PATOLOGIAS SOCIAIS, SOFRIMENTO E...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Mariana Oliveira do Nascimento Teixeira PATOLOGIAS SOCIAIS, SOFRIMENTO E RESISTÊNCIA Reconstrução da negatividade latente na teoria crítica de Axel Honneth Campinas 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Mariana Oliveira do Nascimento Teixeira

PATOLOGIAS SOCIAIS, SOFRIMENTO E RESISTÊNCIA

Reconstrução da negatividade latente na teoria crítica de Axel Honneth

Campinas

2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos

Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10/10/2016,

considerou a candidata Mariana Oliveira do Nascimento Teixeira aprovada.

Prof. Dr. Marcos Severino Nobre

Profa. Dra. Monique Hulshof

Prof. Dr. Rurion Soares Melo

Prof. Dr. Felipe Gonçalves Silva

Prof. Dr. Denilson Luis Werle

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica da aluna.

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Aos meus avós

Rubens de Oliveira, Sarah Arantes e Zilah Torres

e à memória do meu avô

Olegário do Nascimento Teixeira

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Agradecimentos

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico viabilizou

este trabalho com a concessão de bolsa de doutorado no país (processo 142306/2010-0) e de

bolsa de estágio no exterior (processo 290091/2011-0), implementada junto à Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e ao Deutscher Akademischer

Austauschdienst. Sem uma política efetiva de incentivo à pesquisa, faltariam as condições

materiais imprescindíveis para a realização de qualquer pesquisa acadêmica. Foi fundamental,

também, a estrutura e o apoio do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, pelo

que agradeço ao corpo docente do Departamento de Filosofia e aos funcionários técnico-

administrativos do instituto, em particular aos da Secretaria de Pós-Graduação, nas pessoas de

Sônia Cardoso, Daniela Grigolletto e Maria Rita Gandara. Deixo aqui, também, o meu

agradecimento ao Sérgio Costa, que me recebeu no Lateinamerika-Institut da Freie

Universität de Berlim em 2012-2013, e possibilitou, junto à cooperação internacional entre

CNPq, CAPES e DAAD, um período que se revelou indispensável e transformador não só

para a pesquisa, mas também para a pesquisadora.

Pela leitura e discussão dos estágios iniciais deste trabalho durante o exame de

qualificação, bem como pelos desafios colocados para o seguimento da pesquisa, agradeço à

Yara Frateschi e ao Rúrion Melo. Ao Rúrion, ao Felipe Gonçalves, ao Denílson Werle e à

Monique Huslof, agradeço por terem aceitado ler e debater a versão final do texto. A todos,

sou muito grata pela atenção e o cuidado dedicados.

Versões parciais do texto receberam estímulos cruciais ao serem apresentadas e

discutidas em uma série de eventos: a conferência Philosophy and Social Science em Praga

(2013), a conferência International Critical Theory Conference em Roma (2015 e 2016), a

conferência Thinking Beyond Capitalism em Belgrado (2015), o congresso e o fórum da

International Sociological Association em Yokohama (2014) e Viena (2016), e o workshop

Social Pathologies and Mutual Recognition em Jyväskylä (2016). Agradeço particularmente

aos organizadores e participantes do workshop Anerkennung und Freiheit, realizado em

janeiro de 2016 na Universidade de Zurique, no qual tive a valiosa oportunidade de discutir os

argumentos deste trabalho com o Prof. Dr. Axel Honneth. Nestes e em outros eventos

acadêmicos, tive a satisfação de estabelecer laços de amizade e discussão com colegas como

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Arvi Särkelä, David Strecker, Eleonora Piromalli, Igor Shoikhedbrod, Marjan Ivkovic, Melis

Menent, Petra Gümplová, Radu Neculau, Simon Susen e Victor Kempf.

O Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e

Planejamento) sempre se mostrou um espaço privilegiado não apenas de aprendizado e

formação teórica, mas também de cooperação e pesquisa coletiva. Agradeço à coordenação do

NDD, atual e pregressa: José Rodrigo Rodriguez, Ricardo Terra e Marcos Nobre, bem como a

todos os membros do núcleo, entre os quais gostaria de mencionar os amigos Ricardo

Crissiuma, Jonas Medeiros, Felipe Gonçalves, Adriano Januário, Rúrion Melo, Ingrid Cyfer,

Inara Marin, Raphael Neves, Bianca Tavolari, Fernando Mattos, Geraldo Miniuci, Evorah

Cardoso, Samuel Barbosa, Natália Neris, Fabíola Fanti, Elaini Silva e Gabriel Brito. As

discussões no recentemente formado subgrupo “Reconstrução” têm sido extremamente

fecundas; agradeço particularmente ao Luiz Repa, cujas provocações desde sua participação

na banca de meu mestrado certamente foram decisivas para a direção do caminho trilhado até

aqui, e à Nathalie Bressiani, com quem tive a sorte de compartilhar o objeto de estudo e com

quem pude aprender a cada vez que discutimos sobre os impasses da teoria crítica

contemporânea.

Um agradecimento muito especial registro aqui ao Marcos Nobre, que aceitou a

tarefa (não raro ingrata) de me orientar desde 2004, quando o projeto era estudar o conceito de

“massa” na Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer. Desde então, os projetos

mudaram – fui para trás e para frente, de Lukács a Honneth, passando por Marx, Weber e Iris

Young –, mas o estímulo e a confiança do Marcos permaneceram, inclusive em momentos

nos quais eu mesma já não tinha certeza das minhas possibilidades. Sou grata não só pela

leitura atenta, criteriosa e franca, pela enorme paciência e compreensão, por todas as

oportunidades abertas, e não foram poucas, mas também pelo exemplo que ele representa para

mim da combinação de um pensamento rigoroso e perspicaz com uma atitude generosa e

engajada.

Pela convivência prazerosa, instigante e solidária – combinação, aliás, bastante

rara – agradeço aos amigos e parceiros do Grupo de Teoria Crítica da Unicamp: Adriano

Januário, Bárbara Santos, Bruna Batalhão, Divino Amaral, Gabriela Maia, Maria Érbia, Olavo

Ximenes, Paulo Yamawake, Rafael Palazi e Ricardo Lira. Um agradecimento especial

registro aqui ao Fernando Bee e ao Raphael Concli, que tantas vezes me acolheram e fizeram

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com que eu me sentisse em casa, seja em Barão Geraldo ou qualquer outro lugar; bem como à

Inara Marin, que representa para mim uma inspiração sem par em termos profissionais e,

acima de tudo, pessoais.

Sou igualmente grata aos companheiros de Alemanha, que se tornaram para toda a

vida. Em Marburg, o inverno se tornou não apenas suportável, mas genuinamente aprazível na

convivência com Caio Vasconcellos, Emmanuel Nakamura, Luís Fernando Furtado, Vladimir

Puzone e Sofia Stafidou; e Berlin se tornou ainda mais incrível na companhia dos já

mencionados e de Carise Fernandes, Cathrin Anja, Fábio Nolasco, Gabriel Furtado, Gabriel

Valladão, Guilherme Leite, Júlia Neves, Krista Lillemets, Lígia Campos, Luciano Gatti,

Matthias Dettke e Tânia Kuhnen. Aos amigos de antes, durante e depois: Arthur Welle, Carlos

Pissardo, Elisa Nickel, Eugênio Gonçalves, Fábio de Maria, Felipe Durante, Jeremias Perez,

Lucas Martins, Marcelo Ribeiro, Rafael do Nascimento Cesar, Renata Cotrim e Ricardo

Normanha. À Ximena, Emilia, Inés, Stella e Eduardo. À Juliana Carlos e ao Caio Pedrosa,

agradeço o estímulo e a amizade que nunca faltaram.

Procurei palavras para qualificar o apoio dos meus pais, Haydée Torres e

Bernardo Teixeira, mas não encontrei. Acho que elas ainda estão por ser inventadas. Na falta

delas, recorro a termos tão clichês quanto verdadeiros: meus pais permaneceram ao meu lado

de maneira incondicional, porém delicada. Sei que isso não é algo que se possa dar de barato,

mesmo se tratando de família. Junto ao Jan-Peter Bartels, minha irmã, Laura Teixeira, tornou

minha estadia na Alemanha muito mais acolhedora. Devo a ela o companheirismo e o apoio

em momentos decisivos da pesquisa e de toda a vida. Aprendi muito com a Laura; acima de

tudo, aprendi a não mais vê-la com os olhos condescendentes de irmã mais velha, e assim

admirá-la genuinamente. Espero, um dia, ser como ela.

O Arthur Bueno está na escrita desta tese de todas as maneiras, possíveis e

imagináveis. Qualquer tentativa de burocraticamente nomeá-las, classificá-las e colocá-las em

uma lista, aqui, só faria apequenar uma Zusammenwirkung que ultrapassa os limites da forma

acadêmica e transborda para aquilo a que chamamos vida. Nele, estou comigo mesma.

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A necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade.

Theodor Adorno (Dialética negativa)

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Resumo

Esta tese reconstrói a obra de Axel Honneth desde os estudos preparatórios para a teoria da

luta por reconhecimento até os desenvolvimentos mais recentes, vinculados à ideia de

liberdade social. A partir da análise das insuficiências teóricas do modelo crítico do

reconhecimento, examina-se a possibilidade de encontrar, na própria lógica interna da teoria

honnethiana, elementos que contribuam para superá-las. Tendo como referência sua

perspectiva acerca dos potenciais de resistência frente a experiências de injustiça vivenciadas

pelos atores sociais como sofrimento, são identificadas e discutidas três fases no pensamento

do autor. 1) Modelo crítico do reconhecimento: nas décadas de 1980 e 1990, Honneth recorre

à ideia de interesse emancipatório, segundo a qual o bloqueio da autorrealização causa nos

atores sociais concernidos algum tipo de mal-estar que, por sua vez, guarda potenciais

motivacionais para a resistência à dominação e a luta pela libertação do sofrimento. A

experiência de injustiça representa, assim, uma oportunidade para os atores sociais

articularem de modo reflexivo as expectativas normativas que conformam o seu repertório

moral. 2) Fase de transição: durante os anos 2000, apresenta-se nos escritos de Honneth um

bloqueio sistemático na conexão motivacional entre sofrimento e resistência. Nesse contexto,

apesar de a ideia de sofrimento permanecer central, seu potencial de impulsionar uma

resistência ativa nos atores concernidos sai de cena como consequência de um diagnóstico de

época mais sofisticado, que identifica patologias sociais justamente na erosão do aspecto

motivacional da experiência de sofrimento. 3) Modelo crítico da liberdade social: a partir da

década de 2010, a ausência na obra do autor de análises sobre a possibilidade de resistência à

dominação social pode ser atribuída à adoção de um modelo teórico de tendência sistêmica.

Com o foco não mais nas experiências de desrespeito nem nas patologias sociais, mas nas

chamadas anomalias sociais – entendidas como desequilíbrios funcionais na reprodução social

–, Honneth deixa em segundo plano precisamente seu impulso teórico inicial: a busca por

superar, no pensamento crítico, as abordagens funcionalistas que impediam que se revelasse,

no âmbito da própria vida social, um potencial latente de resistência. Honneth abandona o

vínculo fundamental, anteriormente defendido, entre desrespeito, sofrimento e disposição para

a resistência. Tal ruptura não é fruto de um diagnóstico de tempo, como no caso das

patologias sociais, mas de uma reorientação teórica em direção à perspectiva do observador,

em detrimento da do participante, minando com isso o poder explicativo e normativo da ideia

de interesse emancipatório. Todavia, uma noção ampliada de reconstrução normativa com

foco na negatividade latente da realidade social (desenvolvida a partir da própria obra de

Honneth, mas indo além de suas formulações mais recentes) pode assumir um caráter

emancipatório – não porque de algum modo desfaz o dano causado pelo sofrimento, mas

antes porque contribui para o trabalho reflexivo, distorcido por fenômenos patológicos, de

articulação social do sofrimento individualmente experienciado. É, assim, na interação

concreta entre as perspectivas do observador e do participante, mediada pela colaboração

entre filosofia, teoria social e pesquisas empíricas, que uma teoria crítica reconstrutiva pode

fazer justiça às suas intenções práticas.

Palavras-chave

Honneth, Axel, 1949-; Teoria crítica; Reconhecimento; Patologia; Negatividade.

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Abstract

This thesis reconstructs the work of Axel Honneth from his preparatory studies for the theory

of the struggle for recognition to his more recent approach focused on the idea of social

freedom. From an analysis of the theoretical insufficiencies of the critical model of

recognition, I examine the possibility of finding, within the internal logic of Honneth’s theory,

elements that can contribute to overcome them. Three phases are identified and discussed in

the author’s thinking, regarding his take on the social potentials for resistance to experiences

of injustice that are lived by social actors as suffering. 1) The critical model of recognition: In

the 1980s and 1990s, Honneth relies heavily on the idea of emancipatory interest, according

to which obstacles to self-realization cause, in the social actors concerned, some kind of

malaise that holds, in turn, a motivational potential for resistance to domination and for a

struggle for liberation from suffering. The experience of injustice represents, therefore, an

opportunity for social actors to articulate in a reflective way the normative expectations that

conform their moral repertoire. 2) Transition phase: During the 2000s, a systematic blockage

in the motivational connection between suffering and resistance appears in Honneth’s

writings. In this context, although the idea of suffering remains central, its potential to foster

active resistance drops out of sight as a consequence of a more elaborate time diagnosis that

identifies social pathologies precisely in the erosion of the motivational aspect of experienced

suffering. 3) The critical model of social freedom: From the 2010s on, the absence of analyses

on the possibility of resistance to social domination in Honneth’s writings can be attributed to

the adoption of a theoretical model with systemic-theoretical tendencies. No longer focusing

on experiences of disrespect or social pathologies, but rather on so-called social anomalies –

understood as functional imbalances in social reproduction –, Honneth risks weakening

precisely his initial theoretical impulse: the effort to overcome, in the critical tradition,

functionalist approaches that prevent it from revealing latent potentials for resistance within

social life itself. Honneth abandons the fundamental link he previously advocated between

disrespect, suffering, and disposition for resistance. Such rupture is not the result of a time

diagnosis, as in the case of social pathologies, but of a theoretical reorientation towards the

viewpoint of the observer, to the detriment of that of the participant, thereby undermining the

explanatory and normative power of the idea of emancipatory interest. However, a broadened

notion of normative reconstruction that focuses on the latent negativity of social reality

(developed from Honneth’s own work but going beyond its more recent formulations) can

assume an emancipatory character – not because it undoes the damage caused by suffering,

but rather because it contributes to the reflexive work, distorted by social pathologies, of

socially articulating individually experienced suffering. It is, thus, in the concrete interaction

between the perspectives of the observer and of the participant, mediated by the collaboration

between philosophy, social theory, and empirical research, that a reconstructive critical theory

can do justice to its practical intentions.

Key words

Honneth, Axel, 1949-; Critical theory; Recognition; Pathology; Negativity.

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Lista de abreviaturas utilizadas1

AiH (1980): Arbeit und instrumentales Handeln (Trabalho e ação instrumental)

DvE (1985): Die verletzte Ehre (A honra ferida)

DzW (1984): Die zerrissene Welt der symbolischn Formen (O mundo dilacerado das formas simbólicas)

EoR (1985): Eine ontologische Rettung der Revolution (Um resgate ontológico da revolução)

GdA (2002): Der Grund der Anerkennung (O fundamento do reconhecimento)

GaG (2007): Gerechtigkeitstheorie als Gesellschaftsanalyse (Teoria da justiça como análise da sociedade)

GuI (1977): Geschichte und Interaktionsverhältnisse (História e relações de interação)

IuM (1990): Integrität und Missachtung (Integridade e desrespeito)

IvP (1977): Zur Interaktionsanalyse von Politik (et Rainer Paris) (Para uma análise interacionista da política)

KdM (1986): Kritik der Macht (Crítica do poder)

KdG (2014): Krankheiten der Gesellschaft (Doenças da sociedade)

KuA (1992): Kampf um Anerkennung (Luta por reconhecimento)

LaU (1999): Leiden an Unbestimmtheit (Sofrimento de indeterminação)

LdE (1989): Logik der Emanzipation (Lógica da emancipação)

MKU (1984): Moralischer Konsens und Unrechtsempfindung (Consenso moral e sentimento de injustiça)

MsK (1981): Moralbewusstsein und soziale Klassenherrschaft (Consciência moral e dominação social de classe)

PaS (2008): Philosophie als Sozialforschung (Filosofia como pesquisa social)

PdS (1994): Pathologien des Sozialen (Patologias do social)

PdV (2004): Eine soziale Pathologie der Vernunft (Uma patologia social da razão)

RdF (2011): Das Recht der Freiheit (O direito da liberdade)

RGV (2000): Rekonstruktive Gesellschaftskritik unter genealogischem Vorbehalt (Crítica social reconstrutiva sob ressalva genealógica)

RuI (1977): Reproduktion und Interaktion (et Rainer Paris) (Reprodução e interação)

1 As páginas após as abreviações são acompanhadas de uma indicação do idioma da edição a que

pertencem, de acordo com a seguinte nomenclatura: alemão (de), português (pt), inglês (en), italiano (it) ou espanhol (es).

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UoA (2003): Umverteilung oder Anerkennung? (et Nancy Fraser) (Redistribuição ou reconhecimento?)

WdZ (1986): Eine Welt der Zerrissenheit (Um mundo de dilaceração)

ZlB (1979): Zur ‘latenten Biographie’ von Arbeiterjugendlichen (Para uma ‘biografia latente’ da juventude trabalhadora)

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Sumário

Introdução 17

I - RECONHECIMENTO 32

1. Estágios reflexivos de uma teoria crítica da sociedade 33

1.1. Luta e normatividade: os limites da teoria crítica 34

1.1.1. Reprodução sem interação: Althusser e o marxismo estruturalista 35

1.1.2. Luta por poder, poder sem luta: Foucault 41

1.1.3. Cultura como mediação, cultura como controle: Horkheimer e Adorno 51

1.1.4. Sistema normativamente neutro, mundo da vida sem conflitos: Habermas 58

1.2. Os estudos culturais e a dimensão moral dos conflitos sociais de classe 70

1.2.1. Reavaliação do marxismo: trabalho e normatividade 70

1.2.2. Sofrimento moral, consciência de injustiça e resistência quotidiana 79

1.2.3. Limites dos estudos culturais: universalidade e criatividade normativa 102

2. A gramática moral dos conflitos sociais 107

2.1. História da teoria 108

2.1.1. Luta por autoconservação: Maquiavel e Hobbes 108

2.1.2. Luta por reconhecimento: Hegel 110

2.1.3. O reconhecimento no pensamento pós-hegeliano: Marx, Sorel e Sartre 120

2.1.4. Transformação da ideia hegeliana: Mead 127

2.2. Fenomenologia 136

2.2.1. Padrões de reconhecimento e formas de desrespeito (modo de apresentação) 137

2.2.2. Da fenomenologia negativa do desrespeito à teoria positiva do

reconhecimento (modo de investigação) 148

Excurso I. Patologias do social 164

II - PASSAGEM 170

3. Uma controvérsia político-filosófica 171

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3.1. Crítica da teoria da luta por reconhecimento (as objeções de N. Fraser) 172

3.1.1. Crítica do conceito de experiência: psicologização 176

3.1.2. Crítica da noção de autorrealização: autoritarismo 179

3.1.3. Crítica da perspectiva da integração social: reducionismo 181

3.2. Defesa do modelo crítico do reconhecimento (as réplicas de A. Honneth) 183

3.2.1. Experiências de injustiça 183

3.2.2. Autorrealização 188

3.2.3. Integração e reprodução social 199

3.3. Balanço do debate: rupturas e continuidades 212

4. Patologias da liberdade 216

4.1. Direito e liberdade no Hegel tardio 217

4.1.1. De Jena para Berlim: ressaltando as continuidades 217

4.1.2. A noção hegeliana de direito e as concepções de liberdade individual 218

4.2. Diagnóstico de época e teoria da justiça 220

4.2.1. Valor ético e patologias da liberdade entendida como

direito abstrato e moralidade 222

4.2.2. A função terapêutica da eticidade: libertação do sofrimento,

para a autorrealização 225

4.2.3. Autorrealização, reconhecimento e formação: condições sociais da eticidade 227

4.2.4. A arquitetônica da eticidade: individualização e universalização crescentes 229

4.2.5. O perigo da superinstitucionalização das esferas éticas 231

4.3. A passagem do modelo do reconhecimento para o da liberdade 236

Excurso II: Patologias da razão 245

III - LIBERDADE 253

5. Esboço de uma eticidade democrática 254

5.1. Presentificação histórica: os sentidos da liberdade como conceito filosófico 255

5.1.1. Direito 255

5.1.2. Moralidade 257

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5.1.3. Vida ética ou eticidade 260

5.2. Patologias sociais e desenvolvimentos sociais anômalos 267

5.2.1. Patologias sociais: judicialização e moralização 267

5.2.2. As anomalias da liberdade social: exclusão, desagregação e alienação 281

5.2.3. A correlação (Zusammenspiel) entre as esferas éticas 299

5.2.4. Patologias versus anomalias 304

Excurso III: Doenças da sociedade 309

IV - RECONSTRUÇÃO 318

6. Um modelo reconstrutivo de teoria crítica 319

6.1. Os sentidos da reconstrução: teórico-conceitual ou histórico-social 321

6.2. Formulações da reconstrução normativa 332

6.2.1. Crítica reconstrutiva e ressalva genealógica: processos de aprendizagem e

deslocamentos de sentido 332

6.2.2. Uma crítica interna reconstrutiva forte 336

6.2.3. Premissas da reconstrução normativa: normatividade, imanência, seletividade e

transcendência 338

6.2.4. Reconstrução filosófica e pesquisa social empírica 349

Considerações finais:

Reconstruindo a passagem do reconhecimento à liberdade 373

Referências bibliográficas 370

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Introdução

Talvez o melhor ponto de entrada para introduzir o tema desta tese seja examinar

o título escolhido. Começarei, mais precisamente, pelo subtítulo. Trata-se, aqui, de uma

reconstrução da negatividade latente na teoria crítica de Axel Honneth em dois

sentidos. De um lado, a intenção é mostrar o lugar que a ideia de “reconstrução da

negatividade latente” tem na obra do autor. De outro, contudo, pretendo reconstruir uma

negatividade que, apesar de constitutiva, está por vezes latente na teoria de Honneth.

“Latente”, é importante lembrar, refere-se a algo não aparente, oculto, mas também, ao

mesmo tempo, algo potencial, em germe, algo que pode vir a ser ativado, desenvolvido. A

reconstrução, portanto, tem esse duplo intento: revelar e desdobrar algo que está em estado

de latência.

Que direção, pode-se perguntar então, esse desdobrar deve tomar? Afinal, a

reconstrução pode levar a diferentes caminhos, a depender dos objetivos de quem a realiza.

Aqui, a teoria de Honneth é reconstruída com a intenção de atingir a meta que ela própria se

fixou, como na definição esboçada por Jürgen Habermas acerca da reconstrução do

materialismo histórico. A ideia é decompor e recompor uma teoria que “carece de revisão,

mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar”.2 O texto busca, assim,

compreender os pressupostos e as implicações da teoria honnethiana do reconhecimento, bem

como de suas transformações, para então, a partir desse quadro geral, identificar insuficiências

ou mesmo deficiências teóricas e, em seguida, averiguar a possibilidade de encontrar na

própria lógica interna da teoria honnethiana – a partir de potenciais não explorados e

caminhos promissores não trilhados – elementos que possam ajudar a superá-las. Trata-se de

uma análise crítica do projeto teórico de Honneth, mas uma análise que é imanente às

intenções mais gerais desse projeto mesmo.

Mas o que se pode considerar que seja a meta que a própria teoria se fixou, no

caso do projeto crítico de Honneth? O título dado à tese – Patologias sociais, sofrimento e

resistência – contém os três elementos que, articulados de determinada maneira, indicam

aquilo que vejo como o mote central de tal projeto: a investigação acerca da possibilidade de

2 Habermas, 1983 [1976]: 11.

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resistência frente a experiências de injustiça que são vivenciadas pelos atores sociais de modo

doloroso, isto é, como sofrimento. A possibilidade de resistir a situações sociais de opressão é

dada, no modelo crítico de Honneth, pela motivação que advém do interesse emancipatório na

libertação com relação ao sofrimento. Trata-se, entretanto, apenas de uma possibilidade. O

seu inverso, isto é, quando há um bloqueio sistemático na conexão motivacional entre

sofrimento e resistência, pode ser concebido então como uma patologia social.

Ao longo do texto, procuro mostrar que esta leitura do projeto teórico de Honneth

é plausível, e também fecunda, na medida em que procura trazer à tona o seu potencial para

uma análise crítica do tempo presente.

*

Sucessor no posto de Jürgen Habermas no Departamento de Filosofia da Goethe-

Universität e atual diretor do Institut für Sozialforschung, ambos em Frankfurt, Honneth está

entre os mais proeminentes expoentes contemporâneos da teoria crítica da sociedade, tendo

inaugurado o que se chamou de terceira geração3 dessa tradição de pensamento que

despontou na primeira metade do século passado em torno das figuras centrais de Theodor

Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse.4 Seu livro mais conhecido,

Luta por reconhecimento (1992), tornou-se um marco incontornável não apenas no contexto

da teoria crítica, mas da filosofia social e política de modo geral, fazendo parte de uma

tendência recente de retomada do pensamento hegeliano.5 Propostas de desenvolvimento e

aplicação da teoria do reconhecimento multiplicaram-se com a publicação de monografias e

coletâneas não apenas na Alemanha,6 como também nos contextos francófono,

7 anglo-saxão

8

3 Cf. Alexander & Lara (1996), Anderson (2000 e 2011), Basaure (2011c) e Petersen & Willig (2004).

4 Sobre as origens e os desenvolvimentos da primeira geração da teoria crítica, cf. os notórios estudos de

Wiggershaus (1986), Dubiel (1985) e Jay (2008 [1973]). Cf. também a caracterização dos círculos interno e

externo dos autores ligados ao Instituto feita por Honneth (1999 [1987]). Habermas é considerado o principal

autor da segunda geração da teoria crítica, que inclui também Albrecht Wellmer, Oskar Negt e Claus Offe,

entre outros.

5 Tendência que inclui autores como Charles Taylor, Michael Walzer, David Miller, Robert Pippin, Terry

Pinkard, Robert Bradom, John McDowell e Jean-François Kervégan, entre outros. Sobre a interpretação de

alguns desses autores acerca da teoria hegeliana (particularmente do significado da Fenomenologia do

espírito), cf. Nobre (2013a).

6 Cf. Busch & Zurn (2009 [orgs.]), Habermas (2004 [1994]), Halbig & Quante (2003 [orgs.]), Iser (2008) e

Wimbauer, Henninger & Gottwald (2007 [orgs.]).

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e nórdico9, entre outros. No Brasil, também, aos poucos tem se estabelecido uma produção

teórica centrada na teoria do reconhecimento e na obra de Honneth em seu conjunto.10

Além

das coletâneas e monografias, há uma infinidade de artigos sobre o tema, e cabe destacar que

diversos periódicos dedicaram números especiais à teoria de Honneth em particular, ou à

teoria do reconhecimento de modo geral.11

Entre as vantagens mais comumente atribuídas à renovação da teoria crítica

levada a cabo por Honneth, destacam-se a intenção de reforçar o vínculo entre uma teoria

filosófica de intenção crítica e normativa e pesquisas de teoria social de cunho empírico, a

proposta de trazer para o primeiro plano a questão da motivação dos atores sociais, e o esforço

em jogar luz sobre formas quotidianas de dominação e resistência.

Cumpre notar, decerto, que a direção tomada por Honneth em seu modelo crítico

naturalmente está longe de gozar de uma apreciação unânime.12

Ao contrário, a teoria

honnethiana da luta por reconhecimento esteve no centro de diversos debates e controvérsias,

não apenas no embate com pensadores de outras tradições conceituais, mas mesmo no próprio

contexto da teoria crítica. Seja por parte de estudiosos da teoria crítica voltados para a

primeira e a segunda gerações, seja por parte de autores contemporâneos que se propõem a

desenvolver modelos críticos alternativos, a teoria honnethiana tem sido objeto de diversas

contestações ou correções parciais, que visam apontar (e, por vezes, superar) aspectos

considerados problemáticos, bem como de reprovações mais gerais e contundentes, e mesmo

7 Cf. Bankovsky & Le Goff (2012 [orgs.]), Battegay & Payet (2008 [orgs.]), Caillé (2007 [org.]), Caillé &

Lazzeri (2009 [orgs.]), Carré (2013), Deranty, Petherbridge, Rundell & Sinnerbrink (2007 [orgs.]), Lazzeri &

Nour (2009 [orgs.]) e Renault (2004a e 2004b [2000]).

8 Cf. Brink & Owen (2007 [orgs.]), Connolly, Leach & Walsch (2007 [orgs.]), Deranty (2009), Markell

(2003), McBride (2013), O’Neill & Smith (2012 [orgs.]), Petherbridge (2011 [org.] e 2013), Thompson

(2006) e Zurn (2015).

9 Cf. Jakobsen & Lysaker (2015 [orgs.]) e Ikäheimo & Laitinen (2011 [orgs.]).

10 Cf. Bressiani (2015), Mattos (2006), Melo (2013a [org.]), Sobottka (2015) e Silva (2008).

11 Cf. os números especiais de: Theory, Culture & Society (2001), Inquiry (2002), Acta Sociologica (2004),

Revue du MAUSS (2004), European Journal of Political Theory (2007 e 2009), Civitas (2008 e 2009),

Distinktion (2012), Ethical Theory and Moral Practice (2013), Krisis (2013), Sociologias (2013), Critical

Horizons (2015), Social and Political Thought (2015), Zeitschrift fur kritische Theorie und Philosophie

(2015).

12 Sobre a ideia de modelo crítico, cf. Nobre (2004 e 2008b). Cf. também Nobre (2013b) para a relação entre

modelo e paradigma crítico.

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algumas rejeições peremptórias. As objeções mais frequentes direcionadas à teoria da luta por

reconhecimento indicam deficiências de diferentes ordens, e podem ser agrupadas nos

seguintes eixos:

Déficit histórico ou de imanência. A teoria honnethiana do reconhecimento apoia-

se em uma concepção (mesmo que fraca) de natureza humana, isto é, em uma determinada

concepção seja de necessidades constantes para a autorrealização, seja do processo de

formação da identidade e da subjetividade humanas. Trata-se de um superávit filosófico-

antropológico. Por não ser suficientemente histórico, o modelo crítico de Honneth perde

plausibilidade empírica em um contexto pós-metafísico, além de flertar com uma espécie de

autoritarismo epistemológico na medida em que corre o risco de atribuir aos atores sociais

metas de autorrealização que lhes são estranhas.13

Déficit econômico. A teoria honnethiana do reconhecimento limita-se ao aspecto

cultural ou simbólico da dominação e dos conflitos sociais. Aproximando-se da perspectiva

culturalista dos autores ligados à discussão das identity politics e do multiculturalismo, ela

foca prioritariamente nas lutas identitárias de grupos sociais culturalmente marginalizados, e

por isso negligencia as lutas de classe e as injustiças sociais ligadas à distribuição desigual de

recursos materiais sob o capitalismo,14

bem como a complexidade própria do mundo do

trabalho. Além disso, tentativa de Honneth – motivada justamente por esse tipo de crítica – de

dar conta da esfera econômica a partir da teoria do reconhecimento não foi capaz de superar o

déficit econômico, de forma que seria mais proveitoso se o autor houvesse simplesmente

aceitado os limites do paradigma do reconhecimento.15

Déficit sistêmico. Ao descartar a relevância da tese da tecnocracia como

diagnóstico de época e rejeitar a concepção estratégica de ação racional como instrumento de

análise social, a teoria do reconhecimento fica presa a um reducionismo moral na explicação

13

Apontam consequências problemáticas da centralidade de uma antropologia filosófica na teoria de Honneth

(especialmente em Luta por reconhecimento): Alexander & Lara (1996), Cooke (2006), Fraser (2003a e

2003b), Kompridis (2004), McNay (2008b), Melo (2013b), Pippin (2000) e Zurn (2000).

14 Cf. Fraser (2003a). Nesse sentido, Thompson (2014) considera o pensamento de Honneth uma “virada neo-

idealista” na teoria crítica.

15 Cf. Fraser (2003b) e Zurn (2005).

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da integração e especialmente da reprodução social.16

Põe-se a perder, assim, uma das

maiores contribuições da primeira geração da teoria crítica, bem como a complexidade do

paradigma desenvolvido por Habermas, apoiado sobre a distinção entre agir comunicativo e

agir instrumental.

Déficit institucional. A teoria honnethiana do reconhecimento diz respeito

unicamente a relações intersubjetivas, isto é, ao nível horizontal da interação entre sujeitos

individuais, e não permite que se compreenda, por isso, a dimensão “vertical”, institucional ou

estrutural da dominação social.17

Déficit político. Assim como a distribuição desigual de recursos materiais,

também a distribuição assimétrica de poder foge do escopo da teoria do reconhecimento, o

que leva à dificuldade de Honneth em lidar com os aspectos políticos da dominação e dos

conflitos sociais.18

Déficit de negatividade. A noção de reconhecimento é excessivamente otimista e

menospreza os aspectos destrutivos, violentos e belicosos – em uma palavra: negativos – da

interação humana e da própria ideia de reconhecimento; falta à teoria honnethiana, portanto,

uma consideração adequada da ambivalência do reconhecimento.19

Outra versão do

argumento considera que Honneth não deveria ter desenvolvido uma teoria da noção positiva

de reconhecimento, mas sim do desrespeito (isto é: da negação ou distorção do

reconhecimento), o que estaria mais em acordo com a perspectiva da teoria crítica de modo

geral.20

16

Cf. Feenberg (1994).

17 Cf. McNay (2008a, 2008b), Renault (2011) e Seglow (2009).

18 Cf. Allen (2010), Basaure (2011b), Chambers (2004), Deranty & Renault (2007), Foster (1999), Kalyvas

(1999), Lubenow (2010), Melo & Werle (2007 e 2013). Basaure (2011b: 236) fala em uma “deficiência

política” (e propõe o conceito de “reconhecimento político”), Deranty & Renault (2007: 99) em um

“desenvolvimento insuficiente do político”, e Melo & Werle (2007 e 2013) em um “déficit político” da teoria

honnethiana do reconhecimento.

19 Cf. Alexander & Lara (1996), Bedorf (2010), Bertram & Celikates (2015), Celikates (2007), Forst (2007a),

Jaeggi (2013), Kompridis (2004), Markell (2003), McBride (2013) e McNay (2008a).

20 Cf. Bader (2007) e Brink (2007).

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Déficit normativo ou de transcendência. A teoria honnethiana do reconhecimento

apoia-se em experiências meramente subjetivas ou psicológicas de sofrimento, de modo que

lhe falta uma fundamentação normativa sólida. Sem um critério externo ao ponto de vista dos

atores sociais, que lhe permita distinguir entre demandas justificadas e injustificadas por

reconhecimento, a proposta teórica de Honneth corre o risco de assumir uma perspectiva

acrítica e ingênua frente a movimentos sociais de caráter reacionário ou opressor, por

exemplo.21

Outra versão do argumento objeta a afirmação do real que é vista como

consequência da atribuição de um conteúdo moral ao existente – não às demandas e

sentimentos dos atores sociais, mas antes às normas e instituições vigentes (o que fica claro na

forma como Honneth aborda questões ligadas à família e ao casamento, por exemplo, que é

reiteradamente criticada do ponto de vista feminista).22

Trata-se aqui, portanto de um déficit

utópico, isto é, de criatividade normativa.23

Há que se ressaltar, ainda, o perigo representado

pela confiança depositada pela teoria honnethiana em processo de aprendizagem que resulta

das lutas sociais por reconhecimento e que redunda em uma noção de progresso intimamente

vinculada às sociedades desenvolvidas do Ocidente (aspecto criticado do ponto de vista dos

estudos pós-coloniais e da tentativa de descolonização da teoria crítica).24

Esses eixos não se distinguem claramente uns dos outros. Às vezes, as objeções se

opõem, por certo; muitas vezes, ao contrário, elas se entrelaçam e se reforçam mutuamente.25

Algumas propõem correções e complementações de pontos específicos, outras apontam

deficiências que poderiam ser sanadas com deslocamentos teóricos de maior monta, e outras,

ainda, indicam a necessidade de abandonar qualquer modelo teórico centrado na categoria do

reconhecimento. Em termos do que interessa a esta tese, o que as objeções apresentadas têm

21

Cf. Alexander & Lara (1996), Forst (2007b), Fraser (2003a e 2003b), Kalyvas (1999), Kompridis (2004) e

McNay (2008a e 2008b).

22 Cf. Young (2007) e Fraser (2003b).

23 Essa crítica intensificou-se após as publicações mais recentes de Honneth que tratam da ideia de

reconstrução normativa. Cf. Schaub (2015) e McNeill (2015).

24 Cf. Allen (2016).

25 Não é difícil perceber como podem estar relacionadas as críticas dos déficits econômico, sistêmico e

institucional, por exemplo, ou então dos déficits institucional, político e de negatividade. Por outro lado,

muitas vezes (mesmo que não necessariamente) a crítica do déficit normativo aponta em uma direção oposta

à do déficit histórico, já que uma tende a contestar a falta de transcendência e a outra a falta de

contextualismo da teoria do reconhecimento.

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em comum – mesmo aquelas que apontam em direções opostas umas das outras – é a ideia de

que os déficits da teoria honnethiana do reconhecimento resultam na erosão ou, ao menos, na

debilitação da sua capacidade de oferecer um quadro de interpretação crítica do presente.

Sofrendo de um déficit crítico, a teoria de Honneth não permite uma postura genuinamente

não conformada com relação ao sistema de dominação vigente e teria implicações prático-

políticas, no melhor dos cenários, conformistas e conservadoras – e no pior cenário,

mistificadoras, ideológicas ou retrógradas. Trata-se de uma consequência que não pode ser

ignorada ou menosprezada por um filósofo que compreende seu fazer teórico como parte do

mundo e que pretende que este fazer esteja orientado para a emancipação.

Tendo esse quadro em vista, cabe esclarecer que a proposta, aqui, não é defender

o modelo crítico de Honneth mediante a confrontação, uma a uma, das objeções feitas a ele. E

isso não apenas porque tal empreitada ultrapassaria os limites de uma tese, mas, acima de

tudo, porque não considero que seja algo nem possível, nem frutífero. Impossível, já que há

sem dúvida inúmeras críticas que atingem aspectos frágeis, parciais, insuficientemente

desenvolvidos ou francamente problemáticos e questionáveis da teoria honnethiana, às quais

não é possível escapar sem deslocamentos teóricos de maior ou menor alcance. Infrutífero,

pois buscar redarguir às objeções a todo custo não apenas representaria meramente a atitude

sectária ou tendenciosa característica de uma “escola de pensamento”, mas também e

principalmente porque não se poderia, desse modo, estimar o papel produtivo e fecundo que

as contestações e críticas (ou, de modo geral, o debate e o desacordo) tiveram tanto na

conformação do modelo crítico de Honneth quanto nas suas transformações, bem como no

desdobrar de teorias sociais com intenção crítica de modo geral.

Ao mesmo tempo, este trabalho foi movido pela intenção de mostrar que o

impulso teórico que animou a formulação do modelo crítico da luta por reconhecimento

guarda ainda potenciais não exauridos de desenvolvimento, os quais podem ser mobilizados

para dar conta de parte importante das suas deficiências e fragilidades – mesmo que o próprio

Honneth não tenha seguido esse caminho ou o tenha feito apenas parcialmente. No curso da

reconstrução do projeto crítico do autor, deve tornar-se compreensível a natureza da resposta

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que Honneth procurou dar, ou poderia ter dado, a algumas das objeções mais importantes à

teoria do reconhecimento.26

Assim, o objetivo da Parte I (Reconhecimento) é compreender a singularidade

da contribuição teórico-normativa de Honneth, isto é: compreender a natureza dos impasses

que o motivaram a formular seu projeto crítico, bem como a maneira como seu modelo

procurou solucioná-los, e assim desvelar o que move a teoria da luta por reconhecimento, que

recursos são por ela mobilizados e quais as suas implicações.

É preciso aqui, no entanto, dar mais concretude a estas afirmações. Afinal: o que

caracteriza propriamente aquele impulso teórico, quais são as suas virtudes e fragilidades, e

como seu potencial pode ser desdobrado de forma frutífera? Uma análise dos estudos

publicados por Honneth no período que antecede a escrita de Luta por reconhecimento, isto é,

no fim da década de 1970 e durante a década de 1980, não deixa dúvidas acerca da

preocupação central do autor: contrapor-se a toda tendência funcionalista de teoria social, de

modo a evitar suas implicações não apenas no nível teórico (inabilidade de identificar,

tematizar e apreender – e, assim, desvelar – demandas subterrâneas por justiça), mas também

no nível prático-político (incapacidade de participar de forma fecunda na articulação teórica

de tais demandas e de contribuir para o seu desdobramento mediante a construção de um

repertório reflexivo compartilhado). Seja no nível da teoria da ação (utilitarismo), seja no

nível da integração e reprodução social (teoria sistêmica), seja em ambos (estruturalismo), o

funcionalismo é visto por Honneth como obstáculo para uma teoria crítica da sociedade. Isso

torna especialmente problemáticas, então, as vertentes estruturalistas do marxismo, por

exemplo, já que elas manifestam a intenção de fornecer um aporte crítico, mas o seu próprio

modo de proceder mina as possibilidades para tanto. A figura que concentra esse tipo de

problema de forma paradigmática e se apresenta para Honneth, assim, como objeto

privilegiado de contestação pode ser encontrada no estruturalismo de Louis Althusser. Com

isso, Honneth toma posição no debate que, na época, contrapunha também dentro do

marxismo os polos estruturalista e hermenêutico (ou historicista) que caracterizavam a

sociologia, a historiografia e as ciências sociais de modo geral. Honneth censura então não

26

De saída, é preciso reconhecer que a análise mais substantiva de Ação social e natureza humana (escrito

junto a Hans Joas em 1980) e Reificação (publicado em 2005) certamente contribuiria para o escopo desta

tese. Não foi possível, no entanto, integrar essas análises neste momento.

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apenas Althusser, mas também Michel Foucault, e mesmo representantes da teoria crítica em

sentido mais restrito – Adorno, Horkheimer e Habermas –, pois considera que eles fizeram

concessões inaceitáveis ao utilitarismo (Adorno e Horkheimer) e à teoria sistêmica

(Habermas), subestimando, respectivamente, o caráter normativo dos conflitos sociais e o

caráter conflituoso da normatividade. Essa interpretação foi desenvolvida pelo autor em

Crítica do poder (1986). Para apoiar sua posição, então, Honneth recorre a uma série de

investigações centradas na noção de cultura política que vinham sendo desenvolvidas

especialmente no contexto anglo-saxão, mas não apenas, e que buscavam dar ao marxismo

uma disposição mais receptiva e sensível a formas difusas, implícitas ou invisíveis de

opressão e resistência – sem abrir mão da dimensão explicativa representada pela categoria de

classes sociais. Os chamados estudos culturais, ao articularem no âmbito teórico, com a ajuda

de métodos historiográficos e etnográficos, as experiências quotidianas dos atores sociais,

seus sentimentos de injustiça e as motivações de sua revolta, suas lutas simbólicas e

identitárias, representam para Honneth um poderoso aliado no enfrentamento das

consequências acríticas do funcionalismo. A sua força, contudo, reflete também a sua

fraqueza: ao permanecerem presos ao caráter episódico e contingente dos fenômenos

investigados, os autores vinculados aos estudos culturais não foram capazes de expandir os

resultados de suas pesquisas para uma concepção mais abrangente acerca da formação da

subjetividade humana de forma a explicar a motivação moral dos conflitos sociais de modo

geral.

Este é o desenho geral do Capítulo 1, dedicado, portanto, ao período de formação

intelectual do autor e de gestação, por assim dizer, das intuições que tomariam forma no livro

que fez de Honneth um nome com direito próprio no campo da teoria crítica. O Capítulo 2,

então, explora o modelo crítico da luta por reconhecimento, isto é: a reposta formulada pelo

autor para os impasses presentes tanto nas tendências funcionalistas da teoria crítica (“déficit

sociológico”, nas palavras de Honneth) quanto no caráter limitado dos estudos culturais

(“déficit filosófico”, nas palavras da autora). Em lugar de mais uma vez discutir em detalhes a

contraposição entre tradições teóricas em voga na segunda metade do século XX, contudo,

Honneth adota como estratégia a contraposição de grandes linhas de pensamento na história

da filosofia moderna, representadas por Maquiavel e Hobbes, de um lado, e Hegel, do outro.

Os primeiros foram fundamentais para a estabilização de uma interpretação filosófica dos

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conflitos sociais como disputas estratégicas, ao passo que, em seus escritos de juventude de

Jena, Hegel foi capaz de sugerir uma interpretação alternativa, posteriormente abandonada

pelo próprio autor. Tentativas de dar continuidade aos insights de Hegel foram feitas por

pensadores pós-hegelianos como Karl Marx, Georges Sorel e Jean-Paul Sartre, mas nenhum

deles foi feliz nessa empreitada. Honneth se propõe, então, a levar a cabo essa tarefa e, para

tornar o pensamento de Hegel plausível no contexto atual, recorre à psicologia social

interacionista de George H. Mead. Com esse “controle empírico” da teoria hegeliana,

Honneth considera estarem dadas as condições para a formulação de uma antropologia formal

ao mesmo tempo plausível e capaz de abarcar uma concepção geral, fundamentalmente

intersubjetiva e conflituosa, do processo de formação dos sujeitos humanos.

Tendo esse quadro geral em conta, Honneth apresenta uma fenomenologia das

relações de (luta por) reconhecimento, diferenciadas em três padrões: amor, direitos e estima;

em seguida, o autor expõe as formas de desrespeito que correspondem a cada um dos padrões

de reconhecimento. Essa tipologia fenomenológica representa a particularidade e

originalidade da sua contribuição teórica, para além da articulação de Hegel e Mead. Em que

pese esse modo de apresentação (isto é: da fenomenologia dos padrões de reconhecimento

para a das formas de desrespeito), procuro mostrar que o modo de investigação adotado pelo

autor segue a ordem inversa. A experiência negativa de desrespeito, portanto, é uma categoria

chave de Luta por reconhecimento. Ao suscitar um sofrimento moral (e as reações emocionais

decorrentes) nos atores sociais, ela chama a atenção do teórico para a motivação moral dos

conflitos sociais (como fica claro nas pesquisas dos estudos culturais, por exemplo). É trazida

à luz, assim, indiretamente, pelo caminho da sua violação, uma série de expectativas

normativas e consensos morais implícitos, invisíveis, não refletidos ou articulados, em suma:

a infraestrutura moral da integração social.

A experiência subjetiva de desrespeito apenas pode exercer esse papel de

desvelamento epistemológico, no entanto, na medida em que se considera, com Honneth, que

os sujeitos não ficam indiferentes perante um sofrimento visto ou sentido como injustificado.

A experiência de injustiça representa, assim, a oportunidade não apenas para o teórico

observador, mas para o próprio ator social concernido ou participante, de articular de modo

reflexivo as expectativas e demandas normativas que formam o seu repertório moral. Honneth

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defende um vínculo potencial, desse modo, entre experiência de desrespeito, sofrimento,

consciência de injustiça e disposição para resistência. Não são abordadas em Luta por

reconhecimento, no entanto, as condições objetivas, simbólicas e políticas, que podem

favorecer ou impedir a articulação e institucionalização da resistência individual e informal

em movimentos coletivos de protesto.

Consequências dessa proposição podem ser identificadas também no nível

filogenético: Honneth afirma que o objetivo de uma teoria social de teor normativo é

“esclarecer os processos de mudança social reportando-se às pretensões normativas

estruturalmente inscritas na relação de reconhecimento recíproco” (KuA: 155pt). Ele está

preocupado com a força motivacional na base de transformações sociais normativamente

orientadas, a qual ele encontra nas lutas morais dos grupos sociais que buscam estabelecer

coletivamente formas institucionais e culturais ampliadas de reconhecimento mútuo. O

conflito social suscitado pela experiência de desrespeito é tomado então como uma força

estruturante na evolução moral da sociedade.

Como indicado anteriormente, a teoria da luta por reconhecimento formulada por

Honneth em seu livro de 1992 tornou-se notória e bastante debatida – e ao mesmo tempo

bastante criticada, como não poderia deixar de ser em disciplinas cujas categorias centrais

estão constitutiva e permanentemente em disputa, como a teoria social e a filosofia política.

Na Parte II (Passagem), então, são discutidas contestações feitas ao modelo crítico da luta

por reconhecimento, bem como as primeiras versões dos deslocamentos implementados pelo

autor em resposta a elas. No Capítulo 3, as objeções formuladas por Nancy Fraser em suas

contribuições para o volume Redistribuição ou reconhecimento? (2003) são tomadas como

representativas da atmosfera geral da recepção crítica da teoria honnethiana. Ao apontar os

riscos de psicologização normativa, autoritarismo filosófico e reducionismo explicativo,

Fraser colocou decisivamente em questão três aspectos vitais do modelo crítico da luta por

reconhecimento: a centralidade do conceito de experiência, a possibilidade de recorrer a uma

concepção antropológica, mesmo que fraca, das condições de autorrealização humana, e a

primazia da perspectiva da integração moral da sociedade sobre a perspectiva da integração

sistêmica. Em suas réplicas, publicadas também em Redistribuição ou reconhecimento?,

Honneth reage a cada uma dessas contestações de modo diverso. Se no caso do recurso à

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noção de experiência subjetiva ele reafirma sua posição original, no que tange à plausibilidade

de uma antropologia formal ele recua e reconhece a necessidade de uma abordagem mais

histórica acerca da formação da identidade e da subjetividade humanas. No que se refere à

suposta incapacidade da teoria da luta por reconhecimento em abarcar teoricamente a

dinâmica de funcionamento e reprodução da economia capitalista, por fim, Honneth é

bastante ambivalente, afirmando ora que esse tipo de explicação foge ao escopo de seu

modelo teórico, ora que a teoria do reconhecimento apenas precisaria ser desenvolvida ou

desdobrada para se mostrar capaz de oferecer um modelo de explicação da economia

capitalista alternativo ao da integração sistêmica, e ora, por fim, que não é possível sequer

fazer a distinção entre integração social e sistêmica.

Deslocamentos teóricos de maior monta são implementados por Honneth em

Sofrimento de indeterminação (2001), volume examinado no Capítulo 4. Trata-se do

primeiro passo concreto, mesmo que ainda incipiente, em direção a um modelo teórico

centrado na noção de liberdade social. Decisivo, aqui, é que Honneth passa, com a

substituição do jovem Hegel de Jena pelo Hegel maduro da Filosofia do direito, a abordar

explicitamente o aspecto institucional da liberdade, o que fica patente tanto no deslocamento

do foco dos atores para as esferas sociais como portadoras do direito, quanto na troca do

tríade amor, direito e estima por família, sociedade civil e Estado. Além disso, apesar de a

ideia de sofrimento permanecer central para a argumentação, o seu potencial de impulsionar

uma resistência ativa nos atores concernidos sai completamente de cena. Isso pode, no

entanto, ser interpretado em duas chaves distintas: como a implicação de uma transição

desvantajosa de um modelo centrado na ação para outro centrado no sistema (isto é: a relação

entre sofrimento e resistência sai de cena porque a teoria simplesmente não conta mais com o

aparato conceitual necessário para dar conta desse aspecto), ou como a consequência de um

diagnóstico de época mais sofisticado (o qual permite identificar patologias sociais que

erodem justamente o aspecto motivacional da experiência de sofrimento).

A Parte III (Liberdade social) é composta pelo Capítulo 5, no qual é

analisado O direito da liberdade, extenso volume publicado por Honneth em 2011. Nessa

obra completa-se a inflexão teórica que teve início em Sofrimento de indeterminação em

direção ao modelo crítico da liberdade social. Isso não significa, porém, que não haja

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distanciamentos importantes entre os dois escritos, que permitem alocar Sofrimento de

indeterminação em uma fase de transição entre os dois modelos. Assim, por um lado,

Honneth reforça em O direito da liberdade a caracterização feita dez anos antes acerca do

surgimento de patologias sociais como decorrência da estabilização de instituições e práticas

orientadas por concepções insuficientemente sociais de liberdade individual. Em ambos os

livros, as liberdades jurídica e moral são tidas como condições de possibilidade para a

realização da liberdade em sentido amplo; elas são, no entanto, limitadas internamente pelo

fato de serem negativas, isto é: por possibilitarem aos sujeitos antes se retirarem da eticidade

do que nela participar. As patologias sociais surgem, então, quando essas formas necessárias

porém parciais de liberdade tornam-se a única referência normativa da ação, o que leva a uma

judicialização e moralização excessivas da vida social. O direito da liberdade avança para

além do que havia sido feito em Sofrimento de indeterminação, no entanto, em dois sentidos:

para trás e para frente da Filosofia do direito de Hegel, por assim dizer. Primeiro, Honneth

retraça a história da filosofia social desde Rousseau (“para trás”) para mostrar a procedência

filosófica de cada um dos três modelos modernos de liberdade. E depois de apresentar a

caracterização da razão de ser, dos limites e das patologias da liberdade jurídica e da liberdade

moral, o autor passa a uma reconstrução histórica dos processos de efetivação e bloqueio da

liberdade social na Europa nos últimos duzentos anos (“para frente”). Honneth procura

desvelar os princípios normativos subjacentes à institucionalização das práticas sociais em

cada esfera da eticidade – aqui reformuladas na tríade composta por relações pessoais, ação

econômica de mercado e formação democrática da vontade –, com o objetivo não só de

mostrar que a liberdade social está na base da eticidade moderna, mas também de diagnosticar

os processos sociais mediante os quais o desenvolvimento social concreto acabou por seguir

um caminho antagônico aos próprios princípios normativos de origem. A tais desvios,

Honneth deu o nome de desenvolvimentos sociais anômalos, ou anomalias sociais, de modo a

diferenciá-los da patologias sociais que derivam das concepções jurídica e moral da liberdade.

As anomalias sociais – que, em sua maioria, decorrem da autonomização dos imperativos

valorização do capital – atingem as práticas sociais de cada esfera da eticidade, esvaziando-as

em seu potencial normativo e impedindo, assim, a realização da liberdade social.

Além de enriquecer a análise de Sofrimento de indeterminação com uma

dimensão de trajetória filosófico-conceitual e outra de diagnóstico histórico-social, no

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30

entanto, Honneth implementa uma transformação adicional. No livro de 2001, já havia saído

de cena o desrespeito, isto é, a injustiça, que havia sido substituída pela categoria da patologia

social; em 2011, contudo, a própria ideia de patologia parece perder espaço para a de

anomalia social, pelo menos no que se refere ao diagnóstico de época nas esferas da eticidade.

Esse deslocamento tem, procuro mostrar ao final, implicações importantes para o projeto

crítico de Honneth. Ao excluir as patologias sociais da eticidade, argumento, o autor privou-se

da possibilidade de vincular de forma produtiva as reconstruções conceitual e histórica da

liberdade social. Um caminho fecundo, defendo ainda, seria apostar em uma articulação das

categorias de patologias sociais e de injustiças sociais – algo que poderia contribuir para um

desenvolvimento do projeto crítico de Honneth no sentido de preservar os pontos fortes tanto

do modelo do reconhecimento quanto do modelo da liberdade.

Paralelamente a essa trajetória que segue mais ou menos de perto a publicação das

principais obras de Honneth, os excursos posicionados ao final das Partes I, II e III tratam de

três momentos no quais o autor reflete acerca da ideia de patologias sociais. O Excurso 1

aborda o texto “Patologias do social”, o Excurso 2 trata do ensaio “Uma patologia social da

razão”, e o Excurso 3 lida com o artigo “Doenças da sociedade”. Publicados com dez anos

de diferença uns dos outros – em 1994, 2004 e 2014, respectivamente –, esses textos

fornecem um balanço condensado dos estágios de desenvolvimento da teoria honnethiana. No

texto de 1994, isto é, ainda no paradigma do reconhecimento, Honneth está preocupado em

defender que os fenômenos sociais negativos que são o próprio objeto da filosofia social

devem ser considerados como a deterioração das condições básicas da autorrealização dos

atores sociais, e não como apenas violações de princípios de justiça (sem, com isso,

comprometer-se com qualquer concepção substantiva e particular de vida boa). Já em 2004,

no que considero um período de transição na teoria de Honneth, o autor indica a necessidade

não apenas de diagnosticar as patologias sociais que impedem a autorrealização dos sujeitos,

mas também de mostrar que as patologias atingem, nos atores sociais, aquelas “capacidades

racionais” que são precisamente o que permitiria a eles se contraporem as patologias e

superarem-nas. As patologias sociais passam, então a ser consideradas em dois níveis de

atuação: como bloqueio da autorrealização (o que configura uma injustiça) e como bloqueio

da reflexividade sobre a injustiça. Para sair desse círculo vicioso, Honneth recorre então à

ideia de interesse emancipatório, segundo a qual o bloqueio da autorrealização não pode

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deixar os atores concernidos indiferentes, mas deve causar algum tipo de mal-estar, e é esse

mal-estar, esse sofrimento social que guarda o potencial motivacional, ainda latente, para a

resistência individual e coletiva. Esse caminho, a meu ver realmente promissor, foi entretanto

abandonado por Honneth nos anos seguintes. Assim, em 2014, já no paradigma da liberdade

social, saem de cena tanto as injustiças quanto as patologias sociais, as quais dão lugar para o

que o autor chamada de doenças da sociedade. Ainda mais que as anomalias sociais presentes

em O direito da liberdade, as doenças da sociedade apontam na direção de um desequilíbrio

nas competências funcionais que garantem a manutenção e a reprodução das sociedades,

vistas aqui nos moldes de um organismo. Com essa virada funcionalista, Honneth põe a

perder, acredito, precisamente aquele impulso que o motivou a desenvolver um modelo crítico

próprio, isto é: a superação, no pensamento crítico, das tendências funcionalistas que

impediam que se revelasse, na própria vida social, um potencial latente de resistência à

dominação.

A situação poderia ser remediada, acredito, com a ajuda da noção de reconstrução

normativa. A Parte IV (Reconstrução), composta pelo Capítulo 6, por fim, trata dessa

categoria metodológica central na obra de Honneth, a qual apenas ganhou formulações com

contornos mais precisos, entretanto, nos últimos quinze anos. Na primeira parte do capítulo, o

paradigma reconstrutivo da teoria crítica – isto é: Habermas, Honneth, e os teóricos críticos

pós-habermasianos de modo geral (Nobre, 2013b) – é caracterizado como composto por duas

dimensões: uma teórico-conceitual e outra histórico-social. Em seguida, traço os principais

aspectos do categoria da reconstrução em Honneth a partir de quatro ensaios metodológicos

escritos ao longo dos anos 2000.

