu lo p ro po sto e s e [a: p ro du to ra d e s en ti do . C ompos ic ii o, mo nt a-

g em , r it mo conduiem da vistio ii compreensao", F. Albera, 1980, p. 9.

IS. Com relacao it mem6ria coletiva, a mem6ria individual estaria na ver-

tente oposta aquela em que se situa 0 objeto cultural. Uma abordagem

que se refira it psicologia hist6rica seria entao possivel (Meyerson, 1948).

-, rr.emoria coletiva: "e u ma c orren te d e p e nsa me nto c on tin uo, d e u ma

_ ' : .- : ,: : lidadeque ndo tem nada de ar ti fi c ia l , pois ela so retem d o pas -

',' q ue d el e ainda e \'i\'O all cap a : de viver na consciencia do

,:U qu e a mantem" Ibid., p. 70.

13. Para a analise detalhada, ver: Davallon, 1983.

14. Halbwachs insiste varias vezes sobre a partilha de urn ponto de vista e

sobre a cornunhao dos dados de referencia como fundamentos da me-

m6ria coletiva, por exemplo: o p c it , pp. 3, 48-53, 61, etc.,

S. Assim acontece com a representacao do juramento no momento da

Revolucao Francesa ou ainda com a representacao do heroi revolucio-

nario: 1. Davallon, 1981.

9 . "D e um l ad o, e ntiio , um [ co ne q ue e a p re sen ca rea l e 'viv a' d o m on ar-

ca; de outro, um r el at o q u e e seu uimulo subsistindo para sempre.A

representaciio como poder; 0 p od er c om o representacdo sao um e ou-

tro um sacramento na imagem e um 'monumento' na linguagem. onde,

cambiando seus efeitos, 0 olhar d es lumb ra do e a leitura admirativa

consomem 0 corpo radioso do monarca, um recitando su a historia em

seu r et ra to , 0 o utro c on tem pla nd o u ma de su as p erje il;(}e s n o re lato

qu e eterniza a manifestaciio", L. Marin, 1981, p.

10. Esta particularidade da imagem foi notavelmente bern estudada pela

serniologia do cinema. Como indica F.Albera, e ela que S. M. Eisenstein

: i : : : s : ; = - . . 2 ~c~.:'terrae ._~f f :er!Gt i5mo: ; . ; . 0 qu e caracteriza e je fiv am en te es -

~J

C ; " "= . : tie 5 E n _ i 1 , ~ Toulouse-Lautrec. V an G og h.~ _ _ . . _ ~ <_ ; : _ . . . : . ( : : . . _ _ ~ :_ ' : : . : = - ~ ~ ~; esiudar para com preender esta 120-

~ i:« 5:", cons rr ur, :ao imp ii e ao espect ado r um

-c'" :,.:',;~.;5,';~G s imp les COl ll p reensao do espetticulo pro-

c , -, , -' ,; ~pr cdLITo ra de s ent ido . Composicdo. monta gem ; r itmo

7:,::,:elll da v is ti o ii compreensao", F. Albera, 1980, p. 9.

II. Esse artigo de E. Benveniste foi retomado em P ro blema s d e llngiiistica

geral, t. 2., 1974. Essa dominancia do modo sernantico e meta-semen-

tico foi reconhecida bern cedo pela semiologia (J .L. Schefer, 1969; R.

Barthes, L. Mart in, etc.), depois apoiada e corroborada pelas analises

da serniotica visual que se referem it teor ia de A. J. Greimas.

1

12. Este ponto exigiria uma analise precisa e circunstanciada. Encontrare-

mos uma primeira e indispensavcl abordagem em Metz, 1975. I36

37

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 19/35

MEMORIA GREGA

Escolhi propor-Ihes, para introduzir 0 debate desta ma-

nha, nao uma descricao de nossas proprias praticas memoriais,

uma analise de nossa propria gestae da memoria, mas uma in-

terrogacao envolvendo aquelas da Grecia antiga, da Grecia clas-

sica. Observar em que posicao particular os gregos se coloca-

yam com relacao a sua propria memoria, a gestae que eles podi-

am fazer dela. Serei rapido, portanto esquernatico, e aquelesque conhecem esses problemas queiram desculpar a brutalida-

de deste esboco grosseiro. A discussao permitira, espero, voltar

a todos os pontos que se desejar que eu retome.

Os gregos apresentam urn problema com sua memoria,

urn problema muito simples. Nao e possfvel para 0 nao-grego,

digamos, para 0 barbaro (0que nao e urn termo necessariamen-te negativo), reconhecer-se grego sem referencia a toda uma

serie de relatos com todo seu peso, seu valor normativo, sejameles retomados coletivamente ou nao, e sejam eles fixados ou

nao em formas "literarias" precisas: 0Mito. Mas 0mito e tam-

bern algo de muito organizado, em uma forma codificada, diga-

39

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 20/35

mos, a epopeia, E imediatamente coloca-se 0 problema funda-

mental. Falo certamente aqui situando-me como observador em

uma Atenas do seculo V sempre tao mftica e sempre tao neces-

saria.

em resumo, valores politicos e sociais, no qual nos situamos, as

coisas se apresentam de outro modo e a contradicao aparece.

