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Para a Linda
ÍNDICE
Prefácio 9
Prólogo 13
Um: Num Tempo Remoto e num Lugar Distante [1936–1957] 21
Dois: A Missão [1958–1966] 69
Três: Timoneiro da Nau em Tormenta [1967–1974] 121
Quatro: Provação [1975–1979] 171
Cinco: Líder Proscrito [1980–1992] 221
Seis: Um Bispo com o Cheiro das Ovelhas [1993–2000] 275
Sete: Cardeal Gaúcho [2001–2007] 327
Oito: Um Homem para os Outros [2008–2012] 385
Nove: Conclave [2013] 441
Epílogo: A Grande Reforma 463
Notas 497
Notas sobre as Fontes 527
Agradecimentos 541
PREFÁCIO
Com a eleição de Francisco, muita coisa mudou. E mudou tão radi-
calmente e em tantas vertentes que é difícil enunciar as novidades
que Bergoglio tem vindo a introduzir na vida da Igreja e no próprio es-
tilo de ser Papa, sem se correr o risco do elenco ficar desatualizado. Esta
«revolução» explica a tão variada profusão de publicações sobre o actual
Sucessor de Pedro. Qual é, então a novidade deste livro?
Em jeito de comparação automobilística, arrisco-me a dizer que esta
obra está para os outros livros sobre Francisco como a construção de um
Rolls-Royce está para a de um carro utilitário, porque se este se define
pela sua utilidade prática, o outro automóvel resulta de um trabalho
de fundo, altamente minucioso. Assim também no universo dos livros
escritos por jornalistas: se a tendência hoje é «ser o primeiro a chegar»,
tantas vezes à custa de conteúdos pouco ou nada aprofundados, a obra
de Austen Ivereigh destaca-se, exatamente, pelo oposto.
É que a quantidade e o rigor de entrevistas realizadas, de docu-
mentos analisados e de investigações levadas a cabo, fora e dentro da
Argentina, fazem deste livro uma obra indispensável para saber quem
é e o que pensa o primeiro Papa latino-americano da História. O autor,
além de jornalista especializado com vasta experiência em temas re-
lacionados com a Igreja Católica, é doutorado pela Universidade de
Oxford com uma tese sobre «Catolicismo e Política na Argentina», base
10 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
fundamental para envolver o leitor no agitado e complexo contexto polí-
tico e religioso vivido por Bergoglio até aos dias de hoje.
O livro «passa a pente fino» várias facetas da vida do atual Papa,
desde a sua infância e adolescência, com detalhes de caráter que aju-
dam a conhecê-lo, com base em relatos testemunhais e certos coloridos
pitorescos — desde a forma como falavam dele na escola, à sua militân-
cia católica, às alcunhas que tinha («carucha», por estar quase sempre
carrancudo; «el gato», por saber escapar ardilosamente…), ao gosto pelo
tango e pelo desporto —, sem esquecer os detalhes da sua vocação e
dúvidas amorosas, ou os conturbados anos de formação jesuíta.
Quem lê esta obra fica a saber como Bergoglio atravessou as várias
crises dentro da Igreja (relacionadas com a teologia da libertação e não só)
e tantas tensões internas dentro da Companhia de Jesus, incluindo os anti-
-corpos causados pela sua liderança e estilo pessoal (ao ponto de ter sido
avaliada a hipótese da sua expulsão dos jesuítas). Durante os anos em que
foi bispo, arcebispo e cardeal (1993–2013), sempre que Bergoglio foi a Roma
nunca mais ficou na sede geral da Companhia de Jesus, na Borgo Santo
Spirito, a dois passos da Praça de São Pedro, preferindo alojar-se numa
residência para sacerdotes, na Via della Scrofa, perto da Piazza Navona,
de onde aliás saiu para participar no Conclave que o elegeu Sucessor de
Pedro. Estas feridas com mais de vinte anos só se desfizeram quando,
dois dias depois da sua eleição, o primeiro Papa jesuíta da História tele-
fona de surpresa para a receção do «quartel-general S. J.» pedindo para
falar com o Superior, o Padre Aldolfo Nicolás, insistindo com o incrédulo
rececionista de que era ele mesmo, Francisco, quem estava ao telefone.
O título deste livro, por si só, também já deixa adivinhar as vicissitu-
des de um Bergoglio três vezes reformador, tão determinado em fazer
reformas no seio dos jesuítas e da Igreja argentina, como nas mega
assembleias dos episcopados latino-americanos, nos sínodos dos bis-
pos, nas reuniões de cardeais em Roma e agora como Papa. À medida
que lemos o seu multifacetado percurso de pastor, reconhecemos que
não são de agora os conceitos de Francisco sobre periferias existenciais,
povo fiel, religiosidade popular, mundanidade espiritual, Igreja como
lugar de misericórdia, opção pelos pobres, doentes, presos e margina-
lizados, e como o seu estilo de vida muito próprio, quase anticlerical,
dificilmente se encaixa em definições.
PREFÁCIO 11
Estes e tantos outros ingredientes «político-pastorais» já mereciam
a publicação desta obra. Mas há mais: é que o autor também foi conse-
lheiro e relações públicas do cardeal arcebispo emérito de Westminster,
Cormac Murphy-O’Connor, e, por isso, este livro também revela interes-
santes manobras eclesiásticas em bastidores que só poucos conhecem.
Ficamos a saber da existência de uma espécie de irmandade de cardeais
europeus que estrategicamente se reunia, desde os tempos do pontifi-
cado de João Paulo II, numa discreta cidade suíça, qual era a sua agen-
da específica e como as movimentações deste grupo influenciaram os
últimos dois conclaves, com o nome de Bergoglio como fio condutor.
Claro que é preciso ler o livro para ficar a saber outras peripécias
(algumas bem divertidas, como as escapadelas de D. José Policarpo
da Casa Santa Marta para fumar o seu cigarrinho, durante o conclave)
— com muitos factos e preciosos detalhes que ajudam a perceber
o Papa que temos e as razões porque foi eleito.
Aura MiguelJornalista da Rádio Renascença,
especializada em temas relacionados com a Igreja Católica
e com acreditação permanente na Sala de Imprensa do Vaticano.
PRÓLOGO
EstE livro nascEu de um encontro momentâneo com o Papa Francisco
na praça de São Pedro, em junho de 2013. Eu e um colega tínhamos
obtido dois dos cobiçados bilhetes para a primeira fila da audiência de
quarta-feira, onde existe a oportunidade de falar com o Papa quando
este passa por ali e troca breves palavras com os delegados e convida-
dos. Esperámos duas horas até ele chegar junto de nós, já que após a
sua alocução — a mistura habitual do humor simples com metáforas
surpreendentes — ele andou desaparecido durante o que pareceu uma
eternidade entre aquele a quem chama o santo povo fiel a Deus. Eram
eles, os anawim, os pobres de Deus, e não nós, os detentores dos bilhe-
tes da primeira fila, a sua prioridade.
Estava um dia de sol arrasador e o esforço deixara as suas sequelas:
na altura em que chegou junto de nós, Francisco, então com setenta
e seis anos de idade, estava a transpirar, encalorado e ofegante. No
entanto, aquilo que me deixou mais impressionado foi a energia que
ele transmitia: uma combinação bíblica de serenidade e alegria bem-
-humorada. Justin Welby, o arcebispo da Cantuária, expressou bem esta
ideia, após um encontro com Francisco dias mais tarde. O Papa argen-
tino, dizia ele, «é uma humanidade extraordinária a irradiar Cristo.» Se
a alegria fosse uma chama, precisávamos de ser feitos de amianto para
não nos queimarmos.
14 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
O fascínio que Francisco me inspira não parou de aumentar desde
a noite chuvosa da sua eleição, a 13 de março de 2013. Eu estava numa
plataforma de televisão com vista para a praça de São Pedro a condu-
zir uma transmissão em direto para um canal de notícias britânico.
O fumo branco tinha aparecido há uma hora, e nós esperávamos, a par
da comunicação social do planeta inteiro, ver as cortinas da varanda
a oscilar. Minutos antes de o cardeal Jean-Louis Tauran aparecer para
anunciar o novo Papa, eu recebera uma dica do meu antigo chefe, o car-
deal Cormac Murphy-O’Connor, arcebispo emérito de Westminster,
que participara nos encontros de pré-conclave, mas estivera ausente no
próprio conclave devido à idade avançada. De acordo com o que ele dis-
sera ao meu emissário, se o conclave fosse curto, havia grandes possibi-
lidades de o novo Papa ser Jorge Mario Bergoglio.
Bergoglio? Este era um nome do passado. Eu conhecia o seu país
de origem: ele começava com periquitos em florestas tropicais hú-
midas e quentes, continuava com vastas manadas de vacas e cavalos
em grandes pradarias que iam das montanhas ao oceano, e terminava
com pinguins sobre massas de gelo flutuante a passar ao largo dos
esguichos das baleias. Em tempos, fora uma nação próspera, que se via
a si própria como um posto avançado da Europa encalhado na América
Latina; mais tarde, tornara-se um caso de estudo em relação a pro-
messas não cumpridas, um aviso de como os antagonismos políticos
profundamente arraigados conseguem paralisar a sociedade. Recordei-
-me de uma viagem que fizera à Argentina em 2002, no âmbito de uma
reportagem sobre o colapso económico do país, e de as pessoas enal-
tecerem o seu cardeal reservado e austero; e ainda, num tempo mais
remoto, no início da década de 1990, da minha permanência em Buenos
Aires quando fazia pesquisas para uma tese de doutoramento sobre
a Igreja e a política na história da Argentina. Ao longo de uma série de
deslocações, entre tentativas de golpes de Estado e crises monetárias,
eu tinha ficado apaixonado por aquela cidade sedutora; e as minhas
estadias de vários meses levaram o meu espanhol a assimilar as infle-
xões e o jargão do espanhol porteño. Tudo tinha acontecido — conforme
W. H. Hudson intitulou as suas memórias da Argentina — Far Away
and Long Ago [Num Tempo Remoto e Num Lugar Distante]. Agora,
Bergoglio trazia isso de volta.
PRÓLOGO 15
Tinha ainda outra memória, a do conclave de abril de 2005 que cul-
minara na eleição de Bento XVI, quando me desloquei a Roma com o
cardeal Murphy-O’Connor. Alguns cardeais procuravam encontrar uma
alternativa pastoral a Joseph Ratzinger e viravam-se para a América
Latina, a nova esperança da Igreja. Poucos meses depois, o diário secreto
de um cardeal não identificado revelava que Bergoglio de Buenos Aires
fora o outro candidato principal nessa eleição. Todavia, depois disso,
ele pareceu desaparecer gradualmente, a ponto de quase ninguém
o considerar papável em 2013. Foi por isso que aquela dica me deixou
radiante: o cardeal da Argentina não estava na minha lista, como aliás
não estava na de mais ninguém. Pelo menos, quando as cortinas da va-
randa se abriram finalmente e foi anunciado o novo Papa, eu pude dizer
quem ele era e fornecer algumas informações complementares. Alguns
comentadores de outras televisões não tiveram a mesma sorte.
Mais tarde, todos partilhavam a opinião de que Bergoglio se tinha
simplesmente destacado e de que não havia um grupo de cardeais empe-
nhados na sua eleição. Mas, a ser verdade, por que motivo o meu
antigo chefe parecia estar tão convicto antes do conclave de que seria
ele? Eu pressentia que havia mais qualquer coisa, que Bergoglio não
tinha desaparecido de todo, tornando-se antes invisível ao nosso radar
eurocêntrico, e que a sua eleição era fruto do trabalho de um grupo.
Mas não era isso que me intrigava mais. Aquilo que eu desejava
saber verdadeiramente era quem ele era, qual era o seu pensamento,
de que forma a vivência como jesuíta o moldara, qual a sua posição
no meio das controvérsias que eu tinha investigado num tempo tão
longínquo. Nesses primeiros cem dias do pontificado eletrizante de
Francisco, ele tinha tomado de assalto o Vaticano e o mundo — dando
uma reviravolta na omeleta, conforme gostava de dizer. As pessoas
tentavam ajustá-lo a estereótipos que não se aplicavam de todo à Amé-
rica Latina, e muito menos à Argentina, onde o Peronismo destruíra
as categorias da esquerda e da direita. Os equívocos deram origem
a asserções contraditórias: Um bispo das classes mais desfavorecidas
bem relacionado com a ditadura militar? Um jesuíta retrógrado que
se tornara um bispo progressista? Havia quem defendesse que ele
correspondia a ambas, e que se «convertera» durante o seu exílio em
Córdoba, no início da década de 1990. Aqueles que o conheciam bem
16 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
na Argentina alegavam que esta não era a realidade. Mas qual seria a
versão alternativa?
Na Argentina, as primeiras biografias, elaboradas à pressa pelos
jornalistas que lhe dedicaram reportagens ao longo de anos, estavam
repletas de histórias e perspetivas fascinantes e esta obra deve-lhes
muito. Contudo, elas centram-se naturalmente nos últimos anos de
Bergoglio como cardeal, para o que existe informação abundante em
papel e na Internet, deixando praticamente inexplorados os seus trinta
anos como jesuíta, uma época de controvérsias, bem como o período
em que a sua espiritualidade e visão do mundo foram moldadas. Em
concreto, qual foi o motivo da discórdia entre Bergoglio e os jesuítas?
Eu sentia que depois de compreender isso, iria ter uma noção muito
mais clara sobre tudo.
No meu breve encontro com Francisco naquela praça tórrida, a mão
que ele pousou firmemente no meu braço deixou-me animado. Isto
não significa que ele estivesse interessado nesta biografia — Francisco
detesta que escrevam livros sobre ele; o seu objetivo é conduzir a aten-
ção para o sítio devido — mas o seu toque seguro funcionou como um
encorajamento: na minha qualidade de estrangeiro que lida há muito
tempo com as complexidades da Argentina e que conhece os jesuítas,
talvez eu estivesse no sítio certo para ajudar quem está de fora a com-
preender o enigma de Francisco.
Em outubro de 2013, parti para Buenos Aires para dedicar cinco
semanas a entrevistas e pesquisas exaustivas, reunindo cópias da maior
parte dos seus escritos, cujas edições se encontravam genericamente es-
gotadas há muito tempo. Reconstituí o percurso de Bergoglio para além
de Buenos Aires, em San Miguel, Santa Fe, Córdoba e Entre Ríos, e ain-
da, através dos Andes até Santiago, no Chile. Houve outras viagens no
decorrer deste livro: ao Rio de Janeiro, no Brasil, para a Jornada Mundial
da Juventude, em julho de 2013; e duas a Roma, para o consistório de
cardeais, em fevereiro de 2014, e as canonizações de João XXIII e João
Paulo II, no mês de abril seguinte. Ao longo de dezenas de entrevistas
a jesuítas, ex-jesuítas e outros que privaram com ele durante os seus
vinte anos de bispo, arcebispo e cardeal, a narrativa perdida começou
a tomar forma. Constatei que muitas das histórias importantes acerca
de Francisco estavam por contar e que apenas uma incursão profunda
PRÓLOGO 17
ao seu passado — na Argentina, na Igreja e nos jesuítas — poderia le-
var à noção do seu pensamento e visão. Além da história de Bergoglio,
Francisco, o Grande Reformador contém, necessariamente, todas essas
outras histórias também.
Muitas biografias são escritas após a morte ou a aposentação do su-
jeito biografado. Ao longo dos sete meses em que esta foi escrita, de
dezembro de 2013 a junho de 2014, o seu sujeito tornou-se um fenómeno
mundial. Era impossível ignorar os laços entre Bergoglio e Francisco, ou
partir do princípio de que o leitor não estava a pensar em Francisco
enquanto lia algo acerca de Bergoglio. Eu sabia que o pano de fundo
tinha de ser mais vasto que a história do passado de Bergoglio e que a
presente biografia teria de dar conta do pontificado de Francisco em rápi-
da expansão. Contudo, remeter constantemente o leitor para Francisco
não só interrompia a narrativa como incorreria igualmente no crime
da hagiografia, ao interpretar-se o passado à luz do presente, como se
a vida dele tivesse sido um exercício de aquecimento para o papado.
A solução foi iniciar cada capítulo com um episódio importante (uma
viagem ou um documento) do pontificado de Francisco que o leitor
possa reter na memória: dessa forma, é possível estabelecer algumas
ligações interessantes — e provocatórias, por vezes — ao seu passado,
sem perturbar o fluxo ou a integridade da narrativa. No epílogo, reúno
ambas as vertentes, analisando o seu primeiro ano e sugerindo o cami-
nho para onde este pontificado singular está a conduzir a Igreja.
