Parecer - Propaganda Eleitoral - Uso de Bem Público

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PARECER

I. Consulta.

Honra-nos o advogado Lázaro Paulo Escanhoela, eminente membro da banca “Escanhoela - Advogados Associados”, com consulta sobre o aspectos jurídicos da ação de investigação judicial proposta pela Coligação “Sorocaba Cada Vez Melhor” contra a Coligação “Sorocaba do Amanhã” e seus candidatos a Prefeito e Vice-Prefeito Municipal.

Consoante consta da petição inicial, teria a AIJE sido proposta em razão da afirmação de uso da máquina administrativa municipal, sobretudo na propaganda eleitoral gratuita, com a veiculação de “imagens que foram gravadas dentro de bens imóveis e móveis que pertencem à administração pública ou, ainda, foram utilizados servidores públicos municipais em benefício da campanha”.

Foram encaminhadas, para emissão do parecer, cópias integrais dos autos da AIJE e da Representação (art.96 da Lei n° 9.504/97), bem como três fitas de vídeo em VHS, contendo os programas veiculados no horário eleitoral gratuito, que geraram as ações propostas.

A sentença de primeira instância julgou improcedentes as ações, sendo objeto de recursos interpostos para o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, onde receberam parecer pelo provimento, ofertado pela Procuradoria Regional Eleitoral, com assento naquela Corte.

Em razão de tais fatos, foram-me formulados os seguintes quesitos:

1. A propaganda veiculada pelos Recorridos no horário eleitoral gratuito da televisão, onde se verificam imagens de prédios e servidores públicos, caracteriza a prática das condutas vedadas pelo artigo 73, incisos I e III, da lei 9.504/97? Há ofensa ao mesmo dispositivo legal na veiculação de imagens internas de prédios públicos?

2. A veiculação de imagens do interior de sala de aula, e, de alunos no interior de prédios públicos (ginásio de esportes), está a caracterizar a conduta vedada pelo artigo 73, incisos I e III, da lei 9.504/97?

3. Referida veiculação implica em desequilíbrio nas oportunidades dos candidatos que disputam o pleito? Caracterizaria abuso de poder político ou de autoridade? Ostenta potencial para atrair a sanção do artigo 22, incisos XIV e XV da LC 64/90?

4. O parecer da PRE ao se posicionar pelo provimento do recurso, se assenta no ponto em que é veiculada imagem de sala de aula, e, de alunos no interior de uma quadra de esportes (formando a palavra LIPPI), na Escola Luiz Marins. A Procuradoria tomou por base declaração prestada por uma inspetora de alunos e uma mãe de aluno. Deixou, no entanto, de apreciar a prova

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apresentada pelos Recorridos, a saber: declaração da Diretora da Escola afirmando que não houve uso do prédio público. À vista disso pergunta-se:

4. 1 . Como deve ser interpretado o ônus da prova nas representações que seguem o rito do artigo 96 da lei 9.504/97?

4 . 2 . A avaliação da prova de apenas uma das partes no apertado rito do artigo 96, não está a ferir o princípio da ampla defesa e do contraditório inserto no artigo 5º, inciso LV, da CF?

5 . Os Recorridos foram vencedores das eleições com 63,43% dos votos válidos. O candidato da Coligação Recorrente obteve 37,57% dos votos válidos. A diferença em número de votos é de aproximadamente 67.000. Admitindo-se o teor do parecer da PRE, não se estará fazendo letra morta do princípio inserto no artigo 1º, parágrafo único da CF, no sentido de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente?

II. Exposição.

1.Em uma democracia, a pedra angular sobre a qual se ergue a legitimação do exercício do poder é a vontade do povo, manifestada através do voto livre. Não há democracia representativa sem que os escolhidos pelos eleitores possam legitimamente exercer o múnus que lhes foi atribuído.