Se, como esse menino grego, sou educado atraves da

salmodia de Homero, ou se, como grande diva percorrendo as

cidades gregas, interpreto 0poeta durante manifestacoes coleti-

vas, festas que organizam e estruturam 0 grupo, nao produzo

uma epopeia, Quero dizer com isso que aquele que recita 0 tex-

to epico pode apenas retomar indefinidamente uma mem6ria

organizada em urn texto que se tornou fechado e em relacao ao

qual ele rnantem uma relacao que podemos chamar demonfaca,

que ultrapassa entao as estruturas da memoria humana, uma re-

lacao que 0 faz entrar em contato, de maneira quase possessoria,

com 0 pr6prio poeta ou alguma coisa que resta dele e se trans-

mite por sua palavra. Por que? Porque 0 poeta, ele mesmo, 0

aedo, nao possui fala pr6pria. No momento em que recita as

proezas dos her6is, 0 aedo s6 0 faz porque a Musa fala atraves

dele, por ele. Quer dizer que nao ha possibilidade de producao

da mem6ria na cidade fora da presenca do poeta epico, diga-

mos, para ser breve, de Homero. Os gregos apresentam, entao,

como principal meio de reconhecimento de si mesmos, urn dos

textos que se produziram e se fixaram fora de seu domfnio e que

eles sao forcados a repetir sem meios de modi fica-los em fun-

cao de novas exigencias sociais. Textos que Ihes fornecem as

categorias de percepcao do mundo no qual se encontram. 0

garoto educado em Atenas aprende rmisica, recita a epopeia, e

sabe assim definir 0mar em oposicao a terra, a tempestade em

oposicao ao ceu sereno, etc. Ele recebe toda uma serie de meios

de categorizar 0 real, que 0 situam como grego. Em contraste

com os vizinhos persas, que possuem calcas, modos de viver

diferentes, que percebem as coisas diferentemente, etc. 0 pro-blema afnao e maior, isso funciona de modo bastante imediato.

Mas a partir do momenta em que olhamos nao mais as categori-

as de percepcao da realidade, mas 0 sistema de valores eticos,

Se pretendemos, por exemplo, fazer a guerra, a guerra

da cidade, como 0 fazia Aquiles, arriscamos com os nossos nas

piores dificuldades. Observemos 0modo como as coisas se pas-

sam nesse texto celebre (analisado por P.Vidal Naquet)' , a cena

dos escudos em os Sete contra Tebas': 0 guerreiro do mito e

atingido pelo menos, esse furor que possui sua alma eo rende.

Ele e invadido pela ira de matar, orientado para realizar os gran-

des feitos que sao objeto do canto epico, Isto 0 coloca em con-

tradicao total com as regras do grupo social no quadro da cida-

de, regras que supoem uma guerra racional e democratica. A

igualdade dos combatentes e af fundamental: nao se trata de

combater para se fazer ilustre no combate mas de defender a

cidade com os companheiros de linha, cada urn solidario urn

com 0 outro, na falange. Ha verdadeiramente uma contradicao

inevitavel em uma mem6ria que estabelece ao mesmo tempo 0

sistema categorial que nos define como partidarios de nosso

grupo, e valores sociais que nos colocam em oposicao a ele.

Isto teve como efeito imediato na producao cultural, para reto-

mar a f6rmula proposta logo acima, a tragedia. A tragedia na

qual vemos estabelecidas ao mesmo tempo a necessidade do

mito e as dificuldades que ele provoca. Nao podemos nos livrar

do Edipo nem se acomodar com ele. De onde a necessidade de

interrogar 0 mito em funcao do sistema de valores da cidade

contemporanea, ja que nao podemos leva-lo tal qual em consi-

deracao.

Por outro lado, existe a necessidade de se produzir uma

memoria, urn memoravel valido para 0 tempo da cidade, e, de

certa forma, nos trabalhos de memoria, estamos sempre em ri-

validade com Homero. Quando, por exemplo, as primeiras pra-ticas historiadoras aparecem (F. Hartog, ausente da Franca, es-

taria melhor posicionado do que eu para falar disso), vemos

bern que a necessidade da pesquisa vern da necessidade de fa-

40 41

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 21/35

Para nao multiplicar os casos de figura, gostaria agorade observar 0 modo como a imagem pode se inserir nesse dis-

positivo de producao (seguindo desta vez F. Lissarrague que

nao pode estar aqui hoje. Espero nao trair ninguem, enfim nao

muito, fazendo falar tantos amigos ausentes i).A imagem possui

uma vantagem fundamental: ela representa e ao mesmo tempo

produz sentido. De outro modo, quando a imagem e representa-cao, ela pode representar urn guerreiro da cidade, 0 hoplita car-

regando 0 corpo de seu companheiro morto. Atraves de alguns

elementos do dispositivo iconico, e possfvel mostrar que 0 guer-reiro morto e urn heroi parecido com 0 da epopeia, com 0 guer-

reiro epico: a forma do escudo, 0 tipo de penteado, por exem-

plo. A imagem pode conter nomes, Aquiles, Ajax, com uma

referencia evidente aos dados epicos, Ela e representacao ou

motor de discursos, ocasiao assim de reatualizar a memoria para

retomar 0 que estava dito antes, a memoria dos valores do epos.

Em uma cena desse genero, podemos introduzir Atena. A deu-

sa, sabemos, mantem uma relacao especffica com os herois do

ciclo troiano: ela pode entao fazer parte dessas representacoes.Se suprimimos as indicacoes de nomes, Atena continua reco-

nhecivel gracas aos elementos que a definem (armas, coruja,

etc.) mas 0 guerreiro carregador ou carregado, torna-se simples-

mente urn guerreiro em presenca de Atena. 0que faz com que

uma representacao desse genero seja ao mesmo tempo valida

para 0 heroi e para a situacao na qual 0 combatente da cidade, 0

hoplita, e declarado comparavel aos herois, com uma verdadei-

ra metaforizacao interna a imagem. Podemos ir ainda mais lon-

ge, nesse sentido, adicionando por exemplo no dispositivo car-

regador/carregado, em presenca de Atena, urn lean que desfilacom os personagens da imagem, ao fundo do conjunto. 0valor

rnetaforico da imagem e assim assinalado do interior do proprio

dispositivo, 0 lean nao tendo outra significacao possfvel em urn

contexto como esse. Alias, 0 ritual dos funerais piiblicos nao

tinha rigorosamente nada 0 que fazer com 0 que era representa-

do nas imagens dessc tipo (eu deveria, desculpem, te-lo dito no

comeco), quer dizer com esse transporte individual do cadaver

inclufdo no universo epico. Os mortos celebrados pelo ritual

ateniense sao anonimos, coletivamente honrados, etc. e disso a

imagem nao diz nada. Podemos assim ver como a imagem pode

jogar nessa estrategia da memoria onde as margens de mano-

bras sao bastante reduzidas. Visto que as questoes de enunciacao

nao se colocam mais no interior do novo conjunto onde a ima-

gemjoga com suas condicoes especfficas de producao, torna-se

possivel praticar urn" polftica de memoria mais flexfvel nesse

mundo, somando-se tudo, tao complexo que e 0 domfnio gre-

go. Penso que seria necessario desdobrar um pouco mais tudo

isso diante de voces.

