Para Uma Historia Cultural- Jean-Pierre Rioux

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---- - ---- direcção de Jean-Pierre Rioux Jean-François Sirinelli PARA UMA HISTÓRIA CULTURAL

Transcript of Para Uma Historia Cultural- Jean-Pierre Rioux

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    direco de

    Jean-Pierre Rioux Jean-Franois Sirinelli

    PARA UMA HISTRIA CULTURAL

    eduardoreisdeoliveiraText BoxRIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean- Franois. Para uma histria cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

  • direco de Jean-Pierre Rioux

    Jean-Franois Sirinelli

    PARA UMA HISTRIA CULTURAL

    1998 EDITORIAL ESTAMPA

  • FICHA TCNICA Ttulo original: Pour une histoire culturelle Colaboradores: Jean Pierre Rioux, Jean-Franois Sirinelli, Maurice Agulhon, Stphane

    Audoin-Rouzeau, Antoine de Baecque, Annette Becker, Yves-Marie Berc, Serge Berstein, Jean-Patrice Boudet, Alain Corbin, Alain Croix, Georges Duby, Marie-Claude Genet-Delacroix, Augustin Girrd, Anita Guerreau-Jalabert, Jean-Noel Jeanneney, Michel Lagre, Jean-Michel Leniaud, Grard Monnier, KrzysztofPomian, Christophe Prochasson, Antoine Prost, Daniel Roche, Michel Sot e Philippe Urfalino

    Traduo: Ana Moura Capa: Jos Antunes Ilustrao da capa: A Cidade Inteira, pintura de Max Ernst, 1935, Museu de Belas-

    -Artes, Zurique Composio: Byblos- Fotocomposio, Lda. Impresso e acabamento: Rolo & Filhos- Artes Grficas, Lda. 1." edio: Janeiro de 1998 ISBN 972-33-1307-3 Depsito Legal n.0 120067/98 Copyright: ditions du Seui11 1997

    Editorial Estampa, Lda., Lisboa, 1998 para a lngua portuguesa, excepto Brasil

    NDICE

    INTRODUO- UM DOMNIO E UM OLHAR, Jean Pierre-Rioux ........... 11 Um panorama .................................. ........................... .................... 1 2 Questes de fim de sculo........................................................... 15 O tempo das representaes ..... .... ........................... .................... 1 7 O lado do contemporneo............................................................ 1 9 Margens seguras: 21

    ITINERRIOS UMA DECLINAO DAS LuzEs, Daniel Roche .................................... .

    A Sorbonne sem as Annales ................................................. .. Ernest Labrousse: do econmico ao social .............................. . Investigao, livro e sociedade ................................................ .. Histria das mentalidades ou histria das culturas? .............. . O estudo das sociabilidades culturais ....................................... . Esquecer Tocqueville e Cochin? ................................................ . A histria dos livros e dos seus usos ...................................... .. Entre produo e textualidade .................................................. .. Quantificar ou no? ..................................................................... . Para a histria dos consumos culturais .................................... .

    MARX, A ALUGADORA DE CADEIRAS E A PEQUENA BICICLETA, Alain Croix ......................................................................................... .

    Da demografia ............................................................................... . ... histria cultural ..................................................................... . Que histria cultural? ................................................................. .. A dialctica ................................................................................... . ... e a vida ...................................................................................... .

    HISTRIA CULTURAL, HISTRIA DOS SEMIFOROS, Krzysztof Pomian .. A abordagem semitica e a abordagem pragmtica ............. . Os semiforos entre outros objectos visveis ....................... .

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  • A diversidade de semiforos ...................................................... . A controvrsia sobre a noo de cultura ............................. . Notas finais ...................................................................................

    Do LIMOUSIN S CULTURAS SENSVEIS, Afain Corbin ......................... . A impossvel histria total e a tentao da antropologia .. . Para uma histria do paroxismo e do horror ........................... . A confuso das leituras da paisagem ....................................... . O poder de evocao das sonoridades desaparecidas ............ . O uso dos sentidos e figuras da cidade ................................... .

    MARIANA, OBJECTO DE CULTURA?, Maurice Agulhon .................... . Do pitoresco provincial ao emblemtico nacional ................. . Do emblema ao smbolo ............................................................ .. Da Histria Arte ............................................................. : ......... . A excepo francesa, de novo ................................................... . E por fim as inquietaes francesas ........................................ ..

    SOCIAL E CULTURAL INDISSOCIAVELMENTE, Antoine Prost .................. . A Histria Cultural e as suas vizinhas .................................... .. Para a histria social das representaes ................................. . Objectos e mtodos da histria cultural .................................. .. Trs problemas para concluso .................................................. .

    AUDIOVISUAL: O DEVER DE NOS OCUPARMOS DELE, Jean-Noe/ Jeanneney ................................................................................ .

    O entusiasmo e as dificuldades ................................................. . A batalha dos arquivos ............................................................... . Desenhar um campo novo .......................................................... . O questionrio e o mtodo ........................................................ .. France-Culture, por exemplo ...................................................... . Abismo final .................................................................................. .

    PERODOS

    A SINGULARIDADB MEDIEVAL, Michel Sot, Anita Guerreau-lalabett e Jean-Patrice Boudet ........................................................... .

    Legitimidade de uma histria cultural da Idade Mdia ......... . Reconhecer a singularidade da cultura medieval ................... . Os trs perodos de uma histria da Frana na Idade Mdia

    RUMORES DOS SCULOS MODERNOS, Yves-Mare Berc ...................... . Os embaraos da 'histria poltica ............................................. . O historiador escuta dos rumores .......................................... . Os exemplos do Vero de I598 ................................................. .

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    O fantasma do Monteiro-mar ..................................................... . O homem comudo da floresta do Mans ................................... . A redescoberta dos momentos inacabados da histria .......... .

    A REVOLUO FRANCESA: REGENERAR A CULTURA?, Antoine de Baecque .............................................................................. .

    Uma histria reaberta .................................................................. . Os novos domnios da cultura revolucionria ......................... . Uma outra cultura para um novo homem ................................ . Um projecto cultural em transformao ................................... .

    A RIQUEZA DAS BELAS-ARTES REPUBLICANAS, Marie-Claude Genet-Delacroix ...................................................................... .

    Um direito solicitude pblica ................................................. . Poder e unidade da arte .............................................................. .

    0 CASO EM TODOS OS SEUS ASPECTOS, Christophe Prochasson ....... . Produes e produtores culturais .............................................. . Uma antropologia histrica do caso Dreyfus .......................... .

    VIOLNCIA E CONSENTIMENTO: A CULTUR~ DE GUERRA DO PRIMEIRO CONFLITO MUNDIAL, Stphane Audoin-Rouzeau e Annette

    Becker ....................................................................................... . Mundializao e totalizao ....................................................... . Messianismo, milenarismo e escatologia .................................. .

    OBRAS

    As ELITES CULTURAIS, Jean-Franois Sirinelli ................................. . Questes de princpio .................................................................. . Elites politicamente divididas .................................................... . Hugo, Sartre, Foucault ................................................................. . Bolseiros ou herdeiros? ............................................................... . Redes e homens ............................................................................ . Mudana de paradigma? ............................................................. . Jogos de espelhos? ....................................................................... .

    As INVESTIGAES SOBRE AS PRTICAS CULTURAIS, Augustin Girard. A sua natureza e os seus mtodos ............................................ . Os seus resultados e os seus limites ......................................... . Os efeitos ....................................................................................... .

    A HISTRIA DA POLTICA CULTURAL, Philippe Urfalino ..................... . No plural e no singular ............................................................... . A singularidade de uma inveno: o momento Malraux ....... .

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  • A MEMRIA COLECTIVA, Jean-Pierre Rioux ....................................... . Uma figura imposta ...................................................................... .

    ~~%~r~~s ~~~~~;:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: Uma singularidade revisitada .................................................... .. Permanncia da febre .................................................................. .

    0 PATRIMNIO RECUPERADO. 0 EXEMPLO DE SA!NT-DENIS, J ean-M ichel Leniaud .............................................................. .

    Patrimnio rejeitado ..................................................................... . Patrimnio recuperado: primeira metamorfose ........................ . Patrimnio recuperado: segunda metamorfose ........................ . Patrimnio recuperado e transferncia de cargos ................... . Orientao bibliogrfica .............................................................. .

    A CULTURA POLTICA, Serge Berstein ................................................. . O que a cultura poltica? ........................................................ .. Cultura poltica ou culturas polticas? ..................................... .. Um fenmeno evolutivo .............................................................. . Para que servem a cultura poltica e o seu estudo? ............... .

    HISTRIA RELIGIOSA E HISTRIA CULTURAL, Michel Lagre Configuraes ............................................................................... . Grandes tendncias ...................................................................... . Actualidades .................................................................................. .

    HISTRIA DAS ARTES E TIPOLOGIA, Grard Monnier .......................... . As categorias tradicionais da arte ............................................ .. A metamorfose da tipologia ....................................................... . O sismo industrial ........................................................................ . Mtodos e objectivos da histria das artes .............................. . Uma questo de pertinncia ....................................................... .

    MENSAGENS

    A HISTRIA CULTURAL, Georges Duby .............................................. ..

    ELOGIO DA COMPLEXIDADE, Jean-Franois Sirinelli ......................... . Subida em fora ............................................................................ . Uma histria enriquecida ............................................................ . Um ganho epistemolgico? ....................................................... ..

    Os AUTORES ....... " ......................................

    NDICE REMISSIVO ...........................................

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    INTRODUO UM DOMNIO E UM OLHAR

    Jean-Pierre Rioux

    Este livro colectivo tem por origem directa as intervenes no seminrio que Jean-Franois Sirinelli e eu prprio orientamos desde 19891 Apresenta um amplo conjunto de provas e de interrogaes, debatidas e postas em comum por historiadores de todas as geraes, mestres, os que esto a elaborar teses e estudantes do ensino superior, caminhando lado a lado. Tem apenas uma ambio: dar conta da reflexo plural, de ordem historiogrfica e metodolgica, feita a pro-psito da proliferao do adjectivo cultural, aplicado em tantos trabalhos histricos de hoje, e da afirmao, a partir de ento muito prometedora, de uma autntica histria cultural da Frana contempo-

    1 Politiques et institutions culturelles de la France contemporaine no Ins-tituto de Histria do Tempo Presente do CNRS de 1989 a 1991, Histoire culturelle de la France au xxe siecle no Centro de Histria da Europa do sculo xx da Fundao Nacional das Cincias Polticas de Paris de 1991 a 1994 e na Columbia University in Paris desde 1994. Beneficou na origem de um apoio do Ministrio da Cultura e, desde 1993, do seu Comit de Histria (sobre as indicaes assim facilitadas, ver Jean-Pierre Rioux dir., L' Histoire culturelle de la France contemporaine. Bilans et perspectives de la recherche, Paris, Ministrio da Cultura e IHTP-CNRS, 1987,4 vol. multigr., e Jean-Pierre Rioux e Jean-Franois Sirinelli dir., Histoire des politiques et des institutions culturelles en France depuis un demi-siecle (des annes 1940 nos jours). Un programme de recherche, Paris, IHTP-CNRS, 1990, multigr.). Sobre os inquritos que foram realizados, ver J. P. Rioux e J.-F. Sirinelli dir., Les Politiques culturelles municipales. lments pour une approche historique, Paris. Les Cahiers de 1 'IHTP, CNRS, 1990, e Augustin Girard, Jean-Pierre Rioux, Jean-Franois Sirinelli dir., Les Affaires culturelles au temps de Jacques Duhamel ( 1971-1973 ), Paris, Comit de Histria do Ministrio da Cultura- A Documentao Francesa, 1995.

