Parecer sobre suicídio assistido

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Faculdade de Direito Bárbara Minelli Fernandes Cecília Lopes Guimarães Pereira Fernanda Garcia de Oliveira Natália Souza Félix OFICINA DE PARECERES JURÍDICOS: assistência ao suicídio

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Parecer sobre o caso de Patrícia Trumbull e o seu médico Dr. Timothy Quill. (Suicidio assistido)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Direito

Bárbara Minelli Fernandes

Cecília Lopes Guimarães Pereira

Fernanda Garcia de Oliveira

Natália Souza Félix

OFICINA DE PARECERES JURÍDICOS: assistência ao suicídio

Belo Horizonte, 2015

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Bárbara Minelli Fernandes

Cecília Lopes Guimarães Pereira

Fernanda Garcia de Oliveira

Natália Souza Félix

OFICINA DE PARECERES JURÍDICOS: assistência ao suicídio

Trabalho apresentado à disciplina Teoria Geral do

Direito Privado, da Faculdade de Direito da

Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, 2015

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RELATÓRIO

Trata-se o expediente da resolução do caso de Patricia Diane Trumbull, acerca de seu suicídio assistido por Timothy Quill, médico clínico geral e professor associado da  University of Rochester Medical Center, em New York. Patricia Trumbull, de 45 anos, já tendo sofrido de carcinoma vaginal, foi novamente diagnosticada com outro tipo de câncer, dessa vez uma leucemia. Timothy Quill tendo acompanhado, por oito anos, o longo histórico médico da mulher, informou-a dos procedimentos necessários para aumentar sua chance de vida. Consciente, portanto, dos efeitos da doença, Patrícia se recusou a essa serie de dolorosos tratamentos, aos quais incluía quimioterapia, radioterapia, além de um transplante de medula óssea, que daria a ela apenas 25% de chance de sobreviver. Além disso, expressou sua vontade de se suicidar, uma vez que a sua probabilidade de morrer era extremamente alta e sua qualidade de vida estava se deteriorando rapidamente. Quill se compadeceu da difícil situação da sua paciente e a pedido da mesma, ao prescrever a ela pílulas de barbitúricos, informou-lhe não apenas a dose necessária para tratar a insônia, mas também a quantidade que seria letal. Alguns meses após receber a prescrição do medicamento, Patrícia Trumbull ingeriu vários comprimidos de barbitúricos e faleceu tranquilamente no sofá de sua casa. O médico também relatou a justiça que, caso não tivesse cometido suicídio, a mulher teria morrido em menos de uma semana por complicações da doença.

Alguns conceitos relevantes para a resolução do caso tratado acima serão colocados a seguir em questão, de forma a permitir um desenvolvimento pautado em concepções formais e normas do ordenamento jurídico.

Primeiramente, segundo o artigo primeiro do Código Civil de 2002: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.”. Assim, todas as pessoas têm direitos fundamentais – direitos que impõe limites na relação entre cidadão e Estado; são instrumentos de garantia do indivíduo – e direitos da personalidade – direitos subjetivos que tutelam as projeções singulares da dignidade humana, não importando quem viole essas projeções.

Sendo assim, a respeito desse caso, outros artigos deverão ser destacados:

O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, acerca da dignidade da pessoa humana:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana (BRASIL, 1988)

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988, em seu caput, acerca do direito à vida:

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Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...] (BRASIL, 1988)

O artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal. “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”

O artigo 15 do Código Civil sobre recusa ao tratamento médico: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”

Além disso, é importante ressaltar que tanto os direitos da personalidade, quanto os direitos fundamentais são numerus apertus, ou seja, admitem outros elementos além daqueles que estão previstos no Código Civil. Assim, todas as espécies de direitos da personalidade que derivam da dignidade humana são automaticamente tuteladas, como dispõe o artigo 5º § 2º da Constituição:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (BRASIL, 1988)

Exemplos disso seriam o direito à morte digna e à integridade física e mental.

Estudada a matéria, passamos a opinar.

FUNDAMENTAÇÃO

A primeira questão objeto de análise diz respeito à recusa de Patrícia Trumbull a submeter-se aos tratamentos médicos que poderiam aumentar sua expectativa de vida. A quimioterapia, como bem se sabe, pode causar fadiga, constipação, anemia, perda de cabelo, náusea e vômito. Ademais, esse tratamento também pode acarretar efeitos colaterais permanentes no corpo, como problemas no coração, fígado, pulmões, nervos e órgãos reprodutivos e, anos depois,originar um segundo tipo de câncer, além de poder ser fatal.

