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80 PARTE III A GEOGRAFIA DA NATUREZA “Os homens sempre elaboraram falsas concepções de si mesmos, daquilo que fazem daquilo que devem fazer e do mundo em que vivem”. Marx e Engels (IA)

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PARTE III

A GEOGRAFIA DA NATUREZA

“Os homens sempre elaboraram falsas concepções de si mesmos, daquilo que fazem daquilo que devem fazer e do mundo em que vivem”. Marx e Engels (IA)

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A DIALÉTICA DA NATUREZA COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR

Como se pôde ver anteriormente, o sistema de produção capitalista, ao longo da sua

história evolutiva, tem se utilizado estrategicamente de argumentos ideológicos com o objetivo

de manter a própria existência, o que pode ser lembrado desde a externalização da natureza

como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, passando pela

concepção positivista de sociedade, deslocando a ciência do âmbito da superestrutura para as

forças produtivas (dando a ela um sentido tecnológico), deslocando o limite da natureza do

campo físico-mecanicista para o biológico como estratégia de sustentação da base material

(do inorgânico não renovável para o orgânico renovável)... Assim o sistema tem se

caracterizado: pela lógica da repetição como forma de organização e controle do processo

produzido, hoje de âmbito globalizado.

Nesse contexto de contradições e repetições é que se inserem as ciências que, ao

serem cada vez mais empurradas para as forças produtivas, deixam de discutir as questões

de natureza epistemológica e ontológica, para produzir uma natureza cada vez mais

tecnificada e reproduzir a alienação desejada pelo sistema de produção. Assim, as ciências,

embora tendam a modernizar seus discursos teóricos e tecnificar suas bases metodológicas,

pouco tem feito para mudar a forma de pensar. Consequentemente, a ciência, da mesma

forma que o sistema, passa a se caracterizar pela lógica da repetição sob os auspícios da

neutralidade, sabendo que as repetições nunca se dão nas mesmas condições. .

Também nesse contexto a Geografia tem se caracterizado por uma tendência de

contradições e repetições, bastando observar as transformações ocorridas a partir da

Segunda Guerra Mundial, quando se propõe a questionar a Geografia Tradicional sem,

contudo mudar a forma de pensá-la. A Nova Geografia resgata o positivismo a partir da

década de 60 do século passado, utilizando uma roupagem modernizada, caracterizada pela

teoria dos modelos e da quantificação, subsidiada pelos recursos informacionais. A partir da

década de 70, aproveitando-se da tendência de pacificação do mundo – enfraquecimento do

macartismo – a Geografia e as demais ciências sociais “redescobrem” o marxismo,

apresentando uma proposta revolucionária no sentido de repensar o mundo, privilegiando as

relações sociais. Contudo, a nova crise paradigmática dos anos 80, marcada pelo

“O mundo natural é anterior e casualmente independente de qualquer forma de espírito ou de consciência, mas não o inverso”. Engels

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desencantamento do “socialismo real”, a nova revolução científico-tecnológica nas forças

produtivas e a massificação do modelo produtivista liberal como fim comum enfraqueceram o

corpo teórico-metodológico da Geografia Crítica. Esse fato levou ao desenvolvimento de

várias tendências, dentre as quais se destaca a de cunho fenomenológico que promoveu uma

apologia ao “imaginário social” em detrimento da “cultura materialista”. Mais uma vez percebe-

se o rondar do neopositivismo, aproveitando a crise das ciências sociais, com nova roupagem.

Como se pode perceber, ao longo da trajetória do capitalismo a ciência sempre se

constituiu numa aliada do sistema, seja como instrumento da superestrutura, reproduzindo a

desejada alienação, se caracterizando assim como instrumento ideológico na formação da

consciência social, seja como suporte às forças produtivas, através da cientificação da técnica,

contribuindo para o desenvolvimento da sua base econômica. Ainda hoje se constata uma

forte tendência de a ciência se voltar cada vez mais aos interesses econômicos do sistema de

produção, sem deixar de exercer o “dever” ideológico, aproveitando-se do respeito que lhe foi

confiado. Este fato pode muito bem ser exemplificado através dos avanços tecnológicos

proporcionados pela ciência, que no momento atual promove uma verdadeira revolução nas

forças produtivas, utilizada pelo produtivismo liberal como forma de “pacificação de conflitos”

da classe trabalhadora. Assim subjuga o trabalhador aos interesses das relações sociais de

produção, utilizando como “arma” a tecnificação dos instrumentos de trabalho, capaz de

substituir, tanto em nível de eficiência quanto em custo operacional, a força de trabalho.

Pensar de Outra Maneira Embora não desconhecendo o suposto cunho utópico que a proposta de se “pensar de

outra maneira” implica (a visão teleológica destrói o mito da utopia) e sabendo que as forças

econômicas jamais patrocinarão qualquer crítica ao sistema, resta a expectativa apontada por

Adorno e Horkheimer (1986)230 de que apesar de o sistema “procurar proteger pela negação a

união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação”, não

consegue distorcer as consequências do esclarecimento, sendo necessário insistir e “proferir

brutalmente a verdade chocante”. Nesse contexto, a Geografia, que foi intensamente abalada

pela “feliz apatia” do iluminismo, deve rever seus conceitos e promover um conteúdo que

possa desmitologizar e desalienar o homem abstrato em verdadeiro cidadão. É oportuno

lembrar mais uma vez a entrevista de Sartre (1980) ao Nouvel Observateur de Paris,

demonstrando o sentimento de angústia diante da crise mundial: “eu resisto e sei que morrerei

na esperança, mas essa esperança temos de fundá-la. É preciso tentar explicar por que o

mundo de hoje, que é horrível, não é mais do que um momento no longo desenvolvimento

230 Adorno & Horkheimer, op. Cit. P. 111.

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histórico; que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das resoluções e das

insurreições. Eu sinto ainda profundamente a esperança como minha concepção do futuro”.

Torna-se um dever das ciências, sobretudo as que possuem compromisso com a

formação da consciência social, onde se inclui a Geografia, promover uma ampla discussão

no sentido de pensar de outra maneira. Conforme Morin (apud Branco, 1989)231, pensar de

outra maneira não significa mudar o mundo, mas sim pensar o mundo. Nessa afirmação

encontra-se contida a grande premissa: o reassumir da responsabilidade científica com o

intuito de proporcionar o desenvolvimento de uma consciência social crítica, desvendando a

essência da realidade objetiva como alternativa de mudança do mundo. Embora o pensar o

mundo não signifique necessariamente ‘mudar o mundo’, não deixa de oferecer a expectativa

histórica para que tal aconteça. Essa perspectiva se constitui no objetivo maior do

materialismo dialético, que aplicado à “dialética da natureza”, no conceito engelsiano, deverá

promover uma nova visão geográfica de pensar o mundo, promovendo a revolução

epistemológica desejada.

Embora a dialética da natureza tenha sido pensada no contexto das ciências naturais,

parte-se do princípio de que sendo o homem parte dessa natureza, uma vez que resulta do

seu processo evolutivo, se insere nesse contexto. Não se trata de resgatar o neopositivismo

como fez o darwinismo social. A dialética incorpora a necessidade do tratamento diferenciado

entre as relações sociais e naturais. Assim, natureza deve ser entendida ou associada à

história, estando o homem associado a esta pelo processo social do trabalho. Citando

Heisenberg232, “a ciência da natureza não pode falar simplesmente da natureza ‘em si’. A

ciência da natureza pressupõe sempre o homem e não devemos esquecer o que disse

Bohr233, que no espetáculo da vida, nunca somos apenas espectadores, mas também,

constantemente, actores”. Trata-se de resgatar o conceito de physis dos pré-socráticos, assim

definida por Bornheim234: “(...) é a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apreendida em tudo

o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens.

E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facilmente incorre o homem

contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais

estreita e pobre que a grega, o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a

compreendessem a partir daquilo que nós hoje entendemos por natureza: neste sentido, se

comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a

physis não designa principalmente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza,

estendendo-se secundariamente ao extra natural”.

