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Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs
República de Angola
Resumo dos factos:
1. A Queixa é apresentada pela Frente para a Libertação do Estado de Cabinda -
FLEC (a Queixosa) em nome do povo de Cabinda (Vítimas) contra a República de
Angola1 (o Estado Requerido ou Angola).
2. A Queixosa sustenta que Cabinda, outrora conhecida por Congo Português, é
constituída por um território de aproximadamente 2 800 milhas quadradas. E
mais sustenta a Queixosa que em 1885, entidades independentes da cidade de
Cabinda e arredores celebraram um tratado, o Tratado de Simulambuco, com o
Governo do Reino de Portugal, criando um Protectorado em grande parte da
actual Cabinda.
3. Em 1975, alega a Queixosa, a Conferência de Alvor, realizada em Portugal, entre a
potência colonial e a UNITA, o MPLA, e a FNLA (todos eles movimentos de
libertação) declararam a anexação de Cabinda por parte de Angola sem qualquer
participação cabindense. Na sequência deste evento, Angola passou a exercer
soberania sobre o território de Cabinda não obstante dos protestos dos
cabindenses, agindo por intermédio de grupos dedicados à ideia de uma
identidade distinta para o povo de Cabinda.
4. A Queixosa alega que desde 2002, na sequência de tentativas levadas a cabo por
grupos em Cabinda em reivindicar autonomia para o povo cabindense, o Estado
Requerido moveu uma campanha militar maciça contra esse território. Quando
esta acção falhou, o Estado deu início a negociações ad hoc com facções
cabindenses numa tentativa de confundir as coisas. Alega a Queixosa que essas
negociações excluíram o presidente da FLEC, Sr. Nzita Tiago – “a única e
universalmente reconhecida autoridade cabindense” – tendo resultado num
1 Angola ratificou a Carta Africana em 2 Março de 1990.
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Acordo de Paz em 2006. Este acordo foi contestado por Cabinda e pela oposição
democrática em Angola, a UNITA.
5. E mais alega a Queixosa que na sequência da rejeição do Acordo de Paz de 2006
pela maioria dos cabindenses, em Cabinda houve facções que continuaram a
exigir autonomia local no que se refere à riqueza do território. A Queixosa
declara que em resposta a essas exigências, o Estado Requerido mantém uma
grande força militar em Cabinda, força essa que perpetrou numerosos casos
documentados de violações de direitos humanos no território cabindense.2
6. A Queixosa afirma que em 2006, as Forças Armadas Angolanas (FAA) cometeram
dúzias violações de direitos humanos e humanitárias, tais como: o
bombardeamento de habitações civis na região de Mayombe (Piading); a
execução sumária de patriotas cabindenses em Buco Zao; e espancamento e
tortura de membros da organização Mpalabanda em Caio Poba.
7. Declara ainda a Queixosa que em Julho de 2006, Angola baniu a única
organização independente de direitos humanos em Cabinda, a Mpalabanda
(Associação Cívica de Cabinda) mediante a instrumentalização de uma ordem do
tribunal, alegadamente por incitação à violência e ódio, e por levar a cabo
actividades políticas em vez de actuar como organização da sociedade civil.
8. Para além do mais, assevera a Queixosa, o Governo do Estado Requerido exerce
exploração económica dos recursos cabindenses uma vez que o povo de Cabinda
não está autorizado a ter qualquer palavra na outorga de licenças e concessões
respeitantes aos recursos do território. A Queixosa afirma que,
comparativamente, o povo de Cabinda, sofre de altas taxas de desemprego, falta
de oportunidades na área do ensino, doenças e pobreza aguda desde o momento
em que o Governo do Estado Requerido assumiu controlo dos recursos naturais
2 As alegadas violações incluem execuções extrajudiciais/sumárias, prisões e detenções arbitrárias, violência sexual, denegação da liberdade de movimento de civis, tortura e outros maus tratos.
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de Cabinda, tais como o petróleo ao largo da costa e recursos minerais e
petrolíferos em terra.
9. E mais alega a Queixosa que o Governo do Estado Requerido domina o povo
cabindense economicamente, negando-lhe o estatuto de povo e extraindo mais
de noventa por cento (90%) do património económico, devolvendo menos de 10
por cento (10%) a Cabinda. Por via desta acção, alega a Queixosa, o Estado
Requerido perpetra o neocolonialismo.
10. A Queixosa também defende que embora os cabindenses sejam cultural e
linguisticamente separados de Angola e identifiquem-se maioritariamente como
‘cabindenses’, e não angolanos, Angola negou ao povo de Cabinda o direito à
autodeterminação.
11. A Queixosa sustenta que apesar de mais de 30 anos de conflito em torno do
estatuto de Cabinda, o Estado Requerido recusa-se a realizar um referendo sobre
a questão cabindense. A Queixosa alega que o Estado Requerido não permite que
Cabinda determine o seu próprio desenvolvimento económico e social. A
Queixosa declara que todas as decisões são tomadas em Luanda, a capital do
Estado Requerido, e não em Cabinda, embora Cabinda mantenha um governo no
exílio desde 1963, e possua uma força de autodefesa activa e uma administração
civil desde 1975.
Artigos que se alega terem sido violados:
12. A Queixosa alega que em relação ao povo de Cabinda, o Estado Requerido violou
os Artigos 14, 19, 20, 21, 22 e 24 da Carta Africana.
Pedidos da Queixosa
13. A Queixosa solicita à Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos
(Comissão Africana ou Comissão):
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i. A nomeação de um Relator Especial para que se realize uma missão de
apuramento de factos e faça recomendações sobre as questões por ela
levantadas.
ii. Disponibilize os seus bons ofícios para futuras discussões sobre as
questões levantadas.
iii. O pagamento pelo Estado Requerido das custas legais da Queixosa no
montante de USD50 000.
Procedimento:
14. O Secretariado da Comissão Africana (o Secretariado) recebeu a presente
Participação-queixa em 29 de Setembro de 2006. O Secretariado acusou a
recepção da Participação-queixa por carta datada de 2 de Outubro de 2006,
informando a Queixosa de que a Queixa seria agendada para a 40ª Sessão
Ordinária que teve lugar em Banjul, Gâmbia, em Novembro de 2006. Nessa
Sessão, a Comissão iria analisar se poderia lidar processualmente com a
Participação-queixa.
15. Na 40ª Sessão Ordinária, que teve lugar em Banjul, Gâmbia, de 15 a 29 de
Novembro de 2006, a Comissão Africana decidiu que passaria a lidar com a
Participação-queixa.
16. Em 8 de Janeiro de 2007, a Comissão Africana recebeu um comunicado à
imprensa emitido pela FLEC sobre a luta em curso para controlo do petróleo em
Cabinda, alegando violações contínuas da Carta Africana pelo governo angolano e
outros actores em relação aos quais o Estado é responsável.
17. Por carta datada de 8 de Fevereiro de 2007 e Nota Verbal datada de 28 de
Fevereiro de 2007, o Secretariado informou as Partes da decisão da Comissão em
passar a lidar com a Participação-queixa, solicitando-as a articular factos quanto
à Admissibilidade da Participação-queixa dentro de dois meses. Ao Estado
Requerido foi enviada uma cópia da Participação-queixa.
18. Em 25 de Abril de 2007, o Secretariado enviou notas a fazer recordar as Partes
para que enviassem os respectivos argumentos relacionados com a
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Admissibilidade da Queixa até ao dia 10 de Maio de 2007, a tempo para a 41ª
Sessão da Comissão Africana. Na sua 41ª Sessão Ordinária realizada em Acra,
Gana, em Maio de 2007, a Comissão analisou a Participação-queixa, tendo adiado
uma decisão sobre a mesma enquanto se aguardava pela recepção dos
Argumentos das partes quanto a Admissibilidade. Nesta conformidade, as partes
foram notificadas em 20 de Junho de 2007.
19. Em 15 de Agosto de 2007, o Secretariado recebeu uma peça processual da
Queixosa, contendo os seus argumentos quanto a Admissibilidade e uma
declaração actualizada dos factos. Ambos formam enviados ao Estado Requerido
por meio de Nota Verbal com a data de 20 de Agosto de 2007. Na Nota Verbal
solicitava-se ao Estado Requerido que respondesse aos argumentos da Queixosa
relativos à Admissibilidade da Participação-queixa.
20. Durante a sua 42ª Sessão Ordinária de Novembro de 2007, a Comissão Africana
examinou a Participação-queixa, tendo decidido conceder ao Estado Requerido
uma última oportunidade para articular factos sobre a Admissibilidade da
Participação-queixa. As partes foram, por conseguinte, notificadas em 19 de
Dezembro de 2007.
21. Durante as 43ª e 44ª Sessões Ordinárias, a Comissão Africana adiou a análise da
Participação-queixa enquanto se aguardava pelos argumentos do Estado
Requerido quanto a Admissibilidade, tendo as partes sido disso informadas.
22. Em 27 de Abril de 2009 o Secretariado enviou uma nota ao Estado Requerido,
fazendo-o recordar de que devia articular factos quanto à Admissibilidade da
Participação-queixa.
23. Em 21 de Julho de 2009, a Comissão Africana recebeu da Queixosa informações
adicionais sobre a Participação-queixa.
24. Durante as 45ª e 46ª Sessões Ordinárias, a Comissão Africana analisou a
Participação-queixa, tendo adiado uma decisão quanto a Admissibilidade
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enquanto se aguardava pelos argumentos do Estado Requerido sobre o
provimento da Queixa.
25. Em 12 de Janeiro de 2010, o Secretariado recebeu uma carta da Queixosa a instar
a Comissão Africana a tomar acções imediatas e a nomear um Relator Especial
para Cabinda.
26. Durante as suas 47ª, 48ª, 49ª e 50ª Sessões Ordinárias, a Comissão Africana
adiou a análise da Participação-queixa, tendo disso as partes sido informadas. Na
sua 10ª Sessão Extraordinária realizada em Dezembro de 2011, a Comissão
analisou a Participação-queixa, declarando-a Admissível. As partes foram disso
informadas, tendo sido convidadas a articular factos quando ao Mérito da
Participação-queixa.
