Para lá das cinzas - Universidade de Coimbra · 2015-06-02 · A amostra analisada é constituída...

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Para lá das cinzas: Evidências de patologia nos remanescentes ósseos humanos cremados do Calcolítico final, exumados do ambiente 1 do recinto dos Perdigões. Daniela PEREIRA 1 , Ana Maria SILVA 1,2 , Inês LEANDRO 1,2 , António VALERA 3 1 Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal 2 Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal 3 Núcleo de Investigação Arqueológica, Era S.A., Portugal Em 2010, identificou-se uma área bastante extensa com vários depósitos de ossos humanos cremados no centro do recinto (Sector Q) dos Perdigões, Reguengos de Monsaraz, Évora. O ambiente 1, situa-se sobre a Fossa 40 e corresponde a uma estrutura de pedras semicircular e depósitos associados (Fig.1). As datações de radiocarbono disponíveis remetem para meados / terceiro quartel do 3º milénio a.n.e. (Valera et al., 2014). Trata-se de uma deposição coletiva e secundária, caracterizando-se por uma acumulação de ossos humanos e fauna maioritariamente calcinados e bastante concrecionados, de reduzido tamanho (Fig.2). Não existem evidências do ateamento de fogo in situ, ainda que alguns depósitos sejam ricos em cinzas, mas com poucos carvões. A amostra analisada é constituída pelos remanescentes ósseos humanos de 72 indivíduos adultos (1 do sexo feminino e outro masculino) e 18 não adultos. Neste trabalho documentam-se as patologias identificadas nos fragmentos osteológicos . 1. Ambiente 1, sector Q, Perdigões, na campanha de 2011 onde são percetíveis pequenos fragmentos de ossos calcinados. Foto de António Valera. Introdução Caracterização da amostra Foram analisados 24086 fragmentos ósseos humanos adultos termicamente alterados, correspondendo a 44831,21 gramas. Nos não adultos a observação incluiu 178 fragmentos. Das alterações sofridas pelo osso aquando a combustão, destacam-se o padrão de fratura e a coloração. No primeiro, registou-se a fissura transversal curvada em (199/1660), o que indica que pelo menos alguns indivíduos terão sido cremados na condição de cadáver (Herrmann e Bennett, 1999). As cores predominantes são o branco (13668/23378) e o gradiente cinza/azul (4961/23378), sugerindo um alcance superior a (>600º) de temperatura (Shipman et al., 1984; Bellard, 1996). Evidências paleopatológicas A análise paleopatológica foi deveras condicionada pela natureza da amostra. A elevada fragmentação, bem como as alterações tafonómicas decorrentes do fogo, do transporte e do manuseamento dos remanescentes dificultaram a interpretações de algumas evidências. No âmbito da patologia oral, a perda de dentes ante mortem registou uma frequência de 16,7% (20/114), maioritariamente na dentição superior (21,25%). Observou-se ainda uma cárie (grau 6, Hillson, 2001) da superfície da raiz distal dum primeiro molar superior esquerdo. A avaliação do desgaste dentário nos dentes superiores revelou uma frequência de 55% do grau 3 (Smith, 1984). Nos inferiores foram registados os graus 3 e 4 em 35,71% dos dentes. A patologia degenerativa articular foi igualmente observada em 5 elementos ósseos. Dois metacárpicos (Fig.3) e um metatársico exibiam alterações de grau 1 (Assis, 2007) e os restantes três, pertencentes a corpos vertebrais revelaram a presença de labiação e porosidade (grau 4 segundo Assis, 2007). As entesopatias registadas ocorreram sobretudo nos ligamentos flexores das falanges proximais e intermédias das mãos e dos pés (61/64). Estas alterações surgem em zonas de repetida acção muscular das referidas zonas anatómicas (Capasso et al., 1999). Um fragmento de diáfise de perónio (Fig.4) revela sinais de inflamação do periósteo com uma extensão de 30mm, representando uma lesão remodelada. A periostite encontra-se frequentemente documentada em populações cujo meio de subsistência