De fato, a democracia se caracteriza como o “império da maioria”, exercido pelos cidadãos que possuem o ius sugragii, é dizer, o direito de votar. Porém, essa maioria não é aquela formada a partir de uma minoria, ou seja, de uma casta privilegiada com poder de escolha, impondo-a a uma maioria de excluídos do processo decisório. O processo democrático deve ser includente, buscando necessariamente agregar o maior número possível dos nacionais, convertendo-os em cidadão, em um corpo histórica e culturalmente fundado sobre o princípio da igualdade. Como vai advertir Carl Schmitt, esta igualdade democrática é o pressuposto de todas as outras igualdades: igualdade perante a lei, voto igual, sufrágio universal, igualdade para acesso aos cargos públicos. Desse modo, o sufrágio universal não seria conteúdo da igualdade democrática, porém “consecuencia de una igualdad que se da por supuesta. Solo por cuanto que se consideran iguales todos los súbditos del Estado han tener voto igual, sufragio universal, etc. Esas igualdades son casos de aplicación, pero no la esencia de la igualdad democrática. Si no, la Democracia política sería una simple ficción y estribaría en que los ciudadanos fueran tratados como si fuesen iguales” .

Trata-se, a igualdade democrática, de uma igualdade substancial, de tal modo que o valor do voto, como manifestação de vontade de um entre iguais, passa a ser fundamental para a vivência autenticamente democrática. Aí reside a essência do conceito de soberania popular, na lição precisa de Miguel Reale, construído com espeque em três princípios de ordem política: (a) o povo deve ter uma participação cada vez mais ampla nos negócios públicos, de acordo com o seu nível cultural e a sua capacidade ética; (b) a soberania do Estado deve ser exercida sempre em nome do povo e segundo os seus interesses

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espirituais e materiais; e (c) não há ordem estatal legítima sem o consentimento dos governados, donde a necessária nota de juricidade inerente ao conceito de representação política.

É necessário sublinhar, nesse diapasão, que o titular do poder constituinte é o povo, que se encontra “fuera y por encima de toda regulación constitucional”. Não é a Constituição, desse modo, que legitima o poder constituinte, mas este é que legitima aquela. Assim, a juridicidade do conceito de representação política, tão bem alinhavada por Reale, implica pressupor um procedimento legal dando a forma da vivência democrática; não, porém, a sua substância. Com isso, aponta-se a relatividade da legitimação pelo procedimento, que é sempre uma relação de meios e fins. Os procedimentos visam assegurar o exercício pleno da igualdade democrática, quando da vivência constante e irrenunciável da soberania popular.

Nesse sentido, o processo eleitoral é um instrumento para assegurar o pleno exercício da soberania popular, devendo preservar a manifestação da vontade livre do povo, que apenas pode ser postergada a partir da demonstração cabal de vícios que eliminaram ou tornaram frágeis a igualdade democrática, com a prática de abuso de poder político ou econômico, corrupção, fraude, captação ilícita de sufrágio etc. A regra fundamental da convivência democrática parte, justamente, da legitimidade presumida da expressão da vontade da maioria, consolidada na regra “one man one vote”. Não por outra razão, Friedrich Muller afirmou que “Tudo o que se afasta disso necessita de especial fundamentação em um Estado que se justifica como ‘demo’cracia”.

Insisto no ponto, muitas vezes esquecido em nossa prática cotidiana do Direito Eleitoral: a manifestação da vontade popular, através do voto, é a pedra angular da democracia, presumindo-se legítima. De fato, o povo é a “instância global da atribuição de legitimidade democrática”. A quebra dessa legitimidade, sob o ângulo das eleições, apenas ocorre quando há a demonstração de que o exercício da liberdade democrática foi comprometido através de atos ilícitos, sempre com respeito ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa, garantias constitucionais inarredáveis em um Estado Democrático de Direito.

2.Elegibilidade é o direito subjetivo público de ser votado. Além do direito de votar, chamado de capacidade eleitoral ativa, há o direito de ser objeto do processo de escolha popular, como candidato a um mandato eletivo, chamado de capacidade eleitoral passiva ou elegibilidade (ius honorum).

A elegibilidade, dissemos, é direito subjetivo público. Aqui reside a sua nota de juridicidade. Para nascer e ser exercida, necessário o cumprimento dos pressupostos definidos, pelo poder constituinte, na Constituição da República. Sem que as chamadas condições de elegibilidade sejam preenchidas, não há direito de ser votado. Há inelegibilidade, comum a todos que não atendem aos requisitos constitucionais (que não podem ser excessivos, a tal ponto de favorecer a uma minoria de privilegiados). A inelegibilidade inata é a ausência do direito de ser votado, mercê da carência do preenchimento das condições de elegibilidade.