Neste sentido, este livro é cronológico, mas não de uma forma rigo-
rosa: ele foca-se em histórias que colocam o nosso sujeito em evidência
e depois recua para uma panorâmica que abrange o local e os factos
que o influenciaram. Nos capítulos iniciais, em que eu o designo por
«Jorge» até à altura da sua ordenação, são abordadas as divisões e ten-
sões na história política e eclesiástica da Argentina, factos essenciais
para a perceção da sua visão. A história passada e presente dos jesuítas
a nível mundial e na Argentina mereceu aqui um destaque particular:
tanto os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, que influíram de forma
tão decisiva no pensamento, espiritualidade e qualidades de lideran-
ça de Bergoglio, como os grandes esforços no seio da Companhia de
Jesus (os jesuítas) para a sua renovação, após o Concílio Vaticano II, têm
um papel primordial na primeira metade do livro. Francisco, o Grande
18 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Reformador valoriza continuamente a espiritualidade de discernimento
jesuíta de Bergoglio, como o ponto crucial para a sua tomada de deci-
sões. Os julgamentos que ele fez e faz baseiam-se não só em informa-
ção e interesses, mas igualmente na perceção da vontade de Deus, e do
seu contrário: a tentação do «espírito mau».
Durante o processo de escrita deste livro, li milhares de textos da
autoria de Bergoglio, desde o seu primeiro artigo publicado em 1969
até aos retiros e homilias que pregou como cardeal. [Ele é um escritor
nato: eloquente e preciso]. A maior parte dos textos iniciais e quase to-
das as homilias existem apenas em versão espanhola, e a sua tradução
é sempre da minha autoria, mesmo na eventualidade de existir uma
tradução anterior, salvo especificação em contrário. O mesmo acontece
com as entrevistas, realizadas em espanhol, na sua maior parte, e trans-
critas heroicamente na Argentina por Inés San Martín [neste momento
correspondente do Boston Globe em Roma], as quais foram traduzidas
por mim. Para obviar ao excesso de notas, as citações devem considerar-
-se da responsabilidade dos entrevistados [referidos na lista das últimas
páginas do livro], salvo indicação em contrário. As páginas das Notas
sobre as Fontes incluem a lista pormenorizada dos textos, entrevistas e
outros recursos que serviram de base a esta obra.
MUITAS das histórias de Francisco, o Grande Reformador irão des-
tacar-se pela nova luz lançada sobre áreas controversas ou episódios
significativos da vida de Francisco. Existe, porém, um fio narrativo que
as interliga e que se consubstancia no título: o de um líder da Igreja
motivado desde muito novo a atuar como reformador e que dispôs da
autoridade para o fazer. Esta não é somente a história de um homem,
mas também a das suas três reformas: na província jesuíta da Argentina,
na Igreja da Argentina e, presentemente, na Igreja Universal. Os seus
guias foram dois teólogos franceses, Yves Congar e Henri de Lubac, que
lhe ensinaram a unificar o povo de Deus através de uma reforma radical
que irá conduzir esse povo à santidade. Se o leitor identificar esse fio e
isso o levar a compreender melhor o pontificado de Francisco, este livro
atingiu seu objetivo.
PRÓLOGO 19
Os episódios e perspetivas mais marcantes destas páginas têm na
sua origem encontros bastante calorosos e emotivos na Argentina, em
Roma e outros locais. Muitos deles estão referidos nas Notas sobre as
Fontes; contudo, eu gostaria de agradecer genericamente a todos aqueles
— incluindo jesuítas, cardeais e confidentes de Jorge Bergoglio, alguns
dos quais preferem não ser identificados — a quem a minha investiga-
ção conduziu a terrenos mais sensíveis e complexos, bem como àqueles
que me confiaram factos que poderiam facilmente ser utilizados de for-
ma indevida. Ainda que eventualmente possa chegar a conclusões das
quais discordem, eu espero que este livro possa compensar a confiança
que depositaram em mim.
Entre os entrevistados mais inspiradores e confiantes encontra-se
o bispo Tony Palmer, um dos filhos espirituais do Papa Francisco,
a quem encontramos no capítulo 9 e também no Epílogo. Palmer, um
combatente incansável da unidade entre as igrejas, foi a força motriz
nos bastidores de um acordo a ser elaborado entre católicos e evan-
gélicos, com o apoio do Papa, cujos antecedentes são narrados nestas
páginas. Tony fornecia-me novos dados sobre os desenvolvimentos
históricos, precisamente na altura em que decorria a fase de edição
do livro, quando eu soube da sua morte num acidente de moto, a 20 de
julho de 2014. Seja como for, tenho a certeza de que o seu desapareci-
mento não colocará um fim ao trabalho que ele e Francisco iniciaram.
UM
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE
[1936–1957]
o primEiro papa descendente de imigrantes no Novo Mundo escolheu
como destino da primeira viagem a partir de Roma uma pequena
ilha italiana, cujas praias deslumbrantes acolheram ao longo de anos
milhares de corpos intumescidos, trazidos pela maré. Pouco tempo
decorrido após a sua eleição a 13 de março de 2013, Francisco soube
através dos jornais que mais de 25 000 norte-africanos tinham pere-
cido desta forma, ultrapassando de longe os 6000 mortos na travessia
do deserto dos Estados Unidos a partir do México. Como conceber tal
coisa? Chocado por poucos parecerem ligar ao facto ou preocuparem-
-se com ele, Francisco resolveu fazer de Lampedusa, a quase trezentos
quilómetros da costa de África, o destino da sua primeira visita papal —
à periferia da Europa. Ali, em 8 de julho, ele chorou os mortos e fez da
emigração uma questão do direito à vida.
A missa que celebrou no campo desportivo da ilha correspondeu
a uma eucaristia penitencial, onde se implorava o perdão. Na homilia,
ele invocou a famosa pergunta de Deus a Caim no livro do Génesis
— Onde está o teu irmão? — inquirindo: «Quem é o responsável por
este sangue?» Falando a partir de um altar construído com a madei-
ra de uma das balsas afundadas, e sustendo o solidéu branco contra o
vento, ele referiu que lhe vinha à memória uma personagem chamada
L’Innominato do romance de Alexandro Manzoni, Os Noivos: um tirano
22 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
sem nome nem rosto. De seguida, abordou a parábola de Jesus sobre
o Bom Samaritano, traçando uma analogia entre «nós» — ele inclui-
-se sempre a si próprio — e a insensibilidade do levita e do sacerdote
que passaram ao largo: «Vemos o nosso irmão meio morto na berma
da estrada, e talvez digamos para nós próprios, “pobre desgraçado…!”,
para depois seguirmos em frente», conjeturou Francisco. Contudo,
a verdadeira ferroada residiu na denúncia do que apelidou de «cul-
tura do conforto que nos leva a pensar unicamente em nós, que nos
torna insensíveis aos gritos dos outros». Ela faz com que as pessoas
vivam atualmente em «bolhas de sabão». Desta forma, dizia Francisco,
«globalizámos a indiferença».
O novo Papa conseguira atingir aqueles que viviam numa zona de
conforto, estabelecendo uma ligação entre quem gozava de bem-estar
e os emigrantes pobres que morriam no mar. Mas ele tinha a consciên-
cia de que a culpa por si só não bastava.
Francisco era membro da Companhia de Jesus, e embora tivesse
exercido as funções de bispo há muito tempo e fosse dispensado dos vo-
tos de jesuíta, continuou a colocar «SJ»* a seguir ao seu nome. Ele esta-
va profundamente imbuído da espiritualidade do fundador da Compa-
nhia, Santo Inácio de Loiola, criador dos famosos Exercícios Espirituais,
que incitava as pessoas em oração a rogar ao Espírito Santo [ou, segun-
do as suas palavras, «a pedir a graça»] para sentir o que era preciso —
o prazer de ver Jesus, por exemplo; ou a reverência perante a multidão; ou
a tristeza aos pés da cruz. Nesse momento, em Lampedusa, o primeiro
Papa jesuíta conduzia o mundo num exercício espiritual, exortando
cada ouvinte a «pedir a graça de chorar perante a indiferença, de chorar
perante a crueldade do mundo que reside em nós e em quem toma
decisões anónimas que originam dramas como este.» Ele convidava o
mundo a sentir, porque sem a intervenção do coração nada podia mudar.
De repente, Lampedusa e a tragédia que ela representava surgiam
nas palavras dos apresentadores dos noticiários, os quais aludiam
a embarcações instáveis e sobrecarregadas de seres humanos pelos seus
traficantes, referindo que esses veículos de esperança se transformavam
em ratoeiras mortais flutuantes. Três meses após a visita papal, 366 so-
malis e eritreus tiveram um fim semelhante próximo de Lampedusa,
* Da designação latina Societatis Jesu [ou Iesu]. [N. da T.]
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 23
quando deflagrou um incêndio na sua embarcação. Desta vez, o facto
despertou as atenções do mundo. Um ano mais tarde, ele continuava na
ordem do dia quando um grupo de mergulhadores localizou os despojos
do barco com os corpos ainda amontoados no interior.
Francisco, que chegara a Assis um dia após o incêndio da embarca-
ção, decretou um «dia de tristeza» em honra das vítimas. Os políticos
e os editores dos jornais, atentos a um novo constrangimento, come-
çaram a dizer que talvez a política de emigração não dissesse apenas
respeito à forma de manter as pessoas afastadas; ela também poderia
relacionar-se com a forma de fazer as pessoas chegar. Um ano depois,
a União Europeia criou uma nova agência, a Frontex, cujos navios e
helicópteros iriam dedicar-se a salvar emigrantes em perigo. Francisco
fizera rebentar uma bolha de sabão.
Mais tarde, no mesmo ano, ele deslocou-se a outra ilha na periferia
da Europa, celebrando uma missa no santuário de Nossa Senhora de
Bonaria, na Sardenha, de onde derivou o nome da capital argentina. Ali,
dirigiu-se aos mineiros desempregados, dizendo-lhes que sabia o que
era passar por uma crise financeira já que os seus pais tinham vivido
durante a depressão mundial e lhe falavam muitas vezes sobre ela. Disse-
-lhes ter aprendido que «onde não há trabalho, não existe dignidade»,
acrescentando ser o «sistema económico a causa desta tragédia, um sis-
tema económico que tem no seu centro um ídolo chamado dinheiro.»
Emigração e trabalho: estas foram as questões com que Francisco
iniciou o seu pontificado, as questões que preocupavam os pobres.
Ele sabia o que custava trocar um país por outro, «a fortaleza de
espírito, bem como o grande sofrimento que emanam de estar desen-
raizado», conforme referiu, aludindo à sua avó Rosa. Francisco nas-
ceu numa nação americana forjada por milhões de desenraizamentos
semelhantes. A nostalgia — formada pelos termos gregos nostos e algas,
o desejo de regressar a um lugar — corria-lhe nas veias. Quando se per-
de isso, afirmou ele em 2010, abandonamos os nossos idosos: cuidar das
pessoas mais velhas equivale a honrar o passado, o sítio de onde viemos.
Em Lampedusa, ele fez uma travessia de barco para depositar uma
coroa de flores no mar. Havia uma razão para a destino dos emigrantes
o afetar, tal como referiu na sua homilia na ilha, «como um espinho
doloroso no meu coração.» Talvez ele lhe recordasse um tempo muito
24 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
anterior ao seu nascimento, quando quinhentos passageiros, quase
todos viajando em terceira classe, tinham morrido afogados na costa
nordeste do Brasil.
Isto aconteceu em outubro de 1927, quando um navio italiano de
passageiros naufragou a caminho de Buenos Aires, depois de um veio
propulsor partido danificar o casco. O Principessa Mafalda contava-se
entre os navios mais rápidos e luxuosos da época, sendo o transporte de
eleição para celebridades como o intérprete de tangos argentino Carlos
Gardel. Era o Titanic italiano, uma catástrofe em arrogância e incompe-
tência humanas.
Os avós de Jorge Mario, Giovanni Angelo Bergoglio e Rosa Marga-
rita Vasallo di Bergoglio, a par dos seus seis filhos — entre os quais,
Mario, o pai de Francisco — dispunham de bilhetes de terceira classe
para esse navio. No entanto, como o montante da venda do seu café
em Turim tinha demorado mais tempo a chegar do que o expetável,
à última hora eles trocaram-nos por passagens para o Giulio Cesare um
mês mais tarde.
A sua salvação por um golpe de sorte fazia parte do saber tradicional
da família Bergoglio.
Ao emigrarem para a Argentina, os Bergoglios seguiram o caminho
traçado por centenas de milhares de italianos antes deles.
De acordo com uma antiga piada latino-americana, enquanto os
mexicanos descendem dos astecas e os peruanos dos incas, os argentinos
descendem dos navios. No período da emigração massiva para a Argen-
tina, entre 1880 e 1930, a quantidade de barcos procedentes de Itália era
tal, que o escritor Jorge Luis Borges costumava comentar na brincadeira
que ele não era um argentino puro porque não tinha sangue italiano.
Uma consulta à lista telefónica de Buenos Aires aponta no mesmo senti-
do, tal como sucede com a lista dos seus cardeais-arcebispos no século xx.
Apenas um [Aramburu] era de ascendência espanhola; os restantes —
Copello, Caggiano, Quarracino, Bergoglio — eram todos tanos, a sua de-
signação no calão argentino. Os italianos não trouxeram às cidades ar-
gentinas apenas as trattorias, os típicos restaurantes italianos, as pizzas,
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 25
os gelados refinados e o hábito dos nhoques na última sexta-feira de cada
mês, já que também legaram aos argentinos a musicalidade na fala,
imediatamente reconhecível, a par do seu famoso e empático gesticular
de braços.
Naquele que é um hábito comum aos emigrantes, os recém-
-chegados iam juntar-se a familiares. Os três irmãos de Giovanni
Angelo Bergoglio tinham prosperado no Panamá, desde a sua chegada
ao florescente porto fluvial a jusante de Buenos Aires, sete anos antes.
Os proveitos da sua empresa de pavimentação possibilitaram aos tios
do futuro Papa edificar uma moradia impressionante de quatro anda-
res, complementada com belo torreão e a única na cidade a dispor
de elevador. A família alcunhou-a de Palazzo Bergoglio.
Para Giovanni Angelo e Rosa, esta era a segunda grande mudança
em poucos anos. Os dois tinham casado e criado os seis filhos na cidade
de Portacamaro, onde o apelido Bergoglio é muito comum, na província
de Asti da região de Piemonte a noroeste de Itália. Ambos eram de ori-
gem rural mas, à semelhança de muitos outros na altura, ascenderam ao
estatuto da classe média graças à instrução que deram à sua prole. Em
1920, deslocaram-se para Turim, cinquenta e quatro quilómetros para
oeste, onde a exploração de um café lhes permitia à justa pagar a educação
dos filhos. Mario, nascido em 1908, o seu único filho varão e pai do futu-
ro Papa, era um raggionere, um contabilista ao serviço da Banca di Italia.
Em janeiro de 1928, quando os Bergoglios desembarcaram em Buenos
Aires, após uma travessia de cinco semanas, o modelo de crescimento
impulsionado pelas exportações que tornou o país na oitava potência
económica mundial, mais à semelhança do Canadá e da Austrália que
da América Latina, estava prestes a chegar a fim. No ano seguinte,
o colapso do mercado de ações de Wall Street que desencadeou a Grande
Depressão, acabaria por deixá-los numa situação precária, obrigando-os
a reiniciarem uma nova vida. Esta recessão e a guerra mundial que se
lhe seguiu uma década mais tarde iriam alterar o lugar da Argentina no
mundo e dar origem a uma nova turbulência na economia e na política.
No entanto, esse novo horizonte ainda era invisível para os pais e as
irmãs de Mario, ao abandonarem abandonaram o Giulio Cesare em di-
reção ao calor tórrido do meio do verão de Buenos Aires. Rosa aconche-
gava o casaco de pele de raposa ao corpo, como se estivesse no inverno,
26 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
já que ele trazia o resultado da venda do seu café de Turim cozido no
forro. Os Bergoglios mal tiveram tempo para apreciar as grandes aveni-
das e edifícios monumentais da Buenos Aires da belle époque, a «Paris
da América do Sul», antes de se apressarem a seguir rio acima, em
direção a Entre Ríos e a uma nova vida.
Embora a Argentina se tornasse independente de Espanha em 1816,
ela continuou a ser um estado-nação apenas no papel ao longo de várias
décadas. Na ausência de uma autoridade central, a ideia de uma nação
unida governada a partir de Buenos Aires por advogados e comercian-
tes — a aspiração dos designados unitaristas — apenas contribuiu para
gerar o caos. Entre as décadas de 1830 e 1860, o país correspondia a uma
confederação de províncias autónomas a cargo dos caudilhos, criadores
de gado com exércitos de vaqueiros ou gaúchos. Juan Manuel de Rosas,
na província de Buenos Aires, Estanislao López, em Santa Fe, e Facundo
Quiroga, em La Rioja, destacaram-se como os caudilhos mais importan-
tes. Nos seus vastos ranchos de gado bovino e ovino, alguns com a dimen-
são de algumas nações europeias, concentrava-se à época a maior parte
do poder e da riqueza nacionais. Dos três, o mais abastado, bem-sucedido
e duradouro foi Rosas, o «renovador das leis» que, como um Napoleão
crioulo, se manteve na sua posição no período de 1835 a 1852. Apesar da
reputação terrível de homem disciplinador, ele era um administrador ins-
truído e competente, e um líder pragmático, baseando a sua força política
numa relação estreita com os gaúchos. Compreendia as suas necessida-
des e cultura, e também a importância de avaliar qual o momento certo
para agir. Mais tarde, Bergoglio iria deduzir os seus próprios princípios
da boa governação a partir de uma carta dirigida por Rosas a Quiroga,
em particular, o de que a «realidade é mais importante que a ideia.»