bricar urn memo ravel adequado ao mundo dos contemporane-

os. Ao mesmo tempo coloca-se a questao da enunciacao. Quem

fala e com que direito? 0 poeta com suas garantias nao esta

mais af para faze-lo em meio aos seus. Aquele que produz 0

memoravel para a cidade, assim, tern sempre, de certo modo, a

nostalgia da epopeia definitivamente impossfvel. Quando a ci-

dade produz urn discurso adequado pelo qual ela se funda, fa-

bricando seu proprio mernoravel mftico, quando ela pratica a

oracao fiinebre, ela 0 faz em referencia aos valores do epos (N.

Loraux, de novo aqui, seria bern melhor que eu para falar dis-

so). 0orador oficial narra entao a grandeza de Atenas pela gran-

deza de seus guerreiros mortos aomodo dos herois, incorporan-

do os valores que servem a isso.

E isso para remeter, certamente, dentro de uma perspec-

tiva antropologica, que ell defendia ontem em uma outra ofici-

11a,a nossa propria pratica memorial, no sistema com memoria

institucional que eo 110SS0.Temos historiadores, universidades

onde se ensina a hist6ria. Gostaria simplesmente que nos inter-

rogassernos, enquanto produtores de memoria, com relacao ao

funcionamento grego da pratica memoria!. E gostaria, para ter-

minar e a guisa de incitar a discussao, de me perguntar se 0 fato

de que a primeira memoria heroic a produzida no cursu do esta-

belecimento de nossa historia republicana gire em torno de per-

4243

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 22/35

sonagens como Vercingetorix ou Joana d' Arc, que eu diria

massivamente "mfticos" a grega, e urn acaso ou se isso coloca

quest5es sobre nossa pr6pria gestae da mem6ria no quadro da

instituicao que a produz.BIBLIOGRAFIA

lean-Louis Durand

VIDAL-NAQUET, P. (1978), "Les boucliers des heros ...",

Revue des Etudes grecques, no XVI.

ESCHYLE. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzi-

do por Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, 1a ed., 1963; re-

vista em 1966.

44 45

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 23/35

NOTAS

1. Vidal-Naquet, P., 1978. Les boucliers des heros ... , Revue des Etudes

grecques, no XVI.

2. Eschyle. Les Sept contre Thebes, texto elaborado e traduzido por Paul

Mazon, Paris, Les Belles Lettres, la ed., 1963, revista em 1966.

47

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 24/35

PAPEL DA MEMORIA

Nao pretendo fornecer urn levantamento exaustivo do

trabalho da manha, nem resumir as tres apresentacoes de que

nos beneficiamos. Gostaria simplesmente de dar a tonalidade

delas, acentuando 0 que me pareceu ser as nervuras principais

do debate.

De infcio, uma observacao de conjunto sobre as tres apre-sentacoes: Pierre Achard trabalha em sociolingiifstica e em ana-

lise de discurso, Jean Davallon em semi6tica e sociosemi6tica

do espaco e Jean-Louis Durand efetua pesquisas semi6ticas so-

bre 0 gestual na antiguidade ateniense classica.

Corrfamos 0 risco entao de ter discuss5es agradavelmente

paralelas, sem ponto de contato: por exemplo, uma sobre os

textos e os discursos, e outra sobre a imagem. De fato, a questao

do papel da mem6ria permitiu urn encontro efetivo entre temas

a princfpio bastante diferentes. Esta questao conduziu a abordar

as condicoes (mecanismos, processos ...) nas quais urn aconteci-

mento historico (urn elemento hist6rico desconnnuo e exterior)

49

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 25/35

e suscetfvel de vir a se inscrever na continuidade interna, no

espaco potencial de coerencia pr6prio a uma mem6ria.

tacoes e na discussao, sobre a especificidade da ordem propria-

mente lingufstica (definida por exemplo como a da variacao

combinat6ria, a qual J.-c. Milner se referiu em sua apresenta-

c;ao), em relacao a ordem do discursivo, e afortiori em relacao

as do iconico, do simb6lico ou da simbolizacao,Mem6ria deve ser entendida aqui nao no sentido direta-

mente psicologista da "mem6ria individual", mas nos sentidos

entrecruzados da mem6ria mitica, da mem6ria social inscrita

em praticas, e da mem6ria construfda do historiador. 0 risco

evocado de uma vizinhanca flexfvel de mundos paralelos se deve

de fato a diversidade das condicoes supostas com essa inscri-

c;ao:e a dificuldade - com a qual e preciso urn dia se confrontar

- de urn campo de pesquisas que vai da referencia explfcita e

produtiva a lingufstica, ate tudo 0 que toea as disciplinas de

interpretacao: logo a ordem da lingua e da discursividade, ada

"Iinguagem", ada "significancia" (Barthes), do simb61ico e da

simbolizacao ...

Nao e de se admirar, nessas condicoes, que a ideia de

uma fragilidade, de uma tensao contradit6ria no processo de

inscricao do acontecimento no espaco da mem6ria tenha sido

constantemente presente, sob uma dupla forma-limite que de-

sempenhou 0 papel de ponto de referencia:

o fato de que possa existir Iocalizacao de traces distinti-

vos e de oposicoes pertinentes na esfera do iconico, por exem-

plo, nao conduziu ninguem a supor que, mesmo para uma

sincronia dada, haveria universais do iconico (pessoalmente, a

impensabilidade de uma sintaxe do iconico me parece marcada

pela inexistencia da negacao e da interrogacao no interior da

imagem). A questao de uma possfvel combinat6ria culturalmente

determinada dos segmentos gestuais (a prop6sito da qual J.-L.

Durand mencionou certos trabalhos etnol6gicos americanos re-

centes) coloca provavelmente urn problema bern diferente, mas

nao desemboca mais em impossiveis universais gestuais.