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Preenchidas as condições de elegibilidade pelo nacional, necessário ainda não estar ele submetido a nenhuma sanção que o impeça de concorrer a um mandato eletivo. Chama-se inelegibilidade cominada aquela sanção que impede ou obstaculiza o nacional de participar do prélio eleitoral, concorrendo a um mandato. Assim, todo impedimento advindo de um ato ilícito a que o nacional concorra a um mandato eletivo é sempre uma espécie de inelegibilidade cominada (ou inelegibilidade-sanção).

Não estando o nacional sujeito a nenhuma inelegibilidade cominada e tendo preenchido todas as condições de elegibilidade, nasce para ele o direito de ser votado, decorrente do fato jurídico do registro de candidatura. Todas as condições de elegibilidade nada mais são do que condições de registrabilidade. Não por outra razão, a sanção de inelegibilidade sempre tem por conseqüência a cassação do registro de candidatura, que é o título jurídico que fez nascer a elegibilidade que podou.

3.A previsão legal de condutas vedadas aos agentes públicos foi a resposta dada pelo ordenamento jurídico à introdução da reelegibilidade, por mais um mandato, para os cargos do Poder Executivo, sem a necessidade de desincompatibilização. Buscando garantir o exercício pleno da igualdade democrática, o legislador ordinário introduziu diversas hipóteses de utilização indevida no poder político com a finalidade de desequilibrar a disputa eleitoral, aplicando a sanção de cassação do registro de candidatura (inelegibilidade cominada simples ou para “essa” eleição).

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral firmou-se no sentido de que às condutas vedadas aos agentes públicos aplicam-se a cassação de registro de candidatura, independentemente da influência que ela tenha causado para determinar ou interferir no resultado do pleito. Para essa interpretação, as normas seriam rígidas, pouco importando se o ato teria potencialidade para afetar o resultado do pleito. As chamadas condutas vedadas presumir-se-iam comprometendo a igualdade na competição, pela só comprovação da prática do ato. Sendo assim, é de exigir-se a objetiva e prévia descrição do tipo, de modo que a conduta deva corresponder à bitola da descrição do ato ilícito.

Hoje é um truísmo a afirmação de que a norma jurídica é a significação apreendida dos textos legais. Há aqueles que entendem, não sem certo radicalismo, que as normas são construídas pelo intérprete a partir das marcas gráficas consignadas em um documento normativo. Noutros termos, caberia ao intérprete adjudicar sentido ao texto, atribuindo-lhe significado. De outro lado, há os que, superando o perigoso arbítrio do psicologismo denunciado por Husserl, entendem a interpretação como a construção intersubjetiva de sentido de um texto normativo, vivido simbolicamente por uma comunidade historicamente situada. Os signos expressam algo, já antecipadamente dado, que limita qualquer atividade hermenêutica, ao passo que lhe serve de suporte no processo comunicativo de construção e vivência dinâmica da significação. Noutras palavras, o texto normativo não é uma marca gráfica que não antecipe já algum sentido mínimo convencionado, quedando-se livremente ao arbítrio do intérprete. No processo de construção de sentido, qualquer significação encontra a resistência do texto, que deseja ser compreendido e descoberto, e a resistência do “tu”, do outro, que participa com o “eu” no diálogo que somos

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nós. Toda norma jurídica é um sentido institucionalizado, uma objetivação conceptual que se concretiza na vida pela objetivação social da incidência (eficácia legal).

Com essa percepção do fenômeno jurídico, evitamos desde o início a legitimidade de qualquer interpretação que “desconstrua” o sentido dos textos normativos, criando múltiplos sentidos descomprometidos com a sua originária manifestação deôntica. No dizer de Habermas, é necessário que haja uma racionalidade comunicativa, que se exprima numa “força unificadora da fala orientada ao entendimento mútuo, discurso que assegura aos falantes envolvidos um mundo da vida intersubjetivamente partilhado e, ao mesmo tempo, o horizonte no interior do qual todos podem se referir a um único e mesmo mundo objetivo”.