Por fim, nas Considerações finais, apresento uma breve reconstrução da

passagem do modelo crítico da luta por reconhecimento para o da liberdade social,

procurando colocar em relevo como os deslocamentos teóricos que marcam esse trajeto

podem representar ganhos ou retrocessos em termos do potencial para diagnosticar,

compreender e articular as patologias sociais do presente. Em conclusão, busco delinear uma

conexão potencial entre reconstrução da negatividade latente, patologias sociais, sofrimento e

resistência.

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I

RECONHECIMENTO

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1. Estágios reflexivos de uma teoria crítica da sociedade

Os debates teóricos nos quais Honneth se envolveu no fim dos anos 1970 e

durante a década de 1980 revelam o caminho que o levaria à sua teoria da luta por

reconhecimento, formulada no livro homônimo publicado em 1992. Aqui, tais debates são

apresentados em dois momentos, um negativo e outro positivo, por assim dizer:

primeiramente, a partir de Crítica do poder27

e de artigos publicados no período, discute-se a

interpretação do autor acerca de modelos alternativos de teoria social crítica, tomada aqui em

sentido amplo. Quando indica a existência de um déficit nos modelos anteriores, Honneth

tem, de alguma forma, de explicitar o que está faltando neles – mesmo que sem definições

precisas nesse momento. A primeira parte deste capítulo (item 1.1.) é dedicada, então, a

rastrear o que Honneth considera fundamental em uma teoria social crítica a partir de suas

objeções a determinados estágios dessa tradição.28

Em poucas palavras, pode-se dizer que os

autores analisados acabaram, de modo mais ou menos intenso, presos a um paradigma

estruturalista ou funcionalista de teoria social. Neste sentido, são particularmente reveladores

aqueles momentos em que Honneth aponta a via que os teóricos que o antecederam na

tradição crítica poderiam ter seguido para uma compreensão mais frutífera da realidade social

no tempo presente e suas patologias: eles poderiam ter conferido um papel mais central aos

aspectos normativo e conflituoso dos processos de integração, reprodução e transformação

social. No segundo momento (item 1.2.), são apresentados textos escritos entre 1979 e 1989

nos quais Honneth discute possibilidades de sanar, com recurso a abordagens teóricas que

enfatizam a dimensão moral imanente a todo conflito social, as deficiências teóricas

identificadas na teoria crítica. Para tanto, Honneth busca apoio na autocrítica marxista

representada na historiografia pelos estudos culturais, os quais jogam luz sobre a moralidade

latente dos atores sociais que se manifesta na consciência de injustiça e nos sentimentos

morais que motivam os conflitos sociais. De início limitado aos conflitos sociais de classe, o

modelo desenvolvido precisa ser, porém, expandido para dar conta de lutas sociais de

27

Título original: Kritik der Macht: Reflexionsstufen einer kritischen Gesellschaftstheorie (abreviado daqui em

diante como KdM).

28 Honneth reconhece, no posfácio de 1988, que desenvolve nesse livro, indiretamente, um modelo de conflito

social apoiado em uma teoria da comunicação; esse desenvolvimento é indireto porque se dá via uma

reconstrução da história da teoria (KdM: 380de; XIIIen ss).

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naturezas diversas. Nesse sentido, apresentamos, ao final do capítulo, os limites da

perspectiva historiográfica que Honneth procura superar com seu modelo teórico próprio,

desenvolvido em Luta por reconhecimento.

1.1. Luta e normatividade: os limites da teoria crítica

As divergências de Honneth com relação a alguns dos principais representantes da

teoria crítica compõem o livro Crítica do poder, publicado em 1986. Nele, são analisadas as

contribuições de Max Horkheimer, Theodor Adorno, Michel Foucault e Jürgen Habermas,

indicando tanto os caminhos abertos por esses pensadores para compreender a realidade social

sob um ponto de vista crítico, quanto os obstáculos que dificultaram ou mesmo impediram

essa compreensão.29

O problema, diz Honneth, é que esses teóricos não abordaram de forma

adequada a forma de integração social existente nas sociedades modernas e os conflitos

protagonizados em seu interior por sujeitos individuais e coletivos cujas ações têm

orientações morais e normativas. No entanto, embora os argumentos com respeito a esse

déficit teórico tenham sido apresentados de forma mais sistemática em Crítica do poder, eles

não se restringiram somente aos modelos de teoria crítica abordados nesse livro. Desde o final

da década de 1970, o autor dedicou-se a identificar e discutir os aspectos problemáticos de

algumas das principais teorias filosóficas e sociais de viés crítico de sua época; enquadram-se

aí também as vertentes do marxismo de tendência estruturalista, as quais têm em Louis

Althusser uma figura central. No conjunto de textos escritos por Honneth no período em

questão reaparecem, a cada vez, as tensões que marcaram o desenvolvimento das ciências

humanas da época e que exerceram sensível influência sobre o pensamento honnethiano, isto

é: os debates – por certo distintos, porém correlatos – em torno da oposição entre

funcionalismo e hermenêutica, entre modelos teóricos centrados na estrutura ou na ação

social, na reprodução sistêmica ou na integração social, e assim por diante.

29

O livro é composto por nove capítulos, seis dos quais constituem a tese de doutorado de Honneth apresentada

à Freie Universität-Berlin em 1983 (os capítulos sobre Horkheimer, Adorno e Foucault). Os três capítulos

sobre Habermas foram incorporados quando da publicação da tese em forma de livro, dois anos depois.

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35

No que segue, procuramos sintetizar os argumentos honnethianos centrais acerca

dos autores mencionados.30

O que nos interessa, aqui, é compreender a partir de que ponto de

vista Honneth formula suas objeções a modelos alternativos de teoria social crítica, e não

chegar a um juízo sobre esses modelos mesmos ou verificar conclusivamente a aplicabilidade

da avaliação honnethiana a cada um deles.

1.1.1. Reprodução sem interação: Althusser e o marxismo estruturalista

Em seus primeiros escritos, Honneth volta-se contra as vertentes estruturalistas e

funcionalistas das ciências sociais de modo geral, e do marxismo em particular. Em “História

e relações de interação”, artigo sobre Althusser publicado em 1977,31

Honneth aponta os

problemas oriundos da resposta que o estruturalismo francês procurou contrapor às aporias

decorrentes do historicismo e do “dogmatismo antropológico” que lhe seria inerente. O

estruturalismo althusseriano se concebe como uma reação à húbris filosófica do sujeito

epistemológico (concebido na forma seja de um espírito, seja de um sujeito coletivo) cujo

desdobrar está no centro das filosofias da história. Para Althusser, a história não é o resultado

de um processo coletivo e humano de criação, mas antes um conjunto de atividades

supraindividuais de reprodução (GuI: 435de). O contexto social é tido como um sistema

ordenado e hierarquizado, porém sem centro; os indivíduos aparecem virtualmente apenas

como elementos sistêmicos de um modo de produção, sempre já subordinados aos requisitos

funcionais da reprodução social, entendida nesse contexto eminentemente como reprodução

material. As agências de socialização teriam a função única de impor as normas hegemônicas

de classes sobre os indivíduos, vistos como maleáveis “suportes funcionais” (Funktionsträger,

GuI: 431de). Ao suspender analiticamente o exame das dimensões motivacional e afetiva da

personalidade – as quais, para Honneth, são o que permite que as normas hegemônicas se

tornem socialmente vinculantes –, o estruturalismo representa uma limitação conceitual: sua

30

A ordem de exposição adotada nesse capítulo observa o grau de proximidade dos autores abordados com

relação ao projeto teórico de Honneth, começando com o mais distante (Althusser) e concluindo com o mais

próximo (Habermas).

31 Título original: “Geschichte und Interaktionsverhältnisse. Zur strukturalistischen Deutung des Historischen

Materialismus” (abreviado daqui em diante como GuI). Vale notar que o texto de Honneth foi publicado um

ano antes de The Poverty of Theory, livro de E. P. Thompson que se tornaria uma importante referência para

a crítica do estruturalismo (cf. Thompson, 1978).

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36

compreensão da realidade social torna-se empobrecida na medida em que a considera apenas

como a história funcionalmente hierarquizada de um sistema, e não como, também, a história

de ações coletivamente experienciadas (GuI: 434de; 94en).32

Não há espaço, ao menos, para

tratar – como ainda é possível, por exemplo, na teoria estrutural-funcionalista de Talcott

Parsons e a noção de “papel social” – dos processos de socialização como mediadores entre

os impulsos e necessidades individuais, de um lado, e as exigências funcionais inscritas na

estrutura social de normas, de outro. Para evitar ancorar o substrato social da ação em um

sujeito atuando intencionalmente, o estruturalismo reduz os sujeitos atuantes a unidades

sistêmicas desindividualizadas, de modo que a integração social pode ser tratada como

integração sistêmica. Assim, a teoria althusseriana da história procura purificar de modo tão

completo seus conceitos básicos, eliminando todas as determinações advindas de uma teoria

da ação social, que nem ao menos retrospectivamente ela pode compreender eventos

históricos singulares com base na rede interativa de lutas sociais e processos coletivos de

interpretação e entendimento (GuI: 435de).

Honneth não procura nesse texto restaurar qualquer forma de filosofia da história

que pressuponha um macrossujeito, ideia à qual ele permanece crítico. O problema da censura

estruturalista ao historicismo, porém, reside em borrar a diferença entre uma concepção de

continuidade temporal que é simplesmente uma pressuposição histórico-filosófica e outra que

é reconstruída a partir do desenvolvimento histórico material e cultural das sociedades

humanas. A unificação da história apenas no primeiro caso pode ser imputada a um

macrossujeito, a um “espírito”, ao passo que a segunda concepção de desenvolvimento

orienta-se por relações históricas em que uma pluralidade de sujeitos se engaja em lutas e

conflitos interpretativos. O estruturalismo não é, portanto, a única alternativa possível ao

historicismo: para Honneth, uma abordagem mais interessante consiste em tomar o domínio

dos objetos histórico-sociais como constituído de modo intersubjetivo, conflituoso e

normativo.33

32

Esta questão é fundamental para a teoria crítica porque tem consequências não apenas teóricas, mas também

prático-políticas: como o materialismo histórico de Althusser concebe o processo histórico apenas como a

reprodução da formação socioestrutural capitalista, e não como um processo experiencial de grupos e classes

sociais que processam subjetivamente as contradições sociais objetivas, torna-se para ele muito custoso, se

não impossível, estabelecer uma conexão com a autointerpretação dos movimentos sociais emancipatórios.

33 O argumento é semelhante àquele mobilizado na interpretação da obra de Michel Foucault em Crítica do

poder, abordado adiante (cf. item 1.1.2.). No texto de 1977, entretanto, em lugar de descartar a ideia de um

sujeito da história, Honneth desloca sua interpretação de um pressuposto ontológico para uma projeção

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37

Também em 1977, Honneth escreveu com Rainer Paris o texto “Reprodução e

interação”,34

uma resenha sobre o livro de Carol Hagemann-White e Reinhart Wolff intitulado

Lebensumstände und Erziehung, publicado em 1975, cuja pretensão era desenvolver uma

teoria materialista da socialização. Essa tentativa é considerada problemática porque, se os

autores concebem a socialização como “as condições gerais da produção e reprodução da

força de trabalho como mercadoria” e, ao mesmo tempo, reduzem esse processo ao

desenvolvimento cognitivo de qualificações técnicas, os processos socializadores podem ser

descritos apenas como funções sistêmicas na análise da reprodução do capital (RuI: 439).

Corre-se o risco, desse modo, de uma proximidade muito grande com relação à teoria dos

sistemas (RuI: 428). Ora, ponderam Honneth e Paris, a dimensão destacada pelos autores é

certamente necessária, mas não suficiente para compreender o processo de reprodução social;

por isso, é preciso combinar a análise da integração economicamente imposta de sistemas

sociais parciais com a análise da integração normativa de mundos da vida sociais:

Decerto, o mecanismo fundamental de socialização das sociedades capitalistas pode

ser visto nos imperativos econômicos voltados para a valorização do capital, mas

sua implementação social apenas é concebível sempre ao longo de orientações

intencionais de ação e necessidades que os próprios indivíduos tornam vinculantes

para si mesmos (RuI: 428).

Assim, afirmam, é preciso reconhecer que todo processo de socialização cumpre

funções relacionadas à reprodução social, mas, ao mesmo tempo, não pode ser reduzido a este

aspecto funcional: “a família e a escola não são de forma alguma autônomas com relação à

sociedade, tampouco são completamente determinadas pelos imperativos funcionais

capitalistas” (RuI: 425-6). Deste modo, uma investigação acerca das instituições nas quais os

indivíduos são socializados precisa mostrar como as relações sociais de interação e

reprodução social se entrelaçam e se determinam reciprocamente (RuI: 426).

É necessário, no entanto, passar desse ponto de partida – o entrelaçamento entre

interações sociais e relações de produção capitalistas – para a análise das formas reais de

mediação entre elas (RuI: 429). Neste sentido, Honneth e Paris afirmam que as instituições de

socialização precisam contar com margens de interpretação para que os indivíduos possam

ajustar suas tarefas funcionais às diferentes situações concretas em que estão inseridos, “Uma

normativa, na qual a integração historicamente possível das variadas unidades de ação seria tematizada em

termos de uma “humanidade consciente de si própria” (GuI: 420de; 84en).

34 Título original: “Reproduktion und Interaktion. Grundfragen einer materialistischen Sozialisationstheorie –

und wie man sie nicht beantwortet” (abreviado daqui em diante como RuI).

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vez que a estabilidade de um sistema de ação funcionalmente articulado evidentemente não

pode ser garantida factualmente mediante a coordenação e complementação de prescrições

unívocas de papéis o mais sem fissuras possível” (RuI: 431).

Uma consequência importante do posicionamento teórico de Hagemann-White e

Wolff acerca dos processos de socialização da classe trabalhadora consiste em tomá-los como

caracterizados unicamente pela força, poder ou violência (Gewalt) exercidos pelas figuras de

autoridade de cada espaço de socialização (pais na família, por exemplo, ou professores na

escola). Se, como defendem Honneth e Paris, é preciso levar em consideração não só as

funções sistêmicas de reprodução, mas também interações que possibilitam a integração

social, faz-se necessário analisar conjuntamente o caráter violento ou autoritário dos

processos de socialização da classe trabalhadora e a dimensão de satisfação emocional e de

coesão afetiva que os torna vinculantes para os atores em processo de formação. Essa

dimensão abre a possibilidade de conceber brechas emancipatórias no processo de

socialização, como atestam os desenvolvimentos teóricos a partir da ideia de Oskar Negt e

Alexander Kluge acerca de um “mínimo emancipatório” das experiências sociais da primeira

infância (cf. Krozova apud RuI: 434).

Honneth e Paris destacam ainda a necessidade metodológica que se impõe à teoria

que se quer crítica de avaliar autorreflexivamente as condições sociais do surgimento da

pesquisa e do levantamento de dados. Se a teoria busca atestar sua verdade nos interesses

práticos emancipatórios dos concernidos, é imprescindível que o teórico se envolva na

compreensão e na reconstrução do mundo da vida e sua fina estrutura de relações de interação

e, assim, se coloque na perspectiva própria dos sujeitos que são investigados e cuja

emancipação se procura apoiar (RuI: 439). Isso significa que é inevitável o recurso à

perspectiva própria do sujeito atuante, mesmo quando se procura descrever a realidade

funcional das instituições.35

Do contrário, perde-se a possibilidade de examinar as formas de

experiência e processamento subjetivos das contradições sociais objetivas e, assim, de avaliar

teórica e politicamente os movimentos sociais do presente:

Pois sem um colocar-se sistemático nos contextos amplos de vida dos sujeitos

pesquisados mesmos, isto é, sem uma consideração de seu lugar social, deve

35

A ideia de assumir a perspectiva do outro é emprestada por Honneth e Paris da tradição do interacionismo

simbólico desde G. H. Mead e seu conceito de role-taking, de acordo com o qual assumir o papel do outro é

uma condição fundamental para a possibilidade das interações sociais como tais.

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permanecer em princípio bloqueado para toda pesquisa sobre socialização o acesso

adequado ao desvelamento de seu domínio de objetos, vale dizer: as realidades

concretas de educação formadora (RuI: 437).

Uma teoria politicamente profícua neste sentido não pode mais contrapor

reprodução e interação, nem reduzir uma à outra deterministicamente; é preciso pensá-las

juntas se se quiser detectar, segundo uma análise de conflitos e para além da funcionalidade

das instituições das sociedades capitalistas, o surgimento de potenciais psíquicos de

resistência em processos de socialização (RuI: 439). A solidariedade política com os

concernidos não passará de uma tomada de posição meramente decisionista se a teoria social

se limitar a descrever os processos socializadores como funções sistêmicas na análise do

capital (RuI: 439).

A ideia de “lugar social” proposta por Hagemann-White e Wolff pode contribuir

neste sentido na medida em que é referida à conexão sistemática entre a investigação das

condições reais dos processos de socialização e a reflexão sobre as condições sociais da

investigação mesma. Ela pode ser útil também para caracterizar o ponto de vista que o teórico

tem que assumir para compreender as ações dos atores sociais investigados. Na interpretação

de Hagemann-White e Wolff, contudo, o conceito de lugar social se aproxima de uma

concepção teórica funcionalista na medida em que o considera como uma função da posição

social, isto é, como decorrente dos requisitos econômicos de reprodução social. A aversão a

teorias da interação praticamente impele os autores, dizem Honneth e Paris, a uma simpatia

pelas figuras de pensamento teórico-sistemáticas e funcionalistas, que são então vestidas com

conceitos marxistas (RuI: 439).

As condições objetivas de vida são, portanto, um aspecto essencial dos processos

de socialização específicos de classe. Mas não se pode falar em “Erziehung durch die

Umstände” (Hagemann-White, Wolff, 1975) sem a mediação interativa dos sujeitos

educadores e educados, pois trata-se de conceber e reconstruir um processo que se efetiva por

obra das pessoas (RuI: 438). Para Honneth e Paris, a reconstrução da estrutura interativa

(materialmente dada) própria de processos de socialização, que são o meio de processamento

e apropriação da “natureza interna” dos sujeitos, poderia assim ser alcançada mediante uma

combinação materialista e não eclética entre psicanálise, psicologia do desenvolvimento e

interacionismo (RuI: 432).

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40

A necessidade de que o teórico adote o ponto de vista dos atores sociais aparece

também em “Para uma análise interacionaista da política”,36

resenha na qual Honneth e Paris

saúdam a tradução alemã de The Symbolic Uses of Politics – livro de Murray Edelman que

consideram poder contribuir para mitigar o “déficit teórico-interacionista e social-psicológico

das teorias políticas das crises” (IvP: 138). Isto porque a obra fornece subsídios importantes

para uma compreensão da dimensão interativa e simbólica dos mecanismos ideológicos de

implementação das políticas estatais, seus mitos e rituais de legitimação, bem como a conexão

entre experiências de crise e reações sociais de recusa. Honneth e Paris ressalvam entretanto

que não basta, para uma crítica adequada da ideologia, analisar a funcionalidade da imposição

de determinadas políticas e dos rituais que as acompanham. A esta perspectiva formal, “de

cima”, deve ser acrescentado o ponto de vista informal, “de baixo”, que procura entender

também as diferenças e peculiaridades específicas de classe na recepção de tais políticas. O

livro de Edelman falharia, portanto, ao tomar os sujeitos empíricos quase que apenas sob a

perspectiva do Estado (como destinatários de uma práxis político-simbólica de dominação) e

ao não se debruçar sobre as condições interativas (comunicativas) de recepção do simbolismo

político (IvP: 141). Se a interação política aparece unicamente como interação entre

macrossujeitos organizados, permanece fora da visão a relevância política da interação

quotidiana entre os indivíduos, bem como suas possíveis transformações em conexão com

movimentos sociais (IvP: 141). Se, por um lado, Edelman discute a ausência de organização

formal e liderança política explícita em levantes de massa, “no entanto, não são por ele

tematizadas as estruturas interativas da esfera pública construídas de início informalmente e

que são, mais tarde, institucionalmente asseguradas” (IvP: 141).

*

O fato de Honneth ter utilizado o termo “interação” no título de suas três

primeiras publicações atesta, para além da visível influência do pensamento de Habermas e

sua contraposição entre trabalho e interação, a importância que ele confere, então, à tradição

teórica do interacionismo simbólico como alternativa – ou melhor: como complemento – às

correntes funcionalistas da teoria social. Num pequeno texto publicado ainda em 1979, nos

anais da 19ª Conferência da Associação Alemã de Sociologia, no entanto, já começam a

ganhar centralidade as referências a uma outra corrente de pensamento que também se opõe

36

Título original: “Zur Interaktionsanalyse von Politik” (abreviado daqui em diante como IvP).

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41

firmemente ao funcionalismo, mas que parte de um repertório teórico distinto do

interacionismo. Trata-se, como veremos, da historiografia marxista representada pelos estudos

culturais (cf. item 1.2).

A contraposição entre estrutura e interação será também central na crítica de

Honneth a um contemporâneo de Althusser e crítico do marxismo: Michel Foucault, em cujos

escritos os dois polos em consideração aparecem de maneira mais tensa e, ao mesmo tempo,

ambígua.

1.1.2. Luta por poder, poder sem luta: Foucault

À diferença de Althusser, Foucault representa para Honneth um autor que oferece

em determinados momentos de sua trajetória intelectual possibilidades (por certo não

exauridas) de compreensão do social, tendo em vista a ênfase que ele dá ao conflito e, em

certa medida, à ação social – mesmo que ambos sejam concebidos unicamente em uma chave

instrumentalista ou estratégica. A perspectiva centrada na ação social e no conflito só se torna

fundamental para Foucault, contudo, depois do abandono de uma abordagem semiológica, de

inspiração estruturalista, da história do conhecimento e da ciência, que é característica de sua

produção teórica na década de 1960.

Nessa primeira fase de sua obra, Foucault está preocupado em analisar a formação

do pensamento europeu moderno a partir de um ponto de vista externo a ele. Para tanto, diz

Honneth, Foucault pretende utilizar um método semelhante à etnologia – uma disciplina

tradicionalmente associada à investigação de culturas alheias, distintas daquela do

investigador. Seria assim preciso tomar distância com relação aos pressupostos centrais do

pensamento europeu, de forma que eles apareçam como estranhos ao olhar do etnólogo da

própria cultura. E o pressuposto que Foucault toma como decisivo nesse contexto é a posição

central que a ideia de sujeito ocupa na ciência e na cultura europeias: o sujeito é aquela

entidade que, mesmo estando submetida às leis objetivas da natureza, detém ao mesmo tempo

a capacidade para a agência e a transformação do seu entorno; em outras palavras, pode-se

atribuir a ele ações eficazes e intencionais. A chamada filosofia da reflexão ou filosofia do

sujeito constitui, então, a novidade da modernidade europeia, e é desse paradigma que

Foucault procura manter-se distante.

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42

Na trilha da crítica estruturalista do historicismo, o distanciamento de Foucault

com relação ao conceito de sujeito da filosofia da reflexão deve-se, também, às consequências

atribuídas à concepção de história que dela advém. Para Foucault, esta concepção – que

atingiria seu ápice na filosofia hegeliana da história – parte da ideia de que é necessário um

sujeito singular não só para produzir os objetos da experiência possível, mas também para

levar a cabo eventos históricos: o processo histórico é visto como um produto do espírito

humano reflexivo, e o mundo das coisas é visto por este como o resultado das suas próprias

objetificações (Vergegenständlichungen). É o sujeito singular que garante, nesse contexto, a

unidade e a continuidade da história (KdM: 134de; 117en) – e é precisamente essa a

consequência que Foucault pretende questionar. Tal objeção é também estendida para as

versões pós-hegelianas da filosofia da história, que a concebem como um processo contínuo,

fruto da atividade de um sujeito que, por sua vez, possui uma identidade constante (seja o

espírito humano, uma classe social, etc.). O próximo passo, após marca r seu distanciamento

com relação ao paradigma da filosofia do sujeito, consiste para Foucault em formular um uso

da linguagem que não faça referência a um sujeito consciente e atuante – e é essa exigência,

diz Honneth, que leva a estrutura da linguagem para o centro de seus esforços teóricos,

aproximando-o do estruturalismo semiótico.37

Apesar de considerar profícuo criticar a filosofia da consciência que se apoia na

história como fruto da atividade criadora de um sujeito singular, Honneth não trilha o

caminho tomado por Foucault – o de afastar-se da própria noção de sujeito, e

subsequentemente também da noção de sentido. Os discursos, constituídos por um

determinado conjunto de enunciados, não podem ser explicados de forma autônoma,

independentemente de um sujeito ou do contexto que lhes deram origem. Se o discurso é tido

meramente como um conjunto de eventos linguísticos, de estruturas simbólicas livres de

contexto, e os enunciados são vistos como funções não intencionais e não motivadas de

37

O estruturalismo semiótico mira, com sua crítica, a autocerteza do eu que é o cerne da filosofia da

consciência, e o faz por meio da ideia de que todo ato individual atribuidor de sentido depende sempre de um

sistema de signos que constitui uma entidade autônoma, que opera a despeito das intenções do sujeito – que é

então, por assim dizer, conformado por uma lógica externa a ele próprio. Como consequência, temos que o

sujeito é somente o autor fictício de seus atos de sentido (KdM: 140de; 123en). Com a ideia de que os

sujeitos individuais estão subordinados a regras linguísticas abrangentes, Foucault pretende ter alcançado

uma forma de proceder distanciada da centralidade atribuída pela cultura europeia ocidental ao papel ativo do

sujeito.

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signos, o princípio criador de discurso – as regras segundo as quais os enunciados são

conectados – permanece ininteligível (KdM: 159de; 140en).

Um problema adicional advém do fato de que o que era uma preocupação

originalmente metodológica, de distanciamento com relação à própria cultura para fins de

uma etnologia do pensamento moderno, acaba sendo ontologizado na visão foucaultiana da

história.38

Para Honneth, ao procurar eliminar de seu discurso todas as referências típicas da

filosofia do sujeito, e na medida em que passa a defender um paradigma que carece da própria

noção de sentido, Foucault acaba indo longe demais: o recurso à semiologia não só o levou a

evitar a referência à atividade provida de sentido de um sujeito monológico, mas também o

impediu de ter um acesso interpretativo à realidade social como um todo (KdM: 166de;

147en). A origem deste problema se encontra, para Honneth, na falsa aporia em que Foucault

se enreda: aquela entre uma filosofia centrada num sujeito único, autoconsciente e no controle

de suas ações, de um lado, e uma filosofia estruturalista na qual não há espaço para a ação

dotada de sentido por parte de atores imbuídos de intencionalidade, de outro. Honneth

sublinha que Foucault não faz uma diferenciação entre versões distintas da filosofia do

sujeito, o que poderia tê-lo ajudado a evitar tal aporia. Em vez de questionar o caráter singular

de um sujeito único da história – e abrir assim espaço para uma multiplicidade de sujeitos –,

Foucault questiona a noção de sujeito como tal: “Ele não questiona o caráter monológico da

filosofia da reflexão, mas faz desaparecer o próprio modelo de pensamento que subjaz a ela”

(KdM: 136de; 119-20en).

A proposta de Honneth – não desenvolvida neste momento – é, portanto, em lugar

de eliminar a própria ideia de sujeito, torná-la múltipla, conferindo assim um papel decisivo à

ideia de intersubjetividade. Foucault havia criticado a visão hermenêutica da história como

“documento”39

mirando na pressuposição de um sujeito único da história, a qual nada mais

38

Nas palavras de Honneth: “no lugar de uma tentativa tornar estranha a cultura que lhe é própria e familiar,

tentativa na qual são metodologicamente colocadas entre parênteses as convicções fundamentais e as

concepções de racionalidade que são inerentes a essa cultura, surge a tentativa de compreender a própria

cultura como um evento social de fato não-intencional, regulado de forma anônima. Afirmações ontológicas

acerca da constituição da realidade linguística acabam, então, explicando o domínio do objeto que deveria,

originalmente, somente ser observado como se ele pudesse aparecer como independente das suas próprias

referências de sentido” (KdM: 167de; 147-8en).

39 KdM: 137de; 120en. Contra a hermenêutica, que vê a história como um documento a ser interpretado,

Foucault propõe uma história como monumento, o qual só pode ser decifrado por meio de uma atividade

arqueológica, ou seja: o material histórico não é constituído de um texto, de um contexto de símbolos

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seria do que a sequência diacrônica de suas ações significativas; Honneth, por sua vez,

defende que essa pressuposição de um sujeito único não é algo necessário à hermenêutica:

uma outra forma de ver a questão seria considerar o documento histórico como fruto da

interação de pelo menos dois sujeitos – algo que Foucault não toma em consideração em sua

crítica às propostas metodológicas que têm por base alguma variação da filosofia da reflexão

(KdM: 137de; 120en). Por conseguinte, uma alternativa para explicar o princípio de

funcionamento da formação dos discursos seria explicar a unidade de um discurso por meio

da referência às realizações cognitivas que os atores sociais levam a cabo intersubjetivamente.

Este não é o caminho seguido por Foucault. Porém, mesmo se não toma

explicitamente as relações intersubjetivas como o centro de sua teoria, como gostaria

Honneth, Foucault não obstante se afasta do paradigma do estruturalismo semiótico e, nas

obras posteriores a Arqueologia do saber, substitui gradativamente sua teoria do

conhecimento baseada na análise do discurso por uma teoria do poder informada por uma

interpretação mais determinada da realidade social. Nesta nova fase, o contexto das estruturas

sociais extradiscursivas, que antes aparecia de forma muito vaga, passa a ocupar o primeiro

plano. A história humana surge, então, não mais como a história da linguagem e dos signos,

mas como a história dos conflitos e das lutas estratégicas.

Ao propor um modelo estratégico de poder, Foucault se contrapõe tanto à filosofia

política clássica, de acordo com a qual o poder é adquirido por contrato, quanto à teoria social

marxista, que propõe a aquisição do poder pela força. O poder aparece, então, como o produto

frágil e mutável de conflitos estratégicos entre atores sociais – quando um dos polos consegue

decidir a disputa temporariamente a seu favor –, e não uma propriedade, uma característica de

um sujeito individual ou um grupo social.40

Esta situação se repete constantemente, de forma

providos de significado, mas de uma estrutura de signos empiricamente dados, sem intencionalidade, que

deve ser analisada sob uma perspectiva mais funcionalista que interpretativa. Com isso, ele pretende afastar o

perigo no qual incorre a hermenêutica ao permanecer na superfície, no mundo aparente de um sujeito

consciente e no domínio de suas próprias intenções. Para Honneth, contudo, isso significa subestimar a

importância da hermenêutica no próprio paradigma arqueológico: não é possível reconstruir de forma

inteligível um “monumento” em seus aspectos funcionais, como pretende Foucault, sem referência ao

contexto de significado e de intenção de cada elemento do todo.

40 No mesmo sentido, Foucault se coloca também contra uma concepção centralizada do exercício do poder,

desenvolvendo em seu lugar o que ele chama de uma microfísica do poder.

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que o poder assegurado numa situação não pode ser estabilizado definitivamente em

instituições fixas, mas depende da sua confirmação em uma luta social permanente.

Como a formação e o exercício do poder estão ligados ao processo constante da

ação estratégica de atores sociais concorrentes, Honneth considera que a base da teoria

foucaultiana do poder é um modelo das relações fundado na teoria da ação. E isso representa,

na sua visão, um avanço com respeito à relação não mediada entre as forças externas

econômicas e políticas e os impulsos psíquicos internos dos indivíduos, que caracteriza a

versão de Adorno e Horkheimer de teoria crítica, como se verá adiante. O fato de o modelo de

relação entre os atores sociais se restringir à ação estratégica, no entanto, traz um problema

decisivo para a teoria foucaultiana: se a sociedade é caracterizada por um estado de guerra

constante, sem perspectiva de fenecimento, se o social é, portanto, tido como um processo

ininterrupto de ações estratégicas conflitantes, como as posições de poder que resultam da luta

podem ser temporariamente estabilizadas? Como pode surgir, a partir daí, uma ordem de

dominação?

Honneth identifica três formas possíveis de interrupção da luta social, que é a

condição para estabilização de uma posição de poder: um acordo normativamente motivado,

um compromisso pragmático ou o uso permanente da força. Foucault já exclui, de saída, a

possibilidade de que essa estabilização aconteça na forma de um acordo entre os atores com

base em normas e valores compartilhados, de modo que é necessário descartar as normas

legais e as orientações morais que regulam a interação dos membros da sociedade uns com os

outros como “ilusões” culturais, cuja função consistiria em escamotear os objetivos

estratégicos subjacentes à situação cotidiana de conflito. A segunda opção, a do compromisso

pragmático, também tem que ficar de fora, já que ela pressupõe uma saída da situação de

conflito que depende do assentimento de ambas as partes concorrentes: Foucault barra

conceitualmente qualquer possibilidade de superação da luta em um estado provisoriamente

estabilizado de poder que se dê mutuamente. A terceira forma de interrupção da luta, o uso

unilateral da violência, é improvável aos olhos de Honneth, mas é também a única opção

compatível com a teoria social foucaultiana. Como qualquer tipo de acordo entre os sujeitos

(seja um consenso moralmente motivado, seja um compromisso pragmático) é ameaçado em

um contexto de conflito estratégico constante, as instituições sociais aparecem para Foucault

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como meros meios de um domínio unilateral da força, mediante os quais um sistema social

“ao mesmo tempo controla, seleciona, organiza e redistribui a produção de discursos”

(Foucault, L’Archéologie du savoir, apud KdM: 163de; 144en).

Para Honneth, o uso permanente da violência não é algo empiricamente plausível

para explicar a estabilização de uma posição de poder ou de um sistema de dominação. Se as

situações de conflito permanecem constantemente expostas ao risco de uma luta social

irrestrita, não é possível, portanto, que se forme um agregado de ações sociais estratégicas.

Foucault tenta evitar esta conclusão de duas maneiras, afirmando 1) que a forma de controle

exercida pelos meios do poder não é simples violência, e tampouco simples ideologia, no

sentido tradicional em que os termos são usados, e 2) que o sistema de dominação se assegura

por meio da eficácia crescente dos meios do poder. Contudo, diz Honneth, esse caminho não

só não soluciona o problema da estabilização de ordens de poder como traz outras

dificuldades à teoria foucaultiana.

1) A primeira afirmação diz respeito a uma tentativa de se conceber os meios do

poder de uma nova forma: segundo Foucault, tanto a violência quanto a ideologia são

habitualmente concebidas como formas negativas de controle, que funcionam por meio da

interdição de comportamentos dos sujeitos dominados. O controle de que ele fala, ao

contrário, é uma forma produtiva, que funciona por meio da criação de normas e padrões de

conduta, os quais incidem antes de tudo sobre os corpos daqueles submetidos ao controle.41

Isso não resolve a questão, aponta Honneth, porque o controle continua sendo exercido numa

direção única, sem sofrer resistências ou transformações quando em contato com os atores

sociais sujeitos à dominação – e uma ordem social estabilizada pelo recurso a uma forma de

controle que seja virtualmente unilateral é empiricamente improvável.

2) Se o sistema de dominação que surge a partir de uma relação unilateral de

controle não pode ser senão fortemente instável, Foucault aposta então, para a redução dessa

41

Honneth destaca que se trata de uma solução diferente da de Talcott Parsons para a insuficiência do par

violência/ideologia para explicar a estabilidade de uma ordem social marcada pela dominação. Para Parsons,

que se inspira em Durkheim, é preciso lembrar que as ações dos membros da sociedade se conectam com

base em valores conjuntamente reconhecidos. Assim, enquanto Foucault se volta para as normas de conduta

corporal com vistas ao controle dos sujeitos, Parsons se detém nas normas morais que perpassam as atitudes

(inclusive as conflituosas) dos indivíduos em sociedade (KdM: 182-3de; 163-4en). Evidentemente, Honneth

considera a saída de Parsons mais adequada, retomando-a recentemente em seu livro O direito da liberdade.

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instabilidade, no emprego de meios tecnicamente cada vez mais eficientes de preservação do

poder: uma combinação cada vez melhor orquestrada entre as técnicas disciplinares da

atividade motora individual (uma “anátomo-política” do corpo humano por meio das

chamadas “disciplinas”) e as estratégias administrativas para o controle biológico da

população (uma “biopolítica” da população por meio dos controles regulatórios de processos

orgânicos fundamentais, tais como o nascimento, a reprodução e a morte). Essas duas faces da

dominação produtiva do comportamento dos corpos humanos constituiriam a base do sistema

de poder formado durante a idade moderna na Europa, ao que Foucault acrescenta: as técnicas

de poder têm a capacidade não só de controlar o comportamento e aumentar a performance

dos sujeitos, mas também de se auto-otimizar de forma constante (KdM: 193de; 173en). Esta

última afirmação traz uma implicação decisiva para o quadro teórico foucaultiano, uma vez

que, se as técnicas de poder adquirem uma lógica própria e autônoma de autoaprimoramento,

quem exerce essa forma desenvolvida de poder não são mais atores individuais ou grupos

sociais, mas sim instituições, estruturas complexas de posições de poder social. Com isso, há

uma transição do quadro de referência do conceito de poder: de uma teoria da ação para uma

análise de instituições (KdM: 193de; 173en). Vale lembrar que, com isso, Foucault não

consegue resolver a questão inicial, que era: como posições de poder são estabilizadas num

contexto de conflito estratégico ininterrupto? Nas palavras de Honneth:

sem que se pudesse esclarecer suficientemente o processo de estabilização social de

posições de poder, a análise das técnicas de poder faz uso, de forma inesperada e

sem que se tenha que fazer referência ao processo de seu estabelecimento social, da

noção de instituições que exercem poder (KdM: 193de; 174en).

Esse é um momento de transição na obra de Foucault, em que ele não se decide

entre, por um lado, uma teoria do poder que tem por base um modelo de ação social

(estratégica) e, por outro, a afirmação de uma efetividade ilimitada do poder moderno da

disciplina, que é exercido no contexto institucional da escola, da prisão, dos hospitais etc. A

ideia de uma pluralidade de atores sociais em conflito somente é compatível com a primeira

perspectiva; a segunda não deixa espaço para isso, uma vez que pressupõe a ideia de um

comportamento corporal que é manipulado irresistivelmente por uma estrutura impessoal de

controle. Não é difícil constatar a incompatibilidade entre os dois modelos.

O impasse é resolvido por Foucault nos escritos históricos da década de 1970:

Vigiar e punir e o primeiro volume da História da sexualidade. Aqui, o modelo da ação

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estratégica não mais exerce um papel determinante, sendo abandonado em favor de um

modelo funcionalista; o fenômeno histórico do conflito social desaparece por trás do processo

sistemático do aprimoramento contínuo das técnicas de poder (KdM: 195de; 175en). A virada

teórica em curso se completa com o projeto de uma genealogia do poder, em que a

investigação passa a se ocupar das dimensões encobertas da realidade que são trazidas à tona

com o emprego de uma lente desenhada especialmente para analisar os fenômenos de

exercício do poder. Sob esta ótica, todos os processos históricos aparecem como produtos de

uma sucessão de sistemas de dominação. Assim, diz Honneth, Foucault caracteriza a própria

integração social nas sociedades modernas como sendo conformada pela conexão

institucional entre aparatos disciplinares – aparatos que tiveram sua origem

independentemente uns dos outros, mas que acabam se interconectando para formar um

conjunto coeso de controles disciplinares (Foucault toma o exemplo do sistema prisional

moderno, que é uma estrutura de vários dispositivos de controle adequados uns aos outros, os

quais acabam por se disseminar para outros campos – extrapenais – da organização da vida

social). E essa estrutura de controles disciplinares incide sobre os sujeitos de modo geral sem

encontrar resistência: numa inversão dos pressupostos da teoria da ação que sustentava sua

teoria do poder anterior, a vida das sociedades desenvolvidas é vista segundo o modelo das

instituições totais.42

Outra consequência dessa forma estrutural e de mão única de conceber o

poder é o funcionalismo que adere necessariamente à caracterização das tradições e valores

culturais: estes são vistos unicamente da perspectiva da função objetiva que exercem em um

processo sistemático caracterizado pelo aumento da eficácia dos meios de poder (KdM: 202-

3de; 182en).

O que importa para Honneth, aqui, pode ser formulado da seguinte maneira: se,

para Foucault, a integração social nas sociedades modernas é fruto de relações unidirecionais

e sistêmicas de poder, o próprio processo de individuação e socialização dos sujeitos só pode

ser o resultado de uma disciplinarização levada a cabo por instituições adequadas a tal função.

Honneth encontra uma série de deficiências nessa concepção da formação da subjetividade:

em primeiro lugar, ele considera problemático pretender explicá-la somente a partir de

42

KdM: 199de; 179en. Foucault define o tipo de integração social das sociedades modernas segundo o modelo

de instituições totais sem levar em conta as realizações universais do direito burguês, por exemplo, porque

para ele a lei (assim como a moral, os valores socialmente aceitos, a orientações culturais normativas etc.)

não é mais que um meio para esconder objetivos estratégicos numa situação de luta (KdM: 219de; 197en).

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influências sociais, externas. É como se o condicionamento do comportamento corporal

produzisse a vida psíquica dos indivíduos: “Se Foucault de fato compreende assim o

surgimento da subjetividade humana, ele só pode ter sido levado a isso por uma versão muito

crua de behaviorismo, que representa os processos psíquicos como uma consequência de

condicionamentos constantes” (KdM: 210de; 189en). Haveria aqui certo mecanicismo, no

qual os próprios modos de conduta humana (especialmente suas expressões corporais) são

somente um material a ser modelado pelas estratégias de poder em vigor.

Outra deficiência apontada por Honneth diz respeito à ausência, na teoria

foucaultiana, de grupos sociais cuja prática leva à interconexão daqueles sistemas

disciplinares que surgem isolados uns dos outros. Foucault adota uma ideia da teoria dos

sistemas segundo a qual instituições disciplinares que existem independentemente umas das

outras passam a se conectar para formar um sistema autorregulado, sem referência aos atores

sociais envolvidos de forma ativa neste processo.43

Da mesma forma que surgem

autonomamente, esses sistemas se mantêm e aprimoram suas estratégias de poder por si

mesmos – e podem fazê-lo porque é pressuposto um processo de aprendizagem

suprassubjetivo em que as instituições de poder aumentam cumulativamente a sua própria

capacidade de otimizar os meios de controle. Diz Honneth:

No momento em que o desenvolvimento social é concebido somente como um

processo de aumento de poder social levado a cabo segundo a lógica de adaptações

periódicas ao ambiente, como é claro na forma como Foucault considera a história,

é apenas lógico considerar as classes dominantes como os meros portadores de

processos sistêmicos (KdM: 216de; 195en).

A dimensão da luta social também fica de fora deste quadro teórico: “os conflitos sociais,

então, em lugar de constituírem o fundamento prático da institucionalização de formas de

dominação, são os vales cotidianos por sobre os quais o processo sistêmico abre o seu

caminho” (KdM: 216de; 195en).

Honneth chega à conclusão de que o próprio pressuposto inicial da teoria

foucaultiana (um modelo de ação estratégica em que o social é concebido como um campo de

conflitos ininterruptos) é insuficiente para explicar a maneira pela qual se dá a formação de

43

Honneth destaca que, para Foucault, parece suficiente identificar dois processos que ocorreram no século

XIX como propulsores da formação das instituições disciplinares: o crescimento demográfico e o

desenvolvimento das forças produtivas.

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estruturas complexas de poder, o que leva à impossibilidade de se compreender o

estabelecimento e a manutenção, ao longo do tempo, de sistemas de dominação social. E em

lugar de modificar esse pressuposto, ampliando as possibilidades de motivação da ação para

além dos objetivos inerentes à luta social, Foucault acaba deixando-o completamente de lado

em favor de uma análise do aumento da efetividade dos meios impessoais de controle. Para

Honneth, quando Foucault coloca a noção de coerção social no lugar ocupado pela ação

estratégica, ele não resolve sua dificuldade inicial, mas apenas a dissolve num quadro teórico

preocupado eminentemente com as funções preenchidas por diversas instituições,

estruturalmente análogas, no contexto geral de um sistema total – cujo surgimento e

manutenção permanecem sem uma explicação convincente. Para Honneth é importante, no

entanto, apontar o caminho que poderia ter sido seguido a partir das intuições foucaultianas

iniciais:

Se Foucault tivesse, ao contrário, seguido as pistas de seu modelo original de ação

de forma mais consistente, isto é, se ele tivesse tomado as formas existentes de

dominação social como produtos de conflitos sociais em vez de resultados de um

processo sistêmico de adaptação, então ele não poderia deixar de prover

conceitualmente os atores sociais com aquelas necessidades e convicções, ou com

aqueles motivos que são os únicos capazes de desencadear a resistência política e,

com isso, a luta social (KdM: 216-7de; 195en).

Dito de outro modo: tivesse se detido com mais detalhe e de forma mais plural na

ideia de conflito social como o processo gerador de ordens de dominação, considerando

outros tipos de luta que não apenas a estratégica, Foucault poderia ter descoberto um outro

leque de motivações que levam os atores ao confronto social. Motivações, aliás, fundamentais

para explicar a estabilização de sistemas de poder – a qual não pode ser unilateral, mas tem

que se dar com a participação mais ou menos ativa de todos os envolvidos no conflito.

Assim, embora tenha a vantagem, em relação ao estruturalismo marxista, de ter

incorporado de maneira mais enfática a dimensão do conflito na explicação da ordem social,

Foucault concebeu o conflito de modo restrito, com base em uma compreensão

unilateralmente estratégica. Uma alternativa para esse problema é vislumbrada por Honneth

nos modelos de teoria crítica em sentido estrito. É o caso da teoria de Adorno e

principalmente Horkheimer nos anos 1930 – mesmo que tal saída tenha sido posteriormente

abandonada por tais autores.

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1.1.3. Cultura como mediação, cultura como controle: Horkheimer e Adorno

A produção teórica de Horkheimer e Adorno é analisada por Honneth em três

momentos. Inicialmente, são abordados os escritos de Horkheimer da década de 1930, nos

quais ainda se pode entrever a possibilidade de uma análise da ação social por meio de um

determinado conceito de “cultura”, passando em seguida a uma crítica do paradigma da

Dialética do esclarecimento, obra conjunta dos dois pensadores na qual essa possibilidade é

definitivamente excluída, por conta de uma concepção da filosofia da história que considera a

evolução da espécie humana do ponto de vista do processo de dominação da natureza por

meio da ação instrumental. As ideias presentes na Dialética do esclarecimento, segundo

Honneth, permaneceram nos escritos adornianos do pós-guerra, o que teria contribuído para

cerrar as portas para a análise do “social” na teoria crítica da primeira geração.

Como primeiro passo de sua argumentação, Honneth descreve um movimento na

teoria de Horkheimer, durante a década de 1930, em que a estabilização de uma filosofia da

história centrada na ação humana como ação produtiva ou como trabalho o leva a abandonar

um conceito potencialmente frutífero de cultura.44

Como se sabe, à economia política é

reservado um lugar central no projeto horkheimeriano de materialismo interdisciplinar: o

desenvolvimento das forças produtivas, nesse contexto, é concebido como o processo de

crescente domínio do ser humano sobre a natureza e sua consequente libertação da submissão

ao ambiente externo – e isso por meio de um aperfeiçoamento e ampliação do uso da razão

instrumental com o objetivo da autopreservação. Neste período, contudo, Horkheimer não

considera que a única motivação para a ação seja o autointeresse racional. É por esse motivo

que a psicanálise é incorporada como disciplina fundamental no seu projeto de teoria crítica:

uma compreensão mais completa da realidade não poderia prescindir de um exame de

impulsos internos aos indivíduos, os quais nem sempre estão ligados diretamente a um

interesse consciente e racional de autopreservação.

A mediação entre esses âmbitos analisados respectivamente pela economia

política e pela psicanálise seria feita por um estudo da cultura, concebida nesse primeiro

44

Esse movimento é visível sobretudo nos textos por ele publicados durante esse período na revista do Instituto

de Pesquisa Social: “Die gegenwärtige Lage der Sozialphilosophie und die Aufgaben eines Instituts für

Sozialforschung” (1931), “Geschichte und Psychologie” (1932), “Zum Problem der Voraussage in den

Sozialwissenschaften” (1933), “Autorität und Familie ” (1936) e “Traditionelle und kritische Theorie”

(1937).

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momento de forma bastante ampla: Honneth cita uma passagem da fala inaugural de

Horkheimer no Instituto de Pesquisa Social em que ele afirma que a cultura não se restringe

aos conteúdos intelectuais da ciência e da religião, mas engloba também a ética, a moda, a

opinião pública, o esporte, o lazer, os estilos de vida etc.45

A partir disso, o caminho que

Horkheimer poderia ter tomado seria o de considerar que as normas e os valores comuns

produzidos intersubjetivamente nesse âmbito social da cultura (e que são objetivados em

instituições da vida cotidiana e passados adiante por meios de exteriorizações simbólicas)

funcionam como um filtro, como um meio que refrata tanto as forças econômicas de

reprodução social (as quais são impostas aos sujeitos “de fora”) quanto o potencial

motivacional dos instintos humanos (que os impelem “a partir de dentro”). Com a ajuda desse

conceito de cultura, Horkheimer poderia preencher teoricamente o vácuo entre as exigências

do sistema econômico e a formação das motivações individuais (KdM: 35de; 25-6en) e

abarcar as autointerpretações tanto cognitivas quanto normativas dos sujeitos implicados na

ação social. O âmbito do social, representado aqui por esta noção ampla de cultura, permitiria

uma mediação entre os dois polos, de modo que os valores estabelecidos de forma

intersubjetiva, coletiva e conflituosa (KdM: 36de; 26en) ensejariam uma reinterpretação

sempre renovada dos imperativos econômicos com base nas práticas cotidianas dos sujeitos.

No quadro desta concepção do social, que foi esboçada porém não desenvolvida

nessa fase da produção teórica de Horkheimer, o acordo comunicativo que forma o horizonte

de valores de uma sociedade é, portanto, ao mesmo tempo frágil e eficaz: ele tem um efeito

decisivo na interpretação dos motivos externos e internos da ação e torna-se assim

relativamente cristalizado em normas e instituições; mas tal acordo depende, por sua vez, de

sua contínua renovação por parte dos membros da sociedade, num contexto marcado por uma

distribuição desigual de poder, recursos materiais e reconhecimento. A partir desse quadro

conceitual, afirma Honneth, seria possível desenvolver uma compreensão da luta social como

contrapartida conflituosa da ação cultural (KdM: 39de; 28en). Na medida em que dependem

da sua confirmação por parte dos membros de grupos com uma posição desigual na

sociedade, os consensos sociais são frágeis e, consequentemente, novos eventos ou mesmo o

45

Horkheimer (1993 [1931]) apud KdM: 35de; 25en. Honneth observa que essa forma de conceber a cultura

lembra a apropriação da sociologia inglesa da classe trabalhadora (E. P. Thompson e Raymond Williams,

entre outros) feita posteriormente na Alemanha.

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aumento das informações disponíveis podem levar a uma “interrupção da ação cotidiana

culturalmente assegurada e protegida”, o que “força o membro do grupo a corrigir e

expandir o horizonte tradicional de orientação diante da realidade desmascarada; por isso o

comportamento crítico é a continuação reflexiva de uma comunicação cotidiana abalada em

seu autoentendimento” (KdM: 39de; 29en). A reinterpretação das orientações estabelecidas de

ação, organizada coletivamente, desemboca assim em uma luta social:

A luta social pode ser concebida, nessa base, como a organização cooperativa

dessa crítica cotidiana: seria a tentativa de grupos sociais impelidos pelas

condições específicas de classes da divisão do trabalho e a imposição de ônus

excessivos de tentar implementar as suas normas de ação – adquiridas na

experiência reiterada de injustiça sofrida – na estrutura normativa de um contexto

de vida social (KdM: 39de; 29en).

Este é um caminho que poderia ter sido explorado pela primeira geração da teoria

crítica, afirma Honneth, se seus pensadores centrais não estivessem ainda presos ao

paradigma do trabalho e da ação instrumental. Sem uma concepção de ação social que leve

em conta, além da dimensão da ação instrumental, aquela da ação normativamente orientada

por valores intersubjetivamente construídos, Horkheimer se vê impossibilitado de tomar

seriamente a cultura – entendida aqui de forma ampla – como um verdadeiro campo de

mediação. É precisamente por isso, segundo a interpretação de Honneth, que Horkheimer

acaba deixando paulatinamente de lado esta concepção de cultura, apenas esboçada nos seus

escritos iniciais, em favor de uma visão da cultura como formada por instituições

cristalizadas, concebidas como se não fizessem parte e não fossem o resultado das práticas

cotidianas dos sujeitos. Religião, escola, mídia etc. seriam então elementos estabilizadores

que atuam sobre os indivíduos, mobilizando seus impulsos internos de forma favorável à

reprodução social exigida pelo sistema econômico. Horkheimer passa, assim, de uma possível

teoria da ação social para uma teoria das instituições de tendência funcionalista. A sociologia

aparece cada vez mais como uma ciência auxiliar, sem uma intenção crítica imanente.

O caminho tomado por Horkheimer de um dualismo não mediado entre, por um

lado, o âmbito cognitivo da ação instrumental voltada para a dominação da natureza e

adaptada à realidade e, por outro, o âmbito irracional dos impulsos humanos seria radicalizado

na obra escrita conjuntamente com Adorno durante o exílio americano. Na Dialética do

esclarecimento, o tom dos autores é pessimista e reconhecidamente aporético: a história da

espécie humana continua sendo caracterizada por um domínio crescente da natureza externa e

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interna do homem, mas este domínio, exercido por meio da razão instrumental, é agora

concebido também como um processo de destruição da própria razão.46

A ideia de cultura,

nessa obra, já não pode ter nenhum papel mediador e tampouco está em condições de

constituir o locus dos conflitos sociais e da possibilidade de resistência a situações vividas

como injustiças. Não se tem mais a cultura como domínio social, ou mesmo como conjunto

de instituições: ela é entendida, a partir de então, no sentido mais estreito dos produtos

estéticos – os quais Adorno e Horkheimer veem, no contexto do capitalismo monopolista e da

administração política centralizada, como produzidos em escala industrial para os propósitos

de dominação em uma sociedade que tende à administração total. É como se a cultura não

fosse um meio próprio, isto é, como se as demandas dos sistemas econômico e político,

centralizados sob o signo da administração burocrática, não sofressem qualquer tipo de

refração ao serem operacionalizadas no âmbito da ação social. Sem exercer nenhuma forma

de resistência às demandas do sistema de dominação, a cultura serve perfeitamente à função

de condicionar a psique dos indivíduos a tais demandas. Assim, os bens culturais produzidos

industrialmente fazem parte de um conjunto de medidas que visam à repressão dos instintos

internos dos sujeitos que não sejam funcionais para as performances instrumentais do trabalho

social. Para Honneth, também no que tange à formação do ego, Horkheimer e Adorno levam

em conta somente a relação do sujeito com o seu entorno natural, deixando de lado as

interações sociais e intersubjetivas que condicionam, também e decisivamente, o processo

social de individualização. Assim, não há para os autores uma instância intermediária, um

campo em que a ação social faria a mediação entre os impulsos orgânicos dos indivíduos e as

demandas do sistema econômico-político, ficando os primeiros à mercê do segundo. Desta

maneira, o grande problema que Honneth vê na Dialética do esclarecimento é o fato de

Horkheimer e Adorno generalizarem o paradigma da ação instrumental, a ação que visa ao

controle de um objeto – e portanto o paradigma da ação de dominação sobre a natureza – para

todo tipo de ação humana. Tanto a relação entre os sujeitos quanto a relação do sujeito com os

seus próprios impulsos internos são concebidas segundo o modelo da razão objetificadora. Se

há apenas relações sujeito-objeto, e não sujeito-sujeito, torna-se difícil incorporar

teoricamente a ideia de um campo do social, isto é, um âmbito de relações intersubjetivas cujo

46

Honneth destaca que essa reconstrução histórica não é feita com recurso à história social, mas sim lançando

mão de testemunhos indiretos da história intelectual, como a Odisseia, os romances do Marquês de Sade e

ensaios de Kant e Nietzsche (KdM: 49de; 37en).

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parâmetro não é a meta de autopreservação por meio do controle sobre um objeto, mas sim

normas e padrões de ação estabelecidos coletivamente.

Este modo de ver as coisas, diz Honneth, tem diversas consequências para além

da supressão do campo do social. Uma delas é que a dominação social, por analogia com a

dominação da natureza, é concebida unicamente em termos do exercício da força: assim como

o pensamento objetificador impõe sua lógica identitária aos objetos da natureza, a dominação

social seria exercida por determinados grupos sociais sobre outros por meio de uma ação

violenta que, no limite, não encontra resistência nos sujeitos oprimidos. Para Honneth, ao

contrário, é decisivo ter em vista uma forma de dominação social que seja consensualmente

garantida – o que só pode ser compreendido se se toma em consideração o campo mediador

da ação social onde os grupos interagem criativamente: “Nesse outro caso, não é a prontidão

para obedecer, produzida direta ou indiretamente, mas os horizontes normativos de

orientação dos próprios grupos oprimidos que fornece a base sobre a qual repousa a

dominação social dos grupos privilegiados” (KdM: 67de; 54en). Surge, assim, um consenso

que “é capaz de garantir um grau suficiente de reconhecimento normativo para uma

desigualdade institucionalizada na distribuição de ônus sociais” (KdM: 67de; 54en). A

principal questão da teoria social passa a ser, então, a seguinte: como funciona uma sociedade

em que a manutenção da dominação e das desigualdades institucionalizadas entre grupos

sociais é garantida por meio de um reconhecimento consensual? Para responder a tal

pergunta, diz Honneth, é necessário identificar e compreender os

mecanismos institucionais e culturais que canalizam e bloqueiam, entre os membros

de um grupo, os processos de produção de orientações normativas de ação de tal

forma que, apesar de desigualdades socialmente perceptíveis, essas orientações

podem levar à formação social de consensos (KdM: 67de; 55en).

Este, no entanto, é o caminho que Horkheimer e Adorno não seguiram.

