Para as Mães Extremosas

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  • 7/25/2019 Para as Mes Extremosas

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    PARA AS MES EXTREMOSAS

    (Rubem Alves, psicanalista, educador, escritor.)

    Eu tenho planos definidos sobre as coisas que quero deixar escritas, como se fossem um testamento, as tais"ltimas palavras". Quero terminar um livro que comecei fa cinco anos, com os essenciais da minhafilosofia da educa!o# quero terminar um outro, sobre a est$tica do envelhecer# quero tamb$m escrever um

    outro, contando aos meus cole%as de profisso, terapeutas, aquilo que &ul%o ter aprendido. 'nfelimente,entretanto, a vida est cheia de acidentes que me desviam do meu alvo.

    Aconteceu comi%o essa semana & tinha esbo!ado a minha pr*xima cr+nica, que seria sobre a escola dosmeus sonhos. as a-, numa curva do caminho, um dem+nio se apossou de mim, baralhou meus pensamentos

    peda%*%icos e me ordenou que escrevesse uma coisa horr-vel que no estava nos meus planos. Refu%uei,disse que aquilo eu no escreveria, sabia que seria odiado por quem me lesse, mas no houve &eito. Quantomais eu resistia mais ele me apertava o %o%*. "e voc/ no fier o que estou mandando eu no deixarei quevoc/ escreva o que voc/ dese&a escrever..." Assim, vou escrever o que ele me ordenou escrever, no semantes pedir perdo aos meus leitores 0 esperando que eles entendam que no sou eu quem est escrevendo.Estou possu-do e s* vou escrever o que ele ditar.

    "1edicado 2s mes fofas, amorosas, extremosas, que s* pensam nos seus queridos filhos, de todos os maisbonitos, rao de suas vidas, s* lhes dese&ando o bem e sabendo o que $ melhor para eles, no economiandoreas, novenas e promessas no sentido de que eles se&am sempre seus filhinhos queridos, ficando com elasat$ o fim de suas vidas, como foi o caso da me da 3ita, do filme 45omo %ua para chocolate4.

    Amam tanto os seus filhos que & nem sobra tempo para os maridos, esquecidos e abandonados, muitoimportantes, $ verdade, indispensveis mesmo como o forte bra!o da lei que deve ser acionado sempre queos ditos filhos se recusarem a obedecer 2s ordens de suas extremosas e amorveis mes. 46oc/ vai 3er que seentender com o seu pai74 0 elas amea!am. 1e tanto ouvir essa amea!a os filhos acabam por compreender que

    pais so seres terr-veis, que det/m o monop*lio do dinheiro e da for!a f-sica, o%ros, tal como est explicadona est*ria do 48oo e o p$ de fei&o4 0 est*ria que, sem dvida al%uma, foi escrita por uma pobre e sofridameinha extremosa7

    3udo come!a nas deliciosas e inocentes brincadeiras de casinha. 9anelinhas, pratinhos, paninhos, tudoarran&ado de forma impecvel 0 casinha tem de ser bonitinha. E dentre as coisas arran&adinhas esto as

    bonecas. Ah7 5omo $ %ostoso brincar de boneca. A %ente aperta um botoinho e a boneca chora. Apertaoutro e ela ri. Apertado o terceiro, ela fala mame. 3erminado o tempo da brincadeira a %ente desli%a o botoda pilha e %uarda a boneca na caixa (cometi, por obra do dito dem+nio que tomou conta de mim, um lapsofreudiano terr-vel que lo%o apa%uei, mas tenho de confessar minha cabe!a ordenou que meus dedosescrevessem 4caixa4, mas os dedos desobedeceram e escreveram 4caixo4...), para onde ela vai sem protestar e

    dorme o tempo que mame ordenar.

    A brincadeira fica ruim quando a ami%uinha vem para brincar e tra uma boneca muito mais bonita que anossa, com bot:einhos que faem a boneca andar, cantar, dier frases inteiras. A- a me da boneca sub0desenvolvida fica triste, no quer brincar mais, sua filhinha querida deixa de ser motivo de or%ulho e passa aser motivo de ver%onha, e ela vai chorar com a me, diendo que quer uma boneca i%ual 2 boneca super0desenvolvida da ami%uinha. Quem quer que tenha dado uma ;arbie para a filha sabe que $ assim que a coisafunciona, 2s custas da inve&a. ;onecas no t/m vontade pr*pria. Elas existem para que suas mes tenhamor%ulho delas.