é a agricultura (Silva, 2012). Como indicadores de stress fisiológico , reportou-se um caso de cribra orbitalia (Fig.6) bastante evidente. Sinais de hiperostose porótica (Fig.5) foram registadas em 21 fragmentos cranianos. Estas porosidades são frequentemente associadas com anemia, diversos défices nutricionais e infecções (Hershkovitz e Gopher, 2008). Num fragmento de osso craniano é visível uma depressão com cerca de 10mm de diâmetro, no lado exocraniano (Fig.7). Esta apresenta um rebordo irregular podendo corresponder a uma fractura tipo depressão ou um caso de trepanação incompleta. Outros sinais de trauma são evidentes em quatro falanges do pé, pela presença de crescimento ósseos e num caso, documentou- se ainda a fusão de uma falange intermédia com uma distal. A amostra analisada provém de um contexto funerário singular da Pré-história portuguesa, um local de deposição secundária e colectiva de ossos humanos cremados. É constituída por um número mínimo de 90 indivíduos. Apesar das dificuldades na observação e interpretação de lesões e patologias neste tipo de amostras, alguns fragmentos ósseos permitiram a identificação de diversas patologias, incluindo degenerativa, infeciosa, oral, traumática e sinais de stress fisiológico. Entre estes, destaca-se um possível caso de trepanação. É importante referir que estes resultados são preliminares uma vez que este depósito ainda não foi totalmente escavado nem o material osteológico todo estudado. Considerações finais Referências bibliográficas: Assis, S. 2007. A memória dos rios no quotidiano dos homens: contributo de uma série osteológica proveniente da Constância para o conhecimento dos padrões ocupacionais. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Departamento de Antropologia [não publicado]. Bellard, F.G. 1996. El análisis antropológico de las cremaciones. Complutum Extra 6(2): 55-64. Capasso, L.; Kennedy, K.;Wilczak, C. 1999. Atlas of occupational markers on human remains. Teramo, Edigrafital S.P.A. Herrmann, N.P.: Bennett, J.L. 1999. The differenciation of traumatic and heat-related fratures in burned bone. Journal of Forensic Science 44(3): 461-469. HershKovitz, I.; Gopher, A. 2008. Demographic, biological and cultural aspects of Neolithic revolution: a view from the southern Levant. In: The Neolithic demographic transition and its consequences. Bocquet-Appel, JP.; Bar-Yosef, O. (Eds). Sringer, 441- 479. Shipman, P.; Foster, G.; Schoeninger, M. 1984. Burnt bones and teeth: na experimental study of colour, morphology, crystal structure and shrinkage. Journal of Archaeological Science 11(4): 307-325. Silva, A.M. 2012. Antropologia funerária e paleobiologia das populações portuguesas (litorais) do Neolítico/Calcolítico. Textos universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian: Fundação para a Ciência e Tecnologia. Smith, B.H. 1984. Patterns of molar wear in hunter-gatherers and agriculturalists. American Journal of Physical Anthropology 63: 39-84. Valera, A.C., Silva, A.M. e Márquez Romero, J.E. (2014), “The temporality of Perdigões enclosures: absolute chronology of the structures and social practices”, SPAL, 23: 11-26. 2.Aspeto geral da amostra osteológicos analisada do ambiente 1 do Recinto dos Perdigões. 3. Osteófito na superfície dorsal distal de um metacárpico U.E 160, ambiente 1. 4. Sinais de Periostite num fragmento de diáfise de perónio da U.E 2, ambiente 1. 5. Possíveis casos de hiperostose porótica em fragmentos cranianos da U.E. 2, ambiente 1. 6. Órbita com evidências de Cribra Orbitalia da U.E. 160, ambiente 1. 7. Fragmento craniano com lesão no exocrânio da U.E 159, ambiente 1. PEst-OE/SADG/UI0283/2013

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Para lá das cinzas: Evidências de patologia nos remanescentes ósseos humanos cremados do Calcolítico final,

exumados do ambiente 1 do recinto dos Perdigões.