Diante das conseqüências graves da aplicação das normas prescritas pelo art.73 da Lei n° 9.504/97, a sua interpretação deve ser sempre prudente, evitando excessos que ampliem a sua incidência, alcançando uma gama de fatos normais e corriqueiros dentro do processo de disputa eleitoral, que venham a transformar as eleições em um curioso jogo de azar, em que o exercício da soberania popular passa a ser substituído por um outro procedimento de escolha dos eleitos, mercê da subjetividade das normas jurídicas, a ensejar todo tipo de construção hermenêutica em um determinado caso concreto, possibilidade que o arbítrio se sobreponha à vontade manifestada pelos eleitores.

4.Analisando os processos submetidos à minha apreciação, observo que os fatos alegados na Representação (art.96 da Lei n° 9.504/97) e na AIJE (art.22 da LC 64/90) são os mesmos a serem analisados. Passaremos a abordá-los.

Segundo ambas as petições, teria o Prefeito de Sorocaba, em apoio ao seu candidato à sucessão, praticado ilícito eleitoral por ter pedido o apoio aos ocupantes dos cargos comissionados da Prefeitura, instando-os a um maior engajamento na eleição, consoante notícia publicada em jornal. Ademais, teria prometido a candidatos derrotados a vereador a garantia de um emprego público em troca de apoio político. Ora, a acusação não tem qualquer consistência. Por primeiro, os servidores públicos podem participar ativamente das campanhas eleitorais, desde que o façam em horário estranho à sua atividade funcional. Não há provas nos autos que tenham os servidores comissionados se utilizado de seus cargos para beneficiar a candidatura impugnada. Ademais, não constitui ilicitude alguma o compromisso político assumido entre correligionários, para que, obtendo êxito na eleição, venham a compor a nova administração. Nem a reunião com os comissionados nem tampouco o compromisso assumido com os vereadores derrotados, ainda que existentes, gerariam qualquer ilicitude. As condutas estão em conformidade com o ordenamento jurídico.

Acusa ainda as ações que, na propaganda eleitoral gratuita, o candidato a Prefeito impugnado teria se utilizado de imagens gravadas dentro da Escola Municipal “Luiz de Almeida Marins”, com a interrupção das aulas das crianças para a realização das gravações, em que formavam filas no pátio. Teria, desse modo, se utilizado de bem imóvel, pertencente à administração pública

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municipal, em benefício de sua candidatura. Da mesma forma, teria havido a utilização de imagens da Escola Rural de Ipanema das Pedras, em que se realizava uma palestra sobre a meningite, realizada pela Secretaria Municipal de Saúde O mesmo se diga da utilização de imagens gravadas dentro de um ônibus integrante do sistema de transporte urbano. Ademais, teria havido a utilização, na propaganda eleitoral, de imagens de alunos beneficiados do Programa “Escola Saudável”, promovido pela Prefeitura de Sorocaba em creches e pré-escolas municipais. Também vergastou a utilização de imagens de transporte escolar, de guardas municipais e carros da frota da Guarda Municipal, laboratórios de informática de escolas municipais, inauguração de posto de saúde do Parque das Laranjeiras e do Ginásio de Esporte. Teria também se utilizado impropriamente, na propaganda eleitoral, de ambulância e do prédio do Pré-Hospitalar da Zona Norte, além de imagens de médicos e ambulâncias do Programa Municipal “Médico da Família”.

Bem analisados os fatos deduzidos na petição inicial, podemos, através de um processo lógico de generalização e abstração, encontrar como fato determinante para a impugnação a veiculação de imagens de bens públicos, móveis ou imóveis, na propaganda eleitoral gratuita do candidato Vítor Lippi. Ora, mas não há qualquer impedimento legal para a veiculação de imagens dos bens públicos, móveis ou imóveis, no programa eleitoral, até mesmo porque o eleitor tem o direito de ser informado pelos candidatos das virtudes e defeitos da administração realizada pelo grupo político no poder. Poderia ser impedido o candidato da oposição de filmar um prédio público abandonado ou em estado ruim de conservação? Poderia ele ser impedido de filmar e veicular um ônibus sucateado sendo admitido no sistema municipal de transporte urbano? Poderia a oposição ser obstada na intenção de filmar e veicular a imagem de escolas municipais mal conservadas, de crianças estudando sem merenda escolar, com as imagens de depósitos vazios?