- 0 acontecimento que escapa a inscricao, que nao chega

a se inscrever;

Concebemos desde entao que 0 fato incontornavel da

eficacia simb6lica ou "significante" da imagem tenha atraves-

sado 0debate como urn enigma obsediante, e que, por seu lado,

os fatos de discurso, enquanto inscricao material em uma me-

m6ria discursiva, tenham podido aparecer como uma especie

de problematica-reserva, Essa negociacao entre 0choque de urn

acontecimento hist6rico singular e 0 dispositivo complexo de

uma mem6ria poderia bern, com efeito, colocar emjogo a nfvel

crucial uma passagem do visivel ao nomeado, na qual a imagem

seria urn operador de mem6ria social, comportando no interior

dela me sma urn program a de leitura, urn percurso escrito

discursivamente em outro lugar: tocamos aqui 0 efeito de repe-

tic;ao e de reconhecimento que faz da imagem como que a reci-

tacao de urn mito. Na transparencia de sua compreensao, a ima-

gem mostraria como ela se Ie, quer dizer, como ela funcionaenquanto diagrama, esquema ou trajeto enumerativo. Refiro-

me a tudo 0 que Jean Davallon adiantou a esse respeito.

- 0 acontecimento que e absorvido na mem6ria, como se

nao tivesse ocorrido.

No que concerne aos miiltiplos registros evocados aci-

rna, que formam uma continuidade problematic a entre a Iingufs-

tica e as disciplinas de interpretacao (restando saber em que

medida a pr6pria lingufstica e ou nao uma disciplina de inter-

pretacao), urn acordo muito amplo se manifestou, nas apresen-

50 51

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 26/35

Tocamos aqui urn dos pontos de encontro com a questao

da mem6ria como estruturacao de materialidade discursi va com-

plexa, estendida em uma dialetica da repeticao e da regulariza-

cao: a mem6ria discursiva seria aquilo que, face a urn texto que

surge como acontecimento a ler, vern restabelecer os "implfci-

tos'' (quer dizer, mais tecnicamente, os pre-construfdos, elemen-

tos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua

leitura necessita: a condicao do legfvel em relacao ao pr6prio

legfvel. Ora, acontece que esta e uma das questoes cruciais atu-

almente abordadas pela analise de discurso: uma discussao aberta

a esse respeito, que - sem ser puro negocio de butique - reveste

apesar de tudo urn carater relativamente "tecnico", A questao e

saber onde residem esses famosos implfcitos, que estao "ausen-

tes por sua presenca" na leitura da sequencia: estao eles dispo-

nfveis na mem6ria discursiva como em urn fundo de gaveta, urn

registro do oculto? P. Achard levanta a hip6tese de que nao en-

contraremos nunc a, em nenhuma parte, explicitamente, esse dis-

curso- vulgata do implfcito, sob uma forma estavel e sedimentada:

haveria, sob a repeticao, a formacao de urn efeito de serie pelo

qual uma "regularizacao" (termo introduzido por P.Achard) se

iniciaria, e seria nessa pr6pria regularizacao que residiriam os

implfcitos, sob a forma de remissoes, de retomadas e de efeitos

de parafrase (que podem a meu ver conduzir a questao da cons-trucao dos estere6tipos). Mas, sempre segundo P.Achard, essa

regulanzacao discursiva, que tende assim a formar a lei da serie

do legfvel, e sempre suscetivel de ruir sob 0 peso do aconteci-

mento discursivo novo, que vern perturbar a mem6ria: a mem6-

ria tende a absorver 0acontecimento, como uma serie materna-

tica prolonga-se conjeturando 0 termo seguinte em vista do co-

meco da serie, mas 0 acontecimento discursivo, provocando

interrupcao, pode desmanchar essa "regularizacao" e produzir

retrospectivamente uma outra serie sob a primeira, desmascarar

o aparecimento de uma nova serie que nao estava constitufdaenquanto tal e que e assim 0produto do acontecimento; 0aeon-

tecimento, no caso, desloca e desregula os implfcitos associa-

dos ao sistema de regularizacao anterior.

Haveria assim sempre umjogo de forca na mem6ria, sob

o choque do acontecimento:

- urn jogo de forca que visa manter uma regularizacao

pre-existente com os implfcitos que ela veicula, conforta-Ia como

"boa forma", estabilizacao parafrastica negociando a integracao

do acontecimento, ate absorve-lo e eventualmente dissolve-lo;

- mas tambern, ao contrario, 0 jogo de forca de uma

"desregulacao" que vern perturbar a rede dos "implfcitos".

Em relacao com a questao da regularizacao, ada repeti-

~ao (dos itens lexicais e dos enunciados) prolongou 0debate: a

repeticao e antes de tudo urn efeito material que funda comuta-

coes e variacoes, e assegura - sobretudo ao nivel da frase escri-

tal - 0 espaco de estabilidade de uma vulgata parafrastica pro-

duzida por recorrencia, quer dizer, por repeticao literal dessa

identidade material.

Mas a recorrencia do item ou do enunciado pode tam-

bern (este e urn ponto introduzido por Jean-Marie Marandin na

discussao) caracterizar uma divisao da identidade material do

item: sob 0 "mesmo" da materialidade da palavra abre-se entao

o jogo da metafora, como outra possibilidade de articulacaodiscursiva ... Uma especie de repeticao vertical, em que a pr6-

pria mem6ria esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em

parafrase,

Esse efeito de opacidade (correspondente ao ponto de

divisao do mesmo e da metafora), que marca 0 momenta em

que os "implfcitos" nao sao mais reconstrutfveis, e provavel-

mente 0 que compeJe cada vez mais a analise de discurso a se

distanciar das evidencias da proposicao, da frase e da estabili-dade parafrastica, e a interrogar os efeitos materiais de monta-