231 Branco, DCN p. 276. 232 Heisenberg, Werner. A imagem da natureza na física moderna. Lisboa:Livros do Brasil, 1980, p. 14. 233 Referência a Niels Henrick David Bohr, físico dinamarquês, cujos trabalhos contribuíram decisivamente para a compreensão da estrutura atômica e da física quântica. 234 Bornheim, Gerd A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:Cultrix, 1982.

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Reafirmando as palavras de Branco (1989)235, no plano gnosiológico o sujeito do

conhecimento não é nunca entendido como “espelho passivo” (crítica à referência feita por

Schmidt ao conceito de dialética da natureza de Engels), observando que “o pensar não se

esgota no reflexo do factual”. Entendendo a natureza associada à história, estiola-se ou se

contrapõe à perspectiva da divisão clássica das ciências estabelecida pelo positivismo.

Partindo do princípio de que a Geografia tem como objeto de estudo as relações entre

a natureza e a sociedade, numa perspectiva histórica, imprescindível ao entendimento do

espaço em sua integridade, e considerando os desvios interpretativos e desagregadores

promovidos fundamentalmente pelo positivismo, a dialética da natureza aparece como

alternativa máxima, na busca da esperada unificação. O pressuposto a ser combatido

fundamenta-se no princípio da externalização da natureza, desenvolvido no iluminismo, como

forma de legitimação da apropriação privada dos meios de produção, base de sustentação

econômica do sistema capitalista. Se a externalização levou ao desenvolvimento de uma

Geografia dual – a Geografia Física e a Geografia Humana - parece mais que plausível rever o

conceito de natureza e utilizá-lo como elemento unificador. É nessa perspectiva que se propõe

o resgate do conceito de dialética da natureza, numa visão engelsiana, como fundamento para

a compreensão das relações sociais de produção da natureza: a natureza como realidade

objetiva, refletida pela consciência, resultante do intercâmbio entre o homem e a natureza:

uma dupla manifestação da natureza.

Assumindo a dialética da natureza como pressuposto teórico para o novo

pensar da Geografia, acredita-se na possibilidade de se resgatar a dialeticidade entre natureza

e sociedade, pondo fim à externalização da natureza em relação ao homem, que na verdade

refere-se à externalização da natureza para muitos, em detrimento de uma apropriação

espontaneísta desta, por poucos, apropriação essa representada por aqueles que detêm a

privatização dos meios de produção e consequentemente da própria natureza.

É evidente que assumindo a dialética da natureza como pressuposto epistemológico e

ontológico, a Geografia estará também se apropriando dos fundamentos do materialismo

dialético, aqui sintetizados:

a) o materialismo em oposição ao idealismo, partindo do princípio de que o

conceito de natureza identifica-se em absoluto com os conceitos de “matéria” e

“realidade objetiva”. Assim, torna-se necessário compreender a natureza como matéria

em sua integridade, não apenas como os fenômenos da natureza, mas também os da

sociedade, resgatando-se o conceito filosófico da “matéria” e não o conceito

“científico”, embora este, cada vez mais se aproxime do filosófico. Se o orgânico é

“matéria”, consequentemente o pensamento, como resultado deste, também é. Torna- 235 Branco, DCN, p. 261.

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se claro, através do materialismo na sua concepção dialética, que o conhecimento

resulta da assimilação da realidade objetiva, tendo a prática humana sensível como a

base do processo cognitivo. A natureza enquanto sinônimo de realidade objetiva

precede a atividade cognitiva, que consiste no primado do ser em relação ao pensar: o

primado da natureza em relação ao pensamento humano. Portanto, o conhecimento

resulta da prática, ou seja, da assimilação da existência da matéria pelos órgãos

sensitivos, de onde se conclui que o conhecimento só é possível a partir da existência

da “matéria”, que por sua vez justifica a existência da “realidade objetiva”. Sem a

prática percepcional da matéria não existe conhecimento, o que leva a refutar a

existência de supostos conhecimentos ou fatos de natureza obscurantista, como as

explicações extrassensoriais ou não possíveis de serem materializadas.

Tanto a natureza quanto a sociedade devem ser vistas pela Geografia como matérias

constitutivas da realidade objetiva, cujo conhecimento produzido deve fundamentar-se

nessa essência material, contribuindo para a formação de uma consciência social

isenta de explicações obscurantes, disseminadas pelo idealismo, utilizado como

instrumento ideológico para a reprodução da alienação e consequente subjugação do

homem pelo capital.

b) a dialética, em oposição à metafísica, tem por princípio a não existência da

matéria desprovida de movimento (princípio da identidade), movimento esse por

essência, não repetitivo, contestando a interpretação dos movimentos circulares

permanentemente cíclicos ou fechados da matéria e energia. Contrapõe-se de forma

veemente o “isolamento das coisas”, partindo do princípio de que há uma dialeticidade

imanente, a unidade é indeclinável. Refuta as “divisões eternas e intransponíveis”,

considerando a historicidade da matéria, ao mesmo tempo em que se opõe ao “horror

da contradição”, admitindo a existência dos contrários como resultado do processo.

Nega-se ainda a finitude do conhecimento; resgatando mais uma vez Engels (AD) ao

afirmar que a unidade do real consiste na sua materialidade, cuja prova é dada pelo

progresso do conhecimento em geral e do conhecimento científico em particular.

Engels (1976)236, ao demonstrar que “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do

movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do

pensamento”, refuta a metafísica em tais dimensões.

A concepção metafísica da natureza é de que esta se caracteriza como um conjunto

de coisas definitivamente fixas, sendo o movimento entendido como “ilusão dos

sentidos”. Embora admitindo que a natureza se mova, a metafísica afirma que se

encontra animada por um movimento mecânico. “... admitir o movimento (da terra), 236 Engels, AD, p. 172.

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mas fazer dele um puro movimento mecânico é uma concepção metafísica, porque

este não tem história” (Politzer, 1986)237.

A concepção metafísica da sociedade, da mesma forma que da natureza, admite

mudanças em nível de produção, sucessão de governos, sem, contudo alterar o regime

capitalista (manutenção das relações sociais de produção, do antagonismo de classes,

privilégios...). Parte do princípio que a história é uma contínua repetição, embora não

se negue o movimento, falsifique-o, transforme-o em simples mecanismo.

Por último, a concepção metafísica do pensamento parte do princípio de que este não

evolui, deixando de oferecer qualquer perspectiva histórica. A sociedade não pode ter

outra base senão o enriquecimento individual e egoísta. “... esta maneira de pensar,

que nos parece, à primeira vista, extremamente plausível, porque é a do que se chama

o senso comum” (Engels238]. Conforme Politzer (1986)239, “chamamos à maneira como

vemos o universo de uma concepção; a maneira como procuramos as explicações de

um método. (...) a concepção inspira e determina o método muito evidentemente; uma

vez inspirado pela concepção, o método reage sobre esta, dirigindo-a, guiando-a”.

Com base em tais pressupostos, a dialética da natureza (método), entendida como

integridade das relações da natureza e da sociedade, proporciona a superação da

relação dual mantida na Geografia (concepção), deixando a natureza de ser

compreendida como puro objeto universal do trabalho, para ser compreendida ao

mesmo tempo como sujeito e objeto. A instauração da práxis como elemento mediador

inviabiliza a oposição sujeito-objeto, pondo fim não apenas à clássica dicotomia

conhecimento-atividade prática (Engels), mas também a do homem em relação à

natureza em suas derivações deterministas, mantida como forma de legitimação dos

interesses do sistema de produção. Não se pode excluir o cognoscente do seu próprio

conhecimento, uma vez que o seu próprio objeto emana de um sujeito. Conforme Morin

(1986)240, é necessário “reintegrar e conceber o grande esquecido das ciências (sujeito-

vivo) e da maior parte das epistemologias, e enfrentar, sobretudo aqui, o problema a

nosso ver incontornável da relação sujeito/objeto”. Trata-se de “enfrentar esse

problema complexo em que o sujeito cognoscente se torna objeto do seu

conhecimento ao mesmo tempo em que permanece sujeito”.