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    rnea. Ele recusa de passagem, e sem polmica, certa afirma~o inconsiderada que deixa fazer crer que a histria cultural no se~Ia mais que uma frmula vazia e pretensiosa2, uma moda passageua ou um complemento de alma por tempo de latncia epistemolgica. E se no ttulo mostra algum voluntarismo, para melhor fazer com: preender que a esperana dispe de uma base. ~as escusado sera dizer que no desejamos lanar um daqueles mamfestos que provo-cam alguma agitao, nem percorrer um territrio em vias d~ ap~opriao, colectiva ou parcelar. A histria cultural por dema~s VIva e estimula bastante o historiador no seu ntimo: por favor, deixemo--la respirar livremente.

    Um panorama

    Alguns historiadores dos sculos XIX e XX, mas tambm - e. isso interessava-nos muito - de perodos anteriores precursores, dizem aqui, com toda a franqueza, por que caminhos pessoais alcanaram o ponto mais sensvel do cultural, que novas luzes este trouxe ao es.tudo dos perodos considerados, que riquezas se lhes revelaram nos diver-sos stios explorados. Sete itinerrios, pessoais e reivindicados como tais em voz mais ou menos alta, descrevem primeiramente, a par e passo de uma especializao temtica, as navegaes com ou sem bssolas, as viragens ou os prolongamentos, as intuies e os esforos que, de um modo ou de outro, levaram construo de objectos de investigao considerados culturais. O voluntarismo de uma ca~inhada fora das sendas trilhadas, a capacidade de recomear e de movar sem cuidar das precedncias na escolha dos assuntos, a dignidade crtica que recusa o vaguear dolorista na moda, a alegria de p~ilhar um trabalho continuamente delineado e tambm a simples fidelidade a si prprio: tantas as qualidades, bastante raras, mas tidas por naturais

    2 Jacques Le Goff e Nicolas Rousselier, Prefcio de Fran?is !3~d.arida dir., L'Histoire et le Mtier d'historien en France, 1945-1995, Pans, EdttLOns de la Maison des Sciences de 1 'homme, 1995, p. 16. Esta expresso infirma o captulo da mesma obra (pp. 339-349) em que Michel Sot e Jean-Franois Sirinelli auten-ticam a histria cultural.

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    por aqueles que as cultivaram e que bem se sente serem as preceptoras do historiador do cultural. Cumpre-nos agradecer a Daniel Rache, Alain Croix, Krzysztof Pomian, Alain Corbin, Maurice Agulhon, Antoine Prost e Jean-Noel Jeanneney (pela ordem cronolgica do resultado dos seus trabalhos, do tempo das Luzes ao das estranhas trapeiras), por permitirem a reflexo, recordando tudo isso livremente, cada um no seu estilo e cada um com o seu temperamento. Tanto mais que as suas sete realizaes deixam perceber - evidente, mas muito melhor diz-lo - que, prosseguindo a sua investigao, deter-minando os alvos, brunindo os factos e at quando reivindica uma singularidade, o historiador do cultural continua a ser, no sentido pleno, simplesmente um historiador, bem agarrado aos pleonasmos herdados: toda a histria, por definio, social e sonha ser total.

    Numa segunda parte, nove investigadores afirmam a renovao das divises do trabalho histrico em perodos desde que estes sejam considerados sob o ngulo culturaL Em seis domnios que lhes so caros, e tambm aqui cronologicamente dispostos, assinalam tem-poralidades de velocidade varivel, verdadeiras rupturas, incertezas ideais e acidentes mentais cuja narrao contribui de ora em diante para melhor tentar restituir o real. Eles descobrem projectos rege-neradores, ousadias institucionais, correces de trajectria ideol-gica, messianismos fora de moda cuja curvatura temporal descobre velhas regies da alma: tantos traos culturais cuja anlise fortalece o acontecimento e singulariza uma parte de sculo; tantas deslocaes ou ponteados que postos em exergo realam e do cor ao traado de uma poca. No de admirar ter de ler esse percurso em dois tempos, a montante e a jusante da fractura matricial de 1789, de que a histria cultural refora a contemporaneidade, constitutiva como se sabe de uma parte to forte da tradio historiogrfica francesa, e de que ambiciona fazer reler a demarcao utpica. Michel Sot, Anita Guerreau-Jalabert, Jean-Patrice Boudet, Yves-Marie Berc e Antoine de Baecque recordam, com razo, que tudo comeou na histria dos tempos moderno e medieval, que nada terminar sem a contribuio e o reforo constantes dos seus historiadores pioneiros, descendentes directos ou no de Marc Bloch e Lucien Febvre. Por seu lado, Marie--Claude Genet-Delacroix, Christophe Prochasson, Stphane Audoin-

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  • -Rouzeau e Anette Becker assinalam a vastido do que novo em trs domnios que se julgava praticamente esgotados, o caso Dreyfus, a III Repblica triunfante e a Grande Guerra: trs e~emplos.' _e~tre outros; trs experincias felizes que alimentam o deseJO de dmgir o olhar cultural, com a maior urgncia, sobre todo o panorama contem-porneo.

    A terceira parte, sob aparncias menos perturbadoras, mas com ambies igualmente novas, fing~ i~norar o aconteci~en~o ~ a periodizao, pelo menos numa pnmeira fas~. Porque da pr~meuamente conta da explorao segmentada, mais ou menos adiantada consoante a ordem dos captulos, de obras cuja delimitao foi, em boa parte, uma resposta de autores de trabalhos de histria, ur~ente desde h vinte anos, a provocaes da poca ou, como se diz, a perguntas a que a histria cultural era particularmente sensvel. Recusas das elites, artifcios do poltico muito mal vividos, perturba-es e desenvolvimentos dos consumos culturais, gritos de lembran-as antagonistas ou ameaadas de desaparecimento, fetichismos do patrimnio, insignificncias e confuses do espao urbano, retornos espectaculares do religioso ao quotidiano, silncios ou enigmas da produo artstica de massa: tantas chamada~ e sinais do_ pr~se~te, mediatizados e individualizados num mesmo Impulso e CUJa vuulen-cia ignora o tempo e exige simultaneamente uma perspectivao. Os textos de Jean-Franois Sirinelli, Augustin Girard, Philippe Urfalino, Jean-Michel Leniaud, Serge Berstein, Michel Lagre, Grard Monnier e os meus prprios esto penetrados dessa provocao social e cvica. Tentam sobretudo dizer quanto a organizao dessa intimao pelos historiadores deve ser activa: seguindo, decerto, a mais forte propen-so para uma interpelao muito fim de sculo, isto , a maior parte das vezes cultural, mas sem nunca entregar as armas do ofcio, nem renunciar a trabalhar com ardor com a ajuda das disciplinas irms de pleno exerccio, como a histria religiosa ou a histria de arte, e a dos perodos mais recuados, a modema e a medieval cabea. E a este preo que os to activos estaleiros no passaro a ser montras decepcionantes.

    O livro termina no com concluses mas com duas homenagens que aparentemente fazem a grande separao. Depois de ter vindo falar-nos no seminrio do fecundo resultado do seu itinerrio, Georges

    Duby assina retroactivamente a sua participao na nossa reflexo, dando novamente aqui um texto redigido em Abril de 1968, em que j colocava a histria cultural no centro do prosseguimento da inves-tigao histrica e no meio das cincias do homem. Quanto a Jean--Franois Sirinelli, recorda quase trinta anos depois o que ento mais o preocupava e que, como se espera, dar vida a este livro: o contem-porneo, com toda a sua virulncia poltica historicamente revalori-zada3, no s participa plenamente desta histria cultural, como tam-bm contribui singularmente para a aprofundar, renovando ao mesmo tempo os seus paradigmas. E por conseguinte impondo-a.

    Questes de fim de sculo

    Sem dvida que se poder perguntar: mas de que est a falar? A esta pergunta to legtima, responder-se- primeiramente com

    um rodeio, em que se entrever que esta histria uma verdadeira filha do seu tempo. Com efeito, ela regista e interroga todas as mu-danas de perspectiva que nos afectam neste fim de sculo e de que o ano de 1989 significou o mpeto. Eis que em dois decnios no s a ideologia do progresso mostrou os seus limites em tempo de crise da economia de mercado e de deliquescncia das formas herdadas do capital e do trabalho, como implodiu a Leste o ltimo grande messia-nismo ateu e imperialista do sculo, enquanto o Sul em sofrimento procura desforrar-se na modernidade ocidental. Eis que todas as con-fisses religiosas, sem falar de seitas e de ideais new age que arras-tam, reinstalam no antigo mundo bipolar o indivduo em dissidncia e o identitrio em glorola; que as cincias e a filosofia, via biotica e inteligncia artificial disposta em redes, cantam de novo a virtude analtica e o indivduo pensante, promovem ao mesmo tempo o empirismo e os valores; que a mundializao e a instantaneidade da troca podem, paradoxalmente, chamar a ateno para uma ameaa de descontinuidade na aventura dos grupos humanos. Esta nova conjun-tura, como se v, instalou-se ao abrigo de perturbaes que atingem

    3 Ver Ren Rmond dir., Pour une histoire politique, Paris, Le Seuil 1998; reed.

  • o centro das representaes e dos ideais, das mentalidades e das ma-neiras de ser. Valorizou igualmente, e muitas vezes at sobrevalorizou, a cultura como reflexo de um destino a renovar e como teste ou rtulo de toda a interrogao sobre o futuro: a realidade social est desconstruda e tenta reconstruir-se a partir das percepes prprias de cada grupo ou agregado, a realidade econmica desregulada passvel de ambies e de invenes, o poltico gera a urgncia invo-cando o direito, a prpria histria j no uma resultante de foras, mas uma via interrompida4, uma memria vagueando, um mistrio das origens ou uma dramaturgia dissimulada.