gens de sequencias, sem buscar a princfpio e antes de tudo sua

5253

----

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 27/35

Trata-se, de outro modo, de retirar-se provisoriamente,

taticamente, da questao do sentido, sabendo ao mesmo tempo

que a questao da interpretacao e incontornavel e retornara sem-

pre. A esse propos ito, devo fazer urn esc1arecimento a respeitoda fala de Sylvain Auroux, que me atribuiu uma controversia

com l-C. Milner sobre a questao de saber se ele se estimava ou

nao ser colega de Beauzee: parece-me util explicar urn pouco

de que se trata! A questao concerne de fato ao estatuto da lin-

gufstica frente as disciplinas de interpretacao. Eu tinha pergun-

tado a Vidal-Naquet (a partir da alusao ao artigo de Nicole

Loraux "Tucidides nao e urn colega", muito citado no decorrer

dessas j ornadas), se, para ele, Tucfdides, sem ser seu colega, era

nao obstante urn historiador; questao a qual P.Vidal-Naquet res-pondeu: "Sim, certamente!", 0 que implica que nao ha comeco

historico assinalavel para a disciplina historic a, na medida em

que a historia e uma disciplina de interpretacao: para urn ffsico,

par exemplo, 0 problema de saber se Aristoteles e urn coleganao se coloca. Aristoteles nao e para ele nem urn colega, nem

urn ffsico. Minha questao a J.-C. Milner concernia entao de fato

a posicao da lingufstica a respeito da interpretacao. Perguntar-

se se ha ou nao urn momento historico assinalavel em que se

pode dizer de alguem "e urn lingiiista", nao e entao colocar urnmero poblema de datacao, mas levantar a questao de saber se a

linguistica e uma disciplina puramente "experimental", ou se

ela tern necessariamente algo a ver (de modo complexo, equi-

voco, ambfguo ... mas algo a ver) com as disciplinas de interpre-

tacao, desde a historia ate a psicanalise.

gestos de designacao antes que sobre os designata, sobre os pro-

cedimentos de montagem e as construcoes antes que sobre as

significacoes? A questao da imagem encontra assim a analise

de discurso por urn outro vies: nao mais a imagem legfvel na

transparencia, porque urn discurso a atravessa e a constitui, mas

a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a memoria

"perdeu" 0 trajeto de leitura (ela perdeu assim urn trajeto que

jamais deteve em suas inscricoes).

significacao ou suas condicoes implicitas de interpretacao.

A imagem muda e par exemplo 0 choque opaco de uma

imagem de vasa grego: a arquelogia possui apenas 0olho, quer

dizer, imagens e textos, sem coincidencia, e nao, como a antro-

pologia de hoje, 0 "a mais" do ouvido (a voz, a "trilha sonora").

o que evoco aqui remete a apresentacao de J.-L. Durand, que

mostrou como a epopeia heroic a grega fazia irrupcao nas cenasvisuais da democracia ateniense (em particular as cenas funera-

rias), atraves de telescopias burlescas por seu anacronismo (mais

ou menos como se mostrassemos Vercingetorix a bordo de urn

aviao a jato).

No outro extremo, 0 choque opaco do acontecimento

televisual e tambem algo que nao se inscreve, na medida em

que esta sempre "ja la", no retorno de urn paradigm a pesado

que se repete no interior de sua aparicao instantanea: por exem-plo (intervencao de Maurice Mouillaud), a historia do submari-

no sovietico perdido no Baltico, quando este vern a superffcie

da tela de TV; 0 submarino esta sempre Ia, nao necessariamente

no fundo do mar, mas nas profundezas de urn paradigma que

estrutura 0 retorno do acontecimento sem profundidade.

Fecho este parentese para retornar a questao da interpre-

tacao em analise de discurso: P.Achard caracterizou esse movi-

mento de retirada provisorio da questao do sentido e da vontade

de interpretar, lembrando 0proverbio chines "Quando the mos-

tramos a lua, 0 imbecil olha 0 dedo". Com efeito, por que nao?

Por que a analise de discurso nao dirigiria seu olhar sobre os

Reencontramos assim, para finalizar, a questao da reIa-

<;aoentre a imagem e 0 texto: no entrecruzamento desses dois

objetos, onde estamos, tecnologicamente e teoricamente, hoje,

com relacao a esse problema que, apes Benveniste, Barthes de-

signou com 0 termo "significancia"?

54 55

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 28/35

Em que pe estamos com relacao a Barthes? Barthes era

tanto lingiiista dos textos como te6rico das imagens, ou de pre-

ferencia nao era nem urn nem outro (quer dizer, nem lingiiista,

nem semi6logo, nem analista) mas antes de tudo 0 esboco con-

tradit6rio de gestos que tentamos hoje reencontrar, e que ele

soube agenciar a sua maneira talvez unica, quer dizer, em pes-

soa - logo tambem, e de maneira equfvoca: como pessoa? NOTAS

A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse deba-

te e que uma mem6ria nao poderia ser concebida como uma

esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais hist6ricos e

cujo conteiido seria urn sentido homogeneo, acumulado aomodo

de urn reservat6rio: e necessariamente urn espaco m6vel de di-

visoes, de disjuncoes, de deslocamentos e de retomadas, de con-

flitos de regularizacao ... Urn espaco de desdobramentos, repli-

cas, polemic as e contra-discursos.

1. Assinale-se a esse proposito uma intervencao de Francoise Madre,

problematizando a relacao escrito/oral do ponto de vista da repeticao e

da memoria.

2. Penso nas teses desenvolvidas por Paul Veyne, que poderiam bern i lus-

trar esse pantextualismo que foi designado como risco cons tante nodecorrer dos debates. 0 ultimo livro de P. Veyne "Les Crees ont-ils em

a leurs mythes" da uma ideia desse frasco ideal do relativismo absoluto.

E 0 fato de que exista assim 0 outro intern0 em toda

mem6ria e, a meu ver, a marca do real hist6rico como remissao

necessaria ao outro exterior, quer dizer, ao real hist6rico como

causa do fato de que nenhuma mem6ria pode ser urn frasco sem

exterior.