Apenas com a derrota de Rosas em 1852 — surpreendentemente,
o Tigre das Pampas retirou-se com a mulher para uma casa de campo
em Southampton, em Inglaterra — os arquitetos do projeto liberal
tiveram a liberdade de reverter esse princípio. O que se seguiu foi
a tentativa de enxertar uma nova ideia de nação, um país moderno,
liberal e esclarecido, na essência de uma colónia espanhola católica.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 27
A economia de exportação em fase de arranque fazia deslocar
o poder e a riqueza para as cidades, onde reinavam os advogados e os
comerciantes unitários. Todavia, apesar do consenso relativamente
a uma constituição nacional, aquilo que se seguiu foram novos anos
de sublevações por parte dos caudilhos contra o governo central, até à
década de 1870, quando a Guerra da Tripla Aliança entre a Argentina e
o Paraguai vizinho ajudou a resolver a questão. Ao regressar vitorioso
do conflito, o exército nacional pôde então começar a impor a vontade
do Estado.
Deu-se início à construção de escolas e caminhos-de-ferro, e os
imigrantes começaram a chegar. O presidente Domingo F. Sarmiento
tinha como ambição europeizar a Argentina. O seu sonho era ver
os protestantes do norte da Europa a preencher os espaços vazios da
Argentina, relegando para o passado a designada barbárie de caudilhos
e gaúchos, e empreender uma civilização de modernidade e de progres-
so, com a Argentina cada vez mais integrada na economia internacional.
Neste projeto, as estrelas-guias — do ponto de vista económico, político
e cultural — eram a Grã-Bretanha e a França; avançar na sua direção era
uma indicação de progresso, emancipando a Argentina dos seus antece-
dentes hispânicos, coloniais e miscigenados de um passado retrógrado.
É neste embate entre a modernidade e o passado, entre o estrangeiro
e o nacional, o novo e o velho, que as guerras culturais da Argentina do
século xx têm a sua génese.
A classe dirigente argentina era maioritariamente crioula — ou seja,
formada por espanhóis nascidos na América latina — e a sua mentali-
dade não diferia em muito da dos Jeffersons e Washingtons dos Estados
Unidos. Contudo, a elite liberal argentina não tinha como religião
o deísmo ou o unitarismo, mas antes a maçonaria, a qual fornecia
aos seus apoiantes uma base institucional para competir com a Igreja
Católica. A sua mentalidade moldava-se pelas ideias do darwinismo
social no que dizia respeito à ciência e à superioridade da cultura branca
[de preferência, protestante]. Sarmiento, a par de outros presidentes do
final do século xix, sentia-se desiludido por a maior parte dos imigran-
tes que chegavam serem italianos e espanhóis, e não suíços ou alemães;
e encarava a derrota dos bárbaros das planícies como um triunfo inevi-
tável do progresso racial.
28 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Nesta perspetiva liberal e progressista, a Igreja Católica — a par de
todas as religiões — era uma coisa do passado, uma afronta à razão,
a crença no mundo rural e miscigenado que a Argentina moderna se
esforçava por deixar para trás. Contudo, o seu objetivo não era erradicar
a Igreja, mas apenas controlá-la. O povo não estava preparado para um
progresso científico tão excessivo, dizia Juan Alberdi, o principal mentor
da constituição de 1853, e por enquanto, a sanção divina da moralidade
religiosa era «o mecanismo mais eficaz disponível para moralizar
e civilizar a nossa gente.»
À semelhança dos Estados Unidos, em que o mundo dos cowboys
do velho Oeste estava a ser romanceado no momento exato em que dei-
xava de existir, as histórias da vida dos gaúchos nas pampas começaram
a popularizar-se na Argentina na década de 1870. O poema épico El
Gaucho Martín Fierro de José Hernández, um dos preferidos de Bergoglio
e considerado o paradigma perfeito do argentino é um protesto contra
os maus tratos infligidos à população rural pobre pelos proprietários de
terras e oficiais do exército e, em simultâneo, o enaltecimento de uma
forma de vida que se extinguia face à investida do arame farpado e dos
estrangeiros. Ao queixar-se dos imigrantes italianos, Fierro diz: «Gosta-
va de saber para que precisa o Governo/daquela equipa de gringos/E se
eles pensam que servem para alguma coisa?/Não sabem montar a cavalo
ou laçar um bezerro,/E precisam sempre de ajuda/Para fazer alguma
coisa». Os padres de Buenos Aires referem que Bergoglio conseguia re-
citar de cor longas passagens do Martín Fierro. Em 2002, na altura em
que era cardeal, ele invocou-o no meio de uma crise devastadora, para
ajudar a repensar o país que se esperava que a Argentina viesse a ser.
Em 1880, o federalismo já perdera toda a sua influência, e o pro-
jeto liberal — centralizador, modernizador e capitalista — não tinha
um opositor à altura. Buenos Aires foi eleita a capital federal, enquan-
to a cidade de La Plata passava a ser a capital da província de Buenos
Aires. Promoveram-se eleições nacionais: os presidentes concluíram os
seus mandatos de seis anos, dando o lugar a sucessores eleitos. Como
democracia, o processo estava longe de ser perfeito: até 1912, apenas
podiam votar cidadãos naturalizados do sexo masculino e que fossem
proprietários de terras, e o Partido Autonomista Nacional [PAN], um par-
tido único resultante de uma coligação de forças provinciais, recorreu
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 29
a todos os expedientes para garantir a sua perpetuação. Havia, no entan-
to, estabilidade, e o que se seguiu foram cinco décadas de crescimento
acelerado: os investimentos e os bens industriais afluíam em massa,
a par de milhões de imigrantes do sul da Europa, ao mesmo tempo que
o caudal de exportações engrossava, principalmente em trigo, carne e
madeira. Nesta primeira era da globalização, despoletada por uma mas-
siva redução de custos, com a máquina a vapor e os navios de propulsão
a hélice a exercerem o mesmo efeito do microchip no tempo presente,
a Argentina era o tigre económico do seu tempo, aquilo que os seus pro-
motores diziam ser uma prova das virtudes do mercado livre capitalista.
Os economistas chamam a isto vantagem comparativa: aquilo que
a Argentina produzia com sucesso e a baixo custo ia ao encontro das
necessidades dos países europeus, e vice-versa. A acompanhar o aumento
da procura das exportações argentinas, registava-se o alargamento das
fronteiras; em 1879, a chamada Conquista do Deserto extorquiu oito
milhões de hectares de terra aos povos indígenas mapuches e tehuelches,
apenas para os depositar nas mãos de quatrocentos proprietários rurais.
À medida que largas faixas de território ficavam disponíveis, a Argentina
aumentava o envio de géneros alimentícios e matérias-primas para
as indústrias e população urbana em crescente expansão na Europa,
recorrendo em simultâneo às receitas em divisas provenientes das expor-
tações para adquirir a tecnologia e bens industriais necessários ao seu
desenvolvimento. A Grã-Bretanha, na altura a maior fonte de capital e
potência económica do mundo, era o principal mercado da Argentina,
o seu maior investidor e fornecedor a nível industrial. Os capitalis-
tas britânicos investiam ou geriam os caminhos-de-ferro, o telégrafo,
a iluminação a gás nas ruas, o serviço postal e os elétricos de Buenos
Aires, bem como o primeiro serviço de metropolitano da América
Latina, a linha A do subte de Buenos Aires, que décadas mais tarde teria
o cardeal Bergoglio como um dos seus passageiros mais fiéis.
A par de Nova Iorque — e chegando a ultrapassar Nova Iorque du-
rante alguns anos — Buenos Aires foi o principal destino de uma vasta
massa migratória vinda do outro lado do Atlântico. Na década de 1880,
1,5 milhões de pessoas entraram na Argentina, e este número ascen-
deu a uns impressionantes 4,5 milhões entre 1890 e 1914. Mais de um
milhão de italianos e cerca de 800 000 espanhóis empreenderam aqui
30 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
uma nova vida, em paralelo com grandes comunidades de judeus po-
lacos e muçulmanos sírios, e ainda criadores de ovinos galeses [que se
fixaram a sul, na Patagónia], e protestantes suíços [estabelecidos em
Santa Fe]. Só em Buenos Aires, a população aumentou de 180 000,
em 1869, para 1,5 milhões, em 1914. Por norma, os imigrantes eram
instruídos e dotados de capacidade de adaptação a nível social; tinham
boas aptidões para a criação de pequenos negócios e não tardaram a
ultrapassar em número os proprietários de indústrias locais. Isto acon-
teceu sobretudo a partir de 1930, quando se verificou uma queda abrupta
nas exportações e importações argentinas, e as pessoas começaram
a produzir localmente aquilo que era importado.
Os principais beneficiários da era de ouro da Argentina foram as
famílias de advogados, de proprietários rurais e de comerciantes com
terras e capital, a quem a população designava por «oligarquia». Muitas
delas dispunham de fortunas impressionantes, quais milionários do
Texas do seu tempo, destacando-se pela sua elegância e extravagância
[durante algum tempo, os franceses usaram a expressão «rico como um
argentino»]. Abandonaram o centro histórico de Buenos Aires, húmido
e propenso ao aparecimento de mosquitos, para edificarem mansões
sumptuosas nos estilos franceses mais recentes na zona norte da
cidade, refrescada pelo rio de La Plata e conhecida por Barrio Norte.
Em contraste, a zona sul da cidade, banhada pelas águas fétidas do Río
Riachuelo, era o ponto de partida para os que vinham do interior e se
amontoavam em casas baratas apelidadas de conventillos, um terreno
propício ao crime, às doenças e à música sensual designada por el tango.
Nas últimas décadas do século xx, a maioria dos bairros pobres, as cha-
madas villas miséria, estava concentrada aqui.
Os imigrantes europeus viviam melhor que os oriundos do interior.
Tal como os Bergoglios, ao chegarem, dispunham do acesso à capital e ao
conhecimento, instalando-se no centro da cidade, em zonas que abran-
giam desde a classe operária à pequena burguesia. Nesta perspetiva,
Jorge, um filho de imigrantes italianos, nascido no barrio de Flores, uma
zona de classe média baixa no centro da cidade nesta altura, era uma
pessoa extraordinariamente comum. Devido a esta vasta imigração
europeia de trabalhadores especializados, a Argentina, à semelhança
dos Estados Unidos, passou a ser uma nação dotada de uma grande
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 31
classe média que colocava uma grande ênfase no trabalho árduo e no
progresso; e, também aqui, os Bergoglio correspondiam ao estereótipo
dos imigrantes típicos da Argentina.
os avós de Jorge e os seus filhos estavam no Panamá há apenas
dois anos quando se deu a recessão mundial. A morte por leucemia
de Giovanni Lorenzo, o irmão mais velho e o principal responsável da
empresa de pavimentação, a par da crise económica que atravessou o
seu pior momento em 1932, arruinou o negócio. O Palazzo Bergoglio
foi vendido por uma ninharia e o mesmo aconteceu ao jazigo de már-
more da família. O irmão mais novo seguiu para o Brasil, enquanto
Giovanni Angelo e o outro irmão rumavam para Buenos Aires com
a família.
Ali, recorreram à ajuda de um sacerdote a quem o filho de Giovanni,
Mario — pai do futuro Papa — conhecera no decurso das suas viagens
a Buenos Aires. O padre Enrico Pozzoli pertencia aos Salesianos de
Dom Bosco, uma congregação religiosa italiana dedicada ao ensino, que
tinha um papel destacado junto da classes trabalhadoras urbanas,
tanto em Itália como nas Américas. Mario já conhecia os Salesianos
em Turim e contactara com eles alguns meses depois de vir para
a Argentina, alojando-se na sua residencial sempre que ia a Buenos
Aires. Foi aí que conheceu Dom Enrico, o qual se tornou o seu confes-
sor a partir de 1929, bem como mentor, conselheiro e diretor espiritual.
No ano de 1932, quando os Bergoglios chegaram sem dinheiro
a Buenos Aires, Dom Enrico conseguiu que lhes fosse concedido um
empréstimo de 2000 pesos, o qual a família utilizou para comprar uma
confiteria, onde vendia café e bolos. Mario dava a sua ajuda, fazendo
a entrega de bolos de bicicleta, até a economia começar a recuperar e ele
passar a trabalhar como contabilista para várias empresas de pequena
dimensão. Nessa altura, em Buenos Aires, a Igreja era uma tábua de sal-
vação tanto para Mario como para outras famílias, promovendo ajudas
solidárias e criando redes de apoio, à semelhança do que viria a acon-
tecer setenta anos mais tarde, sob a mão do cardeal Bergoglio durante
a violenta crise de 2002-2003.
32 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Mario integrava um círculo de homens jovens que tinha uma liga-
ção próxima com Dom Enrico, encontrando-se habitualmente com ele
na Igreja Salesiana de Santo Antonio de Padua, no bairro operário de
Almagro. Do grupo faziam parte os dois irmãos Sívori Sturla, que apre-
sentaram a sua irmã Regina a Mario numa ida à igreja, num domingo.
Regina era filha de Francisco, um descendente de imigrantes genoveses
nascido na Argentina, e de María Sívori Sturla, os quais viviam a poucos
quarteirões da igreja. Um dos tios de Regina era um amigo próximo
de Dom Enrico, partilhando com ele a paixão pela fotografia; os outros
tios eram membros ativos dos Círculos de Trabalhadores Católicos. Foi
este mundo dinâmico composto por elementos da classe trabalhadora
italiana e católica que moldou a infância de Jorge. Ele girava em torno
dos padres salesianos, que eram professores e confessores reputados.
As crianças aprendiam a pedir a bênção de Nossa Senhora Auxiliadora
sempre que se despediam de um salesiano.
Mario Bergoglio casou com Regina Sívori em 12 de dezembro de
1935. O casal teve cinco filhos, sendo Jorge o primogénito. Até à sua
morte, em 1916, Dom Enrico foi o padre de família, tanto dos Bergoglios
como dos Sívoris. «Se vivemos como verdadeiros católicos na minha fa-
mília, a ele o devemos», escreveu Jorge mais tarde. Dom Enrico batizou
Jorge no Dia de Natal do ano de 1936, na basílica de Almagro de Nossa
Senhora Auxiliadora, oito dias após o seu nascimento a 17 de dezembro,
sendo os padrinhos a sua avó paterna, Rosa, e o avô materno, Francisco.
Ainda que tivesse estado ausente na altura do nascimento e batismo do
segundo filho, Dom Enrico batizou os três que se seguiram.
Nesta altura, Mario prestava serviços de contabilidade a várias
pequenas empresas em Flores. Ele e Regina tinham alugado uma casa
modesta, a casa chorizo, que compraram pouco tempo depois. A habita-
ção tinha dois pisos, ficando a cozinha e a sala de estar em baixo, e os
quartos no piso superior. Foi ali, no número 531 da calle Membrillar,
que Jorge Mario nasceu, seguido em breve por dois irmãos e duas
irmãs: Oscar, Marta, Alberto e María Elena, a mais nova, nascida em
1948. Os avós paternos, Giovanni e Rosa Angelo Bergoglio, viviam ali
próximo, em Flores. Os avós maternos, Giovanni e María Sívori, ficaram
em Almagro, a quatro quarteirões da igreja onde os pais de Jorge se
conheceram.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 33
Na altura da infância de Jorge, era possível observar os sinais das
terras férteis que deram o nome a Flores. Os moradores mais antigos
lembram-se que o ditador Juan Manuel de Rosas possuía ali uma quinta
e que Flores foi a primeira e única paragem durante a viagem inaugural
do comboio na Argentina, em 1857. A estação foi improvisada para a
ocasião, localizando-se nessa altura na periferia de Buenos Aires, e mes-
mo na década de 1940, quando Jorge crescia ali, ainda estava bastante
afastada do centro. Na atualidade, quando a cidade conta com dez mi-
lhões de habitantes, a zona já dá a sensação de ser mais central e típica
da classe média do que antes: agora, as ruas estão ladeadas de belas ca-
sonas decoradas com sacadas de ferro forjado e arabescos, abrigando no
interior pequenos pátios ou jardins. Mas naquela época, as casas eram
simples, dotadas de um ou dois pisos apenas, e as ruas enchiam-se de
lama sempre que chovia.