Não se trata de acusação de utilização direta de prédio público para a prática de atos de campanha eleitoral. Como é consabido, a lei vedou que se fizesse propaganda eleitoral em prédio público, com pichações, inscrição a tinta ou veiculação de propagandas nele, e não referentemente a ele . Aliás, a prática da propaganda eleitoral em todo País serve para demonstrar que a conduta vergastada nas ações é francamente admitida e realizada em todas as campanhas eleitorais, de Prefeito a Presidente da República.

O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, em julgados exemplares, procedeu a exata distinção entre a cessão ou uso real de bens, serviços ou servidores públicos, que é vedado por lei e gera a grave sanção da cassação de registro de candidatura, e a gravação de imagens de bens públicos e servidores no exercício regular de suas funções.

5.Aspecto a merecer reflexão diz respeito ao Parecer n° 5.139/2004, da lavra da ilustre representante da Procuradoria Regional Eleitoral, Dra. Mônica Nicida Garcia, ofertado nos autos do Recurso Cível n° 23.527, Classe 2ª. Após detalhado relatório do processo, passou Sua Excelência a observar que “a utilização contínua de imagens da Administração Pública pode, em tese, [caracterizar] a prática de abuso de poder político” (fl.1025 dos autos). Invoca, em achegas à afirmação, o Acórdão-TSE n° 21.290/SP, relatado pelo Ministro

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Fernando Neves da Silva, cuja aplicação ao caso concreto parece-me impertinente. Naquele julgamento enfrentava-se o problema da utilização de símbolos oficiais do Poder Público (brasão) em propaganda que, embora não fosse institucional, não se revestia da natureza de eleitoral. Por óbvio, não poderia o candidato ou seu partido político fazerem uso de símbolos oficiais em propaganda eleitoral, violando norma constitucional expressa.

Noutro ponto, asseverou a ilustre parecerista que: “os representados buscaram trazer atos do governo municipal, através de imagens obtidas ao arrepio da legislação, com nítida finalidade eleitoral, configurando inegável abuso de poder político, tendo em vista que tais atos só foram possíveis com a participação do atual Alcaide do município de Sorocaba, que propiciou aos candidatos eleitos (...) a realização das matérias levadas ao ar nos programas eleitorais gratuitos”. (fl.1026). Não há impedimento para que os “atos do governo municipal” sejam levados ao horário eleitoral gratuito, com a veiculação de imagens dos bens públicos municipais, em funcionamento ou não. Isso, consoante já afirmado, pode ser feito pela candidatura do governo ou da oposição. Como poderia a oposição criticar a atuação da administração do grupo político que ela pretende substituir, sem que pudesse veicular imagens de obras inacabadas ou mal-feitas, de serviço público funcionando mal etc.? A proibição da utilização dessas imagens, sejam críticas sejam elogiosas, impediria o debate político, ferindo o sentido e a finalidade da propaganda eleitoral.

Afirmou-se que as imagens teriam sido obtidas ao arrepio da legislação. Todavia, o Ministério Público Eleitoral não apontou o estrado legal dessa assertiva. Nota-se que a argumentação é construída com ablação da norma do art.73, inciso I da Lei n 9.504/97, que não oferece agasalho para a acerba crítica. Assim, o parecer migra dessa norma para aquela do art.22 da LC 64/90, buscando subsumir a utilização da imagem dos prédios públicos no conceito de abuso de poder político. Em que consistiria o abuso de poder político, no caso concreto? Responde o parecer sub oculis: “O conjunto probatório, de fato, é robusto no sentido de que o atual Prefeito Municipal de Sorocaba/SP, Renato Fauvel Amary, utilizou-se da máquina administrativa, mais especificamente de imagens feitas de prédios e de serviços públicos, acometendo-os, em diversos momentos, de solução de continuidade, haja vista que sobre ele exerceu a sua superioridade hierárquica, abusando dos instrumentos legais de [que] dispõe à frente do executivo Municipal...” (fl.1.028). Adiante, asseverou o parecer: “As imagens foram realizadas com o único e nítido intuito de veicular os serviços públicos prestados pela municipalidade [beneficiando] aos candidatos apoiados pelo atual Prefeito da localidade. Não importa o fato de que a atitude não tenha ocasionado solução de continuidade aos serviços prestados, o que aliás é desmentido quando se verifica que os alunos da Escola Municipal Luiz de Almeida Marins tiveram que deixar suas salas de aula para formar uma figura humana no pátio da escola, formando o nome do candidato representado...” (fl.1.029).