    Eis que, ao mesmo tempo, as cincias sociais saram da era da dvida, fechada a cadeado, em especial, pelo estruturalismo nos anos sessenta. Sobre as runas da completa alienao, o indivduo agita-se, o actor ganha fora, a ruptura temporal e geracional modifica a longa durao, o explcito quer ser identitrio, o Direito do Homem serve de vitico, a memria e o esquecimento entram em discordncia, os media alimentam a cacofonia e a confuso, produzindo incansavel-mente o actual cronfago5 E o cultural distendido e imperioso passa a ser no s a instncia mais qualificante da nossa mutao, aps tantas decepes econmicas e sociais, como tambm, confusamente, a verdadeira textura do lao entre os homens, o penhor de reconcilia-o da sociedade com os valores e o sagrado, o seu modo de afirma-o e de identificao do indivduo sem bagagem, o alimento das utopias a relanar. Como estabelecer vnculos e produzir sentido? Muito simplesmente pela cultura6 Esta resposta de fim de milnio,

    4 Cujo comeo, evidente, seria cultural: ver Jacques Cauvin, Naissance des divinits. Naissance de l' agriculture. La rvolution des symboles au Nolithique, Paris, CNRS ditions, 1994.

    5 Ver Marcel Gauchet, Changement de paradigme em sciences sociales?>>, Les ides en France, 1945-1988. Une chronologie, Paris, Gallimard-Le Dbat, Folio-histoire>>, 1989; Olivier Mongin, Face au scepticisme. Les mutations du paysage intellectuel ou L' invention de L' intellectuel dmocratique, Paris, La Dcouverte, 1994; Franois Dosse, L' Empire du sens. L' humanisation des sciences humaines, Paris, La Dcouverte, 1995.

    6 Um s exemplo: La Culture pour s' en sortir, nmero fora de srie de Tlrama, Janeiro 1996.

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    .....

    por discutvel que seja, justifica plenamente, julgamos, que a histria dos historiadores privilegie o cultural.

    O tempo das representaes

    As circunstncias precipitaram, portanto, uma evoluo historiogr-fica que sem dvida as cincias sociais continham, mas que a atmos~ fera da poca contribuiu para clarificar7 O novo rumor do mundo reabriu em primeiro lugar e de repente investigao da histria todas as acepes, universais, sociais e individuais, da palavra cultura; a mais ontolgica, que distingue a existncia humana do estado natural, com sinais distintos e marcas simblicas, sistemas de funes e pr-ticas, apropriao colectiva e condies de civilizao; a mais antro-polgica, que faz da cultura um conjunto de hbitos e de representa-es mentais prprios de um dado grupo num dado momento, com o seu cortejo mvel de costumes e crenas, de leis e de tcnicas, de artes e linguagens, de pensamento e mediaes; finalmente a mais cls-sica e to esclarecida, que reconduz a cultura ao saber, um pro-cesso no decorrer do qual o indivduo pensante estimula as faculdades do esprito8. Outrora colhido na antropologia, na promoo das men-talidades e da ferramenta mental, a exemplo de Lucien Febvre, na histria das ideias e na histria da arte, situado entre dados imediatos e voz do silncio na noite (Michel de Certeau), o velho balanceamento inicial9 e cmodo entre cultura gerida e cultura vivida,

    7 A notar, para os historigrafos: desde 1988-1989, a histria cultural respon-de procura social, instalando-se um pouco mais nos programas do ensino secundri?, ~_figura em muito melhor lugar nas questes de admisso ao agre-gado de h1stona, enquanto abrem no EHESS e no CNRS seminrios activos. Esta e_v~Iu_o foi bem assinalada por Michel Trebitsch, Promesses et problemes de l ~Istoue culturelle>> in Dbuter dans la recherche historique, Paris, Histoire au present, 1989.

    .

    8 Ver um verdadeiro resumo em Denis Kambouchner dir., Notions de phzl~sophie, -~aris, Gallimard, Folio essais>>, 1995, vol. 3.

    . ~er Ph1hppe Bnton, Histoire de mots: culture et civilisation, Paris, Pu-bhcaoes da Fundao Nacional das Cincias Polticas, 1975.

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  • entre intelectual e cultural anglo-saxnio, entre a unidade humanista e a alteridade relativizante, entre valores e prticas, adquiriu rugas sob o choque do nosso presente10

    A partir de ento, tornou-se indispensvel tentar abordar, global e historicamente, O mundo como representao 11 A fragilidade da investigao francesa - com a excepo, notria, de Roger Chartier - esteve sem dvida em contar demasiado com as suas prprias foras, descurando durante muito tempo os debates epistemolgicos sempre muito enrgicos na Alemanha ou nos Estados Unidos12 E preferiu, a todo o direito de precedncia, liquidar primeiramente as suas dvidas, sem barulho nem renegao. Foram assim revisitados, na descida metodolgica, antigos conhecimentos adquiridos que se haviam tornado demasiado normativos e pouco fecundos: a histria global que to dificilmente organizava as temporalidades encaixadas, a ge-neralizao por acumulao que descurava o singular e o genrico, o primado da diviso social que regia as configuraes e mascarava a produo de sentidos, as mentalidades de gloriosa memria13, a

    lO Sobre os primeiros tempos, to valorosos, ver Jacques Le Goff e Bla Kpeczi dir., Objet et M thodes de l' histoire de la culture. Actes du colloque franco-hongrois de Tihany, Paris, ditions du CNRS, 1982. Observar-se- no entanto que, se o estudo de numerosos objectos culturais a proposto, a histria cultural no de interesse para os grandes

  • brevirio escrito no presente. Entretanto, a histria religiosa vivia mais intensamente a tenso, aqui mesmo descrita por Michel Lagre, que a liga ao cultural; as obras de Maurice Crubellier _e ?~ Paul Gerbod, dois solitrios premonitrios, eram relidas17; a h1stona ~os signos, das marcas e dos smbolos, a das sensibilidades e dos desvws ganhava impulso com Maurice Agulhon e Alain Corbin; esboavam--se as primeiras cartografias18 , e, como se disse, organizavam-se os seminrios.

    Tanto e to bem que hoje as confluncias so muito fortes, as respectivas contribuies muito ponderadas e as experincias bastante convincentes para que se possa propor um acordo quanto a uma definio operatria e programtica. Esta foi condensada por Jean-Franois Sirinelli: A histria cultural a que fixa o estudo d~s formas de representao do mundo no seio de um grupo humano CUJa natureza pode variar - nacional ou regional, social ou poltica-, e de que analisa a gestao, a expresso e a transmisso. Como que. os grupos humanos representam ou imaginam o mundo que os rodem? Um mundo figurado ou sublimado - pelas artes plsticas ou pela literatura-, mas tambm um mundo codificado - os valores, o lugar do trabalho e do lazer, a relao com os outros -, contornado - o divertimento -, pensado - pelas grandes construes intelectuais -, explicado - pela cincia - e parcialmente dominado - pelas tcni-cas -, dotado de sentido - pelas crenas e os sistemas religiosos ou profanos, e mesmo mitos -, um mundo legado, finalmente, pelas transmisses devidas ao meio, educao, instruo.19

    17 Ver Maurice Crubellier, Histoire culturelle de la France (XIX'-XX' siecle), Paris, Armand Colin, 1974, e Voyages en histoire. Mlanges offerts Paul Gerbod, Besanon, Anais literrios da Universidade de Besanon, 1995. .

    18 Assim em Pascal Ory, L'histoire, culturelle de la France Contemporanea. question et questionnement>>, Vingtieme siecle. R~vue ~ histoire, O~t.-Dez. 1987 e Pour une hist.oire culturelle du contemporam, numero especial da Revue d' histoire moderne et contemporaine, Jan.-Mar. 1992.

    19 Jean-Franois Sirinelli dir., Histoire des droites en France, Paris, Gallimard, 1992, vol. 2, Cultures, p. III.

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    Margens seguras

    A amplido da paisagem assim abarcada impe, naturalmente, uma explorao metdica e uma convivncia disciplinada com os terrenos

    co~siderados mais frteis, mas sem que a vocao cultural da dilign-cia seja contrariada, a qual quer que o historiador, mais que em qual-quer outro domnio, possa sempre livremente inventar o seu tema de estudo. Essa liberdade sem vagabundagem traou a pouco e pouco um mapa ponteado da investigao, de que se encontraro alguns itine-rrios seguros e bastante frequentados neste livro. Simplificando-a ao mximo, distinguem-se logo quatro macios cuja configurao e re-lao so particularmente tpicos para uma histria do contempor-neo, mas cujo conjunto deveria ser, pelo menos experimentalmente, igualmente convincente para perodos anteriores:

    1) a histria das polticas e das instituies culturais, to fielmente francesa, neste Finistre a oeste da Europa que inventou o Estado antes da Nao e onde os smbolos dos poderes proliferaram; a ob-servao desse domnio institucional e normativo permite, alm disso, conduzir comodamente uma perspectiva na direco das relaes entre o poltico e o cultural, quer se trate de ideais, de agentes ou de culturas polticas; como evidente, ela apela para a comparao europeia e internacional, bilateral ou no;

    2) a histria das mediaes e dos mediadores, no sentido estrito de uma difuso instituda de saberes e de informaes, mas tambm no sentido mais amplo de inventrio dos passadores,. dos suportes veiculares e dos fluxos de circulao de conceitos, de ideais e de objectos culturais; das maneiras mesa na escola, do rito religioso em voga, da frequncia das belas-artes nas festas, da leitura no desporto, do trabalho nos lazeres, o territrio imenso e tornou-se extensvel pela afirmao de uma cultura, mas acompanhar todos esses ve-culos, como dizia Sorokin, permite passar com muita facilidade do significante ao significado, dos fluxos aos stocks;

    3) a histria das prticas culturais, desde h muito abordada, su-postamente a mais pertinente, mas que j no se pode fechar sobre si mesma, continuando a aumentar, com discernimento, a densidade de um scio-cultural firmemente fixado no horizonte da investigao,

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    mas revisitando a religio vivida, as sociabilidades, as memrias particulares, as promoes identitrias ou os usos e costumes dos grupos humanos;

    4) finalmente, a histria dos signos e smbolos exibidos, dos luga-res expressivos e das sensibilidades difusas, solidamente fixada nos textos e nas obras de criao, carregada de memria e de patrimnio, sempre ntima, alegrica e emblemtica, realando as ferramentas mentais e as evolues dos sentidos, misturando os objectos, as pr-ticas, as configuraes e os sonhos: uma espcie de nec plus ultra, ou de Eldorado do cultural, mais dificilmente acessvel, mas que muito se impe.

    Em toda a extenso destas rubricas surge uma geometria muito varivel, uma topografia dos desvios de que a histria cultural retira a sua fora. Os seus interstcios contm sem dvida muitos perigos: a descrio montona, o espectculo sem significado, a metfora que dissimula a fora, a adjectivao no aprovada de uma cultura que se esgotaria nesse cultural, o mais ou menos conceptual e at o impe-rialismo por defeito. No entanto, acreditamos que estes escolhos sero evitados. Esto lanadas as expedies, o tempo - o nosso tempo-urge e transporta-nos. Por consequncia, este livro s podia ter uma ambio: recordar e assinalar, sem exagero e bastante alto, que a histria cultural est com bom vento e descobre margens seguras.