    A menininha cresce, tem um filho e a brincadeira continua. Ela quer que sua boneca viva se&a a mais bonita e

    tenha um mundo de bot:einhos < para faer inve&a a todas as outras mes. 9:e0se a sonhar e a colocar seussonhos sobre a boneca viva. onha com a profisso 0 sonhos de inteli%/ncia, de import=ncia, de riquea. >

    preciso freq?entar clubes ricos porque ser l que ela, se for uma menina, encontrar homens ricos quepossuem ;@s. E ser l que ele, se for menino, encontrar seus futuros pares de import=ncia. 5uidado

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    especial na escolha do col$%io. 1ever ser col$%io 4forte4, pois $ necessrio ir desenvolvendo o boto quefar com que ele ou ela passe no vestibular. Escola pblica nem pensar. Escola pblica $ evid/ncia de

    pobrea boneca mal vestida... E $ preciso por na aula de bal$, de in%l/s, de equita!o, de &ud+, de alemo(crian!a que nunca vai morar na Alemanha e nem ler oethe no ori%inal tem de aprender alemo. Queor%ulho dier 4eu filho me disse 4utti, 'ch liebe dich..4)

    A hist*ria da educa!o de um filho $ a hist*ria do feti!o pelo qual os pais e mes vo enredando seus filhos

    nas malhas dos seus dese&os. 9ode at$ ser que tenham, pendurado na parede, o texto do Bhalil ibran, emque ele di que 4nossos filhos no so nossos filhos.. Cs pais so o arco que dispara a flecha. Dossos filhosso a flecha..4 Eu & corri%i o erro do Bhalil ibran, que muito amo. 9orque uma flecha, ainda que erre oalvo, vai sempre na dire!o do alvo. Dossos filhos so flechas que, uma ve disparadas, se transformam emaves que voam para onde querem 0 para destinos com que seus pais nunca sonharam ou mesmo odiaram.9ara evitar que as aves voem para onde querem $ preciso en%aiolar as aves. Cs pais as en%aiolam pela for!a.5omo o fe o pai do &ovem do filme 4A ociedade dos 9oetas ortos4. C mo!o queria ser artista de teatro.as o pai tinha sonhos mais importantes para ele m$dico. as o &ovem queria voar e voc/s sabem o que elefe para no ficar na %aiola...

    ilhos so bonecos, no t/m entranhas, no t/m cora!o. 1evem faer o que os pais mandam. 5omo as

    bonecas, quando o boto $ apertado. C que tem suas vanta%ens. Quem fa obri%ado, pela for!a, aprende lo%oa li!o do *dio. C corpo vai na dire!o mandada. as o esp-rito voa e sonha com o dia em que, como o8oo, haver de cortar o p$0de0fei&o.

    Aquela pobre menina odiava aqueles la!os de fita enormes, %i%antescos, com que as mes de anti%amenteenfeitavam suas filhinhas. 9ara queF 9ara que suas filhinhas fossem feliesF Do. 9ara que elas, mes,ficassem felies e or%ulhosas, mostrando 2s outras mes suas filhinhas debaixo do la!o de fita. 9ois a meninano queria la!o de fita na cabe!a. as, como & disse, bonecas no t/m vontade pr*pria. A me era maisforte. E a pobre menininha ficava horas diante do espelho, achando0se rid-cula e chorando. A me triunfava..3odos falavam sobre a belea da fita e da menina. E a menina sofria. A ferida nunca sarou. Go&e, passadosmais de cinq?enta anos, ela ainda se lembra... e sofre. > poss-vel perdoar. Do $ poss-vel esquecer...

    as as mes extremosas, fofas e amorosas usam um artif-cio muito mais sutil e eficiente que a for!a. Cmenino de seis anos v/ os cabelos & %risalhos da me. 4ame, por que $ que seus cabelos esto ficando

    brancosF4 Responde a me, com um sorriso doce 4C cabelo preto vira cabelo branco com cada desobedi/nciado filho...4 A- o menino descobre que ele $ o assassino de sua me. A me, olhando para a filha adulta queno foi aquilo que ela dese&ava que ela fosse, per%unta0lhe com vo chorosa 49or que $ que voc/ me fasofrer tantoF4 ilha malvada, esquecida das noites mal0dormidas, das l%rimas vertidas 0 a%ora ousa viver asua pr*pria vida. As mes no usam a for!a. Hsam al%o mais terr-vel o sentimento de culpa que, traduidoda forma mais %rosseira, assim se resume 4ofri por voc/. A%ora voc/ tem de viver para mim.4 Quem $fis%ado pelo sentimento de culpa perdeu a liberdade, perdeu as asas. Dunca mais voar. En%aiolado para

    sempre.9or vees os pais e as mes mandam os filhos para o terapeuta. 3omam o terapeuta como seu aliado. Achamque o terapeuta $ um especialista em p+r aves selva%ens dentro da %aiola. as ficam atentos. 4eu filho,sobre o que voc/ o seu terapeuta conversaramF4 C mo!o ou mo!a, & fis%ado pela culpa, no mais tem direitoa um espa!o interior. ;onecas no t/m espa!o interior. 3er espa!o interior seria trair as noites mal dormidas eas l%rimas vertidas. E a- eles confessam que conversaram sobre a belea do v+o. Cs pais horroriadosdescobrem o que no sabiam que a misso dos terapeutas $ dar asas aos que no as possuem e dese&amvoar... im da terapia."

    1itas essas palavras o dem+nio me abandonou e eu voltei a ser o que sempre sou...