Nos seus escritos do pós-guerra, Adorno teria aprofundado ainda mais as

premissas da filosofia da história presentes na Dialética do esclarecimento. O diagnóstico

formulado por Horkheimer e Adorno à época do totalitarismo nazista é estendido por Adorno

às democracias de bem-estar no pós-guerra, o que confere um caráter relativamente a-

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histórico do diagnóstico adorniano.47

Um indício desse apego às premissas teóricas acerca da

história humana como processo crescente de domínio da natureza é o fato de que Adorno se

afasta cada vez mais das ciências sociais empíricas – já que elas também estariam perpassadas

pela razão objetificadora e contribuiriam, assim, para a dominação social. A sociologia é, para

Adorno, o exemplo paradigmático de uma ciência do controle burocrático que serve à

manutenção da dominação social; e a própria filosofia só poderia fugir disso por meio de uma

autocrítica do pensamento conceitual. Por analogia com a disciplina filosófica, a tarefa

possível para a sociologia é realizar uma autocrítica e denunciar o caráter ideológico da

pesquisa social. O máximo que a sociologia pode fazer para além disso é tentar prover uma

caracterização do capitalismo contemporâneo que seja compatível com essa autocrítica

sociológica. O quanto esta caracterização permanece distanciada de estudos empíricos fica

evidenciado, afirma Honneth, no fato de que Adorno mantém o núcleo da ideia de

“capitalismo de Estado”, formulada por Friedrich Pollock anos antes, sem levar em conta

todas as críticas que um tal conceito sofreu posteriormente. Afastado dos resultados de

pesquisas empíricas acerca da realidade social, Adorno apoiou-se em uma visão reducionista

do capitalismo liberal, na qual o mercado aparece como o único mediador entre os indivíduos

atomizados e os imperativos da reprodução econômica – nem mesmo a esfera pública, por

exemplo, exerceria tal papel mediador.

A combinação dessas duas formas de interpretar o capitalismo em suas fases

liberal e monopolista resulta no diagnóstico do fim da mediação: uma vez que o mercado

constituía a única instância mediadora entre os imperativos da reprodução econômica e a ação

dos indivíduos, e tendo em vista sua “desaparição” no contexto do capitalismo administrado,

tais imperativos passam a atingir os sujeitos diretamente, sem as mediações necessárias

(KdM: 88de; 74en). A única mediação parece ser aqui, assim como na Dialética do

esclarecimento, aquela representada pela indústria cultural. Trata-se de uma mediação,

contudo, que não faz jus a este nome, pois apenas transmite, sem refração ou alterações, as

demandas dos centros de poder do sistema social totalmente administrado para as instâncias

consciente e inconsciente dos indivíduos. Adorno não leva em consideração a possibilidade de

47

Honneth recebeu algumas críticas a esta interpretação de Adorno, considerada por vezes muito simplista. O

próprio autor reconhece posteriormente que o pensamento adorniano é mais complexo do que o que foi

apresentado em Crítica do poder (cf., por exemplo, o posfácio de 1988 à segunda edição alemã do livro e

Honneth, 2007 [2005]).

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a produção cooperativa de horizontes de orientação específicos dos grupos (formas de

percepção e interpretações alternativas) não ser completamente sujeita à manipulação,

possibilidade que poderia apontar um limite para a influência sugestiva da indústria cultural.48

Adorno está, assim, convencido da capacidade de controle que os meios de

comunicação de massa exercem em associação com os órgãos do Estado, as burocracias

política e econômica. Como dito, contudo, a indústria cultural não domina só a consciência

dos indivíduos, mas também os seus instintos orgânicos, inconscientes. Trata-se do

diagnóstico psicanaliticamente informado acerca do “fim da personalidade”. Honneth destaca,

a partir das críticas de Jessica Benjamin – cujo pano de fundo é a teoria das relações de objeto

–, que Adorno não distingue a internalização de normas morais (por meio da relação com

outros sujeitos) da internalização de capacidades cognitivas (por meio da relação com objetos

do mundo externo), dando prioridade à segunda. Na teoria adorniana do desenvolvimento da

personalidade, a conquista da identidade individual é vista como uma espécie de extensão

intrapsíquica da conquista social da natureza. O problema central na teoria de Adorno é, mais

uma vez, portanto, a ausência de intersubjetividade, já que todas as dimensões da formação do

Eu obedecem ao modelo da dominação da natureza – de uma relação sujeito-objeto – em

detrimento da infraestrutura comunicativa dos processos de socialização.

Com os escritos adornianos do pós-guerra, portanto, a ausência de mediação

social entre os campos da economia e da psicanálise encontra sua forma acabada. Ainda de

acordo com Honneth, pode-se dizer que, por conta disso, Adorno não tem como levar em

conta as liberdades políticas existentes e o grau de democratização da sociedade, atribuindo

por conseguinte as características de um sistema totalitário de dominação às sociedades

contemporâneas.49

Ficam de fora da análise, também, os conflitos sociais, o potencial de

resistência e, de maneira geral, a dimensão da ação social. Nas palavras de Honneth:

48

Honneth reconhece que há uma passagem em que Adorno concede a possibilidade de que as pessoas não

aceitam tão direta e passivamente a realidade construída pela indústria cultural (presente no texto “Freizeit”,

de 1969). A importância do trecho, contudo, é minimizada por Honneth.

49 Nesse sentido, há aqui uma zona de intersecção com o modelo teórico de Foucault: para ambos, a integração

social nas sociedades modernas se dá independentemente de grupos sociais específicos e de suas orientações

normativas, sendo direcionada unicamente por fontes externas aos atores sociais – com a diferença de que,

para Adorno, esse direcionamento é realizado pelas atividades manipuladoras de uma administração

centralizada, enquanto que para Foucault quem produz os controles disciplinares é um conjunto coeso de

organizações e instituições dispersas pelos vários âmbitos da vida social. Nas palavras de Honneth: “Como

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Apesar de que uma nova realidade política na Alemanha do pós-guerra poderia tê-

lo convencido da urgência da tarefa de investigar as condições institucionais da

formação social de consensos, [Adorno] dirigiu o olhar de sua teoria unicamente

para as técnicas manipuladoras e os pressupostos intrapsíquicos de uma pressão,

exercida de cima, para a conformidade. […] Com a possibilidade do consenso

social que sustenta normativamente um sistema estabelecido de desigualdade social,

Adorno teve de negar também a sua contraparte: a possibilidade da luta social,

como diria Horkheimer nos seus escritos iniciais (KdM: 110de; 95en).

A teoria crítica de Horkheimer e Adorno permaneceu desse modo presa ao

dualismo entre impulsos psíquicos internos e pressões econômicas externas ao indivíduo – e

não permitiu, portanto, que o social fosse visto como uma dimensão de importância central

para a filosofia social crítica (KdM: 119de; 102en). Honneth encontra condições mais

favoráveis, neste sentido, na obra de Habermas, que tem como ponto de partida uma

concepção de ação social.

1.1.4. Sistema normativamente neutro, mundo da vida sem conflitos: Habermas

Habermas aparece em Crítica do poder como o autor que introduz de forma

decisiva nas reflexões da teoria crítica a questão da intersubjetividade e das orientações de

valor comunicativamente alcançadas, pondo por terra o monopólio de uma teoria social na

qual, em que pesem as diferenças de fato existentes entre as suas variações, a ação humana é

concebida unilateralmente seja como ação estratégica, seja como movida pela obediência a

forças controladoras impessoais (tais como a racionalidade instrumental que implica uma

dominação sobre a natureza e os seres humanos). O problema da teoria habermasiana reside,

contudo, justamente na articulação (ou falta dela) entre as duas perspectivas. Para fazer essa

crítica, Honneth reconstrói o trajeto intelectual habermasiano nos vinte anos que separam o

livro Mudança estrutural da esfera pública (1962) da Teoria da ação comunicativa (1981),

apontando as possibilidades abertas e não aproveitadas que acabaram ficando pelo caminho.

Adorno, também Foucault parece por fim ver o processo da racionalização técnica como culminando nas

organizações “totalitárias” de dominação das sociedades altamente desenvolvidas: de fato, ambos os

teóricos concebem a sua estabilidade somente como uma consequência dos efeitos da atividade dominadora

unilateral de instituições organizadas administrativamente de forma altamente sofisticada” (KdM: 220de;

199en). Para ambos os autores, “os grupos sociais, as convicções normativas e as orientações culturais dos

sujeitos socializados não tomam parte alguma na integração social das sociedades capitalistas tardias – ela

é obra unicamente dos direcionamentos de uma organização que se tornou sistematicamente independente”

(KdM: 220de; 199en).

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Honneth procura, nos três capítulos dedicados ao autor, mostrar que Habermas

formula dois modelos de história da espécie humana – os quais, por sua vez, redundam em

dois paradigmas distintos do “social” – e que, por fim, ele acaba optando por um modelo mais

próximo da teoria dos sistemas, o que o impediu de captar justamente aqueles elementos da

experiência dos sujeitos que seriam fundamentais para uma concepção crítica das patologias

sociais contemporâneas. Honneth trata, inicialmente, da palestra inaugural de Habermas em

Frankfurt, de 1965, intitulada “Erkenntnis und Interesse”, para indicar que, já ali, ele procura

distanciar-se das aporias presentes na Dialética do esclarecimento. Habermas não se afasta

tanto do diagnóstico da primazia crescente de uma racionalidade instrumental voltada para a

dominação da natureza – a chamada “tese da tecnocracia” –, mas coloca à vista uma

concepção alternativa de racionalidade, algo em nome do que se pode fazer a crítica do

domínio da técnica. Habermas elabora diferentes formulações desta concepção alternativa ao

longo do tempo, mas o que importa para Honneth, aqui, é que ele abre esse caminho.

Habermas critica, por exemplo, a unilateralização positivista da teoria científica a partir da

possibilidade de se conceber uma outra forma de se pensar a ciência, e não somente como o

campo da técnica, da dominação da natureza, e da racionalidade instrumental. Nas palavras de

Honneth:

Para poder caracterizar a imposição exclusiva de um entendimento tecnicamente

determinado da ciência como uma “racionalização incompleta”, como Habermas já

faz aqui, contudo, é necessário demonstrar epistemologicamente a possibilidade de

uma outra forma da racionalização científica (KdM: 242de; 219en).

A ciência não pode ser só técnica, portanto. Existem outros interesses aí

envolvidos, além do interesse técnico-cognitivo. Se Habermas caracteriza este interesse como

estando ligado à apropriação da natureza e à dimensão antropológica do trabalho (e, por

conseguinte, à reprodução material da vida social), a outra forma de racionalização que ele

introduz está ligada, por sua vez, a um interesse pré-científico prático e à dimensão interativa

da ação humana, isto é, ao entendimento comunicativo do qual depende a reprodução

simbólica da sociedade. Mais que isso: para Habermas, a própria reprodução material não é

possível sem o entendimento comunicativo.

Além dos interesses técnico (das ciências empírico-analíticas) e prático (das

ciências histórico-hermenêuticas), Habermas fala de um terceiro interesse pré-científico: o

interesse emancipatório (característico das ciências criticamente orientadas). Enquanto o

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primeiro está ligado à reprodução material da sociedade e o segundo à sua reprodução

simbólica, ao terceiro corresponde a formação da identidade e da autonomia individual dos

sujeitos. Honneth observa, contudo, que Habermas faz convergir cada vez mais a formação da

autonomia individual com as condições de uma comunicação livre de dominação, de forma

que os interesses cognitivos prático e emancipatório acabam sendo aglutinados na ideia de

uma expansão da interação linguística (KdM: 263de; 238en). Nesta medida, o critério

utilizado no contexto de uma ciência de caráter crítico passa a ser o ideal – nunca alcançável,

mas sempre pressuposto enquanto ideal – de um diálogo livre de dominação, não coagido.

Esta é, então, aos olhos de Honneth, a contribuição decisiva de Habermas para a teoria crítica:

ter eliminado o monopólio de uma teoria unidimensional da ação, acrescentando a dimensão

da ação comunicativa (que pressupõe a intersubjetividade e a importância dos valores

culturais dos sujeitos) àquela da ação estratégica ou instrumental (centrada na relação sujeito-

objeto ou mesmo na concorrência entre sujeitos, os quais lutariam, entretanto, unicamente

pelo seu autointeresse).

Honneth sublinha que Habermas, em seu trajeto intelectual, passa do nível de uma

teoria do conhecimento para o de uma teoria da sociedade, desenvolvida em termos

comunicativos desde Mudança estrutural da esfera pública (mesmo que embrionariamente).

Neste livro, a formação das instituições da esfera pública liberal é concebida como o resultado

de um consenso moral no seio da burguesia que, por sua vez, é fruto de um processo de

aprendizado intersubjetivo no qual a comunicação não coagida aparece como princípio

normativo central e, nessa medida, representa uma forma histórica concreta de ação

comunicativa, de interação simbolicamente mediada (KdM: 272de; 246en). A partir de uma

generalização da dinâmica de constituição da esfera pública burguesa, Habermas considera o

desenvolvimento histórico em geral como caracterizado por um conflito que se dá entre o

princípio normativo comunicativo e as restrições objetivas impostas a ele num determinado

momento histórico: “Habermas concebe o acordo intersubjetivo acerca das normas sociais

como uma força motivadora que é capaz de impelir o desenvolvimento histórico até aqueles

limites que são dados a cada momento pelas condições objetivas das relações sociais de

trabalho e de dominação” (KdM: 272de; 246en). Assim, Habermas confere às experiências

de ação comunicativa – e portanto à normatividade moral, aquilo que ultrapassa os limites do

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mero autointeresse – uma eficácia e um poder motivacional que estava ausente (ou presente

de modo muito tênue) nas formulações anteriores da teoria crítica.

Até esse momento, Honneth avalia positivamente a inovação empreendida por

Habermas na construção do seu modelo teórico, considerando que ela permite ancorar a

crítica numa dimensão presente na própria realidade e no processo de desenvolvimento

histórico – a dimensão comunicativa (e, para Honneth, portanto moral) da realidade social. A

separação entre ação comunicativa e instrumental, entretanto, ainda pode, neste momento, ser

interpretada de formas distintas. E a escolha feita por Habermas no caminho que leva até a

Teoria da ação comunicativa é o objeto da crítica de Honneth: o conflito que caracteriza a

dinâmica do desenvolvimento histórico pode ser concebido, de um lado, como se dando entre

dois âmbitos de ação alheios um ao outro, em que o âmbito comunicativo sofre a intervenção

do instrumental (vale dizer, das relações econômicas e políticas, de trabalho e de poder); mas

é possível também, de outro lado, caracterizar este conflito como já presente na própria

esfera comunicativa, como constitutivo dela – o que, por sua vez, teria efeitos também sobre a

própria conformação daquelas relações sistêmicas ou instrumentais. Em poucas palavras: há

um modo mais e um menos estanque de se pensar o dualismo habermasiano entre “sistema” e

“mundo da vida” como distintos domínios de ação social.

Honneth atribui à influência da teoria dos sistemas a aproximação de Habermas da

interpretação mais estanque da sua distinção fundamental, que se expressa por exemplo na

formulação habermasiana dos dois subsistemas de ação racional com respeito a fins, que não

seriam regulados normativamente: a economia capitalista e a organização administrativa

estatal. O problema, para Honneth, consiste em que esta distinção – supostamente analítica – é

aplicada a domínios empíricos de fenômenos:

[Habermas] reproduz as diferenças estruturais que ele traçou conceitualmente entre

ação comunicativa e ação racional com respeito a fins no nível do processo social

de reprodução, ao distinguir, nas sociedades, esferas sociais de acordo com qual

dos dois tipos de ação nelas predomina (KdM: 282de; 255-6en).

Como consequência, os dois tipos de ação são reificados em esferas concretas de

reprodução social: é como se houvesse, de fato, domínios de ação que se distinguem por

serem ou não regulados segundo normas comunicativamente alcançadas, domínios

concebidos de forma tão mutuamente refratária que a relação entre eles é somente destrutiva,

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e não constitutiva (KdM: 295-6de; 268en). Isso é problemático para Honneth porque, em

primeiro lugar, não é plausível pensar seja em uma esfera sistêmica totalmente neutralizada de

normas e demandas morais, seja em uma esfera comunicativa livre de conflitos ou relações de

poder; e em segundo lugar, por conseguinte, porque os problemas próprios da dominação

social e da formação do poder acabam ficando em segundo plano, uma vez que os conflitos se

dariam entre distintas esferas de ação e não entre grupos e classes sociais no próprio processo

comunicativo.

Este é, entretanto, apenas um dos caminhos abertos pela teoria habermasiana.

Honneth aponta que o livro Conhecimento e interesse (Habermas, 1987 [1968]) contém, de

forma incipiente, a possibilidade de uma interpretação da “interação social também como

uma luta dos grupos sociais pela forma de organização da ação racional com respeito a

fins”.50

Esta luta, é importante ressaltar, não se dá simplesmente como uma competição

estratégica de diferentes atores sociais por um determinado bem: como objeto da disputa

temos normas institucionalizadas, de forma que o conflito abarca a disputa comunicativa entre

distintos modelos interpretativos acerca da legitimidade das normas sociais. A disputa entre

os grupos sociais é descrita por Honneth como um processo intersubjetivo que começa com a

50

KdM: 296de; 269en (grifos no original). Honneth se refere aqui, apoiado em Cornelius Castoriadis (The

Imaginary Institution of Society) a duas vertentes interpretativas da dialética do desenvolvimento histórico

em Marx: a que tem como centro a luta de classes, e a que privilegia a dinâmica entre o desenvolvimento das

relações de produção e o das forças produtivas (uma visão mecanicista do processo histórico que, segundo

Honneth, anima também – numa outra roupagem – a tentativa de Horkheimer de fundamentar uma teoria

crítica da sociedade, KdM: 16de; 9en).

Segundo Albrecht Wellmer, por outro lado, há aqui uma tensão entre um modelo teórico freudiano (centrado

na ideia de luta social) e um modelo piagetiano (ligado ao dualismo entre sistema e mundo da vida). Diz

Honneth: “o ponto de referência primário a partir do qual os distintos conceitos da racionalização prática

tomam seu ponto de partida, no caso do modelo de pensamento orientado por Freud, é representado pelas

distorções no contexto da interação social, e no caso do modelo de pensamento emprestado, ao contrário,

pelos déficits de um desenvolvimento logicamente determinável da consciência” (KdM: 399-400de; XXXen).

Isto implica em diferenças nas tarefas que se atribui à teoria crítica: “no contexto do primeiro modelo, a

teoria permanece sempre hermeneuticamente ligada à consciência dos sujeitos concernidos, porque é por

meio do esboço de interpretações alternativas dos desenvolvimentos históricos que se deve chegar a uma

ampliação do insight deles sobre as condições da comunicação distorcida, ao passo que, no contexto do

segundo modelo, de início os problemas sistêmicos ‘objetivamente’ dados são aqueles para os quais a teoria

procura uma solução no caminho de uma análise formal de déficits de racionalidade” (KdM: 400de,

XXXen). Para Honneth e Wellmer, a concepção de evolução histórica presente em Conhecimento e interesse

contém um modelo de sociedade capaz, ao dar ênfase aos conflitos morais, de evitar o dualismo entre sistema

e mundo da vida: “no contexto desse quadro conceitual, que Wellmer chamou de ‘modelo freudiano’, as

formas institucionais de organização da produção e do Estado ainda são concebidas como o respectivo

resultado de uma luta ‘moral’ entre grupos e classes sociais, de modo que, em princípio, não é possível

surgir uma autonomização histórica de sistemas de ação puramente estratégicos” (KdM: 400-1de;

XXXIen).

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destruição das condições recíprocas de comunicação, continua por meio da resistência de

sujeitos moralmente injustiçados, e chega a termo na renovação comunicativa de uma situação

de reconhecimento mútuo.51

Esta concepção da dinâmica intersubjetiva da luta social tem sua

origem no modelo hegeliano da “dialética da vida moral”. Se é assim, não pode haver espaço

para subsistemas normativamente neutros, regidos unicamente por uma racionalidade com

respeito a fins,

pois as formas institucionais nas quais o trabalho social ou a administração política

são organizadas precisam, então, ser compreendidas como as corporificações

particulares de uma formação moral do consenso que os grupos sociais atingiram,

em sua interação, como sempre, por meio de concessões recíprocas – isto é, aquelas

organizações aparentemente “racionais com respeito a fins” são também

codeterminadas por pontos de vista prático-morais que devem ser concebidos como

resultados da ação comunicativa (KdM: 302-3de; 274en).

A consequência desse movimento para uma teoria social crítica é clara: ela não

deve se pautar (como a Dialética do esclarecimento, por exemplo) na tese da tecnocracia, isto

é, no diagnóstico de uma primazia da ação racional com respeito a fins em todas as esferas da

vida social. Cabe a ela, diz Honneth, desvendar as formas de dominação social específicas de

nosso tempo (que se dão entre indivíduos ou grupos, e não entre tipos de ação ou

racionalidade), de maneira que se possa colocar novamente em movimento os processos

intersubjetivos que se encontram suspensos ou limitados por conta destas relações de

dominação.

Habermas, contudo, segue a primeira linha interpretativa aqui exposta, e o ponto

culminante deste trajeto é a sua obra mais importante, a Teoria da ação comunicativa. É claro

que há diferenças importantes entre este livro e as obras anteriores de Habermas, e Honneth

chama a atenção para elas. Entre elas, destaca-se que a teoria comunicativa é articulada agora

em conexão com uma teoria da evolução social e com uma pragmática universal. O foco nas

condições universais da comunicação humana implica um afastamento com relação à

hermenêutica, bem como a apropriação dos elementos básicos da teoria de sistemas (KdM:

51

KdM: 299de; 271en. Honneth faz uma importante ressalva quanto a essa forma de conceber os conflitos

sociais: os sujeitos desses conflitos são sujeitos coletivos, é verdade, mas não se pode reificar a sua

identidade ou tratá-los como macrossujeitos, nos mesmos moldes dos sujeitos individuais. Estes sujeitos

coletivos são grupos cuja identidade é produto do processo de socialização entre os indivíduos, um resultado

que é delicado e portanto sempre mutável. Honneth encontra elementos para tal conceito de grupo social em

pensadores tão diferentes quanto Lucien Goldman, Karl Mannheim e os autores da sociologia inglesa da

cultura – especialmente E. P. Thompson, Raymond Williams e John Clarke (KdM: 304de; 275-6en).

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314de; 285en). Além disso, o processo de racionalização da ação é visto agora como o

descentramento do mundo da vida, no decorrer do qual Habermas observa que a ação

comunicativa é gradualmente liberada das restrições impostas pelas orientações de valor

tradicionais, como visões religiosas de mundo, por exemplo. Há, assim, um número cada vez

maior de visões de mundo distintas e um âmbito mais amplo para diferentes formas de

entendimento linguístico. Mas separam-se também neste processo as orientações para a

realização de fins, isto é: a ação estratégica. E o sistema, o campo da ação estratégica, é o

domínio em que a integração da ação – uma vez que ela não é social, mas sistêmica – se dá

por meios não linguísticos. Honneth vê na ideia parsoniana de que a comunicação linguística

não é imprescindível para a coordenação das ações sociais a inspiração para que Habermas

introduza na sua teoria os meios “deslinguistificados” de comunicação que são o dinheiro e o

poder (KdM: 326de; 296en). Estes meios substituem a comunicação propriamente linguística

na medida em que ocorre uma generalização simbólica de recompensas e punições, a qual

leva a um consentimento geral atingido de forma não linguística. Neste sentido, o mundo da

vida não seria mais necessário para a coordenação da ação nos sistemas de ação racional com

respeito a fins. Estes subsistemas seriam, destaca Honneth, livres de normas.

Assim, Honneth quer pôr em relevo que, apesar das diferenças com relação às

obras anteriores, o problema central permanece: não obstante Habermas utilizar um conceito

historicamente relativizado de sistema, se mantém aqui o dualismo entre sistema e mundo da

vida, um dualismo que não é apenas metodológico, entre os pontos de vista do observador e

do participante, como inicialmente foi proposto por Habermas (KdM: 324de; 294en). Deste

modo são criadas, nas palavras de Honneth, duas “ficções”: a existência de organizações de

ação livres de normas, e a existência de esferas de comunicação livres de poder. Ambas são

ficções pelos motivos já levantados: em primeiro lugar, as estruturas organizacionais de

administração econômica e estatal somente podem ser compreendidas como uma combinação

de princípios da ação racional com respeito a fins e princípios normativos, prático-políticos,

que são o produto de um processo contínuo de interação comunicativa. São esses princípios

normativos que fornecem as condições sob as quais se alcança, por meio da ação racional com

respeito a fins, os objetivos administrativos estabelecidos, já que as regras da ação racional

são indeterminadas, e sua aplicação social não pode prescindir das regras da ação prático-

política (KdM: 328-9de; 298-9en). A administração (tanto de empresas quanto de instituições

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políticas) depende, portanto, do acordo normativo dos sujeitos envolvidos. Em segundo lugar,

Honneth argumenta que o mundo da vida social não se reproduz independentemente da

influência de ações estratégicas, que se manifesta sob as diversas formas do exercício de

poder: físico, psicológico e cognitivo (KdM: 330de; 300en). Sem levar isto em conta, diz

Honneth, perdem-se de vista os processos cotidianos (pré-políticos, por exemplo) do

estabelecimento e da reprodução de relações de dominação.

Assim, com as duas ficções que surgem concomitantemente à adoção de

elementos da teoria dos sistemas, Habermas acaba por não incorporar na sua teoria as

vantagens da teoria da ação e as da crítica comunicativa à tradição clássica da sociologia das

organizações, respectivamente: a vantagem de atentar para a importância de formas pré-

estatais do exercício cotidiano do poder, e a de ter em conta que os processos de interação

social internos a uma organização são fundamentais para o seu funcionamento. No mesmo

sentido, Habermas teria abandonado também a orientação normativa da organização

comunicativa da reprodução material – ou seja, aquilo em nome do que se poderia criticar

justificadamente as formas existentes de produção econômica e administração política.

Honneth termina Crítica do poder afirmando que, deste modo, Habermas acaba por obstruir o

caminho comunicativo que ele próprio havia aberto para a teoria crítica:

Com isso, Habermas perde acima de tudo […] o potencial para um entendimento da

ordem social como uma relação comunicativa institucionalmente mediada entre

grupos culturalmente integrados, relação que se dá, na medida em que as

prerrogativas sociais de poder são assimetricamente distribuídas, por meio da luta

social (KdM: 334de; 303en).

*

Segundo a interpretação desenvolvida em Crítica do poder e em outros textos do

período, às teorias de Althusser, Foucault, Horkheimer, Adorno e Habermas falta um aspecto

decisivo: a análise do que é propriamente social. Trata-se do que Honneth chamou de “déficit

sociológico” da teoria crítica.52

Ora, se Honneth não define em momento algum de forma

inequívoca o que significa “o social”, uma compreensão mais precisa do que ele quer dizer

com “déficit sociológico” apenas pode ser alcançada indiretamente, após a análise da crítica

52

Honneth aborda este déficit de seus antecessores em diversos textos. A expressão “déficit sociológico”

aparece em Crítica do poder no título do capítulo sobre Horkheimer e na análise de Foucault (KdM: 170de;

151en).

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feita dos autores em causa. Quando aponta os elementos que faltam nos modelos críticos

anteriores, Honneth deixa entrever que o que está em jogo quando se fala do mundo social

pode ser decomposto em dois aspectos constitutivos e irredutíveis: normatividade e luta.53

As

críticas formuladas nos anos 1970 e 1980 são certamente de naturezas distintas (inclusive

quando se trata de diferentes períodos de um mesmo autor), mas todas elas podem ser

consideradas como objeções que apontam ou a ausência de normatividade, ou uma carência

de conflito – ou ambas – nas concepções de sociedade subjacentes aos modelos críticos em

questão. O objetivo de Honneth é contrapor-se respectivamente às vertentes utilitaristas da

análise das lutas sociais, que ignoram as motivações normativas dos indivíduos ou grupos

sociais que entram em conflito, e às tendências sistêmicas que examinam o funcionamento da

sociedade mediante o recurso às normas morais nela inscritas mas que menosprezam,

contudo, o caráter intrinsecamente conflituoso do processo histórico, privilegiando assim o

aspecto da reprodução em detrimento das lutas e transformações sociais. A seguir, discutimos

estes dois aspectos tendo em vista não apenas as análises críticas apresentadas acima, como

também os comentários de Honneth acerca de outros autores relevantes para o debate.

No texto “A honra ferida” (1985),54

Honneth afirma que a desconsideração da

efetividade social das normas morais é uma característica comum a vertentes teóricas

contemporâneas muito diferentes, do pós-estruturalismo francês ao o utilitarismo e à teoria

sistêmica. De uma forma ou de outra, estas interpretações tomam as relações sociais como

interações de sujeitos que agem racionalmente e a ação moral como estranha e externa à ação

quotidiana (DvE: 84). Nesse sentido, como visto, as críticas dirigidas a Horkheimer e Adorno

em Crítica do poder dizem respeito acima de tudo ao caráter estratégico, apoiado sobre a

noção de racionalidade instrumental, dos conflitos sociais, de modo que a ação social

orientada por valores morais, de força normativa, é excluída de seu quadro conceitual.

Foucault recebe uma crítica semelhante – ao menos no que tange à fase intermediária de sua

produção teórica. Outro autor que caberia nesta descrição é Pierre Bourdieu, a quem Honneth

53

Cf. Basaure, 2011: 106-7. Honneth afirma que pretende desenvolver “um modelo conflituoso da sociedade”

(ein Konfliktmodell der Gesellschaft), KdM: 385de; XVIIen.

54 Título oliginal: “Die verletzte Ehre. Zur Alltagsform moralischer Erfahrungen” (abreviado daqui em diante

como DvE).

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dedica o artigo “O mundo dilacerado das formas simbólicas”.55

Nesse texto, escrito em 1984,

o autor descreve como o resultado de pesquisas empíricas de cunho etnográfico conduziram à

passagem de Bourdieu de um quadro estruturalista, influenciado por Lévi-Strauss, para sua

própria concepção de sociedade, a qual até certo ponto se aproxima de um “funcionalismo

sociocientífico” (DzW: 179de; 185-6en). Isto significa que Bourdieu se deixou guiar, na

superação do estruturalismo, por motivos utilitaristas: ele parte do pressuposto de que “as

construções simbólicas sobre as quais o etnólogo concentra sua atenção para poder estudar

a ordem social das sociedades tribais também devem ser concebidas como atividades sociais

que se realizam sob o ponto de vista da maximização da utilidade” (DzW: 180de; 186en).

Para poder falar em capital econômico e capital simbólico, as categorias utilizadas para

descrever o domínio das práticas simbólicas foram adaptadas ao quadro teórico

tradicionalmente projetado apenas para as relações econômicas (DzW: 181de; 187en). Como

consequência, Bourdieu é levado a subsumir todas as formas de conflitos sociais à luta por

distribuição de bens escassos, “embora a luta pela validade social de modelos morais

claramente obedeça uma outra lógica” (DzW: 200de; 200en). O sociólogo francês interpretou

de modo tão estrito o padrão de comportamento de cada classe social a partir de um ponto de

vista funcionalista – isto é, da perspectiva da adaptação cultural às situações específicas da

classe – que a busca quotidiana moralmente motivada de grupos sociais pelo estabelecimento

de uma identidade coletiva (tema da história cultural da época) fica de fora do escopo teórico

bourdieusiano (DzW: 192de; 194-5en). Para Honneth, apenas se pode falar em estilos de vida

concorrentes, como faz Bourdieu, se considerarmos que os grupos sociais não veem em seu

estilo de vida apenas um meio de melhorar sua própria posição social, mas o tomam antes

como uma expressão simbólica de seus complexos de valores e orientações morais (DzW:

199-200de; 200en).

Pois ao passo que a luta econômica distributiva é uma contraposição entre

adversários interessados unicamente em seu proveito próprio, a luta moral-prática

representa uma contraposição na qual os adversários lutam pela aceitação

normativa da outra parte. [...] Assim, porém, Bourdieu cria em sua investigação

continuamente a errônea concepção de que o reconhecimento social seria um estilo

de vida e de que os valores nele corporificados deveriam ser adquiridos do mesmo

modo que um bem econômico; apenas um resoluto abandono do quadro utilitarista

55

Título original: “Die zerrissene Welt der symbolischen Formen. Zum kultursoziologischen Werk Pierre

Bourdieus” (abreviado daqui em diante como DzW).

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no qual ele apoiou seus estudos empíricos poderia tê-lo protegido desse grave

equívoco (DzW: 200-2de; 200-1en).56

Honneth faz uma importante crítica do funcionalismo, por fim, em seu texto de

1985 sobre a teoria social de Cornelius Castoriadis,57

para quem a infraestrutura simbólica da

sociedade não permite que se explique a origem e a estabilização de instituições sociais com

referência unicamente à sua contribuição funcional para a manutenção da ordem social. Não

se pode ignorar que a própria constituição desta ordem apenas pode ser assegurada mediante

interpretações sociais (EoR: 152de; 174en). Assim, Honneth considera, com Castoriadis, que

não é possível encontrar na realidade social funções que sejam como tais indispensáveis para

a sobrevivência da sociedade e que possam servir, portanto, para definir “objetivamente” a

continuidade de um sistema social. Tais critérios de sobrevivência – e, consequentemente,

também as instituições sociais – dependem sempre de interpretações e visões de mundo que

conferem constitutivamente sentido e ordem (Sinn und Ordnung) à vida social. Assim, para

Honneth, as instituições de uma sociedade devem ser vistas não como instâncias

funcionalmente adequadas para a autoconservação do sistema, mas antes, se a constituição

simbólica da sociedade for levada em consideração, como corporificações únicas de esquemas

históricos de sentido (historische Sinnentwürfe; EoR: 152de; 174-5en).

Estes são exemplos de correntes teóricas que negligenciam o aspecto normativo

da ação social. Por outro lado, como visto, Foucault abandona na década de 1970 seu modelo

teórico do conflito estratégico para compreender ordens de dominação social e passa a

analisar o exercício unilateral de aparatos de poder por parte de instituições que têm como

função disciplinar os atores sociais – de modo que, ao final, a teoria foucaultiana acaba

padecendo de ambas as dimensões do déficit sociológico identificado por Honneth: falta

normatividade e conflito. Este é o caso, também, do estruturalismo de Althusser.

Habermas, por sua vez, com sua ênfase na integração comunicativa e

normativamente orientada da sociedade, teria superado o primeiro nível (normativo) do déficit

sociológico – ao preço, contudo, especialmente após Conhecimento e interesse, do abandono

56

Uma crítica semelhante é endereçada a Jean-Paul Sartre na medida em que ele teria levado a ideia hegeliana

de uma luta ética por reconhecimento de volta ao paradigma hobbesiano da luta por sobrevivência,

considerada, em uma interpretação existencialista, como “a abertura vazia do para-si” (Honneth, 1988:

174de; 165en).

57 Título original: “Eine ontologische Rettung der Revolution” (abreviado daqui em diante como EoR).

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do caráter conflituoso do desenvolvimento histórico: “there is a strong tendency built into the

conceptual scheme of Habermas’ work to undervalue the meaning of conflicts and social

struggles in the reproduction of the social order” (Basaure, 2011: 107). A influência da teoria

dos sistemas é considerada um aspecto decisivo desta transformação do pensamento

habermasiano.58

Na obra de Habermas, então, a introdução da dimensão comunicativa do

entendimento mútuo no processo de racionalização social não foi suficiente para suprir o

déficit sociológico, porque a questão da normatividade foi assim solucionada, mas a vantagem

dessa virada intersubjetiva na teoria crítica é “conquistada com a desvantagem de se ignorar,

do ponto de vista de uma teoria da ação, o conteúdo de conflito das formas de trabalho

social” (AiH: 214de; 40en).

*

Na contraluz das críticas que Honneth dirige às tendências estrutural-

funcionalistas, utilitaristas e sistêmicas das teorias sociais de sua época, é possível entrever

aqueles aspectos considerados pelo autor como indispensáveis para uma teoria crítica: a ideia

de conflito social, e o caráter normativo da ação social. Se as correntes sistêmicas

negligenciam o conflito e as utilitaristas a normatividade, o estruturalismo aparece como

objeto privilegiado de crítica, já que negligencia ambos. A consequência mais grave desse

menoscabo para a teoria crítica é a incapacidade de tematizar, compreender e dialogar com os

atores e grupos sociais que experienciam situações de opressão, dominação e outras formas de

limitações importantes às suas possibilidades de autorrealização e que resistem – com graus

diferentes de articulação, consciência, efetividade, etc. – a tais situações. O que, deve

perguntar o teórico crítico, motiva esses sujeitos a se arriscarem em lutas e enfrentamentos?

(E, correlatamente: o que impede que eles o façam?) Para Honneth, apenas quando assume o

ponto de vista do participante, em vez de manter-se na distância segura do observador, o

teórico está em condições de exercer um comportamento crítico.

A partir dessas reflexões, não fica claro por que Honneth chamou de déficit

sociológico o caráter problemático que ele identifica na teoria crítica. Afinal, sociologias há

várias – muitas inclusive de tendências utilitaristas, sistêmicas ou estrutural-funcionalistas.

Sobre isso diz Marcos Nobre: “Corretamente compreendido, portanto, o ‘déficit’ não provém

58

Cf. McCarthy (1985) e Joas (1991).

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da ausência de estudos e análises propriamente da ‘sociologia’, entendida como disciplina de

conhecimento, mas de um déficit de análise que provém da perda de centralidade do ponto de

vista ‘do social’” (Nobre, 2013b: 26). É o ponto de vista do social que pode fornecer a chave

para a superação do déficit sociológico, na medida em que o social é compreendido como o

âmbito intersubjetivo no qual se dão as experiências, as lutas e os aprendizados práticos dos

atores sociais em busca de autorrealização.

Na segunda parte deste capítulo, são apresentados textos de Honneth escritos nos

anos 1980 que procuram indicar caminhos para superar os déficits da teoria crítica. Para tanto,

ele recorre a uma série de investigações não apenas sociológicas, mas também históricas e

etnográficas que procuravam se contrapor às vertentes estruturalistas e economicistas do

marxismo e ficaram conhecidas como estudos culturais.

1.2. Os estudos culturais e a dimensão moral dos conflitos sociais de classe

Honneth encontra nos estudos culturais uma saída para os impasses detectados

nos escritos de Althusser (e no estruturalismo marxista de inspiração althusseriana), Foucault,

Horkheimer, Adorno e Habermas. Para apreciar a contribuição dos estudos culturais para uma

teoria crítica atenta à imbricação entre normatividade e conflito, é preciso ter em vista o

quadro geral de reavaliação crítica do marxismo – e de conceitos marxistas centrais, como o

de trabalho – no qual os estudos culturais podem ser alocados.

1.2.1. Reavaliação do marxismo: trabalho e normatividade

Ao longo da década de 1980, Honneth procura manter-se de certa forma no

interior do campo teórico inaugurado por Marx. Ele afirma querer contribuir para os debates

da teoria crítica sem dissolver a categoria de “trabalho”, como muitas vezes ocorre, mas

reconstruindo-a criticamente (AiH: 187de; 17en). No texto “Lógica da emancipação”

(1989),59

Honneth pondera que, abandonando o paradigma do trabalho, “perde-se também o

elo de teoria da ação por meio do qual Marx pôde vincular de maneira imanente sua teoria da

59

Título original: “Logik der Emanzipation. Zum philosophischen Erbe des Marxismus” (daqui em diante

abreviado como LdE).

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emancipação com o empreendimento de uma análise da sociedade” (LdE: 98de; 11en). Na

mesma direção, Honneth expressa em “Consciência moral e dominação social de classe”60

(1981) a convicção de que, apesar de todo aumento historicamente incomparável do nível de

vida dos trabalhadores, os componentes elementares do proletariado social – a corporalidade e

a heteronomia (Fremdbestimmung) do trabalho realizado – não perderam seu “significado

experiencialmente efetivo” (erfahrungswirksame Bedeutung; MsK: 199de).61

É preciso, no

entanto, realizar uma importante crítica do caráter funcionalista que este paradigma assumiu:

“Um único complexo de problemas se mostrou na última década como ponto de referência

comum desse novo estágio da crítica: trata-se do funcionalismo econômico que prevalece nas

premissas básicas do materialismo histórico” (LdE: 88de; 4en). O marxismo apenas pode

recuperar seu potencial crítico, segundo esta visão, se for capaz de se afastar da primazia

funcionalista dos requisitos de reprodução econômica presente em parte de suas vertentes e

passar a levar em conta também o caráter irredutível de outros campos de ação social:

no lugar de uma análise na qual as realizações de todas as demais esferas são

investigadas para o fim sistêmico único da produção material tem então que entrar

um conceito de pesquisa que investigue a conexão historicamente específica de

esferas de ação com um sentido próprio (LdE: 88de; 5en).

Para Honneth, é especialmente importante atentar para o horizonte compartilhado

de normas morais que orientam a ação dos atores sociais para além de seus interesses

econômicos imediatos.

Contra o funcionalismo, Honneth se volta para os escritos de juventude de Marx,

onde encontra a possibilidade de uma interpretação do mundo do trabalho que não é

normativamente neutra, isto é, que escapa ao paradigma da ação social produtivista e

instrumental em sentido estrito:

Neste sentido, tampouco a luta de classes é para Marx simplesmente um embate

estratégico pela aquisição de bens ou poder de controle; ela representa antes uma

espécie de conflito moral no qual a classe oprimida luta pelas condições sociais do

autorrespeito (LdE: 100de; 13en).

Com isso, Honneth defende que há um excedente emancipatório (emanzipatorischer

Überschuss) nas atividades de trabalho, concebidas aqui como processos de aprendizagem

60

Título original: “Moralbewusstsein und soziale Klassenherrschaft. Einige Schwierigkeiten in der Analyse

normativer Handlungspotentiale” (daqui em diante abreviado como MsK).

61 A este respeito, Honneth remete ao estudo de Mooser (1983).

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não apenas cognitiva, mas também moral. No texto “Trabalho e ação instrumental”,62

de

1980, o autor afirma que:

Contra esse estreitamento conceitual Marx defende então, de maneira não clara, o

excedente emancipatório da atividade de trabalho que ele afirma com Hegel: pois a

libertação da situação social de alienação apenas deve ser bem sucedida nas

mesmas atividades em que os potenciais humanos da espécie são reprimidos e

também, ao mesmo tempo, manifestamente preservados, isto é, no trabalho social

(AiH: 191-2de; 21en).

No mesmo ensaio, Honneth critica também a redução, na teoria, das atividades de

trabalho à dimensão da ação instrumental, afirmando que o trabalho possui uma dimensão

moral interna.63

Sem esta implicação normativa, é impossível distinguir uma atividade laboral

livre do trabalho alienado e, consequentemente, opressor. Assim, o conceito de trabalho é

central para Marx não apenas como categoria no nível descritivo, mas também no nível

prático-normativo: o trabalho social implica um processo de aprendizagem no qual os sujeitos

que trabalham tornam-se conscientes de que suas capacidades e necessidades vão muito além

das possibilidades permitidas na estrutura social dada, de modo que “as perspectivas

emancipatórias liberadas na produção social se tornam, dessa maneira, a chave de uma

teoria da revolução social” (AiH: 186de; 16en). Assim, para Marx “a teoria do capitalismo é

sempre mais do que mera análise da sociedade: ela representa ao mesmo tempo também o

diagnóstico histórico-filosófico de uma relação de alienação e o prognóstico experimental de

uma sublevação revolucionária” (LdE: 96de; 10en).

Neste contexto, diz Honneth, Marx não hesita em recorrer às ideias de respeito e

de dignidade humana e em pressupor que ambos dependem do trabalho autônomo que torna

visíveis as capacidades dos sujeitos. Diz Honneth: “É esta concepção de uma estética da

produção que subjaz, como quadro de referência normativo, ao diagnóstico marxiano da

alienação e da reificação” (LdE: 100de; 12en). Este é um processo, importa para Honneth

destacar, que envolve um aprendizado não apenas técnico, mas principalmente moral, já que

Marx pressupõe “um potencial de formação prático-moral do trabalho que esclarece

normativamente as relações capitalistas de injustiça” (AiH: 196de; 25en). Este processo

62

Título original: “Arbeit und instrumentales Handeln. Kategoriale Probleme einer kritischen

Gesellschaftstheorie” (daqui em diante abreviado como AiH).

63 Mesmo se ele não chega a vinculá-lo diretamente, como Marx, à emancipação humana (cf. Voirol, 2007).

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prático-moral de aprendizagem – em que a fábrica é considerada uma escola – garante o

potencial revolucionário da categoria do trabalho:

Em consequência dessa hipótese, Marx pode então pressupor um processo contínuo

de retroalimentação entre experiências de opressão, processamento intelectual e

disposição disciplinada para a resistência, no qual a classe social dos

trabalhadores assalariados se levanta contra o capitalismo (AiH: 196de; 24en).64

A posição teórica expressa neste trecho do Capital não é exatamente a mesma,

contudo, que aquela presente nos escritos do jovem Marx. Nas obras mais tardias, Marx teria

implementado uma mudança sutil, porém decisiva no caráter de aprendizado da atividade de

trabalho:

um modelo de argumentação que procura explicar a possibilitação da emancipação

social diretamente a partir do potencial de formação do trabalho é substituído,

entretanto, pelo modelo menos exigente de uma qualificação técnica e um

disciplinarização da classe trabalhadora mediante o trabalho industrial na fábrica

(AiH: 196de; 25en).

Ou seja: a ênfase passa a recair muito mais sobre o caráter técnico e disciplinar do

aprendizado adquirido na fábrica do que sobre o caráter moral que se conecta à indignação

que as condições de trabalho sob o capitalismo podem gerar. Assim, no período tardio de sua

produção intelectual, Marx:

não mais confia ao trabalho social o potencial prático-moral de aprendizado que

ele precisa pressupor se quiser explicar as concepções de emancipação do

proletariado a partir das experiências de atividade no trabalho; ele atribui ao

trabalho social apenas, em vez disso, o potencial de aprendizado de um processo

técnico de formação que sustenta estrategicamente a luta de libertação do

proletariado (AiH: 196de; 25en).

Neste sentido, “Uma tradição de autocrítica do marxismo estende-se assim de

Merleau-Ponty a Habermas, passando por Castoriadis, a qual procurou mostrar que Marx

forçosamente corre o risco de um determinismo tecnológico na medida em que reduz a

história do desenvolvimento da espécie unicamente à dimensão da produção social” (LdE:

96-7de; 10en). Este segundo modelo de argumentação não parece, contudo, capaz de sustentar

a ideia do lugar privilegiado do trabalho social em uma teoria da revolução, pois aqui Marx

pode sugerir apenas que o proletariado aprende, no processo de trabalho, a refinar

64

No mesmo sentido, Honneth apoia-se no seguinte trecho do Capital (livro I, capítulo 24): “Com a diminuição

constante do número dos magnatas do capital, os quais usurpam e monopolizam todas as vantagens desse

processo de transformação, aumenta a extensão da miséria, da opressão, da servidão, da degeneração, da

exploração, mas também a revolta da sempre crescente classe trabalhadora, que é instruída, unida e

organizada pelo próprio mecanismo do processo de produção capitalista” (Marx apud AiH: 196de; 24-5en).

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intelectualmente a sua consciência crítico-normativa já desenvolvida e a traduzir esta

consciência em capacidades para uma atividade prático-revolucionária. Permanece obscuro,

assim, como o processo formativo da consciência emancipatória pode estar ancorado em

estruturas de ação ligadas ao trabalho social (AiH: 197de; 25en). Deste modo, Honneth

concorda com o diagnóstico de Barrington Moore segundo o qual a teoria marxista da

revolução permitiu a uma herança utilitarista penetrar no seu quadro interpretativo – o que

teria acontecido inclusive em vertentes antidogmáticas do marxismo, como a primeira geração

da teoria crítica (MKU: 114it). Cornelius Castoriadis também está entre os autores que

consideram haver dois momentos distintos da produção teórica marxiana: em seus melhores

escritos, diz Castoriadis, Marx procurou compreender sua própria teoria como um

componente imanente da práxis criativa que impulsiona o desenvolvimento histórico,

rompendo assim com paradigmas antigos nos quais as teorias da história estavam inscritos

(EoR: 148de; 171en); num segundo momento, este ponto de partida radical foi colocado em

questão na própria obra de Marx, na qual

o discernimento do caráter criador da vida social é sacrificado em favor da defesa

de uma lógica mecânica do desenvolvimento social: a capacidade criativa de

realizações do ser humano é rebaixada a mera aptidão para a inovação; a abertura

de processo histórico, que demanda a práxis, é reduzida à mecânica do

desenvolvimento das forças produtivas; e o projeto revolucionário, por fim, é

despotencializado em ciência positiva (EoR: 148de; 171en).65

Esta transformação no pensamento de Marx, que acaba por neutralizar

normativamente o conceito de trabalho social, encontra um paralelo histórico na chamada

taylorização do processo de produção ao longo do século XX. Honneth diagnostica com isso

uma crise da teoria marxista da revolução, já que a função normativa da categoria de trabalho

passou a ser amplamente questionada. O que está em questão é justamente o trabalho como

65

A crítica de Honneth à ausência de lutas sociais na obra de determinados representantes da teoria crítica pode

ser remetida a uma tensão que existe, segundo a interpretação de Castoriadis na qual Honneth se apoia, no

próprio Marx. De acordo com esta ideia, os escritos do jovem Marx (como os Manuscritos econômico-

filosóficos de 1844) estariam baseados em uma teoria da ação, enquanto que escritos tardios conteriam uma

análise mais sistêmica das crises que acometem as sociedades capitalistas (AiH: 191de; 20en). A dialética

entre forças produtivas e relações de produção substitui, deste modo, o conflito entre as classes sociais como

motor da história, e como o que pode levar à emancipação. Neste tipo de interpretação objetivista ou

“tecnológica” do marxismo, a relação entre trabalho e emancipação (que aparecia na contraposição entre

formas orgânicas de trabalho e o trabalho fragmentado da indústria capitalista) é abandonada em favor de

uma visão mais ou menos determinista dos efeitos revolucionários do desenvolvimento das forças produtivas.

Como resultado, “as dimensões da problemática marxiana saem desse modo do campo de visão, pois as

condições de possibilitação de processos políticos de emancipação não são mais tomados no nível das

experiências sociais dos sujeitos atuantes, mas são antes projetadas no nível de processos sistêmicos

autonomizados” (AiH: 197-8de; 26en).

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noção metodológica fundamental que permitiria a tradutibilidade mútua entre uma análise

sistemática do capital e uma teoria da revolução orientada para a prática (AiH: 185de; 15en).

Honneth atribui essa diminuição radical do seu potencial emancipatório à racionalização e à

fragmentação do processo de trabalho fomentadas pelo taylorismo: “A tensão conceitual

subterrânea na qual o jovem Marx procura interpretar o trabalho social como um processo

de aprendizagem prático-moral perde, do mesmo modo, com a globalização de formas

mecanizadas de trabalho, toda a sua vivacidade original” (AiH: 200de; 28en). O conceito de

trabalho, que era considerado o cerne categorial da conexão entre a crítica da economia

política e uma teoria materialista da revolução, é assim normativamente neutralizado:

A neutralização gradual do conceito de trabalho que ocorre na sociologia sob uma

pressão muito direta do taylorismo é acompanhada, no solo da filosofia social, de

investigações que questionam e desmantelam, com meios filosoficamente muito

distintos, a posição privilegiada, emancipatória do conceito de trabalho no século

XIX (AiH: 204de; 31en).

A tensão categorial que havia na obra de Marx entre trabalho alienado e não

alienado é, deste modo, gradualmente reduzida em favor de uma interpretação unilateral que

apenas reflete a situação atual do trabalho social:

O conceito de trabalho perdeu, no curso desse desenvolvimento teórico, o seu

significado crítico, capaz de transcender a forma social de trabalho estabelecida.

As categorias do trabalho “alienado” ou “abstrato”, com as quais Marx critica o

modo capitalista de organização do trabalho, praticamente desapareceram da

linguagem teórica da filosofia social orientada pelo marxismo, pois parece não

existir um critério culturalmente independente para formas de trabalho

apropriadamente humanas, isto é, não alienadas (AiH: 214de; 39-40en).

A racionalização do processo de trabalho leva, além disso, a uma separação

sistemática entre o conhecimento teórico acerca do trabalho e a sua execução real (AiH:

205de; 32en) e, consequentemente, a um abismo entre alguns poucos funcionários altamente

qualificados em postos de gerência e controle, de um lado, e um grande contingente de

trabalhadores não qualificados em postos subalternos e precarizados, de outro. A este respeito,

Honneth concorda com Harry Barverman: “Na época da revolução técnico-científica, a

administração se coloca como tarefa dominar o processo em seu todo e controlar, sem

exceção, cada um de seus elementos” (Braverman apud AiH: 199de; 27en). Este processo

contradiz empiricamente, portanto, a correlação que Marx acreditava existir entre a

intensificação da produtividade do trabalho e um aumento constante no nível de qualificação

dos trabalhadores (AiH: 200de; 28en). Isto é: mesmo aquela esperança menos ambiciosa de

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que um aprendizado técnico poderia contribuir para a organização da revolta dos

trabalhadores contra o capitalismo parece ser descartada pelo seu desenvolvimento histórico

no século XX.

O descrédito da evidência histórica representada pelas lutas de classe que

pareciam atestar a existência de um movimento social guiado por impulsos morais e o

subsequente colapso da confiança no marxismo revolucionário conformam a experiência

chave da teoria crítica de meados da década de 1930 em diante, cuja tarefa consiste a partir de

então em encontrar, numa situação em que o movimento operário politicamente organizado

perdeu boa parte de sua visibilidade empírica, uma mediação entre normas teoricamente

fundadas e uma moralidade historicamente situada e efetiva (MsK: 182de; 205en). Se tal

empreendimento teórico depende da profundidade e clareza das categorias com as quais a

teoria social lança luz sobre os conflitos normativos e práticos de sua época, Honneth então

questiona: “Como, eu gostaria de perguntar, as categorias de uma teoria da sociedade devem

ser concebidas para que se possa decifrar formas empiricamente efetivas de moralidade?”

(MsK: 184de; 207en).

Honneth identifica na história da teoria social do século passado dois conjuntos de

tentativas críticas de resolução desse problema: os autores que se mantêm ligados ao

paradigma da relação entre sujeito e objeto, e aqueles que se voltam para as relações

intersubjetivas. No primeiro caso, os meios teóricos empregados com vistas a resolver a

questão são, de um lado, a “concepção histórico-filosófica de um processo idealizado e

supraindividual de trabalho” e, de outro, “o esboço estético de uma relação mimética e livre

de dominação com a natureza” (AiH: 213de; 38-9en). Enquandram-se aqui, por exemplo,

Lukács, Marcuse, Adorno e Horkheimer – grosso modo, trata-se da primeira geração da teoria

crítica, cujas tendências monológicas e centradas no processo de produção foram discutidas

no primeiro capítulo de Crítica do poder.

Como vimos, entretanto, a virada intersubjetiva é considerada por Honneth um

avanço incontornável na teoria crítica, já que apenas quando se tem em mente as relações

entre os atores sociais é que se pode compreender de fato o aspecto social – moral e

conflituoso – da vida em comum. Deste modo, não deve surpreender que o segundo conjunto

de teóricos mencionado tenha na obra de Habermas o seu ponto inaugural. Assim, por um

lado, a distinção habermasiana entre trabalho e interação (reformulada posteriormente como a

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distinção entre ação instrumental e ação comunicativa) permite evitar interpretações limitadas,

baseadas apenas no modelo produtivista de ação, dos processos de aprendizado social com

potencial emancipatório. Ao mesmo tempo, contudo, a categoria do trabalho é por isso

colocada numa posição teórica tão marginal que “a moralidade prática inscrita nas ações

instrumentais, com a qual os sujeitos trabalhadores reagem à experiência de uma

instrumentalização capitalista total, é completamente excluída de seu quadro conceitual”

(AiH: 219de; 44en). Na teoria habermasiana, à categoria do trabalho cabe “apenas a tarefa de

designar o substrato de ação do desenvolvimento social de forças produtivas do qual se

distinguem os processos de libertação comunicativa” (AiH: 218de; 42-3en). Ou seja: aqui, o

mundo do trabalho permanece normativamente neutro, já que o potencial moral para a

emancipação estaria apenas no mundo da vida comunicativamente integrado. Habermas

empresta a ideia de ação instrumental de uma tradição da filosofia social que a neutralizou de

maneira tão ampla que ela passa a designar qualquer atividade relacionada ao manuseio de um

objeto (AiH: 221de; 46en). Honneth defende que é preciso poder distinguir, mediante uma

concepção crítica de trabalho, tipos diferentes da ação instrumental a partir do grau de

autonomia que os atores sociais detêm ao exercê-la:

Um conceito crítico de trabalho precisaria dar conta categorialmente da diferença

entre uma ação instrumentação na qual o sujeito trabalhador dirige sua atividade

segundo seu próprio conhecimento e a estrutura a partir de sua própria iniciativa, e

uma ação instrumental na qual nem o controle que acompanha a ação nem a

estruturação adequada ao objeto da atividade são deixadas ao sujeito do trabalho

(AiH: 222de; 46en).

As consequências da teoria habermasiana que postula uma distinção fundamental

entre uma esfera comunicativa normativa e uma esfera instrumental estratégica de ação não se

limitam à neutralização moral do trabalho (que fica confinado ao campo da ação racional com

respeito a fins) e à importância decrescente, na compreensão da realidade social e seu devir

histórico, conferida aos conflitos sociais moralmente. Tivesse Habermas diferenciado a

categoria de ação instrumental normativamente, como o fez com o espectro das ações

comunicativas, seria preciso reconhecer a existência de um tipo de conhecimento prático-

moral que advém não da consciência de relações de comunicação sistematicamente

distorcidas, mas sim da experiência de expropriação e “destruição” das atividades produtivas

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de trabalho (AiH: 222de; 46-7en).66

Nas palavras de Honneth: “A demanda normativa que é

assim expressa resulta de uma vulnerabilidade moral que não se origina na repressão de

modos comunicativos de entendimento, mas antes da expropriação da própria atividade de

trabalho” (AiH: 223de; 47en). Este tipo de experiência leva à formação de um conhecimento

moral materializado em atividades de trabalho que reclamam seu caráter autônomo “na

própria realidade organizatória de relações heterônomas de trabalho”. A lógica normativa

interna do trabalho a que se faz referência aqui não corresponde nem “à lógica das ações

comunicativas, que visa à coordenação orientada ao entendimento de intenções de ação, nem

à lógica das ações instrumentais, que visa ao controle técnico de processos naturais” (AiH:

223de; 47en).