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    ITINERRIOS

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    UMA DECLINAO DAS LUZES

    Daniel Roche

    Compreender a passagem de uma gerao, a dos anos de 1950--1960, mobilizada nos estaleiros da histria social e da histria eco-nmica, para outra, a dos anos de 1980-1990, que v o sentido da busca orientado pelo questionrio da histria das culturas ou da his-tria das mentalidades, faz-nos deparar com uma primeira e grande dificuldade. Como definir de forma operatria e eficaz, com evidente autonomia, o domnio do cultural? No fcil partir de definies, pois podem encontrar-se quantas se queira. Desde 1952 que Kroeber e Kluckhorn recensearam 163, histricas, normativas, maioritariamente utilizadas pela antropologia alem ou anglo-americana. A palavra cultura continua a ser um vocbulo ambguo e de armadilha, cujo emprego nada resolve se no se considerarem as maneiras como se relaciona o cultural com outra coisa, com os grupos sociais; inscre-ve-se ento numa compreenso mais ampla das dinmicas identitrias e de hierarquia das sociedades, em territrios e conjuntos geogrficos historicamente construdos. Alm disso, a palavra cultura no em-pregada da mesma maneira nas diferentes historiografias herdadas de diferentes tradies culturais. Para os Alemes, toda a civilizao e o conjunto das prticas de uma sociedade. Para os Franceses e Ingle-ses, a posse da intelectualidade e dos saberes, uma bagagem que caracteriza alguns ou que define nveis de acesso. Para uns, a cultura molda-se imediatamente nas perspectivas da antropologia, para outros a aposta-meio para medir excluses ou traar fronteiras, trajectrias, hbitos adquiridos, transmitidos, divulgados, objectos de luta e de imitao. Os historiadores actuais trabalham na juno das duas de-finies, de que a melhor compreenso foi dada sem dvida por Claude

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  • Lvi-Strauss em 1958 em Anthropologie structurale: A cultura agru-pa um conjunto de desvios significativos de que a experincia prova que os limites coincidem aproximadamente. O facto de essa coinci-dncia no ser nunca absoluta e no se produzir a todos os nveis ao mesmo tempo no deve impedir-nos de utilizar a noo de cultura. (p. 325). Se se fixar esta inteno terica, mantm-se presentes duas consequncias principais: a primeira que o estudo do cultural s pode valorizar a anlise das trocas entre os indivduos, os grupos, as sociedades, os espaos; a segunda que no se pode estudar a cultura sem se interrogar o sistema social em que ela se desenrola, sem se ver o conjunto em que os diferentes elementos se transformam, mas no forosamente ao mesmo ritmo. por isso que noes como a de apropriao ou de interferncia temporal se tomaram essenciais nos trabalhos da minha gerao. Esta foi levada pelos seus mestres a seguir um duplo movimento e, em primeiro lugar, o estimulado pelos ensinamentos da histria econmica e social atravs da obra de Labrousse e de Braudel, cuja contribuio primordial continua a ser para ns ligar as estruturas e as conjunturas, os espaos e as temporalidades; pr assim permanentemente em confronto as dinmi-cas sociais e as rupturas. Ambos eram sensveis cultura, mas por percepes diferentes. Para o primeiro ela est ligada poltica e s ideologias e para o segundo abre-se a todas as interrogaes do material ao intelectual como meio de compreender os obstculos s mudanas: pensemos nas prises de longa durao que definem as mentalidades. Mas ns somos igualmente dependentes da grande vontade histrica que acredita na capacidade dos historiadores para compreender a realidade total. Esta crena trouxe desde h muito consigo a ideia da interdependncia dos nveis do real, cuja compreenso passa pela recusa do anacronismo e pelo inventrio dos meios de que os homens dispem a cada momento da histria, a ferramenta mental que podem mobilizar, desde o emprego da lngua aos instrumentos conceptuais das cincias, dos suportes sensveis do pensamento e das comunica-es afectivas aos sistemas de percepo e de construo do real no mundo das representaes.

    Nesta perspectiva, pode ser interessante interrogarmo-nos a ns prprios. H um certo nmero de noes e de expresses que se tomaram hoje de uso habitual e comum, tais como, por exemplo,

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    entalidade, histria dos livros, histria das culturas, histria do ;:presso, cultura erudita, cultura popular. H mais de vinte anos, a explorao das atitudes, das crenas e dos compor~amentos na Frana do Antigo Regime estavam apenas a comear. HoJe, novas mudanas e interrogaes ao mesmo tempo. mais numerosas e mais seguras das suas perspectivas metodolgicas esto em afirmao por toda a parte em Frana, mas tambm nos Estados Unidos, em Inglaterra, na Ale-manha e na Itlia principalmente. So menos o resultado de um pro-grama prvio e claramente estabelecido do que o efeito das marchas colectivas e individuais, em suma questes e respostas que cada um pode fazer aos outros e deles receber. Pode traar-se aqui um itine-rrio individual. Todos sabem, porm, que o mapa nunca o territrio e que a diversidade deste pode induzir em erro. Para alm, portanto, da variedade das etapas percorridas, h que ver por que se seguiu o caminho escolhido e como este contribui para reconhecer e depois limitar e percorrer uma parcela do campo da Histria durante muito tempo baldio, ou estudado e interpretado de outro modo. Pode-se, alis, perguntar se o desgnio que consiste em nos interrogarmos a ns prprios possui um sentido e uma possibilidade definidos.

    Uma possibilidade? A resposta a esta pergunta evoca o problema da lucidez acadmica, mas tambm o da modstia intelectual, com-patvel com a necessria tenso que anima a crena que bom possuir. Um sentido? honesto no conferir clareza a priori nem coerncia, que no surgem seno depois, numa diligncia em que no nos vemos de antemo, no respectivo lugar, num teatro construdo pela troca -ou pelo afrontamento- das geraes. J no existe razo para aceitar a teleologia ou o anacronismo na autobiografia intelectual do historia-dor quando se recusam para a Histria. A distribuio dos prmios no palmars da profisso depende demasiado dos acasos da Fortuna para que no se hesite alguns instantes antes de se atribuir publicamente um papel na evocao do que no mais que um ofcio, com a sua parte de obrigaes, de satisfaes e de alegrias, o seu peso de erros, conscientes ou no, de frustraes e de recusas, as suas interrogaes quanto ao passado, que nunca se pode recuperar, e ao futuro, que foge ao horizonte da nossa vida.

    O assunto oferece interesse se se aceitar a ideia de que remontar o fio do tempo ajuda um pouco a esclarecer, por contraste, a evoluo de

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  • uma gerao intelectual. Trata-se aqui do grupo de historiadores forma-dos nas Escolas e Universidades a seguir Segunda Guerra Mundial e antes dos anos sessenta, quando o modelo da Nova Histria, ou ainda do que se designa no sem aproximao, falta de melhor, pelo termo de cole des Annales, no havia adquirido a fama universal que se conhece. O triunfo, no ensino superior, de um vasto conjunto de ideias e questes, hoje em voga por todo o lado na febre editorial, no deve mascarar a incerteza que pairava tanto sobre as origens da histria nova como sobre o seu futuro, antes de ter alcanado o poder e o reconheci-mento do pblico. O xito dos herdeiros no deve dissimular que eles geram tambm um patrimnio. A vastido da vitria no deve velar a lembrana do compromisso. uma maneira de alcanar o essencial e de se interrogar sobre o lao que se tece entre a reproduo social e a reproduo intelectual. Fica-se assim imediatamente no centro do que hoje o prprio objecto da histria das culturas: importa compreender por que razo um conjunto de questes toma pouco a pouco sentido e valor no mercado das ideias, e como tambm um colectivo de intelec-tuais se apropria desses questionrios e desses problemas para deles fazer a prpria trama da sua vida.

    Constitui-se assim uma comunidade de compreenso nas circuns-tncias e ocasies. Depois, cada um v melhor o fio vermelho que o guiou; cada um pode pesar melhor a parte que ocupa no dispositivo cultural e universitrio, mas no me parece totalmente evidente que sejamos de ns prprios as testemunhas mais seguras. A aventura permite ver as coisas como indo por si e, claro, perceber por que novas interrogaes no se podem fazer, criar desvios, aumentar distncias, seno em funo de um dilogo implcito com aqueles que nos precedem e com os que nos seguem. Suscitar esse dilogo parece-me ser a funo principal dos professores, dos mais velhos, dos mestres. Recus-lo por razes diversas parece-me arruinar a prpria base da nossa profisso.

    A Sorbonne sem as Annales

    Ainda hoje ine impressiona vivamente pensar na Sorbonne dos anos cinquenta-sessenta em que fiz os meus estudos. No s nos aborrecamos um tanto porque mestres de prestgio ensinavam muits-

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    simas vezes uma histria enfadonha, por ser preciso aprender por si mesmo as regras do ofcio - com a ajuda da imitao prpria, os melhores pedagogos adquiriam os artifcios da profisso -, mas ainda porque mal se sentiam as transformaes ento em jogo na nossa disciplina. No se falava das Annales e menos ainda de Braudel. Este, para alguns, por aluses que os mais avisados traduziam para os outros que o eram menos, fazia um pouco figura de diabo. A verda-deira vida encontrava-se noutro campo, nas lutas polticas, nas discus-ses das coles normales, nas migalhas do festim que os mais velhos traziam dos primeiros seminrios da cole des hautes tudes, que comeava a funcionar, e at de cursos do College de France, a que os mais espertos se atreviam. Resumindo, jovem normalista, eu esfora-va-me com os programas e outras actividades. Era testemunha sem ver. Uma das minhas recordaes resume bem o clima de ento. Ao devolver-me as cpias de um exame trimestral, um dos assistentes que me ensinava a histria da Idade Mdia, hoje mestre consagrado, disse--me: Deixe esse estilo para a coles des Annales. Era para mim uma dupla descoberta de que se ajuizar a ingenuidade: a histria era, pois, tambm um estilo, entenda-se, para alm das prticas de escrita, uma maneira de ver e de ser, podendo-se ser hostil ao que me parecia naturalmente uma outra riqueza, ao alcance da mo, mas que no se sabia agarrar bem. No era pois totalmente de admirar que a vida poltica e sindical estudantil oferecesse a muitos, entre os quais eu, um terreno mais fcil de percorrer. E menos desconcertante ainda que na altura de escolher um tema de investigao para preparar o diploma de estudos superiores, nos encontrssemos no nmero 62 da rua Claude--Bernard, com Emest Labrousse.