Dessa maneira, o art. 15 do Código Civil é categórico ao afirmar que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.” Para além, o art. 5° da Constituição Federal, em seu inciso III – “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento humano ou degradante.” -, também legitima a escolha da paciente, uma vez que estabelece o direito de Patricia de não ser obrigada a se sujeitar a tratamentos degradantes, mesmo que esses procedimentos sejam médicos e tenham o intuito de ajudar a restabelecer sua saúde. Em outras palavras, a dignidade de Trumbull é garantida à medida que é dada a ela a autonomia para recusar, de acordo com os seus valores e convicções pessoais, os tratamentos médicos indicados. 

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O segundo ponto que deve ser discutido é a vontade expressada por Patricia Trumbull de cometer suicídio. Para ela, não era suficiente apenas recusar os tratamentos médicos, pois, devido aos efeitos da doença, seu sofrimento era constante. Ao considerar o suicídio, sua decisão seria legitimada pelo princípio da dignidade (art. 1º, inciso III da Constituição Federal), que resguarda seus direitos específicos à morte digna e a integridade física. Patricia tem total autonomia e liberdade para suscitar esses direitos e colocá-los a frente de suas decisões. Além disso, como era um fato que ela morreria desde o momento que decidiu não se submeter a tratamentos, a sua integridade mental estava passível de ser atingida. Isso se justifica pelo fato de que ter a consciência de uma morte – que ocorreria de forma lenta, dolorosa e prolongada – não é, de forma alguma, positiva ao lado psicológico e emocional da paciente.

Timothy Quill, acompanhando as dificuldades que Patrícia sofria com a progressão da doença, dentre as quais se incluía dificuldades para dormir, prescreveu a ela pílulas de barbitúricos para solucionar a insônia. Não obstante, ciente da vontade de sua paciente de se suicidar, Quill atendeu ao pedido da mesma e informou, na receita, a dose desse medicamento que seria letal. Ele, após acompanhar Patrícia Trumbull por longos oito anos e já a ter ajudado a superar, no passado, outro câncer, não fez nada além de entender a dor e a situação de sua paciente, não induzindo e nem instigando a mesma a cometer suicídio.

Nesse momento, também vale expor que Quill, mesmo informando a dose letal, não tinha possibilidades de afirmar se ela de fato cometeria o suicídio. Porém, mesmo se tivesse tal certeza, não teve interferência alguma na própria vontade da paciente. Trumbull tinha autonomia e decidiu por si própria terminar com sua vida, evidenciando que a conduta do doutor apenas proporcionou um meio mais pacífico para que ela atingisse sua vontade. Trata-se aqui de um suicídio assistido: um auto-extermínio favorecido por quem forneça método letal - eficaz e indolor - em que a consumação é feita justamente pelo próprio paciente. No quadro clínico de Patrícia, ela passava por insuportáveis dores e sofrimentos e pensava na morte como forma de se livrar do padecimento que a vida se tornou. Além do mais, alguns direitos como a dignidade e integridade estavam sendo feridos, tornando válida a assistência feita por Timothy Quill, que apenas serviu de ajuda para que sua paciente tentasse resguardar seus direitos da personalidade.

Meses após a assistência médica, Patrícia Trumbull decidiu ingerir as pílulas de barbitúricos, terminando por falecer tranquilamente e sem dores no sofá de sua casa. Em nossa visão, o direito à vida, garantido pela Constituição, não deve ser transformado, em hipótese alguma, em um dever sofrido1. A paciente, assim como todo indivíduo capaz, tem a liberdade de hierarquizar seus direitos da personalidade e, tendo o discernimento para compreender a

1 SÁ, Maria de Fatima Freire de. Direito de Morrer: Eutanásia e Suicídio Assitido, 2ª Ed. Belo Horizonte: DelRey, 2005, p. 60.

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situação, pode então decidir por uma morte digna, em detrimento da sua vida. É como Georg Wilhelm Friedrich Hegel ressalta:

Tenho a vida e o corpo porque são meus, tudo depende da minha vontade. Assim, o homem pode matar-se [...] a seu entendimento2 (HEGEL)

Como já afirmado acima, a escolha de Trumbull é fundamentada em seus direitos da personalidade. Entretanto, uma questão deve ser evidenciada: segundo o artigo 11 do Código Civil de 2002:

Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária (BRASIL, 2002)

Como, em consonância com o Código, poderia então Patrícia renunciar o direito à vida? A interpretação necessária para essa resposta seria admitir que o Código confunde titularidade com exercício. Tendo isso em mente, a titularidade do direito não é passível de renúncia, mas o seu exercício sim. Patrícia, assim, continua sendo titular do seu direito à vida, mas renuncia ao exercício, uma vez que estabelece uma hierarquização individual em que coloca o direito a dignidade acima de seu direito à vida. Logo, ela faz uma escolha consciente de priorizar a sua integridade física e moral, por meio de uma morte mais digna e sem sofrimento.