Jorge passou os primeiros vinte anos da sua vida nessa pequena casa
da calle Membrillar, com a sua vida centrada principalmente em Flores
e Almagro. Mesmo depois de sair de casa, foram poucas as vezes em
que ele esteve muito afastado. Durante os seus trinta e três anos como
jesuíta, passou a maior parte do tempo em San Miguel, na província de
Buenos Aires, a pouco mais de uma hora de distância; já na casa
dos cinquenta anos, regressou a Flores como bispo auxiliar; e depois
dos sessenta anos, quando exercia a função de arcebispo, vivia na
Plaza de Mayo a leste de Flores, a meia hora de distância de autocarro ou
metropolitano. Antes de ser eleito o vigário de Cristo na terra, ele pla-
neava passar os restantes anos da sua vida em Flores, mais especifica-
mente no quarto número 13, no primeiro piso da casa de repouso do
clero, na calle Condarco 581, o qual já estava reservado para ele.
Na direção sul, a sete quarteirões da casa de Bergoglio, ficava a igreja
da sua paróquia, a impressionante Basílica de San José de Flores, onde
se realizou o funeral do primeiro governador de Buenos Aires, Manuel
Dorrego. Foi ali, aos dezassete anos de idade, que Jorge viveu uma
experiência na confissão que lhe revelou a sua vocação, e sempre que lá
regressava na qualidade de arcebispo, beijava o confessionário de
madeira ricamente decorado onde Deus o tinha surpreendido.
A basílica situa-se na avenida Rivadavia, que era o camino real du-
rante a época colonial, ligando Buenos Aires ao Alto Peru. Mais tarde,
34 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
passou a ser a artéria principal este-oeste, estabelecendo a fronteira
entre a zona mais abastada de Buenos Aires, a norte, e a zona mais
pobre, a sul. No subsolo, a Rivadavia é percorrida pelo metropolitano
em direção à Plaza de Mayo.
A norte da rua Membrillar, a uma distância de poucos quarteirões, fica
o convento das Irmãs da Misericórdia Divina, dotado de uma pequena ca-
pela onde os Bergoglios costumavam assistir à missa. O convento ocupa
integralmente um dos lados da praça à qual deu o seu nome — a Plaza de
La Misericordia. Quando estava no jardim de infância do convento, Jorge
não gostava de ficar dentro da sala de aula, preferindo sempre ir para o
exterior. Hoje em dia, a freiras comentam em ar de gracejo que este foi o
primeiro sinal do que é presentemente o plano do Papa em relação à Igreja.
Uma irmã desta congregação foi uma das três mulheres chave da
infância de Jorge. A irmã Dolores Tortolo preparou-o para a primeira
comunhão [«a formação católica que ela me deu foi equilibrada, otimista,
alegre e responsável», recordou ele mais tarde] aos oito anos de idade.
A irmã Dolores seria para Bergoglio uma fonte de energia quando ele
esteve às portas da morte, já como jovem seminarista, e assistiu à sua
primeira missa no ano de 1969. Sempre que voltava a Flores, como
jesuíta e, mais tarde, como arcebispo, ele visitava-a no convento. Em
2000, esteve presente quando ela foi condecorada por uma vida dedi-
cada ao ensino, referindo na ocasião como as palavras e o exemplo da
irmã lhe tinham mostrado o valor da vida interior e do amor fraterno.
Já no ocaso da vida, quando ela não conseguia mover-se, embora
mantivesse plenamente a sua lucidez, o então cardeal costumava levá-la
em braços para o quarto.
«Então, como era eu em criança?» perguntava-lhe a brincar, enquan-
to a levantava. «Diga às irmãs!»
«Tu eras terrível, terrível, o mais maroto que se pode imaginar!»
exclamava Dolores, enquanto as irmãs riam às gargalhadas. [Quando
ele se ia embora, ela dizia-lhes entre risos que isso não era verdade e que
o Jorgito era sempre um bom rapazinho, feliz e carinhoso. Quando a
irmã Dolores morreu, no ano de 2006, ele passou a noite a rezar junto
ao seu corpo na capela do convento.
As irmãs ensinaram a Jorge o significado da misericórdia de Deus,
algo a que ele aludia permanentemente, adotando como lema para
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 35
o seu bispado as palavras de São Beda, o Venerável, quando Jesus recru-
tou o publicano Mateus, miserando atque eligendo, ou, numa tradução
imperfeita: «Ele viu-o através dos olhos da misericórdia e escolheu-o.»
Bergoglio apreciava o facto de «misericórdia» ter em latim o verbo mi-
serando, criando a partir dali o termo espanhol misericordiando — a ação
do divino, algo que Deus nos faz. «Dejáte misericordiar», diria ele aos
escrupulosos ou dominados pela culpa, «aceita a misericórdia». Este
é um caso típico da forma idiossincrática em que ele se apropriava de
uma palavra para criar um bergoglismo.1
Em julho de 2013, ao falar com os jornalistas no voo de regres-
so do Rio de Janeiro, Francisco proclamou uma nova era, um kairos,
de misericórdia, relembrando que no Evangelho, o pai do Filho Pródigo,
em lugar de chamar a atenção sobre o dinheiro que o filho esbanjou,
organizou uma festa. «Ele não se limitou a esperar por ele; foi ao seu
encontro. Isso é misericórdia, é kairos.»
Ao longo da sua vida, Bergoglio colocou sempre a tónica sobre este
atributo de Deus de tomar a iniciativa, de vir procurar-nos para nos
surpreender com o seu perdão. «Isso corresponde à experiência reli-
giosa: o espanto ao encontrar alguém que esteve sempre à tua espera»,
disse o cardeal em 2010. «Dios ti primerea» acrescentou ele. «Deus chega
primeiro que tu». Primerear é um termo do calão de Buenos Aires que
significa literalmente «primeirar» alguém. Utilizá-lo em relação a Deus
é um bergoglismo que nos faz sorrir ao imaginarmos alguém a correr à
nossa frente para nos tirar descaradamente o lugar que considerávamos
ser nosso.
a maior influência na infância de Jorge Bergoglio foi exercida pela
sua avó Rosa, uma mulher espantosa, dotada de uma fé profunda e de
talento político, com quem ele passou a maior parte dos seus primeiros
cinco anos.
Já em Turim, Rosa participara ativamente na Ação Católica, um mo-
vimento nacional criado pelos bispos italianos, na década de 1920, com
o objetivo de preservar a independência da Igreja face ao Estado totalitá-
rio do ditador fascista Benito Mussolini. Rosa era uma oradora habitual
36 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
que agia em estreita ligação com as mulheres dirigentes da Ação Cató-
lica daquele tempo. Os temas das suas alocuções podem não ter sido
revolucionários — Jorge guardou um dos seus panfletos, cujo título
era «São José na Vida da Mulher Solteira, Viúva e Casada» — contudo,
o fascismo considerava a Ação Católica um oponente do Estado, pelos
que os seus oradores eram constantemente ameaçados e reprimidos,
o que acabou por levar o Papa Pio XI a redigir em 1931 a carta pungente
e antitotalitária, Non Abbiamo Bisogno. Quando os fascistas interditavam
o local de reunião onde ela iria falar, Rosa subia para cima de uma caixa
de sabão na rua, numa atitude de desafio aos esbirros; houve uma vez
em que acedeu ao púlpito da sua igreja para condenar publicamente
Mussolini. O ditador foi uma das razões que a levaram a emigrar.
«As recordações mais marcantes da minha infância têm a ver com
a vida que eu partilhava entre a casa dos meus pais e a dos meus avós»,
refere Bergoglio. «A primeira fase da minha infância, desde que eu ti-
nha um ano de idade, foi passada com a minha avó». Rosa começou
a tomar conta de Jorge, depois do nascimento do seu irmão Oscar, indo
buscá-lo de manhã e trazendo-o à tarde. Rosa e Giovanni falavam entre
si em piemontês, que Jorge aprendeu com eles — «Tive o privilégio de
compartilhar a língua das suas memórias» — a ponto de hoje ele conse-
guir recitar grande parte da poesia romântica do grande poeta piemontês,
Nino Costa. Como os seus pais tinham o grande desejo de se integrar,
o que os levava a minimizar a importância das suas origens, os avós
foram fundamentais para o seu sentido de identidade como argenti-
no de antecedentes italianos. Pelo contrário, Mario, o seu pai, falava
unicamente em espanhol; ele era o imigrante que chegava, que procu-
rava ser aceite, e que jamais recordava Piemonte com saudades, «o que
quer dizer que ele as devia sentir», afirmou Bergoglio mais parte, «já
que ele as reprimia por alguma razão.»
Bergoglio esteve sempre convicto da importância vital dos avós — e
da avó, em particular — como guardiães de uma reserva valiosa, fre-
quentemente ignorada ou rejeitada pelos pais. «Tive a sorte de conhecer
os meus quatro avós», recordou em 2011. «A sabedoria dos mais velhos
ajudou-me muito e é por isso que os venero». Em 2012, ele dirigiu ao
padre Isasmendi da rádio comunitária da Villa 21, um bairro pobre,
as seguintes palavras:
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 37
A avó representa a casa e a família, e o avô também, mas isso
acontece sobretudo com a avó; é como se ela fosse uma reserva.
Uma reserva moral, religiosa e cultural. É ela a transmissora da
história global. A mãe e o pai estão ali, a trabalhar, dedicando-se
a isto e àquilo, e tendo um milhar de coisas para fazer. A avó está
mais dentro de casa; e o avô também. Eles falam-nos de coisas
do antigamente. O meu avô costumava contar-me histórias sobre
a guerra de 1914, factos que ele tinha vivido. É a vida tal como
a viveram que eles nos contam, e não histórias dos livros, mas
as suas próprias histórias, as suas próprias vidas. Era isto que eu
queria dizer aos avós que nos estão a ouvir. Contém os factos
da vida às crianças, para que elas saibam como a vida é.
Rosa era uma transmissora de fé prodigiosa. Falou a Jorge sobre os
santos e ensinou-o a rezar o terço; levava ainda os netos a ver o Cristo
crucificado nas sextas-feiras santas, explicando-lhes como ele tinha
morrido e dizendo-lhes que ele iria ressuscitar no domingo. A sua fé
levava-a a ultrapassar os limites da religião para encontrar a bondade
humana. Se, em casa, o catolicismo levava os pais a serem acentua-
damente puritanos — «Quando alguém próximo da nossa família se
divorciava ou separava, deixava de poder entrar em nossa casa» —
a avó transmitia a Jorge uma mensagem diferente. Quando ele tinha
cinco ou seis anos, viu duas mulheres do Exército de Salvação a passar
na rua. «Perguntei-lhe se eram freiras, devido aos pequenos chapéus
que costumavam usar. E ela respondeu, “Não, mas são boas pessoas”».
Essa recordação fê-lo reconhecer ali «a sabedoria da verdadeira religião.
Aquelas eram boas mulheres que praticavam boas ações.»
Bergoglio lembra-se de Rosa o levar à missa no oratório dos sale-
sianos de São Francisco de Sales, na rua Hipólito Yrigoyen, e de ela
lhe contar que o cardeal Eugenio Pacelli estivera ali em 1934 a presidir
ao Congresso Eucarístico Internacional de Buenos Aires. Ela falava-lhe
com frequência desse acontecimento espantoso, pegando em velhos
recortes de jornal e contando-lhe que mais de um milhão de pessoas ti-
nha comungado no dia 12 de outubro e que quase metade eram homens
[algo impressionante para a época, quando havia muito mais mulheres
do que homens a frequentar a igreja]; e falava-lhe ainda das centenas
38 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
de milhares de pessoas que oravam nas ruas da cidade e que se alinha-
vam em filas na Avenida de Mayo para se confessarem. Os Bergoglios
ficaram emocionados quando Pacelli foi eleito Pio XII em 1939. Pouco
tempo depois, a Alemanha invadia a Polónia e a Segunda Guerra Mun-
dial eclodia, deixando muitos dos que tinham emigrado para Buenos
Aires privados de notícias dos familiares durante vários anos. Jorge
recorda-se que tinha nove anos quando os italianos comemoraram o fim
da guerra, correndo a partilhar notícias dos seus familiares a seguir à
missa na Basílica de Flores.
A avó também o ensinou a apreciar a literatura italiana, lendo-lhe
nomeadamente o grande romance de Alessandro Manzoni, I Promessi
Sposi [Os Noivos], cuja famosa introdução [«Aquele braço do lago de
Como que se estende para sul entre duas cadeias ininterruptas de mon-
tanhas…»] Jorge decorou. Os Noivos, cuja primeira edição data de 1827,
iria ter sempre um lugar especial no seu coração. Ele é o equivalente
italiano de Guerra e Paz ou de Os Miseráveis, um épico ao amor e ao
perdão entre a guerra e a fome, com um elenco inesquecível de amantes
devotos, nobres cruéis, camponeses honrados, e uma extensa galeria
de figuras eclesiásticas: um pároco mundano, um frade virtuoso e um
cardeal austero.
A história gira em torno de dois apaixonados, Renzo e Lucia, cuja
vontade de celebrar o matrimónio é contrariada pelo seu pároco, Dom
Abbondio, coagido por Dom Rodrigo, o fidalgo local, que nutre uma
paixão por Lucia. Os apaixonados pedem ajuda a frei Cristoforo,
um santo frade capuchinho da ordem dos Franciscanos, o qual enfrenta
Dom Rodrigo. Este fica furioso, jurando matar Renzo e raptar Lucia.
A trama adensa-se, quando frei Cristoforo dá abrigo aos amantes que
estão separados, ao mesmo tempo que Rodrigo se socorre da ajuda de
um barão sanguinário, L’Innominato [«O Inominado»], para raptar
Lucia. Neste ponto, entra em cena Federigo Borromeo, um cardeal
austero e piedoso, cuja presença leva L’Innonimato a sucumbir e a con-
fessar os seus pecados. O desfecho do romance ocorre num lazareto,
um hospital de campanha para as vítimas da peste nos arredores de
Milão, onde têm lugar as cenas comoventes do perdão e reconciliação,
no momento em que as vítimas e os ofensores, instigados pelo frade,
se encontram frente a frente.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 39
Os Noivos é um romance complexo e multifacetado, abordando
muitos temas que seriam gratos a Bergoglio, na qualidade de jesuíta,
de bispo e, mais tarde, de Papa: a misericórdia de Deus, oferecida inclu-
sive aos piores pecadores; o contraste entre o mundanismo cobarde de
alguns eclesiásticos e a austeridade implacável de outros; a corrupção
da riqueza e do poder por oposição ao virtuosismo das pessoas comuns;
o poder da oração e da piedade; a Igreja como hospital de campanha.
A repreensão que o cardeal Borromeo dirige, ao longo de várias pági-
nas, ao cobarde Dom Abbondio — «Devias ter amado, meu filho; ama-
do e rezado. Assim, era-te dado ver que as forças perversas são capazes
de intimidar e ferir, mas não conseguem assumir o comando» — quase
podia ser um manifesto das reformas de Francisco.
A avó continuou a ser para Bergoglio o seu grande amor. Na década
de 1970, já viúva e num estado debilitado, e a viver sob os cuidados
das freiras italianas em San Miguel, ele ia vê-la amiúde. «Ele adorava-a;
ela era o seu ponto fraco», recorda uma delas, a irmã Catalina. «Ela
só dava atenção àquilo que ele dizia.» Quando Rosa estava no leito da
morte, Jorge manteve-se sempre ao seu lado, amparando o corpo da avó
até a vida o abandonar. «Ele disse-nos: “Neste momento, a minha
avó encontra-se no ponto mais importante da sua existência. Ela está a
ser julgada por Deus.” Uns minutos depois», continuou a irmã Catalina,
«ele levantou-se e partiu, sereno como sempre.»
Com Rosa e os avós maternos na retaguarda, o amor que os pais
votavam um ao outro, e os irmãos em casa, Jorge era uma criança feliz
e equilibrada, num lar italiano estável e tranquilo. Mario era acima de
tudo um homem alegre que raramente se zangava, e nisto, de acordo
com Maria Elena, o pai e o filho mais velho eram parecidos. Dom Enrico,
o padre de família dos salesianos, era uma presença solidária e visita
regular, principalmente da casa dos Sívori, onde o clã inteiro se reunia
para comer ravióli na sua companhia.
Jorge contava com muitos companheiros de brincadeiras na vizi-
nhança, costumando juntar-se a eles na praça local. A escola primária
[a N.º 8 Coronel Pedro Cerviño, no n.º 358 da rua Varela] ficava próxi-
mo: ali, ele foi um aluno aplicado, sem reprovar a nenhuma disciplina.
Manteve correspondência durante toda a vida com a professora da
primeira classe, Estela Quiroga, transmitindo-lhe cada passo que dava
40 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
na sua jornada de fé, e contando com a presença dela no momento da
sua ordenação de padre em 1969.