    Ernest Labrousse: do econmico ao social

    Lon~e de mim a ideia de querer ceder hagiografia imediata, mas p~nso smceramente que nunca se dir suficientemente o quanto a mmha - d

    , geraao eve ao mestre, nem o que ele fez pela maior parte de n~s. Outros o disseram ou diro melhor do que eu posso fazer; pela n:mha parte, a ele que devo ter conseguido ser primeiramente um historiador das d d , . . soc1e a es antigas e, com certeza tambem, um histo-

    nador de culturas. Ele revelou-me, de facto, a grande corrente de

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  • pensamento socialista e marxista sobre a qual h vinte anos eu igno-rava praticamente tudo. Depois, fez-me descobrir o tesouro de refle-xo dos socilogos franceses e ensinou-me com calor, simpatia e convico a necessidade do estudo histrico dos grupos sociais. Du-rante as suas conversas legou-me tambm a vontade de compreender melhor a grande ruptura do sculo XVIII, das Luzes Revoluo. Finalmente, sem dvida a ele que devo o ter posto o dedo numa engrenagem que jamais nos abandona: a da investigao viva e que salta de objectivo para objectivo, animada pela curiosidade intelec-tual, pela simpatia pelas diferenas, pela tolerncia no debate, pela determinao de conhecer. Labrousse, ao iniciar toda uma gerao na histria econmica e social, tornava as Annales vivos. Quanto aos auditrios de estudantes, no se deve esquecer que, no incio dos anos cinquenta, s tinham disposio a prpria revista, os importantes textos de Lucien Febvre, as duas teses de Labrousse e O Mediterrneo de Braudel, verso de 1947, publicada no papel amarelado e frgil do ps-guerra. Todas as grandes obras que faro, no futuro, a Nova Histria, esto por publicar. Tudo comea para ns, mas sabe-se isso claramente? Com certeza que no!

    Pierre Goubert, que tenho ento como professor na cole normale suprieure de Saint-Cloud, ou Emmanuel Le Roy Ladurie, que encon-tro no seminrio de Jean Meuvret, onde me atrai, fascinante e estra-nha, a histria dos camponeses, so ento mais velhos, benevolentes, amigveis, introduzidos no meio e sabendo mais. Tm ainda que dar provas da sua prpria especificidade e conquistar autonomia, o que no tardar. Para mim, no funcionamento de uma universidade um pouco cinzenta, mas ainda coerente como instituio e como corpo, em alguns seminrios - e aqui deve-se repetir o que muitos de ns devem s sesses conduzidas por Jean Meuvret nos Altos Estudos, sempre prolongadas no caf Le Balzar -, enfim, atravs de algumas leituras- como de Duby-Mandrou sobre a civilizao da Frana, ou de Henri-Jean Martin sobre o aparecimento do livro-, o futuro mostra--se divergente e diverso como a luz filtrada por prismas. A meus olhos, apenas Labrousse unificava a diversidade e talvez porque ele prprio era diverso: o historiador da economia e da socie-dade, o republicano socialista que vira Jaurs, sabia mobilizar-nos e reter-nos. O seguimento, quanto a mim, pertence ao acaso.

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    Eu era professor no liceu de Chlons-sur-Marne, e Labrousse desaconselhou-me ento a tese re_gional, que, no entanto, os Arquivos favorecia; professor agregado na Ecole normale, ele acolheu favoravel-mente as minhas vrias tentativas; a nobreza siciliana, que me foi vedada pela distncia e tambm pelas dificuldades da carreira de docen-te-investigador; os prncipes de sangue pelos quais ele me mandou a Marcel Reinhard, que sempre me deixou livre; os acadmicos de pro-vncia que viriam por fim a ocupar-me mais de dez anos, e que beneficiariam do apoio nunca avaliado de Alphonse Dupront. Em suma, a questo da mudana historiogrfica da cave para o sto, para retomar a expresso de Michel Vovelle e Maurice Agulhon, no para mim essencial, porque eu sempre quis, imitando Labrousse, fazer a histria social da cultura, quer dizer, uma outra coisa diferente da histria das ideias e algo que se aproximasse da histria das conscin-cias de classe. Que me perdoem este vocabulrio hoje fora de moda, sabendo todos que j no existe burguesia, muito pouca classe e finalmente, quanto conscincia, todos sabem o que acontece. Faltava encontrar um terreno- continuava fiel poca moderna, entre o sculo XVII e o XVIII -, e um mtodo - esforava-me por ligar o cultural ao resto do movimento social. Os estudos aqui reunidos pretendem menos mostrar as etapas de um pensamento que o seu percurso na prtica e na ~scrita para os desvendar aos olhos de todos. A coerncia do conjunto libertou-se progressivamente atravs de uma continuidade dupla: preci-sava, por um lado, de responder questo de saber se a histria social das cultur~s possvel e conserva sentido e valor apesar da reconsiderao d~s questoes e das crticas legtimas; e, por outro lado, de elaborar a mmha ~aneira de ver, atravs de documentos de arquivos, textos manuscntos ou em livro, a aliana dos gestos, dos saberes, das crenas ~~e esta~~l~ce~ ~ma fo~ma de consumo cultural, um possvel acesso

    . uma mic1aao 1mposs1vel aos poderes da cul-tura, sobre o que mais adiante se falar.

    Investigao, livro e sociedade

    ~ altura em que teve lugar pela primeira vez uma discusso de conJunto foi d - , h a a mvestlgaao colectiva da VI seco da Ecole des autes tudes F F . . _

    rano1s uret e que se concretizou na pubhcaao dos

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  • dois volumes de Livre et Socit dans la France du XVlll' siecle, em 1965 e 1967. Suscitaram suficientes debates em Frana e outros lugares para que nos detenhamos neles. O caso teve lugar num momento crucial: foi ento que a hegemonia intelectual do paradigma das Annales se instaurou na Universidade, pela renovao das geraes docentes, mas foi tambm a poca em que a concentrao das foras no terreno da histria econmica e social levantou a alguns o proble-ma da obstruo do terreno universitrio, duplicado, julga-se, pelo do investimento a fazer num trabalho que s podia ser extremamente repetitivo no seu questionrio.

    De uma maneira ou de outra, tratava-se de fazer outra coisa, mas permanecendo fiel s motivaes das origens. O processo de inves-tigao introduzia na paisagem dominada pela forma quase exclusiva da tese de doutoramento de Estado, trabalho longo e solitrio, uma nova preocupao directamente ligada, como mostrou Jacques Revel, ao programa das Annales. A via fecunda, mas individualista, pela qual se propagava a novao em histria era substituda, ou em paralelo -que foi o meu caso -, ou em concorrncia - foi a sorte de alguns outros que puderam dispensar-se de defender a tese-, pela reflexo colectiva e o trabalho feito em comum. A meu ver, a experincia tinha tanto mais valor quanto levava tambm ao levantar dos tabiques nas disciplinas. No encontrei eu no seminrio comunitrio literatos como Jean Erhard e Jacques Roger e filsofos literrios como Genevieve Bolleme? Tive at possibilidade de trabalhar algumas sesses com Michel Foucault nos arquivos do Arsenal sobre os documentos dos presos e nunca vim a saber por que havia ele abandonado o projecto. Conservei interesse permanente pelos livros que poderiam despertar neste homem discusso e imaginao, historiador como sonham s-lo os filsofos, filsofo como pensam por vezes s-lo alguns raros his-toriadores, o que no se passa comigo, pois sou por natureza ou por cultura demasiado emprico. De qualquer modo, a investigao con-junta, permitindo comparaes e questes abertas, facilitando a cons-tituio comum dos corpus e das sries, a elaborao por vrios das grelhas de interrogao e dos processos de interpretao, criava um outro estadO' de esprito diferente do imposto pela investigao indi-vidual. Em ligao com um certo tipo de histria, a primeira inves-tigao aberta no campo cultural criava a diferena em duas direces

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    . ipais. Rompia com a tradio da interpretao do sculo XVIII, pnnc d d 'd d 1 duzida at ento pelos h1stona ores as 1 eias e a Iteratura, con 1 d d b ' . ressando-se pelo essenc1a as gran es o ras; retomava assim a mte 1 d R 1 - F maneira o problema das ongens mte ectua1s a evo uao ran-sua a Ao mesmo tempo, destacava a insuficincia da interpretao de ces L 'd 'fi d d d ' conjunto do percurso das uzes, I ~nti 1can .o com em~sm _o. a-vontade novao intelectual, progressismo social e promoao socw-econmica. Em suma, o estudo renovado da difuso dos livros e das ideias abria a porta a uma verdadeira histria das origens culturais da Revoluo e para a qual implicitamente Labrousse nos convidara.

    Daqui em diante, o que at ento dependia da ideologia encontrava lugar no estudo das prticas. Por um lado, a histria social permitia ver como nascem as obras e os sistemas de ideias, como se propagam em livros e usos atravs dos meios vectores, e como ao mesmo tempo se transformam, pois dependem da evoluo de conjunto do sistema que lhes d forma. Por outro lado, ~ histria das culturas pode criar forma porque, atravs dos sistemas de classificao dos saberes e das noes, j se vislumbra como o estudo das topografias sociais exige outra coisa. Estudando o cultural como os seus antecessores haviam analisado a economia e a sociedade, os historiadores de Livro e So-ciedade descobriram que a cultura se encontrava em toda a parte, na economia como no social, uma vez que s se pode ler no mundo das prticas. Pode-se, porm, perguntar sempre o que a cultura e por que preferir este termo ao de mentalidade. A resposta merece um rodeio que pode esclarecer a passagem de uma histria outra.

    Histria das mentalidades ou histria das culturas?

    Se prefiro falar de histria das culturas porque o projecto que se elaborava na investigao visava compreender as diversas media-es que intervm entre as condies objectivas da vida dos homens e as numerosas maneiras com que eles as representam e as dizem 1

    1 , 1

    Entre as obras que marcam uma discusso anloga, citamos: Michel Vovelle, .~e~lo~ie et Mentalits, Paris, Maspero, 1982; e De la cave au grenier. Un ~lnerazre en Provence, de l' histoire sociale l' histoire des mentalits, coed.

    erge Fleury (Qubec) e disud (Aix-en-Provence), 1981.