Para descobrir a lógica normativa interna ao processo de trabalho social, Honneth

precisa encontrar um quadro teórico que amplie e radicalize os avanços da perspectiva

intersubjetiva acerca da realidade social aberta por Habermas. É nos estudos culturais, aos

quais Honneth se refere como “tentativas recentes de uma escrita da história social das

classes baixas e do proletariado industrial” (MsK: 186de; 208en), que o autor encontra a

base para fundamentar sua própria formulação da teoria crítica como o estudo praticamente

orientado da dinâmica moral dos conflitos sociais – isto é: como paradigma da luta por

reconhecimento. Para Honneth, o paradigma do reconhecimento poderia ser um sucessor do

paradigma de Marx no qual “a teoria da emancipação e a análise da sociedade seriam, como

antes, conectadas em um único conceito de teoria da ação: pois o processo de uma luta por

reconhecimento contém de modo prático, ao mesmo tempo, as normas morais a partir das

quais o capitalismo pode ser criticado como uma relação social de reconhecimento lesado”

(LdE: 102de; 14en). O objetivo do autor, aqui, é mostrar que o quadro conceitual de Marx

pode incorporar uma perspectiva que deriva não da lógica do trabalho, mas da lógica do

reconhecimento (LdE: 100de; 13en).

66

Honneth se apoia aqui, sem se comprometer com pretensões sistemáticas, no conceito de apropriação

utilizado na sociologia francesa “para designar esse tipo de lógica de ação que é ligada a processos

instrumentais de ação, mas que vai além deles” (AiH: 222de; 46-7en).

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1.2.2. Sofrimento moral, consciência de injustiça e resistência quotidiana

Os estudos culturais floresceram na segunda metade do século passado

especialmente na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos e representa uma reação teórica

às tendências utilitaristas e funcionalistas que muitas vezes marcaram o debate marxista (LdE:

89de; 6en). Esta vertente teórica procura compreender a ação dos atores sociasi a partir de

normas e valores coletivos compartilhados, os quais podem ser extraídos das práticas e

costumes inerentes à cultura quotidiana das classes sociais (sendo que o movimento operário

constitui o objeto privilegiado de análise). Os estudos culturais abarcam, assim, uma gama de

autores e investigações que têm em comum o propósito de analisar historiográfica e

sociologicamente distintos aspectos culturais da classe trabalhadora, em diálogo mas com

rupturas decisivas com a tradição marxista.67

Por conta da orientação para as práticas e

culturas quotidianas, os estudos culturais têm entre seus pontos fortes uma relação bastante

estreita com investigações históricas, etnográficas e sociológicas de cunho empírico. Este

aspecto é central para Honneth na medida em que, segundo sua concepção de teoria crítica,

se a teoria não quiser afirmar de modo meramente apelativo os critérios morais que

ela põe na base de sua crítica da sociedade, então ela precisa poder comprovar

formas empiricamente efetivas de moralidade nas quais ela possa justificadamente

se apoiar (MsK: 182de; 205en).

Para mostrar que este é o pano de fundo do trajeto intelectual de Honneth até a

formulação do paradigma da luta por reconhecimento no livro homônimo de 1992,

recorreremos inicialmente à pesquisa sociológica levada a cabo pelo autor e colaboradores

ainda em 1979, na qual a presença dos estudos culturais se mostra crucial para uma concepção

do mundo social que, pela valorização das dimensões culturais e morais dos conflitos

estruturais de classe, procura escapar à aporia entre estruturalismo e subjetivismo. O exame da

relevância da vertente sociológica e historiográfica dos estudos culturais é aprofundado, em

seguida, mediante a análise de textos publicados pelo autor ao longo da década de 1980.

O próprio Honneth chegou a aventurar-se no terreno da pesquisa social: os anais

da 19ª Conferência da Associação Alemã de Sociologia, de 1979, contêm a súmula dos

pressupostos teóricos de uma investigação acerca dos potenciais críticos presentes na

67

Muitos desses autores estiveram em algum momento ligados ao Center for Contemporary Cultural Studies de

Birmingham, um importante núcleo de produção e difusão dos estudos culturais fundado em 1964 por

Richard Hoggart e dirigido também por estudiosos como Stuart Hall. Para uma apresentação desta tradição

cf. Hall (1980).

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autocompreensão biográfica dos jovens da classe trabalhadora na Alemanha, da qual ele

participou juntamente a Birgit Mahnkopf e Rainer Paris. Tratava-se, em “Para uma ‘biografia

latente’ da juventude trabalhadora”,68

de encontrar um caminho interpretativo que permitisse

identificar tais potenciais de contestação sem, por um lado, tomar a própria autocompreensão

desses jovens de forma acrítica, como se ela correspondesse imediatamente à sua realidade

profunda, mas tampouco, por outro lado, atribuir esta autocompreensão unicamente a fatores

heterônomos, externos aos atores sociais. Em outras palavras, o que se buscava era então uma

via analítica que escapasse tanto de um estruturalismo objetivista quanto de um subjetivismo

relativista – questão de primeira importância no debate sociológico da época.

De um lado, os autores da pesquisa pressupõem a existência de um sentido não

intencionado – “objetivo”, por assim dizer – dos cursos de ação: as histórias biográficas dos

indivíduos são estruturadas por planos de vida transmitidos por meio da cultura de classe,69

de modo que o sentido dos processos socializadores de interação corresponde de maneira

apenas limitada à sua representação intrapsíquica na consciência dos sujeitos envolvidos (ZlB:

930). Nesse contexto, o que é “objetivo” são as situações de socialização (a família, a escola,

a rua, etc.) nas quais o jovem em formação adquire, inadvertidamente, as capacidades

estruturais de personalidade que pertencem à configuração psíquica básica dos sujeitos

adultos. Honneth, Mahnkopf e Paris baseiam esse primeiro pressuposto em pesquisas de

psicologia social com forte viés sociológico então realizadas na Alemanha acerca da estrutura

dos processos de interação socializadora no âmbito da família.70

Para os autores, a aquisição

de estruturas gerais de personalidade mediante processos formadores de socialização está tão

68

Título original: “Zur ‘latenten Biographie’ von Arbeiterjugendlichen” (daqui em diante abreviado como ZlB).

69 Sobre como esse conceito de cultura de classe é construído com base nos escritos de Richard Hoggart em The

Uses of Literacy e na categoria de “classe social” desenvolvida por E. P. Thompson em The Making of the

English Working Class, cf. Piromalli, 2012.

70 Cf. Oevermann et al. (1976). Esse estudo, apresentado também em uma Conferência da Associação Alemã

de Sociologia, faz parte de um conjunto maior de pesquisas desenvolvidas no Max-Planck-Institut für

Bildungsforschung sob o título “Elternhaus und Schule” (“A casa dos pais e a escola”), cujo objetivo era

desenvolver uma perspectiva de análise no campo da psicologia social que fosse mais ligada à sociologia do

que a vertentes da psicologia consideradas reducionistas: a psicologia comportamental e determinados usos

feitos de teorias do desenvolvimento cognitivistas ou psicanalíticas, que utilizam a sociologia apenas como

uma ciência auxiliar, uma fonte de dados, e não como capaz de fornecer explicações relevantes sobre os

processos de socialização (Oevermann et al., 1976: 274). É provável que a ideia de chamar o método

desenvolvido no estudo de Honneth et al. de “biografia latente” venha do conceito de “estrutura latente de

sentido” presente nesse texto (cf. Oevermann et al., 1976: 275).

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incrustada nos meios sociais de uma cultura de classe que os indivíduos não podem senão

adquirir padrões de identidade específicos de sua classe.

De outro lado, contudo, Honneth et al. consideram de grande valor a redescoberta

sociológica do método biográfico, acompanhada de uma orientação teórica – de importância

crescente na época – que leva em consideração a pré-interpretação subjetiva dos atores

sociais. Contra tentativas puramente objetivistas de explicar a ação social apenas a partir de

imposições socioestruturais, o método biográfico abre caminho para que sejam levadas em

conta as interpretações e reinterpretações da realidade social sempre já feitas na história de

vida dos atores.71

Assim como o primeiro pressuposto pode conduzir a um objetivismo extremado, o

procedimento biográfico corre o risco de se perder nas autointerpretações das experiências de

história de vida, uma vez que este método não permite desenvolver categorias e critérios

teóricos para uma interpretação propriamente sociológica de tais padrões de interpretação. Os

autores desenvolvem então a ideia de biografia latente precisamente para superar a aporia

entre o relativismo do método biográfico e o objetivismo que visa corrigi-lo, procurando obter

assim um meio teórico para investigar o significado, na história de vida dos sujeitos, de

padrões de autocompreensão típicos de classe que não se confundem totalmente com a

autocompreesão biográfica desses atores, mas que levam em conta sua pré-interpretação

subjetiva. O conceito de biografia latente remete, então, à seguinte ideia: a transmissão de

formas de afirmação pessoal típicas da cultura de uma classe estrutura a elaboração e a

constituição individual da biografia de modo prévio e significativo; isso somente aparece,

contudo, no próprio curso de reconstrução biográfica feita pelos sujeitos.72

Como

consequência, pode-se de um lado referir o significado das expectativas (estruturalmente

prévias) de comportamento social às interpretações (também prévias) específicas de classe da

realidade social; mas, de outro lado, podemos reconstruir esses conteúdos de interpretação

71

Aqui, a referência são os estudos sobre o tema realizados desde essa época por Martin Kohli na Freie

Universität, em Berlim. Cf. Kohli (1978 e 1979).

72 O termo “reconstrução” já é utilizado por Honneth et al. em diversas ocasiões nesse texto: evidentemente

ainda sem os mesmos contornos sistemáticos que o conceito ganharia posteriormente em seu modelo crítico,

mas certamente já com parte do insight que lhe será tão caro a partir dos anos 2000. A ideia de reconstrução

será retomada no Capítulo 6.

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culturais de classe somente por meio das autointerpretações biográficas dos sujeitos – sem

com isso precisar assumi-las acriticamente. Segundo os autores,

A constituição social das trajetórias de vida [Lebensläufen] se torna

sociologicamente explicável apenas de dentro para fora, por assim dizer: os planos

de personalidade de uma cultura de classe são depositados nas autopercepções

biográficas e direcionam objetivamente, desse modo, a realização individual da

história de vida (ZlB: 932).

Ao conceito de biografia latente subjaz o pressuposto decisivo de que, ainda hoje,

mantém-se o fato de que as formas de vida culturais das classes sociais carregam e transmitem

padrões próprios de autocompreensão pessoal, como se fossem uma espécie de memória

coletiva “na qual é estocado um reservatório de respostas comportamentais cotidianas a

experiências típicas de classe que se repetem de acordo com a geração e que é passado

adiante por meio de processos de aprendizagem não intencionais” (ZlB: 933).73

Ao analisarem o caso específico da cultura da classe trabalhadora (que não é

unitária porque varia de acordo com os grupos, a região e o grau de “infiltração” da cultura

dominante, entre outros fatores), Honneth et al. afirmam então que as experiências de

opressão são processadas na medida em que são desenvolvidas distintas estratégias de

neutralização das normas dominantes: “Essas formas culturais de defesa e resistência, que

certamente são limitadas em seus efeitos e permeadas por conservadorismos, formam o

campo simbólico no interior do qual são articuladas as formas mais distintas de crítica

social” (ZlB: 934).

O campo simbólico da cultura da classe trabalhadora alemã é caracterizado pelos

autores, com recurso a investigações dos estudos culturais então em ascensão, como

possuindo três traços gerais: esta cultura é fundamentalmente defensiva, informal e

masculina.74

Sem entrar nos detalhes de cada um destes traços gerais, pode-se dizer que o

contexto simbólico que compõe o repertório de formas possíveis de afirmação da identidade

entre os membros da classe trabalhadora é transmitido pela cultura de classe e entra de forma

latente na elaboração da história de vida dos sujeitos e nas disposições, atitudes e decisões

biograficamente significativas dos trabalhadores. Esse sentido latente pode então ser

73

Honneth, Mahnkopf e Paris apoiam-se aqui no estudo de Osterland et al. (1973) sobre a situação de vida e de

trabalho dos operários industriais na Alemanha Ocidental.

74 Os autores de referência aqui são, respectivamente: Parkin (1975), Hoggart (1971) e Tolson (1977).

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reconstruído como a expressão de uma contraposição relativa às normas de ação impostas

pelo sistema dominante de cultura. A contraposição é realizada sempre individualmente, mas

no interior do campo simbólico delimitado pela cultura de classe.

Feita esta caracterização geral da cultura de classe dos trabalhadores, os autores

podem então abordar a questão que lhes interessa primariamente, a saber: de que modo se dá a

constituição da identidade e a elaboração de uma biografia no caso específico da juventude

trabalhadora? Ao contrário das pesquisas tradicionais acerca de temas que envolvem a

juventude, as quais em geral concebem esta fase como um período de passagem

fundamentalmente aberto à experimentação – desconectada do âmbito familiar e da casa dos

pais – de alternativas autônomas de ação, Honneth et al. procuram, com o aparato conceitual

fornecido pelo conceito de biografia latente, investigar o tornar-se adulto de acordo com o

modo característico que essa faixa etária tem de processar os padrões de comportamento e de

decisão previamente dados da cultura de classe. Ou seja: acrescenta-se aqui a variável da

idade como mais um fator a ser considerado analiticamente.

Os autores defendem, então, que os jovens trabalhadores somente podem

constituir uma identidade própria na medida em que se contrapõem às exigências do sistema

dominante de cultura fazendo uso dos padrões de comportamento adquiridos no processo de

socialização pela cultura de classe, ao mesmo tempo em que precisam se afirmar

autonomamente (também dentro da sua cultura específica de origem) no processo de tornar-se

independentes com relação aos pais (ZlB: 937). Isso significa que os jovens desenvolvem

formas próprias de recusa e de caminhos de afirmação, apropriando e modificando os

elementos de sua cultura de origem de acordo com os seus próprios problemas, reforçando ou

enfraquecendo os traços gerais (defensivos, informais e masculinos) da cultura de classe –

mas sempre combinando os padrões da cultura trabalhadora com as formas da cultura

burguesa dominante para formar subculturas específicas da juventude.75

O texto é encerrado

com uma observação sobre o potencial crítico que está contido nestas subculturas (e nas

culturas de classe em geral), mas que precisa sair do seu estado de latência: “O conteúdo de

crítica social dos padrões culturais específicos de classe que adentram as autocompreensões

biográficas permanece latente enquanto os sujeitos não o transformarem, de modo

75

Os autores se apoiam aqui em Clarke et al. (1977).

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autorreflexivo, na medida de sua própria ação” (ZlB: 938). A pesquisa não vai além,

entretanto, para mostrar como efetivamente se dá a rearticulação de elementos da cultura de

classe da juventude trabalhadora com aqueles provenientes da cultura burguesa dominante,

nem como esse potencial crítico veio ou pode vir a se expressar concretamente em casos

específicos.

Honneth afirma em entrevista recente a Robin Celikates que essa pesquisa foi

importante para indicar, de forma ainda preliminar, que a busca por reconhecimento é uma

categoria central para a teoria social interessada em analisar as experiências de injustiça.76

Se

esta afirmação pode parecer um pouco exagerada – enquanto leitura teleológica da pesquisa

de 1979 a partir dos desenvolvimentos ulteriores da teoria honnethiana –, pode-se ao menos

conceder que, na investigação realizada junto a Mahnkopf e Paris, buscou-se trazer para o

primeiro plano as dimensões culturais e morais da dominação de classe e da resistência a ela –

dimensões que constituem um pressuposto básico para a construção da teoria do

reconhecimento. O papel de pesquisas empíricas na formação intelectual de Honneth é,

contudo, relativizado pelo autor na mesma entrevista. Ele afirma que:

Uma diferença adicional [com relação à trajetória intelectual de Luc Boltanski]

consiste em que o meu desenvolvimento teórico não foi condicionado por pesquisas

empíricas. Procurei superar as restrições da abordagem habermasiana somente por

meio de reflexões teóricas (Honneth & Boltanski, 2008: 87-8).

De fato, o que chama atenção no estudo sobre os jovens trabalhadores é que a

interpretação dos dados acerca da classe trabalhadora na Alemanha, obtidos de pesquisas

empíricas realizadas por estudiosos alemães, foi feita à luz de diversas obras da sociologia

marxista da cultura da classe trabalhadora que haviam sido recentemente publicadas na

Inglaterra e nos Estados Unidos por autores como Richard Sennett e Jonathan Cobb,

Barrington Moore, Richard Hoggart, Raymond Williams, Stuart Hall, Tony Jefferson, Frank

Parkin, John Clarke – todos citados no estudo de 1979 –, além de E. P. Thompson e outros.77

76

Honneth & Boltanski, 2008: 88-9.

77 Honneth afirma também, na sua crítica à concepção habermasiana da relação entre trabalho e ação

instrumental, ter podido reunir (indiretamente, por meio do trabalho de Birgit Mahnkopf – “Geschichte und

Biographie in der Arbeiterbildung”) sugestões interessantes oriundas das investigações em sociologia da

cultura realizadas no âmbito do Center for Contemporary Cultural Studies de Birmingham (AiH: 232de;

284en, nota 73). Vale aqui destacar também Alf Lüdtke, um estudioso que foi importante na recepção alemã

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O recurso a diversos representantes desta vertente teórica para a elaboração do modelo crítico

de Honneth mostra que o autor privilegia, em lugar de uma reconstrução que lida diretamente

com os dados empíricos da pesquisa social, uma forma mais indireta de reconstruir a realidade

social. Dito de outro modo: Honneth demonstra desde então uma preferência por partir de

pesquisas e teorias sociais realizadas por outros autores – as quais ele reconstrói à sua maneira

– para acessar a realidade social em lugar de proceder ele próprio à coleta e concatenação de

dados empíricos.

No texto analisado, os próprios autores justificam o recurso a tais obras por elas

adotarem uma perspectiva teórica que procura decifrar o sentido dos padrões de

comportamento dos trabalhadores em uma tensa relação entre estruturas sociais e formas

culturais de expressão. E aqui, “cultura”, em contraste com o conceito tradicionalmente

restrito a manifestações intelectuais e artísticas e em sintonia com a interpretação

antropológica do conceito, remete ao processo coletivo no qual as classes e os grupos sociais

estabelecem e passam adiante uma forma própria de vida: são incluídas desde as relações

familiares e de produção, as formas de comunicação verbais e não verbais, as normas internas

aos grupos, até as produções culturais em sentido mais estrito (ZlB: 933-4).

Com efeito, este modo expandido de conceber a cultura, trazido ao centro da

atenção teórica pela sociologia inglesa e americana do trabalho, é fundamental para o tipo de

pesquisa que Honneth pretende realizar. Tal concepção lembra, inclusive, o conceito de

cultura presente nos escritos iniciais de Horkheimer, como o próprio Honneth nota em Crítica

do poder78

– onde uma concepção ampla de cultura, comparada a como ela aparece nas obras

de E. P. Thompson e Raymond Williams, é elogiada como uma possibilidade (que

infelizmente Horkheimer não levou adiante) de evitar o déficit sociológico resultante de um

modo cada vez mais restrito de conceber o mundo cultural e social.

Essa diversificada vertente teórica chamou muito cedo a atenção de Honneth por

oferecer uma alternativa frente às análises sociológicas que reduzem a ação social dos

trabalhadores à dimensão cognitiva ou instrumental da consciência de classe. A partir do

da sociologia inglesa da cultura, citado por Honneth no estudo de 1979. Ele foi o fundador da linha da

“Alltagsgeschichte” (“história do cotidiano”) da micro-história, que se tornaria forte entre historiadores

alemães ao longo da década de 1980.

78 Honneth refere-se ao conceito de cultura presente em Horkheimer, 1993.

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contato com o marxismo cultural, Honneth desenvolve a ideia de que uma teoria crítica da

sociedade deve manter um estreito laço com as motivações normativas dos indivíduos

presentes na realidade social de modo pré-teórico. Isto significa que o pesquisador filiado à

tradição crítica tem como tarefa procurar a possibilidade de crítica na própria vida cotidiana

dos atores sociais. Essa é uma das carências das outras versões da teoria crítica, como ele

aponta no livro de 1986, e é por isso que em diversos textos da década de 1980 Honneth se

pergunta acerca dos conflitos morais velados (verborgen) que subjazem às ações e decisões

dos sujeitos comuns. Honneth afirma, na introdução à versão em inglês da coletânea em que

foi reunida a maior parte destes textos, que:

O esforço em compreender mais precisamente a maneira pela qual a moralidade

está inscrita na prática social cotidiana nos dirige primeiramente para estudos

históricos e sociológicos que se preocuparam com a conduta e a reflexão moral dos

membros de classes sociais que tradicionalmente não se especializaram na

articulação de experiências morais (Honneth, 1995: XIV).

Tais estudos históricos e sociológicos são exemplificados logo adiante: são

mencionados The Hidden Injuries of Class, de Richard Sennett e Jonathan Cobb (1972) e

Injustice, de Barrington Moore (1978).79

Honneth continua:

Do encontro com investigações deste tipo emergiu a conclusão de que a motivação

subjacente a atos de resistência política ou, em todo caso, a qualquer tipo de ação

de protesto, não é uma orientação por princípios morais positivamente formulados,

mas sim a experiência da violência dirigida a concepções de justiça intuitivamente

pressupostas (Honneth, 1995: XIV).

Assim, com a ajuda dos estudos culturais, Honneth procura mostrar “Trabalho e

ação instrumental” que, mesmo em espaços de atividade laboral amplamente

racionalizados e fragmentados, existem lutas por um trabalho satisfatório que envolvem

distintas formas de resistência e reapropriação do controle dos sujeitos sobre as operações

produtivas. Honneth menciona a este respeito autores da sociologia inglesa do trabalho como

Moore e Braverman, mas sua referência principal aqui é a investigação empírica de Philippe

Bernoux publicada na revista Sociologie du travail (Bernoux, 1979), em que o sociólogo

francês documenta as estratégias cooperativas utilizadas pelos trabalhadores para resistir à

expropriação de suas capacidades de iniciativa e à utilização do seu conhecimento tácito:

79

Honneth cita também, em diferentes momentos de seu artigo, trabalhos de George Rudé, Michael Mann,

William Goode, Harry Braverman e Frank Parkin.

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Em um ensaio intitulado “La résistance ouvrière á la rationalisation: la

réappropriation du travail”, Philippe Bernoux relata sua investigação empírica

que, com a ajuda de observações participativas, questionários estandardizados e

entrevistas abertas, investiga o significado daquela ampla zona de práticas

quotidianas de ação nas quais os trabalhadores de uma indústria violam e

subvertem sistematicamente as normas de produção determinadas pela direção

empresarial e corporificadas na organização técnica do trabalho (AiH: 224de; 47-

8en).80

De acordo com este ponto de vista, a normatividade inscrita nas práticas

quotidianas dos atores sociais não se mostra em fenômenos de comunicação distorcida, como

quer Habermas, mas sim de expropriação da atividade social produtiva, o que impede ou

prejudica decisivamente a autorrealização dos sujeitos. A tais experiências de expropriação

sistemática de sua atividade de trabalho (cf. Braverman, 1974) responde então um conjunto de

infrações e violações de normas que se tornaram cotidianas e por meio das quais os

trabalhadores procuram preservar informalmente o controle sobre as operações de produção.

Por isso, a política de produção capitalista é sempre acompanhada de um processo contrário

de resistência, no qual os trabalhadores procuram utilizar, em seu local de trabalho, um

conhecimento profundo sobre suas atividades laborais específicas como meio informal de

resistência prática (MsK: 201de; 219en).81

Assim, diz Honneth,

Se, contudo, [...] os resultados aduzidos pelo estudo de Philippe Bernoux não forem

completamente enganosos, o trabalho industrial taylorizado e esvaziado de sentido

é sempre acompanhado de um processo de ação contrário no qual os sujeitos do

trabalho procuram cooperativamente recuperar o controle sobre sua própria

atividade (AiH: 225de; 48en).

Todo trabalho alienado ou expropriado contém, portanto, um “momento de recordação

prática” (ein Moment praktischer Erinnerung) no qual pode vir à tona a percepção de que

uma dominação não justificada lhe é inerente (AiH: 225de; 48en).

Para Honneth, é fundamental reconhecer que, ao procurar trazer os processos de

trabalho heteronomamente determinados de volta para o horizonte de uma atividade planejada

e controlada de forma autônoma, os trabalhadores expressam demandas que são imanentes à

sua própria atividade (AiH: 224-5de; 48en). É preciso, portanto, focar nas formas quotidianas

de juízo moral e considerar a práxis social como atravessada por convicções éticas

80

Nicolas Smith afirma, sobre essa apropriação, que: “Da maneira que Honneth os interpreta, os estudos de

Bernoux mostram que, na negatividade de sua experiência, os trabalhadores podem vir a perceber o papel

crítico da autonomia, da iniciativa e do conhecimento prático em seu trabalho, que eles procuram, então,

incorporar indiretamente” (Smith, 2009: 51, tradução MT).

81 Honneth se apoia aqui em Hoffmann (1979 e 1981).

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subjacentes, de modo que é um erro considerar que a emancipação, no mundo do trabalho,

depende da inserção de normas morais externas a ele. Diz Honneth:

Contra o autoengano tenaz que assim se expressa, é sensato lembrar das formas

quotidianas de juízo moral; apenas uma teoria que pode mostrar o quanto a práxis

social quotidiana é perpassada por sentimentos éticos e expectativas normativas

pode de fato abrir os olhos para o conteúdo de realidade social da moral (DvE: 84-

5de; 121it).

A teoria deve ser capaz de conectar duas pressuposições fundamentais:

“primeiramente, é preciso poder comprovar uma moralidade historicamente efetiva que está

enraizada nos esforços recíprocos dos sujeitos pelo reconhecimento de sua identidade” (LdE:

102de; 13en), de modo que a força que impulsiona os conflitos práticos e que estimula o

desenvolvimento histórico da sociedade é concebida na forma de uma luta pelas condições de

reconhecimento social. A isto deve se ligar a necessidade de poder encontrar na sociedade as

condições e situações sociais que levam à violação do autorrespeito dos indivíduos; isto é:

para que a ideia da luta por reconhecimento como o que abre o caminho para o progresso

moral tenha plausibilidade, é preciso que formas sociais de organização possam aparecer

como relações específicas de reconhecimento deteriorado. E o que conecta esses dois

momentos é a “análise de sentimentos de autorrespeito violado e de reconhecimento lesado”

que “representam a matéria-prima motivacional das lutas pelas condições sociais do

reconhecimento” (LdE: 102de; 13-4en).

Essa ideia é defendida por Honneth em inúmeros momentos de sua produção

teórica da década de 1980. Em “A honra ferida”, por exemplo, o autor se contrapõe à ideia de

que apenas se pode atribuir um conteúdo moral à formulação de princípios normativos nos

moldes de uma ética filosófica bem estruturada: “Mediante uma tal equiparação das

concepções sociais morais com a forma de argumentação de éticas filosóficas”, diz Honneth,

“perde-se de saída, no entanto, particularmente a realidade de que se trata” (DvE: 85de;

122it). Com isso, emergem duas ficções que impedem a apreensão da forma quotidiana de

julgamento moral: 1) surge a impressão de que a consciência moral quotidiana deveria possuir

a mesma consistência e unidade que as teorias morais; e 2) sugere-se que as representações

morais informais são compostas de juízos positivos acerca do agir correto (DvE: 85de). Trata-

se de ficções porque:

Apenas nos raros casos de uma resolução discursiva de conflitos de ação as

instituições morais quotidianas se destacam do vago horizonte de sentimentos

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vividos e tomam a forma de argumentos linguisticamente explícitos, passíveis de

serem conciliados; elas possuem tipicamente, no entanto, a forma de reações

emocionais negativas que apenas implicitamente remetem a princípios morais

suprapessoais (DvE: 85de).

Segundo esse ponto de vista, os atores sociais apenas expressam linguisticamente

suas expectativas normativas quando se encontram sob uma pressão suficientemente forte

para fazê-lo. Do contrário, suas convicções morais fundamentais aparecem apenas

indiretamente, na forma de sentimentos de injustiça. A consciência moral quotidiana é

composta, portanto, não de normas prescritivas e argumentativamente articuladas de ação,

mas acima de tudo de uma sensibilidade mais ou menos aguçada para violações de normas

morais, que se expressa em reações afetivas negativas: “ela não prescreve o que é moralmente

interditado, mas antes reage com sentimentos negativos às transgressões de normas de ação

cuja validade moral ela sabe apenas implicitamente” (DvE: 86de). Assim, as representações

morais não adentram as situações quotidianas de ação a partir de fora, mas são componentes

elementares de toda interação comunicativa (DvE: 87de). Elas apenas emergem à superfície,

no entanto, quando ocorre um distúrbio ou uma interrupção na relação intersubjetiva

quotidiana que leva a tais reações emocionais negativas: “o processo de interação é

interrompido porque nós sentimos que são violadas, por nós mesmos ou por outros, aquelas

expectativas normativas que implicitamente consideramos como normas justificadas da ação

social” (DvE: 89de).

As reações emocionais negativas que têm um conteúdo normativo e podem,

portanto, ser consideradas morais são, por exemplo, a vergonha e a culpa, a revolta e a

indignação (die Scham und die Schuld, die Empörung und die Entrüstung; DvE). Nos dois

primeiros, o próprio sujeito fere uma norma que ele considera como socialmente válida; nos

dois últimos o indivíduo sente que normas consideradas válidas foram feridas por um parceiro

de interação. Em ambos os casos, fica patente o conteúdo intersubjetivo, supraindividual

(überpersönlichen) destes sentimentos morais.82

Honneth chega a afirmar nesse texto que os

82

Honneth defende que há, nas reações morais afetivas a violações de normas implícitas, uma conexão entre

uma noção de justiça centrada na individualidade dos atores sociais e uma concepção de solidariedade que

leva em consideração primariamente os processos intersubjetivos de socialização dos indivíduos: “Exigências

de justiça e obrigações de solidariedade formam, se essas reflexões foram convincentes, o cerne normativo

de nossas reações morais emocionais; as normas morais às quais nos referimos implicitamente quando

reagimos com vergonha ou revolta exigem um respeito equitativo pela individualidade intransferível do

sujeito singular da mesma forma requerem um cuidado solidário no tratamento dos demais seres humanos”

(DvE: 89de).

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sentimentos morais de injustiça encontram uma expressão inequívoca (untrüglich) nas reações

emocionais negativas em questão (DvE: 89de). No mesmo sentido, ele defende que o saber

intuitivo acerca de normas geralmente aceitas “não surge, por sua vez, independentemente

das reações emocionais correspondentes; ele não precede a situação da ação, escrutando-a,

mas apenas se manifesta em situações de sentimentos morais” (DvE: 87de). Por isso, diz

Honneth, cognição e emoção estão inseparavelmente imiscuídas nas reações afetivas morais:

“nossas concepções morais quotidianas possuem de início apenas a forma de um saber de

fundo que é sensível, porém implícito, e que se expressa nos sentimentos espontâneos de

vergonha, indignação ou revolta” (DvE: 87-8de).

A importância dos sentimentos de injustiça que se expressam na forma de

sofrimento moral também aparece em “Um mundo de dilaceração”, ensaio que Honneth

publica em 1986 sobre o jovem Lukács.83

Aqui, o filósofo húngaro aparece como uma figura

importante para a teoria crítica menos por sua abordagem teórico-social específica do que por

oferecer um verdadeiro “registro sismográfico” dos distúrbios característicos dos padrões de

integração cultural da época (WdZ: 22dew; 58en). Em que pese não considerar que o núcleo

do paradigma teórico lukácsiano seja plausível nos dias de hoje, Honneth afirma não poder

negar que Lukács demonstra, em parte em decorrência do romantismo anticapitalista que

informa sua obra de juventude, uma aguçada sensibilidade para perceber, nos processos de

diferenciação que acompanham o capitalismo industrial, aquelas condições que seriam

satisfeitas apenas em um desdobramento vital completamente integrado: “a racionalização

capitalista da atividade de trabalho se apresenta a ele como uma destruição das

possibilidades de exteriorização individual, e ele experiencia o simultâneo aumento da

divisão do trabalho como um colapso da sociedade em sujeitos atomizados, isolados” (WdZ:

15de; 54en).84

A interpretação filosófica da dilaceração do mundo moderno sociologicamente

registrada apoia-se sobre um modelo de externalização típico da filosofia vitalista alemã do

início do século passado (WdZ: 17de; 55en), e por isso Honneth põe em dúvida sua

aplicabilidade para o presente. O que importa, entretanto, é que Lukács foi coerente ao

83

Título original: “Eine Welt der Zerrissenheit. Zur untergründigen Aktualität von Lukács’ Frühwerk”

(abreviado daqui em diante como WdZ).

84 A tese de Honneth neste texto reside na ideia de que justamente o anticapitalismo romântico permitiu que a

sensibilidade teórica de Lukács para os distúrbios da integração cultural fosse intensificada e sua consciência

de patologias sociais fosse aguçada, o que confere relevância nos dias atuais às suas obras de juventude

(WdZ: 10de; 51en).

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postular uma conexão necessária entre a autorrealização humana e a formação da comunidade

social, de forma que a ideia de “progresso” se expande para além dos conceitos de justiça

social e de liberdade universal, para englobar a noção de socialização bem-sucedida (WdZ:

22de; 59en). Apenas quando se tem em vista esta conexão fundamental torna-se possível

enxergar e reconhecer, no processo de modernização capitalista, as experiências de sofrimento

(Leidenserfahrungen) e os fardos subsequentes (Folgelasten; WdZ: 22de; 59en). Isto porque

sem nenhum tipo de antecipação normativa de um padrão de socialização bem sucedida, não

distorcida, “o sofrimento social e a dor individual” causados pelo processo de dilaceração do

tecido social sob o capitalismo permanecem inacessíveis à reflexão teórica: “apenas à luz de

tais ‘valores fortes’, como Charles Taylor chama as visões teoricamente incontornáveis da

vida bem sucedida, o sofrimento social emerge como sofrimento” (WdZ: 22de; 59en). Para

Honneth, o diagnóstico de patologias sociais assim alcançado apoia-se sobre avaliações e

interpretações intuitivas mais do que sobre uma fundamentação conclusiva, e pode superar

seu caráter meramente subjetivo apenas “Se, em uma investigação guiada por interpretações

de diagnóstico de tempo, se pode mostrar também empiricamente que a violação capitalista

daquelas pré-condições teoricamente afirmadas de uma socialização não distorcida de fato

conduz a distúrbios sociais e sofrimento individual” (WdZ: 23de; 60en). Assim, a concepção

intuitiva de um processo bem-sucedido de socialização tem o poder de expor a realidade

social apenas negativa e indiretamente, mediante a referência a desenvolvimentos indesejáveis

na vida social mesma, que vêm à tona no sofrimento dos atores sociais: “A esse respeito, a

obra de juventude de Lukács, tomada como o órgão sismográfico de uma teoria crítica da

sociedade, remete também a uma continuação mediante a pesquisa social empírica” (WdZ:

24de; 60en).

Honneth procura compreender a disparidade que existe entre, de um lado, as

concepções de justiça normativamente fundamentadas e formuladas de maneira mais ou

menos sofisticada no âmbito da cultura burguesa e suas vanguardas políticas e, de outro, a

moralidade social contextualista e altamente fragmentária das classes dominadas, expressas

em avaliações negativas porém não generalizadas em um sistema abrangente de princípios

(MsK). A disparidade ocorre porque o meio cultural das camadas sociais subalternas carece

de um potencial de estímulo para a elaboração das próprias convicções de valor comparável

ao das classes mais altas e mais escolarizadas, de modo que seus membros são em grande

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medida excluídos da possibilidade de uma relativização ética ou uma estilização verbal de

suas normas de ação. Também aqui, Honneth defende que a moralidade interna da

consciência social de injustiça pode ser apenas indiretamente lida a partir dos critérios da

desaprovação moral de acontecimentos sociais. Nem suas premissas de valor nem suas

concepções de justiça são articuladamente manifestas. Comprovam indiretamente essa

afirmação pesquisas empíricas que mostram que os membros da classe trabalhadora, no

tratamento de problemas morais de seu entorno de vida (Lebensumwelt) reagem de um modo

normativamente seguro (normensicher) e eticamente maduro; com relação a questões sobre os

princípios de valor que deveriam guiar uma ordem social justa, eles recorrem, ao contrário, de

modo desamparado a clichês normativos. Sendo assim, uma abordagem que se propõe a medir

o potencial normativo dos distintos grupos sociais a partir apenas de concepções coletivas e

universais de justiça falha em dar conta de sua moralidade implícita. Se um sistema de valores

generalizado e orientado positivamente por normas morais parece improvável na realidade das

camadas e classes socialmente oprimidas – “porque a sua situação social de classe não força

nem promove uma elaboração reflexiva ou uma generalização lógica” (MsK: 211en) –, suas

demandas normativas são preservadas na forma de uma consciência de injustiça que se

expressa nas lutas quotidianas por reconhecimento social no campo do trabalho, onde se

escondem evidências de uma condenação moral da ordem social existente. O conceito de

consciência de injustiça “deve salientar que a ética social dos grupos oprimidos não contém

concepções de um ordenamento moral geral ou projeções de uma sociedade justa abstraídas

de situações particulares, mas representa antes um sensório altamente sensível para

violações de demandas morais consideradas justificadas” (MsK: 187de; 209en). Assim,

“quando a história social da classe trabalhadora se debruça sobre ideias normativas na vida

quotidiana do proletariado industrial, é mais provável encontrar sentimentos de injustiça

firmemente ancorados do que metas claramente formuladas e eticamente fundamentadas”

(MsK: 209en).

Essas tentativas não coordenadas e em grande parte não verbais de recuperar a

autoestima e o autorrespeito violados estão na base de uma consciência sensível de injustiça

que reclama, implicitamente, uma redefinição social da dignidade humana (MsK: 200de;

219en). Para Honneth, a ética social autêntica das classes subalternas forma um quadro de

sentimentos morais não escritos e ligados à experiência que funciona como um “filtro

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cognitivo” no qual colidem sistemas de normas hegemônicos e contra-hegemônicos (MsK:

187de; 209en). A moralidade interna das classes oprimidas, preservada em um complexo de

critérios de condenação ética, representa o negativo de uma ordem moral institucionalizada;

seu potencial historicamente produtivo consiste em que ela traz à tona, indiretamente,

possibilidades de justiça hegemonicamente excluídas (MsK: 187de; 209en). Nas palavras de

Honneth:

Se essas reflexões forem convincentes, então na consciência de injustiça dos grupos

sociais é preservado negativamente um potencial de expectativas de justiça,

demandas de necessidade [Bedürfnisansprüche] e concepções de felicidade que, por

motivos socioestruturais, de fato não alcançam o limiar de projetos [Entwürfen] de

uma sociedade justa, mas permitem indicar caminhos não exauridos de progresso

moral (MsK: 191de; 212en).

Assim, sob essa perspectiva se dá uma série de ações sociais às quais à primeira

vista parecem faltar intenção e direção prático-normativas, mas que podem ser reconhecidas

como formas de expressão da consciência moral de injustiça.

O grande problema envolvendo a consciência moral de injustiça não articulada na

forma de princípios morais universais reside em que é extremamente difícil apreendê-la

teórica e reflexivamente. Com isso, justamente aquelas partes do horizonte individual de

experiência que consistem em violações, injustiças e privações específicas de classes

permanecem amplamente omitidas (ausgespart) e exteriores ao discurso público, sendo

justificáveis individualmente apenas com muito esforço. Este processo de privação linguística

(Sprachraub)85

é acompanhado por processos de repressão institucional das tradições

culturais e processos políticos de aprendizagem dos movimentos sociais de resistência (MsK:

193de; 213en), de modo que a consciência socialmente efetiva de injustiça está, em geral,

submetida a um conjunto de mecanismos de controle que, se não a dissolve (auflöst)

completamente, restringe significativamente suas chances de articulação. A análise da

consciência de injustiça e das ações de resistência é, deste modo, dificultada pela

circunstância de que as formas de experiência e manifestação são codeterminadas tanto pelo

grau de sua organização política quanto pelo nível de controle social, de modo que “a

consciência de injustiça manifestada dos grupos sociais não permite uma inferência direta

sobre a medida da injustiça socialmente percebida” (MsK: 194-5de; 215en). Por isso,

Honneth considera altamente problemático aduzir apenas as demandas social e politicamente

85

Honneth se refere aqui à ideia de “deslinguistificação” (Entsprachlichung) presente em Kluge e Negt, 1972.

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publicizadas de justiça como indicadores para os conflitos normativos empiricamente efetivos

em uma sociedade (MsK: 195de; 215en).86

Pode-se dizer que, com estas considerações acerca da consciência de injustiça,

Honneth pretende sugerir uma direção não apenas para suas reflexões categoriais, mas

também para a realização de pesquisas empíricas sobre a dimensão conflituosa e não

publicizada das lutas de classes que não atingiram ainda uma forma politicamente

institucionalizada. O autor visa, assim, manter a teoria crítica da sociedade aberta para

conflitos normativos socialmente reprimidos, nos quais as classes dominadas chamam atenção

para restrições estruturais de demandas de justiça, isto é: potenciais até então não exauridos

(unausgeschöpft geblieben, MsK: 201de) de progresso histórico.

A este respeito, Honneth se contrapõe à teoria habermasiana da sociedade na

medida em que esta negligencia sistematicamente as formas de crítica social existentes que

não são reconhecidas na esfera pública política hegemônica. Diz Honneth:

Suspeito que Habermas tenha de implicitamente ignorar todos os potenciais morais

de ação que, se de fato não alcançaram o nível de julgamentos elaborados de valor,

se corporificam, no entanto, em ações culturalmente codificadas de protesto

coletivo ou também em uma “desaprovação ética” (M. Weber) que permanece

muda (MsK: 185-6de; 208en).

O caráter velado de uma parte importante dos conflitos sociais moralmente

motivados é destacado por Honneth em outros textos do período. Essa ideia já está presente

em “Trabalho e ação instrumental”, texto no qual o sistema categorial de Habermas aparece

como preterindo o espectro da consciência de injustiça que surge a partir da expropriação

sistemática da atividade de trabalho (AiH: 222-3de; 47en). No mesmo texto, Honneth aponta

que a resistência das classes subalternas ocorre em grande medida de modo subterrâneo e

informal, em ações cotidianas que não são visíveis à primeira vista mesmo pela análise

sociológica – e tanto menos quando se utiliza o aparato conceitual fornecido unicamente por

uma filosofia moral ou política com alto nível de abstração. Ela exige métodos específicos

(inclusive no campo da pesquisa social empírica) e categorias refinadas para ser revelada. No

86

Honneth procura distinguir processos de exclusão cultural de processos de individualização institucional para

descrever o mecanismo da dominação normativa de classe. Esses processos de controle social cumprem sua

tarefa na medida em que limitam seja as possibilidades simbólicas e semânticas de expressão, seja as

condições espaciais e socioculturais de comunicação para as experiências de privação e injustiças específicas

de classe. O primeiro processo visa subtrair aos dominados as possibilidades linguísticas de articulação, ao

passo que o segundo visa à individualização da consciência de injustiça específica de classe.

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mesmo ensaio, Honneth destaca que a prática de reapropriação do trabalho que é objeto de

investigações da sociologia industrial “é manifestamente tão inconspícuo no quotidiano do

processo capitalista de trabalho que ela se localiza de modo duradouro abaixo do limiar de

articulação acima do qual a sociologia pode começar a registrar comportamentos conflituosos

ou violações de normas” (AiH: 225de; 48en). Por isso, Honneth sugere que a arte, e

especialmente a literatura, tiveram e ainda têm uma importância crucial para documentar esse

campo de resistência prática, tendo por vezes um alcance maior e mais preciso que a pesquisa

social empírica (AiH: 225de; 48en). A mesma ideia aparece em “A honra ferida”, onde

Honneth afirma que

O instrumental conceitual escolhido é grosseiro demais para poder decodificar a

moralidade interna de um contexto comunicativo de vida; ele falha face às formas

silenciosas de reação nas quais os sentimentos de injustiça sofrida ou de ofensa

infligida alcançam expressão. Seria preciso de início uma hermenêutica que

pudesse trazer à consciência o conteúdo moral daquelas reações emocionais e

sentimentos de injustiça que perpassam profundamente a práxis social quotidiana

(DvE: 86de).

O autor recorre, neste texto, ao romance de Heinrich Böll intitulado Die verlorene

Ehre der Katharina Blum para mostrar como uma indignação inicial pode transformar-se em

uma revolta moral com consequências práticas decisivas. Trata-se do processo que leva de

injúrias e ofensas (Kränkungen), de uma indignação silenciosa (lautloser Empörung) e de um

ressentimento mudo (stummer Entrüstung) a uma revolta moral (moralische Wut). Honneth

completa: “Exemplos literários desse tipo podem ser encontrados muitos; neles é comum o

bastante apreender, de modo ao mesmo tempo mais sensível e mais exato que na pesquisa

sociológica, a medida na qual a práxis social quotidiana é perpassada por sentimentos éticos

que aderem a um saber implícito acerca da validade geral de normas morais” (DvE: 88de).

Dentro do campo acadêmico, a corrente teórica que Honneth considera mais

preparada para identificar tais sentimentos de injustiça é, como vimos, precisamente a

vertente marxista dos estudos culturais.87

Em “Consenso moral e sentimento de injustiça”,

texto de 1984 sobre Injustice (livro publicado por Barrington Moore em 1978 e considerado

um clássico dos estudos culturais de origem norte-americana),88

Honneth se debate com a

87

Não por acaso, essa corrente teórica conferiu uma importância inaudita às expressões artísticas e literárias

produzidas no âmbito da (e sobre a) cultura da classe trabalhadora.

88 Título original: “Moralischer Konsens und Unrechtsempfindung. Zur Barrington Moores Untersuchung

Ungerechtigkeit” (abreviado daqui em diante como MKU).

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96

questão, tão cara a Moore, acerca dos motivos que levam os indivíduos ora a aceitarem

determinadas ordens sociais desvantajosas para si, ora a empregar toda sua energia para

transformar sua situação.89

Moore considera que em toda sociedade existe um consenso

elementar, na forma de uma série de acordos não verbalizados, no qual é implicitamente

estabelecido como as tarefas e ônus sociais devem ser “justamente” distribuídos. Esta teoria

do contrato social implícito é fruto da hipótese sociológica que guia o estudo de Moore, qual

seja: que as experiências e sentimentos morais dos grupos sociais são de importância primária

no processo de integração da sociedade (MKU: 114it). Como esse contrato não é

explicitamente codificado, mas sim tacitamente renovado de modo quotidiano, o consenso

moral que está na base da integração social é relativamente frágil, pois está continuamente

aberto a um processo permanente de reelaboração social (MKU: 115-6it). Em toda sociedade,

portanto, se dá uma luta moral entre grupos sociais, incessante e difusa por todos os lugares,

sobre a legitimidade do consenso existente.

Moore defende, desta maneira, a tese forte de que apenas a expectativa moral de

uma distribuição justa de deveres e ônus sociais – e não a simples resignação ou o mero

cálculo oportunista – pode motivar a disponibilidade de obediência dos grupos socialmente

oprimidos (MKU: 117it). Como consequência, seria preciso admitir que mesmo os

ordenamentos sociais mais repressivos e baseados na desigualdade contaram, pelo menos por

um curto período de tempo, com o consenso moral de todos os grupos sociais.90

Assim,

Moore considera que existe um mínimo moral em toda sociedade, de modo que as classes

baixas podem questionar se as classes dominantes estão respeitando o compromisso que é

objeto de um acordo considerado por todos de modo geral como válido (MKU: 116it). Neste

sentido, duas questões se impõem: 1. por que os grupos socialmente subordinados estão

89

O livro de Moore é composto por três partes que podem ser descritas, em linhas gerais, do seguinte modo: a

primeira parte corresponde ao nível sociológico da análise dos motivos que levam à obediência ou à revolta;

na segunda parte, Moore se dedica à história concreta das revoltas populares, baseando-se em autobiografias,

análise de fontes e de situações históricas; e na terceira e última parte o autor procura aduzir mais uma prova

para o seu argumento, na qual o fenômeno histórico do nazismo é analisado como um uso tão eficaz quanto

perigoso de percepções morais de injustiça pré-existentes em vista de objetivos bem definidos (MKU: 113-

4it).

90 Aqui é possível perceber uma diferença com relação a “Consciência moral e dominação social de classe”,

onde Honneth considera que os postulados hegemônicos de legitimação têm uma aceitação pragmática: “essa

consciência de injustiça relativamente fixa, próxima da experiência e que repousa sobre concepções não

articuladas e não coordenadas de justiça, permite pragmaticamente que as normas hegemônicas – porque

ela não possui um sistema alternativo de normas comparavelmente abstrato – valham, sem, entretanto

[freilich] ter aceitado normativamente sua pretensão de validade” (MsK: 195de; 215en).

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97

dispostos a aceitar um contrato social opressor? 2. Sob quais circunstâncias particulares e com

base em que critérios os estratos mais baixos da sociedade passam a considerar que o mínimo

de consenso que garante o acordo não está sendo cumprido pelas classes dominantes? (MKU:

116-7it). A hipótese central de Moore consiste em que existem formas de violação deste

contrato que são geralmente capazes de suscitar a revolta ou cólera moral (moralische Wut) e

o senso de injustiça entre aqueles que são submetidos à autoridade (MKU: 116it). As

violações que geram reações morais negativas não atingem, segundo esta perspectiva,

simplesmente os interesses materiais, mas sim os sentimentos morais e as frustrações das

expectativas normativas dos grupos sociais.

Um aspecto importante nesse contexto é a insistência de Moore no caráter

defensivo das revoltas sociais. A partir de uma detalhada descrição empírica dos movimentos

revolucionários entre 1848 e 1920 na Alemanha, Moore defende que os sentimentos e as

disposições morais que sustentaram as ações políticas desses grupos de trabalhadores não

tinham origem na prefiguração de uma sociedade melhor, mas sim na intenção de manter em

vida um contrato social que era originariamente experienciado como justo (MKU: 118it).

Assim, não foram ideias novas de justiça, sem precedentes históricos, que, aos olhos dos

grupos em desvantagem, privaram de validade o contrato social considerado até aquele

momento como legítimo, mas, ao contrário, foi a preocupação em manter um consenso

vigente e considerado satisfatório que colocou em movimento as ações políticas de resistência

que irromperam nas sublevações revolucionárias da classe operária (MKU: 119it). Diz

Honneth:

apenas o pressentimento inesperado, jorrado do rompimento da rotina quotidiana,

de que o contrato social que se anuncia no horizonte traz consigo condições de vida

piores que aquelas às quais a memória histórica ainda se refere, pode estar na base

do surgimento de sentimentos de injustiça e indignação social (MKU: 119it).

*

O contato com tais autores foi importante para que Honneth voltasse sua atenção

para o fenômeno do reconhecimento já no início da década de 1980, mais de dez anos antes

da publicação de Luta por reconhecimento. É verdade que a referência central para construção

do quadro teórico do reconhecimento nesse livro são os escritos do jovem Hegel, mas as suas

bases já começam a ser construídas muito tempo antes. Tanto os fundamentos da teoria da

luta por reconhecimento quanto a censura de Honneth ao déficit sociológico dos modelos

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98

críticos que lhe são anteriores estão vinculados a uma perspectiva centrada no campo do

social, das expectativas morais e das concepções intuitivas de justiça – perspectiva que lhe foi

aberta principalmente pela leitura dos autores pertencentes ao campo dos estudos culturais. A

partir da exposição precedente, podemos arrolar uma série de conceitos advindos dessa

corrente intelectual que exerceram um papel mais ou menos central no trajeto intelectual de

Honneth: senso ou consciência de injustiça e contrato social implícito (Barrington Moore);

injustiças ocultas de classe e contracultura de respeito compensatório (Richard Sennett e

Jonathan Cobb); cultura de classe (Richard Hoggart); e classe social e economia moral (E. P.

Thompson).

A apropriação de resultados dos estudos com um forte componente cultural e

normativo produzidos pela sociologia inglesa e americana do mundo do trabalho permitiu a

Honneth, então, tanto afastar-se das vertentes mais mecanicistas do marxismo da época (que

derivam a cultura de classe diretamente da posição ocupada por seus membros no processo de

produção, sem levar em consideração a sua capacidade de reelaborar de forma específica – e,

assim, enriquecer – os conteúdos culturais obtidos na divisão objetiva de classes) quanto se

contrapor ao diagnóstico formulado por Habermas em 1975 no texto “Para a reconstrução do

materialismo histórico”, segundo o qual o potencial emancipatório inscrito nas classes mais

baixas teria sido absorvido pelo Estado, de forma que só determinados grupos – como o

movimento estudantil, por exemplo – comportariam agora este potencial crítico.91

Ao

sobrevalorizar ou subestimar o papel das classes sociais na atualidade, ambas as abordagens

têm como efeito, de acordo com a perspectiva honnethiana, não apenas uma desconsideração

da moralidade latente das classes mais baixas como também um reforço das estratégias de

dominação que impedem suas demandas e seus conflitos de adquirirem visibilidade na arena

pública. Igualmente importante é o fato de que é precisamente nessa época de estreito contato

com a perspectiva sociológica e histórica oferecida pelos estudos culturais que Honneth passa

a colocar no centro de seus interesses teóricos a ideia de que os conflitos sociais de classe não

ocorrem somente devido à distribuição desigual de bens materiais: por detrás desses embates,

91

MsK: 184de; 206-7en. Cf. também Piromalli, 2012: 251 e 253; Voirol, 2007: 252. Nas palavras de Honneth:

“O interesse prático em uma forma mais alta de justiça social concentra-se, se seguirmos essas premissas,

apenas nos grupos socialmente privilegiados que, a partir de uma incompreensão baseada em princípios

éticos acerca do grau de instrumentalização da sociedade capitalista tardia, exigem uma sociedade liberada

da dominação excessiva” (MsK: 184de; 207en).

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99

por assim dizer, é possível entrever a demanda por uma redefinição da dignidade humana e,

portanto, por uma outra forma de reconhecimento social (MsK: 200de; 219en).

Vem à luz, assim, a relevância dessas reflexões para o processo de elaboração do

modelo crítico honnethiano da luta por reconhecimento, que ganha forma sistemática com a

publicação em 1992 do livro homônimo. No caminho que leva até essa obra, as referências

aos autores dos estudos culturais vão se tornando mais esparsas, e as figuras de Hegel e

Habermas ganham sensível destaque.92

Não obstante esse deslocamento de referências

centrais, a sociologia e historiografia representada pelos estudos culturais continuou sendo

uma importante presença no pensamento de Honneth. Mesmo em Luta por reconhecimento,93

por exemplo, ele recorre novamente a Moore, Thompson, Sennett e Cobb.94

Além disso, no

capítulo sobre a lógica moral dos conflitos sociais, Honneth critica a historiografia

convencional por estar presa a um modelo utilitarista de conflitos políticos, enxergando neles

apenas a persecução (ainda que coletiva) de interesses estratégicos e tornando-se assim

incapaz de apreender a sua gramática especificamente moral. A substituição de motivos

utilitaristas por premissas normativas somente pode ocorrer, diz Honneth, por conta de como

a sociologia e a historiografia do marxismo cultural passaram a fazer uso de pesquisas

antropológicas de campo, isto é, de cunho empírico:

Isso só pode alterar-se definitivamente depois que, com o entrelaçamento dos

métodos de pesquisa da antropologia social e da sociologia da cultura, se originou

há duas décadas uma forma de historiografia capaz de pôr em evidência, de

maneira mais ampla e adequada, os pressupostos normativos do comportamento

que as camadas sociais baixas adotam no conflito. O que essa abordagem tem de

vantajoso em comparação com a historiografia convencional é a atenção elevada

com que se investiga o horizonte das normas morais de ação discretamente

inseridas no cotidiano social; visto que os meios da pesquisa de campo

antropológica passam a ter lugar nas investigações históricas, podem vir à luz as

regras implícitas do consenso normativo, do qual dependia historicamente o

92

Sobre a aproximação com relação a Hegel e Habermas, Eleonora Piromalli afirma: “A atenção de Honneth

está, nessa fase, devotada principalmente a garantir a articulação interna de seu paradigma do

reconhecimento – uma finalidade que o aproxima do modelo hegeliano – enquanto, simultaneamente,

preserva o grau de formalidade requisitado por nossas sociedades pós-tradicionais, internamente

diferenciadas – uma tarefa para a qual ele encontra uma de suas referências primárias na teoria

habermasiana” (Piromalli, 2012: 259).

93 Título original: Kampf um Anerkennung: Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte (abreviado daqui em

diante como KuA).

94 A presença explícita dos dois últimos autores em Luta por reconhecimento é mais discreta, limitando-se à

alusão, na seção sobre o terceiro padrão de reconhecimento intersubjetivo, ao conceito de “contracultura de

respeito compensatório” proposto pelos autores em The Hidden Injuries of Class (KuA: 202pt).

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100

comportamento que as diversas subculturas assumem na reação política (KuA:

262pt).

Com razão, Honneth credita a E. P. Thompson uma posição de destaque nesta

bem-vinda reorientação teórica. Os estudos do historiador inglês acerca das convicções

morais cotidianas que levaram a atos de resistência por parte da classe trabalhadora inglesa

nos séculos XVIII e XIX permitiram que se admitisse que “o que é considerado um estado

insuportável de subsistência econômica se mede sempre pelas expectativas morais que os

atingidos expõem consensualmente à organização da coletividade” (KuA: 263pt),95

de forma

estão conectadas, portanto, a insurgência contra a dominação material ou econômica à

dimensão moral da estima social.

O caminho aberto pela “economia moral” de Thompson precisou entretanto ser

expandido e completado, diz Honneth, por estudos complementares que acrescentassem a essa

perspectiva a dimensão da identidade individual e coletiva. Esse papel coube especialmente à

extensa pesquisa realizada por Barrington Moore sobre o sentimento de injustiça e as bases

sociais da obediência da revolta, na qual ele reconstrói historicamente as tensões e

insurreições revolucionárias entre 1848 e 1920 na Alemanha, considerando-as como lutas

contra o que é percebido como um desrespeito à autocompreensão que determinados grupos

sociais têm de si mesmos como merecedores de um tratamento humano digno.96

Honneth

considera, como vimos, extremamente frutífero o conceito aí desenvolvido de “contrato social

implícito”, um sistema informal de regras que estabelece as condições do reconhecimento

recíproco e funciona como a base para o consenso normativo tácito que permite a cooperação

entre indivíduos e grupos em determinada sociedade. O rompimento desse contrato implícito

redunda via de regra em um sentimento de desrespeito à identidade social do grupo, o que

pode levar à resistência política e a revoltas sociais.

95

Aqui já está dada a base para a formulação da ideia do capitalismo como “ordem de reconhecimento”, que

Honneth irá defender dez anos mais tarde em seu debate com Nancy Fraser (cf. Redistribution or

Recognition? e, nesta tese, o Capítulo 3).