María Elena — tratada por Malena pelos familiares — tinha menos
doze anos que Jorge. «Eu era uma bonequinha e ele era el viejo, o velho»,
observa ela a rir. María Elena recorda-se melhor dos domingos, quando
todos iam à missa e regressavam para disfrutar de um almoço que se
prolongava pela tarde. Do ponto de vista material, era uma existência
modesta. «Éramos pobres, com dignidade». Não havia carro, nem se
faziam férias, ao contrário do que acontecia com as famílias da classe
média mais abonadas. Mas havia comida à mesa — os capelleti com
ragu e risoto piemontês de Regina estavam no topo da lista de preferên-
cias da família — e roupa para vestir, mesmo que esta fosse reciclada.
«A mama conseguia recuperar algumas peças de vestuário, até a partir
da roupa do nosso pai: uma camisa rasgada ou umas calças puídas eram
arranjadas e remendadas, e passavam para nós. Talvez seja esta a ori-
gem da enorme frugalidade do meu irmão e a minha.»
As convicções religiosas eram fortes e convencionais. Quando
regressava do trabalho, Mario rezava o terço com a família e todos iam à
missa ao domingo. No entanto, o pai de Jorge, cujas habilitações como
contabilista não eram reconhecidas na Argentina, via-se forçado a ter
vários trabalhos para equilibrar o seu orçamento, pelo que era habitual
passar os fins de semana em casa rodeado de grandes livros-mestre,
enquanto punha a tocar óperas e música ligeira italiana no seu fonó-
grafo Victrola. Para se entreter, a família jogava ao brisca, um jogo de
cartas italiano. As tardes de sábado passadas a ouvir ópera com a mãe
e os irmãos são uma das melhores recordações de Jorge. Ele lembra-se
que Regina fazia comentários ocasionais para manter os filhos concen-
trados, segredando-lhes por exemplo durante o Otelo: «Prestem aten-
ção: ele prepara-se para a matar». Entre os dez e os doze anos de idade,
Jorge foi com os pais ver todos os filmes italianos exibidos em Buenos
Aires em que Anna Magnani e Aldo Fabrizi eram os protagonistas.
La Strada [A Estrada] e Roma Città Aperta [Roma, Cidade Aberta] eram os
seus preferidos.
E depois havia o futebol. Jorge, um miúdo esgalgado, gostava de dar
uns pontapés na bola com os amigos, mas não era um grande jogador: ti-
nha os pés chatos. No entanto, Ernesto Lach, que costumava jogar com ele
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 41
nas traseiras da igreja paroquial da Medaglia Miracolosa, refere que ele
era um bom estratega e explorava as oportunidades como avançado.
Mas a maioria dos seus colegas de equipa é unânime em reconhecer
que ele passava mais tempo em casa na companhia dos livros. Todos o
recordam como um estudioso, sempre debruçado sobre um texto. Isso
não o impedia, porém, de ser um apaixonado do futebol. Herdou do pai
a paixão pela equipa do San Lorenzo, a mais pequena e destemida das
três principais equipas de Buenos Aires, fundada por um missionário
salesiano, o padre Lorenzo Massa, no ano de 1907. Massa tinha sido o
prior da paróquia de Santo António de Pádua onde Mario e Regina se co-
nheceram, e o clube tem Nossa Senhora como sua padroeira. Em 1915,
quando a equipa ascendeu à liga principal, o padre Massa arranjou um
estádio para ela jogar, conhecido por Velho Gasómetro, no bairro vizi-
nho de Boedo, onde Mario e os filhos nunca falhavam um encontro.
Jorge tinha dez anos quando a equipa teve seu melhor ano de sempre,
com o famoso ponta de lança René «o Ovo» Pontoni a guindar o San
Lorenzo para um nível até então inimaginável. «Não falhei um único
encontro dos campeões de 1946 com o grande Pontoni», disse mais
tarde Bergoglio à equipa.
Em dezembro de 1961, pouco tempo depois de Jorge iniciar a sua
formação como jesuíta, Mario morreu com um ataque cardíaco quando
assistia a um jogo no estádio. Alberto, que estava com Mario na altu-
ra, nunca mais voltou lá. Ao partir para Roma, em fevereiro de 2013,
o cardeal Bergoglio levava consigo uma relíquia estimada que agora se
encontra com ele no Vaticano. O pedaço de madeira do Velho Gasómetro
encerra um turbilhão de memórias: de Dom Enrico, de Pontoni, do seu
pai e do irmão, bem como da sensação da multidão ensurdecedora a
saltar em uníssono da bancada, agitando os punhos no ar. Bergoglio
foi um adepto dedicado do San Lorenzo durante toda a vida e, como
Papa Francisco, ele continua a pagar a sua quota anual. Se uma pessoa
estiver por acaso na praça de São Pedro durante uma audiência das
quartas-feiras, logo a seguir a um desafio, e vestir uma camisola do San
Lorenzo, é bem certo que verá Francisco com um sorriso rasgado no
rosto, a indicar-lhe com os dedos o resultado do desafio ao passar por
ela no papamóvel.
42 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
a igrEja que Jorge conheceu na Argentina em criança, na década
de 1940, era dinâmica e nacionalista, e identificava-se profundamente
com aquela parte da sociedade argentina que conduziu o general Juan
Domingo Péron ao poder em 1946.
Esta situação diferia em muito da verificada em meados do século xix,
antes do início do fluxo migratório. A região do rio de La Plata ficava na
periferia da colónia espanhola, e a Igreja que saíra dos conflitos inter-
nos a seguir à independência era uma instituição fragilizada e sob forte
controlo estatal. Em 1869, a Igreja contava apenas com cinco bispos.
Estes tinham sido nomeados pelo Estado, dispondo de escassos contac-
tos com Roma e pouco poder de iniciativa. Os católicos proeminentes
desta altura não eram bispos mas missionários, a exemplo daquele que
era conhecido como «padre gaúcho», o padre José Gabriel Brochero
[1840–1914], a quem Francisco colocou no caminho da santidade pouco
tempo depois de ser eleito. O padre Brochero deslocava-se numa mula,
vestia um poncho, fumava cigarrilhas, bebia chá de erva-mate por uma
cabaça, e andava por todo o lado a edificar igrejas, capelas e escolas,
a abrir caminhos e passagens pelas sierras de Córdoba, dedicando-se aos
mais pobres numa vida exemplar de abnegação heroica.
Contudo, à medida que os imigrantes invadiam as cidades, a Igreja
argentina começou a evoluir, quer nas suas capacidades, quer na inde-
pendência do Estado. Duas datas foram aqui cruciais. A primeira é o
ano de 1865, quando Buenos Aires passou a ser uma sé primacial, a dio-
cese mãe, que dispunha de oitenta e quatro sacerdotes em 1880; a outra
foi o ano de 1899, quando os bispos latino-americanos se encontraram
em Roma para acordarem num vasto conjunto de reformas. A Igreja na
Argentina passou por um processo de romanização no momento em
que o Estado conquistava o controlo da nação.
Ao longo das décadas seguintes, o desenvolvimento acentuado do
Estado e da Igreja caminhou a par e passo. Enquanto o Estado se for-
talecia do ponto institucional, expandindo as vias férreas e as linhas do
telégrafo, e criando um exército permanente, a Igreja, por seu lado,
construía seminários e igrejas paroquiais, ao mesmo tempo que sur-
giam novas congregações religiosas, nomeadamente de freiras, para
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 43
gerir os hospitais e as escolas. Esta atividade concentrava-se principal-
mente nas cidades, em particular, em Buenos Aires e Córdoba, em con-
traste com o interior, onde as dioceses continuavam a ser vastas, pobres
e isoladas — e onde a população rural e empobrecida se manteve afastada
da Igreja até grande parte do século xx. Esta foi a origem da religião
popular, a qual despertaria em Bergoglio um respeito eterno: campone-
ses ignorantes da doutrina, mas dotados de uma fé inabalável que, na
ausência do clero e das Igrejas, se voltavam mais para as devoções que
para os sacramentos.
No final do século xix, a notória expansão e a aumento da influên-
cia da Igreja levaram os liberais a começar a encará-la como uma rival.
Na década de 1880 e numa demonstração de zelo secularista, o governo
argentino seguiu o exemplo de França ao colocar o casamento e a
educação sob a alçada do Estado. De acordo com a legislação do casa-
mento civil, o Estado era a única testemunha legal num matrimónio,
ao mesmo tempo que a lei sobre a educação bania o ensino católico na
escola pública, privilegiando a obrigatoriedade de uma moral secular
e criadora de cidadãos esclarecidos. Ao longo de debates acalorados no
Congresso, onde o ministro da educação proclamou o triunfo da ciência
sobre «milhares de anos de histeria mística», o governo derrotou sem
dificuldade o grupo de deputados católicos, pondo fim às objeções da
Igreja com a expulsão do delegado apostólico da Santa Sé, a suspensão
temporária dos bispos [os quais eram funcionários estatais] e o despedi-
mento dos professores universitários católicos que tinham questionado
as novas leis. Tal como refere o historiador John Lynch: «A Argentina
era a refutação evidente do liberalismo latino-americano como uma
doutrina da tolerância.»2
Todavia, o governo não estava interessado no tipo de convulsões
ocorridas durante o conflito, quando os mações incendiaram igrejas e
turbas anticlericais atacaram a Universidade de Salvador administrada
pelos jesuítas. A laicização ao estilo francês foi posta de lado, dando lu-
gar a um modelo conservador, quase anglicano, de relações entre Igreja
e Estado, a partir do qual os governantes agnósticos toleravam uma
Igreja submissa como baluarte da ordem social. Ao contrário do vizinho
Chile, onde se deu uma separação amigável entre o Estado e a Igreja na
década de 1920, o catolicismo continuou a ser a religião oficial do Estado
44 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
argentino, embora houvesse liberdade para outros cultos. O pagamento
dos ordenados dos bispos era assegurado pelo governo e até há pouco
tempo, o presidente teria de ser um católico batizado, com poder para
vetar a nomeação de bispos. A Igreja e a nação têm-se mantido forte-
mente interligadas. Todos os dias, a seguir à missa das 9h00 na catedral,
soldados armados de espada e envergando o uniforme oficial marcham
ao longo dos altares laterais para montarem guarda ao túmulo do liber-
tador, general San Martín, coberto pela bandeira. E uma vez por ano,
a Igreja volta a consagrar a nação na tradicional celebração Te Deum
a 25 de maio, com a presença do presidente e dirigentes políticos, a qual,
até o cardeal Bergoglio a transformar num desafio profético, era um
acontecimento inofensivo e tranquilizador.
A primeira das muitas cartas papais a insurgir-se contra as perver-
sidades do capitalismo moderno, a Rerum Novarum do Papa Leão XIII,
teve uma repercussão inegável na Argentina, e o mesmo aconteceu às
suas objeções relativamente à idolatria do mercado livre pelas classes
abastadas. O estado de pobreza das classes trabalhadoras e a forma de
o resolver — a chamada questão social — acabou por dominar a polí-
tica da Argentina e desencadear uma violência social cada vez maior:
em 1919, o chefe da polícia de Buenos Aires foi morto por uma bom-
ba dos anarquistas e centenas de pessoas pereceram em consequência
da repressão que se seguiu. Não obstante, apesar de promulgarem leis
no terreno da ordem pública, os governos recusavam-se a intervir no
mercado; o Congresso opôs-se aos deputados católicos e socialistas que
tentavam introduzir reformas sociais, ainda que moderadas.
A Igreja controlava o único movimento sindical organizado não
liderado por comunistas ou anarquistas, e a sua doutrina social tornava-
-a uma alternativa evidente às ideologias da esquerda e da direita. Con-
tudo, a tentativa de traduzir isso numa alternativa política incontestável
ao governo liberal dominante não vingou: a defesa por parte da União
Democrática Cristã do voto das mulheres, do salário mínimo e das leis
laborais deixava os bispos apreensivos.
No entanto, no início da década de 1920, a acomodação dos bispos
ao estado liberal recebeu um duro golpe vindo de Roma. Quando o
governo tentou nomear o novo arcebispo de Buenos Aires, os demo-
cratas cristãos e os jesuítas fizeram um apelo ao Papa, o qual recusou
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 45
a nomeação: o lugar ficaria vago durante dois anos, até haver finalmente
um consenso sobre o novo candidato. No meio deste impasse entre
o Vaticano e a Casa Rosada, a Igreja argentina iria progressivamente
ao encontro da sua voz profética, uma voz acentuadamente crítica do
liberalismo, tanto económica como politicamente e, na perspetiva da
Igreja, ultramontana, focalizada em Roma e não no Estado. Em suma,
o catolicismo tornava-se uma força anti-institucional. A Igreja era a
maior fonte de protestos contra a economia e a política liberais vigen-
tes, inspirando-se na doutrina social dos papas e no novo pensamento
nacionalista na Argentina, que iriam influenciar o governo peronista
nas décadas de 1940 e 1950.
A Igreja da década de 1930 conquistou igualmente uma impressio-
nante capacidade de mobilização. O momento histórico foi o Congresso
Eucarístico Internacional realizado em Buenos Aires no ano de 1934,
dois anos antes do nascimento de Jorge Bergoglio e sobre o qual ele
ouvia histórias intermináveis contadas pela sua avó Rosa. Ele marca
o antes e o depois na história da Igreja argentina. Os anos seguintes
foram palco de uma expansão dramática, de um «recrudescimento do
catolicismo»: criaram-se dez novas dioceses; a afluência à missa inten-
sificou-se, e o mesmo aconteceu aos casamentos e aos batizados; e as
vocações conseguiram por fim acompanhar o crescimento da popula-
ção. As escolas multiplicaram-se, a ponto de três em cada quatro alunos
do ensino privado estarem a ser educados pela Igreja.
Do mesmo modo, a Igreja alicerçava-se consistentemente no plano
intelectual, administrando uma rede de jornais, revistas e estações de
rádio, a par da principal editora católica da altura, a Editorial Difusión,
a qual vendeu seis milhões de livros de um catálogo de centenas de
títulos na década de 1930. Entre as décadas de 1940 e 1950, centenas
de milhares de católicos — entre os quais, o jovem Jorge Bergoglio —
aderiram aos círculos de estudos da Ação Católica. Sucediam-se mani-
festações, panfletos e discursos, atribuindo diretamente ao capitalismo
liberal a responsabilidade pelas chagas sociais, incitando os trabalhado-
res a opor-se à sedução socialista e a aderir à Doutrina Social da Igreja.
Não obstante, a aliança entre católicos e socialistas continuou a existir
no Congresso, até se aprovar finalmente a lei que instituía o domingo
como dia de descanso e a jornada laboral de oito horas.
46 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Esta era a Igreja — vigorosa, confiante e ligeiramente triunfalista
— na qual Jorge Bergoglio cresceu. Ela professava o antiliberalismo no
sentido que a Argentina conferia ao termo. O liberalismo era conotado
com o mercado livre, com uma visão cosmopolita, racionalista e auto-
ritária da Argentina da belle époque; na década de 1930, esta perspetiva
do mundo passou progressivamente a ser encarada como antitética do
interesse nacional.
A alternativa ao liberalismo envolvia um conjunto de asserções rudi-
mentares abrigadas sob o prisma do nacionalismo. O movimento tivera
o seu início no âmbito académico, em estudos históricos ou literários,
mas na década de 1930 assumiu-se como uma crítica social e política
à ordem vigente. Ao destruir os mercados de exportação para os bens da
Argentina, a crise económica mundial colocara a nu a dependência do
país do estrangeiro, e a vantagem comparativa começou a ser considera-
da uma subserviência servil, cuja apologia era feita pela assim chamada
oligarquia, no seu próprio interesse e não no do país como um todo.
A crise da ordem liberal levou os intelectuais nacionalistas a questio-
narem o mito liberal de que o progresso da Argentina se fundamentava na
rejeição da sua herança hispânica e colonial, e começaram a centrar a
sua atenção numa nação mais antiga e genuína, que o culto dos libe-
rais ao estrangeiro tinha relegado. A rejeição do liberalismo político e
económico levou os nacionalistas a aderirem àquilo que o liberalismo
menosprezara: neste momento, defendia-se a tradição hispânica e cató-
lica como a herança mais «genuína», enquanto o ditador Rosas já era
visto como um herói em estreita ligação com a sua terra e a sua gente.
Os católicos simpatizavam com estas novas ideias, já que elas recu-
peravam a cultura do catolicismo como a interveniente chave na história
da Argentina, e qual tinha sido abafada pelo que os nacionalistas desig-
navam por liberalismo estrangeirizante [extranjerizante]. Ironicamente,
alguns dos nacionalistas católicos mais aristocratas seguiam com in-
teresse os movimentos de direita no estrangeiro [vivia-se a época de
Franco e de Mussolini], mas a corrente dominante na Igreja argentina
optava por uma via entre o liberalismo e a totalitarismo. Aquilo que
os católicos almejavam era um governo que desse voz às novas mas-
sas urbanas privadas dos seus direitos pela elite liberal. Eles queriam
que o governo fosse nacionalista ao respeitar as tradições da Argentina,
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 47
em lugar de imitar a França ou a Grã-Bretanha. E desejavam igualmen-
te que o governo se inspirasse na Doutrina Social da Igreja no tocante
às suas políticas económica e sociais, por outras palavras, que o Estado
interviesse e colocasse um travão aos excessos do mercado e ao fosso
cada vez maior entre ricos e pobres.