27. Entre Janeiro e Março de 2012, o Secretariado recebeu argumentos de três
organizações diferentes, representando grupos em Cabinda [depoimento
conjunto da Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC) e da União
Nacional de Libertação de Cabinda (UNLC), e argumentos individuais da “FLEC
Original” e do Movimento para a Autodeterminação do Povo Cabindense e sua
Soberania, “MRPCS]. Em 29 de Março de 2012, o Secretariado recebeu
argumentos quanto ao Mérito da Queixa provenientes do Dr. Jonathan Levy na
sua qualidade de representante legal da Queixosa.3 Os Argumentos da Queixosa
quanto ao Mérito foram, por conseguinte, enviados ao Estado Requerido.
28. Em 24 de Abril de 2012, o Secretariado recebeu uma Nota Verbal do Estado
Requerido a acompanhar os factos por si articulados quanto ao Mérito da
Participação-queixa, os quais foram transmitidos à Queixosa por intermédio do
seu representante legal.
3 Por correio electrónico datado de 17 de Fevereiro de 2012, o Dr. Levy aconselhou o Secretariado a examinar os argumentos dos grupos cabindenses como peças processuais amicus curiae.
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29. Em 12 de Julho de 2012, a Queixosa, agindo por intermédio do seu
representante legal, enviou argumentos adicionais sobre o Mérito da
Participação-queixa. Em 10, 12 e 28 de Setembro de 2012, o Secretariado
recebeu cópias idênticas de uma versão actualizada e revista dos argumentos do
Estado Requerido.
30. Em 18 de Junho de 2013, o Secretariado recebeu argumentos adicionais do
“Colectivo das organizações cabindenses” também conhecido por “FLEC Original”.
Aos argumentos seguiu-se uma carta a protestar contra a notificação de que os
argumentos haviam sido apresentados fora do prazo, solicitando-se a reabertura
do processo para apresentação de documentação adicional por ambas as partes.
31. Na sua 54ª Sessão Ordinária realizada em Banjul, Gâmbia, em Outubro de 2013, a
Comissão examinou o Mérito da Participação-queixa na base de todos os
documentos que haviam sido apresentados pelas partes, e das várias peças
processuais amicus curiae.
A Lei
Admissibilidade
Argumentos da Queixosa quanto a Admissibilidade
32. Embora a Queixosa tenha apresentado argumentos por escrito sobre a
Admissibilidade da Participação-queixa, o Estado Requerido não articulou
quaisquer factos a respeito do provimento da Participação-queixa, não obstante
um convite formulado nesse sentido e repetidas notas a lembrar de que deveria
fazê-lo. Por conseguinte, a Comissão aborda a questão do provimento da Queixa
na base dos argumentos da Queixosa quanto a Admissibilidade.
33. A Queixosa sustenta que a Participação-queixa cumpre com todos os requisitos
de Admissibilidade enunciados no Artigo 56 da Carta Africana. No que se refere
ao № 1 do Artigo 56 da Carta Africana, a Queixosa assevera que a Participação-
queixa é apresentada pela FLEC em nome do povo de Cabinda.
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34. Relativamente ao № 2 do Artigo 56 da Carta, a Queixosa sustenta que o Estado
Requerido violou os Artigos 14, 19, 20, 21, 22 e 24 da Carta Africana. E mais
sustenta a Queixosa que embora a Participação-queixa alegue graves violações
dos direitos económicos e do povo de Cabinda pelo Governo de Angola, a
Queixosa não pede à Comissão Africana que aborde qualquer questão que venha
a interferir com a soberania de Angola ou com decisões referentes a
reivindicações territoriais angolanas em Cabinda. A Queixosa declara estar
consciente de que a Comissão Africana deve respeitar a alínea b) do Artigo 3 e a
alínea b) do Artigo 4 da Lei Constitutiva da UA relativos à soberania territorial e
respeito pelas fronteiras existentes.
35. No que se refere ao № 3 do Artigo 56 da Carta Africana, a Queixosa assevera que
a linguagem utilizada na Participação-queixa é linguagem jurídica neutra.
Relativamente ao № 4 do Artigo 56 da Carta Africana, a Queixosa sustenta que a
Participação-queixa não se baseia exclusivamente em notícias disseminadas
através da comunicação social, mas antes em informações em primeira mão,
prestadas pela FLEC e por outras organizações directamente envolvidas na
questão.
36. Sobre o requisito de esgotamento de recursos ou instâncias de Direito interno,
tal como enunciado no № 5 do Artigo 56 da Carta Africana, a Queixosa solicita à
Comissão que renuncie a esta condição com base no argumento de que o
esgotamento de tais recursos e instâncias é fútil e legalmente impossível dado
existir agitação e um conflito armado envolvendo as partes, o que dificulta a
instauração de processos legais por parte da Queixosa. A Queixosa assevera
ainda que a única organização independente da sociedade civil que poderia
mover uma acção judicial em nome da Queixosa foi dissolvida e proibida por
ordem judicial instigada pelo Estado Requerido. Argumenta ainda a Queixosa
não poder mover acções judiciais contra o Estado Requerido pelo facto de ela
(Queixosa) ter sido classificada de organização terrorista desde a assinatura do
Acordo de Paz de 2006 entre o Estado Requerido e elementos em Cabinda.
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37. Relativamente ao № 6 do Artigo 56 da Carta Africana, a Queixosas assevera que a
Participação-queixa foi apresentada dentro do prazo. Finalmente, a Queixosa
sustenta que a Participação-queixa cumpre com os requisitos do № 7 do Artigo
56 da Carta Africana uma vez que a Participação-queixa não trata de um caso que
tenha sido resolvido pelo Estado Requerido.
Análise da Comissão quanto a Admissibilidade
38. O Artigo 56 da Carta Africana enumera sete requisitos de Admissibilidade que
têm de ser cumpridos cumulativamente para que a uma Participação-queixa seja
dado provimento. Na presente Participação-queixa, embora a Queixosa tenha
articulado os factos de forma clara a fim de demonstrar que a Participação-
queixa cumpre com cada um dos sete requisitos estipulados ao abrigo do Artigo
56, o Estado Requerido não apresentou quaisquer argumentos a contestar ou a
refutar as reivindicações feitas.
39. A partir do momento em que Comissão Africana passou a lidar com a
Participação-queixa no decurso da sua 40ª Sessão Ordinária em Novembro de
2006, até à data foram enviadas dez (10) notas ao Estado Requerido, solicitando
que este articulasse os factos sobre Admissibilidade. Tudo em vão.4
40. Tal como a Comissão Africana declarou no caso, Institute for Human Rights and
Desenvolvimento in Africa vs República de Angola,5 “em virtude do Estado não ter
lidado da queixa apresentada contra ele, a Comissão Africana não tem outra
alternativa mas passar a analisar a Participação-queixa em conformidade com os
seus Regulamentos Internos.” Na mesma decisão, a Comissão Africana reafirmou
a sua posição, decidindo que “… passaria a analisar a Participação-queixa na base
dos factos articulados pelo Queixoso e nas informações à sua disposição, mesmo
se o Estado não apresente os seus próprios argumentos.”6
4 Foram enviadas Notas Verbais à República de Angola em 28 de Fevereiro de 2007, 10 de Maio de 2007, 20 de Agosto de 2007, 19 de Dezembro de 2007, 25 de Março de 2009, 27 Abril de 2009, 23 de Junho de 2010, 30 de Setembro de 2010, 7 de Dezembro de 2010 e 11 de Agosto de 2011. 5 Participação-queixa 292/04 - Institute for Human Rights and Desenvolvimento in Africa v. Republic of Angola, parágrafo 34 6 Ibid. Dos casos mencionados constam: Participação-queixa 155/96 Social and Economic Rights Action Center, Center for Economic e Social Rights vs República Federal da Nigéria, e 159/96
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41. No caso em mãos, a Queixosa sustenta que a Participação-queixa cumpre com
todos os sete requisitos do Artigo 56 da Carta Africana, excepto um relativo ao
esgotamento de recursos ou instâncias de Direito interno ao abrigo do № 5 do
Artigo 56 em relação ao qual a Queixosa pede que a Comissão renuncie a essa
cláusula
42. Na ausência de quaisquer factos articulados em contrário pelo Estado Requerido,
a Comissão Africana examinou os factos articulados pela Queixosa e está
convencida de que todos os requisitos ao abrigo do Artigo 56, excepto o № 5 do
Artigo 56, foram cumpridos. A Comissão passa a examinar a legitimidade do
pedido de renúncia relativo ao № 5 do Artigo 56 da Carta e jurisprudência
pertinente.
43. O № 5 do Artigo 56 da Carta Africana estabelece que as Participações-queixa
deverão ser “enviadas após ter-se esgotado os recursos ou instâncias de Direito
interno, caso existam, salvo se for óbvio que esse procedimento se torna
indevidamente prolongado”. Este requisito baseia-se no princípio de que “o
Estado Requerido deve primeiro ter a oportunidade de proceder ao desagravo,
pelos próprios meios e no quadro do seu próprio sistema legal interno, do mal
que se alega ter sido causado a um indivíduo”.7
44. A Comissão salientou que o requisito de esgotamento de tais recursos “não
significa que os queixosos tenham de esgotar quaisquer recursos ou instâncias
de Direito interno que se constate, de forma prática, não estarem disponíveis ou
serem eficazes”.8 A jurisprudência da Comissão, no que se refere à determinação
do cumprimento deste requisito, enuncia “[t]rês critérios principais, isto é: o
Union Inter Africaine des Droits de l’Homme, Federation Internationale des Ligues des Droits de l’Homme, Rencontre Africaine des Droits de l’Homme, Organisation Nationale des Droits de l’Homme au Sénégal e Association Malienne des Droits de l'Homme vs República de Angola. 7 Participação-queixa 71/92 - Rencontre Africaine pour la Defence des Droits de l'Homme vs Zâmbia 8 Ibid.