Impressiona que a ilustre representante do Ministério Público tenha transformado a veiculação de imagens de bens e serviços públicos, no horário eleitoral gratuito, em “utilização da máquina administrativa”. Utilizar-se da máquina administrativa é outra coisa: é empregar dinheiro público de modo

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irregular, buscando benefícios eleitorais; é utilizar-se de bens públicos como comitê eleitoral, para a realização de reuniões partidárias; é utilizar-se do servidor público para trabalhar, em horário de expediente, em favor do candidato do governo etc. São condutas concretas, realizadas com a finalidade desequilibrar o pleito através dos resultados favoráveis do desvio de poder.

Nada obstante, a utilização de imagens de prédios ou serviços públicos, veiculadas no horário eleitoral gratuito, está longe de configurar desvio de poder ou abuso de poder político, pouco importando se foram elas feitas quando o prédio estava ou não em funcionamento. Se a oposição quiser mostrar as filas nos corredores de hospitais ou pronto-socorros, à espera de um leito, com pacientes deitados em colchões no chão do corredor, com risco de sofrer infecção hospitalar, haveria abuso de poder ou ilicitude? Evidente que não. O debate político exige que as imagens boas e ruins da gestão pública sofram o crivo das urnas.

Falta, às vezes, o sentido profundo do debate democrático. As instituições ou órgãos de controle teimam em transformar o conflito de idéias, muitas vezes, em excesso, porque invertem a lógica da propaganda eleitoral. Na eleição, tudo o que não estiver expressamente proibido está permitido, sobremais quando estamos em sede de propaganda eleitoral, onde mais se vive o embate de idéias imagens.

Por outro lado, resta evidente que não há provas de que as gravações realizadas com os alunos, no pátio da escola, foram realizadas no horário de aula. Poderiam ter sido realizadas no horário do intervalo? Poderiam ter sido realizadas logo após o encerramento das atividades? Diante da ausência de prova consistente quanto ao momento da realização das filmagens, optou o parecer da Procuradoria Regional Eleitoral em entender desnecessário ou sem importância o saber se houve ou não paralisação do serviço público. Seja como for, não há demonstração cabal de que tenham ocorrido os fatos narrados na exordial, a respeito da determinação de que os alunos deixassem as salas de aula para participar das gravações. Aqui, não há lugar para ilações: há de haver prova. Penso, nada obstante – e nesse passo dou integral razão ao parecer ministerial –, que qualquer paralisação que tivesse ocorrido, em razão das filmagens, não alteraria a significação dos fatos. Porém, em qualquer situação, a filmagem do prédio ou serviço público não teria o condão de gerar qualquer ilicitude.

Insisto aqui em um ponto, fundamental: os fatos narrados na inicial não se subsumem à hipótese de incidência do art.73, inciso I da Lei n° 9.504/97. Não houve cessão ou uso de bens móveis ou imóveis em favor de candidato: filmar bem público ou serviço público em atividade, mesmo que interagindo com ele, não é o mesmo que usá-lo ou cedê-lo. Usar um ônibus do sistema de transporte urbano para transportar gratuitamente eleitores não é o mesmo que filmar o ônibus em uso, transportando normalmente passageiros. Fazer filmagens de uma escola pública municipal, com os alunos participando e interagindo, não é o mesmo que usar o prédio para reuniões com cabos eleitorais ou correligionários.