Na altura do golpe militar de 1930, a democracia republicana e libe-
ral da Argentina tinha poucos simpatizantes. Em 1916, a introdução do
sufrágio masculino universal tinha conduzido ao monopólio eleitoral
do partido da classe média, a União Cívica Radical [UCR], conhecido
como os Radicalistas. Apesar do seu nome, os radicalistas não questio-
naram os princípios básicos do modelo económico, embora tivessem
aumentado as despesas do Estado para assegurar o apoio eleitoral pela
via do mecenato, o que lhes rendeu a inimizade dos conservadores, na
altura, reunidos no sucessor moderno do PAN, o Partido Democrático
Social [PDN]. No ano de 1930, o exército empreendeu o derrube dos ra-
dicalistas, alegando estar a salvar a constituição, e acabou por transferir
o poder para o PDN, o qual retomou ao longo da década de 1930 a sua
velha prática de encher as urnas com votos falsos, negando aos radica-
listas o direito a participar nas eleições.
Por esta e outras razões — havia concessões monopolistas à Grã-
-Bretanha e provas generalizadas de corrupção que conotavam as clas-
ses dirigentes com interesses económicos internacionais — a década
de 1930 iria ser recordada como um «período infame», o último fôlego
da era liberal, encaixado entre dois golpes militares. O segundo aconte-
ceu em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, quando a Argentina
— mantendo a sua neutralidade tradicional e contrariando o apelo dos
Estados Unidos para a América Latina apoiar os aliados — mergulhou
numa crise devido ao embargo dos EUA a armas e bens industriais.
O exército assumiu o poder, no meio de uma escalada de revolta e cólera
da população devido à fraude eleitoral, ficando a aguardar o desfecho da
guerra. Quando tudo apontava já para a vitória dos aliados, um grupo
de jovens oficiais do exército, comandado pelo coronel Juan Domingo
Péron, assumiu o controlo.
Péron intuiu que a Argentina estava à beira de uma revolução, que
a velha ordem estava extinta e lhe cabia gerir a transição para uma nova
política de massas sem resvalar para o comunismo. Enquanto os seus
48 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
colegas oficiais se preocupavam apenas com a restauração do statu quo
a seguir ao fim da guerra, Péron recorreu às suas espantosas capacida-
des de político para construir uma nova e poderosa aliança de interesses
e valores. Servindo-se dos recursos do Estado à sua disposição, começou
a oferecer favores aos sindicatos e a prestar diversas formas de ajuda à
maioria da classe trabalhadora desprovida de direitos. Em menos de
dois anos, pôs em marcha um movimento impressionante que dava voz
aos valores nacionalistas e católicos das classes imigrantes e oferecia
benefícios concretos aos pobres.
Quando a guerra acabou e foram convocadas eleições, Péron foi
preso; contudo, em 17 de outubro de 1945 — uma data que os peronistas
veneram desde sempre — dezenas de milhares de trabalhadores enche-
ram a Plaza de Mayo a exigir a sua libertação. O exército assim o fez,
e o coronel avançou sem esforço para uma vitória eleitoral decisiva
em fevereiro de 1946, na altura em que Jorge tinha dez anos de idade.
Péron derrotou uma aliança multiespectral que englobava todos os parti-
dos políticos «liberais» existentes, da esquerda à direita, e era coordenada
pelo embaixador dos EUA em Buenos Aires, Spruille Braden, o qual
cometera o erro de considerar Péron um fascista. Péron foi eleito
para um segundo mandato en 1952, o qual terminou três anos depois.
O peronismo transformou o cenário político da Argentina e foi prepon-
derante na adolescência do futuro Papa.
a primEira verdadeira crise na casa Bergoglio ocorreu em fevereiro
de 1948, quando Jorge tinha doze anos, e Péron se encontrava no poder
há dois anos. Em resultado de complicações no parto de María Elena,
Regina ficou confinada ao leito durante algum tempo, afetada por uma
espécie de paralisia. Enquanto Rosa ajudava a cuidar dos dois filhos
mais novos, Alberto e María Elena, Dom Enrico Pozzoli, o padre da
família, não demorou a encontrar um lugar para os três mais velhos
nos colégios internos dos salesianos. Marta foi enviada para o colégio de
María Auxiliadora, em Almagro, enquanto Jorge e Oscar ingressavam
em 1949 no colégio com o nome sonante de Wilfrid Barón de los Santos
Ángeles, na zona oeste de Ramos Mejía.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 49
Jorge, que entrou para o sexto ano, adorou a escola, a qual devia
o seu nome a um imigrante francês milionário e que fora mandada
construir pela sua viúva em 1925. «O dia passava a correr; não tínhamos
tempo para ficar aborrecidos», recordava Bergoglio numa carta dirigida
ao padre Cayetano Bruno, provincial dos salesianos, em 1990. O estabe-
lecimento estava imbuído de uma cultura católica genuína, na qual
a ida à missa era tão natural como estudar ou brincar. Além de desen-
volver a sua capacidade de concentração, graças às horas do estudo em
silêncio, Jorge adquiriu uma série de competências em artes e ofícios:
o padre Lambruschini ensinou-o a cantar, o padre Avilés a utilizar a gela-
tina para fazer cópias, e um padre ucraniano a ajudar à missa segundo
o ritual oriental — uma escolha invulgar de passatempos para um
adolescente, mas não no colégio Wilfrid Barón de Los Santos Ángeles.
Aqui ensinava-se a competir como «cristão», tanto nos estudos como
no desporto — a lutar pelo sucesso, mas nunca desprezando quem
ficava em segundo lugar. Aprendia-se o significado do pecado, mas
também do perdão: os salesianos «não receavam confrontar-nos com a
linguagem da cruz de Jesus», referia ele numa carta. Jorge aprendeu
a rezar antes de adormecer, a pedir favores à Virgem Maria e a respeitar
a figura do Papa, na altura, Pio XII. Os salesianos ensinaram-lhe ainda
o valor da castidade, o que Jorge, que ingressara na escola no despertar
da adolescência, passou a encarar como algo salutar. «No colégio não
existia uma obsessão em relação à sexualidade», escreveu Bergoglio a
Dom Bruno. «Deparei-me com isso mais tarde da parte de pedagogos
e psicólogos que se gabavam de ser completamente abertos, mas que
olhavam para tudo através de uma perspetiva freudiana que via sexo em
toda a parte.»
Naquele ano, deu-se um salto evolutivo na mentalidade de Jorge.
«Aprendi, quase inconscientemente, a procurar o significado das coi-
sas». Ele deu-se conta da existência da verdade como algo que lhe era
exterior, da necessidade de ter valores e virtudes, e da sua responsabili-
dade em relação ao mundo. Era frequente os salesianos referirem-se às
necessidades dos pobres e encorajarem os alunos a privarem-se de algo
para darem aos que mais precisavam.
Jorge também aprendeu o significado da morte. Uma noite, no mês
de outubro de 1949, o monsenhor Miguel Raspanti, um dos inspetores
50 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
escolares dos salesianos, falou aos rapazes sobre a morte da sua mãe
alguns meses antes. «Nessa noite, sem que isso me causasse temor,
senti que também iria morrer um dia e que isso era a coisa mais natu-
ral», contou ele a Dom Bruno. Jorge começou a ouvir histórias sobre a
partida deste mundo dos salesianos mais idosos e o que era feito para
que eles tivessem aquilo a que se chamava uma boa morte.
No final do ano escolar, aos regressarem a casa, os três rapazes
Bergoglio encontraram a mãe, ainda incapaz de se aguentar de pé, sen-
tada numa cadeira a descascar batatas, acompanhada de todos os ingre-
dientes destinados à refeição. «A seguir, ela disse-nos o que tínhamos de
fazer para os combinar e cozinhar, porque nós não fazíamos a mínima
ideia», recorda-se Bergoglio. «”Agora, coloca isso na panela e aquilo na
frigideira”, explicava ela. Foi assim que nós aprendemos a cozinhar.»
Jorge sentiu o despertar da sua vocação por volta dos doze ou treze
anos de idade, embora na altura pensasse em ser padre «da mesma
forma em que se tenciona vir a ser engenheiro, médico ou músico»,
conforme referiu ao padre Isasmendi. Essa ideia estava obviamente na
sua cabeça quando ele se apaixonou para uma rapariga da vizinhança
da sua idade, Amalia Damonte, a quem fez uma declaração tudo me-
nos romântica, no desabrochar de uma paixão de adolescente. «Se não
for para padre, caso contigo», disse-lhe numa carta, na qual desenhava
uma bonita casa de telhado vermelho, dizendo-lhe que era ali que iriam
viver. [O pai da rapariga ficou furioso: bateu à filha e proibiu-a de o ver].
No colégio, ele rezava fervorosamente para encontrar a sua vocação, em
sequência a uma conversa com um padre de nome Cantarutti, debaten-
do ainda a hipótese do sacerdócio com outro membro da congregação,
o padre Martínez, famoso por ser um «pescador de vocações». Contudo,
no ano de 1950 que se seguiu, Jorge iniciou o ensino secundário e a
ideia ficou em segundo plano até a candeia se acender de novo quatro
anos mais tarde, sem que a chama se apagasse desta vez.
Na altura em que Jorge entrou para a escola secundária, Perón era
presidente da Argentina há cerca de quatro anos e o país tinha muda-
do por completo. Vivia-se o apogeu do primeiro mandato peronista,
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 51
recordado com profundo respeito até aos dias de hoje como a época de
gastos colossais por parte do Estado, com a distribuição da riqueza a favor
da classe trabalhadora e a rápida industrialização — um projeto naciona-
lista oposto, em todos os aspetos, ao anterior modelo liberal. Os tempos
eram outros. A Grã-Bretanha, empobrecida pela guerra, já deixara de ser
o parceiro comercial mais importante, e embora os Estados Unidos forne-
cessem os bens manufaturados, eles já produziam internamente aquilo
que a Argentina tinha para exportar. Era preciso uma economia mais
autossuficiente. O plano de Péron passou pela disponibilização de me-
lhores salários que fizessem aumentar o consumo e aliciassem as indús-
trias a satisfazer essa procura, ao mesmo tempo que nacionalizava tudo o
que podia, desde o petróleo, aos caminhos-de-ferro e serviço de elétricos.
À semelhança do pensamento subjacente ao Novo Acordo de Roosevelt,
o peronismo partiu do princípio de que era o Estado quem dirigia a eco-
nomia e que seria esta quem ia resolver os problemas sociais.
A discussão em torno do que foi e é o peronismo — populismo
autoritário? nacionalismo de esquerda? — não tem em conta o aspeto
fundamental de ele ter sido um instrumento ao serviço de Péron e não
de uma ideologia determinada. E de que Péron estava longe de ser um
ideólogo, sendo antes um génio em intuição política com a capacidade
excecional de articular os interesses e as esperanças das novas classes
— os imigrantes e os seus filhos, as pessoas que vinham para as cidades
à procura de uma nova vida. Ele compreendia os seus sonhos e anseios,
porque era um deles. A história do coronel bem-parecido casado com a
bonita atriz da rádio Evita [ambos nasceram de relações ilegítimas* em
pequenas comunidades na província de Buenos Aires, sendo desfavo-
recidos à partida por um estigma social que tornava mais difícil a sua
ascensão] e de como eles fundaram um movimento político com reper-
cussões na população mais pobre da Argentina, já foi narrada diversas
vezes, em livros, filmes e musicais. Todavia, para lá do drama e do mito,
se o peronismo perdurou após a morte dos seus criadores, isso expli-
ca-se pelo facto de Péron, ao articular os valores e interesses da nova
Argentina, ter criado algo muito maior que ele próprio: um movimento,
e não um partido, uma cultura, e não um grupo de interesses, um sistema
* Os pais de Juan Domingo Perón não eram casados na altura do seu nascimento em 1895, apontando-se o ano de 1901 como a data em que celebraram o matrimónio. [N. da T.]
52 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
político híbrido tão popular e absorvente que dominou a Argentina
moderna, ofuscando até as eleições que o derrotaram.
Uma das muitas barreiras derrubadas pela vitória eleitoral de
Perón foi a muralha edificada pelo liberalismo argentino contra a Igreja.
O seu regime foi o primeiro da história moderna da Argentina a ganhar
legitimidade ao identificar-se com os valores e prioridades do catolicis-
mo — sobretudo a Doutrina Social da Igreja que se tornara popular no
recrudescimento nacionalista e católico da década anterior. Os anos ini-
ciais do regime peronista pareciam ser um momento de viragem para a
Igreja. Ali estava finalmente um governo que ia apoiar herança católica
da Argentina e promover a Igreja no tocante à sua doutrina social e
trabalho de evangelização.
Mais tarde, em sequência ao Concílio Vaticano II, a Igreja deixaria
de olhar para o Estado — pelo menos, oficialmente — como um ins-
trumento da sua evangelização. Contudo, na altura, este era o pensa-
mento dominante por parte dos bispos e dos países católicos: a Igreja
era a guardiã dos valores morais e espirituais, os quais o governo
devia suportar e implementar, respeitando em simultâneo a liberdade
da Igreja para cristianizar a sociedade. Perón, ansioso por obter a sua
legitimidade — não existe alguma indicação de que ele tenha sido um
católico convicto nos primeiros anos da sua vida, e pouco existe na sua
história pessoal que sugira um contacto próximo com a Igreja — abra-
çou a ideia, considerando o seu movimento como a incarnação política
da «nação católica». Esta foi uma ideia que continuou a existir mes-
mo muito depois do violento conflito entre Perón e a Igreja, entre 1954
e 1955, precipitar a sua destituição através de outro golpe.
Tal como Perón atribuía benefícios e ganhos concretos aos trabalha-
dores e seus sindicatos, esperando em troca a lealdade destes, o mesmo
se passava em relação à Igreja: os bispos e o clero foram agraciados com
súbitos aumentos de ordenados, a construção de seminários aumentou,
os seminaristas receberam bolsas de estudo para o estrangeiro, os bens
religiosos importados ficaram isentos de impostos e as organizações
eclesiásticas passaram a dispor de subsídios estatais. Contudo, o mais
significativo foi a nova abertura às ideias do catolicismo. Perón identi-
ficou explicitamente a doutrina do seu regime com a Doutrina Social
da Igreja — ele falava em humanizar o capital e dignificar o trabalho —
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 53
e pediu a dirigentes da Ação Católica que elaborassem propostas sobre
questões que eles defendiam há muito, como o salário-família e a re-
gulação do trabalho infantil, as quais não demoraram a ser aprovadas
sob a forma de lei. Os Peróns dispunham até de um padre jesuíta na
qualidade de seu assessor, o padre Hernán Benítez, que associou expli-
citamente o peronismo ao Evangelho e à doutrina social da igreja.
No entanto, esta relação desfez-se porque a Igreja não se deixou
comprar. Na altura do debate sobre a nova constituição, Perón recusou
o pedido da Santa Sé para eliminar o patronato, o direito de o Estado
controlar a Igreja por diversas formas, o qual vigorara durante a época
colonial e se mantinha na constituição de 1853. Recém-saído da era
fascista na Europa, o Vaticano estava sensível ao perigo de estados pre-
tensamente católicos tentarem usar a Igreja como um instrumento de
controlo social. E também sabia que muito depois de o regime peronista
desaparecer, outro regime ainda mais hostil poderia recorrer a esse
poder para coartar seriamente a missão da Igreja. Perón, por seu tur-
no, não estava disposto a renunciar ao poder constitucional de nomear
bispos que lhe fossem leais politicamente; este foi o corolário esperado
do peronismo como corporização política da nação católica.
Cada lado recolheu às trincheiras. A Santa Sé, com uma apreensão
crescente face à tentativa de «peronização» da Igreja, recusou-se a rati-
ficar os novos bispos, enquanto Perón, furioso com o que considerava
ser uma ingratidão da Igreja, começou a tentar dissociar o cristianismo
da Igreja. O justicialismo, uma nova doutrina estatal, apelava a valores
cristãos, os quais eram identificados com Perón em lugar de Jesus Cristo
[«Perón é o rosto de Deus nas trevas», declarava Evita na sua autobio-
grafia. «Aqui, repete-se a situação vivida há 2000 anos em Belém; os
humildes foram os primeiros a acreditar.»] O Estado começou a imple-
mentar instituições paralelas que competissem com a Igreja, destituindo
as organizações católicas do seu reconhecimento legal. E o peronismo
já não reivindicava praticar o que a Igreja pregava, mas antes pregar
aquilo que a Igreja não conseguia praticar.