237 Politzer, op. Cit, p. 107-108. 238 Engels, AD, p. 53. 239 Politzer, op. Cit. P. 110. 240 Morin, op. Cit, p. 25.

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A DIALÉTICA DA NATUREZA NA GEOGRAFIA

Habermas (1968)241 reconhece a emergência de uma solução sobre a

reestruturação do Estado e da sociedade sobre outras faces, diante das crises atuais de

racionalidade e legitimação. Rouanet (1989)242, quando se aproxima da realidade nacional,

destaca o populismo espelhado na condução política do Brasil, onde as ideias

desenvolvimentistas a partir dos anos 50, abrem espaços cada vez maiores para a

tecnocracia, aliada aos interesses empresariais, estimulando a modernização desejada pelas

oligarquias socioeconômicas – denominada pelo autor de “atitudes irracionalistas”.

Nesse contexto a ciência precisa livrar-se dos discursos irracionais, em nome da

eficiência e da modernização, captando a dimensão histórica das sociedades em busca da

liberdade do homem.

Como ponto de partida para uma discussão epistemológica na Geografia, é

imprescindível romper com a alienação patológica resultante do modelo de racionalidade do

pensamento iluminista, insistindo na necessidade de:

a) romper o antinaturalismo, fundamentado na ideologia do “desencantamento do

mundo”, que tem por objetivo a substituição da compaixão pelo saber, da

“externalização” da natureza interna e externa do homem como forma de

legitimação da apropriação privada dos meios de produção. Necessário se faz

considerar que quanto mais o homem se afasta da natureza, mais longe fica de sua

essência, reforçando sua própria alienação;

b) utilizar o “viés” ambientalista como estratégia epistemológica, proporcionando a

necessária rediscussão do conceito de natureza, apropriando-se de uma função

que se possa qualificar de dialética. Nessa perspectiva as relações processuais da

natureza devem ser entendidas numa relação dialética, onde as relações sociais de

produção e respectiva superestrutura ideológica legitimam a apropriação privada da

natureza, produzindo o antagonismo de classes em nome do “desenvolvimento”. É

preciso compreender que é o sistema de produção e as forças produtivas que dão

à natureza sua existência social.

A Geografia, em sua nova postura epistemológica, ao buscar a compreensão dialética

da natureza (natureza-sociedade), procura superar todas as formas de determinismo e

consequentes relações duais. Assim agindo, resgata não apenas o valor científico 241 Habermas, op. Cit., p. 242 Rouanet, S.P. As razões do Iluminismo. S. Paulo: Cia. das Letras, 1989.

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fundamentado nos postulados histórico-materialistas, como a participação política, negada até

então pela roupagem da neutralidade científica, que tem sido indispensável ao processo de

desalienação do homem abstrato. Portanto, levar o homem à compreensão de que é um ser

natural permitir-lhe-á ao mesmo tempo entender que a natureza lhe pertence, não apenas

como substrato material, mas, sobretudo como recurso necessário à sua sobrevivência.

Assim, contestar-se-ão todas as formas de alienação, o que sem dúvida implicará

rediscussão do conceito de propriedade dos meios de produção, estiolando o crescente

antagonismo de classes, buscando a desejada justiça social e levando à necessária

compreensão da essência ambiental.

Pressupostos para a Compreensão das Relações Processuais A dialética é representada por leis gerais sistematizadas por Hegel, que foram

apropriadas e compreendidas numa concepção materialista por Marx e Engels. As três leis

anteriormente apresentadas são aqui retomadas, com o intuito de se demonstrar os seus

significados para a Geografia:

- lei da passagem da quantidade em qualidade

- lei da interpenetração dos contrários

- lei da negação da negação

Tais leis assumem importância fundamental, tanto para a compreensão das

relações processuais na natureza como na sociedade, devendo ser entendidas na perspectiva

da unidade do real. Alguns exemplos geográficos foram anteriormente apresentados,

devendo-se destacar aqui a evolução qualitativa da matéria e sua passagem quantitativa, ou

vice-versa, evidenciada ao longo da evolução histórica da natureza, como a própria mutação

biológica e origem do novo ser, ou das transformações processadas no tempo e espaço, como

resultado do trabalho ininterrupto dos processos modeladores. As mudanças dos

componentes do potencial ecológico e consequentemente da exploração biológica, hoje são

percebidas mais rapidamente, com a presença do homem motivada pelo processo de

ideologização representado pela “dominação da natureza”.

Nessa mesma linha tem-se a interpenetração dos contrários. Partindo do

princípio de que o movimento da matéria é por essência não-repetitivo, é natural que

apresente alternâncias de natureza quantitativa, e, por conseguinte, qualitativas. Nesse

contexto as diferenças quantitativas se caracterizam como forças contrárias, que ao longo do

tempo se interpenetram, gerando novos equilíbrios transitórios ou “equilíbrios dinâmicos” no

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conceito de Hack (1960)243. As forças contrárias, responsáveis pelas transformações, não

deixam de contemplar as marcas do passado. Isso pode ser observado na natureza, entre os

processos endógenos e exógenos da terra, que explicam a evolução dos modelados, ou na

sociedade, onde as forças produtivas implicam alterações nas relações de produção com

consequentes reflexos na superestrutura ideológica. Portanto, as mudanças qualitativas

resultam de ações processuais quantitativas para gerar mudanças, as quais não deixarão de

preservar parte do que foi mudado, prova da interpenetração dos contrários. Na natureza, tais

alterações se dão ao longo do processo geológico, comandado pelo jogo de forças contrárias:

endógenas e exógenas. Na sociedade tais alterações ocorrem ao longo do processo histórico.

Nesse caso, sobretudo a partir do Século XVII, as mudanças têm sido muito mais na

aparência (paisagem) que em sua essência (espaço).

Constata-se a importância da contradição existente das coisas, manifesta na

terceira lei, que segundo Engels (AD) constantemente se apresenta e resolve a generalidade

dos fenômenos da natureza e da vida. Retomando Politzer (1986)244, com relação à negação

da negação “as coisas mudam porque encerram uma contradição interna (elas próprias e suas

contrárias); as contrárias estão em conflito e as mudanças nascem desses conflitos; assim a

mudança é a ‘solução’ do conflito”. Marx, em relação à negação da negação afirma que no

regime capitalista “a propriedade privada capitalista é a primeira negação da propriedade

privada individual, baseada no trabalho do próprio produtor. A negação da produção capitalista

surge dela própria, pela necessidade imperiosa de um processo natural. É a negação da

negação”. Ao encarar tal fenômeno como um caso de negação da negação, Marx não tem em

mente demonstrá-lo como um fenômeno de necessidade histórica, “pelo contrário; somente

depois de haver provocado historicamente o fenômeno (...) que terá necessariamente que se

desenvolver daqui por diante, é que o define como um fenômeno sujeito em sua realização, a

uma determinada lei dialética” (Engels, 1976)245.

Conforme Politzer (1986)246, para se compreender as leis das contradições

torna-se necessário entender o princípio da mudança dialética e da ação recíproca. O primeiro

refere-se à força que move a matéria, o que se denomina de movimento dialético. O segundo

princípio caracteriza-se pelo encadeamento dos processos, o que permite compreender o

desenvolvimento histórico movido pelo autodinamismo, o que oferece uma perspectiva de

evolução continuada. Tais princípios rechaçam os argumentos da metafísica, fundamentados

no caráter da “identidade”, marcado pelo imobilismo, e pela “oposição às contrárias”,

afirmando que duas coisas contrárias não podem existir ao mesmo tempo.

243 Hack, J.T. Interpretation of Erosional Topography in Humid-Temperate Regions. Amer. Journ. Sci. New Haven, 258-A, 1960, p. 80-97. 244 Politzer, op. Cit, p. 160. 245 Engels, AD, p. 115. 246 Politzer, op. Cit,

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Reafirma-se aqui a dimensão da importância das referidas leis, sistematizadas

por Engels (1976)247 da seguinte forma: “a dialética é apenas a ciência das leis gerais do

movimento e do desenvolvimento da natureza, da sociedade humana e do pensamento”. Fica

demonstrada, portanto, a imprescindibilidade que apresentam como pressupostos teórico-

metodológicos para a compreensão dos fenômenos geográficos.