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recurso ou instância de Direito interno deve estar disponível, ser eficaz e
suficiente”.9
45. O ónus inicial recai sobre a Queixosa para que prove ter cumprido o requisito
enunciado no № 5 do Artigo 56 ou que tais recursos ou instâncias não se
encontram disponíveis para o caso em referência. Subsequentemente, o ónus
passa a ser do Estado Requerido, caso este conteste as alegações da parte
queixosa.
46. No presente caso, a Queixosa assevera não possuir estatuto legal ao abrigo das
leis angolanas e que os seus representantes seriam confrontados com prisão ou
possivelmente execução ao abrigo das leis angolanas de segurança nacional, caso
procurassem obter recursos ou instâncias de Direito em Angola, acrescentando
que no território angolano, os membros da FLEC eram tidos como terroristas, daí
que qualquer tentativa de apresentar o caso perante tribunais angolanos seria
fútil, senão mesmo impossível, e sujeitaria membros da organização da Queixosa
a prisão arbitrária, detenção ou execução como terroristas.
47. A Queixosa também sustenta que a única organização de direitos humanos
independente existente em Cabinda, a Mpalabanda, e que poderia ter levado o
caso a tribunal, foi banida em 20 de Julho de 2006 por alegado incitamento ao
ódio e violência, e por envolvimento em actividades políticas. Além disso, a
Queixosa argumenta que os principais membros da FLEC (a Queixosa) estão fora
da alçada da jurisdição angolana, o que explica o pedido por ela feito de renúncia
do requisito de esgotamento de recursos ou instâncias de Direito interno.
48. Estas reivindicações, que não são contestadas pelo Estado Requerido, mostram a
aparente existência de receio de perseguição por parte da Queixosa.
49. Numa série de casos, a Comissão Africana usou o princípio do esgotamento
construtivo de recursos ou instâncias de Direito interno para se estabelecer uma
9 Ver Jawara vs Gâmbia parágrafo 33, Participação-queixa 300/05 – SERAC e Socio Economic Rights and Accountability Project vs Nigéria, parágrafo 45
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excepção à regra. O receio de perseguição é uma das excepções do requisito de
esgotamento de recurso ou instância de Direito interno. No caso, Sir Dawda K
Jawara vs Gâmbia,10 a Comissão Africana concluiu que “a existência de um
recurso ou instância de Direito interno deve ser suficientemente certa, não
apenas em teoria, mas também na prática. Não havendo tal certeza, deixará de
possuir o requisito de acessibilidade e de eficácia. Portanto, se o requerente não
pode recorrer ao sistema judicial do seu próprio país devido ao receio
generalizado pela sua vida (ou mesmo pela vida dos familiares), os recursos ou
instâncias de Direito interno seriam considerados como não estando
disponíveis”.
50. Nos casos, Rights International vs Nigéria11 e John D Ouoko vs Quénia,12 a
Comissão Africana concluiu que a existência de aparente receio de perseguição
por parte das vítimas, de regressarem aos respectivos países a fim de se
esgotarem os recursos ou instâncias de Direito interno torná-los-ia indisponíveis
para tais pessoas, daí a renúncia ao requisito de esgotamento de tais recursos ou
instâncias.
51. Na presente Participação-queixa, o facto de que a Queixosa não dispõe de
estatuto legal perante os tribunais angolanos; de que a maioria dos seus
membros vive no estrangeiro e sendo eles considerados de terroristas pelo
governo, leva a concluir que as probabilidades da Queixosa esgotar os recursos
ou instâncias de Direito interno tornaram-se praticamente impossíveis por
receio de perseguição.
52. Portanto, a Comissão Africana considera que a Queixosa não dispunha de
recursos ou instâncias de Direito interno, pelo que a Participação-queixa
conforma com o requisito constante do № 5 do Artigo 56 da Carta Africana .
53. Face às razões acima expostas, a Comissão Africana declara a Participação-
queixa admissível em conformidade com o Artigo 56 da Carta Africana .
10 Jawara vs Gâmbia, parágrafo 35. 11 Participação-queixa 215/98 – Rights International vs Nigéria 12 Participação-queixa 232/99 – John d Ouoko vs Quénia
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
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Análise quando ao Mérito
Resumo dos Factos Articulados pela Queixosa
54. A Queixosa realça que a presente Participação-queixa relaciona-se estritamente
com uma reivindicação de autodeterminação económica do povo de Cabinda e
em particular com a disposição e exploração de recursos naturais petrolíferos,
minerais e naturais em terra.
55. E mais declara a Queixosa que a Participação-queixa exclui a questão da
atribuição de recursos situados no mar, relacionando-se apenas com a extracção
de recursos em terra, extracção essa que permanece suspensa devido em grande
parte à oposição armada da FLEC a qualquer exploração do género. A Queixosa
defende que não reconhece a outorga pelo Estado Requerido de licenças e
concessões de extracção de recursos, e afirma reservar-se o direito de elaborar
planos próprios com companhias de extracção de recursos no momento da
“descolonização” de Cabinda.
56. Com base na opinião por si defendida de que é reconhecida como a legítima
representante do povo de Cabinda desde 1974, a Queixosa solicita à Comissão
que nomeie um Relator Especial sobre a questão da autodeterminação
económica de Cabinda com base na alegação de que o Estado Requerido violou
os Artigos 14, 19, 20, 21, 22 e 24 da Carta Africana.
57. A Queixosa argumenta que como privilégio inerente ao direito de propriedade
nos termos do Artigo 14 da Carta Africana, os recursos naturais de Cabinda
permanecem propriedade do povo de Cabinda e devem em grande medida ser
administrados em benefício do povo de Cabinda. Nesta conformidade, a outorga
de licenças e de concessões para extracção de recursos naturais em terra pelo
Estado Requerido constitui uma violação do Artigo 14 da Carta Africana.
58. É ainda convicção da Queixosa que embora um Estado possa outorgar direitos de
extracção de recursos em nome do seu povo, uma outorga feita em situações em
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que um povo domina outro povo, ou uma outorga feita ou administrada de forma
irresponsável seria ilegítima. A Queixosa argumenta que historicamente, Cabinda
manteve sempre uma identidade separada, quer linguística, quer outra, e que o
povo de Cabinda não foi consultado sobre a ‘rescisão unilateral do protectorado
colonial português’ nem ratificou ‘a ocupação angolana’ de Cabinda.
59. A Queixosa declara que desde 1974 tem vindo a ‘manter um Governo civil dentro
de parcelas de Cabinda’ e muitas das áreas de extracção de recursos ‘situam-se
na zona da FLEC ou a pouca distância dessa mesma zona. Para além do mais,
dado que os cabindenses são um povo distinto, o Estado Requerido não está
habilitado a outorgar unilateralmente licenças ou concessões de extracção de
recursos em violação do direito de propriedade do povo de Cabinda, tal como
contido no Artigo 14 da Carta Africana .
60. Em relação à alegada violação do Artigo 19 da Carta Africana, a Queixosa defende
que as ‘receitas da extracção de recursos em terra reverterão para Luanda, tal
como acontece presentemente com as receitas de exploração no mar’. A Queixosa
argumenta que um Acordo de Paz de Cabinda de 2006, que prometia a entrega
de 50% das receitas petrolíferas a Cabinda, ‘não foi cumprido ou submetido a
auditoria’ e que apenas ‘10% ou menos è transferido para Cabinda’. A Queixosa
alega ainda que qualquer tentativa de se questionar a atribuição de receitas teve
como resultado a prisão sumária, ‘como foi o caso do funcionário de investigação
da Global Witness’, detido e acusado pela Polícia angolana após reunião com
representantes da sociedade civil em Cabinda.
61. A Queixosa alega ainda que apesar dos abundantes recursos petrolíferos
existentes em Cabinda, a taxa de desemprego é elevada, e os casos de pobreza,
mortalidade infantil e de doença são mais elevados em Cabinda do que na maior
parte do território angolano. A Queixosa acrescenta que os recursos de Cabinda
‘subsidiaram o Governo de Angola’ e que a ‘administração angolana pouco se
preocupa em providenciar bens públicos e incentivos visando facilitar o
investimento na melhorias do bem-estar da população em geral’. Assim, a
Queixosa alega que o Estado Requerido violou o Artigo 19 da Carta Africana .
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
15
62. No que se refere à alegada violação do Artigo 20 da Carta, a Queixosa realça que
o povo de Cabinda é geográfica, política, linguística e culturalmente distinto dos
angolanos, razão pela qual tem direito ao desenvolvimento social e económico. A
Queixosa defende que o povo de Cabinda está impossibilitado de exercer este
direito pelo facto de organizações que ‘abraçam um ponto de vista singularmente
cabindense’ foram banidas pelo Governo de Angola. A Queixosa alega ainda que
cabindenses empenhados na obtenção da autodeterminação económica são, por
uma questão de rotina, detidos como ‘simpatizantes da FLEC’. Por outro lado,
estrangeiros que identificaram casos de corrupção em Cabinda foram enviados
para a cadeia. Nesta conformidade, a Queixosa afirma que o Estado Requerido
violou o Artigo 20 da Carta Africana.
63. Quanto ao Artigo 21 da Carta Africana, a Queixosa defende que outorgas e
concessões (por ela descritas como ofertas de petróleo e direitos de minérios em
terra) foram feitas pelo Estado Requerido ‘sem participação dos cabindenses’ e
que todas as decisões relacionadas com recursos naturais são tomadas a partir
de Luanda, a capital de Angola. A Queixosa defende que o povo de Cabinda e a
FLEC, esta como representante do povo de Cabinda, não foram devidamente
consultados a respeito da gestão dos ‘seus recursos em terra. Em vez disso,
realizaram-se actividades de prospecção e exploração sob vigilância das Forças
Armadas Angolanas. Assim, a Queixosa disputa o direito legal do Estado
Requerido explorar e dispor dos recursos de Cabinda em terra e que tais
actividades constituem espoliação, o que viola o Artigo 21 da Carta Africana e,
portanto, deverão ser corrigidos pelo Estado Requerido.