Michel Pecheux

56 57

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 29/35

MAlO DE 1968: OS SILENCIOS DA MEMORIA *

Introducao

Falando de hist6ria e de politica, nao ha como nao consi-

derar 0 fato de que a mem6ria e feita de esquecimentos, de si-

lencios. De sentidos nao ditos, de sentidos a nao dizer, de silen-

cios e de silenciamentos.

Os sentidos se constr6em com limites. Mas ha tambem

limites construfdos com sentidos. E quando penso maio de 68, 0

que vern a frente da cena - poJitica e hist6rica - e 0 silcnciamento,sao os sentidos que impoem !imites. A tortura, a censura, a agres-

sao da ditadura a sociedade, a cidadania.

Mais do que ver no acontecimento maio-68 a constatacao

dessa violencia, interessa ve-Io, enquanto acontecimento

discursivo, justamente, como fato desencadeador de urn pro-

cesso de producao de sentidos que, reprimido, vai desembocar

na absoluta dominancia do discurso (neo)liberal. No entanto,

enquanto tal, no momenta em que apareceu, maio-68 abria para

uma nova discursividade, produzindo efeitos metaf6ricos que

afetavam a hist6ria e a sociedade, demaneira explosiva, em varias

59

para significar. E e isso a materialidade discursiva, isto e ,

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 30/35

Para trazermos essa questao para a reflexao, podemos

referir 0 texto de M. Pecheux (p. 33 aqui mesmo), no qual ele

procura compreender, junto a lingiiistas, semioticistas e histori-

adores, a fragilidade no processo de inscricao do acontecimen-

to no espaco da mem6ria que, segundo ele, joga em uma dupla

forma: a. 0 acontecimento que escapa a inscricao, que nao che-ga a inscrever-se, e b. 0 acontecimento que e absorvido na me-

m6ria como se nao tivesse ocorrido.

lingufstico-hist6rica. Da interpelacao do indivfduo em sujeito

pel a ideologia resulta a forma-sujeito hist6rica. Em nosso caso,

a forma-sujeito hist6rica capitalista corresponde ao sujeito-jun-

dico constitufdo pela ambiguidade que joga entre a autonomia e

a responsabilidade sustentada pelo vai-e-vem entre direitos e

deveres. Podemos dizer, entao, que a condicao inalienavel para

a subjetividade e a lingua, a hist6ria e 0mecanismo ideol6gico

pelo qual 0 sujeito se constitui.

direcoes: politicamente, culturalmente, moralmente. E 0que vai

se dar com essa discursividade no futuro? 0 que significa maio

de 68 hoje?

o caso que estou apresentando nao se enquadra nem na

primeira, nem na segunda possibilidade. E uma nuance entre

elas: e como se nao tivesse ocorrido (b), nao porque foi absorvi-do mas, ao contrario, justamente porque escapa a inscricao na

mem6ria (a). E este, penso eu, 0 caso da censura em geral. Nes-

se sentido, embora eu explore aqui uma situacao particular de

censura, essa minha reflexao pode contribuir para a compreen-

sao da relacao entre mem6ria e censura em geral.

Por outro lado, esse sujeito, uma vez constituido, sofre

diferentes processos de individualizacao (e de socializacao) pelo

Estado. Assim, se temos 0 individuo como ponto de partida para

o assujeitamento ao simb6lico - e, quanta a este assujeitamento

o sujeito nao tern controle pois ele se passa "antes, em outro

lugar e independentemente" - temos sobre esse sujeito proces-

sos que 0 individualizam e que derivam das diferentes formas

de poder. E af as Instituicoes e 0 Poder constitufdo tern urn

papel determinante. E nessa instancia que se dao as lutas, os

confrontos e onde podemos observar osmecanismos de imposi-

cao, de exclusao e os de resistencia.

E ja conhecido, na analise de discurso, que hi interpela-

~ao do indivfduo em sujeito pela ideologia. E assim que se con-

sidera que 0 sujeito se constitui em sujeito por ser afetado pelo

simb6lico. Daf seu assujeitamento, ou seja, para que 0 sujeito

seja sujeito e necessario que ele se submeta a lfngua. E e porestar sujeito a lingua, ao simb6lico, que ele, por outro lado, pode

ser sujeito de.

Pois bern, e assim, partindo dessa posicao te6rica, que

procuraremos compreender 0 que tenho chamado de "proces-

sos de de-significacao'' que estao presentes em discursividadescomo as que incidem sobre maio de 68. Portanto, nao tratare-

mos 0 sujeito como algo que se trabalha do ponto de vista de

uma sua essencia, mas pensando sua existencia como constitui-

da pel a sua relacao com a lingua e com a hist6ria onde se con-

frontam 0 simb6lico e 0 politico.

Urn pouco de teo ria

E a nossa questao e: 0 que aconteceu com os sentidos

que constituem 0 evento maio-68?

Alem disso, e preciso que a lmgua se inscreva na hist6riaPara falar disso retomamos 0 fato de que falar e esque-

cer. Esquecer para que surjam novos sentidos mas tambem es-

60 61

quecer apagando os novos sentidos que ja foram possiveis mascusa a uma vida reduzida a regras e a urn trabalho que, por sua

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 31/35

foram estancados em urn processo hist6rico-politico silenciador.

Sao sentidos que sao evitados, de-significados.vez, reduz 0 homem em suas possibilidades de vida.

A definicao de formacao discursiva diz que ela delimit a

"aquilo que pode e deve ser dito par urn sujeito em uma posicao

discursiva em urn momenta dado em uma conjuntura dada"

(Haroche, Henry, Pecheux, 1975).

Uma parafrase agora, com 0 tempo ja deslocado, mostra

a conversao desse discurso em urn processo que 0 de-signifi-

cou. Essa parafrase aparece, em maio de 1998, em urn poster

de propaganda no metro de Paris: urn casal nu, tatuado com

flores no peito, dirigindo-se a uma exposicao, e, embaixo, osdizeres "Entrada livre. Isso faria sonharem seus pais...".