Partindo dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo dialético, Joly

(1968)248 apresenta os grandes avanços da Geografia Física em relação aos princípios

mecanicistas: a) dos processos circulares aos espirais, o que rompe a concepção de eventos

repetitivos, não-diferenciados, oferecendo a necessária perspectiva histórica da mudança,

contidas nas leis da dialética; b) dos movimentos lineares aos dinâmicos, estiolando a rigidez

causal e seus argumentos teleológicos (observa Joly que os argumentos teleológicos ainda

rondam os princípios da Geografia Física, ressaltando sua negatividade); c) a função como

pressuposto da estrutura, momento em que as relações processuais assumem importância

para a compreensão dos fenômenos da natureza; e d) a concepção do movimento no tempo e

espaço, que ao serem relativizados, rompem a rigidez das relações causa-efeito.

Neste momento torna-se imprescindível chamar atenção para a importância da

lei da macroestrutura desenvolvida por Marx e Engels, que Topolski (1973)249 incorpora nas

regularidades sincrônicas do método histórico. A discussão que se trava ao conceber as

categorias do modo de produção ou da formação econômico-social vinculada ao materialismo

histórico parece desnecessária, uma vez que o conceito de materialismo dialético fundamenta-

se no processo histórico. Branco (1989)250 ao criticar Stalin com relação ao tratamento

diferencial entre “materialismo histórico” e “materialismo dialético” observa que parece

indiscutível que “o materialismo é histórico por ser dialético e é dialético por ser histórico”. A lei

da macroestrutura refere-se ao sistema mais amplo, tendo os seguintes elementos: as forças

produtivas, as relações de produção e a superestrutura ideológica, já considerados

anteriormente. Enquanto as forças produtivas têm a materialização do processo produtivo

através do trabalho, as relações de produção (relações dos homens entre si) determinam as

formas das relações entre o homem e a natureza (forças produtivas) caracterizadas pela

cooperação ou divisão do trabalho, forma de propriedade, forma de distribuição e troca dos

produtos... A necessária coexistência das forças produtivas e as relações de produção se

refletem na categoria do modo de produção introduzida por Marx251.

Observa-se que a Geografia, enquanto paisagem (aparência) se preocupou por

um bom tempo exclusivamente com as relações homem e natureza, representadas pelas

247 Engels, AD, p. 172. 248 Joly, op. Cit. 249 Topolski, op. Cit. P. 250 Branco, DCN, p. 262. 251 Marx, SW p. 329 (Contribuição à Crítica da Economia Política).

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forças produtivas, desconsiderando que tais relações estivessem vinculadas ou determinadas

pelas relações de produção, e consequentemente amparadas pela superestrutura ideológica.

[veja esquema adiante].

A superestrutura é concebida como o próprio Estado, que apresenta papel

fundamental no sistema de produção, funcionando como regulador das relações sociais,

conservando a ordem social que por sua vez encontra-se definida pelos interesses das

classes dominantes. Representa, portanto, a ordem legal e política, bem como ideológica e

social, as quais formam a consciência social. Observa-se assim o significado ideológico

representado pela educação, pela mídia, pela religião e pela própria ciência, na formação da

consciência social. Tais componentes apresentam importante papel na manutenção de

interesses ou valores a serem apreciados, sejam eles de caráter econômico, legal, filosófico,

religioso, artístico... Nesse contexto é que se entende a função ideológica da ciência e do valor

que apresenta como maneira de pensar o mundo para transformá-lo.

Ciência IdeologiaInstituições aparte do

Estado

Estado (fator regulador)

SUPERESTRUTURA

RELAÇÕES DE PRODUÇÃO

Classe dos Proprietários dos Meios de Produção Classe Exporada

FORÇAS PRODUTIVAS

Homem

Natureza

Luta de ClassesM

odo

de P

rodu

ção

Form

ação

Eco

nôm

ico-

Soci

al

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É nesse sentido que se conclama para um novo pensar da Geografia, fundamentado

na dialética da natureza, pondo fim ao processo de externalização da natureza e do próprio

homem, proporcionando a formação de uma consciência social crítica, que supere o jugo da

dominação, o peso da alienação. Portanto, a Geografia, entendida em sua essência, ou a

natureza entendida em sua integridade, carece de fundamentar o conceito de paisagem,

materializado nas forças produtivas, considerando o papel determinante das relações sociais

de produção e consequentemente da superestrutura, que além de legitimar o processo de

dominação, apropria-se dos instrumentos ideológicos para exercer a pacificação dos conflitos

sociais.

Em síntese pode-se afirmar que nenhum elemento da macroestrutura pode existir

independentemente, o que justifica o conceito de regularidades sincrônicas empregado por

Topolski.

A RELAÇÃO TEMPO E ESPAÇO

Necessário se faz ainda considerar a questão do tempo e espaço252. Conforme

demonstrou Reeves (1986)253, “o tempo e o espaço são quadros inertes e independentes, que

se preenchem em uma dada ordem. Seu único vínculo com os conteúdos (as coisas, os

acontecimentos) é (...) o fato de os conterem”. Portanto, “o espaço não está em nós, nós é que

estamos nele”, e (...) “o tempo é uma condição indispensável ao desenvolvimento da nossa

vida (...), por conseqüência, o tempo e o espaço são inseparáveis do que existe fora de nós,

isto é, da matéria” (Politzer, 1989)254. Engels (1976)255 observa ainda que “(...) as formas

fundamentais de todo o ser são o espaço e o tempo, e um ser fora do tempo é um absurdo tão

grande como um ser fora do espaço”.

Engels (1976)256, ao refutar a concepção de tempo e espaço utilizada por Dühring,

apropriada de Kant (a antinomia de Kant sustenta que o mundo não tem começo no tempo

nem limite no espaço: eternidade no tempo e infinidade no espaço), apresenta a tese de que

“o mundo teve um começo no tempo”, sustentada pelo seguinte argumento: “admitamos, com

efeito, que o mundo não tem começo no tempo, uma eternidade se teria escoado até chegar a

um momento dado, fluindo portanto, no mundo, uma série infinita de estados de coisas

sucedidos uns aos outros”. Tal fato demonstra que a infinidade de uma série não pode ser

entendida sem que tenha um começo. Portanto, um começo para o mundo é uma condição

necessária para a compreensão da sua existência.

252 Não se refere aqui ao conceito de “espaço geográfico”. 253 Hubert Reeves. Um Pouco mais de Azul. São Paulo:Martins Fontes, 1986, p.149-150. 254 Politzer, op.Cit, p.66. 255 Engels, AD, p.84. 256 Engels, AD, p.42-43.

93

Na Geografia, a história da natureza começa com a origem da terra, sem

desconsiderar que esta integra o movimento de expansão que vem ocorrendo no universo há

cerca de quinze bilhões de anos. É nessa dimensão que aparece o homem como resultado do

processo evolutivo da natureza – da origem das células à grande árvore darwiniana.

Sabe-se que o mundo, no seu estado atual, é o resultado do processo histórico

evolutivo. “O universo é apenas matéria em movimento, e esta matéria em movimento só se

pode mover no espaço e no tempo” (Lênin, 1962)257.

A RELAÇÃO HOMEM E NATUREZA

A conversão da natureza em propriedade pelo homem, implicou reificação que consiste

nas relações e ações de coisas produzidas por ele, que se tornaram independentes dele, e

governam sua vida.

A tarefa consiste em “saber administrar essa sujeição”, que na concepção dialética da

natureza implica destruição do modo de produção capitalista, como única forma de defender o

desenvolvimento das forças produtivas. Para tal, torna-se imprescindível superar as

contradições manifestas no tempo entre as relações de produção e as forças produtivas.