64. Sobre a alegada violação do Artigo 22 da Carta Africana, a Queixosa afirma que os
cabindenses são um povo distinto com direito ao desenvolvimento social e
económico, e defende que a actual política do Estado Requerido é de
‘angolanização de Cabinda’, envolvendo discriminação e prisão de indivíduos e
grupos que reivindicam uma identidade cabindense. Nesta conformidade, a
Queixosa alega que o Estado Requerido violou o Artigo 22 da Carta Africana .
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
16
65. Relativamente ao Artigo 24 da Carta Africana, a Queixosa alega que o ambiente
em Cabinda não é conducente ao desenvolvimento do povo cabindense. Embora
declarando não procurar por um ambiente ideal, a Queixosa argumenta estar em
busca de um ambiente que permita ‘uma certa equidade para o povo de Cabinda’.
A Queixosa defende que as operações de companhias como a Chevron
desenrolam-se em condições que são prejudiciais à saúde humana e ao ambiente
dado que o Estado Requerido não cumpre com as regras ambientais.
66. A Queixosa alega ainda que a falta de uma sociedade civil viável em Cabinda, na
sequência do banimento da Organização Mpalabanda, permite que as actividades
de companhias petrolíferas não sejam monitoradas, nem quaisquer
indemnizações pagas na eventualidade de danos ambientais. Assim, a Queixosa
argumenta que o Estado Requerido violou o direito do povo de Cabinda a um
ambiente satisfatório, tal como garantido no Artigo 24 da Carta Africana .
67. Em apoio de todas as alegações por ela feitas, a Queixosa apresentou cinco
documentos comprovativos. Destes constam, “um Relatório do Comité da
República de Kabinda de 8 Janeiro de 2010 sobre o Incidente Togolês”; um
comunicado conjunto de 1974 emitido pelo Movimento Popular de Libertação de
Angola (MPLA) e pela Queixosa (FLEC); um relatório da Human Rights Watch
intitulado “They Put me in the Hole –Military Detention, Torture and Lack of Due
Process in Cabinda”[Tradução: Meteram-me no buraco – Detenção Militar,
Tortura e Falta de Processo Legal Justo em Cabinda]; um Relatório Anual
Alternativo da Chevron referente a 2008, intitulado “Chevron in Angola” e uma
Declaração Pública da Amnistia Internacional intitulado “Angola: Human rights
organization banned”. Igualmente apresentado em apoio do caso da Queixosa,
depoimentos históricos feitos por diferentes organismos agindo em nome do
povo de Cabinda.
Resumo dos Argumentos do Estado Requerido
68. Nos factos que articulou quanto ao Mérito, o Estado Requerido começa por
argumentar que a Participação-queixa não deveria ter sido declarada admissível
por não ter cumprido com os requisitos de Admissibilidade, tal como
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
17
enunciados na Carta Africana. O Estado Requerido argumenta que o Artigo 57
da Carta Africana exige que antes de se proceder à análise de uma Participação-
queixa quanto ao Mérito, a Presidente da Comissão deve apresentar a Queixa
perante o Estado Requerido, delineando as questões processuais e indicando se a
Queixa conforma com as disposições da Carta Africana e outros instrumentos da
União Africana (UA) de relevância para a questão. No que respeita à presente
Participação-queixa o Estado Requerido defende que este requisito não foi
cumprido.
69. E mais argumenta o Estado Requerido que a Participação-queixa não é
admissível por não ter cumprido com os requisitos do Artigo 50 e o № 5 do
Artigo 56(5) da Carta Africana no que se refere ao esgotamento de recursos ou
instâncias de Direito interno. O Estado Requerido também alega que a Comissão
não cumpriu com o № 3 do Regulamento 6 dos seus próprios Regulamentos
Internos, que proíbe "Movimentos de Libertação Nacional não reconhecidos de
apresentar questões para inclusão na agenda de sessões da Comissão". O Estado
Requerido insiste que a Queixosa não está habilitada a apresentar a presente
Participação-queixa à Sessão da Comissão Africana por não ser um Estado Parte
nem uma parte habilitada a apresentar “Outras Participações-queixa” perante a
Comissão.
70. Citando a alínea b) do Artigo 313 e a alínea b) do Artigo 414 da Lei Constitutiva da
União Africana, o Estado Requerido argumenta que a presente Participação-
queixa não pode ter prosseguimento por contestar as fronteiras existentes de um
Estado Membro da UA e ameaça a soberania e integridade territorial do Estado
Requerido.
71. No que respeita ao mérito da Participação-queixa, o Estado Requerido forneceu a
sua versão da história de Angola, realçando que o Acordo de Alvor de 1975 e a
Constituição de Angola dota-o de soberania sobre o território agora conhecido
13 Alínea (b) do Artigo 3 da Lei Constitutiva da UA prevê que um dos objectivos da União será o da "defesa da soberania, integridade territorial e independência dos seus Estados Membros". 14 Alínea (b) do Artigo 4 da Lei Constitutiva da UA prevê que um a União deverá funcionar de acordo com os princípios do "respeito das fronteiras existentes à altura da independência".
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
18
como Angola, incluindo a Província de Cabinda. O Estado Requerido argumenta,
portanto, que o direito à autodeterminação foi exercido pelos "povos" colectivos
de Angola, não sendo em proveito de minorias e grupos étnicos pois esse direito
apenas pode estar à disposição de Estados surgidos de fronteiras coloniais em
reconhecimento do princípio “uti possidetis juris”.
72. Relativamente à alegada violação do Artigo 14 da Carta Africana, o Estado
Requerido defende que o direito à propriedade está igualmente consagrado nos
Artigos 14 e 37 da Constituição de Angola. O Estado Requerido argumenta que o
direito à propriedade constante da Constituição angolana é garantido no
interesse de indivíduos, organismos corporativos e comunidades locais, o que
implica “implica todo o povo de Angola”
73. E mais argumenta o Estado Requerido que a Queixosa não demonstrou que o
Governo de Angola não gere os recursos de Cabinda em benefício do povo
cabindense. O Estado Requerido assevera que o Governo administra todos os
seus recursos naturais de uma forma equitativa e equilibrada, como um bem
comum para o desenvolvimento económico, social e cultural do país e no
interesse nacional.
74. O Estado Requerido insiste que o Governo da Província de Cabinda recebe uma
porção do Orçamento Geral de Estado angolano, tal como todos os governos
provinciais em Angola. Além do mais, por via do Artigo 7 da Lei do Orçamento
Geral de Estado angolano (№ 26/10), as Províncias de Cabinda e do Zaire
recebem montantes iguais a 10% das receitas provenientes dos recursos
petrolíferos, para além de outras despesas e custos para a construção de escolas,
estradas, pontes, portos, hospitais e outras infra-estruturas socioeconómicas.
Assim, o Estado Requerido defende que não violou o Artigo 14 da Carta Africana
dado que os seus assuntos são geridos “em conformidade com as disposições de
leis apropriadas”.
75. No que se refere à alegada violação do Artigo 19 da Carta Africana, o Estado
Requerido afirma que o Artigo 21 da sua própria Constituição estabelece o
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
19
princípio da igualdade e que esse princípio é aplicado em todas as 18 províncias
do país. O Estado Requerido argumenta que como resultado das suas obrigações
constitucionais internas, ele "não pode aplicar medidas destinadas a desenvolver
o país com base na premissa de que as receitas devem apenas ser despendidas
nas áreas onde são geradas”. O Estado Requerido cita o exemplo da actual
“Estratégia de Combate à Pobreza” que visa alcançar uma “redução em 50% até
2015 do número de pessoas com menos de USD1.00 por dia”.
76. O Estado Requerido insiste ainda que em comparação com outras províncias, a
de Cabinda usufrui de estatuto especial em virtude do contributo por ela
prestado ao Orçamento Geral de Estado angolano. O Estado Requerido também
afirma que, tal como vem contido nos recentes relatórios do Programa de
Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e do Fundo de Emergência das
Nações Unidas para a Infância (UNICEF), existe uma melhoria global em áreas
como a dos cuidados de saúde infantil e cuidados de saúde no geral. Nesta
conformidade, o Estado Requerido defende que não violou o Artigo 19 da Carta
Africana no tocante à Província de Cabinda.
77. Quanto à alegada violação do Artigo 20 da Carta Africana, o Estado Requerido
defende que o direito nele contido foi realizado colectivamente por todo o povo
angolano mediante o alcance da independência em 11 de Novembro de 1975 e
a realização de eleições livres e democráticas em 1992 e 2008. O Estado
Requerido afirma que de acordo com dados disponíveis, um total de 7, 213, 281
eleitores, representando 87.36% da população angolana, foi às urnas nas
Eleições Legislativas de 2008. De um total de 220 deputados eleitos nas Eleições
Legislativas de 2008, 5 são oriundos de Cabinda em representação desta
província. Assim, o Estado Requerido argumenta que o povo de Cabinda está
representado na Assembleia Nacional da República de Angola por intermédio
desses deputados. Em apoio dessas afirmações, o Estado Requerido apensou
relatórios referentes às eleições de 2008 e 2012 e que foram divulgados pela
Comissão Nacional de Eleições.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
20
78. Nesta conformidade, o Estado Requerido defende que da mesma forma que
outras províncias, a Província de Cabinda possui estruturas políticas e
administrativas próprias tal como definido por lei. O Estado Requerido
argumenta que “tal como a maior parte dos povos africanos, Angola é uma
sociedade multicultural e plurilinguística”, e o Artigo 87 da Constituição garante
o direito ao respeito, valorização e preservação da identidade cultural, linguística
e artística do povo angolano. Como tal, o Estado Requerido conclui que não
violou o artigo 20 da Carta Africana.