96 Honneth elogia o livro de Moore como capaz de seduzir o leitor e causar transformações em seu pensamento.

Isto se deve, em parte, ao fato de que o trajeto intelectual de Moore começa na sociologia, passa para a

ciência política, inclui a colaboração com Marcuse, passa pela história social e pela teoria moral e chega à

obra Injustice colocando em comunicação estas diversas disciplinas, tecendo assim um “impressionante

enredo de reflexões de teoria social com análises histórico-empíricas” (MKU 111-2it).

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101

A grande vantagem que Honneth enxerga no estudo de Moore reside no fato de

que a ideia da “consciência de injustiça” ou do “senso geral de injustiça”97

é ampla o

suficiente para permitir a generalização do modelo da luta por reconhecimento mediante a

atribuição da demanda por reconhecimento social potencialmente a todo conflito

emancipatório, e não apenas àqueles baseados na dominação de classe (como ainda era o caso

em “Conciência moral e dominação social de classe”). Isso porque Honneth acredita ter

encontrado nas investigações de Moore a comprovação de que, se as demandas morais dos

indivíduos e grupos sociais são algo que se altera indefinidamente ao longo da história, a

própria disposição e motivação dos indivíduos e grupos para se engajaram em conflitos pelas

condições sociais da realização dessas expectativas morais – isto é: pelo reconhecimento

social dessas expectativas como justificadas – pode ser considerada uma constante histórica

(cf. Piromalli, 2012: 258).

Se, como dito anteriormente, as referências explícitas a essa corrente não são tão

frequentes nos escritos de Honneth da década de 1990 em diante, sua relevância e

longevidade na formação do projeto intelectual do autor não pode, entretanto, ser

subestimada. A ideia geral de uma moralidade implícita nos conflitos sociais, que os

representantes dos estudos culturais procuraram demonstrar empiricamente, permeia a obra de

Honneth desde o seu início, em fins dos anos 1970, até os trabalhos posteriores a Luta por

reconhecimento, na década de 2000. Para ficar em apenas um exemplo, podemos citar o

debate com Nancy Fraser, publicado em livro em 2003, no qual Honneth mobiliza novamente

os argumentos presentes nos trabalhos de Thompson, Moore, Sennett e Cobb para demonstrar

que as lutas por reconhecimento, ao contrário do que pensa Fraser, não são algo recente,

trazido à luz pelos novos movimentos sociais, mas sim a lógica própria de todo conflito social

– inclusive os conflitos de classe (UoA: 155-8de; 131-3en). Fica claro, portanto, a

importância do papel exercido por essas investigações históricas e sociológicas na concepção

de Honneth acerca do caráter moral constitutivo dos conflitos sociais, que foi, aliás, o que o

levou a censurar o déficit sociológico e motivacional dos representantes da própria teoria

crítica.

97

A respeito do caráter geral do sofrimento e do sentimento moral de injustiça, cf. por exemplo a seguinte

passagem (Moore, 1978: 9): “O fracasso em suprir uma necessidade ou um imperativo social genuíno tem a

consequência de que todos os membros da sociedade sofrem severamente, ainda que o sofrimento não seja

distribuído igualmente” (tradução MT).

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1.2.3. Limites dos estudos culturais: universalidade e criatividade normativa

Foram indicadas, até o momento, as razões pelas quais os estudos culturais foram

importantes para a formulação do modelo crítico honnethiano. Há, contudo, algumas

limitações que levaram Honneth a procurar ir além desse quadro teórico: faltam nele um

potencial de universalização e a dimensão criativa dos conflitos sociais moralmente

motivados.

De um lado, não há dúvidas de que Honneth acredita ter encontrado nas pesquisas

oriundas do campo dos estudos culturais uma forma de constatação empírica para sua teoria

da gramática moral dos conflitos sociais. Já em Luta por reconhecimento, Honneth afirma:

“De investigações dessa espécie pode-se extrair material ilustrativo o suficiente a fim de

obter pelo menos as primeiras comprovações empíricas para a tese de que os confrontos

sociais se efetuam segundo o padrão de uma luta por reconhecimento” (KuA: 264-5pt).98

A

apropriação dessas pesquisas deve, contudo, passar por um processamento por parte do

teórico crítico, dado que elas carecem da força universalizante que é fornecida apenas por

uma filosofia social. “Uma grave desvantagem” das investigações realizadas no âmbito dos

estudos culturais consiste, diz Honneth, em que eles concedem “à especificidade estrutural da

relação de reconhecimento um lugar demasiado pequeno para estar em condições de algo

mais do que uma apreensão histórica de mundos da vida particulares” (KuA: 265pt). O

resultado de tais investigações tem um caráter “meramente episódico” na medida em que as

lutas sociais analisadas (revoltas e greves, formas espontâneas, passivas ou organizadas de

resistência) não são articuladas e inseridas no desenvolvimento moral da sociedade. Para

Honneth, “O abismo entre os processos singulares e o processo evolutivo abrangente só pode

ser fechado quando a própria lógica da ampliação de relações de reconhecimento vem a ser

o sistema referencial das exposições históricas” (KuA: 265pt).

98

Jean-Philippe Deranty é enfático quanto a esse ponto: “A partir desse primeiro contato com os famosos

estudos de Barrington Moore e E. P. Thompson sobre as classes trabalhadoras alemã e inglesa, Honneth

jamais renunciará à ideia de que o núcleo moral dos conflitos sociais foi demonstrado empiricamente. O

progresso histórico, moral, e o seu estudo sociocientífico demonstraram, como um fato inquestionável, que

os sujeitos modernos esperam formas específicas de reconhecimento como condições de seu bem-estar

próprio. […] Todos eles [esses estudos, MT] convergem em direção ao estabelecimento de fatos

metodologicamente falíveis mas empiricamente confirmados: o tecido moral dos sentimentos de injustiça e o

cerne moral dos movimentos sociais” (Deranty, 2009: 281).

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O caráter problemático da apropriação não mediada de investigações histórico-

sociais de cunho fortemente empírico é apontado por Honneth em outros momentos. Um

deles pode ser encontrado na discussão sobre a herança do marxismo publicada em 1989, na

qual Honneth, apesar de elogiar o deslocamento de paradigma que os estudos culturais

implementaram no campo marxista, afirma que eles são alvo de uma crítica justificada por

não terem conseguido inscrever sistematicamente as culturas cotidianas analisadas em um

conjunto abrangente de processos institucionais de integração (LdE: 92de; 7en). Esta

interpretação é reforçada, por exemplo, pela ressalva que Honneth faz ao se apropriar das

reflexões de George Rudé acerca da presença constante de modos mais ou menos

formalizados de ideias normativas de justiça na vida cotidiana: “Parece-me proveitoso liberar

essa linha de pensamento de seu contexto historiográfico original e torna-lo frutífero para a

análise sociológica dos potenciais normativos de ação” (MsK: 186de; 209en). Outro indício é

a preferência de Honneth pela obra de Moore à de Thompson: o motivo para isso, argumenta

Piromalli (2012), consiste em que o primeiro tem uma abordagem mais sociológica e o

segundo está mais próximo da historiografia; os conceitos de Moore são, portanto, mais gerais

(e generalizáveis) que os de Thompson. Todavia, mesmo as pesquisas mais sociológicas e

mais gerais – e isso pode ser constatado no trecho de Luta por reconhecimento citado acima –

precisam ser alçadas a um patamar de maior abrangência pelo teórico crítico, de modo que

elas possam se prestar a uma interpretação crítica bem fundamentada das sociedades

modernas.

Essa primeira limitação se desdobra na dificuldade que os estudos culturais têm,

de modo geral, de explicar os mecanismos que conduzem da percepção e do sofrimento

morais quotidianos (latentes, silenciosos e informais) à consciência de injustiça e à indignação

moral (ainda individualmente formuladas) e destas a uma articulação política e coletiva da

resistência (institucional, explícita e organizada). Moore reconhece, por exemplo, que não se

pode derivar diretamente do surgimento de percepções coletivas de injustiça uma disposição

ativa para a contraposição política (MKU: 119it), pois é necessário examinar as condições

sociais específicas que dificultam ou contribuem para a ação política coletivamente articulada.

Contudo, o caráter episódico e contingente das análises deste e de outros autores dos estudos

culturais não permite, segundo a perspectiva de Honneth, a sistematização teórica necessária

para a estruturação de um modelo crítico substancial. Com veremos, o autor procura sanar

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esta limitação em sua produção teórica da década de 1990 e especialmente em Luta por

reconhecimento mediante o recurso ao que chama de “antropologia formal”.

Outra limitação dos estudos culturais está ligada à ênfase conferida às concepções

normativas implícitas das classes subalternas que se tornam manifestas no desenrolar de

conflitos sociais decorrentes do que é percebido como uma violação de princípios de justiça

previamente estabelecidos. Como vimos, Moore é um dos autores que defende o caráter

eminentemente defensivo das revoltas sociais: para ele, as lutas das classes trabalhadoras têm

como ponto de partida não a ideia de uma sociedade mais justa que a atual, mas o receio de

que o consenso moral vigente, considerado minimamente justo, venha a perder validade. Dito

de outro modo: as revoltas das classes baixas são consideradas mais atos de resistência do que

tentativas de colocar em curso uma revolução normativa.

Essa ideia é central para os desenvolvimentos recentes da teoria honnethiana,

como se pode perceber, de modo bastante claro, na concepção metodológica – chamada de

reconstrução normativa – defendida pelo autor de modo explícito a partir da década de 2000

(cf. Capítulo 6). No entanto, em “Consenso moral e sentimento de injustiça”, Honneth

esboça uma importante crítica ao posicionamento teórico defensivo de Barrington Moore em

Injustice, apontando que não é discutida em nenhum momento a possibilidade de um grupo

socialmente em desvantagem desenvolver uma capacidade de inovação ou criatividade moral

(MKU: 119-20it). São excluídos da análise os casos em que a ordem social vigente é rompida

não porque se quer conservar aquilo pelo que já se está disposto a lutar, mas sim a partir da

antecipação de um futuro melhor (MKU: 120it). Talvez, diz Honneth, a consideração de uma

capacidade coletiva de criatividade moral pudesse ter dado uma outra guinada na pesquisa

histórica de Moore, da qual pudesse resultar que as utopias de justiça que surgem

espontaneamente são também capazes de moldar a maneira como a realidade é percebida e de

privar de validade moral, “em um só golpe”, um consenso moral pré-estabelecido (MKU:

120it).

O caráter criativo da práxis humana é um aspecto colocado em relevo por

Honneth também no ensaio publicado em 1985 sobre a teoria social de Cornelius Castoriadis

e sua ideia da instituição imaginária da sociedade. Como visto na seção anterior, Castoriadis

está entre os autores que, de dentro do campo do marxismo concebido de modo amplo,

procura criticar os rumos deterministas da teoria marxista, e o faz a partir de uma referência

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antropológica à capacidade humana de dar sempre novas respostas a situações que são em si

mesmas constantes (EoR: 149de; 172en). Assim, Castoriadis se coloca firmemente contra a

separação entre base e superestrutura, e em favor de um potencial de projeção e criação que

aparece como inerente às realizações culturais humanas. A ideia de ação social tem em seu

centro aqui, portanto, “a dimensão da produção criativa de um sentido simbolicamente

mediado” (EoR: 149de; 172en) – dimensão cuja existência não está ligada nem à observação

empírica nem à construção racional, mas sim a um ato de criação, um mundo de referência

imaginado, um imaginário (EoR: 155de; 176en). A tese de Castoriadis, segundo Honneth,

reside em que:

cada sociedade representa um contexto de sentido simbolicamente mediado que vive

sempre da referência a um horizonte imaginário de significado. […] a capacidade

que daí se desdobra é a de “um poder de imaginação” que é apto a fazer surgir

como imagem algo que não existe nem existiu (EoR: 155-6de; 177en).

Para Castoriadis, a linguagem e a vida dos instintos humanos são marcadas por

uma criatividade extremamente rica, que se expressa em inovações linguísticas quotidianas e

na formação de fantasias – as quais podem ser vistas como “as prefigurações inconspícuas de

um poder social de imaginação que irrompe extraordinariamente em atos de criação coletiva

de sentido. Honneth continua: “em tais momentos historicamente raros de produção

inovadora de novos horizontes de significado, de fundação de novas estruturas institucionais,

toma a forma de uma práxis coletiva tornada consciente aquilo que, do contrário, ocorre

implicitamente em toda a vida social” (EoR: 164de; 183en).

É preciso notar, contudo, que tanto a crítica ao caráter defensivo dos conflitos

sociais na teoria do consenso moral e da consciência de injustiça de Moore quanto o elogio do

aspecto criativo das realizações humanas na obra de Castoriadis acabam sendo deixados de

lado no trajeto intelectual de Honneth. Até o fim da década de 1980, ambos os

posicionamentos perdem sistematicamente sua radicalidade, de forma que já em “Luta por

reconhecimento: sobre a teoria da intersubjetividade de Sartre”,99

um texto de 1988, Honneth

atribui a expansão das relações de reconhecimento a um processo interno de diferenciação,

luta, e estabelecimento de um consenso mais abrangente. Na esteira de Hegel, aqui toda

interação significativa é considerada como capaz de “levar processualmente para além de si

99

Título original: “Kampf um Anerkennung: Zu Sartres Theorie der Intersubjektivität”.

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mesma porque os sujeitos, sabendo terem sido reconhecidos, podem alcançar também

autointerpretações sempre mais exigentes” (Honneth, 1988: 174de; 165en).

*

No período que precede Luta por reconhecimento, isto é, desde o fim dos anos

1970 e durante toda a década de 1980, os escritos de Honneth revelam um vivo interesse pela

pluralidade de formas que os conflitos sociais puderam assumir ao longo do tempo e em

diferentes lugares e contextos. Sua preocupação está em não negligenciar aquelas formas de

resistência que permanecem abaixo do limiar de articulação e verbalização perceptível para a

teoria social caso ela tenha como foco apenas o funcionamento e a manutenção de situações

de poder e dominação.

Com recurso às investigações de cunho historiográfico, sociológico e etnográfico

realizadas no âmbito dos estudos culturais, Honneth fundamenta empiricamente a afirmação

de que os sujeitos pertencentes a grupos e classes oprimidas reagem à dominação sofrida com

atos de protesto e resistência (com graus variados de organização e consciência, realizados de

modo individual ou coletivo). O autor considera estar amplamente atestada a vinculação entre

sofrimento moral e motivação para resistência. Para Honneth falta ainda, no entanto,

determinar de modo mais preciso e ao mesmo tempo mais abrangente e generalizado quais

tipos de violação têm o poder de motivar os atores sociais a engajarem-se em lutas e conflitos

sociais. É para suprir essa falta que nasce o livro Luta por reconhecimento.

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2. A gramática moral dos conflitos sociais

Luta por reconhecimento é o trabalho mais conhecido de Honneth. Após o que foi

dito no primeiro capítulo, é razoável esperar que Honneth procure agora superar os déficits

diagnosticados nos modelos anteriores de teoria crítica e na tradição teórica dos estudos

culturais: conflito e normatividade, universalidade e criatividade normativa. Verificar o

sucesso de tal empreitada é, portanto, um dos objetivos deste capítulo.

O livro é composto por três partes: uma “Presentificação histórica”, uma

“Atualização sistemática” e, por fim, “Perspectivas de filosofia social”.100

A exposição feita

aqui tem no entanto outra arquitetônica: o ponto de partida é uma história da teoria (item

2.1.) que abrange quatro momentos: a crítica da filosofia social moderna baseada na ideia de

uma luta por autoconservação, representada por Maquiavel e Hobbes; a recuperação do

motivo hegeliano da luta por reconhecimento, tal como formulado em seus anos de Jena; três

tentativas pós-hegelianas de compreensão das lutas sociais (Marx, Sorel e Sartre); e, por fim,

a “transformação naturalista” da temática hegeliana feita por G. H. Mead. Em seguida (item

2.2.), apresenta-se a fenomenologia honnethiana dos padrões de reconhecimento e das formas

correspondentes de desrespeito, construída com o auxílio de diferentes campos de pesquisa

social. Um dos objetivos principais da segunda parte do capítulo reside em explorar as

diferenças, em termos de modo de apresentação da fenomenologia do reconhecimento e do

desrespeito, entre Luta por reconhecimento e um texto prévio, que serve de preparação para o

livro, escrito em 1990. Essa comparação permite que se compreenda melhor o papel da

negatividade na teoria do reconhecimento. São extraídas, então, as consequências para a

caracterização do vínculo entre sofrimento e resistência coletiva em três dimensões

(cognitiva, motivacional e política), bem como para uma perspectiva acerca do

desenvolvimento histórico da sociedade em termos de processos de aprendizagem moral.

100

Sobre os termos presentificação e atualização, além de reatualização e reconstrução, cf. Capítulo 6.

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2.1. História da teoria

2.1.1. Luta por autoconservação: Maquiavel e Hobbes

No primeiro capítulo de Luta por reconhecimento, Honneth discute a

fundamentação da filosofia social moderna mediante um contraste com as doutrinas políticas

da Antiguidade, que gozaram de hegemonia até o fim da Idade Média e início do

Renascimento na Europa. Seu objetivo é caracterizar a tradição que se inicia com Nicolau

Maquiavel e Thomas Hobbes como uma perspectiva teórica que enfatiza o caráter conflituoso

da história humana, mas negligencia sua dimensão normativa.101

Honneth afirma que a

concepção teleológica do ser humano presente tanto em Aristóteles quanto no direito natural

de extração cristã toma os seres humanos como animais gregários, cuja natureza interna

apenas pode se realizar e se desenvolver em uma comunidade política. O papel da filosofia

política consistiria, então, não apenas em estudar as leis e as instituições mais adequadas para

o bom funcionamento da arena pública política, mas também na elaboração de uma doutrina

da vida justa e boa, mediante a determinação do comportamento virtuoso que faz parte da

formação prática e pedagógica do indivíduo.

Não é difícil perceber que essa perspectiva clássica valoriza o aspecto de

normatividade presente nas ações sociais dos sujeitos em comunidades. Durante o curso de

uma mudança estrutural da sociedade na qual a economia capitalista moderna começa a se

estabelecer em diversas parte do mundo – Honneth salienta os processos de desenvolvimento

e difusão do comércio, da manufatura e da imprensa, e a autonomização de principados e

cidades comerciais – surgem as primeiras contribuições para uma filosofia social

essencialmente distinta. Maquiavel é tido então como o fundador da concepção moderna de

antropologia filosófica, na qual o ser humano aparece como autointeressado e desconfiado de

seus pares (afinal, ele “sabe” que os demais parceiros de interação são igualmente

autointeressados), bem como de uma ontologia social em que os agrupamentos humanos são

caracterizados pela concorrência hostil entre seus membros, formando uma ampla rede de

ações estratégicas. A dimensão da ação social se resume, aqui, à luta de cada indivíduo pela

autoconservação de sua integridade física, e a principal obra de Maquiavel, O príncipe, é

101

Trata-se de crítica semelhante, portanto, à que ele dirige em Crítica do poder a Adorno e Horkheimer da

Dialética do esclarecimento em diante, à segunda fase da obra foucaultiana e à neutralização normativa do

sistema operada por Habermas a partir da década de 1970.

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voltada para estratégias que favoreçam a manutenção da posição privilegiada dos detentores

do poder.

Escrevendo mais de um século depois da publicação de O príncipe, Hobbes

mantém uma convicção antropológica antiaristotélica, a qual assume, agora, a forma

amadurecida de hipóteses de caráter científico. Contribuíram para isso transformações

históricas decisivas como o surgimento dos Estados-nação, a disseminação definitiva do

comércio e a legitimação das ciências naturais. Para Hobbes, como se sabe, o ser humano é

uma espécie de autômato cuja principal característica é sua capacidade de tomar precauções

para garantir o seu bem-estar futuro. Como cada sujeito é consciente de que os demais

também têm a autopreservação como meta central, surge um estado constante de desconfiança

que leva a que cada um procure aumentar preventivamente o seu poder sobre os demais e,

assim, estabelece-se a poderosa metáfora da guerra de todos contra todos que caracteriza o

estado de natureza hobbesiano. É neste contexto que o advento do contrato social aparece

como a única saída que leva a uma autolimitação dos impulsos egoístas dos seres humanos

em seu estado de origem, permitindo uma convivência pacífica entre eles.

Tanto para Maquiavel quanto para Hobbes, assim, o objetivo supremo da ação

política é a estabilização de um conflito permanente que deve ser imposta sobre as tendências

“naturais” dos indivíduos, concebidas segundo o contexto funcional de relações instrumentais

ou estratégicas.

Contra tal modo de conceber a ação social e as interações entre os indivíduos

socializados, contudo, Honneth não pode simplesmente retomar de modo imediato a doutrina

aristotélica da comunidade política, que enfatiza a normatividade mas não confere um lugar

sistemático para os conflitos sociais. Faz-se necessário, assim, dar um passo adiante de

Hobbes, e não um passo atrás.

O funcionalismo na compreensão dos processos conflituosos da história humana

foi combatido por Honneth na década anterior mediante o recurso aos estudos sociológicos e

historiográficos de orientação marxista focados na dimensão cultural e normativa da luta de

classes. Agora, ele busca nos escritos do jovem Hegel uma fundamentação teórico-filosófica

para fazer frente à tendência de reduzir a ação política à imposição “racional” (com respeito a

fins) de poder. O que torna a perspectiva hegeliana especialmente propícia para cumprir esse

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papel é o fato de que Hegel retoma Aristóteles a partir do ponto de vista agonístico que é fruto

da filosofia social moderna, isto é: ele procura combinar o modelo conceitual hobbesiano de

uma luta entre os sujeitos com uma antropologia aristotélica antifuncionalista. Pode-se dizer,

portanto, que Honneth considera o empreendimento hegeliano nos anos iniciais do século

XIX uma tentativa profícua de conciliar normatividade e conflito – a qual tem a vantagem,

ainda, de oferecer um alto potencial de universalização.

2.1.2. Luta por reconhecimento: Hegel

Os dois capítulos que compõem o restante da parte I de Luta por reconhecimento

(a “Presentificação histórica”) são dedicados a uma meticulosa análise comparativa de quatro

dos principais ensaios hegelianos anteriores à Fenomenologia do espírito, escritos no período

em que Hegel viveu como professor de filosofia na cidade alemã de Jena. Trata-se,

respectivamente, de: “Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts” (1802-

1803), System der Sittlichkeit (também de 1802-1803), System der spekulativen Philosophie

(1803-1804) e Jenaer Realphilosophie (1805-1806). Como se sabe, nenhum desses escritos

alcançou um nível sistemático e acabado de exposição, o que não impediu Honneth de buscar

neles os fundamentos para uma teoria da luta por reconhecimento. De fato, o autor considera

que quanto mais próximos de um sistema filosófico, menos interessantes e frutíferos são os

escritos de Hegel para uma teoria social centrada na intersubjetividade humana.

Em “Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten des Naturrechts”, sob a

influência não apenas da concepção ética da polis presente nas doutrinas filosóficas da

antiguidade (especialmente Aristóteles), mas também de figuras do idealismo alemão como

Friedrich Hölderlin e sua filosofia da unificação, Hegel desenvolve uma crítica às premissas

atomísticas do direito natural – seja em sua versão “empírica” (o caso de Hobbes, que se apoia

sobre uma concepção instrumentalista de natureza humana obtida mediante a observação,

segundo o modelo das ciências naturais), seja em sua versão “formal” (que, segundo a

formulação kantiana, depende do exercício de uma razão prática disponível individualmente

a cada membro da sociedade). Honneth procura mostrar que, desde muito cedo, Hegel se

coloca radicalmente em oposição a ambas as tendências, mostrando-se preocupado com a

ideia de totalidade ética enquanto “unidade viva” entre liberdade universal e individual (KuA:

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111

41pt). Isso requer uma concepção da vida pública como algo que não demanda a restrição,

mas sim a realização da liberdade individual de todos os membros da sociedade; e o meio

para esta integração deve ser procurado precisamente naqueles costumes cristalizados nas

instituições da coletividade. Hegel escolhe termo Sitten (costumes, hábitos, conduta) para

diferenciá-lo tanto das leis positivas prescritas pelo Estado quanto das convicções morais de

indivíduos isolados, referindo-se em vez disso às práticas intersubjetivas mais ou menos

institucionalizadas na sociedade. Para além da perspectiva ética aristotélica e a partir do

contato com a economia política inglesa, entretanto, Hegel considera que a sociedade civil

burguesa – apesar de fazer parte do sistema da eticidade – é uma zona por assim dizer

negativa, onde predomina um embate autointeressado por benefícios individuais. Isto

significa, diz Honneth, que a passagem da eticidade natural representada pela família para a

totalidade ética do Estado não se dá mediante a imposição de condutas limitantes prescritas de

forma externa à coletividade pelo contrato social ou pelo exercício vinculante da razão

prática, mas sim de maneira orgânica, via repetidas negações e reintegrações do equilíbrio

destruído que compõem, a partir da “existência da diferença”, um processo interno, negativo e

conflituoso no qual ocorre uma superação progressiva do que é meramente subjetivo. Assim,

o vir-a-ser da eticidade diz respeito, neste momento da obra de Hegel, à universalização

conflituosa de potenciais morais cujas sementes estão inscritas na eticidade natural como algo

“envolto e não desdobrado” (Hegel apud KuA: 44pt).

Essa perspectiva é reforçada e ganha uma formulação mais desenvolvida em

System der Sittlichkeit. Honneth destaca que nesse texto há uma combinação produtiva entre a

concepção fichteana de reconhecimento e a ideia hobbesiana de luta: o processo histórico é

compreendido aqui como uma alternância progressiva entre conflito e reconciliação, na qual

se torna evidente que o primeiro é, desde o princípio, ético, já que não diz respeito apenas (e

nem sobretudo) à autoconservação física dos sujeitos concernidos. Neste contexto, o que

Honneth chama de o social aparece como o meio no qual estão inscritas tensões morais

internas e onde as lutas são conflituosamente decididas. Igualmente importante é o fato de

que, nesse texto, surge pela primeira vez a figura do crime como uma etapa negativa

fundamental no processo de formação da eticidade.

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Em poucas palavras, o crime é visto aqui como uma violação da “eticidade

natural”,102

uma violação à qual o sujeito atacado reage não apenas para reaver, em termos

materiais, o objeto da agressão do criminoso, mas principalmente para restabelecer sua honra,

ferida no momento do crime. O embate pela honra se converte então em uma luta de vida ou

morte na qual ambos os sujeitos, o criminoso e o ofendido, se percebem reciprocamente como

parceiros de interação opostos um ao outro e, assim, o potencial de aprendizado prático-moral

da luta se realiza na medida em que os indivíduos concernidos tornam-se conscientes, ao

mesmo tempo, de sua individualidade e de sua dependência mútua como membros de um

todo. Esse é o caminho negativo que, para Hegel, leva à totalidade ética como um estágio

superior, porque mais desenvolvido, da convivência humana em uma coletividade. O

despedaçamento da eticidade natural assim descrito não leva apenas a um conhecimento

universal, mas especialmente a um reconhecimento do vínculo entre a identidade particular

dos sujeitos e sua dependência recíproca.

Honneth considera o reconhecimento como uma categoria distinta e em certo

sentido superior à faculdade cognitiva porque abarca a dimensão afetiva.103

Aqui, a ideia de

“solidariedade” é invocada por Honneth, apoiado por sua vez em Andreas Wildt (1970), para

designar a base comunicativa na qual os indivíduos separados pela relação jurídica podem se

reunir novamente no quadro de uma comunidade ética intersubjetivamente integrada (KuA:

44de; 58-9pt). O caminho, no entanto, se interrompe nesse ponto, e Honneth lamenta que

Hegel não tenha ido adiante e diferenciado formas ou etapas no processo em que se

estabelecem as relações de reconhecimento. Honneth propõe então uma chave interpretativa

na qual a família representaria um primeiro estágio no processo de socialização (no qual são

formados indivíduos portadores de carências concretas mediante a dimensão afetiva do amor

como intuição), seguida pela sociedade civil (na qual são formadas pessoas portadoras de

autonomia moral mediante a dimensão cognitiva do direito como conceito) e por fim pelo

Estado (em que são formados sujeitos portadores de particularidades individuais mediante a

dimensão da solidariedade como “intuição intelectual” ou como “afeto que se tornou

102

Aqui, a eticidade natural compreende tanto o âmbito da família quanto o da sociedade civil (a qual é

caracterizada pelo estabelecimento de uma liberdade negativa mediada por preceitos jurídicos).

103 Hegel usa a expressão “intuição mútua” para falar das relações de uma eticidade absoluta, um termo que ele

empresta de Schelling para referir-se à forma de relação recíproca entre sujeitos que é superior ao mero

reconhecimento cognitivo (KuA: 58pt).

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racional”). É claro que esta leitura já é em boa medida influenciada pelos propósitos que

Honneth persegue em seu livro, o que ele reconhece ao afirmar que está ausente ainda neste

modelo não apenas uma teoria da subjetividade capaz de ir além da ontologia aristotélica e

explicar a diferenciação entre os estágios de formação dos sujeitos, mas também uma

discussão mais elaborada, com maior exatidão teórica e categorial acerca da estrutura interna

da motivação do criminoso, o que poderia conferir ao crime ou à luta uma posição sistemática

e uma função produtiva, e não apenas um papel negativo e transitório.

O texto System der spekulativen Philosophie, também conhecido como “Jenaer

Realphilosophie I”, representa um passo além da filosofia aristotélica da natureza e no sentido

de uma filosofia sistemática da consciência – o que tem consequências importantes para o

projeto teórico de Honneth. Antes de apontar os efeitos dessa transformação, cabe lembrar os

pontos que o texto tem em comum com o System der Sittlichkeit. Em ambos, a luta tem uma

função social mediante a qual o conflito leva a uma “comunização” (Vergemeinschaftung)

social “que força os sujeitos a se reconhecerem mutuamente no respectivo outro, de modo

que por fim sua consciência individual da totalidade acaba se cruzando com a de todos os

outros, formando uma consciência ‘universal’” (KuA: 50de; 64pt). Essa consciência tornada

absoluta – que Hegel chama de “espírito do povo” e “substância viva de seus costumes” – é

também nos dois escritos a base intelectual para uma coletividade futura, proveniente do

reconhecimento mútuo como medium da universalização social. Não obstante esses pontos em

comum, Honneth considera que a guinada em direção à filosofia da consciência faz com que a

constituição da coletividade política seja concebida não mais como o desdobramento

conflituoso de estruturas elementares de uma eticidade natural, e sim como um processo de

formação do espírito com recurso aos meios representados pela linguagem, a ferramenta e o

bem ou posse familiar (Familiengut ou -besitz). Aqui, o motivo do conflito passa para o

interior do espírito humano, visto que “No novo contexto, o termo ‘reconhecimento’ refere-se

àquele passo cognitivo que uma consciência já constituída ‘idealmente’ em totalidade efetua

no momento em que ela ‘se reconhece como a si mesma em uma outra totalidade, em uma

outra consciência’” (KuA: 49de; 63pt). Assim, no System der spekulativen Philosophie, a

teoria do reconhecimento não tem mais como objeto as relações éticas intersubjetivas, mas

sim etapas de automediação da consciência individual, de forma que os indivíduos passam a

ser vistos como anteriores às interações comunicativas. Com isso, cai a ideia de uma

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intersubjetividade prévia da vida humana, e a teoria política da eticidade perde o caráter geral

de uma história da sociedade, “tomando aos poucos a forma de uma análise da formação do

indivíduo para a sociedade” (KuA: 52de; 66pt). Paradoxalmente, o enfoque na consciência

individual tem efeitos negativos, diz Honneth, para conceber justamente a formação dos

sujeitos como portadores de particularidades próprias. Isso porque apenas no System der

Sittlichkeit a luta não é unicamente um processo de socialização, mas também medium de

individualização e desenvolvimento das capacidades do eu, de modo que estão entrelaçadas a

emancipação e a “comunização” dos sujeitos individuais. No novo contexto, Hegel não pode

mais compreender a individualização como um desligamento (conflituoso) do indivíduo com

respeito às relações comunicativas existentes, já que aquele é prévio a estas e também, por

isso, em certo sentido indeterminado em seu conteúdo.

A guinada teórica de Hegel em direção a uma filosofia da consciência dá, com a

Jenaer Realphilosophie, mais um passo importante. Nesse texto de 1805–1806, ganha posição

de destaque o conceito de “espírito”, cuja principal característica reside em sua capacidade de

autodiferenciação mediante o movimento contínuo de exteriorização e retorno a si mesmo.

Trata-se de um processo de reflexão que a filosofia tem apenas que reconstituir para alcançar

seu propósito sistemático. Para Honneth, é importante perceber que a centralidade da

categoria de espírito reflete que a filosofia da consciência passa a determinar a própria

estrutura e o método de exposição do texto, que lembra, já, a arquitetônica do sistema

hegeliano que ganhará uma forma madura na Enciclopédia das ciências filosóficas (1817) e

que é dividida em três partes: a lógica, a filosofia da natureza e a filosofia do espírito (sendo

que a última é composta, por sua vez, pelas figuras do espírito subjetivo, espírito objetivo ou

efetivo, e espírito absoluto). Isto significa que o Estado, que era nos escritos anteriores o

ponto de referência máximo na formação da totalidade ética, passa a ser limitado à esfera do

espírito objetivo (que Hegel chama aqui de “efetivo”), ao passo que o espírito absoluto, na

forma da arte, da religião e da ciência como meios de autoconhecimento do espírito, passa a

ser o ponto de referência supremo no processo de formação não da eticidade, mas do próprio

espírito. A inversão que assim se opera é de suma importância para o projeto de Honneth: se,

antes, a formação da consciência humana segundo o modelo estrutural da luta por

reconhecimento como força motriz é considerada uma etapa na construção de relações éticas

sociais e políticas, no novo contexto estas é que são um etapa na formação daquela.

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Em que pese essa decisiva inversão, Honneth considera que a Realphilosophie de

Jena traz uma caracterização frutífera dos diferentes estágios na formação da eticidade. A

argumentação se inicia mediante uma análise das condições necessárias da autoexperiência da

consciência individual, na qual Hegel procura ir além da dimensão teórica da cognição até a

dimensão prática da vontade. O primeiro estágio dessa dimensão prática é a experiência

instrumental do sujeito no trabalho, com a utilização de uma ferramenta (Werkzeug) para

alcançar uma determinada obra (Werk). Trata-se já de uma experiência reflexiva, que exige

autodisciplina, mas que é incompleta na medida em que se restringe a um “fazer-se coisa”. A

dimensão do reconhecimento recíproco adquire uma primeira forma propriamente

intersubjetiva apenas na relação sexual entre homem e mulher, na qual cada um “sabe-se no

outro” mutuamente, reconhecendo-se, portanto, como sujeito vivente e desejante em sua

natureza instintiva. Esse primeiro estágio de reconhecimento mútuo alcança uma forma mais

desenvolvida no amor, cujo potencial de experiência é ainda intensificado mediante o

casamento e a concepção de um descendente.104

O que interessa a Honneth acima de tudo é a

ideia de que a experiência do amor, na qual surge uma pressão não violenta para a

reciprocidade, permite aos sujeitos desenvolverem uma capacidade de autoconfiança que lhes

fornece um referente intrapsíquico para a noção associada ao conceito de comunidade ética. A

experiência do amor na família é, portanto, visto aqui como um pressuposto necessário para a

participação na vida pública de uma coletividade.

Mas ela não é suficiente. Para ampliar a relação prática dos sujeitos com o mundo

e chegar à pessoa de direito, Honneth lança mão da luta por reconhecimento como meio

teórico. A ideia de “estado de natureza” é mobilizada para descrever uma situação em que há

uma concorrência por posses entre famílias como unidades éticas singulares; diferentemente

da filosofia social moderna, entretanto, os direitos e deveres intersubjetivos não são impostos

ao estado de natureza hegeliano a partir de fora. O contrato, portanto, surge da situação social

de partida não de modo contingente, mas necessariamente, já que existe, desde o início e

antes de qualquer conflito, um consenso normativo mínimo, um acordo implícito entre os

104

Honneth critica en passant o caráter misógino (nas palavras do autor) da caracterização hegeliana da natureza

feminina segundo a ideia de “astúcia”, que ele abandona. Outros aspectos tradicionais da família nuclear

burguesa (como a heteronormatividade e a obrigatoriedade formal da monogamia) não são colocadas em

questão. Em O direito da liberdade, de 2011, Honneth chega a questionar a heteronormatividade do modelo

hegeliano, mas o faz também de forma breve e aparentemente sem consequências decisivas.

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parceiros de interação. Nessas relações pré-contratuais de reconhecimento recíproco ancora-se

o potencial moral que encontra forma positiva e consciente no direito. Para Hegel, então, todo

convívio humano (todo “Miteinandersein”) pressupõe uma afirmação mútua elementar e uma

certa medida de autolimitação individual.

Se a luta por autoconservação é, assim, preterida em favor da luta por

reconhecimento, a motivação para o conflito deixa de ser, como em Hobbes, o medo de

ameaças futuras, e passar a residir na desilusão de expectativas positivas de reconhecimento

que estão inscritas na estrutura das relações humanas de interação. Os sujeitos se dispõem a

entrar em um embate na medida em que se percebem desconsiderados pelos demais. Assim,

no caso de um ataque à posse de outrem, a motivação do criminoso não consiste tanto em

satisfazer suas necessidades sensíveis, materiais e concretas quanto em dar-se a conhecer

novamente ao outro, isto é, ao possuidor – o qual, no momento em que se apropria do bem

que se torna sua posse, não leva em consideração justamente as necessidades do sujeito que

vem a se tornar o criminoso. Com isso, o sujeito possuidor atacado é submetido a uma

“irritação normativa” que o leva a tomar consciência retrospectivamente de que sua posse

pode ter um conteúdo de significado diferente do que ele lhe havia conferido de início. Nesse

processo, a consciência egocêntrica submete-se a uma contrarreação a partir do momento em

que constata a exclusão (indireta) que ela opera com respeito ao mundo em seu entorno. O

sujeito agredido percebe consequentemente que o ataque do criminoso não visa à coisa, mas a

sua própria pessoa, de modo que se estabelece assim uma situação de conflito entre partes

hostis. Dispondo-se a uma luta de vida ou morte, ambos os sujeitos tornam patente que a

legitimidade de suas pretensões vale mais que sua existência física e revelam assim a

incondicionalidade moral de sua vontade. Ora, diz Honneth, se os sujeitos concernidos se

aceitam mutuamente como parceiros (mesmo que hostis) de interação, eles têm que se

reconhecer em alguma medida como socialmente interdependentes – mesmo que isso não seja

por eles tematizado (e nem dessa maneira). A ameaça recíproca proveniente da luta expõe

cada um à experiência de vulnerabilidade do outro e, com isso, o reconhecimento implícito

torna-se uma relação intersubjetivamente sabida. A luta por reconhecimento é, neste sentido,

uma força transformadora e produtiva, que influi de forma inovadora sobre a realidade social

e exerce uma pressão normativa para o desenvolvimento de uma forma vinculante de direito.

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A esfera jurídica, inicialmente abstrata, amplia-se gradativamente mediante a

inclusão de conteúdos materiais – primeiro na forma da troca, e depois na do contrato. Este é

especialmente interessante porque, nele, a consciência da reciprocidade alcança a forma

reflexiva de um saber linguisticamente mediado acerca de obrigações futuras e, deste modo,

com o contrato surge a possibilidade de sua ruptura – isto é, de uma injustiça. Entre o contrato

e sua violação existe, assim, uma “afinidade estrutural” (KuA: 98pt). A violação do contrato

constitui o crime que impulsiona a luta por reconhecimento na etapa jurídica. O crime tem

aqui, também, a função catalisadora de uma provocação moral: ele é uma expectativa

normativa que se coloca à sociedade na forma cifrada de uma violação e uma lesão da

vontade geral. Ele é motivado por um sentimento de desrespeito e indignação que advém da

coerção derivada das obrigações resultantes do consentimento ao contrato. Mas se a coerção é

legítima, como Hegel explica a indignação que ela provoca? Como conceber a relação

motivacional entre a coerção jurídica e a prática do crime como ação provocadora?

Para Honneth, o potencial normativo que dá origem ao crime nessa etapa jurídica

é a percepção por parte do sujeito de que ele não é reconhecido na particularidade de sua

vontade individual, específica. Isto ocorre porque o direito é caracterizado aqui por um falso

formalismo. O autor propõe duas interpretações dessa tese: o formalismo jurídico pode se

referir tanto à aplicação das normas quanto ao próprio conteúdo delas. O aprendizado que

deveria advir dessas críticas consiste, respectivamente, em um ganho de sensibilidade para o

contexto de aplicação das normas jurídicas e uma ampliação da dimensão da sua igualdade

material de chances.105

Para Hegel, no entanto, a etapa jurídica não pode, por sua própria

natureza enquanto esfera na qual todos devem ter os mesmos direitos e o mesmo respeito,

fornecer as condições para o reconhecimento da vontade singular dos indivíduos. O direito,

portanto, não é capaz de proporcionar os sentimentos de participação social necessários para o

105

Honneth reconhece, no entanto, que Hegel não seguiu nenhum desses caminhos, limitando-se a ver, como

implicação do crime, apenas uma reestruturação institucional do direito, isto é: a passagem do direito natural,

informal, para o positivo, organizado pelo Estado. (O elo entre o direito natural e o direito positivo é

politicamente constituído pela pena: a punição do criminoso faz com que seja restabelecida a relação

destruída de reconhecimento. Na execução da pena, os sujeitos se deparam com o seu ser comum

[Gemeinsamkeit] normativo na forma objetivada de uma lei. Sob pressão do crime, então, as normas jurídicas

se tornam prescrições legais publicamente controladas, contando com o poder de sanção do Estado). As

novidades práticas oriundas do crime não podem, contudo, se limitar à dimensão institucional. Honneth

insiste que é imprescindível proceder a uma consideração social. Neste sentido, ele volta a sugerir que a meta

oculta e decisiva do crime consiste na superação do formalismo abstrato do conteúdo e da aplicação das

normas jurídicas.

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reconhecimento da contribuição individual de cada membro para a comunidade ética. O

reconhecimento da biografia particular de cada sujeito apenas pode ocorrer na relação ética do

Estado, porque só nela é possível ir além da dimensão cognitiva em direção ao interesse

(Anteilnahme) emocional mediante o qual se experiencia a vida do outro como tentativa de

autorrealização individual. O Estado, portanto, refere-se à autorreflexão do espírito no meio

da realidade consumada do direito.

Como visto, contudo, a eticidade não corresponde mais, no novo contexto da

Jenaer Realphilosophie, ao ponto supremo de todas as potências da vida social, mas limita-se

a uma etapa no processo de formação do espírito. Nessa etapa, o espírito se exterioriza na

objetividade da realidade social, suprimindo os traços de arbítrio subjetivo. Na formação dos

órgãos institucionais do Estado, o espírito se realiza em sua dimensão objetiva (ou efetiva),

mas é preciso então passar para a próxima etapa, o espírito absoluto, na qual o espírito

retorna, transformado pela experiência, ao seu medium próprio. A formação da esfera ética

segundo o modelo da autorreflexão do espírito traz consequências para como são

caracterizadas as relações sociais no interior dessa esfera. Para Honneth, o ideal seria

concebê-las como vínculos de reconhecimento recíproco nos quais se demonstra respeito pela

unicidade e pela particularidade biográfica de todo indivíduo, de modo que tais vínculos

podem ser considerados o “fermento habitual dos costumes coletivos de uma sociedade”

(KuA: 97de; 108pt). Segundo essa perspectiva, para o êxito da integração social em uma

comunidade política são necessários hábitos culturais correspondentes às formas de

reconhecimento recíproco. Essa não é, contudo, a trilha seguida por Hegel. Ele adota

categorias que dizem respeito somente às relações dos indivíduos com a instância superior do

Estado. Surge, assim, um “desnível de dependência” (KuA: 109pt) mediante o qual todos os

elementos da vida social passam a ser concebidos como componentes de um Estado que tudo

abarca e que mantém, com os sujeitos individuais, uma relação de autoridade. Nesse modelo

substancialista de eticidade, a fundação do Estado não se deve a um conflito intersubjetivo,

mas sim – na medida em que a subjetividade do espírito se espelha na singularidade de um

herói único – ao poder tirânico de um líder carismático que prefigura a autoridade monolítica

do Estado. É por isso que Hegel não consegue pensar a esfera política para além da monarquia

constitucional e que a fundação do Estado é tida nesse momento, em certa proximidade com

os fundadores da filosofia social moderna, como um ato de submissão unilateral. Honneth

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atribui ao modelo adotado por Hegel de um processo monológico de constituição do espírito a

repressão de sua posição como teórico do reconhecimento.106

Sem minimizar as consequências dessa renúncia da dimensão intersubjetiva da

eticidade, Honneth chega ao fim da parte I de Luta por reconhecimento afirmando que, de

qualquer forma, a ênfase de Hegel nas relações interativas dos indivíduos leva a que a

construção do mundo social seja vista como um processo de aprendizado ético que conduz,

mediante etapas de luta, a relações cada vez mais exigentes de reconhecimento recíproco.

*

A Fenomenologia do espírito, escrita entre 1806 e 1807, aparece para Honneth

como o fechamento do movimento hegeliano em direção à filosofia da consciência, como a

obra em que a força motriz do processo de socialização do espírito assume a função única de

formar a autoconsciência individual. Nela, perdem sua função sistemática não apenas o

conceito intersubjetivo de identidade humana e a distinção de meios e graus de

reconhecimento, mas também o papel historicamente produtivo da luta moral. A ideia de luta

por reconhecimento fica restrita à dialética do senhor e do escravo – na qual, aliás, há uma tal

ênfase na experiência da confirmação prática do indivíduo no trabalho que a luta por

reconhecimento acaba por perder sua lógica específica. Trata-se, para Honneth, de um

profundo corte na filosofia hegeliana, um corte que não será superado em nenhuma obra

posterior de Hegel.107

106

O abandono de uma concepção exigente de intersubjetividade no período final de sua estadia em Jena torna-

se evidente na caracterização que Hegel faz do indivíduo como bourgeois e como citoyen. Ao passo que o

primeiro diz respeito ao sujeito que age racionalmente com respeito a fins e que busca a realização de seus

interesses próprios, o segundo refere-se ao indivíduo que participa de forma ativa na formação política da

vontade. (Trata-se do mesmo sujeito, o qual, no entanto, assume esses diferentes papéis ou funções em uma

coletividade política juridicamente estabelecida) Mas o que chama a atenção de Honneth é que o estatuto do

bourgeois como aquele que se tornou apto para a relação contratual advém diretamente da relação

intersubjetiva do reconhecimento jurídico, enquanto que o cidadão se constitui na reflexão solitária com a

parte de si mesmo que representa objetivamente para ele a ideia do todo ético. Seu status advém da relação

com o universal superior representado pelo Estado, de modo que ele não é percebido como uma pessoa

social, com capacidades e propriedades particulares oriundas de uma “interação bem-sucedida com

indivíduos que se sabem igualmente citoyens” (KuA: 101-2de; 111-2pt).

107 Exatamente por isso é tão surpreendente a retomada que Honneth realiza a partir da década de 2000 da

Filosofia do direito hegeliana (cf. Sofrimento de indeterminação e O direito da liberdade).

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120

2.1.3. O reconhecimento no pensamento pós-hegeliano: Marx, Sorel e Sartre

Apenas na terceira parte do livro Honneth retoma o fio da presentificação da

história da teoria: ali, no capítulo 7, ele faz um exame do pensamento pós-hegeliano de

esquerda a fim de encontrar abordagens em que o desenvolvimento histórico tenha sido

pensado como um processo conflituoso de luta por reconhecimento. Limitando-se às teorias

de Marx, Georges Sorel e Jean-Paul Sartre, o texto mostra que, nelas, os conflitos sociais têm,

contra Hobbes e Maquiavel, uma dimensão na qual tornam-se manifestas demandas por

reconhecimento – mesmo que nenhum dos autores mencionados tenha penetrado a

infraestrutura propriamente moral desses conflitos. Para Honneth, é importante notar que os

três autores puderam captar a intuição de um modelo conflituoso de reconhecimento apenas a

partir da dialética do senhor e do escravo, presente na Fenomenologia do espírito, já que não

tiveram acesso aos escritos hegelianos de Jena, anteriores ao que Honneth chamou de guinada

teórica para a filosofia da consciência. São reunidos a seguir apenas os argumentos mais

importantes relativos a cada autor.

Como visto no capítulo anterior, em seus escritos da década de 1980 Honneth

recorre à obra de juventude de Marx, e especialmente aos Manuscritos econômico-filosóficos

de 1844, para se contrapor às vertentes utilitaristas no interior do campo marxista – as quais

ele considera derivarem de tendências funcionalistas nas obras tardias de Marx. Já em Luta

por reconhecimento, no entanto, a interpretação de Honneth acerca dos Manuscritos assume

um viés mais crítico, na medida em que considera que o jovem Marx retoma a ideia de uma

luta por reconhecimento apenas nos moldes limitados da dialética do senhor e do escravo,

reduzindo, assim, o espectro das exigências de reconhecimento à dimensão de autorrealização

no trabalho.

De início, Honneth aponta que, nos Manuscritos, a categoria do trabalho é tão

carregada em termos normativos que o ato de produção pode ser concebido como um

processo que envolve, necessariamente, um reconhecimento intersubjetivo: no trabalho, o

indivíduo se reconhece como tendo certas habilidades, mas também como capaz de satisfazer

as carências ou necessidades de um parceiro concreto de interação. Nesse contexto, o

capitalismo aparece como o sistema econômico que destrói as relações de reconhecimento

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mediadas pelo trabalho, já que, separados dos meios de produção, os trabalhadores perdem a

possibilidade de controlar autonomamente a sua atividade produtiva. O conflito histórico que

daí advém (isto é: a luta de classes) não pode ser visto como um confronto estratégico por

bens ou instrumentos de poder, devendo ser considerado um conflito moral pela libertação do

trabalho, que é a condição decisiva para a autorrealização humana. Aqui, a teoria de Marx

está ainda em grande medida apoiada sobre os pressupostos de uma filosofia da história

centrada na estética de produção, os quais resultam da confluência entre elementos da

antropologia romântica expressivista, do conceito feuerbachiano de “amor” e da economia

política inglesa (KuA: 233pt). Para Honneth, esse modelo estético de objetivação de forças

internas essenciais é problemático na medida em que “desperta a impressão errônea de que

todas as propriedades e capacidades individuais seriam algo dado intrapsiquicamente e

desde sempre de maneira integral, que depois pode expressar-se de forma apenas secundária

na efetuação da produção” (KuA: 233pt), além de representar uma relação limitada e

unilateral de reconhecimento recíproco, pois na relação entre produtores e consumidores

apenas a dimensão da satisfação material de carências é levada em consideração.

Marx abandona progressivamente o modelo estético-expressivista do conceito de

trabalho e, com ele, a filosofia da história correspondente. No entanto, em vez de colocar em

seu lugar uma concepção moral e normativamente rica de atividade produtiva, Marx abre o

caminho para a admissão de premissas utilitaristas. Assim, a luta de classes que antes era

concebida sob a forma (mesmo que limitada) de uma luta por reconhecimento passa agora a

descrever um antagonismo entre interesses econômicos conflitantes. Mantém-se, em suas

obras de maturidade, a ideia já presente nos Manuscritos de que o trabalho não é apenas um

processo de criação social de valor, mas também um processo de exteriorização ou expressão

de forças humanas; essa ideia é fundamental para que a sociedade capitalista possa ser

considerada uma formação socioeconômica e, ao mesmo tempo, uma “relação particular de

autorreificação humana” (KuA: 235pt). O que muda é que, no caminho que leva ao Capital,

Marx abandona o caráter moral intersubjetivo do reverso da atividade produtiva reificada, isto

é, a noção “tomada de empréstimo de Feuerbach, segundo a qual todo ato de trabalho não

alienado deve ser interpretado ao mesmo tempo como uma espécie de afirmação afetuosa do

caráter carencial [Bedürftigkeit] de todos os outros sujeitos do gênero [Gattungssubjekte]”

(KuA: 237de; 235pt). Por consequência, se o que se rompe com o sistema econômico

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capitalista não é uma relação intersubjetiva de reconhecimento recíproco de carências

humanas, mas sim um equilíbrio entre as demandas autointeressadas dos membros de cada

classe, a luta que daí decorre deixa de se referir a um conflito moral contra a destruição das

condições de autorrealização intersubjetiva e passa a ter como fim a autoafirmação econômica

de sujeitos egoístas em uma concorrência de interesses “objetivos” estruturalmente

condicionada. Em razão disso, as transformações e ampliações jurídicas impulsionadas pelos

ideais burgueses de igualdade e liberdade, mesmo quando favoreceram os trabalhadores, não

puderam ser vistas por Marx de maneira univocamente positiva; ele sempre toma o

universalismo jurídico com a desconfiança – em parte certamente justificada – de que ele

possui apenas um caráter formal e, portanto, tem uma função acima de tudo ideológica.

Honneth identifica nos escritos de Marx sobre história e política, no entanto, uma

ampliação de seu enfoque explicativo que resulta “do propósito metodológico de expor em

seus estudos históricos, de modo narrativo, o curso fatual daquele processo histórico que ele

havia investigado em sua análise econômica apenas da perspectiva, de certa maneira

funcionalista, da imposição das relações capitalistas” (KuA: 237pt, trad. mod.). Esse

posicionamento implica a necessidade de levar em conta todos os fatores que exercem algum

tipo de influência, no processo histórico concreto, sobre o modo como os grupos concernidos

vêm a conhecer e experienciar (erfahren) sua respectiva situação e como se dá, em

decorrência disso, o seu comportamento político (KuA: 237pt). Adentram, assim, na

exposição de Marx, precisamente os estilos de vida transmitidos pelas culturas cotidianas

específicas das diferentes camadas sociais, os quais marcam o tipo de experiência das

circunstâncias e das privações sociais. Com isto, “modifica-se necessariamente para Marx

também o padrão segundo o qual se deve explicar o próprio comportamento político no

conflito”: ele passa a depender de convicções de valor que se sedimentam nas formas de vida

culturalmente compartilhadas e que estão ligadas à formação e expressão da identidade dos

sujeitos individuais e coletivos. Ora, por conseguinte, “o puro pesar de interesses não pode

mais decidir quais finalidades os diversos grupos perseguem nos confrontos políticos” (KuA:

237pt).

Deste modo, vem à tona em escritos como O 18 de Brumário de Luís Bonaparte

(1851-52) e As lutas de classes na França (1850) um modelo expressivista de conflito,

interpretado, em oposição aos escritos teóricos sobre o capitalismo, segundo o padrão de uma

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cisão ética na qual “defrontam-se atores coletivos orientados por valores diferentes, em

virtude de sua situação social” (KuA: 238pt).

Embora mais próxima, essa caracterização dos processos sociais conflituosos (que

Marx “relata com ênfase dramatúrgica”) não implica propriamente em uma luta por

reconhecimento nos moldes adotados por Honneth, pois refere-se a um confronto em torno de

formas coletivas de autorrealização no qual “não se trataria propriamente de um processo

moral que admitiria a possibilidade de uma resolução social, mas de um trecho social

daquela luta eterna entre valores incompatíveis por princípio” (KuA: 239pt). Por isso, Marx

não pode aqui reservar para o confronto aquele papel de força motora do desenvolvimento

histórico-social.

Honneth conclui afirmando que Marx não conseguiu, ao cabo, mediar os dois

modelos de conflito presentes em sua obra de maturidade: o utilitarista econômico, e o

expressivista histórico. Ademais, é importante sublinhar que, mesmo no segundo caso, Marx

não concebeu a luta de classes como um conflito moralmente motivado. Não à toa, como visto

no capítulo anterior, o marxismo observou no século XX o surgimento de vertentes

estruturalistas e utilitaristas, focadas exclusivamente seja nos sistemas de poder econômico e

político que conformam a sociedade capitalista, seja nas lutas estratégicas que os sujeitos

autointeressados travam entre si por bens escassos e posições de autoridade.

Fortes candidatos para, neste contexto, fazer a correção necessária ao déficit

normativo do utilitarismo marxista seriam, pelos motivos expostos no capítulo anterior, os

autores reunidos sob a alcunha de “estudos culturais”. Quem cumpre este papel em Luta por

reconhecimento é, entretanto, num primeiro momento, Georges Sorel.

Honneth justifica a escolha de Sorel de dois modos. Em primeiro lugar está a sua

manifesta intenção de superar o utilitarismo como obstáculo que impede o marxismo de se

tornar consciente de suas próprias finalidades éticas. Honneth destaca a convicção teórica

fundamental de Sorel segundo a qual a ação humana não pode ser igualada à persecução de

interesses mediante uma racionalidade com respeito a fins, pois são assim encobertos os

impulsos morais que orientam os atores sociais em suas atividades produtivas, entendidas de

modo amplo. Em segundo lugar está o “conceito de ação social orientado pelo modelo da

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produção criativa do novo” (KuA: 240pt) que é o fundamento da teoria soreliana. A

criatividade humana tem, aqui, um papel social preeminente, estando conectada à própria

dimensão moral: “os complexos de ideias criativamente produzidos, formando o horizonte

cultural de uma época histórica, compõem-se sobretudo das representações em que se define

o que se considera eticamente bom e humanamente digno” (KuA: 240-1pt). Com isso, a teoria

de Sorel aparece como possível retificador não apenas do déficit normativo do pós-

hegelianismo de esquerda, mas também de seu déficit de criatividade (ao qual Honneth

confere, no entanto, um papel muito mais reduzido).

Para Sorel, o processo de criação de novas ideias se dá no horizonte histórico da

luta de classes, em que cada classe tem a intenção de tornar patente sua capacidade de

organizar moralmente a sociedade mediante formulações universais de seus próprios valores

morais e concepções de honra ou dignidade. Uma vez que, para o autor, este conflito se dá na

forma de confrontos no campo do direito, é precisamente a relação entre moral específica de

classe e normas jurídicas que confere o caráter ético da luta de classes. Ao se deparar com a

corrente de pensamento do socialismo ético, isto é, com a empreitada de fundar as pretensões

da teoria marxista na ética de Kant, Sorel a reinterpreta com cores hegelianas: “Agora Sorel

atribui as normas éticas, que as classes oprimidas reiteradamente introduzem a partir de

baixo nos confrontos jurídicos, às experiências afetivas naquela esfera da vida social que o

jovem Hegel havia sintetizado com o termo de ‘eticidade natural’” (KuA: 242pt). Assim, é na

família, pela práxis do afeto e do respeito mútuos, que os indivíduos adquirem a sensibilidade

moral (moralisches Sensorium) que é a base para suas concepções morais amadurecidas,

posteriormente formuladas de modo positivo. As representações que o sujeito tem do que é

moralmente bom consistem então em uma versão generalizada daquilo que ele experienciou

como válido em seu processo de formação no que se refere às condições da “vida honrada”

(Sorel apud KuA: 245de; 242pt). Se o sujeito em questão pertence a uma classe em

desvantagem em algum aspecto da reprodução social, as pretensões éticas que ele adquire na

experiência da interação e dedicação familiar cristalizam-se em sentimentos de injustiça

social. Os sentimentos coletivos de injustiça vivida e degradação sofrida representam, então, a

força motivacional duradoura da luta moral das classes oprimidas. Com essa hipótese

empírica sobre nossas representações morais quotidianas, Sorel dotou “o quadro

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interpretativo oferecido pela ideia de uma luta por reconhecimento com o material empírico

dos sentimentos morais” (KuA: 244pt).