“Encerra-se assim todo um vasto programa que aponta para a reconciliação da

humanidade com a natureza (expressão usada pelo jovem Engels) em consequência da

reconciliação do homem com o próprio homem” (Prestipino, 1977)�. Para Gurvitch (1977)�,

afirmar a possibilidade de reconciliação da humanidade consigo mesma e apresentar a via de

sua concretização histórica não é o mesmo que dizer ser essa a função da dialética. “Não me

parece difícil concluir que a visão dialética da natureza significa a destruição da dicotomia

natureza/cultura, e do mesmo passo a recusa de qualquer tipo de sociologismo, biologismo ou

antropologismo” (Branco, 1989)�.

Partindo do princípio de que toda produção marxista fundamenta-se na preocupação

em determinar as condições de liberdade real do homem, tem-se a Dialética da Natureza

como pano de fundo para o projeto da emancipação humana. “Se a humanidade do homem,

como diz Heidegger, ‘repousa em sua essência’, então, no quadro da dialética da natureza

entronca o projeto humanista de melhorar o conjunto das relações sociais” (Branco 1989).

A Necessária Interdisciplinaridade

Ao entender a dialeticidade entre o mundo natural e o mundo histórico-humano, a 257 Lênin, op.Cit, p. 145.. 258 Prestipino, op. Cit. P. 155. 259 Gurvitche, G. Dialectique e Sociologie. Paris: Flammarion, 1977, p. 201. 260 Branco, DCN, p. 124.

94

dialética da natureza, pela própria necessidade de conhecer a realidade objetiva em sua

integridade, aproxima os diferentes ramos do conhecimento humano, divididos arbitrariamente

pela metafísica e também utilizada pela doutrina positivista, proporcionando a verdadeira

interdisciplinaridade. É claro que a especialidade deve ser entendida como uma necessidade

de evolução do próprio conhecimento, mas sem perder a perspectiva de estar contextualizada,

o que com certeza promoverá uma maior responsabilidade da ciência com o novo pensar e

consequentemente com uma prática comprometida com os interesses da sociedade. A

dialética visa portanto, uma maior justiça social a partir da libertação do homem da alienação,

imposta como forma de dominação ou legitimação de “verdades” que interessam

exclusivamente aos detentores dos meios de produção. É nesta perspectiva que se reafirma a

importância de repensar o mundo como maneira de mudar o mundo, princípio primeiro da

dialética da natureza. Marx (1981) afirma que “... não devemos apenas explicar o mundo, mas

transformá-lo”.

Conforme Morin (1986)�, “a rarefação das comunicações entre ciências naturais e

ciências humanas, a disciplinaridade fechada (pouco ou nada corrigida pela insuficiente

interdisciplinaridade), o crescimento exponencial dos saberes separados, fazem com que cada

qual, especialistas ou não-especialistas, se torne cada vez mais ignorante do saber existente.

O mais grave é que tal estado parece evidente e natural”, o que foi denominado de “patologia

do saber” por Gusdorf (1960)262.

Com relação à Geografia, só a integração entre as disciplinas que compõem os

conteúdos físicos e humanos já responderia por um salto de qualidade que com certeza, além

de superar as expectativas, ofereceria um sentido crítico à formação da consciência social.

Com relação a esse aspecto, Casseti em 1993 � procurou demonstrar a importância de um

novo pensar da Geografia Física numa perspectiva dialética, e em 1996� apresentou as

perspectivas para uma Geomorfologia integrativa, ultrapassando a transdisciplinaridade da

visão holística, na busca da dialeticidade da natureza.. “[...]. A partir do momento em que a

Geografia Física abandonar gradativamente a roupagem positivista e buscar a compreensão

dialética da natureza, tende a se aproximar cada vez mais do objetivo de converter a

Geografia em uma única ciência”. Assim sendo, ao mesmo tempo em que materializa, através

da compreensão da produção da natureza, o conceito de espaço resolve o nó górdio do

dualismo histórico, resgatando a necessária postura política em detrimento da ‘neutralidade’,

corroborando assim para uma prática social transformadora. Portanto, parece estar mais afeto

261 Morin, Op. Cit. P. 16. 262 Gusdorf, G. Tratado de metafísica. S. Paulo: Cia.Ed.Nacional, 1960. 263 Casseti, Valter. A Geografia ainda “Física” e a Prática Social. Anais do V Simpósio de Geografia Física Aplicada. S. Paulo, USP, 1993, p. 9-12. 264 Casseti, Valter. Abordagem sobre os Estudos do Relevo e suas Perspectivas (Notas Preliminares). I Simpósio Nacional de Geomorfologia.Uberlândia. Sociedade & Natureza, 3(15):37-43, 1996.

95

à Geografia Física a possibilidade de uma articulação integral entre os componentes

antropossociais e os naturais, principalmente a partir do momento que as preocupações

ambientais desse final de século implicam retomada do conceito de natureza, o qual, em sua

essência, leva à necessária busca da compreensão dialética. Entende-se que o estágio

atual se diferencia fundamentalmente da concepção de ‘ecologia humana’ apropriada pela

Geografia no século XIX, ou do caráter positivista da Nova Geografia, levando-a a aceitar que

as regularidades que existem na natureza física se encontravam também na realidade social.

A Geografia, ainda que ‘física’ num primeiro momento, aos poucos vai encontrando seu

caminho, partindo do princípio de que as relações de produção e a respectiva superestrutura,

incorporando as forças produtivas, é que dão à natureza sua existência social. A partir da

compreensão dialética da natureza (natureza-sociedade), a natureza deixa de ser considerada

objeto universal dos meios de produção para assumir, reciprocamente, a condição de sujeito,

o que sem dúvida implicará maiores reflexões quanto á apropriação privada, responsável pelo

antagonismo de classes, e que até então tem respondido pela forma dilapidante da produção.

“O ‘viés’ ambientalista se constitui na estratégia indispensável à verdadeira revolução

epistemológica, necessária a uma prática social que resgate os erros do passado” (Casseti,

1993)�.

Sobre a abordagem da Geomorfologia o autor considera: “partindo do princípio de que

a base de sustentação teórica para a necessária abordagem ambiental fundamenta-se na

dialeticidade da natureza, fica claro que a Geomorfologia, ao mesmo tempo em que deve se

preocupar com a própria fundamentação teórica (a Geomorfologia em si) carece de uma

rediscussão epistemológica em busca de uma ‘Geografia Global’”266”. Conforme Branco

(1989), “torna imperativo pensar dialeticamente para apreender as novas paisagens da fisis

(objetos disciplinares unidos por um traço comum: a dialeticidade). Essa compreensão só se

torna possível ao resgatar o conceito de natureza. (...) Compreender a dialeticidade da

natureza significa compreender a unidade entre processo histórico natural e a história do

homem, o que permite concluir que o processo do pensamento é, ele próprio, elemento da

natureza: o movimento do pensamento não está isolado do movimento da matéria, o que se

contrapõe ao dualismo psico-físico descarteano – substância pensante e substância

meramente extensa – que fundamentou o princípio de que a natureza interna está dominada

em pról da dominação da natureza externa.” Assim sendo, preocupar-se com a perspectiva

ambiental da Geomorfologia implica preocupar-se com a compreensão dialética da natureza,

numa visão engelsiana, o que demonstra ser responsabilidade de todos, em busca da

‘unidade dialética’, que tem sido parcialmente entendida.

265 Casseti, op. Cit nota 169, p. 11. 266 Conceito apropriado de HAMELIN, L.E. Géomorphologie. Géographie Globale – Géographie Totale. Cahiers de Géographie de Québec, 8 (16):199-218, 1964.

96

A tendência ambiental da Geomorfologia267, conforme se tentou demonstrar ao buscar

a necessária visão holística, pode subsidiar-se metodologicamente dos recursos oferecidos

pela transdisciplinaridade, ao mesmo tempo em que se deve repensá-la epistemologicamente,

numa perspectiva dialética. “Assim, acredita-se não apenas no necessário avanço da

Geomorfologia em si, como também na sua participação para a compreensão da natureza em

sua integridade, caracterizando-a como uma Geomorfologia para nós” (Casseti, 1996)�.