Não incidindo o art.73 da Lei n° 9.504/97, tampouco incidirá, no presente caso

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sob análise, a norma do art.22 da LC 64/90, ou do art.1°, inciso I, alínea “d” do mesmo diploma legal. É que as condutas descritas na petição inicial são lícitas, estando em conformidade com o Estado Democrático de Direito, com a liberdade de opinião, com a livre manifestação na propaganda eleitoral. Ainda, porém, que se admitisse a ocorrência de abuso de poder, para raciocinarmos com o absurdo, teríamos de admitir, doutra banda, a inexistência de percussão, no pleito, das filmagens realizadas. Seria um caso raro de inelegibilidade: aquela decorrente da propaganda eleitoral realizada no horário eleitoral gratuito!

Finalmente, há um aspecto que necessita ainda ser enfrentado. Observo que a Representação do art.96 da Lei n° 9.504/97 foi ajuizada no dia 31/10/2004, após o término da propaganda eleitoral e da própria eleição. É certo que o art.96 não fixa prazo para o ajuizamento da representação, porém não se pode interpretar a norma como se concedesse aos interessados um direito a impugnar sem prazo decadencial. É de se observar que o Tribunal Superior Eleitoral não admite que a inércia dos interessados seja, na verdade, uma artimanha para se beneficiar depois, acaso apareça oportunidade melhor para a atuação jurídica, quando o agir político sucumbiu.

É de se estranhar que a Representação não tenha sido manejada durante o processo eleitoral, com a finalidade de determinar a imediata suspensão da propaganda eleitoral havida por ilícita, com a aplicação da sanção de cassação do registro de candidatura. Todavia, apenas foi ela aviada após o término do pleito. Ora, sobre o prazo de manejo da Representação, entendeu o TSE de aplicar o prazo de 48h00 para ajuizamento da reclamação, aplicando analogicamente o art.96, § 5° da Lei n° 9.504/97, combinado com o seu art.26. Nessa decisão, o Min. Sepúlveda Pertence asseverou que a finalidade da aplicação de prazo decadencial estava “na necessidade de evitar armazenamento tático de reclamações a fazer para o momento da campanha eleitoral, em que se torne mais útil subtrair tempo do adversário”.

A mesma lógica se aplica ao caso sob exame. Os interessados deixaram para impugnar a propaganda eleitoral do candidato eleito, visando sacar a prática de conduta vedada aos agentes públicos, apenas após o pleito eleitoral findar, quando poderia tê-lo feito durante o prélio eleitoral, visando impedir aquilo que, ao seu juízo, seria uma conduta ilícita. Tenho para mim, portanto, que os impugnantes decaíram do direito de manejar a Representação aviada.

Com essas observações, respondo aos quesitos formulados.

III. Respostas.

1 . A propaganda veiculada pelos Recorridos no horário eleitoral gratuito da televisão, onde se verificam imagens de prédios e servidores públicos, caracteriza a prática das condutas vedadas pelo artigo 73, incisos I e III, da lei 9.504/97? Há ofensa ao mesmo dispositivo legal na veiculação de imagens internas de prédios públicos?

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R.: Não caracteriza uso ou cessão de bens e serviços públicos, em benefício de candidatura, a filmagem dos prédios, interna ou externamente, em funcionamento ou não, interagindo ou não com os servidores públicos (entrevistando-os, por exemplo), para fins do art.73 da Lei n° 9.504/97. É exercício legítimo e democrático do espaço público, tanto para a crítica como para o elogio, que possibilitam auxiliar o eleitor na formação do seu convencimento.

2 . A veiculação de imagens do interior de sala de aula, e, de alunos no interior de prédios públicos (ginásio de esportes), está a caracterizar a conduta vedada pelo artigo 73, incisos I e III, da lei 9.504/97?

R.: A filmagem do interior de sala de aula, como de qualquer outra repartição pública, é absolutamente lícita, podendo ser feita entrevista com os servidores públicos que desejarem (tanto para criticar como para elogiar a administração). A imagem dos alunos no ginásio não caracteriza qualquer ilicitude, salvo se houvesse a demonstração cabal de coação. Não havendo provas nos autos, não pode a coação ser presumida.

3 . Referida veiculação implica em desequilíbrio nas oportunidades dos candidatos que disputam o pleito? Caracterizaria abuso de poder político ou de autoridade? Ostenta potencial para atrair a sanção do artigo 22, incisos XIV e XV da LC 64/90?