79. No que concerne à alegada violação do Artigo 21 da Carta Africana, o Estado
Requerido afirma que os Artigos 94 e 95 da Constituição angolana criam e
separam os domínios público e privado de direitos de propriedade. Afirma que
os recursos naturais estão sob a alçada da propriedade de domínio público, e
que a propriedade de domínio público destina-se constitucionalmente a “servir
interesses nacionais em vez de interesses locais apenas”, uma vez que dela se
espera que “beneficie todo o povo angolano, sem excepção”. O Estado Requerido
salienta que a própria Queixosa concorda que uma certa percentagem das
receitas petrolíferas destina-se especialmente à Província de Cabinda.
80. O Estado Requerido defende ainda que em Angola funciona um sistema unitário
de governo em que todas as províncias estão em pé de igualdade, de tal modo
que os recursos públicos devem servir toda a população do Estado. Não obstante
este facto, à Província de Cabinda foi dada atenção especial como resultado do
seu contributo por ela prestado à produção nacional de petróleo.
81. O Estado Requerido contesta a afirmação da Queixosa de que a FLEC representa
Cabinda, e argumenta que ela, Queixosa, “não possui legitimidade moral, legal ou
qualquer outra” e que, portanto, não pode falar em nome do povo de Cabinda. O
Estado Requerido insiste que como Estado soberano, Angola tem a legitimidade e
o direito de explorar os recursos naturais no seu território, incluindo os que se
encontram em qualquer uma das 18 províncias. Assim, o Estado Requerido
argumenta que não violou o artigo 21 da Carta Africana.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
21
82. Em relação à alegada violação do Artigo 22 da Carta Africana, o Estado Requerido
argumenta que a Queixosa não apresentou quaisquer provas a corroborar a
afirmação de que os direitos do povo de Cabinda haviam sido violados. O Estado
Requerido afirma que uma vez que Cabinda é parte de um território uno,
indivisível e inalienável (Angola), não existe razão ou base para defender a
afirmação de que Cabinda está a ser “angolanizada”.
83. O Estado Requerido defende que os seus cidadãos são angolanos de origem, de
acordo com as leis nacionais e internacionais. Sendo esse o caso e não existindo
um Estado de Cabinda em África, mas uma Cabinda que é província, "que é parte
integrante do Estado angolano”, o Estado Requerido argumenta que retém o
direito de punir por lei “todo o acto, acção ou tentativa de dividir o Estado
angolano”. O Estado Requerido argumenta, portanto, que não violou o artigo 22
da Carta Africana.
84. Quanto à alegada violação do Artigo 24 da Carta Africana, o Estado Requerido
afirma ter tomado em linha de conta as características dos campos petrolíferos e
das florestas de Cabinda, adoptando medidas para preservar o ambiente. O
Estado Requerido cita a promulgação de legislação a níveis nacional e local com
base num direito enraizado no Artigo 39 da Constituição angolana a um
ambiente saudável e sem poluição. E mais defende o Estado Requerido de que
possui uma Lei de Bases do Ambiente, para além de uma série de outros
estatutos e instituições tais como a Comissão Técnica Multissectorial para o
Ambiente e a Autoridade Nacional do Ambiente que lidam com questões
decorrentes da exploração petrolífera.
85. O Estado Requerido afirma ainda que por intermédio de Decreto Presidencial de
2011, as companhias petrolíferas devem responsabilizar-se por quaisquer danos
causados por derrames petróleo, prestando ao mesmo tempo uma maior atenção
aos pescadores e suas famílias. O Estado Requerido admite terem ocorrido
derrames de petróleo na Província de Cabinda, mas que o Serviço Nacional de
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
22
Fiscalização Ambiental do Ministério do Ambiente teve conhecimento de pelo
menos seis desses derrames, obrigando as companhias petrolíferas a indemnizar
pescadores e a repor meios que se perderam ou ficado danificados.
86. O Estado Requerido afirma ainda possuir legislação que obriga as
concessionárias e suas associadas a tomar medidas preventivas e práticas para
lidar com danos ambientais. Tais medidas incluem a produção de estudos de
avaliação e auditorias de impacto ambiental, planos de reposição paisagística e
estrutural, e mecanismos contratuais permanentes destinados à gestão e
auditoria ambientais.
87. O Estado Requerido sustenta que na sequência do acidente no Golfo do México, o
Ministério do Ambiente angolano procedeu à auditoria de plataformas
petrolíferas no mar de Angola, “tendo em vista evitar a repetição do sucedido...
no Hemisfério Ocidental”. Também afirma o Estado Requerido que o Ministério
do Ambiente tem “mantido consultas públicas sobre a avaliação do impacto
ambiental no Bloco Sul de Cabinda nos termos do Decreto № 51”. O Estado
Requerido defende que essas medidas não se restringem ao sector do petróleo,
abrangendo outros recursos. Assim, o Estado Requerido argumenta que não
violou o Artigo 24 da Carta Africana.
88. Como prova dessa afirmação, o Estado Requerido apensou os resultados das
Eleições Legislativas de 2008 e 2012. Não se apensaram quaisquer outros
documentos, excepto um “Memorando de Entendimento e Integração de
Membros da FLEC”, o qual refere que o Estado Requerido despendeu vastas
somas de dinheiro para registar e desmobilizar antigos soldados da FLEC. A
concluir o Estado Requerido insiste que a Participação-queixa deve ser
considerada de inadmissível “por não dispor de base legal e causa provável”.
Argumentos Suplementares da Queixosa
89. Nos argumentos suplementares em resposta aos factos articulados pelo Estado
Requerido quanto ao Mérito da questão, a Queixosa reafirmou e deu mais
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
23
detalhes sobre a sua versão da história de Cabinda a fim de mostrar que este
território era historicamente administrado de forma separada de Angola, e que
tinha um povo com uma identidade linguística, cultural e política distinta.
Argumentos Amicus Curiae
90. Entre Janeiro e Março de 2012, e de novo em Junho de 2013, diversas
organizações representando diferentes interesses do povo de Cabinda,
articularam factos sobre a questão. Com o consentimento do representante legal
da Queixosa, os argumentos apresentados foram considerados como peças
processuais Amicus Curiae. Nos factos que articularam, os diversos grupos
promoveram a versão da Queixosa sobre os factos históricos e insistem que o
povo de Cabinda é vítima de uma invasão ilegal, agressiva e unilateral por parte
do Governo do Estado Requerido. Os grupos sustentam que como resultado
desses factos históricos, e tendo em consideração que o povo de Cabinda não foi
consultado antes de o seu território ter sido cedido a Angola, as acções do Estado
Requerido constituem colonialismo ou neocolonialismo, pelo que o povo de
Cabinda tem direito à autodeterminação.
Análise da Comissão quanto ao Mérito
91. Embora não tenha feito observações quanto à Admissibilidade da Participação-
queixa, não obstante ter recebido um convite formal e diversas notas do
Secretariado,15 fazendo-o recordar desse aspecto, a primeira parte dos
argumentos do Estado Requerido quanto ao Mérito contesta a Admissibilidade
da Participação-queixa e levanta questões que constituem uma objecção
preliminar à análise desta queixa. Antes de se proceder à análise do Mérito da
presente Participação-queixa, a Comissão considera ser necessário abordar
algumas das preocupações levantadas pelo Estado Requerido, muito embora
grande parte delas devia ter sido apresentada durante a fase de Admissibilidade.
15
Ver parágrafo 39 supra em que a Comissão faz notar que foram enviadas dez notas ao Estado Requerido,
fazendo-o lembrar de que deveria articular factos quanto à Admissibilidade da Participação-queixa.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
24
92. A Comissão toma nota dos argumentos do Estado Requerido de que o Artigo 57
da Carta Africana exige que, para ser examinada pela Comissão, uma
Participação-queixa deve ser primeiro apresentada pelo/a Presidente da
Comissão Africana ao Estado Parte em causa, enunciando as questões
processuais e indicando se uma tal Participação-queixa conforma com as
disposições da Carta Africana e de outros instrumentos da UA. O Artigo 57 diz o
seguinte:
Antes de qualquer exame substancial, todas as Participações-queixa deverão ser
levadas ao conhecimento do Estado interessado por intermédio do/a Presidente da
Comissão.
93. A Comissão afirma que o Artigo 57 da Carta obriga-a a notificar um Estado parte
da existência de uma Queixa contra esse mesmo Estado para que ele possa
participar no caso. A Comissão recorda que o aviso referente à presente
Participação-queixa foi transmitido ao Estado Requerido por meio de Nota
Verbal datada de 28 de Fevereiro de 2007. Tal como indicado nos parágrafos 16
a 20 e parágrafos 24 a 27 da decisão sobre Admissibilidade, o Secretariado, em
correspondência posteriormente enviada ao Estado Requerido, remeteu o
original da Queixa e demais documentação apresentada pela Queixosa no âmbito
da presente Participação-queixa. Para além do mais, tal como referido no
parágrafo 39 supra, foram enviadas ao Estado Requerido pelo menos dez (10)
notas, fazendo-o lembrar de que deveria responder aos argumentos quanto a
Admissibilidade. Todavia, tais notas não obtiveram qualquer resposta do Estado
Requerido. Nesta conformidade, a Comissão Africana faz notar que cumpriu o
seu dever para com o Estado Requerido tal como exigido pelo Artigo 57 da Carta
Africana.
94. E mais defende o Estado Requerido que a Comissão Africana não cumpriu com o
№ 3 do Regulamento 6 dos seus Regulamentos Internos.16 A Comissão faz notar
16
Ver parágrafo 69 supra.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
25
que as disposições citadas pelo Estado Requerido referentes à Agenda Provisória
das sessões da Comissão constam agora do Regulamento 32 dos Regulamentos
Internos da Comissão. A Comissão recorda que o № 2 do Regulamento 32 dos
referidos Regulamentos Internos estabelece o seguinte:
.A Agenda provisória deverá incluir, mas não limitar-se-á a pontos respeitantes a
“Participações-queixas de Estados” e a “Outras Participações-queixa”, em
conformidade com as disposições dos Artigos 48, 49 e 55 da Carta.