Ao se promover o diálogo entre as ciências na perspectiva da dialética da natureza,

torna-se evidente e natural a aproximação cada vez maior das questões científicas às

questões filosóficas. Para Morin (1986)�, “a crise dos fundamentos do conhecimento científico

liga-se à crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, convergindo uma e outra na crise

ontológica do Real”, para nos confrontar com “o problema dos problemas [...] o da crise dos

fundamentos do pensamento” (Pierre Cornaire citado por Morin, 1986). Observa o autor que

sempre houve uma reflexão filosófica sobre a ciência “(...) há, no estado atual, insuficiência da

filosofia sozinha, insuficiência da ciência sozinha para conhecer o conhecimento”�.

Embora sem a pretensão de entender a dialética da natureza como fundamento da

epistemologia ou hermenêutica271, torna-se possível entendê-la como imprescindível à

necessária integração entre ciência e filosofia, partindo do princípio de que “falar de dialética

envolve pensar no movimento, na contradição e na sua integração numa totalidade” (Branco,

1989)�; portanto implica partir de pressupostos filosóficos para entender a materialidade do

conhecimento científico em sua essência.

Entende-se que a partir do momento em que a dialética da natureza passar a

induzir a nova maneira de pensar na Geografia, sem dúvida já se estará aproximando dos

conhecimentos científicos produzidos ao longo dos anos em suas diferentes especialidades,

tendo as concepções filosóficas representadas pela categoria espaço e consequentemente

natureza.

O Fim das Verdades Acabadas

Partindo do princípio de que o conhecimento é infinito, uma vez que o movimento da

267 Utiliza-se constantemente a Geomorfologia como exemplo, pela especialidade do autor. 268 Casseti, Op. Cit, p. 42-43. 269 Morin, op. Cit, p. 19. 270 Morin, op. Cit, p. 24. 271 Com relação à discussão entre epistemologia e hermenêutica, Rorty apresenta algumas considerações interessantes. Após estabelecer diferenças básicas entre as mesmas – “A hermenêutica encara as relações entre discursos variados como as relações entre partes integrantes de uma conversação possível, uma conversação que não pressupõe nenhuma matriz disciplinar que una os interlocutores, mas onde a esperança de concordância nunca é perdida enquanto dure a conversação (...). A epistemologia vê a esperança de concordância como um sinal da existência de um terreno comum que, talvez desconhecido para os interlocutores, os une numa racionalidade comum” (Rorty, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. RJaneiro:Relume-Dumará, 1995. 272 Branco, DCN p. 273.

97

matéria não é repetitivo em sua essência, conclui-se não existem verdades absolutas ou

definitivas. Este princípio parece ter norteado a concepção popperiana de ciência, sem

considerar aqui as ligações de Popper com as concepções positivistas, que busca através do

falseamento de hipóteses a obtenção de novos conhecimentos.. Mesmo se admitindo

sazonalidade na natureza ou comportamentos supostamente repetitivos na sociedade, sempre

se constatará alguma mudança (primeira lei da dialética), partindo do princípio de que, por ser

dialético, o movimento da matéria nunca representará estágio idêntico num determinado

percurso, respeitando-se as diferenças temporais que respondem pelo processo evolutivo da

natureza e da sociedade. Lembre-se aqui as palavras de Heráclito: “não podemos tomar

banho duas vezes no mesmo rio”. Tal fato demonstra que o consenso científico de certa

verdade no presente momento não significa a sua permanência enquanto tal ao longo da

existência.

Observa Engels (1976)�, que “desse modo, quem sair por esses domínios à caça de

verdades definitivas e em última instância, de autênticas verdades verdadeiramente imutáveis,

não conseguirá reunir grandes despojos, desde que não se contente com vulgaridades a

lugares comuns da pior espécie, como, por exemplo, o de que os homens não podem viver,

em geral, sem trabalhar, o de que os homens, até a nossa época, têm estado divididos, quase

sempre em dominantes e dominados (...)”. Politzer (1986)� chama atenção para “não

considerar nunca a verdade sem o erro, a ciência sem a ignorância”, o que nos faz lembrar

das discussões sobre o “o fim das certezas” em Prigogine275.

Em transcrição do programa “Noms de Dieux”276, Prigogine retoma o conceito

bergsoniano277 de tempo (a flecha do tempo) e faz esclarecimentos sobre as estruturas

dissipativas: “a vida é uma ‘flutuação’ da matéria e, no interior dessa flutuação, você tem

outras flutuações”, contestando as concepções deterministas e atemporais da física

newtoniana e do universo estático da física quântica.

Existem, portanto, verdades relativas mais ou menos duráveis, de acordo com a

velocidade das mudanças decorrentes do movimento da matéria, o que implica refutação de

verdades absolutas e definitivas, ao mesmo tempo em que implica infinitude tanto do

conhecimento quanto dos processos que integram a realidade objetiva. Nesse contexto

aproveita-se para considerar a perspectiva histórica proporcionada pela dialética, o que

justifica o caráter não finalisticamente utópico da presente proposta. Já que o antifinalismo por

ser histórico é dialético oferece uma perspectiva de mudança; ratifica-se a expectativa de

pensar o mundo de maneira diferente como forma de mudá-lo.

273 Engels, AD p. 75. 274 Politzer, op. Cit, p. 159. 275 Prigogine, I. O fim das certezas, Tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo:Editora UNESP, 1996. 276 Prigogine, Ilya. Do ser ao devir. Pará:Ed.UNESP-UEPA, 2002. 277 H. Bergson, "Durée et Simultaneité. À propos de la theéorie d'Einstein", Paris, 1922.

98

A Geografia, ao apresentar como objeto de estudo as relações entre a natureza e a

sociedade, trabalha com uma perspectiva temporal diferenciada, o que permite inclusive.

melhor entendimento das transformações produzidas ao longo da história da natureza. Este

fato, por si só, oferece a perspectiva de um melhor entendimento da dialética da natureza e da

infinitude processual. Com relação à perspectiva temporal, o simples entendimento da

evolução da terra, da evolução da potencialidade biológica e da exploração biológica

(conceitos de Bertrand, 1978)�, do surgimento do homem como resultado desse processo

histórico, demonstra a estreita relação entre o mundo natural e o histórico-humano que

fundamenta a concepção da dialética na natureza. Com relação à realidade objetiva, conclui-

se que o estágio atual de desenvolvimento da natureza (no conceito dialético) resulta de uma

série de transformações fundamentadas em processos complexos e internamente

contraditórios, onde a evolução parcial de seus componentes não se realiza sem acarretar a

evolução de todas as outras partes integrantes. Como exemplo, os dobramentos modernos

resultaram de intenso processo de sedimentação em depressões oceânicas, soerguidas por

colisão de placas. Da mesma forma, o intenso processo de colmatação em espaços

oceânicos, resultante em grande parte de atividades erosivas dos dobramentos modernos,

deverão, num futuro geológico, representar novos dobramentos, com certeza, diferentes dos

anteriores. Assim, ao mesmo tempo em que se contrapõe ao finalismo mecanicista, se

demonstra a infinitude oferecida pela perspectiva histórica, o que destrói o “mito da utopia”.

Lembrando Branco (1989)�, “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos

saltando da ‘fé’ em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos

perfeito para o reino da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a

viver nesse imenso heteróclito abandonado por Deus”.