R.: Evidente que não. Trata-se de exercício regular e democrático da propaganda eleitoral, cuja finalidade é informar o eleitor das virtudes e defeitos da administração, para a sua continuidade ou substituição pelos críticos. Não há como se falar aqui em abuso de poder político, a não ser que as filmagens fossem produto de coação. A ilicitude não seria da veiculação das imagens, na propaganda eleitoral gratuita, mas da forma de obtê-las quando da realização das filmagens. Nos autos, porém, não consta qualquer prova da existência de coação de professores e funcionários públicos.

4 . O parecer da PRE ao se posicionar pelo provimento do recurso, se assenta no ponto em que é veiculada imagem de sala de aula, e, de alunos no interior de uma quadra de esportes (formando a palavra LIPPI), na Escola Luiz Marins. A Procuradoria tomou por base declaração prestada por uma inspetora de alunos e uma mãe de aluno. Deixou, no entanto, de apreciar a prova apresentada pelos Recorridos, a saber: declaração da Diretora da Escola afirmando que não houve uso do prédio público. À vista disso pergunta-se:4 . 1 . Como deve ser interpretado o ônus da prova nas representações que seguem o rito do artigo 96 da lei 9.504/97?

R.: O ônus da prova é de quem acusa. Salvo engano, os pareceres da Procuradoria Regional Eleitoral (em ambas as ações) não fizeram referência à declaração da inspetora de alunos nem à mãe de um deles. Todavia, diante do acervo probatório do processo, pode-se afirmar que a impugnação não produziu provas cabais das acusações que fez. A filmagem e sua veiculação no programa eleitoral gratuito são condutas lícitas, não havendo impedimento legal algum para a sua realização.

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4 . 2 . A avaliação da prova de apenas uma das partes no apertado rito do artigo 96, não está a ferir o princípio da ampla defesa e do contraditório inserto no artigo 5º, inciso LV, da CF?

R.: O rito do art.96 da Lei n° 9.504/97 é meio inadequado para as representações contrárias às infrações que gerem inelegibilidade cominada simples (cassação de registro). Em verdade, quando da edição desse diploma legal, não se imaginava a mudança que ele causaria na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, alterando toda a sistemática das inelegibilidades. Entretanto, não vejo na adoção do rito sumaríssimo daquele artigo nenhuma inconstitucionalidade. Até mesmo porque, na prática, afora o prazo exíguo para contestar, os juízes eleitorais terminam fazendo instrução, adotando por analogia o rito do art.22 da LC 64/90. Seja como for, penso que, no caso presente sob análise, a Representação não poderia ser conhecida e julgada, porque proposta após as eleições, quando encerrado o período eleitoral (analogicamente: ARP 443, rel. designado Min. José Paulo Sepúlveda Pertence, RJTSE - Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 13, Tomo 4, Página 48).

5 . Os Recorridos foram vencedores das eleições com 63,43% dos votos válidos. O candidato da Coligação Recorrente obteve 37,57% dos votos válidos. A diferença em número de votos é de aproximadamente 67.000. Admitindo-se o teor do parecer da PRE, não se estará fazendo letra morta do princípio inserto no artigo 1º, parágrafo único da CF, no sentido de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente?

R. Sim. A introdução do art.41-A na Lei n° 9.504/97 gerou uma nova hermenêutica no direito eleitoral, em desprestígio da soberania popular. Hoje, a busca de efetividade das decisões judiciais provocou uma reviravolta no sistema, com a destruição de todas as barreiras legais que impediam a execução imediata das decisões e que davam ênfase à vontade da maioria. Consoante mostramos, o TSE firmou entendimento de que a sanção aplicável às condutas vedadas aos agentes públicos independe da demonstração da relação de causalidade ou mesmo, o que é coisa diversa, da possível influência que venha a ter no desequilíbrio das eleições. De outra banda, assistimos ao desmonte do conceito de inelegibilidade, com a finalidade de afastar a incidência do art.15 da LC 64/90, possibilitando a execução imediata em AIJE e AIME.

É o parecer, s.m.j.

Maceió (AL), 20 de janeiro de 2005.

ADRIANO SOARES DA COSTAAdvogado. Ex-Juiz de Direito. Professor de Direito Eleitoral do Centro

Universitário de Ciências Jurídicas (CCJUR/CESMAC).