É preciso ter em mente, contudo, que as normas ancoradas na afetividade são

compostas eminentemente por negações:

é nas reações emocionais negativas que se manifesta para os indivíduos ou para os

grupos sociais quais representações eles possuem acerca do eticamente bom: a

moral é para Sorel o conjunto de todos aqueles sentimentos de lesão [Verletzung] e

de ofensa [Kränkung] com que reagimos toda vez que nos sucede algo que tomamos

por moralmente inadmissível (KuA: 242-3pt, trad. mod.).

A experiência coletiva de injustiça leva os sujeitos a uma “confrontação com o

sistema dominante de normas, ancorado no direito” (KuA: 243pt). Sorel distingue entre o

fundamento jurídico histórico e o humano, isto é: o direito factualmente estabelecido, que está

na base da organização social como um todo, e aquele que representa o que é moralmente

exigível. Inevitavelmente, diz ele, esses fundamentos jurídicos distintos entram em conflito

um com o outro: “Essa oposição pode permanecer sem efeito por um longo tempo; mas

sempre ocorrem casos em que as demandas do indivíduo oprimido nos parecem mais

sagradas que as tradições em que se baseia a sociedade” (Sorel apud KuA: 243pt).

O desvelamento de normas morais que se tornam manifestas a partir das reações

emocionais negativas dos sujeitos afetados não estabelece automaticamente, contudo,

precedentes jurídicos para a classe oprimida lutar a partir de baixo contra o sistema jurídico

seletivo da ordem social dominante. Para disputar o poder político, diz Sorel, a classe

oprimida precisaria realizar uma tradução criativa das representações morais inicialmente

apenas negativas em normas jurídicas positivas. Neste ponto torna-se central o conceito de

mito social, que Sorel formula sob forte influência de Henri Bergson e que ajuda a

compreender a constituição cognitiva do processo da produção coletiva de novas ideias

jurídicas:

visto que o ser humano possui, como ser primariamente afetivo, um acesso intuitivo

mais a imagens concretas do que a argumentações racionais, o que melhor pode

transformar o ‘sentimento ardente de indignação’ em princípios jurídicos positivos

são os mitos sociais, nos quais está construído figurativamente um futuro

indeterminado em seu curso (KuA: 244pt).

A concepção soreliana de direito é, no entanto, segundo a perspectiva de Honneth,

muito reduzida, pois ele é tido apenas como a expressão institucional das normas positivas

que são a corporificação dos sentimentos particulares de desrespeito e injustiça social da

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classe que, em determinado momento, detém certa primazia na correlação política de forças.

Trata-se para Sorel, portanto, eminentemente de uma técnica de poder, de modo que o

potencial universalista do reconhecimento jurídico tem que permanecer fora de seu campo de

visão.

Se, por um lado, a teoria de Sorel interessa a Honneth por combater as correntes

utilitaristas do pensamento marxista, por outro lado a importância dos processos de criação de

novas normas jurídicas mostra que o conceito soreliano de “mito social”, a exemplo das

“sociedades imaginadas” de Castoriadis, poderia ser empregado para corrigir o caráter

meramente defensivo dos conflitos sociais vistos sob a ótica dos estudos culturais. Trata-se,

no entanto, de um caminho aberto como possibilidade, mas não seguido de fato. Assim, a

preocupação do autor com o déficit de criatividade normativa parece ser minimizada em favor

da tentativa de solucionar o déficit de normatividade.

A próxima e última etapa na trajetória descrita por Honneth é a filosofia de Sartre,

especialmente os escritos posteriores a O ser e o nada. O autor já havia destacado, em texto

sobre Sartre publicado em 1988, que na concepção de intersubjetividade presente em O ser e

o nada está vedada, na prática, a possibilidade de reconciliação entre os sujeitos, de modo que

a luta por reconhecimento acaba sendo eternizada como uma característica existencial do ser-

aí humano. Segundo essa teoria negativista da intersubjetividade, o olhar do outro é

experienciado pelo sujeito sempre como fixação objetivante de suas possibilidades de

existência, de forma que toda interação humana é potencialmente marcada por um processo

de reificação recíproca, a qual é, por sua vez, sinalizada pelos sentimentos negativos

mobilizados pelos atores sociais.

Já em seus escritos político-filosóficos, Sartre adota uma postura mais

historicizante: em seu ensaio sobre o antissemitismo, por exemplo, é possível identificar uma

reorientação teórica mediante a qual se altera a visão do autor sobre dinâmica das relações

interativas entre os seres humanos: em lugar de experiências existenciais de sujeitos

individuais, são agora as experiências históricas de coletividades sociais que ocupam o cerne

das preocupações de Sartre. Diz Honneth: “a luta por reconhecimento deixa de representar

uma característica estrutural irrevogável do modo de existência humana e passa a ser

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interpretada como uma consequência, em princípio superável, de uma relação assimétrica

entre grupos sociais” (KuA: 248pt). Nos ensaios de Sartre sobre o colonialismo e o

movimento a ele contrário representado pela négritude, é precisamente este modelo

historicamente relativizado de conflito que ganha preeminência.

A questão que então se coloca diz respeito ao estatuto daquilo que nos seres

humanos deve ser reconhecido pelos seus pares. Do mesmo modo que na obra de Sorel,

também nos escritos de Sartre sobre o colonialismo percebe-se uma confusão entre o

reconhecimento (jurídico) universalista de direitos fundamentais elementares e o

reconhecimento (solidário) de formas específicas de autorrealização. Honneth considera

decisivo na modernidade, contudo, diferenciar formas jurídicas e extrajurídicas de

reconhecimento, como veremos adiante.

*

Nas releituras da luta por reconhecimento feitas no pensamento pós-hegeliano por

Marx, Sorel e Sartre, Honneth destaca a introdução de novas ideias e com elas uma ampliação

importante desse paradigma. Com Marx, o trabalho é visto como meio central de

reconhecimento recíproco; em Sorel, ganham destaque os sentimentos coletivos de

desrespeito sofrido; em seus escritos políticos, por fim, Sartre concebe o fenômeno da

dominação social como um distúrbio nas relações de reconhecimento. Nenhum dos três pôde,

contudo, desenvolver em um nível explicativo sistemático as implicações normativas do

modelo hegeliano da luta por reconhecimento (KuA: 251pt).

2.1.4. Transformação da ideia hegeliana: Mead

Honneth põe em relevo o fato de que a teoria hegeliana da luta por

reconhecimento desenvolvida no período de Jena enfrenta dificuldades para ser utilizada no

momento atual não apenas por seu caráter fragmentário, não sistemático, mas também e acima

de tudo por conta do fato de sua linha de raciocínio central estar presa a premissas metafísicas

e funcionar apenas “sob a pressuposição idealista de que o processo conflituoso a ser

investigado é determinado por uma marcha objetiva da razão, que ou desdobra,

aristotelicamente, a natureza comunitária do homem ou, nos termos da filosofia da

consciência, a autorrelação do espírito” (KuA: 107-8de; 117-8pt). Com o declínio da

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plausibilidade dos pressupostos teóricos do idealismo alemão, a filosofia não pôde mais

sustentar um conceito metafísico de espírito e passou a ter seus argumentos examinados frente

à realidade empírica e a um conceito mundanizado de razão (KuA: 118pt). Por isso, toda

tentativa de revitalizar a filosofia hegeliana encontra-se “de agora em diante na obrigação de

estabelecer um contato com as ciências empíricas [Erfahrungswissenschaften], para estar a

salvo, desde o início, do perigo de uma recaída na metafísica” (KuA: 118pt). Se Honneth

pretende retomar a luta por reconhecimento na perspectiva de uma teoria social de teor

normativo, isto é, se ele procura “fazer das pressuposições normativas da relação de

reconhecimento também o ponto de referência de uma explicação dos processos de

transformação histórica e empírica da sociedade”, torna-se necessária uma “sociologização”

(Soziologiesierung) do modelo conceitual hegeliano (KuA: 109de; 119pt, nota 2).

É com os meios da psicologia social de G. H. Mead que Honneth considera

possível dar à teoria hegeliana da luta por reconhecimento uma guinada materialista, pois o

princípio central de Hegel, isto é, a ideia de que “a formação prática da identidade humana

pressupõe a experiência do reconhecimento intersubjetivo” encontra em Mead a forma de

uma hipótese empírica de pesquisa (KuA: 148de; 155pt). Três tarefas então se impõem: (a)

abandonar o fundamento especulativo do processo de formação individual em favor de uma

reconstrução da tese hegeliana inicial “à luz de uma psicologia social empiricamente

sustentada” (KuA: 120-1pt); (b) em lugar de transferir para a realidade empírica formas de

reconhecimento conceitualmente construídas, proceder a uma fenomenologia empiricamente

controlada de tipos de reconhecimento, a qual servirá para examinar e corrigir a proposta de

Hegel (KuA: 121pt); e (c) por fim, a ideia de que o desenvolvimento do Eu se dá mediante

uma sequência de formas de reconhecimento recíproco cuja frustração aparece na experiência

do desrespeito precisa deixar o “quadro teleológico de uma teoria evolutiva que faz o

processo ontogênico da formação da identidade passar diretamente à formação da estrutura

social” e ser comprovada mediante observações históricas e sociológicas (KuA: 122pt).

Numa primeira etapa, Honneth discute o exame epistemológico que Mead leva a

cabo acerca do objeto de estudo da psicologia a fim de explicar como essa ciência tem acesso

ao psíquico. Inicialmente, Mead se apoia sobre a ideia fundamental do pragmatismo segundo

a qual é a tematização, diante de problemas práticos quotidianos, de ações habituais que

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conduz a um conhecimento mais profundo e elaborado da realidade. Assim, a psicologia

deveria se colocar na perspectiva de um ator que se conscientiza da sua subjetividade sob a

pressão de um problema prático que o força a reelaborar criativamente suas interpretações da

realidade.108

Trata-se ainda, contudo, de uma perspectiva insuficiente para compreender o

mundo psíquico, visto que o distúrbio na execução de uma ação instrumental apenas requer a

adaptação (criativa) do sujeito à situação mal avaliada. É preciso levar em conta, reconhece

Mead, a dimensão social segundo a qual a interação (muitas vezes conflituosa) com outros

indivíduos força os sujeitos a se tornarem conscientes de sua própria subjetividade. Dessa

maneira, a psicologia deve se colocar na perspectiva do ator que está em um relacionamento

de certo modo vulnerável com seu parceiro de interação para obter uma visão interna dos

mecanismos de surgimento da consciência da própria subjetividade. Nessa situação, a

autoconsciência é funcional para a resolução de problemas na medida em que, para poder

prever, compreender e até certo ponto controlar as reações de seus parceiros de interação, o

sujeito precisa ser capaz de apreender o significado prático de suas próprias ações e, para isto,

é necessária a capacidade de desencadear em si mesmo o comportamento reativo provocado

no outro. Nas palavras de Honneth: mediante a “capacidade de suscitar em si o significado

que a própria ação tem para o outro, abre-se para o sujeito, ao mesmo tempo, a

possibilidade de considerar-se a si mesmo como um objeto social das ações de seu parceiro

de interação” (KuA: 129-30pt). A consequência fundamental desse raciocínio é que o

indivíduo apenas pode tomar consciência de si mesmo na posição de objeto, e isso é possível

somente “na medida em que ele aprende a perceber sua própria ação da perspectiva,

simbolicamente representada, de uma segunda pessoa” (KuA: 131pt). Daí surge a notória

distinção de Mead, interna ao mundo psíquico do sujeito, entre o “Eu” e o “Me”: ao passo que

este é o resultado de uma autorrelação originária (passada) e representa a imagem que o outro

108

Um ponto que aparece no texto mas não recebe muita atenção de Honneth é o importante papel que a

criatividade assume na formação dos sujeitos bem como nas transformações sociais. Isso porque os

indivíduos possuem uma força interna individual espontânea que gera exigências e expectativas direcionadas

a seus parceiros de interação concretos e generalizados, isto é, ao seu entorno social. A realização dessas

expectativas e exigências depende, é importante frisar, da antecipação de uma situação social futura na qual

os indivíduos gozam de uma rede mais ampla de direitos. O recurso a Mead – assim como a Castoriadis e

Sorel – poderia portanto auxiliar Honneth a superar o déficit de criatividade normativa que ele identifica, por

exemplo, no marxismo dos estudos culturais. Entretanto, o fato de Mead não definir se os impulsos do Eu

nascem “da natureza pulsional pré-social, da imaginação criadora ou da sensibilidade moral” não contribui

para o esclarecimento do caráter dessa força espontânea interna aos indivíduos (KuA: 140pt).

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130

tem de mim, aquele é a fonte não regulamentada de todas as minhas ações atuais. O Eu

precede e acompanha o Me, e é responsável pela resposta criativa a problemas práticos com

os quais o sujeito se depara, mas nunca aparece no campo de visão. Para Mead há, entre eles,

na nossa experiência interna, uma relação comparável à que existe entre parceiros de um

diálogo.

Uma concepção intersubjetivista da autoconsciência humana é o primeiro passo

para uma fundamentação “naturalista” da teoria hegeliana do reconhecimento. Mead inverte,

de modo semelhante ao jovem Hegel, mas com apoio nos instrumentos teóricos das ciências

empíricas, a relação entre o Eu e o mundo social, no sentido de afirmar a precedência da

percepção do outro para o desenvolvimento da autoconsciência. Um segundo passo tem que

consistir, entretanto, em reorientar a atenção para a formação da identidade prático-moral dos

sujeitos, em detrimento da relação cognitiva de interação abordada até então. Mead volta-se

então para “as formas de confirmação prática mediante as quais ele [o sujeito, MT] adquire

uma compreensão normativa de si mesmo como um determinado gênero de pessoa” (KuA:

121de; 132pt). Não se trata mais, portanto, de exigências cognitivas, mas sim de expectativas

normativas. Com essa ampliação do comportamento social, o Me deixa de ser uma

autoimagem cognitiva, e nessa medida “neutra”, e se transforma em uma autoimagem prática:

“ao se colocar na perspectiva normativa de seu parceiro de interação, o outro sujeito assume

suas referências morais de valor, aplicando-as na relação prática consigo mesmo” (KuA:

133pt). A relação é recíproca porque o sujeito apenas pode se saber reconhecido como

membro de um contexto de cooperação na medida em que reconhece seus parceiros de

interação pela via da interiorização de suas atitudes normativas (KuA: 136pt).

Deste modo, no desenvolvimento social da criança, o seu Me generaliza-se

gradualmente à medida que aumenta o seu círculo de parceiros de interação. Imitando e

interagindo inicialmente com um outro concreto (na situação que Mead chama de play) e

depois orientando sua ação segundo a perspectiva de um outro generalizado (na situação do

game), a criança interioriza enfim normas de ação provenientes das expectativas de

comportamento de todos os membros da sociedade (KuA: 135pt). O grau de universalidade

das expectativas normativas de comportamento vai aumentando com o número cada vez

maior de parceiros da interação, até que o sujeito chega à representação das normas sociais de

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131

ação e torna-se assim capaz de participar nas interações normativamente reguladas de seu

meio e de se conceber como membro de uma coletividade. O reconhecimento em questão diz

respeito, entretanto, não apenas às minhas obrigações perante a comunidade, mas também aos

meus direitos, que Honneth define aqui como “as pretensões individuais das quais posso

estar seguro que o outro generalizado as satisfará” (KuA: 137pt). A dignidade que advém

desta compreensão do indivíduo como pessoa de direito significa que ele pode contar

legitimamente com o respeito a algumas de suas exigências fundamentais para estar seguro do

valor social de sua identidade (KuA: 137pt).

A consciência do próprio valor – que Mead chama de autorrespeito – é uma

atitude positiva para consigo mesmo que surge a partir do reconhecimento do sujeito, por

parte dos demais membros da coletividade, como sendo um determinado gênero de pessoa.

Ser considerado como pessoa de direito é, contudo, apenas uma primeira etapa, pois aqui os

indivíduos são reconhecidos como iguais, mas não nas suas diferenças como sujeitos

biograficamente individuados. Os direitos são, portanto, uma base muito geral, mesmo que

sólida, para o autorrespeito. Aqui, “Mead coincide com Hegel também na constatação de que

a relação jurídica de reconhecimento é ainda incompleta se não puder expressar

positivamente as diferenças individuais entre os cidadãos de uma coletividade” (KuA: 139pt).

Mead extrapola o quadro hegeliano, entretanto, ao introduzir o Eu na análise, isto

é: a experiência de um afluxo de espontaneidade prática, de impulsos internos inconscientes e

reações criativas involuntárias. O Eu é, desse modo, um reservatório de energias psíquicas

que dota todo sujeito de possibilidades inesgotáveis de identidade. Apesar de Honneth afirmar

que se trata de uma ampliação temática que confere força psíquica ao movimento do

reconhecimento e que permite, assim, explicar sua dinâmica interna, como o Eu nunca pode

ser diretamente acessado, não há como saber, no quadro da teoria de Mead, se os impulsos

que ele (o Eu) designa nascem da natureza pulsional pré-social, da imaginação criadora ou da

sensibilidade moral (KuA: 140pt).

É importante, além disso, notar que o Eu só aparece, e em parte, como desvio dos

padrões de comportamento normativamente exigidos, como divergências criativas. No

posfácio a Luta por reconhecimento escrito em 2002, Honneth afirma, referindo-se à sua

apropriação de Mead no livro: “se entendemos, com Mead, a experiência do reconhecimento

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132

recíproco como um processo de formação individual de um ‘me’ que consiste na consciência

de expectativas socialmente legítimas, então talvez o ‘eu’ pudesse ser concebido como fonte

daquela revolta constante contra formas estabelecidas de reconhecimento” (GdA: 312de;

502en). Este atrito interno entre o Eu e o Me corresponde à tensão entre pretensões de

individuação e vontade coletiva internalizada e, portanto, ao conflito moral entre o sujeito e

seu ambiente social. É justamente esse atrito, tensão ou conflito que impulsiona, segundo

Mead, o desenvolvimento moral tanto dos indivíduos como das sociedades: “o ‘Me’

incorpora, em defesa da respectiva coletividade, as normas convencionais que o sujeito

procura constantemente ampliar por si mesmo, a fim de poder conferir expressão social à

impulsividade e criatividade do seu ‘Eu’”. Honneth diz ainda: “E a existência do ‘Me’ que

força o sujeito a engajar-se, no interesse de seu ‘Eu’, por novas formas de reconhecimento

social” (KuA: 141pt). A estrutura desses conflitos morais está ligada, portanto, a exigências

do Eu cuja satisfação pressupõe uma ampliação dos direitos individuais, o que pode ser

compreendido de duas maneiras: (1) como autonomia individual (liberdade com relação às

leis e convenções sociais) ou (2) como autorrealização pessoal (realização da identidade).

Essa é uma distinção que, apesar de não ter sido tematizada explicitamente por Mead, tem

consequências importantes para o projeto honnethiano de traduzir a teoria de Hegel do

reconhecimento nos termos da psicologia social.

(1) No primeiro caso, o aumento da liberdade com relação às leis depende da

suposição contrafatual de uma rede ampliada de reconhecimento de direitos, isto é, da

idealização ou antecipação de uma comunidade jurídica futura mais abrangente que a

existente no momento atual.109

Nesse sentido, trata-se de uma ruptura moral com a

coletividade em que se vive, que acontece quando o sujeito sente em si impulsos para agir

mas se vê impedido de realizá-los por conta das normas rígidas de seu meio social. Já que não

há como conter essa impulsividade do Eu, a práxis social dos sujeitos acaba sendo marcada

por um elemento de idealização normativa, de modo que eles “não podem outra coisa senão

se assegurar reiteradamente, na defesa de suas pretensões espontaneamente vivenciadas, do

assentimento de uma coletividade contrafaticamente suposta, que lhes faculta, comparada à

109

Há dois sentidos de uma ampliação das relações de reconhecimento jurídico: trata-se ora de um acréscimo

material na autonomia pessoal de todos os membros da comunidade, ora de uma expansão do círculo de

pessoas que compõem a comunidade jurídica.

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133

relação de reconhecimento estabelecida, um maior número de direitos à liberdade” (KuA:

143pt). Esse processo então se repete, de sorte que as divergências morais recobrem o decurso

da vida social com uma rede de ideais normativos e conduzem, assim, à evolução moral da

sociedade. Para Honneth, essa é a base de psicologia social da luta por reconhecimento:

em toda época histórica acumulam-se novamente antecipações de relações de

reconhecimento ampliadas, formando um sistema de pretensões normativas cuja

sucessão força a evolução social em seu todo a uma permanente adaptação ao

processo de individuação progressiva (KuA: 143-4pt).

A direção desse movimento é uma tendência à liberação da individualidade porque, mesmo

após a realização de determinadas reformas sociais, é somente idealizando uma comunidade

com ainda mais liberdade e mais autonomia pessoal que os sujeitos são capazes de defender

as exigências de seu Eu. Sob a pressão desse padrão de evolução surge, então, uma cadeia

histórica de ideais normativos (KuA: 144pt).

É fundamental acrescentar que as transformações sociais alcançadas nesse trajeto

decorrem da luta mediante a qual os atores procuram ampliar os direitos que lhes são

intersubjetivamente assegurados. Por isso, tanto para Mead quanto para o jovem Hegel, “a

liberação histórica da individualidade se efetua […] como uma luta por reconhecimento de

longo alcance” (KuA: 144-5pt). Mead vai além de Hegel, no entanto, ao considerar que o

fundamento motivacional da luta reside de modo não insignificante nas camadas

incontroláveis do Eu, que só se exteriorizam de modo livre e espontâneo quando podem

contar com o assentimento de um outro generalizado. Estas camadas são, nas palavras de

Honneth, “forças que impelem reiterada e inovadoramente o ‘movimento do

reconhecimento’” (KuA: 145pt). Não é difícil perceber as implicações histórico-sociais dessa

ideia; o próprio Mead recorre a eventos históricos nos quais os movimentos sociais tiveram,

como cerne motivacional, ideais normativos abrangentes acerca da coletividade social. Mais

precisamente, ele considera que são necessárias personalidades dotadas de carisma e que

saibam ampliar o “outro generalizado” de seu meio social para chegar a ideias morais em

consonância com as expectativas intuitivas de seus contemporâneos e que são o ponto de

partida para a luta por reconhecimento: “assim que essas inovações intelectuais puderam

influir sobre a consciência de grupos maiores, procedeu daí uma luta por reconhecimento de

pretensões jurídicas, que acabou colocando em questão a ordem institucionalizada” (KuA:

145pt).

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134

(2) A ampliação dos direitos individuais no sentido da autorrealização pessoal,

por sua vez, refere-se à satisfação dos impulsos do Eu direcionados à diferenciação ou ao

status social. Aqui, o Me requer que o sujeito possa ver-se a si próprio como personalidade

única e insubstituível. Faz-se necessária, por conseguinte, uma forma de certificação ética da

importância social de suas capacidades individuais a partir das convicções morais de valor da

coletividade (KuA: 140de; 148pt). Assim, o valor social das capacidades e propriedades

individuais desenvolvidas pelo sujeito depende, também, do reconhecimento dos parceiros de

interação.

A autorrealização pessoal configura uma etapa posterior à autonomia jurídica, de

modo que suas exigências só podem aparecer quando um sujeito já se sabe reconhecido como

pessoa de direito em pé de igualdade com os demais membros da coletividade:

A compreensão prática que um semelhante ator tem de si mesmo, seu ‘Me’ portanto,

será nesse caso constituída de tal sorte que ela o faz compartilhar com os outros

membros de sua coletividade não só as normas morais, mas também as finalidades

éticas: se ele pode entender-se, à luz das normas comuns de ação, como uma pessoa

que possui determinados direitos em face de todos os demais, então, à luz das

convicções axiológicas comuns, ele pode entender-se como uma pessoa que tem

importância única para eles todos (KuA: 144de; 152pt).

Nota-se que seria preciso fazer então uma diferenciação na ideia de

reconhecimento recíproco para dar conta do tipo de relação na qual cada sujeito pode saber-se

confirmado como uma pessoa distinta de todas as outras por habilidades ou características

particulares. Mead não desenvolve, porém, esse novo conceito de “outro generalizado”. De

fato, ele apenas esboça algo semelhante ao tratar do desempenho funcional do indivíduo no

trabalho: o vínculo que Mead propõe entre a autorrealização individual e a experiência do

trabalho socialmente útil diz respeito ao fato de que a autorrealização requer que se reconheça

a contribuição particular do sujeito para a reprodução da coletividade no quadro da

distribuição de funções. Mead considera que a divisão funcional do trabalho é um sistema

valorativo transparente e que fornece, assim, um critério não contingente, até certo ponto

“objetivo” para o reconhecimento em questão. Seu propósito é, assim, manter a

autorrealização individual a uma distância segura da influência de valorações coletivas e

contingentes, típicas de coletividades particulares. Esta poderia ser uma resposta pós-

tradicional ao problema colocado por uma concepção substantiva da eticidade se fosse de fato

possível deixar de considerar que a escala valorativa das diversas funções do trabalho é

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135

estabelecida precisamente com referência à concepção comum de vida boa. Se a divisão

funcional do trabalho não pode ser considerada um sistema axiologicamente neutro, esse

modelo fica, para Honneth, aquém da complexidade da integração ética das sociedades

modernas e sua exigência espaços cada vez maiores para a individuação: “a ideia de fazer o

indivíduo alcançar o reconhecimento de suas propriedades particulares na experiência do

trabalho socialmente útil há de fracassar já pelo fato de a valorização das funções reguladas

pela divisão do trabalho ser dependente das finalidades abrangentes de uma coletividade”

(KuA: 153pt).

Para o jovem Hegel, como visto, essa etapa do reconhecimento corresponde ao

que ele chama de “solidariedade”. Trata-se da forma mais exigente de reconhecimento mútuo

porque, nela, cada sujeito é respeitado por todos os outros em sua particularidade individual.

De acordo com Hegel, a solidariedade é um padrão de reconhecimento “que surge quando o

amor, sob a pressão cognitiva do direito, se purifica, constituindo-se em uma solidariedade

universal entre os membros de uma coletividade” (KuA: 154pt). Falta à sua concepção,

porém, um maior desenvolvimento do contexto de experiência que funciona como motivo

para o engajamento dos atores sociais em relações de reconhecimento solidário. A psicologia

social de Mead pode ajudar a solucionar esta deficiência na medida em que introduz, na ação

dos atores sociais, uma orientação pelos objetivos e valores comuns. Honneth acrescenta que

o estímulo motivacional para o reconhecimento desses valores e, assim, para o interesse

solidário pelo modo de vida de um outro, depende de uma experiência partilhada da exposição

a certos perigos. As concepções comuns de uma vida bem-sucedida no quadro da coletividade

são, assim, o resultado do aprendizado acerca dos riscos que nos vinculam de maneira prévia

(KuA: 146de; 154pt).

Mead deixa em aberto, entretanto, a grande questão que se coloca nos dias de

hoje: como determinar as convicções éticas de um outro generalizado de modo que sejam

substantivas o suficiente para garantir o reconhecimento, mas formais o bastante para não

restringir o espaço livre de possibilidades para a autorrealização (KuA: 152pt)? Para Honneth,

apenas uma forma de eticidade “por assim dizer democrática” poderia abrir “o horizonte

cultural no qual os sujeitos, com direitos iguais, poderiam reconhecer-se reciprocamente em

sua particularidade individual pelo fato de que cada um deles é capaz de contribuir, à sua

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própria maneira, para a reprodução da identidade coletiva” (KuA: 153pt). É preciso que

haja, portanto, um equilíbrio entre autonomia e autorrealização, de modo que todos os sujeitos

possam conceber igualmente seu valor para a coletividade enquanto portadores de direitos,

sem que isso os impeça de se autorrealizarem de modo particular:

As condições morais e culturais sob as quais se reproduzem as sociedades pós-

tradicionais, mais individualizadas no sentido de Mead, precisam também impor

limites normativos a seus valores e a suas finalidades éticas: a concepção de vida

boa, intersubjetivamente vinculante, que de certa maneira se tornou eticamente

habitual, deve ser formulada de tal modo no plano do conteúdo que ela deixa ao

próprio membro da coletividade a possibilidade de determinar seu modo de vida no

quadro dos direitos que lhe cabem (KuA: 152pt).

*

A parte final do capítulo sobre Mead deixa patente a necessidade de formular um

conceito suficientemente diferenciado de reconhecimento, de modo que possam ser

adequadamente compreendidas suas distintas dimensões. Esta tarefa é cumprida por uma

fenomenologia empiricamente sustentada das formas de reconhecimento e das formas

correspondentes de desrespeito.

2.2. Fenomenologia

Honneth vê uma coincidência em Hegel e Mead na “tentativa de localizar os

diversos modos de reconhecimento nas respectivas esferas da reprodução social”: Hegel, por

um lado, “distingue em sua filosofia política a família, a sociedade civil e o Estado”; e Mead,

por outro, mostra um “tendência de destacar das relações primárias do outro concreto as

relações jurídicas e a esfera do trabalho enquanto duas formas distintas de realização do

outro generalizado” (KuA: 158pt). No capítulo sobre os padrões de reconhecimento, então,

Honneth se coloca como tarefa mostrar empiricamente (isto é, mediante uma concordância

aproximativa com os resultados das pesquisas empíricas de ciências particulares) a

plausibilidade da tripartição das formas de reconhecimento de Hegel e Mead. Esta tarefa toma

a forma, então, de uma “tipologia fenomenológica” empiricamente controlável (KuA: 156pt).

Trata-se, nas palavras de Honneth, da “tentativa de reconstruir o conteúdo concretamente

dado do amor, do direito e da solidariedade, até o ponto em que se estabelece uma conexão

produtiva com os resultados das pesquisas científicas particulares” (KuA: 159pt). Uma

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segunda tarefa (ausente nos escritos Mead e Hegel) consiste em identificar, na experiência dos

atores sociais, as formas de desrespeito que, como equivalente negativo das relações de

reconhecimento, exercem uma pressão que faz surgir a luta por reconhecimento e impulsiona,

assim, o desenvolvimento histórico. Em ambos os casos, é preciso poder contar com a

comprovação pelo material de investigações empíricas.

2.2.1. Padrões de reconhecimento e formas de desrespeito (modo de apresentação)

Padrões de reconhecimento: amor, respeito e estima

As relações afetivas primárias, como primeira dimensão do reconhecimento

mútuo, são concebidas por Honneth no sentido amplo de ligações emotivas fortes entre um

número relativamente pequeno de pessoas, representadas pelo amor erótico, a amizade e a

relação entre pais e filhos. Já em Hegel, o amor é a primeira etapa do reconhecimento na

medida em que permite que os atores sociais se confirmem mutuamente como seres

concretamente carentes e dependentes entre si. Esta forma de reconhecimento está

necessariamente ligada à existência corporal do sujeito e dos outros concretos com os quais

ele se depara nas suas atividades práticas. Em seus escritos de juventude, Hegel chama essa

relação de “ser-si-mesmo em um outro” (“Seinselbstsein in einen Fremden”110

) e considera

que ela dá o padrão elementar de todas as formas maduras de amor. Essa ideia é importante

para Honneth porque expressa, de certa forma, o fato de que as relações primárias afetivas

dependem de um equilíbrio (em geral precário) entre autonomia e vinculação, no qual se

preserva a tensão entre a autoafirmação individual e a entrega simbiótica dos atores sociais.

Para tornar esta ideia empiricamente plausível, Honneth recorre à teoria das relações de objeto

tal como formulada por Donald Winnicott e Jessica Benjamin.

A teoria das relações de objeto interessa a Honneth porque, contra a tradição

psicanalítica de Freud, ela confere um significado independente para as ligações emocionais

no desenvolvimento da primeira infância. As experiências interativas pré-linguísticas têm,

aqui, uma importância duradoura que não se resume à satisfação libidinal que é o centro do

modelo estrutural do Isso e do Eu na teoria freudiana. No lugar de uma relação monológica

110

Hegel (System der Sittlichkeit) apud KuA: 154de; 160pt.

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138

entre pulsões libidinais e capacidades do Eu, Honneth adota a teoria das relações de objeto

como uma ampliação necessária do quadro conceitual da psicanálise para abranger aquela

dimensão de interações sociais e relações emotivas com outros sujeitos nas quais a criança

aprende a se conceber como sujeito autônomo. Assim, o sucesso das relações afetivas

depende da capacidade que os atores sociais desenvolvem desde a infância para equilibrar

simbiose e autoafirmação.

Honneth destaca que a teoria das relações de objeto parte, para identificar as

condições que podem conduzir a uma forma bem-sucedida de ligação afetiva com outros

sujeitos, do aspecto negativo, isto é: daquilo que é identificado nos relacionamentos, segundo

uma análise terapêutica, como patológico (KuA: 161pt). São as observações empíricas acerca

de desvios experienciados como patológicos que formam a base para corrigir as tendências

monológicas da teoria freudiana:

pelo lado terapêutico, veio ao encontro dessa conclusão teórica a descoberta de que

um número crescente de pacientes sofria de enfermidades psíquicas que já não

podiam mais ser atribuídas a conflitos intrapsíquicos entre os componentes do Eu e

do Isso, mas somente a distúrbios interpessoais no processo de desligamento da

criança; tais formas de patologia, como as existentes no caso dos sintomas de

borderline e de narcisismo, forçaram os terapeutas a recorrer em forte medida a

abordagens incompatíveis com as concepções ortodoxas, visto que buscavam

conferir um significado independente às ligações recíprocas entre as crianças e as

pessoas de referência (KuA: 157de; 163pt, trad. mod.).

Segundo a teoria das relações de objeto, então, há nos primeiros meses de vida

uma intersubjetividade indiferenciada entre o indivíduo e a mãe, uma unidade originária de

comportamento reciprocamente vivenciada. A questão que Winnicott se coloca diz respeito,

então, a como mãe e bebê podem se separar e passar a se aceitarem e se amarem como

pessoas independentes. A solução para este problema não pode ser individual, mas deve ser

encontrada de modo conjunto. Assim, num primeiro momento, mãe e criança se encontram

em um estado de dependência absoluta que impede a delimitação entre eles como indivíduos

separados: “Não estando em condições de uma diferenciação cognitiva entre ela mesma e o

ambiente, a criança se move, nos primeiros meses de vida, num horizonte de vivências cuja

continuidade só pode ser assegurada pelo auxílio complementário de um parceiro da

interação” (KuA: 166pt). Quando ambas as partes obtêm um pouco mais de autonomia,111

111

Diz Honneth: “Para a mãe, esse empuxo de emancipação principia no momento em que ela pode voltar a

ampliar seu campo de atenção social, porque sua identificação primária e corporal com o bebê começa a

fluidificar […]. A essa ‘desadaptação graduada’ da mãe corresponde, pelo lado do bebê, um

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139

chega-se a um estado de dependência relativa, no qual a criança “sai da fase da ‘absoluta

dependência’ porque a própria dependência em relação a mãe entra em seu campo de visão,

de modo que ela aprende agora a referir seus impulsos pessoais, propositadamente, a certos

aspectos da assistência materna” (KuA: 167pt). A passagem da dependência absoluta para a

relativa se dá mediante a ação agressiva da criança, mas seus atos destrutivos não representam

“a expressão de uma elaboração negativa de experiências frustrantes”, e sim “os meios

construtivos com base nos quais a criança pode chegar a um reconhecimento da mãe, isento

de ambivalência, como ‘um ser com direito próprio’” (KuA: 169pt). Nesta nova etapa da

ligação entre mãe e filho,

a criança pode reconciliar sua afeição pela mãe, ainda alimentada de forma

simbiótica, com a experiência da autonomia desta. […] Se, pelo caminho assim

traçado, um primeiro passo de delimitação recíproca é bem-sucedido, a mãe e a

criança podem saber-se dependentes do amor do respectivo outro, sem terem de

fundir-se simbioticamente uma na outra (KuA: 169-70pt).

O amadurecimento dessa conexão afetiva se mostra, então, na capacidade de estar só, que a

criança adquire a partir da sua confiança na continuidade da dedicação materna mesmo após a

separação, isto é, sua confiança “na satisfação social de suas próprias demandas ditadas pela

carência” (KuA: 173pt). No momento em que o sujeito se sente amado por uma pessoa

independente, que ele por sua vez também ama, expressa-se praticamente uma forma de

autorrelação individual que Honneth chama de autoconfiança e que dá o padrão interativo das

relações afetivas do adulto.112

Assim como na relação entre criança e mãe, também na relação entre parceiros

amorosos e nas relações de amizade, o desejo de cada sujeito de estar fundido com o outro “só

se tornará o sentimento do amor se ele for desiludido a tal ponto pela experiência inevitável

da separação, que daí em diante se inclui nele, de modo constitutivo, o reconhecimento do

outro como uma pessoa independente” (KuA: 174-5pt). Diz Honneth, com base em

Winnicott:

desenvolvimento intelectual que provoca, juntamente com a ampliação dos reflexos condicionados, a

capacidade de diferenciar cognitivamente o próprio Eu e o ambiente” (KuA: 167pt, trad. mod.).

112 Honneth sublinha que a capacidade de estar só é um pressuposto fundamental para a criatividade infantil e

para a faculdade humana de imaginação, de forma que entre criatividade e reconhecimento há um nexo

profundo (KuA: 172pt). O autor não desenvolve, contudo, esta ideia em mais detalhes aqui ou em outra parte

do livro.

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140

O ato de deslimitação recíproca, no qual os sujeitos se experienciam como

reconciliados uns com os outros, pode assumir, segundo a espécie de ligação, as

formas mais diversas: nas amizades, pode ser a experiência comum de um diálogo

que nos absorve ou o estar-junto inteiramente espontâneo; nas relações eróticas, é

a união sexual, pela qual um se sabe reconciliado com o outro, sem diferenças

(KuA: 175pt).

Ainda de acordo com Winnicott, portanto, as relações amorosas são amadurecidas pela

desilusão mútua que estimula um equilíbrio, após a quebra da simbiose inicial, entre

delimitação e deslimitação entre os sujeitos. As patologias sociais podem ser consideradas,

inversamente, como o desequilíbrio entre os polos dessa balança. Jessica Benjamin é uma das

autoras que examina tais unilateralizações, nas quais ao menos um dos sujeitos não consegue

se desligar seja da autonomia egocêntrica, seja da dependência simbiótica, o que leva a

desfigurações das relações amorosas (os exemplos que ela aborda são o sadismo e o

masoquismo). Ainda sem entrar no mérito da investigação de patologias na esfera amorosa,

Honneth aponta contudo que a pertinência empírica do conceito de amor derivado da teoria do

reconhecimento é revelada na medida em que a reciprocidade malsucedida é considerada o

critério para a identificação de desvios patológicos nas relações afetivas (KuA: 176-7pt).

A partir dessa primeira forma de reconhecimento, os sujeitos estão em condições

de alcançar mutuamente uma confiança básica em si mesmos, de modo que o amor precede

todas as demais formas de reconhecimento recíproco. Nas palavras de Honneth:

aquela camada fundamental de uma segurança emotiva não apenas na experiência,

mas também na manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada pela

experiência intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do

desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito (KuA: 177pt).

Por isso, as relações afetivas são a base para a autoconfiança individual, e também para a

participação autônoma na vida pública.

Se a relação amorosa possibilita uma independência sustentada pela confiança

afetiva na continuidade da dedicação recíproca, é apenas a relação jurídica que, numa segunda

etapa, permite a aceitação cognitiva da autonomia do outro. Isto porque as relações afetivas

primárias dependem de sentimentos de simpatia e atração, os quais não estão simplesmente à

disposição do indivíduo: “como os sentimentos positivos para com outros seres humanos são

sensações involuntárias, ela [a relação amorosa, MT] não se aplica indiferentemente a um

número maior de parceiros de interação, para além do círculo social das relações primárias”

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(KuA: 178pt). O reconhecimento jurídico, por sua vez, tem que se dar de forma universal,

independentemente de afetos particulares – caso contrário não é possível diferenciar o

estatuto jurídico de um indivíduo em pé de igualdade moral com os demais sujeitos da estima

social que ele detém por conta de suas características particulares. Nas sociedades

tradicionais, onde rege o que Honneth chama de eticidade convencional, os direitos e deveres

dos atores sociais estão vinculados a tarefas concretas e expectativas específicas ligadas aos

papéis sociais dos indivíduos no interior de uma estrutura social de cooperação. Honneth

defende que, com a passagem para a modernidade, as pretensões legítimas do indivíduo à

igualdade jurídica são ancoradas em princípios universalistas de uma moral pós-convencional,

afastada da estima social e aplicada virtualmente a todos os sujeitos na mesma medida, de

modo que exceções e privilégios deixam de ser aceitáveis e passam a ser vistos como

arbitrários e injustificáveis. Trata-se da diferença, que não mais pode ser ignorada, entre o

reconhecimento do sujeito enquanto pessoa (igual) e a estima pelo indivíduo em sua

particularidade. São duas formas de respeito: o jurídico, segundo o qual todo ser humano deve

ser considerado, sem distinções, como um fim em si; e o social, que salienta o “valor” de um

indivíduo, medido por critérios intersubjetivamente estabelecidos. Enquanto o primeiro se

pergunta o que caracteriza as pessoas como tais, o segundo questiona como se constitui um

sistema valorativo de referência. Com essa distinção, que Honneth empresta dos escritos de

Rudolph von Ihering do final do século XIX, torna-se claro o fato de que podemos reconhecer

um ser humano como pessoa sem ter de estimá-lo por suas realizações ou por seu caráter

(KuA: 185pt).

Ora, reconhecer todo outro ser humano como pessoa significa tratá-lo de forma

moralmente consistente com as propriedades que se atribui a uma pessoa de direito. Segundo

a argumentação de Honneth, assim, apenas podemos nos reconhecer como pessoas de direito

na medida em que reconhecemos também nossos deveres para com o outro generalizado,

concebido igualmente como um sujeito de direito. Surge, deste modo, “uma nova forma de

reciprocidade, altamente exigente: obedecendo à mesma lei, os sujeitos de direito se

reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual

sobre normas morais” (KuA: 182pt). Uma importante questão então se coloca: já que o

reconhecimento jurídico não é uma atitude diretamente ligada às emoções dos atores sociais,

consistindo ao contrário em uma operação do entendimento acima de tudo cognitiva, como

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este tipo de respeito pode ter força motivacional capaz de orientar o comportamento

individual? Para Honneth, o reconhecimento jurídico tem um elemento cognitivo e um

elemento normativo, visto que é preciso aplicar a norma, universal, a situações específicas:

na estrutura do reconhecimento jurídico, justamente porque está constituída de

maneira universalista sob as condições modernas, está infrangivelmente inserida a

tarefa de uma aplicação específica a situação: um direito universalmente válido

deve ser questionado, à luz das descrições empíricas da situação, no sentido de

saber a que círculo de sujeitos ele deve se aplicar (KuA: 186pt).

É nessa zona de disputa entre diferentes interpretações da situação particular que pode ser dar

a luta por reconhecimento no campo jurídico. Se a imputabilidade moral dos indivíduos

depende dos pressupostos subjetivos que os capacitam a participar num processo racional de

formação da vontade, de modo que “quanto mais exigente é a maneira pela qual se pensa um

semelhante procedimento, tanto mais abrangentes devem ser as propriedades que, tomadas

em conjunto, constituem a imputabilidade moral de um sujeito” (KuA: 188pt), resulta desta

indeterminidade fundamental do estatuto de uma pessoa imputável “uma abertura estrutural

do direito moderno para ampliações e precisões gradativas” (KuA: 182pt).

Honneth considera que, quanto ao reconhecimento jurídico, não há, como no caso

do amor, a garantia teórica fornecida por um ramo de pesquisa empírica, mas apenas a ajuda

de uma análise conceitual empiricamente sustentada (KuA: 183pt). O autor passa, então, a

uma reconstrução histórica do desenvolvimento fático do direito, visto como um processo

impulsionado por uma luta por reconhecimento no qual se amplia passo a passo o teor do

reconhecimento jurídico. Com a ajuda de Thomas H. Marshall, ele reconstrói o caminho que

leva dos direitos civis ou individuais de liberdade (século XVIII) aos direitos políticos de

participação (século XIX) e, destes, aos direitos sociais de bem-estar (século XX). A tentativa

de Marshall consiste em “reconstruir o nivelamento histórico das diferenças sociais de classe

como um processo direcionado de ampliação de direitos individuais fundamentais” (KuA:

186de; 190pt, trad. mod.). Segundo essa perspectiva, a imposição de cada nova classe de

direitos fundamentais é historicamente o fruto de uma luta na qual os argumentos mobilizados

referem-se à exigência de que cada indivíduo seja um membro com igual valor na

coletividade política, isto é, que a todos sejam garantidas as condições necessárias para a

participação paritária em um acordo racional compartilhado.

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Mediante esta inflexão histórica, Honneth pretende mostrar que, sob pressão dos

grupos desfavorecidos, a “institucionalização dos direitos civis de liberdade inaugurou como

que um processo de inovação permanente, o qual iria gerar no mínimo duas novas classes de

direitos subjetivos” (KuA: 192pt), inovação impulsionada pelo fato de que ainda não haviam

sido garantidos a todos os implicados os requisitos para a participação como sujeitos

imputáveis moralmente. Os confrontos práticos decorrentes da experiência do reconhecimento

denegado são lutas em torno da ampliação tanto do conteúdo material quanto do alcance

social das relações de reconhecimento jurídico: “O impulso adiante pelo caminho assim

traçado é o impulso em direção a uma medida maior de igualdade, a um enriquecimento da

substância de que é feito o status e a um aumento do número daqueles a quem é conferido o

status” (Marshall apud KuA: 193pt). Isto significa que o reconhecimento jurídico não se

limita, hoje, à capacidade abstrata de orientar-se por normas morais, como no começo do

desenvolvimento do direito moderno, mas se estende também à necessidade concreta de

condições mínimas para o exercício daquela capacidade, em termos de participação política

bem como de nível material de vida (KuA: 193pt). Para utilizar a distinção clássica de Isaiah

Berlin, são com isso acrescentadas liberdades positivas à liberdade meramente negativa dos

direitos civis liberais.

Ao passo que as relações afetivas primárias representadas pelo amor

proporcionam ao indivíduo uma autorrelação positiva que Honneth chama de autoconfiança, a

relação jurídica fornece as condições para o autorrespeito: enquanto a primeira “cria em todo

ser humano o fundamento psíquico para poder confiar nos próprios impulsos carenciais”, o

segundo faz “surgir nele a consciência de poder se respeitar a si próprio, porque ele merece

o respeito de todos os outros” (KuA: 194-5pt). Possuir direitos individuais neste contexto

significa poder manifestar pretensões morais legítimas, cuja satisfação social se considera

justificada; por seu caráter público, esta manifestação torna patente o reconhecimento jurídico

do indivíduo e possibilita, assim, o autorrespeito. Para Honneth, “com a atividade facultativa

de reclamar direitos, é dado ao indivíduo um meio de expressão simbólica cuja efetividade

social pode demonstrar-lhe reiteradamente que ele encontra reconhecimento universal como

pessoa moralmente imputável” (KuA: 197pt).

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Hegel, assim como Mead, distingue do amor e do direito uma terceira forma de

reconhecimento, tendo em vista que os atores sociais necessitam, além da experiência da

dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma certa medida de estima social para

que sua autorrelação possa abarcar uma referência positiva às suas capacidades e propriedades

específicas e concretas. Este tipo relação de reconhecimento – a que Hegel chama “eticidade”

e Mead “divisão democrática ou cooperativa do trabalho” – apenas torna-se possível se se

considera que há um horizonte de valores intersubjetivamente partilhado como pressuposto. O

reconhecimento solidário da estima social surge como forma independente quando, com o

desacoplamento moderno entre o reconhecimento jurídico e as formas de respeito social, o

princípio básico universalista do direito se separa da confirmação do valor socialmente

definido das propriedades particulares que caracterizam os seres humanos e os grupos sociais

em suas diferenças individuais e culturais. A autocompreensão cultural de uma sociedade,

entendida como o quadro aberto e permeável de orientações simbolicamente articuladas no

qual se formulam os valores e finalidades éticas, é a mediação social que conforma os

critérios da estima segundo os quais os atores são avaliados intersubjetivamente. O valor

social específico de cada indivíduo ou grupo é medido de acordo com a sua contribuição na

implementação de valores culturalmente definidos.

Assim como o reconhecimento jurídico, a estima social é, para Honneth, variável

historicamente. Nas sociedades tradicionais, a estima social era concebida sob a forma da

honra, e objetivos éticos formulados de modo substancial combinavam-se com concepções de

valor correspondentes, articuladas hierarquicamente. Nesse contexto, tem valor aquele que

mostra sua capacidade de cumprir as expectativas coletivas de comportamento inscritas na

autocompreensão do grupo ao qual pertence. Existe, desse modo, a possibilidade de igualdade

entre os membros de um mesmo grupo, mas as relações entre os próprios grupos são

hierárquicas. Como consequência, “propriedades da personalidade pelas quais a avaliação

social de uma pessoa se orienta sob essas condições não são, por isso, aquelas de um sujeito

biograficamente individuado, mas as de um grupo determinado por status e culturalmente

tipificado” (KuA: 201pt).113

A partir do ideário pós-tradicional da teoria e da filosofia política,

113

Referindo-se ao termo emprestado de The Hidden Injuries of Class, de Richard Sennett e Jonathan Cobb,

Honneth reconhece, mesmo nessa “ordem de reconhecimento relativamente estável”, a “possibilidade de que

alguns grupos sociais optem pelo caminho especial de uma counterculture of compensatory respect, a fim de

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inicia-se um processo conflituoso e persistente de mudança estrutural da ordem hierárquica da

estima social. Com o declínio gradual da barreira cognitiva representada pelos motivos

religiosos e metafísicos, as obrigações éticas passam a ser vistas como o resultado de decisões

intramundanas, sem referência a um sistema referencial objetivo: “Daí a luta que a burguesia

começou a travar, no limiar da modernidade, contra as concepções feudais e aristocráticas

de honra não ser somente a tentativa coletiva de estabelecer novos princípios axiológicos,

mas também o início de um confronto em torno do status desses princípios em geral” (KuA:

204pt). Com estas inovações culturais, o sujeito passa a entrar no campo da estima social

como grandeza biograficamente individuada, de modo que os grupos perdem espaço na

representação de quem contribui para a realização das finalidades éticas socialmente

estabelecidas.114

Tem-se, assim, a passagem da honra, característica do espaço público, para a

reputação ou prestígio, que se referem acima de tudo à integridade do indivíduo na esfera

privada. Soma-se à dissolução gradativa da hierarquia tradicional de valores e à abertura das

concepções sociais de valor para modos diferentes de autorrealização pessoal, ademais, o fato

de que os objetivos da sociedade são definidos de modo cada vez mais abstrato, e surge a

possibilidade de uma estima social que é tão mais individualizante e simétrica quanto mais

plural e horizontal for.

As transformações descritas nesta “fenomenologia empiricamente controlada” das

relações de estima social são fruto, diz o autor, de uma luta permanente entre diversos grupos

sociais que buscam atribuir – mediante o uso da força simbólica e sempre com referência à

autocompreensão geral da sociedade – um valor maior às capacidades ligadas à sua própria

forma de vida. Para Honneth, contudo, o resultado destas lutas não depende apenas de uma

correlação de forças, “mas também [d]o clima, dificilmente influenciável, das atenções

públicas”. Assim,

quanto mais os movimentos sociais conseguem chamar a atenção da esfera pública

para a importância negligenciada das propriedades e das capacidades

representadas por eles de modo coletivo, tanto mais existe para eles a possibilidade

de elevar na sociedade o valor social, ou, mais precisamente, a reputação de seus

membros (KuA: 207pt).

retificar a apreciação do valor de suas propriedades coletivas, sentida como injustificada, através de

estilizações enfáticas” (KuA: 202pt).

114 Na modernidade, a interpretação historicamente determinada dos objetivos éticos abstratos da sociedade é

feita de modo geral por grupos sociais, mas a reputação é atribuída ou medida individualmente.

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A autorrelação prática correspondente a esta terceira forma de reconhecimento é,

na modernidade, a experiência do “sentimento do próprio valor” (Selbstwertgefühl) ou a

autoestima (Selbstschätzung), que vai de par com “uma confiança emotiva na apresentação

de realizações ou na posse de capacidades que são reconhecidas como ‘valiosas’ pelos

demais membros da sociedade” (KuA: 210pt). Nas sociedades modernas, portanto, a

solidariedade está ligada ao pressuposto de relações sociais de estima simétrica entre sujeitos

individualizados e autônomos.115

Honneth chama estas relações de “solidárias” porque,

diferentemente da tolerância, elas não apenas exigem uma aceitação pragmática, mas também

um interesse afetivo pela particularidade individual do parceiro de interação, de forma que

suas capacidades e propriedades aparecem como significativas para a práxis comum. Diz o

autor: “só na medida em que eu cuido ativamente de que suas propriedades, estranhas a mim,

possam se desdobrar, os objetivos que nos são comuns passam a ser realizáveis” (KuA:

211pt).

Formas de desrespeito: violação, privação de direitos e degradação

Honneth inicia a fenomenologia das formas de desrespeito a partir da constatação

de que existe, em nossa linguagem quotidiana, um saber intuitivo acerca da profunda conexão

entre a integridade humana e os padrões de reconhecimento recíproco, a qual se expressa “na

autodescrição dos que se veem maltratados por outros” mediante “categorias morais que,

como as de ‘ofensa’ [Beleidigung] ou de ‘rebaixamento’ [Erniedrigung], se referem a formas

de desrespeito, ou seja, às formas do reconhecimento recusado” (KuA: 212de; 213pt). A

própria ideia de desrespeito não pode ser utilizada em sentido pleno, diz Honneth, se não

forem pressupostas expectativas de reconhecimento que os sujeitos têm com relação a seus

parceiros de interação e que são essenciais para a formação de sua identidade. É do

entrelaçamento interno, portanto, entre individuação e reconhecimento recíproco que surge a

115

A simetria que caracteriza as relações solidárias de estima social não distorcidas não diz respeito a uma

atribuição quantitativa (e portanto hierárquica) de valor, mas ao fato de que todo sujeito pode experienciar a

si mesmo como valioso para a sociedade, isto é, pode saber suas próprias capacidades e propriedades, sem

graduações, como significativas para a reprodução social de uma comunidade plural e democrática.

Diferentemente de Hegel (e também de sua própria argumentação vinte anos depois, em O direito da

liberdade), Honneth considera que os conflitos econômicos “pertencem constitutivamente a essa forma de

luta por reconhecimento”, e isto porque “as relações da estima social, como já havia visto Georg Simmel,

estão acopladas de forma indireta com os padrões de distribuição de renda” (KuA: 208pt).

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vulnerabilidade particular dos atores sociais frente a atitudes de desrespeito.116

Assim como os

padrões de reconhecimento, as diferentes formas de desrespeito também podem ser

classificadas em três categorias. As diferenças operadas até aqui perfazem, como pano de

fundo, uma base positiva de comparação:

Se a experiência de desrespeito sinaliza a denegação ou a privação de

reconhecimento, então, no domínio dos fenômenos negativos, devem poder ser

reencontradas as mesmas distinções que já foram descobertas no domínio dos

fenômenos positivos. Nesse sentido, a diferenciação de três padrões de

reconhecimento deixa à mão uma chave teórica para distinguir sistematicamente os

outros tantos modos de desrespeito (KuA: 214pt).

Os componentes da personalidade ameaçados pelo desrespeito são,

respectivamente, a integridade física, a integridade social e a dignidade dos sujeitos afetados.

A primeira forma de desrespeito – maus tratos e violação – corresponde à ruptura do

reconhecimento nas relações primárias e, por isso, toca a camada corporal da pessoa que

passa a não dispor livremente do seu corpo. Não se trata somente, contudo, de lesões físicas,

mas também da humilhação que as acompanha: “a particularidade dos modos de lesão física,

como ocorrem na tortura ou no estupro, não é constituída, como se sabe, pela dor puramente

corporal, mas por sua ligação com o sentimento de estar sujeito à vontade de um outro, sem

proteção, chegando à perda do senso de realidade” (KuA: 215pt, trad. mod.). Este tipo de

desrespeito destrói a autorrelação prática mais elementar, que é a confiança em si próprio. Já

no caso do desrespeito do reconhecimento jurídico, o sujeito afetado é estruturalmente

excluído do exercício de determinados direitos, e por isso não pode conceber-se como

moralmente imputável da mesma forma que os demais membros da sociedade. Com isso, ele

não sofre apenas a privação de direitos, mas perde também a capacidade de autorrespeito.

Analogamente, a degradação como terceira forma de desrespeito atinge as formas de vida, os

modos de crença ou os padrões de autorrealização dos concernidos, que perdem com isso a

possibilidade de avaliar positivamente suas contribuições para a reprodução social. Dito de

116

Para Honneth, o comportamento lesivo caracterizado pelo desrespeito constitui uma injustiça social, e não

apenas porque prejudica a liberdade de ação dos indivíduos, mas principalmente porque os fere em sua

autocompreensão positiva adquirida de maneira intersubjetiva. O desrespeito representa portanto um perigo

que ameaça desmantelar todo o conjunto da identidade pessoal dos indivíduos afetados.