95. A Comissão reafirma que o № 2 do Regulamento 32 dos Regulamentos Internos
permite "Outras Participações-queixa",17 como a ora em análise, para inclusão na
Agenda da Sessão da Comissão. Em conformidade com essa disposição, a
presente Participação-queixa foi apresentada perante a Comissão da forma
apropriada, tendo sido devidamente incluída na Agenda da Sessão.
96. E mais defende o Estado Requerido que a presente Participação-queixa deveria
ter sido declarada inadmissível por não ter cumprido com certos aspectos do
Artigo 56 da Carta Africana. A Comissão recorda que o Estado Requerido foi
contactado em todas as fases, tendo-lhe sido dada ampla oportunidade para
apresentar as respectivas posições e argumentos no que se refere à
admissibilidade da presente Participação-queixa, mas que o Estado Requerido
não tomou partido dessa oportunidade.
97. A Comissão faz ainda notar que na eventualidade de um Estado Parte não
proceder à apresentação das suas observações quanto a admissibilidade dentro
de 60 dias a contar da data de recepção dos argumentos da parte queixosa
enviados pelo Secretariado, tal como enunciado no № 2 do Regulamento 105 dos
Regulamentos Internos da Comissão, esta está autorizada a tomar uma decisão
quanto à Admissibilidade da Participação-queixa. Em tais casos, a Comissão
examina os factos articulados pela parte queixosa relativamente à
admissibilidade de uma queixa, nos termos das disposições do Artigo 56 da
17
Isto é, as Participações-queixa para além das que sejam apresentadas por Estados Partes.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
26
Carta Africana. A Comissão faz notar que em relação à presente Participação-
queixa, esse procedimento foi seguido à risca. Nesta conformidade, a Comissão
não pode voltar a abordar a decisão por si tomada quanto à admissibilidade da
Participação-queixa.
98. Não obstante o facto de que a sua decisão referente à Participação-queixa não
será revista, a Comissão nota que o argumento do Estado Requerido de que a
presente Participação-queixa deveria ter sido declarada inadmissível por
contrariar a alínea b) do Artigo 3 e a alínea b) do Artigo 4 da Lei Constitutiva da
UA. Quanto a isto, a Comissão recorda que os factos articulados pela Queixosa de
que a presente Participação-queixa não visa uma decisão sobre
autodeterminação política ou direito de secessão do Estado Requerido.
99. Na correspondência e argumentos enviados ao Secretariado, a Queixosa manteve
que a sua reivindicação restringia-se estritamente a um pedido de decisão sobre
autodeterminação económica e determinação do direito do povo de Cabinda
usufruir do uso de recursos naturais localizados dentro da Província de Cabinda.
A Comissão examinou igualmente os pedidos da Queixosa e faz notar que as
reivindicações tal como formuladas não contrariam as disposições da alínea b)
do Artigo 3 e da alínea b) do Artigo 4 da Lei Constitutiva da UA. A Comissão não
se considera obrigada a pronunciar-se sobre as peças processuais amicus curiae
que procuram introduzir dimensões secessionistas à Participação-queixa. Nesta
conformidade, a Comissão passa a determinar a Participação-queixa com base
nos factos articulados pelas Partes.
Alegada violação do Artigo 14
100. A Queixosa alega que o Estado Requerido violou o direito à propriedade do
povo de Cabinda, contrariando o Artigo 14 da Carta Africana. O Artigo 14 da
Carta Africana estabelece o seguinte:
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
27
O direito à propriedade é garantido, só podendo ser afectado por
necessidade pública ou no interesse geral da colectividade, em
conformidade com as disposições das leis apropriadas.
101. A Queixosa defende que um encargo associado ao direito de propriedade, tal
como garantido na Carta Africana, é de que os recursos naturais de Cabinda
devem ser amplamente administrados para benefício do povo de Cabinda dado
que o povo deste território reivindica uma identidade distinta do resto de
Angola. A Queixosa argumenta ainda que o Estado Requerido não está habilitado
a outorgar unilateralmente licenças e concessões relacionadas com recursos
existentes em Cabinda.
102. O Estado Requerido sustenta que a Constituição estabelece o direito à
propriedade e que este direito constitucional encontra-se à disposição de todos
os angolanos. Todavia, o Estado argumenta que ao abrigo da Constituição
angolana, certos bens classificam-se de propriedade de domínio público,
destinados a servir interesses nacionais mais amplos e não os interesses de uma
unidade mais pequena de nível estatal. O Estado Requerido contesta ainda o
argumento de que o Governo de Angola não gere os recursos naturais m
benefício do povo de Cabinda.
103. Em termos gerais, a Comissão declarou na sua jurisprudência de que as funções
do Estado em relação ao direito à propriedade são as de “respeitar e proteger
esse direito contra qualquer forma de interferência, e regular o exercício desse
direito para que o mesmo seja acessível a todos.18 Uma forma de se cumprir os
deveres constantes da Carta relativamente ao direito à propriedade é, por
conseguinte, mediante a adopção de legislação que reconhece o princípio de
posse e usufruto pacífico de propriedade. A inclusão do direito à propriedade na
18 Participação-queixa 279/03 - Sudan Human Rights Organisation e Centre on Housing Rights and Evictions (COHRE) vs Sudão (caso COHRE) (2009) ACHPR, parágrafo 192
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
28
Constituição angolana é, portanto, em cumprimento dos deveres do Estado
Requerido à luz da Carta.
104. No que se refere à questão geral de se saber se um “povo” pode ser titular do
direito à propriedade nos termos da Carta Africana, esta Comissão já havia
respondido afirmativamente em relação aos povos indígenas em África.19 A
Comissão Africana reafirma que um direito colectivo ou comunal à propriedade
existe como componente do direito à propriedade no Artigo 14 da Carta
Africana. Semelhante ao direito individual à propriedade, o direito à propriedade
comunal confere a um Estado o dever de reconhecer e proteger o usufruto
pacífico de posse por um grupo ou povo sujeito a limitações pelo Estado no
interesse da necessidade pública ou no interesse geral e de acordo com as
disposições das leis pertinentes.
105. A Comissão também expressou a opinião de que recursos naturais localizados
em terras pertencentes ou ocupadas por um povo podem ser objecto de posse no
contexto do direito à propriedade nos termos da Carta Africana.20 Na opinião da
Comissão, a protecção de direitos de propriedade comunal para com recursos
naturais como uma componente do título de direitos de terra usufruídos por
povos indígenas, não é estranho à Carta Africana ou aos direitos humanos
internacionais em geral.21 Um justificativo para a protecção deste aspecto do
referido direito é a forte ligação tradicional às terras culturais que os povos
indígenas lhes atribuem a ponto da sua sobrevivência depender dos recursos que
tradicionalmente extraem da terra.22
106. A Comissão nota que a Queixosa não reclama que os cabindenses sejam um
povo indígena com fortes ligações culturais à terra. A base da reivindicação da
19 Participação-queixa 155/96 - Social and Economic Rights Action Center and the Center for Economic and Social Rights vs Nigéria (caso SERAC) (2001) ACHPR, parágrafos 59 – 61; 276/03 – Centre for Minority Rights Desenvolvimento (Quénia) e Minority Rights Group (em nome de Endorois Welfare Council) vs Quénia (Caso Endoiros Case) (2009) ACHPR, parágrafos 186 - 238 20 Caso Endorois, parágrafos 186 – 238. 21 A Comissão fundamentando-se nos Artigos 60 e 61 da Carta Africana, inspirando-se igualmente na decisão tomada no âmbito do caso Saramaka People vs Suriname (o caso Saramaka) (2007) IACtHR (Decisão de 28 de Novembro de 2007), parágrafo 121. 22
Ibid
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
29
Queixosa é a de que Cabinda existiu como protectorado português distinto antes
de 1975, altura em que foi declarado como parte de uma Angola independente
sem o consentimento do povo cabindense. A Comissão não crê que uma história
pré-colonial distinta por si só seja de momento suficientemente para sustentar a
reclamação de protecção especial de um direito comunal distintamente
derrogatório em relação à propriedade nos termos da Carta.
107. Na ausência de provas de que em Cabinda a posse de terra é em moldes
comunais e num contexto tradicional, e que o povo cabindense tinha e continua a
ter fortes ligações às suas terras como parte de uma cultura distinta, que exige
dependência em relação à terra e aos recursos nela existentes para a sua
sobrevivência como povo, o direito à propriedade pode ser validamente limitado
pelo Estado no interesse geral do público desse Estado no seu todo e em
conformidade com as leis apropriadas.
108. De acordo com as suas obrigações ao abrigo do Direito Internacional, da Carta
Africana e das suas próprias leis nacionais em geral, o Estado Requerido apenas
pode limitar o direito à propriedade nos termos de certas condições estipuladas.
A Queixosa não reclamou nem adicionou provas a mostrar que a limitação do
direito relativo ao povo de Cabinda não foi feita no interesse público e de acordo
com leis apropriadas.
109. A Comissão recorda o argumento da Queixosa de que um encargo ligado ao
direito à propriedade nos termos da Carta é o de que o povo de Cabinda está
habilitado a ser o principal beneficiário dos recursos naturais e que o Estado
Requerido não pode de forma unilateral dispor dos recursos naturais do povo de
Cabinda sem a sua participação em decisões relativas a uma tal decisão. A
Comissão concorda com a Queixosa que como aspecto do direito à propriedade
nos termos da Carta, o povo de Cabinda está habilitado a beneficiar de um
recurso natural que se encontre nas suas terras. A Comissão, porém, crê que o
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
30
usufruto desse aspecto do direito não deve ser em detrimento de outras
comunidades e grupos do existentes no Estado. A Comissão faz ainda notar que
os argumentos do Estado Requerido de que o povo de Cabinda (juntamente com
a Província d Zaire23) usufruem de uma justa e equitativa partilha dos proventos
dos recursos petrolíferos do Estado não foram contestados, apesar da
reivindicação da Queixosa de que o povo de Cabinda tem direito a 50% de
proventos adicionais provenientes dos recursos naturais.