Forrnacoes Discursivas e Esvaziamento de Sentido

No modo como 0 politico se simboliza nos anos 60 ha

todo urn possivel dizer da sociedade, da cultura que coloca os

sujeitos em medida de uma transforrnacao hist6rica e social degrande dimensao, Essa possibilidade eclode nos movimentos

de 68 tendo a palavra liberdade como carro-chefe. No mundo

todo ha manifestacoes de rua em que uma discursividade can-

dente trabalha os muitos sentidos postos na reivindicacao das

liberdades concretas necessarias a sociedade em suas novas

posssiveis formas.

Esse enunciado par sua vez mostra a forma como os sen-

tidos concretos e explosivos de liberdade, que estavam levando

a uma revolucao social e cultural, a novos sentidos para os su-

jeitos e para a historia, foram barrados violentamente pelo status

quo. Pelas instituicoes, pelo poder. E, no caso do Brasil, mais

violentamente ainda parque estavamos em uma ditadura e era

bern diferente dizer "E proibido proibir" aqui em uma rua de

Sao Paulo e em uma rua de Paris ...

No poster dos anos 90 "entrada livre" e gratuita reduz 0

sentido de liberdade ao preco de urn parque de divers6es.

Sao assim enunciados que funcionam em suas relacoes

parafrasticas, relacionando-se em suas diferentes forrnulacoesao que pode significar "liberdade":

o interditado que toma a forma do impossivel

Que, em suas diferentes formas de dizer, afirmam a re-

Entao, sentidos possfveis, historicamente viaveis foram

politicamente interditados. E tornaram-se inviaveis, Essa im-

possibilidade, posta pela censura e pela forca, se naturaliza e

funciona como urn pre-construfdo restritivo a certos sentidos de

Iiberdade, de tal maneira, que eles parecem impossiveis. Foram

assim desmoralizados, amolecidos, inviabilizados, de-signifi-

cades, postos fora do discurso. E a palavra "liberdade" aparecefeito florzinha que se prende com urn bottom numa roupinha

maneira ... Ao mesmo tempo, pela outra mao, ada direita, nesse

mesmo processo, se estabelecem as bases do discurso neo-Iibe-

a. "E proibido proibir!".

b. "Faca amor e nao faca guerra l" que deriva ainda para

"Paz e Amor!",

c. "Boulet, Metro, Dodo!" em portugues: "Trabalho,

Conducao e Cama!".

62 63

ral em que se individualiza a questao da liberdade, destituindo-

a da forca concreta historica que ela tinha na outra formacaoe esquecidas, ao longo do tempo e de nossas experiencias de

linguagem que, no entanto, nos afetam em seu "esquecimento".

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 32/35

discursiva - a da esquerda, em que 0 partido comunista propu-

nha em seu programa a necessidade de construcao de uma de-

mocracia fundada nas liberdades concretas necessarias para as

novas formas sociais - em que haviam se alocado sentidos ex-

plosivos de liberdade. E 0 que e silenciado em uma formacao

discursiva e acolhido em outra formacao discursiva, esta, domi-

nante, que corresponde ao vies pragrnatico e empresarial da

polftica neo-liberal desembaracada dos sentidos mais corrosi-

vos, transform adores do politico. Essa liberdade sem determi-

nacoes concretas, agora generalizada, pode ser reivindicada,

individualizando-se, ate pelos neo-nazistas que, em nome dela,

exigem 0 direito de usar a suastica em suas roupas opressivas.

Assim como a lingua e sujeita a falhas, a memoria tambem e

constitufda pelo esquecimento; daf decone que a ideologia, diz

M. Pecheux (1982), e urn ritual com falhas, sujeito a equfvoco,

de tal modo que, doja dito e significado, possa irrornper 0novo,

o irrealizado. No movimento contfnuo que constitui os sentidos

e os sujeitos em suas identidades na historia,

Ainda em M. Pecheux (aqui mesmo, p. 36) temos: "uma

especie de repeticao vertical, em que a memoria esburaca-se,

perfura-se antes de desdobrar-se em parafrase". 0 que da, se-

gundo esse autor (idem, p.39), a ideia de memoria como urn

espaco m6vel de divisoes, de disjuncoes, de deslocamentos e

de retomadas, de conflitos de regularizacao. Urn espaco de des-

dobramentos, replicas, polemicas e contra-discursos (1).

o que e isto companheiro?

Memoria e Censura

Nao e nada disso, companheiro, diz uma parafrase de

Jose Simao que, com seu humor, evoca 0jogo discursivo que

atravessa esse enunciado em sua mem6ria, agora transformada

de romance em filme.

E a questao e, sem dtivida uma questao de mem6ria. No

sentido discursive. A mem6ria - 0 interdiscurso, como defini-mos na analise de discurso - e 0 saber discursivo que faz com

que, ao falarmos, nossas palavras facam sentido. Ela se consti-

tui pelo ja-dito que possibilita todo dizer.

o que acontece com maio-68 porem e de outra ordem. A

falha e constitutiva da mem6ria, assim como 0 esquecimento.

No entanto 0que acontece com os sentidos de 68 e que eles nao

falham apenas nessa memoria, eles foram silenciados, censura-

dos, exclufdos para que nao haja urn ja dito, urn ja significadoconstitufdo nessa mem6ria de tal modo que isso tornasse, a par-

tir dai, outros sentidos possfveis. Ha faltas (2) - e nao falhas -

de tal modo que eles nao fazem sentido, colocando fora do dis-

curso 0 que poderia ser significado a partir deles e do esqueci-

mento produzido por eles para que novos sentidos af significas-

sem. Ha, assim, "furos", "buracos" na memoria, que sao luga-

res, nao em que 0 sentido se "cava" mas, ao contrario, em que 0

sentido "falta" por interdicao. Desaparece. Isso acontece por-

que toda uma regiao de sentidos, uma formacao discursiva, eapagada, silenciada, interditada. Nao ha urn esquecimento pro-

Pois bern, como dissemos no infcio, 0 sujeito e

assujeitado, pois para falar precis a ser afetado pela lingua. Por

outro lado, para que suas palavras tenham sentido e preciso que

ja tenham sentido. Assim e que dizemos que ele e historicamen-

te determinado, pelo interdiscurso, pela mem6ria do dizer: algofala antes, em outro lugar, independentemente. Palavras ja ditas

64 65

duzido par eles, mas sabre eles. Fica-se sem mem6ria. E isto

impede que certos sentidos hoje possam fazer (outros) sentidos. to a repressao porque resvala para 0que, hoje, se considera como

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 33/35

Como a mem6ria e , ela mesma, condicao do dizfvel, esses sen-tidos nao podem ser lidos.

ilegal, indo na direcao do que se considera "mobilizacao soci-

al", ilegal, e que, em maio-68, estava absolutamente dentro das

espectativas do politico.