Em 1951, quando o país se preparava para as eleições, Evita adoe-
ceu com cancro, vindo a falecer no mês de julho do mesmo ano.
As suas aparições na varanda da Casa Rosada para proferir discursos
impressionantes, enquanto a doença lhe minava o corpo, tornar-se-iam
54 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
momentos icónicos da mitologia peronista. Impulsionado por uma
onda de solidariedade em torno de Evita, e apoiado pelas mulheres a
quem concedera o direito de voto em 1947, Perón alcançou uma vitória
triunfal nas eleições de 1952.
Depois, sobreveio o declínio. Quando a economia registou uma que-
bra significativa, Perón tornou-se defensivo e paranoico, deixando-se
cair naquela loucura autoritária que costuma atacar os regimes popu-
lares-nacionalistas na América latina, sejam de direita ou de esquerda.
A nação, o Estado e o regime fundiram-se: exigia-se aos oficiais de Estado
que fossem membros do partido, o desacordo era encarado como dissi-
dência, e os opositores [quer fossem radicalistas, socialistas ou católicos]
recebiam o epíteto de inimigos do povo. Começaram a surgir cartazes
oficiais exibindo as feições buriladas do «Novo Homem» peronista,
ao mesmo tempo que o justicialismo decaía numa espiral de banalidades
filosóficas e dualidades bizarras. O funeral de Evita, que tem o de Diana,
princesa de Gales, como seu paralelo na era moderna, foi um momento
extraordinário de dor popular, mas a tentativa do regime de criar um
culto em torno dela — na edição escolar da sua autobiografia, Evita surge
com a imagem de uma Virgem Maria laica, rodeada por uma auréola —
assinalou um momento negativo nas relações com a Igreja.
Em 1951 e 1952, os ativistas católicos passaram de uma atitude
de colaboração crítica para a de desencantamento, e a seguir para a de
oposição frontal. Depois de ter perdido muitos dos dirigentes a favor
do peronismo, a Ação Católica viu-se revigorada pelo seu regresso.
Os jornais da Igreja e os encontros da Ação Católica divulgavam os
novos partidos democratas cristãos na Europa, comparando desfavora-
velmente o governo com eles. Ao detetar no seu seio a semente de um
rival político apoiado pela Igreja, Perón ordenou a implementação de
medidas repressivas.
Num discurso de 1954, o presidente criticou severamente os padres
que se envolviam na política e ordenou a detenção de alguns. A Ação
Católica foi dissolvida judicialmente e as estações de rádio revistadas
e fechadas. Numa repercussão à revolução mexicana, proibiram-se os
atos religiosos em público. Seguiu-se uma panóplia de leis destinadas a
restringir a ação da Igreja e a menosprezar as suas preocupações de or-
dem moral, legalizando o divórcio e a prostituição, proibindo a educação
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 55
religiosa nas escolas e abolindo a isenção de impostos às instituições
religiosas. O regime começou a distribuir favores pelos protestantes e
pelos espíritas, e a destruir igrejas, contestando a divindade de Jesus.
Enquanto, nas paróquias, se fazia a leitura de cartas pastorais dos
bispos, lamentando estas medidas e acusando o Estado da tentativa de
criação de um culto paralelo, a Ação Católica, que contava na altura
com 70 000 membros ativos, saiu para as ruas. As redes de células
publicavam e faziam circular panfletos para combater o blackout infor-
mativo. Criaram-se comandos operacionais para defender as igrejas
e impedir os paus-mandados do regime de interromper as missas. Con-
tudo, a principal forma de resistência passou pela organização de atos
religiosos públicos tão vastos que tornassem impraticável a interdição
governamental.
Em 25 de maio de 1955, Perón boicotou o Te Deum na catedral de
Buenos Aires, a cerimónia anual de oração a favor da nação, onde estão
presentes os dirigentes políticos e eclesiásticos. A Ação Católica come-
çou a mobilizar protestos nas ruas, os quais culminaram no Corpus
Christi de 11 de junho, uma procissão eucarística de grande significado
para os católicos. Malgrado os esforços desesperados para as impedir,
mais de um quarto de milhão de pessoas desfilaram em silêncio, atrás
das bandeiras papal e nacional, numa atitude clara de desafio.
Perón entrou em pânico, ordenando a detenção de dezenas de pa-
dres e a destruição do quartel-general da Ação Católica. A força aérea
naval bombardeou a Plaza de Mayo, com as aeronaves que exibiam a in-
sígnia Cristo Vence, a matar centenas de contramanifestantes reunidos
pelos sindicatos. Em 2011, ao recordar esse momento e a propósito da-
quele slogan, o cardeal Bergoglio disse ao seu amigo, o rabino Abraham
Skorka: «ele causa-me repulsa, deixa-me furioso. Fico indignado por
se usar ao nome de Cristo num ato meramente político. Ele mistura a
religião com a política e o nacionalismo puro. Pessoas inocentes foram
mortas a sangue frio.»
Como retaliação, doze igrejas do centro da cidade foram saqueadas
e destruídas. O que se seguiu foram dois meses de novas campanhas
anticlericais e indícios crescentes de uma série de conspirações milita-
res tendentes à deposição de Perón. Uma delas, em setembro de 1955,
atingiu o seu objetivo. Ficou conhecida por Revolução «Libertadora».
56 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
O exército voltava a ter o domínio da situação, chamado a sair dos quar-
téis para repor a ordem e a constituição.
Ao contrário do que se supunha, o conflito entre Perón e a Igreja não
levou os católicos a tornarem-se antiperonistas. Tratava-se de uma dis-
córdia familiar e que tinha ocorrido entre as paredes do ideal sacrossanto
da nação católica. Com o tempo, Perón, exilado em Espanha, haveria de
fazer as pazes com a Igreja, a qual também estava ansiosa por colocar
uma pedra sobre o assunto. Ao ver como os cidadãos comuns se man-
tinham fiéis ao movimento, no final da década de 1950 e, em particular,
na década de 1960, quando Jorge recebia a sua formação como jesuíta,
muitos católicos viraram-se para o peronismo, movidos por uma questão
de justiça social, exigindo o regresso do líder exilado. Bergoglio nunca
militou em nenhum partido político e a partir de 1958, ano em que
entrou para os jesuítas, deixou de votar. Mas teve sempre uma afinidade
natural com a tradição cultural e política que o peronismo representa.
Ao perseguir o peronismo, o exército fez dele um mártir, contri-
buindo para aumentar a lealdade do cidadão comum ao líder exilado.
Nas três décadas seguintes, de 1955 a 1983, o Partido Peronista esteve
interdito de participar em eleições, à exceção da de 1973, sucedendo-se
dezoito presidentes, com uma média de mandatos de um ano e meio
cada, e as Forças Armadas estiveram dezanove anos no poder. No final
da década de 1960, a Argentina tinha a maior força de guerrilha da
região, a qual seria derrotada na década de 1970 por uma das mais
violentas ditaduras militares do continente. A explicação dos motivos
que levaram a Argentina a tornar-se o país mais instável do hemisfério
ocidental deve ter como ponto de partida a década de 1950, quando
o catolicismo e o peronismo se confrontaram, e o exército tentou fazer
reverter o país ao tempo anterior ao aparecimento de Perón. Entre as
décadas de 1950 e de 1970, a Argentina esteve paralisada por um para-
doxo político que é difícil aos estrangeiros apreenderem: os antiliberais
[nacionalistas, peronistas] eram populares e chegaram ao poder através
de vitórias eleitorais, ao passo que os liberais — democratas, pluralis-
tas — se serviram da ditadura para manter os peronistas arredados
do poder.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 57
a partir de 1952 e durante os cinco anos seguintes, enquanto fre-
quentava o ensino secundário e se especializava na área de química,
Jorge foi um dos membros da Ação Católica local, na paróquia de Flores.
A Ação Católica continuava a ser uma vertente dinâmica da Igreja — na
altura, mais de uma centena de aspirantes, nome dado à parte juvenil,
concentrava-se na basílica, e este foi o embrião de muitas vocações para
o sacerdócio. A sua expansão foi significativa durante o conflito entre a
Igreja e Péron, mas o número de adesões começou a decrescer no final
da década de 1950.
Jorge destacava-se entre os aspirantes pela sua serenidade, civismo
e cultura livresca [ele ajudou a criar e a gerir uma livraria no nártex das
instalações paroquiais], mas mantinha-se discreto no tocante à sua voca-
ção. Nos anos de 1954 e 1955, fase da tensão Igreja-Estado, os aspirantes
dedicavam-se a atos de solidariedade de caráter privado; mas entre 1956
e 1957, Jorge, a par de outros milhares, participava em comícios onde se
defendia que a Igreja fosse autorizada a administrar universidades. Em
paralelo, ocorriam ações humanitárias, com visitas aos pobres de Flores
para oferecer bens e conforto
Nas palestras semanais da Ação Católica proferidas pelos padres
e designadas por «Tribunas para um Mundo Melhor», Jorge absorveu
os princípios básicos da Doutrina Social da Igreja, ainda definidos em
larga medida pela Quadragesimo Anno, a carta papal mais recente sobre
o tema [conhecida por «encíclica social»], escrita pelo Papa Pio XII em
1931. À luz dos acontecimentos políticos da época, a encíclica oferecia ar-
gumentos tanto a favor dos apoiantes do peronismo como dos seus opo-
sitores: por um lado, insurgia-se contra a economia liberal e apelava à
intervenção sindical e estatal na área da economia; por outro, procurava
demarcar os limites das pretensões do Estado ao controlo e formatação
da sociedade. Para o Jorge adolescente, que tinha dezoito anos no mo-
mento da eclodir do conflito Igreja-Estado, este era um ambiente fértil
para o despertar da consciência em termos de fé e de ideais políticos.
O filho do diretor da escola secundária lembra-se de o pai repreen-
der Jorge quando ele apareceu nas aulas com uma insígnia peronista; os
alunos estavam proibidos de usarem qualquer tipo de emblema. Toda-
via, Hugo Morelli, um dos colegas de turma de Jorge e que o conhecia
bem, defende que ele era antiperonista. «Eu era peronista e ele não,
58 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
e passávamos o tempo a discutir sobre isso». Aquilo que separa estas
duas memórias era a crescente tensão entre a Igreja e o Estado na dé-
cada de 1950, quando muitos católicos que apoiavam Perón se viraram
contra ele; em meados da mesma década, Jorge foi um deles: na altura
era o socialismo que o atraía. Mas tarde — nas décadas de 1960 e de
1970 — ele voltaria a admirar o peronismo como a expressão dos valo-
res dos cidadãos vulgares.
Ao papagaio junto à porta contígua à escola, por outro lado, não se
ofereciam dúvidas de lealdade. Os colegas de Jorge recordam-se niti-
damente de o ouvir gritar durante as aulas ¡Viva Perón, carajo! [«Viva
Perón, porra!»], o que dava origem a ataques de risos. Além de Morelli,
os colegas de Jorge entre 1950 e 1955 foram Alberto D’Arezzo, Abel Sala,
Oscar Crespo e Francisco Spinoza; nasceram daqui amizades sólidas
que os levaram a encontrar-se regularmente quando Bergoglio era car-
deal.
A Escuela Industrial N.º 12, que começara a funcionar no ano ante-
rior numa moradia particular do barrio de Floresta, correspondia a uma
iniciativa vanguardista enquadrada no esforço do regime peronista de
relançar a capacidade industrial da Argentina. Mario, o pai de Jorge,
presidia a uma associação cívica que angariava fundos para a escola, e
conseguiu matricular o filho ali. Na altura, havia apenas uma dúzia de
alunos. Embora seguisse o programa de disciplinas obrigatórias ajusta-
do a nível nacional, a escola dedicava tempo e recursos complementares
à química alimentar, formando os alunos para o trabalho laboratorial.
Os colegas de Jorge retratam-no como um jovem normal da sua épo-
ca, generoso e um leitor compulsivo, e ainda uma companhia cativante.
Ele metia-se com eles sempre que os seus clubes sofriam derrotas es-
trondosas em jogos com o San Lorenzo, e costumava alinhar nos jogos
de basquetebol ou nas saídas aos fins de semana para irem dançar com
as raparigas.
Contudo, as suas descrições revelam dois aspetos nos quais Jorge se
salientava. O primeiro era a sua extrema inteligência: ele apreendia as
novas ideias e informações com uma rapidez que lhe garantia ser sem-
pre o melhor da aula, e aparentemente sem esforço [a sua «inteligência
verdadeiramente invejável era francamente muito superior à nossa»,
afirma Morelli. «Ele estava sempre muitos passos à nossa frente»].
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 59
Os colegas de classe que, como seria de se esperar, abraçaram uma car-
reira na indústria química, constituíam sem dúvida alguma um grupo de
pessoas dotadas, o que torna significativo o seu louvor à capaci-
dade de raciocínio de Jorge. Eles admiravam ainda o seu desempenho
em outras disciplinas além da química, em particular, naquelas em que
mais se distinguia, a literatura, a psicologia e a religião. Contudo, estas
aptidões brilhantes não despoletavam invejas, já que ele as colocava à
disposição de todos. «Ele ajudava-nos sempre que tínhamos algum pro-
blema numa disciplina qualquer», recorda Crespo. Nestas observações,
é possível entrever o futuro padre: D’Arezzo acrescenta que Jorge tinha
uma habilidade especial para resolver problemas, «quer nos estudos,
quer nas nossas vidas pessoais.»
O segundo aspeto distintivo era a sua profunda fé. «Nessa altura,
quando tínhamos catorze ou quinze anos, ele já era militantemente
religioso», lembra Néstor Carabajo, um dos elementos de um grande
grupo de quinze a vinte rapazes, onde Jorge se incluía, que costumava
ir fazer piqueniques para o Delta do Tigre, uma zona de florestas e pas-
tagens na periferia da cidade. Jorge, «com a sua cara de bebé, sempre
demonstrou firmes tendências religiosas católicas», concorda Morelli.
Tanto ele como Crespo se recordam perfeitamente de uma aula de
educação moral, uma disciplina obrigatória desde que fora introduzida
pelo governo militar em 1944, e ratificada posteriormente por Perón
na sua fase pró-Igreja. O professor perguntou se havia alguém que não
tivesse feito a Primeira Comunhão, a qual era obrigatória no curso. Dois
alunos levantaram a mão. «Era óbvio que ele já tinha falado com o Jorge
antes», conta Crespo «porque nos disse: “o compañero Bergoglio ofere-
ceu-se para ser o vosso padrinho na Basílica de San José de Flores”».
Depois de Jorge instruir os seus dois colegas sobre a visão da Igreja
relativamente ao sacramento da Eucaristia, ele levou-os a receber a
Primeira Comunhão em San José e, depois disso, a almoçar em sua
casa. Na altura, tinha quinze anos.
Nesse tempo, Jorge já trabalhava para ganhar algum dinheiro. O pai
tinha-lhe arranjado uma ocupação na sua firma de contabilidade, a prin-
cípio apenas para trabalhos de limpeza, mas mais tarde ele passou a
colaborar em tarefas administrativas. Depois disso, foi trabalhar para o
escritório de uma fábrica de meias a qual era igualmente cliente do pai.
60 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Ao conjugar isto com os estudos, os dias tornavam-se longos, e muitas
vezes ele só regressava a casa às oito horas da noite. Mas Jorge adorava
trabalhar e a sua capacidade extraordinária em relação a isso tem des-
pertado admirações ao longo da sua vida. Na qualidade de cardeal, ele
era um ardente defensor da importância fundamental do trabalho para
a autoestima e dignidade do ser humano, combatendo tenazmente o
flagelo do desemprego de longa duração.
Não tirava férias, mas passava alguns períodos de lazer, principal-
mente no verão, em casa dos avós maternos, onde os tios-avós lhe ensi-
navam cançonetas genovesas picantes. Havia muitas saídas em grupo
com outros adolescentes. Crespo recorda: «Costumávamos encontrar-
-nos num bar à esquina da Avellaneda com a Segurola, onde jogávamos
bilhar. Aos fins de semana passávamos pelas casas uns dos outros para
ir dançar a um clube no bairro de Chacarita porque havia lá muitas
raparigas». Tanto ele como Morelli se lembram de Jorge os acompa-
nhar. «É claro que ele tinha uma namorada», afirma Morelli. «Ele era
um bocado circunspecto, mas dançava tal como nós. Mas sim, ele
era uma pessoa comedida. Nós puxávamos por ele.»
A partir do momento em que ultrapassava a sua timidez, Jorge ado-
rava dançar, principalmente a milonga. Entre as suas preferidas, contava-
-se «La Puñalada», na interpretação de Ada Falcón. Anna Colonna, uma
amiga do seu círculo paroquial, recorda-se de o ver vestido de fato a
convidar as raparigas para dançar com ar galanteador. Ela pertencia
ao grupo de amigos de Jorge que costumava organizar asaltos, festas
em casa das pessoas nas noites de sábados. Os rapazes punham uma
gravata [e casaco branco se fosse o aniversário de alguém] e compra-
vam as bebidas, ficando as raparigas encarregadas de levar a comida.