110. A Comissão constata que a Queixosa não mostrou que o povo de Cabinda
possui uma forte e profunda ligação cultural ou ancestral às suas terras e aos
recursos naturais existentes no subsolo, de tal forma que a sua sobrevivência
depende da protecção da terra. A Queixosa também não mostrou que o Estado
Requerido tenha negado ao povo de Cabinda o direito à partilha equitativa dos
benefícios derivados de tais recursos. Nesta conformidade, a Comissão Africana
constata não ter havido violação do Artigo 14 da Carta Africana.
Alegada violação do Artigo 19 da Carta Africana
111. A Queixosa defende que o Estado Requerido violou o Artigo 19 da Carta dado que
o povo de Cabinda não usufrui do direito à igualdade como povo habilitado ao
mesmo respeito e direitos dos demais povos de Angola. O Artigo 19 estabelece que:
Todos os povos são iguais; gozam da mesma dignidade e têm os mesmos direitos.
Nada pode justificar a dominação de um povo por outro.
112. A Queixosa argumenta que o Artigo 19 da Carta foi violado no que diz respeito
ao povo de Cabinda, por prever que as receitas da extracção de recursos em terra
“reverterão para Luanda, tal como presentemente acontece com as receitas da
23
O Estado Requerido sustenta que a Província do Zaire também contribui significativamente para os recursos
naturais de Angola e que, nessa conformidade, juntamente com a Província de Cabinda, usufruem de
determinados benefícios para além daqueles que outras províncias beneficiam.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
31
extracção de recursos existentes no mar”. A Queixosa alega ainda que não
obstante os recursos extraídos de Cabinda, registam-se altas taxas de
desemprego, e que as taxas de pobreza, de mortalidade infantil e de doenças são
mais elevadas em Cabinda do que na maior parte de outras áreas de Angola.
Assim, afirma que o Estado Requerido violou o Artigo 19 da Carta Africana,
relativamente ao povo de Cabinda.
113. Em resposta à alegada violação do Artigo 19 da Carta, o Estado Requerido
defende que a Constituição angolana estabelece o princípio da igualdade, o qual é
posto em prática em todas as 18 províncias. E mais argumenta o Estado
Requerido que ‘não pode aplicar medidas destinadas a desenvolver o país com
base na premissa de que as receitas devem apenas ser despendidas nas áreas
onde são geradas’. O Estado Requerido sustenta que no âmbito do
desenvolvimento de todo o país, a Província de Cabinda usufrui de “estatuto
especial em virtude do contributo que presta ao Orçamento Geral de Estado
angolano”. Assim, afirma não ter violado o Artigo 19 da Carta Africana em
relação ao povo de Cabinda.
114. A Comissão reafirma a sua posição de que há grupos distintos e identificáveis
de “povos” e comunidades em Estados Partes da Carta Africana e que cada
conjunto de “povos” e de comunidades está habilitado a usufruir de igualdade
jurídica interna relativamente a outros “povos” e comunidades num mesmo
Estado.24 A Comissão faz notar que ao se reclamar sobre tratamento desigual em
violação do Artigo 19 da Carta são necessárias provas de que um dado grupo ou
conjunto de pessoas que se encontrem em posição semelhante à de outro grupo
ou conjunto de pessoas, foi ou está a ter tratamento diferenciado, ou que um
dado grupo ou conjunto de pessoas em posição diferente da de outro grupo ou
conjunto de pessoas é tratado de forma similar de tal forma que os “povos” que
se queixam são alvo de desvantagem injusta e injustificável, constituindo isso
discriminação.
24 Caso COHRE, parágrafo 223.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
32
115. Nos factos que articulou, a Queixosa defende que o grosso das receitas
previstas dos recursos em Cabinda “reverterão para Luanda, embora apenas
10% ou menos chegará a esse território". A Queixosa não especifica de forma a
mostrar se qualquer grupo de pessoas no Estado Requerido usufrui de uma
maior parte da porção das dotações do que o povo de Cabinda. A Queixosa
também não fornece provas documentais ou quaisquer outras em apoio da sua
reclamação. A Queixosa não apresenta o Acordo e Paz de 2006 a que faz
referência nos factos articulados. Todavia, o Estado Requerido não contesta as
afirmações, admitindo-as de forma parcial na medida em que o Estado Requerido
sustenta que a Província de Cabinda usufrui de estatuto especial, pois recebe até
10% das receitas petrolíferas.
116. A Comissão faz notar que os argumentos do Estado Requerido de que as
receitas especiais de 10% revertem para Cabinda, são em acréscimo a outros
custos infra-estruturais que o governo atribui a essa província. Embora o Estado
Requerido não tenha aduzido quaisquer provas documentais ou outras em apoio
desta afirmação, a Queixosa não contestou a afirmação do Estado Requerido de
que só a Província de Cabinda (mais a Província d Zaire) beneficiam de “estatuto
especial”. Nesta conformidade, a Comissão tomará uma decisão com base nos
argumentos não contestados das Partes.
117. No geral, a Comissão considera que igualdade real ou substancial exige que
grupos anteriormente em posição de desvantagem ou que continuam a estar em
desvantagem num Estado, estão habilitados a certo tipo de tratamento vantajoso,
especialmente nos casos em que tais grupos acarretam com uma parte desigual
do fardo da exploração de recursos naturais nesse Estado.25 Porém, a Comissão
faz ainda notar o argumento do Estado Requerido de que não pode aplicar
medidas destinadas à despesa de receitas apenas em áreas onde elas são
geradas.
25 This is consistent with international best practices. See for instance, the Samaraka decision, parágrafo 103
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
33
118. A Comissão é da opinião de que o princípio da igualdade exige que haja um
equilíbrio entre a reivindicação de um grupo a tratamento vantajoso ou a acção
afirmativa, por um lado, e, por outro, a legítima expectativa de outros grupos de
um Estado à partilha de recursos do Estado. Nesta conformidade, a Comissão
acredita que a interpretação apropriada de igualdade na presente circunstância é
a de que reconhece o direito do povo de Cabinda a receber certas vantagens sem
perigar a sobrevivência de outras pessoas existentes no Estado ou de ameaçar a
contínua existência corporativa do Estado Requerido.
119. Embora a Queixosa defenda que o povo de Cabinda sofra de tratamento
desigual quando comparado ao resto de Angola em termos de níveis mais
elevados de desemprego, pobreza, mortalidade infantil e doenças, não se aduziu
provas ou dados em apoio de tais afirmações. Tal como esta Comissão havia
anteriormente observado, uma parte Queixosa que faça afirmações e alegações
gerais necessita de substanciá-las com provas documentais ou declarações
ajuramentadas ou o testemunho de outros a corroborar.26 Na ausência de provas
a apoiar a afirmação de tratamento desigual, a Comissão não constata que houve
violação do Artigo 19 da Carta .
Alegada violação do Artigo 20 da Carta Africana
120. Baseando o seu argumento numa proclamada distinção geográfica, política,
linguística e cultural do resto de Angola, a Queixosa afirma que o Estado
Requerido violou o direito do povo de Cabinda ao desenvolvimento social e
económico, tal como garantido no Artigo 20 da Carta Africana. A Queixosa
sustenta que o povo de Cabinda está impossibilitado de exercer esse direito
porque organizações que ‘abraçam um ponto de vista singularmente cabindense’
foram banidas pelo Governo de Angola.
121. A Queixosa alega ainda que o usufruto do direito ao desenvolvimento
encontra-se restringido dado que as pessoas que levam a cabo uma campanha
para a autodeterminação económica são detidas por uma questão de rotina. Em
26 Participação-queixa 308/05 – Majuru v Zimbabwe (2008) ACHPR, parágrafo 92
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
34
face disso, a Queixosa alegou que o direito do povo de Cabinda ao
desenvolvimento havia sido violado.
122. O Estado Requerido defende que não violou o Artigo 20 da Carta Africana em
relação ao povo de Cabinda uma vez que o direito à autodeterminação fora
colectivamente cumprido por todo o povo de Angola aquando da independência
em 1975. E mais sustenta o Estado Requerido que têm sido realizadas eleições
democráticas periodicamente, e como cidadãos de Angola, o povo de Cabinda
participa em pleno em tais eleições, tendo elegido 5 dos 220 deputados do
Parlamento angolano.
123. O Estado Requerido defende ainda que Cabinda possui estruturas políticas e
administrativas próprias definidas pela lei angolana. Com base nisto e em virtude
do Artigo 87 da Constituição de Angola, que reconhece que este país constitui
uma sociedade multicultural e plurilinguística, em que as diferentes entidades
devem ser valorizadas e respeitadas, o Estado Requerido defende que não violou
o artigo 20 da Carta Africana em relação ao povo de Cabinda.
124. A Comissão recorda que o Artigo 20 da Carta possui um contexto histórico
particular por ser uma das disposições que tem em vista lidar com a situação de
africanos que permaneceram sob domínio colonial aquando da redacção da
Carta. O Artigo 20 da Carta estabelece que:
1. Todos os povos têm direito à existência. Todos os povos deverão ter o direito
inquestionável e inalienável à autodeterminação. Deverão determinar livremente
o seu estatuto político e assegurar o seu desenvolvimento económico e social,
segundo a via que livremente escolheram.
2. Os povos colonizados ou oprimidos têm o direito de se libertarem do seu estado
de dominação, recorrendo a todos os meios reconhecidos pela comunidade
internacional.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
35
3. Todos os povos têm direito a assistência dos Estados Partes na presente Carta,
na sua luta de libertação contra a dominação estrangeira, quer esta seja de
ordem política, económica ou cultural.