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  • Assim, para mim, trata-se de estudar comportamentos colectivos sensibilidades, imaginaes, gestos a partir de objectos precisos, tai~ como livros, ou de instncia, como as instituies de sociabilidade. Estas escolhas renem-se, como evidente, s da histria das men-talidades e provm dos objectivos essencialmente definidos por Lucien Febvre. Supem o sacrifcio de trs hbitos antigos, e desse modo, sem contestao, que as nossas convenes se distinguem das de Georges Lentre, seja o que for que hoje pense Franois Furet2 No se trata apenas de alargar a narrativa histrica a outros actores, mas de elaborar a sua histria no na identificao exclusiva do documento escrito, mas numa mobilizao de conjunto de todos os tipos de do-cumentos. tambm porque j no acreditamos na antiga concepo do facto, apenas desvendado pelos vestgios escritos e que seria um dado to indiscutvel como o objecto das cincias positivas - se que este o foi alguma vez. necessrio admitir em contrapartida que os factos que utilizamos so objectos construdos segundo hipteses que influem na sua interpretao e que esta faz parte integrante do hori-zonte de verdade que se constitui na comparao das leituras, impos-svel de confundir com uma simples restituio do passado. Final-mente, a histria j no pode ser apenas uma disciplina gratificante, com o fim de legitimar o presente ou de justificar o Progresso, o Estado, a Nao, quando no a nostalgia do profetismo de uns e outros. Colocando a interrogao dos historiadores sob o patrocnio das cincias sociais, podem admitir-se trs imperativos que conser-vam rigor: histria dos indivduos abstractos preferir a dos grupos sociais ou, se possvel, a de personalidades representativas; substituir uma histria organizada por ordem de realidades, pelo estudo da interdependncia das instncias do real e das suas modificaes no tempo; finalmente, surgem como fundamentais duas noes: a primeira, a aceitao das diferenas, sendo, na interpretao, a recusa do ana-cronismo e do investimento prvio no sentido da colocao dos factos; a segunda, que continua a ser a necessidade de inventariar os elemen-tos do material mental caracterstico de uma poca e de que os indi-vduos e grupos sociais dispem na sua totalidade.

    2 Histoire: hier, ailleurs et demain, en marge des Annales. Histoire et sciences socia1es, Le Dbat, 1985, pp. 112-125.

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    A histria assim definida e a que me consagro desde os anos ta no se confunde totalmente, porm, com a das mentalidades,

    sessen d d d I l"d d outros praticam, nem com a as 1 etas ou a mte ectua 1 a e. que d d . . Da primeira, conserva a vontade e compreen er as maneiras gerats d sentir e de pensar, ligando representaes colectivas e condutas p:ssoais ao estado da socied~de, portanto ~ sua histria, mas a situa-o das investigaes actuats mostra a dtficuldade de se contentar

    om elementos obscuros, inertes, mesmo inconscientes, das mentali-c A . dades para dar a descrio do material mental de uma poca. mmha prpria escolha insistir, tanto quanto possv~l,. na mobilizao~ pelos agentes sociais, de todos os dados e na anahse da construao dos hbitos sociais para ver como se criam as condies da sua interio-rizao. Em suma, partilho a ideia de Cario Ginzburg e de Michel Vovelle de que uma anlise em termos de classe marca sempre um grande passo em frente em relao a uma anlise interclasse3 Por comparao com a histria das ideiase dos conceitos praticada pelos historiadores literrios ou filsofos, estrangeiros ou franceses, e com outros objectos pelos historiadores das cincias, parece-me necessrio insistir nos fenmenos de enraizamento e de circulao, isto , pensar a relao com as ideias de outro modo que no em termos de deter-minao ou de influncia, e de outro modo tambm como revelador de um discurso ou de uma textualidade explicvel por si mesma, mas encontrando estruturas que organizem os usos e as prticas colecti-vas. Noutros termos, o campo desta reflexo de histria social e cultural para que contribuo quer ir ao encontro dos questionrios e dos pro-blemas da histria dos modelos culturais, das ideias e das mentalida-des, desejando em todo o caso conservar as ambies globais e exaus-tivas, mas considerando os seus limites4 Estas escolhas levantam seguramente o problema dos meios e dos mtodos.

    .,

    3 Cario Ginzburg, Le Fromage et les Vers. L'univers d'un meunier du XV/e stecie, Paris, F1a~marion, 1980, pp. 19-20. . Roger Chart1er, Intellectual or Sociocultural History? The Frene h Trajectories ~nh Modern European Intellectual History. Reappraisal and New Perspectives,

    ~ aca, .~omell UP, 1982, p. 1346; Andr Burguiere, The Fate of the History of entahties in the Anna1es, Comparative Studies in Society and History, 1982,

    pp. 424-437.

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  • O estudo das sociabilidades culturais

    Entre os indicadores retidos como susceptveis de resolver as di-ficuldades destacadas, privilegiei essencialmente o estudo das socia-bilidades culturais e o do livro, no geral as prticas da escrita. O primeiro caso deve muito, pela sua definio, s interrogaes outrora lanadas por Gustave Lanson no seu programa de estudo das intelectualidades de provncia e retomado por Daniel Momet nas suas Origines intellectuelles de la Rvolution. Mas distingue-se pela reconsiderao da compreenso do sentido explcito para os actores sociais do momento cultural; noutros termos, recuso a identificao simples das Luzes e da Revoluo. O conjunto refere-se igualmente aos trabalhos de Maurice Agulhon, que redescobre na Provena os usos e costumes da vida associativa antiga como meios de avaliar tanto a evoluo das relaes sociais colhidas nas transferncias, do recrutamento da confraria de penitentes loja manica, como a instaurao de novos modelos de confrontos polticos. O estudo social de 6000 acadmicos entre 1660 e 1789 e o de cerca de 20 000 ade-rentes franco-maonaria contribuam para a runa de numerosas ideias recebidas. Reconstituindo a rede das sodedades eruditas e das lojas, cartografando o espao que lhes corresponde, o historiador podia finalmente sentir a imbricao no movimento de difuso das Luzes, do lcito e do ilcito, a aliana confusa mas real dos saberes e dos poderes. Ao mesmo tempo precisava-se a medida do peso real da classe cultural receptora dos escritos filosficos. O estudo social mostra as motivaes da Repblica das Letras e como -as ideias so inseparveis do comportamento cultural. Esta redefinio das classes intelectuais prova bem como todo o consumo se transforma numa outra produo, e a comparao das diferentes formas de sociabilida-de leva a separar o que provm dos modelos orgnicos, expresses da sociedade desigual, e o que depende da instaurao de um mundo igualitrio, proscrito no incio e admitido depois por consenso tcito5.

    5 Daniel Roche, Le Siecle des Lumieres en province ... , Paris-La Hayet, Mouton--EHESS, 1978, 2 vol.

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    f Esquecer Tocqueville e Cochin?

    So assim postas em causa as interpretaes inspiradas quer por Tocqueville, quer por Cochin, que se decidem pela separao da in-teligncia e da autoridade poltica, pelo vazio entre a opinio e o Estado, em que se situa o xito da sociabilidade democrtica matriz do jacobinismo. Acadmicos e lojas, socializando as Luzes, operaram uma aco dissolvente das vises tradicionais do mundo, mas a his-tria desta recepo no pode identificar-se unicamente com a das instituies de cultura. Estas utilizam a ideologia do poder intelectual ou a ideologia manica por causas e segundo prticas diversas; numa palavra, agem por e para apropriaes variveis, conformes aos hbi-tos sociais e susceptveis de interferncias mltiplas produzidas por leituras colectivas ou individualizadas. Luzes acadmicas e Luzes manicas no so em si mesmas contestatrias, elas tendem em parte para a consolidao das posies antigas com novos argumentos. Ao mesmo tempo e sem que haja identificao total e nica com um s grupo social vector, a Burguesia com maiscula, servem de interme-dirios polticos e culturais s mensagens filosficas inovadoras. A sua funo no assumir a definio de uma ideologia nobiliria ou burguesa, mas participar num pensamento gestionrio e utpico. No meio acadmico e manico, o futuro e o passado tentam comunicar numa coabitao incerta, a da prpria vida cultural. Apesar dos insa-tisfeitos, a lio, parecendo por demais simples ou honesta, no deixa de corresponder, porm, nica maneira que convm, no domnio da histria cultural, a quem no quer separar artificialmente realidades e representaes - estas duas ltimas s em conjunto se recolhem na circulao dos textos -, e a quem recusa reiterar continuamente as questes colocadas atravs das respostas dadas. Para o historiador das

    a~ademias, a Revoluo , e ao mesmo tempo no , o termo de uma v~a em que a emergncia do acontecimento no pode estar teleolo-gicamente implcita. A diviso dos agentes na prova das rupturas pode confirm-lo s por si, e igualmente a das lojas.

    D~ste modo, as Luzes tomam uma outra dimenso: o fenmeno filos~fi~o foi marginal e limitado a uma intelligentsia parisiense e de

    pro~mc1a mais voltairiana que materialista, mais sabedora que revo-luciOnria. A natureza do academismo modifica - se contudo quiser-

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  • mos consider-la- a leitura global do sculo das Luzes. O discurso dos filsofos encontra-se fragmentado, quebrado e recomposto corn tanto mais -vontade quanto o seu vocabulrio se reconhece na anti-

    filosofia~ uns e outros querem esclarecer e referem-se s Luzes6 _ as palavras do corpulento abade Bergier no so muito diferentes das do magro Voltaire, mesmo ressoando de forma diferente. No discurso social das academias existe espao para um projecto poltico e cultural absolutista e esclarecido visando sua maneira a felicidade pblica e a homogeneidade das elites, podendo-se igualmente descobrir nele o apelo renovao e mudana. Alguns - como Chateaubriand: A Revoluo filha das academias - no se privaro dela, aps 1789. Antes, e para perceber o seu real alcance, importa deixar de ler as Luzes s lanterna da Revoluo.

    A histria dos livros e dos seus usos

    As prticas de leitura, a circulao do escrito, a produo de um discurso, oral ou impresso, consolidam as sociabilidades culturais. A meu ver, elas implicaram a descoberta e a utilizao da histria do livro. Se desde h uma quinzena de anos se multiplicaram os trabalhos neste campo, o impulso foi dado na viragem de 1960-1970 de acordo com as investigaes de Henri-Jean Martin sobre o sculo XVII, e a obra Livre et Socit. L' histoire de l' dition francaise1 ps em evi-dncia o balano actual do nosso conhecimento e as perspectivas que se abrem a novas investigaes, em que os trabalhos de Roger Chartierll ocupam o primeiro lugar. Mas, partida, o caminho no estava todo delineado, e as primeiras abertas no se fizeram de uma s vez. Fazer do livro um novo objecto de histria exigia que se interrogasse a herana. A da bibliofilia e da bibliologia atentas ao objecto entregue,

    6 Jean-Marie Goulemot, Pouvoirs et savoirs provinciaux au xvme siecle, Critique, 1980, pp. 603-613.

    7 Roger chartier e Henri-Jean Martin, Paris, Promodis, 1982-1986, 4 vol.; eu prprio colaborei no t. II de que assegurei a direco cientfica.

    8 Roger Chartier, Lectures et Lecteurs dans la France de l' Ancien Rgime, Paris, Le Seuil, 1986.

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    .d tificando as suas origens e as suas impresses em indispensveis I en . fi . . b ~ .