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outro modo, os indivíduos degradados não estão mais em condições de manter sua autoestima

pessoal.117

2.2.2. Da fenomenologia negativa do desrespeito à teoria positiva do reconhecimento (modo de investigação)

Tanto os padrões de reconhecimento quanto as formas correspondentes de

desrespeito já haviam sido analisadas por Honneth em 1990 em sua aula inaugural no

Departamento de Filosofia da Universidade de Frankfurt, intitulada “Integridade e

desrespeito”.118

Há muitas semelhanças entre a aula e os dois capítulos da parte II de Luta por

reconhecimento dedicados ao assunto; uma diferença decisiva, entretanto, precisa ser

colocada em relevo: além do texto publicado no livro de 1992 ser mais detalhado e

desenvolvido que a aula inaugural, ele é construído em uma ordem de apresentação inversa à

da aula. Se, no livro, Honneth parte das esferas de reconhecimento e delas deriva as formas de

desrespeito correspondentes, na aula inaugural ele descreve em primeiro lugar as formas de

desrespeito experienciadas pelos atores sociais para apenas então, a partir delas, identificar as

expectativas de reconhecimento que devem ser pressupostas a partir do sentimento de

injustiça causado pela sua violação. Nesta primeira versão do argumento, Honneth não apenas

mantém, na apresentação, a ordem negativo-para-positivo da investigação, mas

explicitamente coloca-se a tarefa de desenvolver a “abordagem negativa” presente em Direito

natural e dignidade humana, de Ernst Bloch (cf. Bloch, 1978). A abordagem negativa se

baseia em duas premissas centrais, a primeira das quais indica que “a essência de tudo aquilo

que é chamado de ‘dignidade humana’ apenas pode ser identificado pela via indireta de uma

determinação de modos de rebaixamento e violação pessoal” (IuM: 1043de; 187-8en). Em

acordo com essa primeira premissa, Honneth considera que é preciso começar a atividade

117

Para Honneth, as duas últimas formas de desrespeito, a privação de direitos e degradação, são ambas

historicamente variáveis, assumindo distintas roupagens em diferentes épocas e formando, assim, o trajeto

evolutivo das lutas por reconhecimento. Se, por outro lado, o reconhecimento nas relações primárias tem um

caráter que não é histórico, o mesmo ocorre com a forma de desrespeito correspondente: “Visto que essas

formas de autoconfiança psíquica estão encadeadas às condições emotivas que obedecem a uma lógica em

boa parte invariante do equilíbrio intersubjetivo entre fusão e delimitação, essa experiência de desrespeito

não pode variar simplesmente com o tempo histórico ou com o quadro cultural de referências” (KuA: 215-

6pt).

118 Título original: “Integrität und Missachtung. Grundmotive einer Moral der Anerkennung” (daqui em diante

abreviado como IuM).

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teórica pela linguagem comum dos atores que se sentem maltratados e injustiçados. Após

sistematizar as formas de desrespeito identificadas na linguagem comum em três categorias

distintas, o autor procura levar sua tarefa teórica adiante mediante uma reorientação do

problema em direção ao positivo, afinal, “A distinção das três formas de desrespeito já

contém a referência indireta àquelas relações intersubjetivas de reconhecimento cuja

existência, tomadas em conjunto, forma a precondição para a integridade do ser humano”

(IuM: 1048de; 192en). Como se sabe, Honneth chega então à ideia de que a dignidade

humana depende da “reciprocidade do amor, [d]o universalismo dos direitos e [d]o

igualitarismo da solidariedade”, que devem ser protegidos do perigo representado pela força

violenta e pela repressão social (IuM: 1051-2de; 196en). Se um ou mais desses requisitos

encontra-se ausente no desenvolvimento do indivíduo, rasga-se, por assim dizer, uma fissura

psíquica na sua personalidade, a qual ele procura expressar mediante “reações emocionais

negativas de vergonha ou ira, ofensa ou desprezo” (IuM: 1052de; 197en).

Nesse texto, Honneth defende a tese forte segundo a qual a experiência do

desrespeito é sempre acompanhada de emoções que têm o potencial de permitir ao indivíduo

tomar consciência de que ele está sendo privado do reconhecimento de certos aspectos de sua

identidade e dignidade (IuM: 1052de; 197en). Consequentemente,

Se a concepção da dignidade do ser humano pode ser alcançada apenas

aproximativamente pela determinação de formas de ofensa e desrespeito pessoal,

então isso significa inversamente admitir que a integridade das pessoas humanas

depende constitutivamente da experiência de reconhecimento intersubjetivo (IuM:

1044de; 188en).

Por outro lado, em Luta por reconhecimento inverte-se o modo de apresentação:

em lugar de passar das experiências negativas de desrespeito para a expectativas pressupostas

de reconhecimento que elas violam, Honneth descreve no capítulo 6 as formas de desrespeito

a partir do que já foi estabelecido, no capítulo anterior, como o padrão positivo de relação

recíproca. Por vezes, o autor parece sugerir que esta ordem de apresentação corresponde, de

fato, à ordem da investigação.119

Em determinados momentos do capítulo sobre os padrões de

reconhecimento, porém, Honneth aponta na direção contrária. Na esfera das relações afetivas,

ficou claro que a teoria das relações de objeto nas quais Honneth se baseia (ao menos na

119

Cf., por exemplo, a seguinte passagem: “A partir daí [da fenomenologia das formas de reconhecimento

recíproco e de autorrelação prática, MT] não foi mais difícil distinguir, num segundo passo, as formas de

desrespeito social, conforme a etapa da autorrelação prática das pessoas em que elas podem influir de

maneira lesiva ou mesmo destrutiva” (KuA: 227de; 227pt).

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versão de Jessica Benjamin), tem como ponto de partida justamente aquelas patologias que

decorrem de uma falha na relação de reconhecimento amoroso (KuA: 175-6pt). O

autorrespeito, por sua vez, apenas torna-se um fenômeno perceptível, diz Honneth na seção

sobre o reconhecimento jurídico, “em forma negativa – a saber, quando os sujeitos sofrem de

maneira visível com a sua falta. Por isso”, ele continua, “só podemos inferir a existência

fática do autorrespeito indiretamente, empreendendo comparações empíricas com grupos de

pessoas, de cujo comportamento geral é possível obter ilações acerca das formas de

representação simbólica da experiência de desrespeito” (KuA: 197pt).120

Por fim, a

identificação da estima social ou solidariedade como expectativa de reconhecimento distinta

do respeito jurídico tornou-se possível a partir da observação histórica da luta da burguesia

contra o sentimento de desrespeito que crescentemente advinha das concepções aristocráticas

de honra (KuA: 204pt).

Mas as formas de desrespeito são decisivas não só para chamar a atenção do

teórico crítico para as expectativas de reconhecimento inscritas na infraestrutura do mundo

social, como expresso na primeira premissa da abordagem negativa de Bloch. A experiência

negativa do desrespeito contém um potencial de abertura cognitiva também para os sujeitos

concernidos.

Dimensão cognitiva: do sofrimento moral à consciência da injustiça

Para tratar da dimensão cognitiva da experiência de desrespeito, Honneth procura

apoio suplementar na concepção dos sentimentos humanos desenvolvida por John Dewey nos

termos de uma teoria da ação. O ponto de partida de Dewey reside na observação de que “os

sentimentos aparecem no horizonte de vivências do ser humano somente na dependência

positiva ou negativa com a efetuação das ações” (KuA: 221pt). Isto é: os sentimentos

120

Honneth considera de grande valia, neste contexto, os movimentos sociais impulsionados por grupos

oprimidos nos quais se debate publicamente “a privação de direitos fundamentais, sob o ponto de vista de

que, com o reconhecimento denegado, se perderam também as possibilidades do autorrespeito individual”.

Nessas situações históricas excepcionais, diz Honneth, “vem à superfície da linguagem o significado psíquico

que o reconhecimento jurídico possui para o autorrespeito de grupos excluídos: sempre se discute nas

publicações correspondentes que a tolerância ao subprivilégio jurídico conduz a um sentimento paralisante

de vergonha social” (KuA: 198pt). A libertação desta situação pode vir unicamente do protesto e da

resistência ativos.

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humanos acompanham ora experiências bem-sucedidas, ora ações fracassadas ou

transtornadas que geram no sujeito a experiência de um contrachoque. Consequentemente,

os sentimentos negativos como a ira, a indignação e a tristeza constituem o aspecto

afetivo daquele deslocamento da atenção para as próprias expectativas, que surgem

no momento em que não pode ser encontrada a sequência planejada para uma ação

efetuada; em contrapartida, o sujeito reage com sentimentos positivos como a

alegria ou o orgulho quando é libertado repentinamente de um estado penoso de

excitação, já que ele pôde encontrar um solução adequada e feliz para um problema

prático urgente (KuA: 221pt).

Os transtornos (Störungen) da ação podem referir-se a expectativas instrumentais

de êxito ou a expectativas normativas de comportamento, as quais dão origem,

respectivamente, a perturbações técnicas e conflitos morais. Honneth está interessado no

segundo tipo de transtorno, que forma o horizonte de experiências no qual se dão as reações

emotivas morais dos indivíduos. As reações podem tomar a forma da culpa ou da indignação,

dependendo de quem – o próprio sujeito (culpa) ou seu parceiro de interação (indignação) –

for o agente que desrespeita as normas morais tidas como válidas. Ambos os casos, entretanto,

levam à vergonha, que é um sentimento moral de caráter mais amplo. Sobre ela diz Honneth:

“O conteúdo emocional da vergonha consiste, como constatam em comum acordo as

abordagens psicanalíticas e fenomenológicas, em uma espécie de rebaixamento do

sentimento do próprio valor” (KuA: 222-3pt).

Honneth chama a atenção para o fato de que os efeitos negativos das experiências

de desrespeito são frequentemente descritos “com metáforas que remetem a estados de

abatimento do corpo humano” (KuA: 218de; 135en; 218pt), tais como morte (Tod), ofensa

(Kränkung),121

e padecimento (Erleiden). Trata-se de uma analogia entre formas de

desrespeito e doenças ou patologias físicas:

Nessas alusões metafóricas à dor física e à morte, expressa-se linguisticamente o

fato de que compete às diversas formas de desrespeito pela integridade psíquica do

ser humano o mesmo papel negativo que as enfermidades orgânicas assumem no

contexto da reprodução do seu corpo: com a experiência do rebaixamento e da

humilhação social, os seres humanos são ameaçados em sua identidade da mesma

maneira que o são em sua vida física com o padecimento de doenças (KuA: 218de;

135en; 219pt, trad. mod.).

121

O tradutor para o português preferiu verter Kränkung por “vexação” – termo que, apesar de

etimologicamente apropriado, não é muito utilizado na linguagem corrente. Por esse motivo, optamos por

utilizar o termo “ofensa”, que mantém a ambiguidade entre o sentido etimológico literal (físico ou corporal) e

o sentido figurado (psicológico) e é mais familiar ao falante do português.

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152

Para Honneth, tanto no caso do sofrimento físico quanto no do desrespeito social é

possível mapear uma série de sintomas que permitem ao indivíduo identificar seu estado

patológico. Assim, aos indícios corporais de doenças correspondem reações emocionais

negativas como as que constituem a vergonha, a ira, a ofensa ou o desprezo, das quais “se

compõem os sintomas psíquicos com base nos quais um sujeito é capaz de reconhecer que o

reconhecimento social lhe é denegado de modo injustificado” (KuA: 220pt). Assim, os

sentimentos morais negativos proporcionam aos sujeitos a oportunidade de tomar consciência

retrospectivamente do saber moral que orienta a ação planejada porém refreada por alguma

forma de desrespeito: “toda reação emocional negativa que vai de par com a experiência de

um desrespeito de pretensões de reconhecimento contém novamente em si a possibilidade de

que a injustiça infligida ao sujeito se lhe revele em termos cognitivos e se torne o motivo da

resistência política” (KuA: 224pt).

Sobre o caráter da tradução prática das reações afetivas negativas ao desrespeito

em convicções morais e políticas acerca da injustiça social sofrida, Honneth afirma: tal

passagem não é necessária, pois “em tais reações afetivas, a injustiça do desrespeito não deve

inevitavelmente, mas apenas pode se abrir” (IuM: 1054de; 199-200en, grifos MT). O autor

defende a existência de “possibilidades do discernimento moral que de maneira

inquebrantável estão embutidas naqueles sentimentos negativos, na qualidade de conteúdos

cognitivos” (KuA: 224pt), mas este discernimento cognitivo potencial depende de como está

constituído o entorno político e cultural dos sujeitos atingidos.

Dimensão motivacional: da experiência (sensível e cognitiva) de desrespeito à disposição para a resistência

Para além da passagem do mero sofrimento moral para a consciência cognitiva de

suas fontes, é relevante nos perguntarmos como se preenche o hiato entre a experiência

(sensório-emocional e cognitiva) de injustiça e a resistência ativa a ela. Afinal, como dito,

se o potencial cognitivo inerente aos sentimentos de vergonha e ofensa social torna-

se uma convicção moral é algo que depende amplamente de como está constituído o

entorno político-cultural dos sujeitos concernidos – formulado de forma positiva: é

preciso que um movimento social exista como meio de articulação para que a

experiência do desrespeito possa se tornar a fonte motivacional de ações políticas

de resistência (IuM: 1054de; 200en).

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153

A primeira questão a ser abordada nesse contexto diz respeito ao potencial de cada

padrão de reconhecimento para suscitar conflitos sociais. Honneth defende, a partir da

“fenomenologia empiricamente controlada” levada a cabo na parte II do livro, que os três

âmbitos da experiência – relações primárias, jurídicas e solidárias – apenas podem ser

compreendidos mediante a referência a um conflito internamente inscrito, o qual vem

acompanhado por uma fissura, uma brecha para a articulação de novas expectativas: “sempre

esteve inserida na experiência de uma determinada forma de reconhecimento a possibilidade

de uma abertura de novas possibilidades de identidade, de sorte que uma luta pelo

reconhecimento social delas tinha de ser a consequência necessária” (KuA: 256pt). Como

visto de passagem, entretanto, Honneth não considera que todas as esferas de reconhecimento

contêm o potencial de provocar lutas propriamente sociais. Os conflitos que se dão no

domínio das relações afetivas primárias não produziriam, segundo o autor, experiências

morais que pudessem levar a lutas sociais porque seus objetivos não seriam generalizáveis

para além do horizonte das intenções individuais. Já as lutas que se dão em torno do

reconhecimento jurídico e da estima social podem ser consideradas sociais na medida em que

põem em marcha um “processo prático no qual experiências individuais de desrespeito são

interpretadas como vivências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas podem

influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas de

reconhecimento” (KuA: 257pt, trad. mod.).

Essa definição das lutas sociais é marcada por uma abertura descritiva segundo a

qual não cabe ao teórico determinar previamente sejam os meios de resistência (força material

ou simbólica, por exemplo), seja a intencionalidade do conflito (os sujeitos concernidos

podem estar mais ou menos conscientes dos motivos morais de sua ação122

). Contraposta à

abertura descritiva da noção de luta social está a sua regularidade explicativa: a resistência e a

rebelião são vistas como frutos da experiência moral de uma violação de expectativas

arraigadas de reconhecimento que estão, por sua vez, ligadas de modo profundo à formação

da identidade pessoal e coletiva dos atores sociais. Os sujeitos, para se conceberem como

seres simultaneamente autônomos e individuados (condição fundamental da formação da

identidade pessoal na modernidade), dirigem ao seu entorno social expectativas

122

Afinal, diz Honneth, “não é difícil imaginar casos em que de certo modo os movimentos sociais

desconhecem intersubjetivamente o cerne moral de sua resistência, pelo fato de interpretarem-no por si

mesmos segundo a semântica inadequada das meras categorias de interesses” (KuA: 257pt).

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154

correspondentes de reconhecimento; e “se essas expectativas normativas são desapontadas

pela sociedade, isso desencadeia exatamente o tipo de experiência moral que se expressa no

sentimento de desrespeito” (KuA: 258pt), gerando assim nos atores sociais afetados uma

predisposição motivacional para a resistência.

Honneth defende, portanto, a existência de um elo psíquico entre o sofrimento e a

ação ativa de resistência, de modo que “as reações negativas que acompanham no plano

psíquico a experiência de desrespeito podem representar de maneira exata a base

motivacional afetiva na qual está ancorada a luta por reconhecimento” (KuA: 219de; 135en;

219-20pt). Isto porque a tensão afetiva que se cria com o sentimento de humilhação à qual um

indivíduo é exposto apenas pode ser dissolvida na ação ativa que busca reparar a violação

vivida:

Simplesmente porque os sujeitos humanos não podem reagir de modo

emocionalmente neutro às ofensas sociais, representadas pelos maus-tratos físicos,

pela privação de direitos e pela degradação, os padrões normativos do

reconhecimento recíproco têm uma certa possibilidade de realização no interior do

mundo da vida social em geral (KuA: 224pt).

Os sujeitos são caracterizados, portanto, na concepção antropológica-formal de Honneth, por

possuírem um interesse emancipatório em libertar-se do sofrimento.123

Honneth expõe ainda uma motivação secundária da luta por reconhecimento: ela

não é apenas um meio de exigir, para o futuro, padrões ampliados de reconhecimento

recíproco, mas permite também, por si só, um alívio ao menos parcial da “situação

paralisante” da degradação até então tolerada passivamente pelos sujeitos afetados,

proporcionando-lhes a possibilidade de exercitar uma autorrelação nova e positiva. Essa

função direta do engajamento em ações políticas de resistência está documentada, segundo

Honneth, em reflexões filosóficas, obras literárias e de história social,124

e vincula-se à própria

estrutura da experiência de desrespeito:

Na vergonha social viemos a conhecer o sentimento moral em que se expressa

aquela diminuição do autorrespeito que acompanha de modo típico a tolerância

passiva do rebaixamento e da ofensa; se um semelhante estado de inibição da ação

é superado agora praticamente pelo engajamento na resistência comum, abre-se

123

Honneth volta a esse tópico em “Crítica social reconstrutiva sob ressalva genealógica” (RGV: 55de).

124 São mencionadas apenas, no entanto, as fontes de caráter filosófico (Bernard R. Boxbill, Thomas E. Hill Jr., e

Andreas Wildt).

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155

assim para o indivíduo uma forma de manifestação com base na qual ele pode

convencer-se indiretamente do valor moral ou social de si próprio (KuA: 259pt).

A atividade coletiva de resistência proporciona ao sujeito politicamente engajado

um “reconhecimento antecipado” (com vistas a uma comunidade intersubjetiva futura)

daquelas capacidades e propriedades que ele detém no presente, de modo que, apesar de o

reconhecimento lhe permanecer negado sob as condições atuais, ele pode contar no entanto

com certa medida de respeito social. Assim, “o engajamento individual na luta política

restitui ao indivíduo um pouco de seu autorrespeito perdido, visto que ele demonstra em

público exatamente a propriedade cujo desrespeito é experienciado como uma ofensa” (KuA:

259-60pt, trad. mod.). Acresce-se a isso ainda a experiência de reconhecimento que surge a

partir da solidariedade interna ao grupo que exerce a resistência, cujos membros podem

contar ao menos com uma estima mútua.

Mas experiências de desrespeito, sentimentos de lesão ou violação suscitam, de

fato, uma resistência ativa de caráter coletivo apenas se os concernidos dispuserem de um

quadro intersubjetivo de interpretação no qual tais sentimentos podem ser articulados como

típicos de um agrupamento social em seu conjunto. Dito de outro modo: “o surgimento de

movimentos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permite interpretar

as experiências de desapontamento pessoal como algo que afeta não só o eu individual mas

também um círculo de muitos outros sujeitos” (KuA: 258pt). Passa-se, assim, de uma

predisposição individual para a resistência para a articulação política de manifestações

coletivas de revolta social.

Dimensão política: da resistência individual aos movimentos sociais

As experiências emocionais de desrespeito podem se transformar em formas

coletivas de protesto se puderem ser cultivadas e articuladas em um quadro semântico e

normativo compartilhado, “em que se encontra para os sentimentos de injustiça uma

linguagem comum, remetendo, por mais indiretamente que seja, às possibilidades de uma

ampliação das relações de reconhecimento” (KuA: 267pt). Funcionam como semântica

coletiva aquelas ideias morais que, ao abrirem a possibilidade de uma ampliação das relações

de reconhecimento, têm a capacidade de enriquecer normativamente nossas representações da

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comunidade social e de fornecer uma perspectiva de interpretação socialmente crítica que

aponta, por sua vez, as causas sociais dos sentimentos de desrespeito individualmente

experienciados, mas efetivamente compartilhados. Nas palavras de Honneth:

Portanto, assim que ideias dessa espécie obtêm influência no interior de uma

sociedade, elas geram um horizonte subcultural de interpretação dentro do qual as

experiências de desrespeito, até então desagregadas e privadamente elaboradas,

podem tornar-se os motivos morais de uma ‘luta coletiva por reconhecimento’

(KuA: 258-9pt).

Está ausente na reflexão de Honneth, porém, uma especificação ulterior do

reconhecimento assim alcançado em termos dos padrões previamente discriminados. A

autorrelação positiva que o sujeito obtém mediante a ação política conjunta certamente não se

refere, segundo a perspectiva de Honneth, à autoconfiança característica das relações

primárias bem-sucedidas. Seu raciocínio aqui é contudo bastante ambivalente no que diz

respeito ao autorrespeito e à autoestima. Afinal, para o autor, tanto a privação de direitos

quanto a degradação social detêm um potencial motivacional para o engajamento em

movimentos e lutas sociais. Surgem assim algumas questões cuja solução poderia contribuir

de forma relevante para uma teoria política da luta por reconhecimento: existe uma

diferenciação significativa entre a dinâmica das lutas por igualdade jurídica e a das lutas por

estima social? Como de dá a interação entre elas? Elas se reforçam mutuamente, são

independentes, ou podem vir a se prejudicar reciprocamente? Que formas concretas essas

lutas assumiram historicamente? Honneth parece, no entanto, se deter precisamente diante do

limiar em que as motivações morais para a resistência tomam forma e se convertem em

estruturas institucionalizadas, mais ou menos articuladas. Ele foi amplamente criticado por

não ter lidado satisfatoriamente com estas questões, de modo que alguns de seus intérpretes

defendem que sua obra sofre de um déficit político.125

Honneth aponta – e não apenas em Luta

por reconhecimento, mas em outros textos das décadas de 1980 e 1990 – indícios de como

surge a resistência política a situações vividas como injustiças sociais. No entanto, esses

indícios não são apropriadamente desenvolvidos, e os escritos de Honneth não nos fornecem

125

Cf. a Introdução, nota 18. Apesar de esta ser uma crítica relativamente comum à obra de Honneth, a ideia

de déficit político não é empregada exatamente no mesmo sentido pelos diversos autores que dela fazem uso.

A interpretação desta tese aproxima-se mais da abordagem de Basaure (2001b).

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uma concepção de política ou uma teoria do poder mais substanciais.126

Trata-se de uma

deficiência de Luta por reconhecimento que não pode ser negligenciada.

Dimensão evolutiva: dos conflitos sociais ao desenvolvimento histórico enquanto processo de aprendizado

Para além disso, a experiência negativa do desrespeito pode ainda ser desdobrada

em sua dimensão evolutiva – como indicado na outra premissa de Bloch, segundo a qual

“foram apenas tais experiências negativas de desrespeito e insulto que tornaram a meta

normativa da garantia da dignidade humana um força motriz prática no processo histórico”

(IuM: 1043de; 187-8en). Correspondentemente, na terceira parte de Luta por reconhecimento,

Honneth procura lidar com o “verdadeiro desafio” da contribuição de Hegel e Mead para a

filosofia social: a ideia de uma luta por reconhecimento como a força moral e fonte

motivacional que promove desenvolvimentos históricos, exercendo o papel de dinamizador

(Schrittmacherrolle) de transformações sociais (KuA: 228de). Para evitar o perigo de uma

filosofia da história, porém, Honneth considera imprescindível a exposição dos indicadores

históricos e empíricos que demonstram “que a experiência de desrespeito é a fonte emotiva e

cognitiva de resistência social e levantes coletivos” (KuA: 227pt). Para tanto, o autor procede

indiretamente, mediante uma “aproximação histórica e ilustrativa” (KuA: 227pt) que torna

possível entrever a lógica moral das lutas sociais, isto é, explicitar empiricamente o modo

como a condenação emocionalmente carregada do desrespeito pode tomar a forma de uma

luta social. Em “Integridade e desrespeito”, no mesmo sentido, Honneth afirma: “Assim, um

conceito de moral apoiado em uma teoria do reconhecimento busca suporte em investigações

sociológicas e históricas que permitem mostrar que o progresso moral é o resultado de uma

luta por reconhecimento” (IuM: 1054de; 200en).

As ciências sociais emergentes não ajudam muito a alcançar este objetivo. Isto

porque elas carecem ora do elemento moral, ora do elemento conflituoso das relações sociais

ao longo da história. O caso mais evidente de déficit normativo são as vertentes teóricas

126

Por vezes, a argumentação de Honneth parece assumir a forma de um círculo vicioso: “somente quando o

meio de articulação de um movimento social está disponível é que a experiência de desrespeito pode tornar-

se uma fonte de motivação para ações de resistência política” e, inversamente, “só uma análise que procura

explicar as lutas sociais a partir da dinâmica das experiências morais instrui acerca da lógica que segue o

surgimento desses movimentos coletivos” (KuA: 225de; 224pt).

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diretamente influenciadas pelo darwinismo e pelo utilitarismo, nas quais o conflito é

interpretado como concorrência por chances de sobrevivência; incluem-se aqui também

formas menos caricatas, como a teoria weberiana (em que os conflitos são voltados a um

aumento de poder) e algumas correntes da teoria marxista (cuja origem pode ser encontrada

em determinados momentos da obra do próprio Marx, como vimos anteriormente). Autores

como Ferdinand Tönnies e Émile Durkheim, por outro lado, produzem uma sociologia

empírica que tem por fim diagnosticar, de forma crítica, a “crise moral” das sociedades

modernas. Mas, apesar de cumprirem a exigência de não ignorar princípios normativos na

ação dos sujeitos, eles não tratam dos conflitos sociais de modo sistemático. Segundo a visão

de Honneth, portanto, a sociologia acadêmica representa uma ruptura do vínculo teórico entre

o surgimento de movimentos sociais e experiências morais de desrespeito. Tais experiências

não puderam se cristalizar em um quadro conceitual sistemático nem mesmo na obra daqueles

autores para os quais o conflito como violação de normas implícitas do reconhecimento

recíproco ocupa um lugar de destaque – como Sorel, Sartre e em alguma medida também

Marx (os três autores, diz Honneth, “detiveram-se igualmente, num nível pré-científico, à

experiência de que a autocompreensão dos movimentos sociais de sua época estava

atravessada fortemente pelo potencial semântico do vocabulário conceitual do

reconhecimento”, KuA: 256de; 253pt). Honneth pretende, então, reconstruir os traços

fundamentais de um paradigma teórico alternativo segundo o qual a luta social tem seu ponto

de partida em sentimentos morais de injustiça. Tendo Hegel e Mead no horizonte, Honneth

procura no entanto ir além de ambos, “até o limiar em que se começa a entrever que as novas

tendências da historiografia podem comprovar historicamente o nexo afirmado entre

desrespeito e luta social” (KuA: 256pt).127

Honneth não pode se contentar, porém, com um modelo de conflito que fornece

apenas um quadro explicativo acerca da emergência de lutas sociais, mas deve almejar além

disso a uma interpretação dos processos morais de formação. É preciso implementar, então,

um “alargamento radical” da perspectiva histórica de base utilizada até então, de modo a

127

Comprova-se mais uma vez, portanto, a relevância da vertente sociológica e historiográfica dos estudos

culturais: apesar da relativa diminuição, em Luta por reconhecimento, das referências diretas aos autores que

dominaram as atenções do autor ao longo da década anterior, o insight presente em seus trabalhos a respeito

da existência de um sentimento moral de injustiça perpassando os conflitos sociais é uma ideia de longo

alcance na produção teórica de Honneth.

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poder fazer referência à “lógica universal [allgemein] da ampliação das relações de

reconhecimento”. Só assim torna-se possível a ordenação sistemática de fenômenos isolados

e, por isso, inicialmente incompreendidos, “pois as lutas e os conflitos históricos, sempre

ímpares, só desvelam sua posição na evolução social quando se torna apreensível a função

que eles desempenham para o estabelecimento de um progresso moral na dimensão do

reconhecimento” (KuA: 265pt). Consequentemente, o material primário de pesquisa,

composto pelos sentimentos de injustiça e as experiências de desrespeito, não é mais

compreendido unicamente como a “matéria-prima emocional” (emotionaler Rohstoff; KuA:

270de; 265pt) dos conflitos sociais, mas também como exercendo um papel moral no

processo social evolutivo abrangente, estimulando ou obstruindo a ampliação das relações de

reconhecimento. Essa conexão aparece de modo especialmente forte na aula inaugural de

1990, na qual Honneth alude à posição de Bloch acerca das fontes da motivação moral

subjacente às transformações sociais:

Sem o sentimento adicional de dignidade ferida, a mera experiência da necessidade

econômica e da dependência política jamais teria se tornado historicamente uma

força motriz de movimentos práticos revolucionários; à privação econômica ou à

opressão social sempre precisou ser acrescido o sentimento de ter sido

desrespeitado em sua demanda pela integridade da própria pessoa antes que elas

pudessem tornar-se a causa motivacional de levantes revolucionários (IuM:

1052de; 196en).

São as formas de desrespeito que servem de motivação para o engajamento em

uma luta ou conflito social – e é justamente essa luta, essa negatividade que impulsiona uma

ampliação das relações de reconhecimento e, com isso, surgem novas demandas, mais

exigentes, por reconhecimento.128

Há, portanto, um processo de aprendizagem caracterizado

por um movimento que gostaríamos de chamar de dialético (já que impelido por contradições)

no qual se sucedem desrespeito, luta por reconhecimento, superação da luta, e surgimento de

uma nova negação de reconhecimento que leva a uma nova luta, e assim por diante. De certo

modo, as formas de desrespeito ou negação do reconhecimento (ou ainda de um

reconhecimento distorcido) são parte integrante do processo histórico, já que motivam lutas

128

O papel da negatividade é reforçado no seguinte trecho: “A moral pode encontrar um apoio prático na

realidade social não em fontes motivacionais positivas como o altruísmo ou o respeito, mas antes na

experiência do desrespeito social que se manifesta repetidamente de forma involutária” (IuM: 1052de; 196-

7en).

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sociais que, se bem-sucedidas, levam a transformações sociais na direção de uma realização

mais completa daquele princípio moral que fora inicialmente negado pelo desrespeito.129

Para que a luta por reconhecimento possa ser reconstruída como parte de um

processo histórico de desenvolvimento moral, é imprescindível estabelecer critérios

normativos capazes de funcionar como pedra de toque para definir a direção evolutiva deste

processo e o caráter progressivo ou regressivo dos eventos históricos. Os critérios podem ser

obtidos, afirma Honneth, mediante a “antecipação hipotética de um estado final [Endzustand]

aproximado” (KuA: 266pt, trad. mod.). Ele reconstrói então a sucessão idealizada de lutas ao

longo da qual se considera que o potencial normativo do reconhecimento pôde se realizar –

mediante a aquisição cumulativa por parte dos atores sociais de autoconfiança, autorrespeito e

autoestima. Essa tripartição se deve a uma “retroprojeção teórica” de diferenciações

modernas sobre um estado inicial (Ausgangszustand) hipotético, no qual se supõe que

“aqueles três padrões de reconhecimento estavam ainda entrelaçados uns nos outros de

maneira indistinta” (KuA: 266pt). Segundo esse modelo interpretativo, o processo de

aprendizado moral em questão se deu por intermédio de dois processos distintos, porém

simultâneos: 1) a diferenciação entre os padrões ou esferas de reconhecimento e 2) a

liberação, fruto do impulso das lutas sociais, dos potenciais internamente inscritos em cada

esfera. Isso significa que, na medida em que as relações sociais se distinguem segundo os

padrões do amor, do respeito jurídico e da estima social, a estrutura interna de cada esfera se

desenvolve e torna efetiva – e, no caso do direito e da estima, são liberados gradativamente,

mediante o surgimento e a resolução de conflitos, seus potenciais evolutivos específicos.130

No quadro interpretativo proposto por Honneth há, portanto, um “contexto objetivo-

intencional” no qual os processos históricos perdem o seu caráter de meros eventos isolados e

tornam-se etapas de um percurso conflituoso de formação e desenvolvimento moral. “O

significado que cabe às lutas particulares se mede”, diz o autor, pela “contribuição positiva

ou negativa que elas puderam assumir na realização de formas não distorcidas de

129

Esse processo não tem um télos porque as relações de reconhecimento, assim como conceitos críticos

similares, “are never finished but have to be constructed, deconstructed, and reconstructed in ever-changing

circumstances” (McCarthy, 1993: 140).

130 Sobre tais potencias, cf. o seguinte trecho: “Só agora estão embutidas na relação jurídica, com as

possibilidades de universalização e materialização, e na comunidade de valores, com as possibilidades de

individualização e igualização, estruturas normativas que podem tornar-se acessíveis através da experiência

emocionalmente carregada do desrespeito e ser reclamadas nas lutas daí resultantes” (KuA: 267pt).

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reconhecimento”, pela “antecipação hipotética de um estado comunicativo em que as

condições intersubjetivas da integridade pessoal aparecem como preenchidas” (KuA: 273de;

268pt). No capítulo final do livro, o autor atribui este papel a uma versão dessubstancializada

ou formal da categoria hegeliana da eticidade, compreendida como conjunto das condições

intersubjetivas que servem à autorrealização individual na qualidade de pressupostos

normativos.

*

A escrita de Luta por reconhecimento foi motivada pela tentativa de compreender

por que atores sociais demonstram disposição para se engajar em diferentes tipos de lutas

sociais. Suas reações negativas são tomadas como capazes de revelar a violação de princípios

normativos que, do contrário, permaneceriam ocultos tanto para a esfera pública quanto para a

teoria social. Honneth afirma, então, que os conflitos sociais são colocados em movimento

por distintas formas de desrespeito, as quais levam ao desvelamento (tanto pelo teórico quanto

pelos atores sociais mesmos) da infraestrutura de reconhecimento na base da sociedade. É a

partir de uma negação que se chega ao conceito positivo de reconhecimento.

Como dito no início deste capítulo, a teoria da luta por reconhecimento formulada

por Honneth em 1992 representa sua tentativa de construir um modelo crítico capaz de

superar tanto os déficits teóricos identificados na teoria crítica (devido às suas tendências

estruturalistas) quanto aqueles que afetam os estudos culturais (devido ao seu caráter

episódico, contingente). Se o primeiro foi chamado de “déficit sociológico”, poderíamos

chamar o segundo, analogamente, de “déficit filosófico”. De saída, Honneth considera que o

caráter moral dos conflitos sociais foi suficientemente demonstrado nas décadas anteriores,

tanto por ele quanto por outros autores e investigações empíricas. O que ainda havia de ser

feito, contudo, era alçar os resultados dessas investigações a um nível mais alto de

generalidade e, ao mesmo tempo, torna-los mais determinados a partir de uma diferenciação

das dimensões da experiência que são mobilizadas em diferentes tipos de conflito social.

Honneth encontra no jovem Hegel o impulso universalizante que falta nos estudos culturais,

bem como um primeiro esboço da categorização de diferentes padrões de reconhecimento. O

interacionismo simbólico de Mead serve, nesse contexto, para tornar as intuições de Hegel

plausíveis em um contexto pó-metafísico, já que coincide com elas em diversos pontos mas,

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ao mesmo tempo, apoia-se sobre observações de situações empíricas concretas. A psicologia

social meadiana é importante, então, porque permite uma mediação entre o polo mais abstrato

– a teoria da eticidade do jovem Hegel – e o mais concreto – investigações empíricas e

históricas dos estudos culturais, da teoria das relações de objeto (Winnicott, Benjamin), e

outras abordagens de cunho histórico (Marshall, von Ihering) – da teoria da luta por

reconhecimento. Honneth indica que é necessária uma correção recíproca entre os dois polos,

já que a tentativa de superar o déficit de universalidade dos estudos culturais não poder ser

paga com um retorno a teses fortes sobre a natureza humana. Por isso, Honneth considera sua

abordagem em Luta por reconhecimento acerca da gramática moral dos conflitos sociais uma

espécie de “antropologia formal”.131

Já o déficit de criatividade normativa não encontra um tratamento sistemático na

principal obra de Honneth. Há indícios de que ele está consciente de que esta é uma questão a

ser discutida – especialmente quando trata de autores como Castoriadis (e a ideia de

imaginário), Sorel (e a ideia de mito) e Mead (e a ideia do potencial criativo do eu) – mas em

nenhum momento o tema ocupa o primeiro plano das reflexões que compõem a teoria da luta

por reconhecimento.

Procuramos até aqui destacar a importância, para a teoria da luta por

reconhecimento, de um modo de proceder que parte do negativo, isto é: das experiências de

desrespeito e das reações emocionais negativas que as acompanham (exemplificadas ao longo

do texto pelos sentimentos de vergonha, desprezo, ira, ofensa), as quais guardam em si,

potencialmente, uma fonte de forças motivacionais que podem dar início a processos mais ou

menos articulados, coletivos e institucionalizados de resistência ao desrespeito sentido como

injustiça. Apesar disso, o modelo teórico centrado na ideia de reconhecimento inaugurado por

Honneth foi alvo de questionamentos justamente por ter alegadamente um baixo potencial

contestador das ordens de opressão e dominação social que vigoram nas sociedades modernas

e capitalistas. Se por um lado, Honneth confere um papel e uma posição privilegiados às

experiências de desrespeito dos atores sociais, por outro é também verdade que ele não se

detém de modo adequado na análise de formas sistemáticas e estruturais de dominação. Para

que as injustiças sociais e o sofrimento que elas causam não apareçam na teoria apenas como 131

Deranty (2009) e Ivkovic (2014) são dois autores que defendem a proposta de antropologia formal de

Honneth.

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uma etapa passageira na direção de um aprendizado quase que inevitável, isto é, como uma

figura no processo contraditório que leva a uma reconciliação, é preciso poder conceber uma

situação em que esse movimento, esse aprendizado é travado, e a experiência de padecimento

é perpetuada sem dar lugar a um nível mais alto de reflexividade. É preciso compreender

como o interesse emancipatório dos sujeitos concernidos pode ser bloqueado, de modo que o

vínculo potencial entre sofrimento e resistência é rompido. É para dar conta dessa dimensão

do diagnóstico dos conflitos sociais do presente que Honneth recorre à ideia, que assumirá

sentidos diferentes em momentos distintos de sua obra – de patologias sociais.

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164

Excurso I. Patologias do social

No ensaio publicado em 1994 sobre as “Patologias do social”,132

Honneth propõe

uma leitura da história da filosofia social como a tradição teórica que, de J.-J. Rousseau a

autores contemporâneos como Charles Taylor e Judith Butler, se colocou como tarefa

diagnosticar desenvolvimentos sociais anômalos (soziale Fehlentwicklungen), distúrbios

sociais (soziale Störungen) ou patologias do social (Pathologien des Sozialen) – termos que o

autor utiliza intercambiavelmente, ao menos nesse momento. Identificar e discutir processos

de desenvolvimento social que podem ser vistos como patológicos constitui precisamente o

diferencial da filosofia social, aquilo que garante o seu lugar de direito no campo das ciências

humanas e conforma sua relação com as disciplinas vizinhas. O enfoque nas patologias

sociais implica, para Honneth, que esta tradição teórica confere primazia às ideias, que estão

interligadas, de negatividade e normatividade. Rousseau, por exemplo, ao contrário de

Hobbes, se mostra mais preocupado com as causas da degeneração da sociedade civil-

burguesa do que com os pressupostos de sua manutenção; ele também insiste, ainda voltado

contra Hobbes, que o sentimento de compaixão sempre coloca o impulso de sobrevivência

sob restrições morais – sem com isso, entretanto, sufocar totalmente sua função necessária

para a reprodução (PdS: 17de; 7en). Assim,

diferentemente da filosofia política, ela [a filosofia social, MT] não perguntava mais

pelas condições de uma ordem social correta ou justa, mas investigava as

limitações que a nova forma de vida impõe à autorrealização humana (PdS: 14de;

5en).

Trata-se, portanto, de uma crítica da modernidade que tem como objeto não

apenas injustiças sociais, mas toda forma de vida considerada patológica.133

Assim, para

Honneth, Rousseau pode ser considerado o pai da filosofia social menos pelo conteúdo de seu

diagnóstico crítico do que pelo tipo de investigação e questionamento e pela forma

metodológica de sua resposta: ele criou a ideia filosófica (mesmo se não o conceito) de

“alienação”, que permitiu à filosofia social ir além da mera investigação de uma forma social

de vida com vistas à sua legitimidade político-moral e procurar as limitações estruturais que

132

Título original: “Pathologien des Sozialen. Tradition und Aktualität der Sozialphilosophie” (abreviado daqui

em diante como PdS).

133 Em Luta por reconhecimento, como visto, é Hegel, e não Rousseau, quem fornece o quadro teórico a partir

do qual o utilitarismo hobbesiano pode ser criticado por sua insistência nas metas humanas de

autopreservação e reprodução, em detrimento da motivação moral dos conflitos sociais.

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ela impõe à meta de autorrealização dos sujeitos. Por incluir em seu procedimento critérios

éticos para a identificação de patologias, a filosofia social se afasta decisivamente tanto da

filosofia moral quanto da filosofia política em sentido clássico.

Esse modo de proceder torna necessário, contudo, definir o critério segundo o

qual se pode identificar as limitações impostas à autorrealização individual. Segundo a

tradição inaugurada por Rousseau, o critério reside em uma forma de atividade humana

considerada intacta, fundada em uma concepção antropológica da constituição da espécie

humana.134

Apesar de Hegel e Marx terem sido influenciados por esse problema, as condições

empíricas que causaram o seu mal-estar com relação à sociedade burguesa e os levaram a

criticá-la haviam contudo mudado significativamente desde a época de Rousseau – tendo em

vista, por exemplo, a Revolução Francesa e o acelerado processo de industrialização em

curso. Assim, já para Hegel, o problema central de sua época era a formação de uma esfera

social na qual os cidadãos se relacionavam entre si unicamente mediante os laços tênues da

regulação jurídica, gerando assim o perigo de uma atomização dos elementos que compõem a

comunidade (Gemeinwesen): ao passo que o espaço de liberdade subjetiva aumenta, a

determinação meramente negativa desta liberdade não produz nenhum vínculo social que se

estenda para além de orientações puramente instrumentais. Hegel considera que são os

processos de isolamento social, apatia política e pauperização econômica que conduzem à

restrição da liberdade. A perda de comunidade e de totalidade ética não é vista como um

problema de governança política, mas como uma crise que afeta a vida social como um todo e

que traz a ameaça de dissolução dos vínculos sociais em cujo horizonte os indivíduos têm a

possibilidade de desenvolver racionalmente uma identidade individual. As consequências

patológicas desta perda de eticidade atingem, então, tanto os sujeitos particulares quanto a

própria comunidade.

É preciso reconhecer que, se Hegel não deixa de conectar esse estado de coisas ao

desenvolvimento da troca capitalista de mercadorias, é apenas com Marx que as preocupações

econômicas passam ao primeiro plano da filosofia social, de modo que os fenômenos

representados pela miséria econômica e pelo desenraizamento social dão o ímpeto de sua

134

Rousseau destaca, no que chama de “estado de natureza”, duas características primárias do ser humano: o

impulso para a autopreservação (amour de soi), e capacidade de compaixão (pitié). É a partir de tal imagem

do estado de natureza que temos um pano de fundo de contraste para poder focar nas patologias da forma

moderna de vida.

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teoria. Situações degradantes, consideradas ultrajantes e patológicas, não são vistas como

meras consequências sociais de uma injustiça moral, e sim – do mesmo modo que Rousseau e

Hegel – como desenvolvimentos que vão na contramão da autorrealização humana. Contra

Hegel e Rousseau, entretanto, Marx considera que os sujeitos humanos alcançam a

autorrealização apenas mediante um processo autodeterminado de trabalho:

O diagnóstico crítico que ele [Marx, MT] se colocou como meta deve, por isso,

empreender a tentativa de identificar no capitalismo aquelas condições que

obstruem estruturalmente o desdobrar de uma tal forma [Form] de trabalho. Em

seus escritos de juventude, Marx dá a esta empresa a forma [Gestalt] de uma crítica

da alienação social (PdS: 26de; 13en).

Por um lado, a metodologia crítica de Marx permanece presa ao modelo

desenvolvido por Rousseau: para poder falar em alienação, é preciso supor a possibilidade de

uma situação na qual os homens poderiam conduzir uma vida boa e descrever, então, o modo

pelo qual esta situação (ou a busca por sua realização) foi destruída, invertida ou degenerada.

Por outro lado, contudo, Marx evita qualquer alusão a um estado de natureza originário; ele

fala apenas em possibilidades que deveriam ser garantidas aos seres humanos com base em

sua constituição específica, cujo aspecto central consistiria em sua capacidade de se objetivar

e realizar no produto de seu trabalho. A realização pelo trabalho permite aos seres humanos

alcançar a certeza de suas capacidades e habilidades e atingir, desse modo, a autoconsciência:

assim define Honneth a concepção marxiana de vida boa. Desta perspectiva, o modo

capitalista de produção impede que os sujeitos tenham controle de suas atividades laborais e,

assim, os contrapõe à sua própria constituição, colocando-os também, no limite, em oposição

uns aos outros.135

A miséria econômica é, neste sentido, a manifestação externa de uma forma

social de vida que aliena os seres humanos de seu potencial para viver uma vida boa; o

capitalismo deve, portanto, ser entendido como uma formação patológica, e não meramente

como um conjunto de relações sociais injustas.

Já no século XX, a filosofia social se aproximou da nascente sociologia e

gradualmente assumiu traços de uma ciência empírica. Os pais fundadores da sociologia,

ainda preocupados com questões éticas, consideram que a modernidade é acompanhada de

uma ameaça de declínio que, por conduzir à perda do aspecto ético que permite aos

indivíduos interpretar suas próprias vidas como tendo um sentido relativo a um fim

135

Esta perspectiva é especialmente desenvolvida nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e nas Notas

sobre James Mills.

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167

socialmente estabelecido, pode levar a severos transtornos sociais. A sociologia podia, então,

ser vista como uma tentativa de resposta a tais patologias,

porque ela é concebida unanimemente como um empreendimento “moral-” ou

“cultural-científico” ainda completamente não especializado: sua tarefa deve

consistir, também, em contribuir para a correção prática da crise ética mediante o

esclarecimento de sua gênese – o que nem Tönnies ou Simmel, nem Weber ou

Durkheim colocaram em questão (PdS: 33de; 18en).

Aqui, também, o estabelecimento da economia capitalista aparece como

importante potencializador dos fenômenos de “drenagem” ou esgotamento (Entleerung) moral

do mundo da vida social, os quais se manifestam, por exemplo, na “coisificação” das relações

pessoais (Simmel), na dissolução dos vínculos sociais comunitários (Tonnies), no

desencantamento radical do mundo (Weber) e na emergência de formas de solidariedade

orgânica (Durkheim).136

Com base nos traços comuns compartilhados pelos diferentes estágios e vertentes

que compõem a história da filosofia social desde seus primórdios, com Rousseau, até seus

desenvolvimentos na segunda metade do século XX, Honneth passa à caracterização mais

precisa da tarefa fundamental dessa disciplina teórica. A trajetória da filosofia social mostra

concretamente que, como dito de início, ela é marcada pela primazia da negatividade:

Em momento algum a filosofia social – seja em Marx ou Nietzsche, Plessner ou

Hannah Arendt – aparece como uma doutrina positiva; trata-se sempre

primeiramente e acima de tudo da crítica de um estado social que é percebido como

alienado ou carente de sentido, reificado ou até mesmo doente (PdS: 55de; 34en).

A negatividade não pode ser separada da normatividade da abordagem, de modo

que essa perspectiva teórica apoia-se, mesmo que de forma indireta, sobre o que seriam as

pré-condições para a autorrealização humana. Isto se reflete no uso do vocabulário médico

transposto para a teoria social, como os termos “diagnóstico” e “patologia”: se “por

‘diagnóstico’ entende-se aqui antes de tudo a apreensão e a determinação precisas de uma

doença que acomete o organismo humano”; complementarmente, a patologia “representa

precisamente, portanto, o desenvolvimento orgânico anômalo que deve ser desvelado ou

determinado no diagnóstico” (PdS: 56de; 34en). Por consequência, o critério segundo o qual

tais fenômenos anormais podem ser medidos deve ser fornecido por alguma noção, mesmo

136

Em alemão, respectivamente: “Versachlichung der personlichen Beziehungen”, “Auflosung sozialer

Gemeinschaftsbindungen”, “radikale Entzauberung der Welt”, e “Herausbildung von Formen der

organischen Solidaritat” (PdS: 35de).

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168

que implícita, de saúde. A “noção clínica de saúde” é frequentemente considerada, por uma

questão de simplicidade, como a mera capacidade de funcionamento do corpo (die bloße

Funktionstuchtigkeit des Korpers).137

Mas a transposição dessas metáforas oriundas do campo

médico não se dá sem impasses. Honneth destaca dois aspectos que podem trazer dificuldades

e requerem mediações adequadas – as quais, entretanto, nem sempre estão à disposição do

teórico.

De um lado, enfrenta dificuldades a ampliação do escopo dos termos utilizados

inicialmente em relação a distúrbios físicos para os transtornos psíquicos (seelische

Storungen). Tais dificuldades se devem ao fato de que não se chegou, na pesquisa clínica no

âmbito da psicologia e da psicanálise, a critérios consensuais mínimos de normalidade. Pelo

contrário: há, nessas disciplinas, um grande debate sobre a possibilidade mesma de um

conceito não ambíguo ou ao menos plausível de “saúde psíquica” (seelische Gesundheit). De

outro lado, uma dificuldade ainda maior surge quando se tenta estender o uso de ambos os

conceitos para o campo dos fenômenos sociais, já que aqui o ponto de referência não pode

mais ser o indivíduo e faz-se necessária uma concepção de normalidade relativa à vida social

em geral. Neste ponto, Honneth pondera que não cabe ao teórico, como observador externo,

definir o que é saudável e o que é patológico, pois a ideia de normalidade depende do

contexto social no qual está inserida, de modo que “também as funções ou seus transtornos

correspondentes apenas podem ser determinados com referência hermenêutica à

autocompreensão interna das sociedades”. E, mais adiante: “As condições culturalmente

contingentes que permitem a seus membros uma forma não distorcida de autorrealização

devem ser vistas como o epítome da normalidade de uma sociedade” (PdS: 57de; 34-5en).

Para Honneth, portanto, quando se fala em patologias do social, não se trata

meramente de violações de princípios liberais de justiça: a filosofia social tem como tarefa

central criticar distúrbios que, a exemplo dos transtornos psíquicos, limitam ou deformam as

possibilidades de vida consideradas normais ou saudáveis, prejudicando desse modo a própria

137

PdS: 56de; 34en. A conexão entre a autorrealização individual não transtornada, como reverso das patologias

sociais, e o funcionamento intacto de um organismo é uma ideia que será central, duas décadas depois,

quando Honneth volta a tratar do vocabulário das patologias sociais: em “Doenças da sociedade” (2014), o

autor se mostra convicto de que a teoria crítica tem como objeto distúrbios funcionais que acometem não os

sujeitos individuais, mas a própria sociedade, concebida nos moldes de um organismo (cf. Excurso III).

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169

realização da concepção correspondente de vida boa.138

Esta concepção ética de fundo é, no

entanto, formal no sentido de que são normativamente destacadas apenas as pré-condições

(Voraussetzungen) sociais para a autorrealização humana, e não os fins (Ziele) mesmos aos

quais tais condições devem servir. Essa é a difícil tarefa da filosofia social: “Se não segundo

seu propósito individual, então certamente segundo sua constituição metodológica a filosofia

social está, então, desde o seu surgimento ancorada em uma perspectiva ética que se vincula

com as exigências apenas formais relativas a uma explicação do ‘bem’” (PdS: 59de; 36en).139

Assim, se o ponto de referência comum a todas as abordagens mencionadas são as condições

de bem-estar social dos indivíduos (o que significa que as ordens sociais serão consideradas

bem-sucedidas, ideais ou “saudáveis” na medida em que permitem aos indivíduos uma

autorrealização não distorcida), a diferença entre elas torna-se clara com respeito ao que cada

uma considera ser do escopo de jurisdição do “social”.

138

Honneth pretende, assim, dar conta também do déficit motivacional das teorias liberais de justiça, já que o

bloqueio ou distorção da autorrealização individual mostrou-se historicamente um fator decisivo no

engajamento dos sujeitos em conflitos e lutas sociais.

139 A produção teórica de Honneth nos anos 1980 e na primeira metade da década de 1990 – que inclui, além de

uma série de artigos, os livros Crítica do poder e Luta por reconhecimento – pode ser considerada como uma

tentativa de traçar um caminho alternativo à contraposição entre liberalismo e comunitarismo que, à época,

dominava o debate teórico no campo da filosofia política. Para tanto, Honneth lança mão, em Luta por

reconhecimento, de um “conceito formal de eticidade” (ein formales Konzept der Sittlichkeit), o que

corresponde, no ensaio sobre as patologias do social, à ideia expressa pelo termo “ética formal” (formale

Ethik). Nesse contexto, a ideia de patologias do social é mobilizada por Honneth como um instrumento

teórico capaz de dar conta dos distúrbios sociais que acometem as sociedades modernas para além da

violação de princípios liberais de justiça, mas aquém do que seria exigido por uma concepção universalista

de vida boa. Em outras palavras: o autor procura, mediante o diagnóstico de patologias sociais, abordar os

transtornos ligados à limitação ou deformação das condições de autorrealização humana sem fazer, com

isso, violência aos fins que os sujeitos individuais colocam a si mesmos segundo sua concepção particular de

vida boa.

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II

PASSAGEM

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3. Uma controvérsia político-filosófica

À publicação de Luta por reconhecimento em 1992 seguiu-se um intenso debate

teórico. O modelo de Honneth tornou-se desde então um estágio inescapável no

desenvolvimento da teoria crítica; tornou-se também, por isso, objeto de questionamentos e

objeções com variados graus de escopo crítico. Tais questionamentos foram capazes de

iluminar pontos importantes acerca da teoria da luta por reconhecimento: as objeções

formuladas por Nancy Fraser, por exemplo, induziram Honneth a uma longa e meticulosa

elucidação de seus pressupostos básicos precisamente no que diz respeito ao tema de interesse

desta tese. Como veremos, Fraser não condena apenas a ênfase que Honneth dá ao

vocabulário do reconhecimento, o que pode ser encarado como um ponto de vista unilateral

passível de superação mediante uma complementação com a perspectiva da redistribuição.

Ela questiona a legitimidade do recurso de Honneth à experiência de injustiça e de desrespeito

dos atores sociais – especialmente no que tange aos âmbitos econômico e político da realidade

social. As críticas de Fraser e as respostas de Honneth foram reunidas no livro conjunto

intitulado Redistribuição ou reconhecimento?.140

O objetivo deste capítulo é, então,

compreender como o autor defende, no livro, seu ponto de vista inicial após ter os alicerces

conceituais de seu modelo crítico contestados de modo relativamente severo.

As reflexões desenvolvidas no livro são apresentadas aqui em dois blocos:

primeiro (item 3.1.), as críticas que Fraser dirige a Honneth em seus dois ensaios, e em

seguida (item 3.2.) as réplicas do autor suscitadas por tais questionamentos. Não parece ser

necessário acompanhar a ordem dos textos no livro, alternada entre os autores, tendo em vista

que os argumentos mobilizados por cada um permanecem em grande medida inalterados, em

termos de posicionamento teórico, nos dois momentos da discussão. Ao final (item 3.3.),

procuramos fazer um balanço das continuidades e rupturas que o debate em causa representa

com relação a Luta por reconhecimento.

140

Título original: Umverteilung oder Anerkennung? Eine politisch-philosophische Kontroverse (daqui em

diante abreviado como UoA).

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3.1. Crítica da teoria da luta por reconhecimento (as objeções de Nancy Fraser)

Na primeira parte do livro, composta por uma versão ampliada de suas Tanner

Lectures de 1996, Nancy Fraser apresenta o diagnóstico segundo o qual ocorre, na passagem

do século XX para o XXI, uma transformação no paradigma dos conflitos políticos: o

incentivo para a mobilização política deixa de estar localizado nos interesses de classe e passa

a focar nas demandas pelo reconhecimento das diferenças identitárias de grupos sociais. Do

mesmo modo, a representação fundamental da injustiça não segue mais o modelo da

exploração material, mas sim o da dominação simbólica. Dito de outro modo: a autora

identifica – e considera problemática – a passagem do paradigma da redistribuição

socioeconômica para o do reconhecimento cultural. A partir desse diagnóstico, Fraser

desenvolve então sua concepção de reconhecimento baseada em um “modelo de status”,

procurando mostrar sua superioridade com relação à concepção honnethiana. Não serão

abordadas aqui, entretanto, as particularidades do modelo proposto por Fraser.141

Será

suficiente apontar, dentre as objeções que ela faz ao paradigma honnethiano da luta por

reconhecimento, aquelas que trazem à tona deficiências e questões não esclarecidas que

impulsionaram Honneth a elucidações e elaborações ulteriores.

(1) No contexto da primeira objeção que dirige a Honneth, Fraser defende que as

lutas por reconhecimento referem-se a uma questão de justiça, e não de autorrealização. Seu

objetivo é combater a ideia de que as patologias do reconhecimento estão ligadas a uma

deformação psíquica ou um impedimento da autorrealização ética, ou a de que elas implicam

que os sujeitos sofram de uma identidade distorcida ou de uma subjetividade danificada. Em

lugar de indicadores que considera subjetivos, Fraser acredita encontrar na posição relativa

dos atores sociais segundo seu status um critério suficientemente objetivo para determinar os

obstáculos à emancipação social, entendidos aqui como padrões institucionalizados de relação

que impedem a participação paritária de todos os membros da sociedade nas diversas esferas

de ação. Essa abordagem tem, para Fraser, uma série de vantagens.

(1.a) O modelo de status, por ser deontológico e “não sectário”, permite justificar

pretensões de reconhecimento sob condições modernas de pluralismo de valores. Nas

141

Limitamo-nos a mencionar a análise feita em Thompson (2006) na qual o autor apresenta o debate de forma

clara e, a nosso ver, aponta os problemas centrais da posição de Fraser (bem como da de Honneth, apesar de

ser um pouco mais favorável a este); bem como a defesa do modelo de Honneth presente em Neculau (2012).

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sociedades contemporâneas, afinal, já não se pode contar com uma concepção de

autorrealização ou vida boa que seja universalmente compartilhada.

(1.b) Nesse contexto, as patologias a serem identificadas e combatidas podem ser

encontradas no âmbito das relações sociais, “e não na psicologia individual ou interpessoal”

(Fraser, 2003a: 31). Evita-se, assim, o risco de culpar a vítima por seu próprio sofrimento:

para Fraser, ao atribuir um dano psíquico às vítimas de desrespeito social, o modelo de

Honneth “adds insult to injury” (isto é: piora, com um elemento de escárnio ou ultraje, uma

situação já desfavorável, em que um sujeito se encontra em desvantagem). O modelo de status

tampouco se ocupa do preconceito que supostamente existe na mente dos opressores, o que é

importante porque Fraser, com razão, considera autoritário praticar qualquer tipo de

policiamento de consciência. Em resumo, a proposta de Fraser tem a intenção de evitar a

psicologização das patologias sociais apoiando-se em indicadores considerados objetivos:

“For the status model, in contrast, misrecognition is a matter of externally manifest and

publicly verifiable impediments to some people’s standing as full members of society” (Fraser,

2003a: 31). Sendo assim, o problema do desrespeito não depende da presença dos efeitos

psicológicos negativos descritos por Honneth. Fraser separa do aspecto normativo do

reconhecimento, portanto, a dimensão psicológica da experiência de sofrimento dos sujeitos.