De madrugada, os rapazes acompanhavam as raparigas a casa, com a
esperança de receberem um beijo se tivessem sorte. Mas estes eram
adolescentes da Ação Católica na década de 1950. «Às oito horas da
manhã seguinte», recorda Colonna, «já estávamos todos na missa.»
Colonna, que descreve Jorge em relação ao tempo em que o conheceu
como «muito respeitador e sociável», diz que o tango era a sua grande
preferência musical. «O Jorge era um dançarino de tango fantástico»,
afirma. «Ele gostava muito de tango».
O tango, disse Bergoglio em 2010, «vem de dentro de mim».
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 61
O som emblemático de Buenos Aires nasceu como uma melodia de
acordeão que acompanhava as lutas ritualistas entre homens viris nas
ilhas habitacionais do virar do século, principalmente na área portuária
de La Boca. Contudo, com o passar do tempo, ele tornou-se respeitado,
metamorfoseando-se na década de 1920 numa música para danças sen-
suais, competitivas e provocadoras entre casais. A seguir, adicionaram-
se-lhe palavras: nas décadas de 1930 e de 1940, quando o espantosa-
mente atraente Carlos Gardel com a sua voz aveludada trauteou «El Día
Que Me Quieras» — «O Dia Em Que Me Amares» — no grande ecrã,
o tango tornou-se uma paixão tanto para a Argentina como para o mun-
do, e a morte tragicamente prematura de Gardel [com repercussões na-
cionais tão profundas na Argentina como as do assassinato de John F.
Kennedy nos Estados Unidos] só contribuiu para aumentar a sua fama.
Na década de 1950, o tango tinha sido domesticado sob a forma de
música de dança — Jorge gostava em particular da orquestra de Juan
D’Arienzo — mas era igualmente uma forma de canção poética, mais
para ser escutada do que dançada. Os tangos recorriam ao lunfardo,
o dialeto de Buenos Aires que mistura o italiano ao antigo espanhol de
uma forma imaginativa, criando palavras e imagens memoráveis nas
quais o cardeal Bergoglio se inspirava com frequência. Ele acompanha-
va o trabalho de compositores como Enrique Santos Discépolo, e de
cantores como Julio Sosa e Ada Falcón, os dois contemporâneos que
mais admirava e para quem o tango era igualmente uma forma de co-
mentário social, um lamento sobre a erosão dos valores. O «Cabalache»
de Discépolo, por exemplo, cantado raivosamente por Sosa, em 1955,
envergando um fato às risquinhas e de cigarro na mão, encostado ao
balcão de um bar, recorre à imagem inteligente da montra de uma casa
de penhores onde se vê uma bíblia a chorar junto a um velho aquecedor.
No livro El Jesuita, editado em 2010, o cardeal Bergoglio citava a famo-
sa estrofe de «Cambalache» — «Vá, avança! Continua assim! Porque
todos nos encontraremos no Inferno!» — para condenar o relativismo
contemporâneo.
Bergoglio gostou sempre de ouvir tangos, inclusive os do período
do seu ressurgimento, liderado por Astor Piazzolla na década de 1970.
Quando estava nos jesuítas, chegou a conhecer Azucena Maizani, a pri-
meira mulher que se destacou na interpretação de tangos, e que usava
62 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
trajes masculinos para ser levada a sério. Em 1970, na altura em que
lhe foi prestar a extrema-unção, Bergoglio encontrou-se junto ao seu
leito de morte com o grande intérprete de tango Hugo del Carril,
que também era de Flores.
Quando Bergoglio foi eleito Papa, os media argentinos aludiram ao
seu gosto pelo tango— a par da paixão que dedicava ao San Lorenzo e
ao hábito de beber o mate, o chá verde e de sabor fumado que é omni-
presente na Argentina — para comprovar as suas caraterísticas de
homem comum. Contudo, na década de 1950, o tango não era ainda
consensual; embora de modo vago, ele continuava a sugerir prostitutas
de lábios muito pintados, a fugir de rufias de fatos às risquinhas por
vielas escuras. Para um adolescente que pensava no sacerdócio, este fas-
cínio tornava-se fora do comum e um indício, até na altura conturbada
da adolescência, da atração pelas franjas da sociedade.
DEus «chegou lá primeiro» em relação a Jorge, no dia 21 de setembro
de 1953, quando lhe faltavam seis semanas para completar dezassete
anos. Era o início da primavera, altura em que os jacarandás desabro-
cham em manchas cor de púrpura em toda a Buenos Aires. Jorge ia
encontrar-se com a namorada e com colegas da escola e da Ação Cató-
lica para comemorarem o Dia Nacional dos Estudantes. Ao seguir pela
avenida Rivadavia, passou pela Basilica de San José que ele conhecia tão
bem e sentiu um impulso que o levava a entrar. «Entrei com a sensação
de que tinha de o fazer — são aquelas coisas que sentimos cá dentro e
que não conseguimos explicar», contou ele ao padre Isasmendi.
Olhei para o interior e estava escuro, era uma manhã de
setembro e talvez fossem umas 9h00, e vi um padre que não
conhecia, que não fazia parte do clero da paróquia. O padre foi
sentar-se num dos confessionários, o último para quem está a
olhar para o lado esquerdo do altar. Não sei exatamente o que
aconteceu a seguir, senti que alguém me tinha levado a entrar
e a ir ao confessionário. Obviamente, falei-lhe sobre as minhas
coisas, confessei-me… mas não sei o que aconteceu.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 63
Quando acabei a confissão, perguntei ao padre de onde ele era
porque não o conhecia, e ele respondeu-me: «Sou de Corrientes
e estou a viver perto daqui, na casa paroquial. Venho cá celebrar
uma missa de vez em quando.» Ele tinha um cancro — leucemia
— e morreu no ano seguinte.
Nesse momento exato, eu soube que tinha de ser padre; tive
a certeza absoluta. Em lugar de ir ter com os outros, regressei
a casa porque me sentia muito impressionado. Depois disso,
continuei a ir à escola e a fazer tudo o resto, mas agora eu sabia
qual era o meu caminho.
A vocação religiosa é «um chamamento de Deus a um coração
que espera que o chamem, consciente ou inconscientemente», expli-
cou Bergoglio uma vez. Ele aceitou-o, não tanto como algo que Deus
queria que ele fizesse, mas como o seu mais profundo desejo, mesmo
que Deus — ao chegar lá antes dele, primereando — o tivesse sabido
em primeira mão. Nas três formas de escolha preconizadas por Santo
Inácio, esta era claramente a primeira: quando se sabe simplesmente.
Numa carta que escreveu em 1990, ele compara a experiência à sensação
de ser atirado de um cavalo.
Durante mais de um ano, não falou sobre o assunto a ninguém da
sua família, ao mesmo tempo que empreendia aquilo que descreve
como uma «verdadeira orientação espiritual» com o confessor com que
deparara por acaso na basílica, o padre Duarte Ibarra, até ao falecimento
deste no ano seguinte, no Hospital Militar.
Na altura, Jorge trabalhava na companhia de Oscar Crespo no labo-
ratório químico Hickethier-Bachmann, na esquina da avenida Santa Fé
com a rua Azcuénaga, obtendo ainda algum dinheiro extra ao trabalhar
algumas vezes à noite como porteiro em bares de tango. Crespo lem-
bra-se de Jorge lhe dizer um dia: «Vou terminar a escola secundária
com vocês, mas não vou ser um químico, vou ser padre. Mas não quero
ser o padre de uma basílica. Vou ser um jesuíta, porque quero ir para
os bairros, para as villas, estar com as pessoas.»
Esta referência dá nota de uma convicção maior do que a recordada
pelo próprio Bergoglio. Embora não tivesse dúvidas de que queria ser
padre, «na verdade, eu ainda não tinha definido bem em que direção
64 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
iria», recordou ele em 2010. A reminiscência de Crespo sugere que
Bergoglio tinha traçado mentalmente aquele caminho, mas que este
ainda estava aquém de um plano concreto. Antes de chegar ao seminá-
rio, ele não conhecia jesuítas, apenas salesianos e dominicanos. Para
um rapaz da classe média baixa de Flores, não era fácil aceder à que era
na altura uma congregação religiosa grande e poderosa, conhecida por
admitir apenas os mais instruídos — na sua maior parte, provenientes
dos seus próprios colégios privados.
«Passaram-se alguns anos até aquele convite e decisão se tornarem
definitivos», contou o Papa Francisco a jovens da Sardenha, em setem-
bro de 2013. «Foram anos de êxitos e alegrias, mas também de fracas-
sos, de debilidades e pecados… Mas até nos momentos mais negros de
pecado e fracasso, eu olhei para Jesus e ele nunca me abandonou.»
Aqueles também foram anos de experimentação política. Os amigos
recordam a sua preocupação por questões sociais e as visitas que fazia
periodicamente a bairros pobres. Jorge lia regularmente um periódico
comunista e devorava todos os artigos que encontrava de Leónidas
Barletta, um ensaísta e dramaturgo de esquerda. Nunca se deixou
aliciar pelo marxismo, mas o contacto com as suas teorias rigorosas
ajudou-o a burilar as ideias. Depois de uma crítica contundente à econo-
mia de efeitos em cascata* na sua primeira e importante comunicação
como Papa, ele viria a ser acusado de ser marxista por alguns conserva-
dores dos Estados Unidos. «A ideologia marxista está errada», declarou
a um jornalista, mas «na minha vida, eu conheci muitos marxistas que
são boas pessoas, pelo que não me sinto ofendido.»
A boa marxista que Jorge conheceu nesta época foi Esther Ballestrino
de Careaga, a terceira mulher — depois da sua avó Rosa e da irmã
Dolores — que ele refere ter influído decisivamente nos seus primeiros
anos de vida. Ballestrino era uma comunista paraguaia que, no ano de
1949, aos vinte e nove anos de idade, tinha fugido à ditadura do seu
país e emigrara para Buenos Aires com as filhas. Ao longo de três anos,
Esther foi a sua «excelente chefe» no laboratório Hickethier-Bachmann.
Ela não só sensibilizou Jorge sobre a importância do trabalho científico
de qualidade, repetindo os testes para despistar as probabilidades —
* No original, «trickle-down economics», doutrina que defende que com o benefício dos mais ricos, os recursos acabam por pingar para o resto da economia. [N. da T.]
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 65
ele trabalhava na avaliação química dos nutrientes — como também o
municiou com as noções básicas da sua língua nativa, o guarani, e mui-
tos preceitos valiosos na área política. «Devo muito a esta mulher», afir-
mou ele em 2010. «Gostava muito dela.»
Os dois voltaram a encontrar-se uma década mais tarde, quando ele
era um provincial jesuíta e a família de Esther estava a ser vigiada pela di-
tadura militar. Bergoglio disponibilizou-se a esconder a coleção de livros
marxistas que ela possuía e a ajudá-la a localizar a sua filha Ana María,
uma delegada sindical comunista, depois de esta ter sido presa e desa-
parecer [mais tarde, veio a ser libertada]. Em sequência à busca da filha,
Esther acabou por ser uma das fundadoras de um movimento de direitos
humanos, as Mães da Plaza de Mayo, que denunciou os desaparecimen-
tos em massa durante a ditadura militar argentina na década de 1970.
Em junho de 1977, os militares sequestraram-na, a par de freiras france-
sas, quando decorria um encontro na igreja passionista de Santa Cruz.
Muitos anos depois, em 2005, quando os seus restos mortais foram
descobertos e identificados, Mabel, a outra filha de Esther, solicitou au-
torização a Bergoglio, na altura o arcebispo cardeal de Buenos Aires,
para ela ser enterrada no jardim da igreja de Santa Cruz, pois, justifi-
cando que: «aquele foi o último lugar onde elas estiveram como pessoas
livres.» Naturalmente, ele deu-lhe o seu acordo. E foi assim que uma
mulher paraguaia, comunista e ateia veio a ser sepultada no jardim da
igreja de Buenos Aires, do qual tinha sido levada para a assassinarem.
ao sEr aceite pelo seminário diocesano de Buenos Aires, Jorge deve-
ria começar os seus estudos no início do ano académico, em março de
1956. Ele deu a notícia aos pais em novembro de 1955, logo a seguir à
conclusão da sua formação como técnico de química, dois anos depois
da sua experiência no confessionário. O choque foi particularmente
profundo para Regina, que tinha apostado nos estudos do filho para
que ele viesse a ser médico. Era isso que ele lhe vinha a dizer e, quando
a mãe o confrontou com a sua mentira, Jorge defendeu-se com uma ha-
bilidade pré-jesuítica: «Mãe, eu não lhe menti», lembra-se María Elena
de o ouvir dizer. «Eu vou estudar a medicina da alma.»
66 FRANCISCO, O GRANDE REFORMADOR
Regina não seria a primeira mãe a tentar contrariar a decisão do
filho mais velho de abandonar o ninho. «Acho que ela teria reagido
da mesma maneira se ele lhe dissesse que ia casar ou viver para o es-
trangeiro», refere María Elena. Embora Mario, o seu pai, o apoiasse,
ele concordava com Regina que queria que Jorge esperasse um tempo
e tirasse um curso superior. Quando Jorge recusou, o ambiente em casa
encheu-se de tensão.
Calculando que Dom Enrico seria chamado a pronunciar-se, mais
cedo ou mais tarde, Jorge foi falar com ele. O padre Pozzoli questionou-
-o sobre a sua vocação, deu-lhe a sua bênção e pediu-lhe que rezasse
e deixasse o assunto nas mãos de Deus. E, de facto, alguém em casa
não tardou a sugerir: porque não falamos com o padre Pozzoli? Jorge
concordou com ar lacónico. A oportunidade surgiu em 12 de dezembro
de 1955, dois meses depois do golpe militar que depôs Perón, quando
Mario e Regina faziam vinte anos de casados e Dom Enrico dedicou
uma missa à família na Basilica de San José. Quando se reuniram a
seguir num café de Flores para o pequeno-almoço, o assunto da vocação
de Jorge veio à baila. «O padre Pozzoli disse que a ideia de ir para a uni-
versidade era boa, mas que era preciso aceitar as coisas tal como Deus
as quer», recorda-se Bergoglio.
Em seguida, ele começou a contar várias histórias a propósi-
to de vocações, sem tomar partidos, acabando por contar a sua
própria história: como um padre lhe tinha inculcado a ideia de
abraçar o sacerdócio, como em pouco tempo o tinham nomeado
subdiácono, depois diácono, e a seguir padre, como tudo tinha sido
tão inesperado… Nessa altura, o coração dos meus pais já estava
apaziguado. É evidente que o padre Pozzoli não concluiu dizendo
que eles deviam deixar-me ir para o seminário, nem lhes pediu
que tomassem uma decisão; ele compreendeu que tinha apenas
de os embrandecer. Isso era muito caraterístico dele… Não se sa-
bia onde ele queria chegar, mas ele chegava lá, e ele também não
queria chegar a um ponto onde parecesse que estava «a vencer».
Ao pressentir que estava a atingir o seu objetivo, ele recuava antes
que alguém se apercebesse disso. Assim, a decisão tornava-se li-
vre para as pessoas envolvidas; elas não se sentiam pressionadas.
NUM TEMPO REMOTO E NUM LUGAR DISTANTE 67
Contudo, ele tinha preparado os corações deles. Ele lançava as
sementes e deixava aos outros o prazer de fazer a colheita.
Os pais concordaram, mas Regina precisou de alguns anos para
aceitar a ideia e só o foi visitar na altura em que ele era um noviço dos
jesuítas en Córdoba. Em 1969, quando o filho foi ordenado, na altura já
viúva há muito tempo, e finalmente orgulhosa da sua decisão, ela ajoe-
lhou-se a pedir a sua bênção.
Rosa, a avó, já adivinhara há muito que este era o caminho que Jorge
ia seguir, mas fingiu ficar surpreendida. «Bom, se Deus te chama, ben-
dito sejas», disse ela, acrescentando que as portas estavam abertas se
ele resolvesse voltar, e que ninguém o iria recriminar se o fizesse. Para
Bergoglio, esta reação foi uma lição sobre como se deve orientar alguém
que toma uma decisão fundamental na sua vida.
Quando deu a notícia aos amigos, eles ficaram felizes por ele, mas
tristes por perderem uma companhia que lhes era querida. Seguiram-
-se abraços, e promessas de orações. E ainda alguns gracejos sobre
o que se desperdiçava no futuro do San Lorenzo. Algumas raparigas —
talvez desiludidas consigo próprias, e também tristes por o perderem
— choraram.
Em março de 1956, quando bateu à porta do seminário, Jorge tinha
vinte anos de idade, quase a idade do seu pai, Mario, ao embarcar no
Giulio Cesare.