125. A Comissão toma nota do argumento da Queixosa no que se refere à alegada
violação do Artigo 20 da Carta. Em virtude da sua opinião de que o direito à
autodeterminação, o direito dos povos colonizados e oprimidos a libertarem-se
da dominação, e o direito a ajuda na luta de libertação estão reservados aos
povos colonizados, a Comissão não concorda com a Queixosa de que uma história
pré-colonial distinta por si só habilita o povo de Cabinda a reivindicar
unilateralmente esses direitos face ao Estado Requerido.
126. Tal como a Comissão já referiu em jurisprudência sua, na África pós-colonial o
direito à autodeterminação pode ser usufruído dentro dos territórios existentes
e em respeito pleno pela soberania e integridade territorial dos Estados Partes
da Carta.27 A Comissão crê igualmente que o direito a enveredar pelo
desenvolvimento social e económico é alcançável no quadro de um Estado
existente, desde que grupos e comunidades diferentes estejam representados em
instituições responsáveis pela tomada de decisões. Nesta conformidade, a
Comissão não constatou nenhuma violação do Artigo 20 da Carta.
Alegada violação do Artigo 21 da Carta Africana
127. Em relação to Artigo 21, a Queixosa alega que o Estado Requerido violou o
direito do povo de Cabinda a dispor livremente da sua riqueza e recursos
naturais pelo facto do Estado Requerido ter dado licenças e concessões de
recursos petrolíferos na zona continental de Cabinda “sem a participação dos
cabindenses”. A Queixosa defende que os actos do Estado Requerido nesta
matéria constituem espoliação ao abrigo do Artigo 21 da Carta Africana, e
27
Participação-queixa 75/92 - Katangese Peoples' Congress vs Zaire (1995) ACHPR parágrafo 4.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
36
devendo dar azo a um direito de recuperação legal e a indemnização adequada.
O Artigo 21 da Carta Africana diz o seguinte:
1. Todos os povos poderão dispor livremente das suas riquezas e recursos naturais.
Este direito exerce-se no interesse exclusivo das populações. Em nenhum caso
poderá um povo ser privado deste direito.
2. Em todos os casos de espoliação, o povo espoliado tem direito à legítima
recuperação dos seus bens bem como a uma indemnização adequada.
3. A livre disposição das riquezas e dos recursos naturais deverá ser exercida sem
prejuízo da obrigação de se promover a cooperação económica internacional na
base do respeito mútuo, nas trocas equitativas e nos princípios do Direito
internacional.
4. Os Estados Partes na presente Carta comprometem-se, tanto individual como
colectivamente, a exercer o direito de livre disposição das suas riquezas e dos
seus recursos naturais com vista a reforçar a unidade e a solidariedade africanas.
5. Os Estados Partes na presente Carta comprometem-se a eliminar todas as formas
de exploração económica estrangeira, nomeadamente a que é praticada por
monopólios internacionais, a fim de permitir que a população de cada país
beneficie plenamente das vantagens derivadas dos seus recursos nacionais.
128. O Estado Requerido argumenta que por via dos Artigos 94 e 95 da
Constituição, os recursos naturais inserem-se na categoria de itens classificados
como propriedade de domínio público, reservada a servir interesses nacionais e
não interesses locais mais restritos. E mais sustenta o Estado Requerido que a
Província de Cabinda já é alvo de atenção especial face à contribuição que presta
às receitas do petróleo. Afirmando a sua autoridade soberana e legitimidade de
explorar recursos naturais no território angolano, o Estado Requerido desafia a
autoridade e legitimidade da Queixosa de falar em nome do povo de Cabinda no
que se refere à exploração de recursos naturais.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
37
129. A Comissão recorda a sua jurisprudência, a qual conduz a origem do Artigo 21
à era colonial quando recursos humanos e materiais em África eram explorados
em benefício de potências fora do continente.28 Todavia, a Comissão defendeu
igualmente que os direitos contidos no Artigo 21 da Carta são ainda aplicáveis na
era pós-colonial africana em prol de grupos existentes em Estados na medida em
que eles accionam uma obrigação por parte dos Estados Partes em proteger os
seus cidadãos da exploração por potências económicas29 externas e assegurar
que grupos e comunidades, directamente ou por intermédio dos seus
representantes, se envolvam em decisões
relacionadas com a disposição da sua riqueza.30 Todavia, a Comissão reconhece
igualmente o direito dos Estados Partes a supervisionar a disposição da riqueza
no interesse geral do Estado e das suas comunidades.31
130. A Comissão nota que em relação ao Artigo 21 da Carta, a Queixa invoca o
direito do povo de Cabinda a dispor da sua riqueza e recursos naturais, assim
como a receber compensação por recursos já explorados. Quanto a isto, a
Comissão nota que o termo “povos” no Artigo 21 da Carta tanto pode significar
todas as pessoas de um dado Estado ou a “povos” dentro do Estado. A Comissão
acredita que no primeiro contexto, o Artigo 21 da Carta Africana confere
poderes ao Estado Parte para exercer o direito garantido, livre de interferências
de qualquer outro Estado africano ou não africano. Isto tem de ser a explicação
para os números 4 e 5 do Artigo 21 que se referem a Estados Partes.
131. Todavia, a Comissão acredita que “pessoas” dentro de um Estado existente
podem ser beneficiárias do direito consagrado no Artigo 21 na medida em que
este impõe um dever ao Estado Requerido de assegurar que os recursos sejam
efectivamente geridos em benefício único e igual de todas as pessoas de um
Estado. Nesta conformidade, a Comissão Africana é da opinião que um aspecto 28
Participação-queixa 155/96 - Social and Economic Rights Action Center (SERAC) e Center for Economic and
Social Rights (CESR) vs Nigéria (SERAC vs Nigéria) (200) parágrafo 56. 29
SERAC vs Nigéria, parágrafos 57 – 58. 30
Endorois vs Quénia, parágrafo 268. 31
Ibid.
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
38
do direito contido no Artigo 21 da Carta Africana é o dever do Estado envolver
representantes dos seus povos em decisões relacionadas com a gestão da riqueza
nacional e de recursos naturais .
132. O Estado Requerido mostrou que representantes eleitos do povo de Cabinda
estão no Parlamento angolano, o qual exerce uma supervisão fiscalizadora da
gestão de recursos naturais. Tal como esta Comissão fez notar no caso SERAC vs
Nigéria,32 o Estado tem o direito de explorar os recursos naturais existentes no
seu território. Todavia, a Comissão acredita que o Artigo 21 da Carta Africana
pressupõe que esse direito seja mantido à guarda em benefício do povo. Os
argumentos do Estado Requerido de que gere eficazmente os recursos naturais
em benefício de todas as populações em Angola não foram contestados. A
Comissão não constata, portanto, violação do Artigo 21 da Carta .
Alegada violação do Artigo 22 da Carta Africana
133. A alegação da Queixosa de que o Estado Requerido violou o Artigo 22 da
Carta Africana no que diz respeito ao povo de Cabinda baseia-se exclusivamente
no argumento de que o Estado Requerido segue uma política de “angolanização
de Cabinda”. À falta de quaisquer outros argumentos ou provas em apoio dessa
posição, a Comissão Africana constata não ter havido violação.
Alegada violação do Artigo 24 da Carta Africana
134. A Queixosa alega que o Estado Requerido violou o Artigo 24 da Carta
Africana em relação ao povo de Cabinda por, como resultado de actividades de
exploração petrolífera, autorizadas pelo Estado, o ambiente em Cabinda não ser
conducente ao desenvolvimento do povo desse território. A Queixosa argumenta
ainda que as Operações realizadas por companhias tais como a Chevron, e que
são autorizadas pelo Estado Requerido, ocorrem em condições que causam
danos à saúde humana e ao ambiente, e isto aconteceu porque, não havendo uma
monitorização viável por parte da sociedade civil, o Estado Requerido não
assegurou o cumprimento de regulamentos ambientais.
32 Parágrafo 54
Participação-queixa 328/06 – Frente para a Libertação do Estado de Cabinda vs República de Angola
39
135. O Estado Requerido defende que não violou o Artigo 24 da Carta Africana
em relação ao povo de Cabinda uma vez que tomou medidas visando a
preservação do ambiente. O Estado Requerido cita legislação nacional por ele
adoptada para lidar com o desafio da poluição ambiental. E mais sustenta o
Estado Requerido ter obrigado as companhias petrolíferas a operar na área a
responsabilizarem-se pelos danos ocasionados por derrames de petróleo, com
ênfase para a exigência do pagamento de indemnizações a pescadores e seus
familiares. O Estado Requerido também afirma ter estabelecido o Serviço
Nacional de Fiscalização Ambiental que fez o rasteio de pelo menos seis desses
derrames de petróleo, tendo o Ministério do Ambiente procedido à auditoria de
plataformas petrolíferas no mar de Angola a fim de se evitarem mais derrames
na área Com efeito, o Estado Requerido defende que tomou medidas para lidar
com as preocupações da Queixosa.
136. A Comissão Africana faz notar que para além do facto de a Queixosa não ter
aduzido quaisquer provas em apoio da alegação geral de que o direito a um
ambiente satisfatório teria sido violado pelo Estado Requerido, ela, Queixosa, não
disputou ou contestou as afirmações do Estado Requerido. Na ausência de
quaisquer provas em apoio da alegada violação, a Comissão Africana constata
que não houve violação do Artigo 24 da Carta Africana.
Decisão da Comissão Africana
137. Em face do acima exposto, a Comissão Africana constata que não houve
violação dos Artigos 14, 19, 20, 21, 22 e 24 da Carta Africana, tal como alegado
pela Queixosa.
Feito em Banjul, Gâmbia durante a 54ª Sessão Ordinária da Comissão Africana dos
Direitos Humanos e dos Povos, de 22 de Outubro a 5 de Novembro de 2013.