Daniela PEREIRA1, Ana Maria SILVA 1,2, Inês LEANDRO1,2, António VALERA3 1 Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal 2 Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS), Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, Portugal 3 Núcleo de Investigação Arqueológica, Era S.A., Portugal

Em 2010, identificou-se uma área bastante extensa com vários depósitos de ossos humanos cremados no centro do recinto (Sector Q) dos Perdigões, Reguengos de Monsaraz, Évora. O ambiente 1, situa-se sobre a Fossa 40 e corresponde a uma estrutura de pedras semicircular e depósitos associados (Fig.1). As datações de radiocarbono disponíveis remetem para meados / terceiro quartel do 3º milénio a.n.e. (Valera et al., 2014). Trata-se de uma deposição coletiva e secundária, caracterizando-se por uma acumulação de ossos humanos e fauna maioritariamente calcinados e bastante concrecionados, de reduzido tamanho (Fig.2). Não existem evidências do ateamento de fogo in situ, ainda que alguns depósitos sejam ricos em cinzas, mas com poucos carvões. A amostra analisada é constituída pelos remanescentes ósseos humanos de 72 indivíduos adultos (1 do sexo feminino e outro masculino) e 18 não adultos. Neste trabalho documentam-se as patologias identificadas nos fragmentos osteológicos .

1. Ambiente 1, sector Q, Perdigões, na campanha de 2011 onde são percetíveis pequenos fragmentos de ossos calcinados. Foto de António Valera.

Introdução Caracterização da amostra

Foram analisados 24086 fragmentos ósseos humanos adultos termicamente alterados, correspondendo a 44831,21 gramas. Nos não adultos a observação incluiu 178 fragmentos. Das alterações sofridas pelo osso aquando a combustão, destacam-se o padrão de fratura e a coloração. No primeiro, registou-se a fissura transversal curvada em (199/1660), o que indica que pelo menos alguns indivíduos terão sido cremados na condição de cadáver (Herrmann e Bennett, 1999). As cores predominantes são o branco (13668/23378) e o gradiente cinza/azul (4961/23378), sugerindo um alcance superior a (>600º) de temperatura (Shipman et al., 1984; Bellard, 1996).

Evidências paleopatológicas

A análise paleopatológica foi deveras condicionada pela natureza da amostra. A elevada fragmentação, bem como as alterações tafonómicas decorrentes do fogo, do transporte e do manuseamento dos remanescentes dificultaram a interpretações de algumas evidências. No âmbito da patologia oral, a perda de dentes ante mortem registou uma frequência de 16,7% (20/114), maioritariamente na dentição superior (21,25%). Observou-se ainda uma cárie (grau 6, Hillson, 2001) da superfície da raiz distal dum primeiro molar superior esquerdo. A avaliação do desgaste dentário nos dentes superiores revelou uma frequência de 55% do grau 3 (Smith, 1984). Nos inferiores foram registados os graus 3 e 4 em 35,71% dos dentes. A patologia degenerativa articular foi igualmente observada em 5 elementos ósseos. Dois metacárpicos (Fig.3) e um metatársico exibiam alterações de grau 1 (Assis, 2007) e os restantes três, pertencentes a corpos vertebrais revelaram a presença de labiação e porosidade (grau 4 segundo Assis, 2007). As entesopatias registadas ocorreram sobretudo nos ligamentos flexores das falanges proximais e intermédias das mãos e dos pés (61/64). Estas alterações surgem em zonas de repetida acção muscular das referidas zonas anatómicas (Capasso et al., 1999). Um fragmento de diáfise de perónio (Fig.4) revela sinais de inflamação do periósteo com uma extensão de 30mm, representando uma lesão remodelada. A periostite encontra-se frequentemente documentada em populações cujo meio de subsistência é a agricultura (Silva, 2012). Como indicadores de stress fisiológico , reportou-se um caso de cribra orbitalia (Fig.6) bastante evidente. Sinais de hiperostose porótica (Fig.5) foram registadas em 21 fragmentos cranianos. Estas porosidades são frequentemente associadas com anemia, diversos défices nutricionais e infecções (Hershkovitz e Gopher, 2008). Num fragmento de osso craniano é visível uma depressão com cerca de 10mm de diâmetro, no lado exocraniano (Fig.7). Esta apresenta um rebordo irregular podendo corresponder a uma fractura tipo depressão ou um caso de trepanação incompleta. Outros sinais de trauma são evidentes em quatro falanges do pé, pela presença de crescimento ósseos e num caso, documentou-se ainda a fusão de uma falange intermédia com uma distal.