    'logos e inumerveis monogra 1as regwna1s ou ur anas, 01erec1a ao cata 1 d historiador em busca ?e um no_vo_ matena uma _nq~e~a Imensa am a acrescida da contribmo da bibliografia matenal a mgles~. Era ne-

    ssrio inspirar-se nela, mas numa mudana de perspectiva e para c~mpreender os funcionamentos culturais profundos. Obtive em pri-~eiro lugar o conhecimento e, por vezes, a amizade dos bibliotec,-rios, sem os quais nenhum trabalho deste tipo pode ser encarado. As suas observaes e aos seus conselhos, aos seus trabalhos ,correntes e eruditos deve enormemente a nova histria da imprensa. E por isso um dever reclamar e defender o bom funcionamento das bibliotecas pblicas cujo futuro inquieta o mundo intelectual. Tambm de manei-ra incidente, foi prospeco da histria do livro que fiquei a dever 0 dilogo, o trabalho em comum e a amizade iniciados h mais de vinte anos primeiro com Roger Chartier e depois com Robert Darnton9, que se revelaram, apesar dos interesses e das evolues diferentes, sempre estimulantes e enriquecedores. Ambos so verdadeiramente historiadores do livro, pois dele fazem o centro da sua investigao, ligando o estudo dos textos, o dos objectos materiais e o dos usos que engendram na sociedade. Por meu lado conservei-me historiador das difuses e das prticas sociais do livro e, como eles, do impresso em geral; mas sou mais curioso das comparaes possveis entre o livro e outros objectos culturais, a leitura e outros gestos de cultura, mesmo a cultura material.

    Ao mesmo tempo que se voltava a encontrar a cincia dos profis-sionais do livro, que eram tambm grandes livreiros como Viardot ou Jammes, estas novas leituras implicavam uma reinterpretao dos trabalhos dos historiadores de literatura. Dilogo e discusso, colabo-rao e auxlio mtuo estavam fortemente ligados nas vsperas de 1968_com amigos da minha gerao como Georges Benrekassa, Jean--Mane Goulemot, Michel Launay e ric Walter. Todos me fizeram entender melhor o seu interesse pela textualidade e pela literariedade, ;as tambm, por outro lado, o seu desinteresse pelo objecto vector

    os textos e os meios produtores e consumidores. Foi porm juntos

    Seu9

    11 A psu? obra, L' Aventure de l' Encyclopdie (Paris, Perrin, 1982; reed. Le Oints H' . ' - Istoue, 1992), continua a ser um modelo para todos.

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  • que tommos, cada um sua maneira, o caminho aberto por Lanson e por Momet, e que Lucien Febvre e Henri-Jean Martin haviam co. meado a percorrer. O andamento da histria cultural implicava, ape-sar de tudo, fazer escolhas em relao histria literria, que pres-supunha debate, e este no foi sem dvida levado at ao fim. Uma histria comum nasce de uma comunidade, de uma conjuntura e de um acaso em que interesses comparveis coexistem. A razo provm -para alm das transformaes que ocorrem na evoluo das univer-sidades depois de 1970 - do estatuto diferente que uns e outros atri-buem aos textos.

    Entre produo e textualidade

    A v aliar a produo de uma poca supe o estabelecimento de sries e de classificaes que perturbam a hierarquia estabelecida das obras, dos gneros e dos autores. Saber o que l toda uma sociedade, tentar ver o que escreve, produz e consome exige, mesmo a ttulo temporrio, que se substitua a anlise das grandes obras como porta-doras de inovao esttica ou intelectual por uma vista de conjunto que atinja menos a ideia na sua vida abstracta e isolada nas obras, do que a sua encarnao nos meios sociais em que pode enraizar-se e circular atravs dos usos que dela se faz. Deste modo, podia ser melhor compreendido e sentido o peso relativo das novidades e dos arcasmos, deste modo, deviam estar melhor situados os momentos principais de ruptura das vises do mundo e das transferncias mais importantes das ideias avaliadas no seu ritmo. Este estudo quantificado dos livros pode, alm disso, e longe de as desconhecer, servir para apoiar de uma nova maneira as leituras tradicionais. O valor social de um texto no indiferente ao facto de ele ser uma criao excepcional ou, pelo contrrio, um exemplo entre outros de uma produo vulga-rizada e de grande circulao. O olhar igualitrio lanado aos produtos culturais no sinnimo de ignorncia do sentido que os textos to-mam atravs da leitura, nem desconhecimento dos pensamentos ino-

    cial da leitura procuraria incitar explorao de corpora socialmente so d . - d "I . nificativos, que po em ser mactos ou nao, sen o o essencta a

    stg - d d" - d d d -mada em consideraao as con toes e conJunto a sua pro uao, t~e valoriza os efeitos do escrito numa cultura maioritariamente oral. q A 0 interessante dar-se tanta tmportancta e consagrar-se tanto tempo aos textos depreciados ou considerados inferiores, mas maioritariamente difundidos, por s eles serem capazes de nos dar acesso vida cultural do maior nmero, isto , maneira como a oralidade interfere na vida dos textos. Inversamente, o historiador da cultura no pode utilizar sem precaues os textos que se classificam na literatura e os dados que lhe fornecem. O jogo das regras que explicam o seu aparecimento ou desaparecimento no poderia ficar entre parnteses, e assim Rtif de La Bretonne, falando da vida rural de um ponto de vista urbano e de uma nova encenao da ordem social, no , como Georges Benrekassa demonstrou, uma simples testemunha. Ele destaca a con-quista de uma identidade e por contraste enviesa o quadro, j um tanto hagiogrfico, do campesinato. Deste modo, o campo do literrio fica largamente aberto aos historiadores da cultura, sendo-lhes recomen-dado no desconhecer as suas funes especficas e recusar o desvio entre o texto e o saber.

    Quantificar ou no?

    No estudo dos livros e das leituras, bem como no das sociabilida-des eruditas, a quantificao foi um meio essencial e no certamente um fim. Ela permitia sem dvida passar do singular ao colectivo e ensinar as principais mudanas. Viu-se nisto um novo positivismo, a que se reduziu o projecto da histria cultural francesa. O debate ini-ciado nos anos sessenta pelos nossos amigos professores de letras, como Jean Erhard, retomado por historiadores das ideias em Itlia como Franco Venturi e Furio Diaz, recolheu nova actualidade com a concluso deLe Grand Massacre des chats de Robert Damton10 Uma

    vadores; o smbolo do reconhecimento dos seus domnios, da ava- 10 Rob rt D l, . e arnton, Le Grand Massacre des chats. Altitudes et croyances dans liao dos conjuntos em que puderam constituir-se e em que leituras anc1enne Fra p . L f

    diferentes se podem elaborar. Perante a histria literria, a histria debate - nce, ans, a font, 1985 pp. 239-245 Os principais elementos do L

  • dupla crtica une aqueles que recusam totalmente e os que se inter-rogam simplesmente sobre esta maneira de escrever a histria cultu-ral: por um lado, o estudo serial s pode ser redutor, pois no se poderia colocar no mesmo nvel os grandes autores e os menores; por outro, a ordenao que supe a medida utiliza quadros de classifica-o preestabelecidos, incapazes de explicar a apropriao dos objectos culturais; noutros termos, no se deve inventariar os livros, mas l--los. Num e noutro caso, censura-se por no se considerar o tema, individual ou colectivo, e por se descurar a relao, pessoal ou social, que os agentes sociais mantm com o seu sistema de valor ou de crena, com o seu universo simblico. Repetindo, o estudo dos textos permite compreender melhor o problema das articulaes entre posi-o social e escolha cultural, analisados como escolha especfica e sobre um dado material. Na realidade, alm do alargamento e da retirada das barreiras que a histria serial permitiu, necessrio considerar que opor hierarquia quantificada e apropriao qualificada reanima um velho desafio que resume a frmula dos adversrios da sociologia religiosa: no possvel medir a f. Pessoalmente, penso que o debate induz em erro, pois utilizei complementarmente um e outro tipo de anlise no contraditrios. Pode-se perguntar, em certas condies de crtica e de processo e para um certo tipo de question-rio, por que seriam os objectos culturais diferentes de outras produ-es do homem. Textos, livros e tambm imagens podem depender de uma medida, por partes ou no todo, de uma economia social. o meio de apreciar a partilha desigual dos bens culturais, e, alm disso, raciocinando sobre as classificaes imaginrias ou reais do social, para alm do estudo das distribuies, uma maneira eficaz de fazer comparaes e de estudar as rupturas de uma forma completamente diferente dos hbitos intuitivos da histria das ideias.

    Assim, mostrar o impacte prolongado da reforma tridentina nas suas frmulas de vulgarizao, estabelecer entre os sculos XVII e XVIII a curva das obras cientficas e filosficas permite mostrar o desnvel cronolgico que existe entre inovao e tradio e, ao mesmo tempo, prov~ a impossibilidade de se satisfazer com correlaes gros-seiras para explicar o avano ou atraso do pensamento. Hoje, os mtodos quantitativos talvez no tenham esgotado totalmente a sua

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    ddade e permanecem sem dvida mais que nunca uma prepa-fecun i . .. . A - necessria a outras dihgenctas. Constituem, de facto, um ms-

    raao 1. - d 1 d . - 1 . menta cujo alcance e ioes que e es se po em retirar sao re ati-trU mas que obrigam o investigador a reflectir na construo do v~, .. becto que querem rodear, permitmdo compreender melhor a sua 0 ~ 1 d d prpria natureza. Em pnm~uo u~ar, porque to o o uso e ~m sistema

    de classificao e toda a tipologia revelam que as categonas em que se podem alinhar os objectos culturais so susceptveis de mudar e o modo pelo qual elas so trabalhadas pela sua prpria produo. Assim, a deslocao no tempo ou no espao de uma forma de pro-duo ou de consumo cultural acompanhada de uma transformao dos quadros de classificao e interroga o estatuto dos objectos clas-sificados. O prprio limite das opes quantitativistas permitiu inter-rogar as relaes geralmente admitidas - mas que so o resultado temporrio e varivel das operaes de apropriao em anlise -, criao-consumo, erudito-popular, escrito-oral, dominante-dominado, cidade-campo, Paris-provncia, imaginrio-real. A histria das topo-grafias sociais levava histria social das apropriaes.