A Prática Social da Geografia

Como se observou em outro momento, a Geografia nasce dualizada, sob a

ideologização do conceito de uma natureza externalizada de interesse capitalista,

reproduzindo a alienação ao legitimar a apropriação privada dos meios de produção. Portanto,

a Geografia sempre colaborou com esse sistema de produção, exercendo importância

fundamental na formação da consciência social, ligada diretamente à superestrutura como

instrumento de ideologização. Harvey (1988)280 ao falar da Geografia “burguesa” enquanto

campo formal de conhecimento, cita Alexandre von Humboldt (1769-1859) e Carl Ritter (1779-

1859) que, trabalhando na tradição da filosofia natural, “empenham-se em construir uma

278 Bertrand, Georges. La Géographie Physique Contre Nature?. Herodote 26. Paris: François Maspero, 1978. 279 Branco, DCN p. 287. 280 Harvey, David, Geografia. R. de Janeiro:Jorge Zahar, 1988, p. 162 (Dicionário do Pensamento Marxista)

99

descrição sintética da superfície do globo como repositório de valores de uso exploráveis

(tanto naturais como humanos) e como o ‘locus” de formas diferenciadas de reprodução

econômica e social”. Mostra ainda o engajamento da prática do pensamento geográfico em

fins do Século XIX no processo de exploração de oportunidades comerciais na perspectiva da

acumulação primitiva do capital e de mobilização de reservas de forças de trabalho. Na divisão

do mundo em potências imperialistas, a perspectiva geopolítica, tendo F. Ratzel (1844-1904) e

H. Mackinder (1861-1947) como precursores, procurou evidenciar a necessária luta pelo

controle do espaço, o acesso às matérias primas, ao abastecimento de mão-de-obra e à

conquista de mercados, em termos diretos de controle geográfico”.

A Geografia não deixou também de prestar importante colaboração ao sistema como

força produtiva, ao integrar a “administração racional” (racional quase sempre do ponto de

vista da acumulação), participando do planejamento territorial, ao apropriar-se de modelos

externos e recursos informacionais, que lhe deu, supostamente, o status sonhado, oferecido

pela lógica formal. Se a postura crítica dos anos 70 do século passado “nublou” as

expectativas de um engajamento à lógica do mercado, por outro, as perspectivas do

produtivismo liberal, decorrentes do desencantamento do “socialismo real”, levaram os

geógrafos para o campo das questões ambientais, hoje mais uma vez assumindo funções

análogas à da “administração racional” da década de 60, emblematizadas nos zoneamentos

ecológico-econômicos e outros instrumentos relacionados à concessão de licenças

ambientais.

Portanto, há uma tendência cada vez maior na ciência, que também se manifesta na

Geografia, de deslocar a prática científica, que antes se fundamentava na formação da

consciência social, vinculada à superestrutura, para uma inserção maior no rol das forças

produtivas, através da geração de conhecimentos, sobretudo tecnológicos, como forma de

desenvolvimento dos meios de produção. Assim, contribui-se para a subjugação da força de

trabalho aos interesses do capital: ao mesmo tempo em que estimula o desenvolvimento de

novas tecnologias, não deixa de exercer a influência ideológica necessária para a pacificação

dos conflitos de classes, não apenas como forma de elaboração do pensamento, mas

materializada pelos novos argumentos incorporados às forças produtivas.

Para Habermas (1968)281, a cientificação da técnica se dá a partir do último quartel

do Século XIX, com a intervenção gradativa do Estado na economia, como forma de

estabilização do sistema. Desta feita, a crescente interdependência da investigação científica

transforma as ciências na “primeira força produtiva”. Ao mesmo tempo em que enfraquece a

teoria do valor-trabalho, uma vez que a força de trabalho vai perdendo sua importância, a

cientificação da técnica reproduz a “ideologia da compensação”, promovendo a pacificação

dos conflitos de classes, decorrente da revalorização privada do capital. 281 Habermans, op.cit.

100

Conforme Prestipino (1977)282, até que não se solucione o desequilíbrio promovido

pelas relações de produção em relação às forças produtivas, as ciências humanas,

reguladoras das relações com a natureza, será uma fonte de miséria para o homem, em

particular para o trabalhador. Para Engels, “nas atuais relações, também a ciência está dirigida

contra o trabalho”. Marx preocupa-se mais com a ciência enquanto força produtiva e como

meio de controle da força de trabalho: “as ciências naturais penetram de forma prática na vida

humana por meio da indústria e, com isso, transformaram a vida humana (...)”283..

Observa-se com clareza o status das ciências na prestação de relevantes serviços às

forças produtivas através do desenvolvimento tecnológico. Hoje, com a ideologização da

sustentabilidade, tendo como perspectiva a substituição da base material inorgânica, valoriza-

se a Biologia (Biotecnologia) com o intuito de reinventar a relação técnica do trabalho. Com

isso, a ciência de base físico-mecanicista, que ofereceu a sustentação tecnológica (base

inorgânica não-renovável) ao desenvolvimento do sistema, se sente cada vez mais ameaçada,

uma vez que não tem muito mais o que oferecer na mudança do paradigma técnico-científico

fundamentado na diversidade biológica (base material orgânica-renovável).

Sem desconsiderar a participação da ciência como suporte ao desenvolvimento das

forças produtivas, torna-se necessário evidenciar o compromisso que deve assumir na

formação da consciência social. E é com tal expectativa que se insiste na mudança do pensar,

sob as novas bases filosóficas da dialética na natureza, como alternativa de mudança das

próprias relações sociais de produção, e consequentemente, da superestrutura ideológica.

Sabe-se das dificuldades de se conciliar essa prática com os interesses do sistema, o

que implica consequências em relação ao mercado de trabalho. Contudo, torna-se

imprescindível manter o espírito crítico voltado às possibilidades de transformações, partindo

do pressuposto de que as mudanças qualitativas implicam luta de forças opostas (luta das

contrárias), resultantes por transformações quantitativas ao longo do processo histórico.

O ‘Entrecrise’ e a Razão Dialética284

“Vivemos no interior de um universo paradoxal, espaço de saberes múltiplos, de

verdades relativas, de indeterminações, nebulosidades, ambivalências e contradições

multimodais (...). O desafio parece ser imenso. É deste convívio com o mundo real, que até

aqui sempre nos tenha parecido impossível – irreal, fabuloso, fictício – que nasce o homem

moderno, que é, por excelência, o ente em crise. O ‘homem novo’ tão apregoado ao longo de

várias gerações, é afinal um ser mergulhado em profundo estado de crise; não por acidente,

282 Prestipino, op.cit, p. 156. 283 Manuscritos econômicos e filosóficos, Terceiro manuscrito. 284 Branco, DCN, in Conclusão, p. 283-287.

101

mas por essência” (Branco, 1989)285. É o ‘entrecrise’ em duplo sentido; negativo e positivo. O

‘entrecrise’ negativo, decorrente do desmonte irracional, associado ao desequilíbrio psíquico e

o ‘entrecrise’ positivo que assume a própria existência da crise através do recurso de um

pensar diferente.

“Para que possamos aceitar o pensar em nosso existir moderno como crise, torna-se

indispensável alterar o estilo arquitetônico do nosso intelecto” (Branco, 1989286, o que leva a

“uma razão dialética capaz de praticar o paradoxo, de pensar o complexo, de se equilibrar no

oceano agitado da nova ordem, de se habituar à presença constante do contraditório” (Branco,

1989)�: requer aprendizagem. Da mesma forma que o salto qualitativo do Homo credulus

para o Homo sapiens requereu aprendizagem, a passagem do Homo sapiens ao Homo

dialecticus implica dificuldade suplementar: o da dogmatização da dialética.

Repetindo, “libertamo-nos da crença do saber definitivo. Progredimos saltando da ‘fé’

em uma inexistente Verdade absoluta das coisas e da visão do cosmos perfeito para o reino

da verdade relativa e do universo quente. É necessário agora aprender a viver nesse universo

heteróclito abandonado por Deus”(Branco, 1989)288.

Ao compreender a relação dialética entre a natureza e a sociedade, não existirão mais

motivos para o antagonismo de classes e nem mesmo para uma apropriação espontaneísta e

dilapidante da natureza, nos moldes observados no sistema de produção capitalista. Para isso

torna-se imprescindível a desalienação do homem ou a conversão do homem abstrato no

homem real, que para Marx significa a compreensão das relações histórico-dialéticas,

representadas pelas forças produtivas, relações sociais de produção e pela superestrutura

ideológica.