A amostra analisada provém de um contexto funerário singular da Pré-história portuguesa, um local de deposição secundária e colectiva de ossos humanos cremados. É constituída por um número mínimo de 90 indivíduos. Apesar das dificuldades na observação e interpretação de lesões e patologias neste tipo de amostras, alguns fragmentos ósseos permitiram a identificação de diversas patologias, incluindo degenerativa, infeciosa, oral, traumática e sinais de stress fisiológico. Entre estes, destaca-se um possível caso de trepanação. É importante referir que estes resultados são preliminares uma vez que este depósito ainda não foi totalmente escavado nem o material osteológico todo estudado.

Considerações finais

Referências bibliográficas: Assis, S. 2007. A memória dos rios no quotidiano dos homens: contributo de uma série osteológica proveniente da Constância para o conhecimento dos padrões ocupacionais. Dissertação de Mestrado em Evolução Humana. Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Departamento de Antropologia [não publicado]. Bellard, F.G. 1996. El análisis antropológico de las cremaciones. Complutum Extra 6(2): 55-64. Capasso, L.; Kennedy, K.;Wilczak, C. 1999. Atlas of occupational markers on human remains. Teramo, Edigrafital S.P.A. Herrmann, N.P.: Bennett, J.L. 1999. The differenciation of traumatic and heat-related fratures in burned bone. Journal of Forensic Science 44(3): 461-469. HershKovitz, I.; Gopher, A. 2008. Demographic, biological and cultural aspects of Neolithic revolution: a view from the southern Levant. In: The Neolithic demographic transition and its consequences. Bocquet-Appel, JP.; Bar-Yosef, O. (Eds). Sringer, 441- 479. Shipman, P.; Foster, G.; Schoeninger, M. 1984. Burnt bones and teeth: na experimental study of colour, morphology, crystal structure and shrinkage. Journal of Archaeological Science 11(4): 307-325. Silva, A.M. 2012. Antropologia funerária e paleobiologia das populações portuguesas (litorais) do Neolítico/Calcolítico. Textos universitários de Ciências Sociais e Humanas. Fundação Calouste Gulbenkian: Fundação para a Ciência e Tecnologia. Smith, B.H. 1984. Patterns of molar wear in hunter-gatherers and agriculturalists. American Journal of Physical Anthropology 63: 39-84. Valera, A.C., Silva, A.M. e Márquez Romero, J.E. (2014), “The temporality of Perdigões enclosures: absolute chronology of the structures and social practices”, SPAL, 23: 11-26.

2.Aspeto geral da amostra osteológicos analisada do ambiente 1 do Recinto dos Perdigões.

3. Osteófito na superfície dorsal distal de um metacárpico U.E 160, ambiente 1.

4. Sinais de Periostite num fragmento de diáfise de perónio da U.E 2, ambiente 1.

5. Possíveis casos de hiperostose porótica em fragmentos cranianos da U.E. 2, ambiente 1.

6. Órbita com evidências de Cribra Orbitalia da U.E. 160, ambiente 1. 7. Fragmento craniano com lesão no exocrânio da U.E 159, ambiente 1.

PEst-OE/SADG/UI0283/2013