Nesse sentido, nós aderimos ao pensamento de grande parte da doutrina que qualifica os direitos da personalidade como direitos subjetivos; Adriano de Cupis3, escritor italiano, chega a dizer que esses são direitos imprescindíveis à medida que constituem a "medula" da personalidade humana. Em resumo, os direitos da personalidade são considerados direitos subjetivos, uma vez que os seres humanos são vistos como absolutos e são considerados em seu todo, possibilitando, dessa maneira, terem direitos sobre si mesmos.

CONCLUSÂO

Tendo em pauta o exposto no relatório e na fundamentação, chegamos à conclusão que, em casos como esse, em que outros direitos são feridos, a morte deve ser pautada pelos mesmos princípios que dirigem a vida, sendo eles: a liberdade, a autonomia de vontade e a dignidade. Assim, o médico Timothy Quill não pode ser responsabilizado, consoante aos fatos previamente expostos. É dever do médico, segundo o Código Profissional de Medicina, informar ao paciente os aspectos da doença e as possibilidades terapêuticas não podendo interferir em sua autonomia de decisão. Após a recusa do

2 BIZATTO, José Ildefonso. Eutanásia e responsabilidade médica. 2ª ed. São Paulo: Led Editora, 2000, p. 16.3 CUPIS, Adriano de apud SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer: Eutanásia e Suicídio Assistido, 2ª Ed. Belo Horizonte: DelRey, 2005, p. 18

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tratamento, Patrícia se submete à morte como mecanismo natural da evolução da doença. Dr. Quill, não obstante à decisão de Trumbull, não a deixa sem assistência ou cuidados paliativos, consolidando o exercício da prescrição medicamentosa em relação à necessidade e às informações quanto às doses habituais e excessivas do barbitúrico. Fato é que a precisão temporal entre a prescrição medicamentosa e o abreviar da vida deixam claro que Patrícia já tinha a decisão formada. Por outro lado, independente do acesso ao medicamento, o findar da vida aconteceria de forma irremediável tendo em vista à recusa ao tratamento proposto e a evolução natural da doença. Timothy Quill, dessa forma, possibilitou a efetivação dos direitos fundamentais da autonomia de vontade, dignidade e da liberdade de sua paciente. Assim como afirma Luis Flávio Gomes:

A morte digna elimina a dimensão material-normativa do tipo (tipicidade material), pois a morte, neste caso, não é desarrazoada ou reprovável. Não existe [...] resultado jurídico negativo. O bem jurídico vida é ponderado em face de outros valores constitucionais igualmente básicos, tais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição), a liberdade [...] 4 (GOMES, 2007)

Portanto, a chave da interpretação do caso em questão deve ser: o exercer de direitos garantidos pela Constituição Federal e Código Civil brasileiro, pautado pela autonomia da vontade e pela hierarquização individual dos direitos da personalidade.

É o parecer.01 de Junho de 2015

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REFERÊNCIAS

4GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia:. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1305, 27 jan. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9437>. Acesso em: 28 maio 2015.

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BIZATTO, José Ildefonso. Eutanásia e responsabilidade médica. 2ª ed. São Paulo: Led Editora, 2000.

BRASIL. Código Civil (2002). Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2015.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2015.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Código de Processo Ético-Profissional. Resolução CFM nº 2.023/2013, publicada no Diário Oficial da União em 28 de agosto de 2013. Disponível em: <http://portal.cfm.org.br/> Acesso em: 30 maio 2015

GERAIS. Conselho Regional de Medicina do Estado de. Parecer consulta nº 003762-0000/09. Paciente terminal – Ortotanásia – Ressucitação de paciente – Prontuário médico – Autonomia do paciente. 03 ago. 2009. Disponível em: <www.crmmg.org.br> Acesso em: 30 maio 2015.

GOMES, Luiz Flávio. Eutanásia, morte assistida e ortotanásia. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1305, 27 jan. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9437>. Acesso em: 28 maio 2015.

MARTINS, Marcio Sampaio Mesquita. Direito à morte digna: Eutanásia e morte assistida. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8765#_edn7> Acesso em: 28 maio 2015.

SÁ, Maria de Fátima. Direito de Morrer: Eutanásia e Suicídio Assistido, 2ª Ed. Belo Horizonte: DelRey, 2005.