    Na grelha tradicional que hierarquiza os factos do econmico ao social, do social ao cultural, em nveis sucessivos, da cave ao sto, a nossa histria prefere o estudo das interaces. Insiste tambm na possibilidade de compreender ou de erigir, em verdade definitiva, fenmenos sociais que so menos a expresso das manifestaes sig-nificativas do homem em sociedade do que a perspectivao da sua temporalidade especfica. Finalmente, esta histria pretende ser a das maneiras diferentes que os homens tm de se apropriarem das estru-turas mentais e dos valores culturais. neste sentido que mais se diferencia da histria das mentalidades com que agora nos familiari-zamos, pois tanto se interessa pelos fenmenos de ruptura como pelas categorias estveis e imveis, uma vez que se inscreve no meio termo,

    ~esmo no curto prazo, no Antigo Regime de limites indecisos, na Vida de uma instituio ou na de um sbio, mais que na muito longa

    ~urao; porque tambm mais sensvel s especificidades sociais e s relaes, mesmo s tenses e s lutas que se formam entre os

    grupos e as classes. Aliar o conhecimento estatstico ou qualitativo que mostra a maneua como uma forma cultural, ou um motivo mte-

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  • lectual, se distribui segundo os grupos sociais, ou se reparte consoante os indivduos de uma populao e segundo as prticas que constituem actos distintivos, continua a ser uma das suas ambies fundamentais. No termo de uma transferncia de problemtica tentada por toda uma gerao, dupla interrogao da independncia dos factos culturais e da constituio dos hbitos sociais que tentam responder estas in-vestigaes. Mas elas no visam apenas constituir uma geografia social da recepo das formas ou das ideias, pretendem abrir ao estudo dos consumos culturais que no so apenas assimilao passiva e prova de dependncia, mas ao mesmo tempo criao e produo activa de outra coisa. Entender, ver, ler so atitudes sensveis e intelectuais em que se partilham liberdades e constrangimentos. A cultura do maior nmero feita desta possibilidade, desta ateno oblqua, e todas as tentativas que visem transformar as prticas devem transigir com as tcticas de resistncia e de desvio. Isto continua a ser verdadeiro para todos os nveis sociais de prticas ou leituras, e a histria social da cultura, associando vrias diligncias, permite compreender como se d a fabricao social de um sentido, individualizado ou colectivo 11

    Para a histria dos consumos culturais

    Estabelecer a antropologia social da cultura, no quadro urbano em especial, exige uma pluralidade de abordagens. Trs obras mostram sucessivamente as possibilidades dadas pelo estudo das maneiras de habitar, consumir, vestir e viver.

    Em 1981, Le Peuple de Paris (1981) propunha que se relesse a histria dos comportamentos populares dos parisienses. Retomando a leitura dos contemporneos, observadores morais e literatos, confron-tando a realidade destes pontos de vista diferentes inspirados por uma certa viso do povo e uma escolha de reforma, com a documentao notarial, mais particularmente a dos inventrios aps bito com os arquivos policiais, propunha eu, aliando o equilbrio, tanto quanto

    11 Foi o que tentei fazer no t. II de Franais et I' Ancien Rgime. Culture et socit, Paris, Armand Colin, 1985.

    44 L

    ossvel, anlise dos textos, uma viso complexa e contrastada do ~undo das classes inferiores urbanas. Atravs da evoluo da relao com as coisas, mostrava o empobrecimento e o enriquecimento simul-tneos da populao urbana parisiense e respondia assim questo levantada pelos historiadores da crise revolucionria desde Michelet (a Revoluo filha da misria) e Jaures (a Revoluo filha da pros-peridade) com uma explicao moderada. O problema do aumento das dificuldades inseparvel do da conquista de novos valores e de novas exigncias, que caminham a velocidades variadas na difuso de novos consumos, na construo de uma fronteira entre o privado e o pblico, na larga difuso de novas normas nas maneiras de viver. A cultura popular parisiense passava a ser outra coisa que no o re-flexo das intenes reformadoras e religiosas, um acto permanente de liberdade frgil conquistada na sociabilidade comum do trabalho e do lazer. A cultura esclarecia tambm os mecanismos do poltico e dos conflitos.

    Esta anlise podia ser confirmada pela descoberta, a transcrio e a explorao de um manuscrito indito e original de um valor incom-parvel, o Journal de ma vie do vidreiro Mntra (1982). Atravs da autobiografia e do testemunho do arteso, operrio e depois mestre, lia-se a capacidade cultural de todos, confirmava-se que a cultura popular no se reduz a uma alienao ou passividade, que possui a sua lgica prpria, que importa decifrar e compreender. Na viso calorosa e picaresca que Mntra d das suas experincias sobre a Volta a Frana, em Paris, descobria-se a capacidade dos homens de baixa condio de porem em prtica a reflexo; como podiam ter as suas ideias sobre o mundo social, sobre as relaes entre os homens, sobre a prpria aco poltica, pois Mntra, homem dos regimentos do Antigo Regime e que se fez sans culotte, traduz bem a evoluo vivida pelos agentes da Revoluo. Capaz de interrogar o sentido do seu compromisso, est igualmente qualificado para forjar uma metafsica e uma viso pessoais do mundo religioso. Hoje, o Journal ?e ~ntra passou a ser um texto de referncia traduzido em ingls, Italiano e, dentro em pouco, em alemo porque, para alm do teste-

    ~unho pitoresco, permite corroborar uma histria capaz de dar a Interpretao dos sistemas de sujeio colectiva que tomam possveis

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    - ------------------~

  • b'

    e inspiram as atitudes individuais e as vontades particulares. A leitura do mundo que um indivduo singular prope inventiva mesmo no podendo escapar a imperativos sociais, e o caso Mntra mostrava que se podia fazer a histria da constituio das identidades sociais e culturais, como a histria da relao das foras simblicas e reais entre dominados e dominantes, da aceitao ou da rejeio dos valores de uns pelos outros, em suma, uma histria da liberdade e da sujeio. Ao lado dos Republicanos das letras, podiam ver-se tambm os Re-publicanos sem letras.

    Nos trabalhos que acompanhavam estes diferentes estudos, uma dupla ausncia sugeria-me que retomasse de outro modo a anlise do conjunto das manifestaes sociais, a da dimenso relacional e hierr-quica de conjunto, indispensvel a uma fenomenologia social, e a dos fenmenos que constroem o sentido a partir das representaes, prin-cpios de classificao e de percepo, expresso das relaes de poder. La Culture des apparences ( 1989), ensaio consagrado histria do vesturio, dava uma resposta questo levantada pelo conjunto da sociedade parisiense e levava a uma interrogao mais geral da for-mao das sociedades modernas. A maneira de vestir traduzia outrora, muito mais que hoje, a influncia dos cdigos sociais, dos imperativos morais e religiosos na vida quotidiana. As convenes sobre vesturio realam a hierarquia das aparncias: cada um deve parecer o que . Mas no sculo XVIII tambm se v que cada um pode parecer o que quer ser, mesmo o que tenta ser. O jogo das modas e a ascenso da civilizao urbana provocam o esboroamento dos sinais do vesturio e surgem novos comportamentos para compensar a perturbao social.

    Estas novas manifestaes esto provadas pela anlise comparada dos guarda-roupas e das prticas de vestir, pelo seu estudo em dife-rentes meios intermdios susceptveis de fazer realar os fenmenos de difuso, as linhagens, o exrcito e os seus uniformes. So explicadas pelo exame das condies econmicas da procura e do mercado, da produo dos tecidos confeco do vesturio e sua conservao; toda uma economia se instala, ao mesmo tempo causa e consequncia das transformaes do vesturio. O estudo das tcnicas de fabrico e dos circuitos de difuso pela compra, roubo e ddiva mostra os efeitoS de imitao numa sociedade que pretende ser estvel e o talento nas

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    lu es encontradas para responder procura, do necessrio ao su-so , A I ' I d , . , d prfluo. E ento que se ve reve ar-se a vo ta o vestuarw, atraves e leituras romanescas, de textos filosficos, de escritos mdicos, das reflexes teolgicas e discusses polticas, como a evoluo dos cos-tumes, as modificaes medidas pela bitola do pudor, da higiene e dos usos imaginrios interrogam toda a viso do mundo.

    Facto social global, o vesturio tal como o livro difunde e mul-tiplica as informaes, para todos incessantemente crescentes, uma linguagem cada vez mais complexa que os agentes aprendem a domi-nar. D-se assim, em Paris e na Frana urbana antes da Revoluo, uma transformao capital para as sociedades ocidentais. A Sociedade de consumo, a passagem do Estado estacionrio, ideal da economia poltica crist, Sociedade de crescimento, em que se instauram a ordem das trocas e o clculo dos progressos, encontram na dinmica do vesturio a sua primeira representao. a razo por que a histria das aparncias regista todos os conflitos polticos, religiosos e sociais do mundo antigo, permitindo compreender conflitos e lgicas do futuro.

    Em suma, hoje, parece-me possvel rodear melhor as minhas opes pessoais como historiador social da cultura do sculo XVIII. Para mim, trata-se de estudar mais a cultura que as mentalidades, porque no privilegio os elementos contnuos, inconscientes e resis-tentes da Histria, porque acho que mais revelador inscrever a anlise no curto prazo, um sculo largamente representado, do que no longo prazo, porque penso que relacionar o trato entre classes e a

    ~propriao dos diversos grupos sociais prefervel ao estudo I~terclasse para compreender as rupturas e as inovaes, as constn-CI~s. e os encadeamentos. O meu tema de estudo a compreenso das prahc.as que articulam representaes colectivas e condutas pessoais, maneua~ gerais de sentir, conhecer, pensar, em relao ao estado de hu~~ s?cedade e, portanto, sua histria. Integro-me assim num modelo stonco para o I . - . .

    . qua conta menos a opos1ao entre diferentes tipos de escnta da h. t' , . . h. . IS ona econom1ca, social e cultural, segundo uma diviso stoncament d .

    e marca a por uma leitura estruturada do mundo, da cave ao st d oe- d o, o que a vontade de decifrar as actividades e as cria-s os homen .

    s em sociedades variadas e na mteraco dos campos.

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  • Em suma, se os objectos de estudo so necessariamente limitados, a minha viso pretende ser mais global e reter ainda o transmitido e o recebido, o espontneo e o ensinado, o inerte e o modelo, o coerente e o contraditrio, o popular e o erudito, comparar heranas e inovaes.

    O xito do meu projecto est sujeito adopo de trs princpios. O primeiro jogar com a imbricao das temporalidades na aco da histria e recusar assim a primazia da linearidade, que corresponde a um estado do progresso das civilizaes, e da teleologia, que com-preende o passado em funo do seu resultado. Trata-se de esquecer a quimera das origens, importante dificuldade para compreender a especificidade do Sculo das Luzes. Para bem avaliar modificaes e mutaes no quadro do espao e do tempo considerado, necessrio admitir as possibilidades de dependncia simultneas de ritmos e de dinmicas histricas diferentes. O historiador avalia a aco e o efeito dos desvios observados. Em segundo lugar, j no se deve partir das divises sociais a priori. Se a resposta questo levantada compre-ender o que possvel numa sociedade?, preciso ver as situaes, a maior ou menor dependncia de um dos mundos, de um dos meios cujas normas e hbitos organizam a comunidade na Europa do s-culo XVIII. Estudam-se menos os factos, a formao de ideias, a per-turbao dos comportamentos, a criao de novas maneiras de ver, partindo dos caracteres cannicos da diviso social, do que se obser-vam as apropriaes, na sua posio e relao, na aco e na interaco. o meio de ver que tipos de acesso so oferecidos s grandes cate-gorias que organizam mentalidade e cultura, o espao, o tempo, o crescimento, a religiosidade, a inovao erudita e intelectual, o poder. Em terceiro lugar, convm no separar os princpios do conhecimento intelectual dos que animam o