Para observarmos isso basta pensarmos nos sentidos dos

nossos "companheiros" de maio-68 trucidados pela tortura e pela

repressao militar. Eu vi, em meu silencio, muitos de meus cole-

gas com suas fotos afichadas como perigosos guerrilheiros em

pilares da rodoviaria de Sao Paulo toda vez que ia tomar oni-

bus. Eram lidos, vistos, pensados como perigosos terroristas.

Por onde passam os sentidos do terrorismo? Por onde passam

os sentidos da resistencia politica de 68? Os sentidos de liber-

dade?

Para tenninar, eu gostaria de dizer que 0 real hist6rico

faz pressao, fazendo que algo irrompa nessa objetividade mate-rial contradit6ria (a ideologia). 0 que foi censurado nao desa-

parece de todo. Ficam seus vestigios, de discursos em suspenso,

in-significados e que demandam, na relacao com 0 saber

discursivo, com a mem6ria do dizer, uma relacao equfvoca com

as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites.

Acontece que estes sentidos - excluidos, silenciados -

nao puderam e nao podem significar, de tal modo que Mtodauma nossa hist6ria que nao corresponde a urn dizer possive!.

Nao foram trabalhados socialmente, de modo a que pudesse-

mos nos identificar em nossas posicoes. Do mesmo modo ficam

sem ser politicamente significados os feitos da tortura e do que

resultou dela na nossa politica. Toda vez que vamos votar, mes-

mo que nem pensemos nisso, 0 fato de que 0Brasil e urn paisque tortura os dissidentes politicos faz parte de nossa mem6ria

e de nossos gestos politicos. E isso nao mereceu ainda sua

explicitacao politica (3). Esta fora da memoria, como umasua mar gem que nos aprisiona nos limites desses sentidos. 0

que esta fora da mem6ria nao esta nem esquecido nem foi traba-

lhado, metaforizado, transferido. Esta in-significado, de-signi-

ficado (4).

Eni P . Orlandi

Em consequencia, a discursividade politica tern seus

pontos de tensao nos indfcios desses silenciamentos. Hoje, dis-

cursos como os do MST, que sao uma ruptura no discurso poli-

tico neo-liberal, tern dificudade de significar-se nessa margemem que muitos sentidos nao podem fazer 0 sentido do politico,

onde palavras como "movimento" podem significar algo sujei-

66 67

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 34/35

BIBLIOGRAFIA

CL.HAROCHE, P. HENRY E M. PECHEUX (1975) "La

couppure saussurienne: langue, langage, discours" in Langages,

Larousse, Paris.

E. P. ORLANDI (1993) As Formas do Silencio , Ed. Unicamp,

Campinas.

E. P. ORLANDI (1998) "Etica e Significacao", trabalho apre-

sentado em mesa-redonda da ANPOLL, Campinas.

. ,

M. PECHEUX (1982) "Delimitations, Inversions,

Deplacements" in L'Homme et la Societe, Paris, trad. Bras. de

Jose Horta Nunes, in Cadernos de Estudos Lingtifsticos , n° .

19, IEL, Unicamp, 1990.

,M. PECHEUX (1983) " ROle de la Memoire", in Histoire et

Linguistique, trad. Jose Horta Nunes, 0Papel da Memoria,

Ed. Pontes, 1999, Campinas.

69

8/6/2019 Papel da Memória

http://slidepdf.com/reader/full/papel-da-memoria 35/35

NOTAS

* Urna primeira versao deste texto foi apresentada em Santa Maria

(RS), no Col6quio "Utopias e Distopias", em maio de 1998.

Agradeco a Amanda Scherer a oportunidade e a convivencia com os

que estiveram no evento.

1. As teses de Bethania C. S. Mariani, sobre 0 discurso do Partido

Comunista no Brasil (1997) , a de Suzy Lagazzi Rodrigues sobre 0

discurso do Assentamento (1998) e a de Maria Onice Payer sobre

mem6ria da l ingua, na situacao da imigracao italiana (em curso) ,

trabalham todas elas esses aspectos de cristalizacao, de apagamento,

ou de ruptura e resistencia.

2. Estou aqui fazendo uma distincao - falha constitutiva e falta por inter-

dicao - que corresponderia, em paralelo, a dist incao que faco entre nao-

sent ido (que aponta para 0 sentido que podera vir, 0 irrealizado) e 0

sem-sentido (0 que ja significou e que nao faz mais sentido). No caso, a

falha e 0 lugar do possfvel, do sentido a vir; e a falta, e 0que foi tirado

do senti do, 0 que nao pode significar. Essas formas se indistinguem e,

na maior parte das vezes, nao e facil separa-Ias, E esta aijustamente, doponto de vista da ideologia, a eficacia de seus efei tos.

3. Mais recentemente, ha referencias piiblicas a tortura, mas que permane-cern a margem, como acasos sem hist6ria, violencia que nao aparece

como parte da polit ica mas a parte dela. Transferida para a poHcia.

4. Conferir - a respeito da falta de trabalho da mem6ria, da dificuldade de

dizer, de se identificar e de transferir (metaforizar) sentidos que se pode

perceber na falta de palavras, na tensao dos gestos, dos olhares e do

silencio constrangido (e constrangedor para n6s cidadaos brasileiros ...)

dos corpos - 0 filme "15 Filhos": a imaterialidade da morte (sob tortura,

fabricam-se os desaparecidos, a morte fica sem corpo ... ) e a

imaterialidade da vida diz urn dos, ou melhor, uma das fi lhas.

71