Num primeiro momento, o homem tem necessidade de se conscientizar de que é

natureza, o que romperá a concepção da natureza como objeto universal do trabalho. A partir

de então, a natureza (com a incorporação do homem) entendida como sujeito e objeto ao

mesmo tempo, permitirá a compreensão da existência da dialética. Só assim será possível pôr

fim à histórica dicotomia que se constitui em argumento ideológico para a manutenção dos

antagonismos de classes (burguesia e proletariado), de crenças (greco-romana e hebraico-

cristã) e de raças (apartheid e as diferentes formas de discriminações), além de desmistificar a

questão ambiental tida como intrínseca ao desenvolvimento (progresso).

Quando o homem se sentir parte da natureza, não existirão mais motivos para se

subjugar aos interesses de uma minoria privilegiada, detentora dos meios de produção.

Entenderá a natureza como sua casa, não apenas substrato da sua existência corporal, mas

recurso indispensável para as suas necessidades inatas e sociais. Não se submeterá aos 285 Branco, DCN, p. 285-286. 286 Branco, DCF, p. 286. 287 Branco, DCF, p. 286. 288 Branco, DCF, p. 287.

102

desejos insaciáveis das relações de produção, permitindo a reprodução ampliada do capital.

Não permitirá a privatização dos meios de produção e nem se submeterá às condições

humilhantes como a produzida pela alienação do próprio ser.

Diante disso, torna-se evidente, que a relação com a natureza se dará de forma

harmônica, racional; que a produção de excedente como sustentação do acúmulo de capital

não mais se justificará, e, por conseguinte, a dilapidação da natureza para obtenção dos

recursos será desnecessária, dada a extinção do mercado concorrencial.

Quando o trabalhador entender que é um ser natural e que, portanto, a natureza lhe

pertence, tornar-se-á evidente a superação da forma de propriedade vigente, com a

consequente extinção do antagonismo de classes. Para isso, se faz necessário, num primeiro

momento, que o trabalhador assuma a consciência de classe, o que é possível a partir de sua

própria desalienação.

É natural que o atual estágio cultural depende de mudanças substanciais dos

instrumentos responsáveis pela formação da consciência social (religião, ensino formal,

mídia...), e de um momento para que a ciência assuma a importância de seu verdadeiro papel,

procurando através de uma postura crítica, resgatar o erro histórico que legitimou os

interesses do sistema de produção. Assim, a ciência precisa abandonar a roupagem da

“neutralidade” científica, que sempre se constituiu em argumento de isenção, o que corroborou

para a manutenção do sistema. Como se sabe, só existem dois caminhos na lógica,

parafraseando Álvaro Vieira Pinto in Ciência e Existência, 1985289, assim como só existem

duas classes sociais distintas e antagônicas. Mantendo esse estado de coisas, manter-se-ão

todas as formas de dualismo que implicam diferença de classes. .

Com o abandono da propalada neutralidade, a ciência deve assumir uma posição de

classe, fundado na lógica dialética, procurando evidenciar a relação homem-natureza num

processo histórico, onde os diferentes modos de produção respondam pelas formas

diferenciadas de apropriação da natureza. Posto isso, as relações processuais serão

analisadas em sua integridade, onde o homem passa a integrar a natureza de forma “natural”,

justificando as razões de totalidade da lógica dialética e da importância do processo de

desalienação para a verdadeira libertação. Libertação não apenas do jugo da alienação, que

determina a condição de homem abstrato, mas a de levá-lo ao reconhecimento de ser natural-

social e como tal, partícipe de todo processo de materialização da realidade objetiva.

Só assim a ciência proporcionará o avanço necessário para assumir um caráter social

irrestrito. Essa é a expectativa que precisa ter estimulada na Geografia, há mais de duas

décadas em processo de ruptura epistemológica. Mesmo longa, tal ruptura torna-se

imprescindível à transformação desejada.

289 Pinto, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. R. Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 61ss.

103

Por uma Prática Social Desalienada

Ao concluir entende-se que alguns pontos devam ser ratificados como

argumento de sustentação científica vinculada a uma prática social fundamentada na

necessária desalienação:

1. Compreender as razões da ideologização do conceito de “Natureza Externalizada”

como forma de superação da apropriação privada dos meios de produção (tendo a natureza

como substrato). Só assim será possível resgatar o conceito de uma natureza unificada,

dialética, tendo o homem como resultado do processo de desenvolvimento histórico;

2. Compreender o significado da ideologia como forma de subjugação de povos e nações,

quando se torna evidente o papel da superestrutura no processo de alienação. O Estado,

através dos seus instrumentos ideológicos (relações jurídico-políticas, científico-culturais...)

pereniza a alienação como forma de legitimação da apropriação privada dos meios de

produção e suas resultantes (inclui-se aqui a ideologização cultural e racial como forma de

colonização e dominação, determinada pelos interesses hegemônicos do capital);

3. Compreender as razões que justificam a apropriação espontaneísta da natureza. A

privatização da natureza e a sua ideologização como forma de legitimação da propriedade

justificam a degradação ambiental em nome do desenvolvimento econômico-social (suposto

progresso de toda humanidade);

4. Compreender as razões que justificam a subjugação da força de trabalho aos

interesses das relações de produção. Enquanto no passado a força de trabalho assumia

relevância no processo produtivo, embora não deixando de se constituir em mais-valia, hoje,

com o desenvolvimento científico-tecnológico, tem-se uma nova revolução nas forças

produtivas que aliena o trabalhador em nome da obsolescência da luta de classes (a

tecnologia como forma de opressão);

5. Compreender as relações entre a superestrutura ideológica e as relações sociais de

produção como forma de dominação. Essa relação dialética mantém o jogo de interesses, o

que pode ser comprovado na atualidade, “quando as forças mais ativas e poderosas no

processo de globalização são os conglomerados e empresas transnacionais” (Rattner,

1995)290, sustentadas por um, modelo de desenvolvimento instituído pelo Estado neoliberal. O

poder ideológico da superestrutura e o apoio jurídico-político garantem a implementação do 290 Rattner, op. Cit.

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modelo de desenvolvimento de interesse dos grupos hegemônicos de produção, ao mesmo

tempo em que garante sua própria sobrevivência enquanto instituição;

6. Compreender que “o mundo de hoje não é mais que um momento ao longo do

desenvolvimento histórico” (Sartre, 1980)291, refuta o argumento teleológico produtivista liberal

de um destino comum da humanidade. Torna-se imprescindível compreender o mundo na sua

dialeticidade, o que sugere um futuro histórico marcado pelos eventos e forças políticas

(necessidade de superação do finalismo mecanicista, aqui utilizado ideologicamente como

forma de pacificação de conflitos e reprodução da histórica alienação como forma de

subjugação de povos e nações). Como afirma Engels (LF), “o mundo não deve ser

considerado um complexo de coisas acabadas”. Reforça-se tal argumento com o fim das

verdades acabadas ou o fim das certezas (finalismo mecanicista), que destrói o mito da utopia.

7. Compreender a necessidade de se “proferir brutalmente a verdade chocante” (Adorno

e Horkheimer, 1986)292. Partindo do princípio de que as forças do poder jamais patrocinarão

qualquer crítica ao sistema, torna-se necessário esclarecer, desalienar, desmitologizar,

desencantar, desnudar, descortinar, desanalfabetizar (Ghiraldelli, 1994)293, enfim, difundir a

essência das relações que compõem as categorias do desenvolvimento social, partindo da

compreensão da existência do próprio homem enquanto ser natural.

Enfim, torna-se necessário mudar a maneira de pensar o mundo, de forma a ajustá-la

às novas faixas do real, como afirma H. Reeves em Um Pouco mais de Azul..

Essa perspectiva necessariamente remete a um futuro diferente do atual, e aqui cabe

lembrar a arte poética preocupada com o mesmo tema no trecho da música Sonho

(Im)possível294, na versão de Chico Buarque::

“(...) e assim, seja lá como for,

vai ter fim a infinita aflição,

e o mundo vai ver uma flor,

brotar desse impossível chão”.

291 Sartre, entrevista citada. 292 Adorno & Horkheimer, op. Cit. 293 Ghiraldelli, op. Cit. 294 Música de J. Dorion e M. Leigh.