(1.c) O modelo de status evita a visão de que todos os indivíduos têm igual direito

à estima social – o que seria contraditório com o próprio conceito –, na medida em que prevê

que todos tenham direito e oportunidades iguais de buscar esse tipo de reconhecimento.

(1.d) Ao considerar o desrespeito uma violação da justiça (entendida por sua vez

como paridade de participação), Fraser acredita poder integrar mais facilmente, sob este

guarda-chuva teórico-normativo, problemas de redistribuição e de reconhecimento. Evita-se,

assim, uma “esquizofrenia filosófica” entre os dois paradigmas (Fraser, 2003a: 33).

(2) Não deixa de ser curioso, então, que a segunda objeção de Fraser a Honneth

diga respeito ao “reducionismo culturalista” que ela atribui à teoria da luta por

reconhecimento. Contra tal monismo reducionista, que submeteria as reivindicações de cunho

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174

econômico-material a considerações eminentemente simbólicas,142

Fraser propõe um

dualismo perspectivista entre os princípios de reconhecimento e de redistribuição.

(3) Fraser também considera, em terceiro lugar, que a teoria de Honneth não nos

permite diferenciar pretensões justificadas e injustificadas de reconhecimento. É preciso, para

a autora, evitar a dicotomia entre perspectivas “populistas” e “autoritárias” para tratar do

desrespeito, já que ambas são monológicas: quem define o critério de justificação é ora apenas

sujeito concernido, ora apenas o teórico. Consequentemente, o conteúdo do critério defendido

por Fraser (a paridade de participação) não pode ser definido a priori. Não há um sinal

evidente e objetivo que indique precisamente o que é a paridade de participação e qual o seu

grau atual de realização; estas são questões a serem definidas dialogicamente, mediante

processos democráticos de debate público (Fraser, 2003a: 43 e 2003b: 230), de modo que os

destinatários podem, assim, se reconhecer como os autores dos princípios de justiça.143

(4) Por fim, Fraser considera que o reconhecimento não diz respeito à satisfação

de uma necessidade humana geral, mas é antes apenas um “remédio” para determinadas

formas de injustiça social. Favorecendo um “pragmatismo informado por insights de teoria

social” em detrimento da antropologia formal elaborada por Honneth, Fraser afirma que a

forma de reconhecimento que a ideia de justiça exige em cada caso (isto é: reconhecimento da

igualdade ou da diferença entre os atores sociais) depende do caráter do desrespeito a ser

combatido: “In every case, the remedy should be tailored to the harm” (Fraser, 2003a: 46).

Assim, o reconhecimento reivindicado pode referir-se tanto à universalidade quanto à

142

Basaure (2011b e 2011d) endereça à teoria honnethiana do reconhecimento uma crítica diametralmente

oposta: Honneth teria inopinadamente introduzido um dualismo em sua perspectiva ao tratar a dimensão

política do reconhecimento em termos bourdieusianos, isto é, segundo uma visão utilitarista das lutas sociais

simbólicas. Para Basaure, Honneth não foi consequente em seu monismo moral.

143 Ao mesmo tempo, porém, Fraser afirma que a paridade de participação é também a linguagem própria da

razão pública, da contestação e da deliberação sobre questões de justiça. Isto é: trata-se também do meta-

nível da deliberação sobre a deliberação, o que se costuma chamar “second-order claims”. Fraser reconhece a

circularidade de sua proposta: a paridade de participação é tanto o pressuposto quanto o objetivo do debate

público em torno das reivindicações – sejam distributivas, sejam de reconhecimento – dos movimentos

sociais. Não se trata para ela, entretanto, de algo problemático: a circularidade não seria viciosa, mas apenas

refletiria uma contradição real a ser combatida na prática, e não teoricamente.

Note-se que a autora, no entanto, não leva adiante de forma consequente a ideia de que o importante é o

diálogo entre o ponto de vista do observador e do participante, na medida em que separa estes dois

momentos: Fraser primeiramente define (observador) qual é o princípio de justiça adequado para o presente,

e depois joga para o debate público (participante) a resolução dos problemas decorrentes de sua proposta

teórica.

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particularidade dos atores sociais concernidos – o que definirá a forma mais adequada é a

natureza do desrespeito sofrido.

*

Nas críticas formuladas por Fraser nesse momento inicial misturam-se

questionamentos bem fundamentados e objeções menos convincentes. De saída não fica claro,

por exemplo, como a crítica ao monismo cultural (crítica 2) pode ser compatibilizada com a

objeção imediatamente anterior, qual seja: a de que a teoria da luta por reconhecimento

sofreria de uma esquizofrenia filosófica (crítica 1.d). Para Fraser, essa esquizofrenia144

decorre do fato de que Honneth não conta com uma concepção de justiça nos moldes da

paridade de participação, capaz de fornecer um arcabouço normativo unificado para mediar a

relação entre demandas por redistribuição e por reconhecimento. Independentemente da

possibilidade de conciliar essa visão com a crítica do monismo cultural, é preciso salientar

que o papel que a justiça como paridade de participação exerce no modelo de Fraser pode ser

considerado análogo ao papel da autorrealização mediante a formação bem-sucedida da

identidade no projeto de Honneth. Afinal, qual seria a diferença do estatuto da autorrealização

para o da justiça como concepção normativa geral? Ambas funcionam como guarda-chuva

teórico-normativo que fornece um critério último seja para as três formas de reconhecimento

recíproco, seja para o par redistribuição e reconhecimento. Neste sentido, Fraser pode

questionar a ideia de autorrealização como critério normativo geral, mas não cabe dizer que

falta, em Honneth, um conceito capaz de integrar as diferentes reivindicações que os atores

sociais levam à esfera pública.145

No que diz respeito à suposta compulsoriedade de conferir

estima a todos os membros da sociedade de forma idêntica (crítica 1.c), Honneth esclarece em

sua resposta que o que se pode exigir legitimamente de um ordenamento social liberal-

democrático é, para ele, a “virtude procedimental” representada pela capacidade de tratar as

144

É preciso chamar atenção para o emprego inadequado do termo “esquizofrenia”, uma escolha discriminatória

a ser evitada pela teoria crítica.

145 Cabe questionar, ainda, qual seria a diferença entre o dualismo proposto por Fraser e o que ela chama de

esquizofrenia filosófica.

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minorias como candidatas à mesma estima social de que goza a cultura dominante.146

Isto é:

ele expressa concordância com a elucidação de Fraser relativa a esta questão.

Estes exemplos não devem, contudo, nos impedir de enfrentar os questionamentos

que, de fato, atingem aspectos importantes do modelo teórico de Honneth. São eles: o

conceito de experiência (críticas 1.b e 3), a noção de autorrealização (críticas 1.a e 4) e a

perspectiva moral da integração da sociedade (crítica 2). No segundo momento de sua

contribuição ao volume, Fraser desenvolve ulteriormente estes três pontos de contestação, os

quais apresentamos a seguir em mais detalhe.

3.1.1. Crítica do conceito de experiência: psicologização

Fraser não deixa de indicar, em sua tréplica, o que ela e Honneth têm em comum:

ambos endossam uma dialética entre imanência e transcendência como aquilo que permite ao

teórico crítico contrapor-se às teorias tradicionais que avaliam a ordem social de maneira

externa. Assim, Fraser e Honneth concordam que a teoria crítica deve desvelar (disclose)

tensões e possibilidades de algum modo imanentes à configuração social; os dois opõem-se

igualmente, por outro lado, ao internalismo forte do historicismo hermenêutico, considerando

que normas sociais válidas transcendem o contexto imediato de seu surgimento.147

Ambos

procuram, por fim, desenvolver para a teoria crítica uma linguagem capaz de dialogar com os

seus destinatários. Em que pese a coincidência de objetivos, no entanto, as formulações de

cada autor variam bastante. Fraser considera que Honneth ancora seu modelo de teoria crítica

em uma psicologia moral centrada no sofrimento pré-político dos atores sociais. Para

Honneth, diz a autora, imanência parece significar meramente “experiência subjetiva”, já que

os conceitos normativos por ele mobilizados são derivados dos sofrimentos, motivações e

146

UoA: 199-200de; 168-9en. De fato, Honneth se questiona se seria necessário criar um quarto princípio de

reconhecimento para dar conta deste tipo de relação, segundo o qual é preciso reconhecermo-nos uns aos

outros também como membros de comunidades culturais cujas formas de vida merecem uma medida de

atenção bem-intencionada para que se aprecie o seu valor. O autor sugere, no entanto, que a grande maioria

das demandas por reconhecimento da especificidade de grupos são aplicações mais ou menos inovadoras do

princípio da igualdade (UoA: 200-1de; 169-70en).

147 Fraser chega a utilizar a expressão surplus validity (o correspondente em inglês para o termo alemão

Geltungsüberhang ou -überschuss) para referir-se a esse aspecto transcendente (Fraser, 2003b: 202). Cf.

também o seguinte trecho: “Under pressure to confront new problems, and subject to creative re-

appropriation, the norms contained within folk grammars transcend the social world in which they

originate” (Fraser, 2003b: 210).

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expectativas dos sujeitos comuns. Para não colar a normatividade imediatamente na realidade

institucional dada, porém, Honneth tira do foco as disputas políticas do presente e se

concentra em um estrato independente de experiência moral, isto é, as experiências

quotidianas de sofrimento que ainda não foram politizadas. A partir da reconstrução dessas

experiências, Honneth chega à ideia de que a expectativa moral básica dos sujeitos, que

também funciona como motivação para a ação e o conflito, é o reconhecimento de sua

identidade. Para Fraser, essa perspectiva é problemática porque, com ela, o foco da teoria

crítica deixa de ser a sociedade e passa a ser o self individual, o que tem como consequência

uma concepção excessivamente personalizada do senso de injustiça (sense of injury) e

redunda no que Fraser chama de “misreading of prepolitical suffering” (Fraser, 2003b: 204).

Além disso, diz a autora, o sofrimento quotidiano não é inócuo, vale dizer: não

está isento do vocabulário normativo político do julgamento público. Assim, as experiências

quotidianas de sofrimento são apolíticas apenas na aparência. No mesmo sentido, Fraser

considera que nunca se pode ter acesso à experiência moral dos sujeitos sem a mediação de

discursos normativos, os quais necessariamente infiltram-se tanto na experiência dos atores

quanto na perspectiva do teórico (Fraser, 2003b: 204-5). Acreditar ser possível recorrer a um

estrato de experiência que é ao mesmo tempo empírico e primordial é, portanto, algo

incoerente e recai em um “myth of the given”, ideia que Fraser empresta de Wilfrid Sellars

(Fraser, 2003b: 204). A autora opta por tomar, como ponto de partida, movimentos sociais já

institucionalizados, porque eles representam uma forma auto-organizada (e não articulada

pelo teórico) justamente daqueles sentimentos de injustiça pré-políticos que afetam os atores

sociais (Fraser, 2003b: 234, nota 8). Fraser pretende estabelecer assim uma separação entre o

que merece o título de injustiça e o que é meramente experienciado como injustiça – e o

teórico crítico deve poder fazer esta distinção a partir da observação dos movimentos sociais

de sua época. Nenhum conjunto de experiências pode ser isolado do escrutínio crítico e seus

mecanismos de prova – especialmente no caso das experiências subjetivas, as quais Honneth

aceita, segundo Fraser, prima facie. Diz a autora:

Notoriously unreliable, such experiences need to be situated in relation to more

objective, experience-distant touchstones, such as those afforded by structural

analyses of social subordination and political sociologies of social movements.

These latter reference points are empirical, to be sure, but they do not arise directly

from subjective experience. On the contrary, they represent indispensable

benchmarks for assessing the validity of experience’s claims (Fraser, 2003b: 205-6).

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A questão que se coloca aqui de modo premente para Fraser – e da qual ela

considera que Honneth não teria dado conta – diz respeito a como identificar as pretensões de

reconhecimento que podem ser consideradas genuinamente emancipatórias. Neste contexto,

ela defende critérios mais objetivos e estruturais para avaliar as experiências dos atores

sociais. Honneth, ao contrário, não se disporia a colocar essas experiências à prova: segundo

Fraser, ele atribui à psicologia moral a tarefa de definir tais questões de maneira prévia. Ao

imputar à motivação subjetiva uma prioridade sobre a explanação social e a justificação

normativa, Honneth teria além disso se aproximado demasiadamente de uma teoria

tradicional, na qual a psicologia moral funda e injustificadamente limita a sociologia política,

a teoria social e a filosofia moral, obstruindo de modo ilegítimo tais investigações e violando

sua autonomia relativa (Fraser, 2003b: 206).

A contraproposta de Fraser consiste em uma guinada teórica que abandona a

categoria da experiência em favor da noção de discurso como ponto de referência para a

teoria crítica. Em lugar de partir da experiência subjetiva e procurar como que espelhá-la na

teoria, ela toma como ponto de partida discursos de crítica social que chama de “paradigmas

populares de justiça social”, os quais constituem as gramáticas hegemônicas de contestação e

deliberação em determinada sociedade. Para Fraser, a virada linguística na teoria crítica exige

que se foque a análise em “discursos normativos transpessoais” em lugar de tentativas de

refletir a experiência não mediada dos sujeitos (Fraser, 2003b: 207). A autora rejeita assim

expressamente a ideia de que a experiência subjetiva exerce um papel relevante para a teoria:

“In social theory, we are freed to conceptualize types of injustice, their causes and their

remedies, independently of how they are experienced” (Fraser, 2003b: 210). Ela sugere,

consequentemente, substituir a psicologia social na base da teoria de Honneth por uma

combinação de teoria social, filosofia moral e teoria política como elementos constitutivos da

teoria crítica, de modo que cada disciplina corrige as demais, formando assim um “círculo

hermenêutico” composto por uma pluralidade de elementos não fundacionais que entram em

um processo descentrado de correção mútua com o objetivo de alcançar um equilíbrio

reflexivo.148

Este é o caminho, segundo Fraser, para que a teoria aprenda com a cultura

política contemporânea ao mesmo tempo em que preserva sua independência crítica. Neste

148

Fraser utiliza o termo cunhado por John Rawls sem especificar se o utiliza no mesmo sentido que ele.

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contexto, a categoria da “paridade de participação” aparece como ponto de referência não

subjetivo no qual convergem as demandas de imanência e transcendência.149

Cabe a Honneth, então, esclarecer como concebe o caráter subjetivo da ideia de

autorrealização e das experiências de desrespeito. Como evitar, neste contexto, uma

injustificada psicologização das patologias sociais (crítica 1.b)? Como Honneth pode

estabelecer um critério para distinguir pretensões justificadas e injustificadas de

reconhecimento (crítica 3)?

3.1.2. Crítica da noção de autorrealização: autoritarismo

É certo, para Fraser, que a teoria crítica depende de um ponto de vista seguro,

independente das experiências subjetivas dos agentes, para avaliar o caráter progressista ou

retrógrado dos movimentos sociais, de modo que é necessário desenvolver uma teoria justiça

que seja objetivamente determinada. Ao mesmo tempo, porém, ela não pode ser sectária, isto

é, não pode impor aos atores sociais qualquer tipo de finalidades éticas ou necessidades

humanas de caráter transcendental (Fraser, 2003b: 223). Honneth considera impossível, no

entanto, segundo a interpretação de Fraser, articular adequadamente princípios normativos na

ausência de uma teoria da vida boa, o que o faz apoiar sua teoria da justiça em uma

determinada concepção do florescimento humano, qual seja: a noção psicológica de

identidade intacta, tida como requisito ao mesmo tempo necessário e suficiente para a

autorrealização individual. Para Fraser, isso significa que a justificação do reconhecimento

não é apenas teleológica, mas autoritária: ele é um meio para a vida boa “tal como Honneth a

149

Fraser parece ir mais longe, contudo, e defender que o teórico crítico deve abandonar o ponto de vista do

participante e se ater à perspectiva do observador. De que outra forma pode ser interpretado o trecho

seguinte? “Contra Honneth, these injustices [gender injustices associated with marriage, MT] are not best

conceived psychologically, as violations of personal identity rooted in a lack of sensitivity to individual need

in the sphere of intimacy, which is governed by the principle of care. Rather, they are better conceived

socially, as forms of subordination rooted in an androcentric status order, which pervades society and is

imbricated with its economic structure, systematically disadvantaging women in every sphere. Contra

Honneth, moreover, marriage has never been regulated by the principle of care. For most of history, rather,

it has been a legally regulated economic relation, concerned more with property accumulation, labor

organization, and resource distribution than with care. In fact, what Honneth calls affective care is actually

women’s labor, ideologically mystified and rendered invisible. It follows that the status subordination of

wives in marriage cannot be remedied by further individualizing care. What is required, rather, is

deinstitutionalizing androcentric value patterns throughout society in favor of alternatives that promote

gender parity. Participatory parity, not care, is the key to reforming the institution of marriage” (Fraser,

2003b: 219-20).

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compreende” (Fraser, 2003b: 224). Com isso, a dialética entre imanência e transcendência

fica seriamente prejudicada: de acordo com Fraser, Honneth invoca o sofrimento pré-político

dos atores sociais como um pretexto para defender uma psicologia moral “quase

transcendental” e, consequentemente, uma primazia antropológica do reconhecimento

enquanto categoria moral por excelência. Fraser censura, assim, o posicionamento das

reivindicações por reconhecimento abaixo do nível de contingência histórica. Isto é: ela

questiona o fato de que os desenvolvimentos históricos parecem nunca poder gerar novas

categorias morais que não sejam variantes do reconhecimento. Para a autora, isto significa

subordinar a dimensão da imanência àquela da transcendência. Ora, se este for o caso, é

necessário afirmar que a teoria honnethiana da luta por reconhecimento não consegue dar

conta do requisito de não sectarismo, devendo ser apontada como autoritária.

Fraser observa ademais que, para escapar da situação de autoritarismo teórico,

Honneth precisa declarar que as categorias utilizadas (não apenas termos como “vida boa” e

“florescimento humano”, mas também os conceitos básicos de reconhecimento, identidade,

cuidado, respeito e estima) são puramente formais, de maneira que qualquer modo de vida

possa razoavelmente ser considerado “bom” a partir de qualquer horizonte ético razoável.

Mas isso também traz seus problemas: “Once its recognition principles are emptied of

content, Honneth’s theory of justice lacks sufficient determinacy to adjudicate conflicting

claims” (Fraser, 2003b: 225). Desse ponto de vista, Honneth falha em dotar de determinidade

a sua teoria crítica da justiça.

A indeterminidade do modelo teórico de Honneth apareceria, por exemplo, no

fato de que “he neglects to tell us what we should do in cases where esteeming the labor

contributions of some entails denying equal citizenship to others” (Fraser, 2003b: 228). O

autor fracassa, segundo esta interpretação, em oferecer uma teoria praticável da justiça, capaz

de contribuir para a resolução de conflitos sociais e políticos concretos. Assim, para evitar o

sectarismo decorrente de seu ponto de partida teleológico, dependente de uma concepção de

vida boa, Honneth acaba caindo numa vacuidade moral. Fraser conclui que a teoria da luta por

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reconhecimento incorre ora em um posicionamento dogmático (sectarismo), ora em princípios

vazios (indeterminidade).150

3.1.3. Crítica da perspectiva da integração social: reducionismo

Um dos aspectos mais questionados da obra de Honneth, e não apenas por Nancy

Fraser, é a maneira como ele lida com os conflitos distributivos que se dão sob o capitalismo.

Trata-se de uma reformulação da objeção ao “monismo culturalista” da teoria do

reconhecimento. Aqui, essa discussão gira em torno dos modos pelos quais se considera que a

sociedade é integrada. Diz a autora:

Virtually all societies contain more than one kind of societal integration. Above and

beyond the moral integration privileged by Honneth, virtually all include some form

of system integration, in which interaction is coordinated by the functional

interlacing of the unintended consequences of a myriad of individual strategies

(Fraser, 2003b: 214).

Para Fraser, o que distingue a sociedade capitalista é precisamente a criação de

uma ordem mercantil impessoal, anônima, quase objetiva e que segue uma lógica própria. A

autora admite que essa ordem é inscrita culturalmente, porém ressalva que ela não é

diretamente governada por esquemas culturais de avaliação. Nesse sentido, a importância do

quadro de valores estabelecido pelo princípio do desempenho (achievement ou, em alemão,

Leistung) é relativizada por Fraser, já que seus efeitos são mediados pela operação de

mecanismos sistêmicos impessoais que priorizam a maximização dos lucros das corporações.

O monismo do reconhecimento mostra-se, deste modo, “congenitamente cego” para tais

mecanismos sistêmicos de integração (Fraser, 2003b: 215). Nas palavras de Fraser, Honneth:

goes from the true premise that markets are always culturally embedded to the false

conclusion that their behavior is wholly governed by the dynamics of recognition.

Likewise, he goes from the valid insight that the capitalist economy is not a purely

technical, culture-free system to the untenable proposition that it has no economic

dynamics worth analyzing in their own right (Fraser, 2003b: 216).

150

A ênfase de Fraser, porém, acaba recaindo sobre o aspecto autoritário, na medida em que ela caracteriza a

teoria de Honneth como um “liberalismo teleológico forte” ou “sectarismo teleológico” contraposto ao

“liberalismo procedimental fraco” (ou “formalismo procedimentalista”) de Habermas e Rawls (Fraser,

2003b: 230). A proposta de Fraser para superar este impasse, por sua vez, é descrita como um “liberalismo

deontológico forte”. Como a própria Fraser pode sair deste dilema é algo que não fica claro em sua

exposição.

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Como consequência, o modelo teórico de Honneth aparece como reducionista e incapaz de

dar conta dos fenômenos sociais de cunho econômico:

Thus, far from successfully incorporating the best insights of the cultural turn,

Honneth capitulates to the latter’s worst excesses. Instead of passing beyond

economism to arrive at a richer theory that encompasses both distribution and

recognition, he has traded one truncated paradigm for another, a truncated

economism for a truncated culturalism (Fraser, 2003b: 216).

*

Uma análise de conjunto das reflexões críticas de Fraser evidencia que seus textos

nesse volume apresentam diferentes formulações para as mesmas discordâncias básicas entre

seu modelo teórico e o de Honneth. Deixando de lado neste momento aqueles

questionamentos mais circunstanciais, é possível remeter grande parte das críticas de Fraser,

por um lado, aos problemas por ela imputados a um paradigma teleológico de filosofia social,

que considera que os atores sociais são motivados em suas ações quotidianas por concepções

éticas de vida boa, e, por outro lado, às vantagens que ela vincula a um paradigma de cunho

deontológico, no qual o “justo” tem precedência sobre o “bom”. Dito de outro modo: uma das

principais divergências entre os autores reside na contraposição entre condições de

autorrealização e princípios de justiça como ponto de referência para o diagnóstico de

patologias sociais. Acrescenta-se a isso, como visto, a censura de Fraser à consideração

especial de Honneth pelas experiências subjetivas inarticuladas dos atores sociais, bem como

à sua concepção do capitalismo como integrado moral e socialmente, isto é, como perpassado

por normas e valores.

Chama atenção, aqui, o fato de que Fraser parece dirigir a Honneth, ao mesmo

tempo, críticas conflitantes: na dialética entre imanência e transcendência, a teoria da luta por

reconhecimento privilegiaria ora a imanência (já que aceita prima facie as experiências pré-

políticas dos atores sociais), ora a transcendência (uma vez que adota uma psicologia moral

“quase transcendental” centrada na autorrealização como fundação da teoria), e ora seria

incapaz de dar conta de qualquer dessas dimensões (na medida em que esvazia o conteúdo de

significado de suas categorias centrais). Uma interpretação possível dessas críticas consiste

em afirmar que a uma filosofia social que privilegia a ideia de autorrealização pessoal

estariam vinculados três momentos problemáticos. De um lado, (a) esse posicionamento

parece estimular uma atitude teórica acrítica, de simples aceitação dos sentimentos pré-

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políticos de injustiça dos atores sociais, o que tem como resultado um subjetivismo excessivo

e que compromete a independência do teórico crítico com relação às experiências particulares

de seus destinatários. Neste contexto, aparecem como reais os perigos decorrentes da

psicologização da teoria social, entre os quais se destaca a ausência de critérios para

identificar demandas por reconhecimento justificadas e injustificadas. Soma-se a isso a

dificuldade representada pelo caráter não articulado e pré-teórico das concepções e

experiências quotidianas e subjetivas de injustiça. De outro lado, e exatamente para evitar este

resultado problemático, (b) apresenta-se a alternativa oposta, isto é: passa a caber ao teórico

determinar, como “necessidades humanas”, as condições ao mesmo tempo necessárias e

suficientes para a autorrealização individual, de modo que é imposta aos sujeitos,

autoritariamente, uma concepção ética de vida boa. Um terceiro passo, igualmente

questionável, parece ser, então, (c) esvaziar de seu conteúdo próprio todas as categorias

normativas utilizadas na etapa anterior, tornando-as formais a ponto de não comprometerem a

autonomia dos sujeitos concernidos. Sem substância, porém, elas tornam-se indeterminadas e,

portanto, supérfluas. Em resumo: uma teoria crítica da justiça focada nas condições de

autorrealização e baseada nas experiências quotidianas de desrespeito compromete-se com

enunciados acríticos (pura imanência), autoritários (pura transcendência) ou indeterminados

(nem uma, nem outra). Resta saber se este emaranhado de posições teóricas não apenas

condenáveis por elas próprias, mas também contraditórias umas com as outras, representa de

modo plausível a formulação honnethiana da luta por reconhecimento.

3.2. Defesa do modelo crítico do reconhecimento (as réplicas de Axel Honneth)

3.2.1. Experiências de injustiça

Na primeira parte de sua resposta a Nancy Fraser, Honneth discute o papel de uma

fenomenologia das experiências de injustiça para a teoria crítica. Seu propósito consiste em

mostrar que o vocabulário desenvolvido na teoria da luta por reconhecimento é capaz de

estabelecer um vínculo conceitual entre as causas sociais de sentimentos de injustiça

amplamente disseminados e os objetivos normativos tanto dos movimentos sociais

emancipatórios quanto de outras formas, menos articuladas, de protesto e resistência. Contra

Fraser, portanto, Honneth defende que o sofrimento e a miséria (Leiden und Elend; UoA:

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139de) a serem compreendidos teoricamente e combatidos praticamente não dizem respeito

apenas às demandas formuladas pelos movimentos sociais organizados, mas também àqueles

sentimentos ou experiências de injustiça institucionalmente causados que não atingiram,

ainda, o limiar de articulação política que lhes permitiria exercer um papel ativo nas estruturas

formais da arena pública (UoA: 139de; 117en). Segundo o modelo defendido por Fraser, ao

contrário, “toda experiência adicional de sofrimento no interior da sociedade que se pode

imaginar que esteja para além de tal mal-estar [Unbehagen] publicamente articulado

pertence, antes, ao domínio da especulação teórica, na qual predominam imputações

sociológicas em lugar de indicadores empíricos” (UoA: 151de; 128en).151

O que essa

perspectiva não leva em conta é que a designação de uma coletividade como “movimento

social” já é o resultado de uma luta subterrânea por reconhecimento travada por indivíduos e

grupos que, afetados por algum tipo de sofrimento social, buscam fazer o público mais geral

tomar consciência dos problemas que eles enfrentam e lidar com suas demandas (UoA:

142de; 120en). Para Honneth, o posicionamento de Fraser, além de preterir toda forma de

sofrimento individual, corre o risco de ser cúmplice da dominação política existente, já que

apenas pode dizer algo sobre os sujeitos particulares enquanto membros de um movimento

social: “Os sujeitos são por assim dizer vistos como seres anônimos, sem rosto, precisamente

até o momento em que se associam a movimentos sociais cujos objetivos políticos expressam

publicamente suas orientações normativas” (UoA: 152de). O perigo de um curto-circuito

(Kurzschluss) entre a linguagem normativa da teoria e o vocabulário crítico dos movimentos

sociais, bem como entre estes movimentos e toda e qualquer forma de descontentamento

social (UoA: 151de), reside em somente reafirmar o nível dominante dos conflitos prático-

morais em dada sociedade, de modo que apenas as formas de sofrimento que já têm espaço na

esfera pública são levadas em conta pela reflexão teórica. Por esse motivo, a teoria crítica

precisa de uma terminologia normativa e de um quadro conceitual que não sejam dependentes

dos movimentos sociais hegemônicos do presente e permitam, assim, identificar formas de

descontentamento social que não gozam (ainda) de reconhecimento público (UoA: 139 e

148de; 117 e 125en). Honneth recorre a trabalhos como aquele organizado por Pierre

Bourdieu – La Misère du Monde, de 1993 – para indicar a existência de mecanismos políticos

151

Honneth considera que Fraser está de acordo com a tendência atual de idealizar os movimentos sociais

organizados, visto que, para ela, a legitimidade do quadro normativo da teoria crítica mede-se segundo sua

capacidade de expressar os objetivos políticos desses movimentos (UoA: 138de; 116en).

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na esfera pública burguesa que funcionam como filtros e garantem que apenas demandas

político-sociais de nível organizacional relativamente alto possam ser tomadas seriamente

como formas relevantes de conflito social. Para Bourdieu, assim como para Honneth, é

preciso levar em consideração também expectativas e esperanças difusas, tomadas geralmente

como privadas e que, devido a um entendimento muito restrito do âmbito político, são

excluídas do debate público. Para tanto, fazem-se necessárias considerações de psicologia

moral – precisamente aquilo que Fraser quer evitar.

De acordo com Honneth, a possibilidade de os conflitos (Auseinandersetzungen)

sociais em sentido pré-político tornarem-se lutas (Kämpfe) propriamente políticas depende de

um número suficientemente grande de afetados unirem esforços para convencer a esfera

pública mais ampla do valor de suas atividades, colocando em questão a ordem de status atual

(UoA: 184de). Tal posicionamento tem como pressuposto a consideração empírica de que

toda forma de organização da sociedade precisa, do ponto de vista de seus membros, ser

justificada, e para isso deve poder satisfazer um mínimo de critérios normativos oriundos de

reivindicações arraigadas no contexto de interação social. Ao ignorar que toda ordem social

necessita ser legitimada perante seus membros, incorre-se no erro de negligenciar o aspecto

motivacional dos conflitos sociais. Para Honneth, portanto, traduzir os conceitos básicos da

teoria crítica em termos de uma luta por reconhecimento justifica-se por este insight sobre as

fontes motivacionais do descontentamento e da resistência sociais (UoA: 148de; 125en).

O autor não deixa dúvidas, logo, de que vai defender sua convicção de que a

teoria tem de estar aberta para a perspectiva moral dos atores sociais. Sem essa abertura

categorial para o ponto de vista normativo a partir do qual os próprios sujeitos avaliam a

ordem social, a teoria permanece perigosamente isolada de uma dimensão importante do

descontentamento social (UoA: 158de; 134en). Diferentemente do que afirma Fraser, no

entanto, Honneth não considera possível acessar esse ponto de vista normativo sem

mediações. Ao contrário: ele considera que há uma obstrução sistemática do acesso às

experiências quotidianas de injustiça, o que torna ainda mais complexo o trabalho do teórico.

Honneth esclarece aqui, ademais, que não considera que os sentimentos de desrespeito nos

são dados imediatamente, sem serem conformados política e historicamente. A importância

dos sentimentos de desrespeito para a legitimidade normativa do ordenamento social aparece

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em seu texto antes de sua caracterização propriamente histórica (isto é: ligada a princípios de

reconhecimento estabelecidos a cada momento) apenas por conta da lógica de sua

exposição.152

Assim, o que conta como reconhecimento altera-se a cada vez, de forma que as

expectativas de reconhecimento socialmente constitutivas variam historicamente com os

princípios normativos que definem em quais aspectos ou sentidos seus membros podem

contar socialmente com o assentimento recíproco de seus parceiros de interação. Mediante

essa guinada historicizante, Honneth pretende definir um ponto de partida social-

antropológico para sua teoria sem com isso recair na ideia de uma moralidade cristalizada

antropologicamente em um conjunto estável ou transcendental de “necessidades de

reconhecimento” (“Anerkennungsbedürfnisse”; UoA: 285de).

Uma investigação que dê conta dessa dimensão subterrânea e fundamental dos

sentimentos de injustiça depende, por um lado, da identificação, por meio de ferramentas da

pesquisa social empírica, das reações negativas dos sujeitos afetados (UoA: 149de; 126en);

por outro lado, contudo, tais pesquisas são sempre informadas por um entendimento teórico,

de modo que é preciso tratar da questão também em um nível conceitual. Deve-se perguntar,

então: quais conceitos básicos podem nos ajudar a identificar as expectativas normativas dos

membros da sociedade que permitem entender, mediante a sua frustração, o descontentamento

e o sofrimento sociais? (UoA: 149-50de; 126-7en). O que se pode dizer teórica e

convincentemente acerca das expectativas morais que os sujeitos geralmente têm com relação

à ordem social? (UoA: 154de; 130-1en). Honneth considera, de modo semelhante a Fraser,

que a resposta a essas perguntas precisa ser determinada, porém ao mesmo tempo abstrata o

suficiente para agrupar diferentes reivindicações sob um mesmo núcleo normativo. Apoiado

em estudos das últimas décadas – Honneth refere-se aqui ao quarteto formado por Thompson,

Moore, Sennett e Cobb –, o autor conclui que os sujeitos esperam, da ordem social, o

152

Cf. o seguinte trecho: “É apenas devido à lógica de minha exposição que, no texto, eu primeiro esboço a

importância de tais sentimentos para a legitimidade normativa das ordens sociais, antes que eu, então, em

uma segunda parte, explique sua conformação semântica pelos princípios de reconhecimento estabelecidos a

cada vez; e apenas em um terceiro passo eu trato da questão de como a justificabilidade moral se coloca em

face das demandas sociais que nascem de sentimentos de desrespeito historicamente impregnados” (UoA:

282de; 245en). Note-se que aqui, assim como em Luta por reconhecimento, a fenomenologia começa pelo

positivo, pelas formas de reconhecimento. Tanto que Honneth afirma: “Como em muitos contextos

normativos, também aqui é de início útil reformular negativamente o critério positivo e, em conformidade

com isso, tomar como ponto de partida a ideia da remoção dos obstáculos correspondentes” (UoA: 222de;

187-8en).

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187

reconhecimento de suas reivindicações de identidade.153

Diz Honneth: “Inicialmente, foram

pesquisas históricas sobre o movimento operário que tornaram claro, pela primeira vez, em

que medida metas de reconhecimento já haviam marcado o protesto social das classes baixas

no capitalismo que emergia e gradualmente se impunha” (UoA: 155de; 131en). Esses estudos

mostram que no cerne das experiências de injustiça está a violação da integridade ou da

dignidade dos atores sociais, e que a linguagem dos protestos sempre teve nos sentimentos de

reconhecimento violado um papel semântico central. Contudo, assim como já o fizera

anteriormente, também aqui Honneth destaca que é necessário ampliar o escopo do quadro

teórico dos estudos culturais: tais reflexões, ainda restritas inicialmente às classes baixas das

sociedades capitalistas, são paulatinamente generalizadas para um contexto mais amplo, de

maneira que se pode delas extrair um “padrão de experiência universalmente difundido” (ein

allgemein verbreitetes Erfahrungsmuster) que abrange não apenas o movimento operário, mas

também, por exemplo, a resistência de grupos colonizados e a história subterrânea dos

protestos das mulheres.154

De acordo com esse padrão, os sujeitos percebem procedimentos

institucionais como perpetuadores de injustiça social quando veem certos aspectos de sua

personalidade sendo desrespeitados – aspectos a cujo reconhecimento eles consideram ter um

direito justificado (UoA: 156de; 132en).

Os dados empíricos obtidos como resultado das pesquisas históricas sobre modos

quotidianos de resistência, porém, mesmo quando generalizados para uma série de grupos

sociais, fornecem apenas um “material ilustrativo cru” (UoA: 156de; 132en) que precisa

passar por um processo categorial pra poder funcionar como base para uma tese generalizável.

Afinal, não basta mostrar que os atores sociais se rebelam contra medidas institucionais

percebidas como um desrespeito a algum dos aspectos de sua personalidade – é preciso

também explicar teoricamente o vínculo entre as expectativas de reconhecimento social,

centradas nas ideias de integridade e dignidade da identidade pessoal, e os padrões de

153

É importante esclarecer que, quando fala em identidade, Honneth não se limita à identidade cultural

específica a grupos internos à sociedade, como é o caso nas identity politics. Para o autor, a formação da

identidade individual depende do reconhecimento não só das propriedades ou contribuições singulares, mas

também das necessidades (particulares) e do estatuto como pessoa de direito (igual, universal) de todos os

membros da sociedade.

154 Tivesse Honneth desenvolvido essa linha de pensamento – e tivesse ele recorrido ao amplo campo da

literatura acadêmica acerca de formas de resistência anticoloniais e feministas –, seu argumento certamente

seria fortalecido.

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188

legitimação moral e justificação pública vigentes na sociedade como um todo.155

Aqui, a

historiografia e a etnografia têm que ser complementadas pela teoria social e a filosofia

política, de forma que descobertas empíricas generalizadas possam resultar em uma teoria

social normativamente substantiva (UoA: 156-7de; 132-3en) e que Honneth esteja em

condições, assim, de defender-se perante a objeção de que sua teoria é marcada por uma

ingenuidade acrítica com relação às experiências subjetivas de desrespeito e injustiça vividas

pelos atores sociais. Neste sentido, Honneth recorre a autores como Avishai Margalit, Michael

Ignatieff e Tzvetan Todorov, além de fazer a referência, embora vaga, a trabalhos dedicados a

dar continuidade à teoria hegeliana do reconhecimento (entre os quais se pode incluir,

evidentemente, seu livro de 1992). O que é importante, para Honneth, em que pesem as

diferenças entre tais autores, é que todos consideram que a experiência da recusa de

reconhecimento deve estar no centro de um conceito significativo de sofrimento e injustiça

socialmente causados.

3.2.2. Autorrealização

Depois da crítica de Fraser centrada na suposição de que Honneth oscilaria entre

uma concepção autoritária de vida boa e um entendimento ingênuo das experiências

subjetivas dos atores sociais, o autor volta a defender sua noção pluralista de justiça a partir de

uma relação determinada entre história e normatividade. Segundo suas considerações

metateóricas, Honneth sugere tomar a reconstrução inicialmente apenas descritiva da ordem

de reconhecimento da sociedade moderna como o ponto de partida para uma concepção

normativa de justiça, de forma a estabelecer uma ponte entre teoria normativa e análise da

sociedade.156

Para Honneth é importante, portanto, passar da descrição da estrutura

normativa das instituições sociais modernas, cujo objetivo foi delinear os traços dos conflitos

por reconhecimento, para uma avaliação moral das lutas sociais do presente. Essa virada

normativa não é fruto dos requisitos funcionais objetivos de uma forma idealizada de

155

Em Luta por reconhecimento (capítulo 8), o esforço foi vincular sistematicamente tais estudos histórico-

sociológicos a uma teoria moral mediante o foco nas experiências de desrespeito social como a motivação

real para a resistência. Em Redistribuição ou reconhecimento?, Honneth procura clarificar ulteriormente esse

vínculo levando em consideração o discurso moral público acerca das experiências de desrespeito.

156 Já aparece aqui, portanto, a ideia que ganhará uma importância crucial nas obra recente de Honneth: “ein

Brückenschlag zwischen normativer Theorie und Gesellschaftsanalyse” (UoA: 285de).

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existência, nem se apoia meramente no conjunto de interesses empiricamente dados. Para

definir os princípios básicos que vão orientar a ética política, cabe recorrer apenas àquelas

expectativas relativamente estáveis que podemos entender como expressão subjetiva de

imperativos de integração social (UoA: 206de; 174en). Não pode se tratar:

simplesmente da tarefa de explicitar princípios de justiça já existentes, ancorados

socialmente, mas é preciso que se trate também da tentativa incomparavelmente

mais difícil de desenvolver, a partir do conceito plural de justiça, critérios

normativos com a ajuda dos quais se pode criticar os desenvolvimentos atuais à luz

de possibilidades futuras (UoA: 216-7de).

Em sua tréplica a Fraser, assim, Honneth reforça a ideia, proveniente da tradição

hegeliana de esquerda, de que a crítica social tem de estar vinculada a uma instância

intramundana de transcendência. Pelo menos desde Marx, uma premissa central e tacitamente

aceita serve de guia para a teoria crítica: a de que as práticas sociais nas quais se apoia a teoria

têm já de conter em si as estruturas normativas que conformariam uma ordem social

transformada. Diz Honneth:

nessa medida, a instância ou práxis que poderia valer como garantia social de uma

transcendentabilidade da ordem dada teria de ser da mesma ‘racionalidade’ ou

normatividade que, mais tarde, em geral mediante sublevações antecipadas pela

teoria, viria a irromper em larga escala no todo da sociedade (UoA: 276de; 240en).

Os sucessores de Marx empenharam-se, então, em continuar esse processo de

“destranscendentalização” da razão, segundo o qual há sempre, no âmbito das relações sociais

dadas, um elemento prático ou experiencial que é passível de ser visto, na medida em que

possui um “excedente [Überhang] de normas ou princípios organizacionais racionais”, como

momento de uma razão socialmente corporificada capaz de exercer pressão no sentido de sua

própria realização (UoA: 276de; 240en).157

157

Com o declínio do marxismo tradicional, novos modelos de teoria crítica passaram a procurar outras

instâncias, experiências e práticas capazes de fornecer alguma garantia da possibilidade de se superar a

ordem social dada (UoA: 275de; 239en). Honneth identifica quatro alternativas à desintegração o paradigma

da produção que buscam fundar a transcendência na imanência, centradas nos seguintes autores: 1) Cornelius

Castoriadis (e sua valorização da ação criativa e do surgimento de novos valores, apoiada na ideia de que os

impulsos humanos conduzem a uma fantasia de onipotência que tem uma relação recíproca com o

desenvolvimento da autonomia e da criatividade dos sujeitos; Honneth também inclui Hans Joas nesta

primeira alternativa); 2) Herbert Marcuse (para quem os impulsos humanos obedecem ao princípio do prazer

e conduzem à transgressão do princípio da realidade institucionalmente corporificado); 3) Jürgen Habermas

(que defende um intersubjetivismo no qual a interação linguisticamente mediada contém um excedente

normativo de validade que renova energias e motivações que transbordam os limites do sistema); e 4) Michel

Foucault e Judith Butler (que consideram a performance de uma operação subversiva e decodificadora como

a experiência que pode colocar as regras existentes em questão e realizar a crítica). Honneth considera a

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Nessa linha, Honneth esclarece a dinâmica da dimensão transcendente das lutas

sociais moralmente motivadas: mudanças históricas podem ser causadas por inovações a

partir do poder de persuasão de razões morais na medida em que os princípios que regem as

esferas de reconhecimento são voltados racionalmente contra as relações atuais de

reconhecimento. Tal excedente de validade (Geltungsüberhang) permite aos sujeitos

diferentes experiências de injustiça ou desrespeito não justificado (UoA: 180de; 151en). Por

conseguinte, para ser crítica, uma teoria da justiça tem que confrontar esse excedente de

validade dos princípios de reconhecimento com a facticidade de sua interpretação social

dominante, mostrando que existem fatos particulares, até o momento negligenciados, cuja

consideração moral requer uma expansão das esferas de reconhecimento (UoA: 220de; 186-

7en). No entanto, uma prática ou experiência social pode ser considerada veículo de uma

“imanência transcendente” apenas na medida em que é, por um lado, indispensável para a

integração social (imanência) e que aponta, por outro, devido ao seu excedente normativo,

para além de todas as formas dadas de organização social (transcendência). Para Honneth, “A

conexão entre ‘transcendência’ e ‘imanência’ estabelecida por esse modo de falar é,

portanto, mais forte do que Nancy Fraser parece ver: a ‘transcendência’ deve constituir uma

propriedade da própria ‘imanência’, de modo que sempre pertence à facticidade das relações

sociais uma dimensão de demandas excedentes” (UoA: 280-1de; 244en).

O que temos de mais próximo, hoje, do legado da esquerda hegeliana pode ser

encontrado, segundo Honneth, na ideia de “interesse emancipatório” desenvolvida por

Habermas em Conhecimento e interesse. Nesta obra publicada em 1968, trata-se da suposição

de que a espécie humana teria um interesse profundo em reagir, com esforços autorreflexivos

posição de Habermas superior às demais porque, além de ter um poder sociológico explicativo maior, ela

implica atribuir ao potencial moral da comunicação o motor (Antriebsquelle) do progresso social ao mesmo

tempo em que indica sua direção. Entre os continuadores da perspectiva habermasiana Honneth destaca Seyla

Benhabib, Thomas McCarthy e Maeve Cooke (além do próprio Honneth, é claro). Ele vê as teorias de

Castoriadis, Marcuse, Foucault e Butler como dependentes de hipóteses psicanalíticas acerca da ideia de uma

psique humana estruturalmente voltada contra as imposições não razoáveis da sociedade, de modo que a

prática da transgressão é tida como necessária (UoA: 280de; 243en). Habermas, ao contrário, é o único

dentre os autores citados que procurou uma saída do paradigma da produção e do trabalho social não em um

carregamento normativo da psique e das pulsões humanas, mas sim mediante a reabilitação de uma outra

forma de ação – a interação linguisticamente mediada. Para Honneth, contudo, permanece assim uma

ambiguidade que precisa ser superada: afinal, o que abriga doravante as expectativas normativas são as

interações intersubjetivas mesmas ou a linguagem que permite a comunicação? Honneth defende a primeira

opção, tendo em vista que nem tudo o que subjaz normativamente à comunicação humana pode assumir uma

forma linguística. O próprio reconhecimento, por exemplo, está muitas vezes ligado, em primeiro lugar, a

gestos ou formas de expressão puramente corporais (cf. Honneth, 2003 [2001]).

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voltados para o estabelecimento de relações livres de coerção, à experiência de dominação e

de objetificação (Vergegenständlichung) – a qual, apesar de amplamente difundida e sentida

de forma intensa, permanece no mais das vezes intransparente, opaca (undurchschaut) aos

olhos dos agentes sociais (UoA: 276de; 240en). Longe de ser uma utopia, o interesse humano

pela autorrealização está inscrito nas ações e relações dos sujeitos concretos, como expressão

dos imperativos (pressupostos mas não realizados) de integração social – tanto que Honneth o

denomina um interesse “quase transcendental”, que é emancipatório na medida em que busca

desmantelar assimetrias e exclusões sociais. Desse modo, a concepção de justiça de Honneth

vincula-se a uma representação fraca do bem que deve, ademais, estar de acordo

(zusammenpassen) com as condições estruturais da integração social:

Dessa intenção surgiu a sugestão de tratar o fato da integração mediante formas de

reconhecimento recíproco, ao mesmo tempo, como a meta em nome da qual

deveríamos estar interessados na implementação da justiça social; pois aquela

integração social faz tanto mais justiça às expectativas normativas dos membros da

sociedade e se consuma, de modo correspondente, tanto ‘melhor’, quanto mais

fortemente ela inclui cada indivíduo nas relações de reconhecimento e o auxilia na

articulação de sua personalidade (UoA: 301-2de; 262en).

Pode-se considerar, então, que há um progresso moral na sociedade na medida em que a

demanda por reconhecimento social possui um excedente de validade que, no longo prazo,

acarreta um aumento na qualidade da integração social (UoA: 207de; 174-5en).

A ênfase de Honneth na ideia de interesse emancipatório revela que sua

concepção de crítica imanente é mais exigente do que se pode pensar à primeira vista. Não se

trata apenas de encontrar um ponto empírico de referência para basear a justificação imanente

da crítica social – se fosse este o caso, bastaria referir-se a demandas não satisfeitas do

presente e usá-las como evidência social para atestar a necessidade da crítica (UoA: 280de;

243en). O verdadeiro desafio, contudo, reside em mostrar que tais reivindicações não são o

resultado de conflitos contingentes, mas expressam demandas profundas não atendidas dos

sujeitos humanos socializados na modernidade. A ideia de transcendência na imanência

remete, então, a mais do que o fato de que,

em um determinado momento, no interior da realidade social, podem ser

encontrados objetivos ainda não satisfeitos e, nesta medida, transcendentes; trata-

se, antes, de um potencial normativo que emerge renovadamente em toda realidade

social porque está estreitamente fundido com a estrutura dos interesses humanos

(UoA: 280-1de; 244en).

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Como essa concepção de justiça pode assumir um papel crítico na avaliação

normativa da direção tomada pelos conflitos sociais? Honneth já deixou claro que não

considera frutífero ou adequado restringir-se aos objetivos manifestos dos movimentos sociais

influentes no momento; os critérios de avaliação devem, ao contrário, ser vinculados a teses

pertencentes a um quadro teórico compreensivo acerca do desenvolvimento da constituição

moral da sociedade. Aqui entra em cena a concepção normativa de modernidade adotada por

Honneth. Nesse texto, ele sustenta que o princípio normativo dominante nas sociedades

modernas é o tratamento individual igual (individuelle Gleichbehandlung; UoA: 296de;

257en), o qual se expressa nas demandas por individualização e inclusão social.158

Mas ele

afirma também, como visto, que a imbricação entre validade normativa e validade social

apenas pode evitar estar voltada para a preservação do status quo quando se puder mostrar,

com boas razões, que os princípios já válidos e institucionalizados possuem um excedente

constitutivo de normatividade (UoA: 296de; 258en). É preciso, portanto, mostrar que o

princípio do tratamento igual contém tal excedente normativo, isto é, que “a ideia de

igualdade social possui de certa forma um excedente semântico que é desvelado passo a

passo mediante interpretações inovadoras, sem ser determinável de modo integral ou

definitivo” (UoA: 302de; 263en). Já que a mera constatação factual não basta para

fundamentar um ponto de partida moral, faz-se necessário, então, um passo adicional de

justificação. Diz Honneth: “É preciso poder mostrar, a partir do princípio de igualdade como

fato, que ele representa – de acordo com os padrões que definem a qualidade da integração

social – uma forma moralmente mais elevada de reconhecimento” (UoA: 299de; 260en). Para

isso, o autor buscou determinar os critérios de progresso moral que surgem internamente da

estrutura de uma concepção moderna de integração social. Em conformidade com esses

princípios, a integração social moderna aparece como uma ordem de reconhecimento mais

158

Em uma linha argumentativa semelhante àquela desenvolvida por David Miller em Principles of Justice,

Honneth vê a ideia moderna de justiça institucionalizando-se factualmente de três formas distintas: em

consideração ora pelas necessidades individuais, ora pela autonomia individual, ora pelos desempenhos

individuais (respectivamente: Bedürfnisse, Autonomie, Leistungen). A multiplicidade de formas de

institucionalização do princípio normativo da tratamento igual garante assim uma concepção pluralista de

justiça. Chama por isso atenção o fato de Honneth nomear apenas duas formas de manifestação do princípio

da igualdade, e não três. Se a individualização está ligada à estima social e a inclusão social à autonomia

jurídica, falta, aqui como em Luta por reconhecimento, uma consideração do critério de progresso moral no

que diz respeito à esfera das relações afetivas.

No entanto, é preciso destacar que Honneth parece dar de barato aqui uma posição largamente diferente da

que defende oito anos depois, em O direito da liberdade, onde a liberdade aparece (também de forma não

suficientemente justificada) como o princípio moderno por excelência.

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elevada, podendo portanto ser tratada como ponto de partida legítimo para construir uma

concepção de justiça. “De fato”, diz Honneth “parece fazer pleno sentido conceber o

desenvolvimento do conceito de igualdade nos últimos duzentos anos como um processo de

aprendizado no qual, sob a pressão de lutas sociais, ele é saturado passo a passo com

conteúdos novos e dificilmente recusáveis” (UoA: 301de; 261en). Para o autor, aceitar a

legitimidade da ordem social moderna como superior à das formas pré-modernas de

organização societária (como teriam feito também Hegel, Marx e Durkheim, entre outros;

UoA: 218de; 184en) implica reconhecer como legítimos os dois princípios modernos de

fundo, obtidos retrospectivamente em acordo com “uma série de teorias sociais”: o princípio

de individualização, que é o resultado da ampliação das oportunidades dos atores sociais

articularem legitimamente diferentes partes de sua identidade, e o de inclusão social, que se

realiza mediante a inserção crescente de sujeitos no círculo de membros plenos da sociedade

(UoA: 218de; 184-5en). Estes são, portanto, os critérios que definem um aumento na

qualidade da integração social na modernidade.159

Diz Honneth:

Certamente, uma tal crítica apenas pode alcançar uma perspectiva que lhe permita

a distinção entre formas justificadas e injustificadas de particularização se ela tiver

traduzido o critério universal de progresso anteriormente esboçado na semântica

das respectivas esferas de reconhecimento: o que pode valer aqui como uma

demanda legítima, racional, mostra-se na possibilidade de compreender as

consequências de sua implementação possível como um ganho de individualidade

ou inclusão (UoA: 220-1de; 187en).

Mas a contribuição específica de Honneth em meio à série de teorias sociais que

lhe servem de apoio reside na ideia de que a melhor forma para estabelecer uma conexão

interna entre a concepção de justiça e a noção de sociedade que lhe subjaz é partir do estatuto

normativo igual dos princípios do amor, da equidade jurídica e do desempenho. Assim, o

autor entende o desenvolvimento normativo das sociedades modernas como um processo em

que o conteúdo de significado não só do princípio da equidade, mas também a ideia de amor

interpessoal e do mérito individual são sucessivamente enriquecidos sob a pressão de

argumentos carregados de experiência (erfahrungsgesättigter Argumente; UoA: 302de). Com

base na hipótese acerca da socialização moral do indivíduo e da integração moral da

159

Honneth recorre aqui a uma ideia desenvolvida por Maeve Cooke: “For the evaluation of contemporary

social conflicts requires, as Maeve Cooke has recently shown very clearly, a judgment of the normative

potential of particular demands with regard to transformations that promise not only short-term

improvement, but also allow us to expect a lasting rise in the moral level of social integration” (UoA: 217de;

183en). Cf. Cooke, 2000.

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sociedade como fundadas, ambas, no reconhecimento, Honneth pode afirmar, então, que “A

justiça ou o bem-estar de uma sociedade se medem pelo grau de sua capacidade de garantir

condições de reconhecimento recíproco sob as quais a formação pessoal da identidade – e,

com isso, a autorrealização individual – pode ocorrer de modo suficientemente satisfatório”

(UoA: 206de; 174en). A formação da identidade pessoal é tida, portanto, como um

pressuposto para a autorrealização individual (UoA: 209-10de; 177en).

Honneth não recusa, logo, o conteúdo da crítica de Fraser segundo a qual seu

modelo de reconhecimento estaria ligado a uma concepção ética acerca da vida boa. O

problema é que a importância deste aspecto acaba sendo “superdramatizada”, de forma que

Fraser deixa de levar em consideração que se trata antes de tudo de uma concepção fraca do

bem, sem a qual mesmo um autor como John Rawls admite não fazer sentido falar de uma

teoria da justiça (UoA: 297de). Honneth quer partir da ideia, que considera plausível, de que a

justiça (assim como as relações sociais no seu todo) tem um caráter constitutivamente

intersubjetivo. Em sentido próprio, isto significa que se atribui aos sujeitos um interesse geral

na liberdade daqueles de quem eles esperam reconhecimento: “pois aos sujeitos em cujo

interesse relações sociais justas devem ser alcançadas é atribuída uma consciência acerca da

dependência de sua autonomia com relação à autonomia de seus parceiros de interação”

(UoA: 298de; 259en).160

Por outro lado, Honneth questiona se o princípio de paridade de

participação de Fraser não pressupõe também uma versão, fraca que seja, de vida boa. Em

certo sentido, a noção de justiça de ambos tem um ponto comum: a ideia de que “O

desenvolvimento e o exercício da autonomia individual apenas são possíveis onde a todos os

sujeitos estão disponíveis as precondições sociais para realizar suas metas de vida sem

desvantagens injustificadas e da forma mais livre possível” (UoA: 298de). Diferentemente de

Fraser, no entanto, que considera o princípio da paridade de participação como uma derivação

deontológica do conceito de pessoa autônoma, Honneth vê tal formulação da concepção de

justiça como fruto de um desenvolvimento histórico que conduziu à modernização social na

medida em que levou da hierarquia e da exclusividade à igualdade e à inclusão social como

princípios normativos que possibilitam a integração da sociedade.

160

Note-se a semelhança com as concepções de liberdade comunicativa e social, presentes em Sofrimento de

indeterminação e O direito da liberdade e discutidas nos próximos capítulos.

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Ao introduzir implicitamente um critério normativo de progresso moral,

entretanto, Fraser encontra dificuldades para sustentar sua justificativa da paridade de

participação baseada em um procedimentalismo deontológico. Isso porque, de um lado, ao

explicar ela mesma o conteúdo material da justiça social, Fraser antecipa reiteradamente os

resultados do debate público, o que é incompatível com um procedimentalismo em sentido

estrito (UoA: 299-300de; 260-1en). Por outro lado, ela introduz transformações históricas

como elementos explicativos em sua estratégia de justificação, o que não é condizente com o

caráter deontológico que ela pretende conferir à argumentação (UoA: 300de; 261en).

Igualmente conflitante com a deontologia almejada é a dimensão teleológica que

necessariamente adere à ideia de paridade de participação quando esta é vinculada não apenas

às deliberações concernentes à esfera pública democrática, mas também “à vida social e à

realidade social” como um todo. Em resumo: não se pode, de maneira consistente, defender

ao mesmo tempo uma ideia substancial de participação social e um programa procedimental

de justificação o mais econômico (sparsam) possível (UoA: 301de). Ao negar a

fundamentação sociológica e ética da teoria da justiça, a autora fica, segundo Honneth, no

meio do caminho entre um procedimentalismo puro e uma concepção substancial de vida boa:

quando propõe a meta da participação paritária, Fraser não a considera o fruto de uma noção

ética de autorrealização, mas apenas um desenvolvimento das implicações sociais da ideia de

autonomia individual. Essa ideia não é, contudo, unívoca, e tampouco autoevidente. Para

Honneth, “somos informados acerca dos aspectos da vida pública que têm significado para a

realização da autonomia individual apenas mediante uma concepção de bem-estar pessoal,

por mais que fragmentariamente desenvolvida” (UoA: 211de; 179en). Sem considerações

éticas a respeito de uma concepção mínima de autorrealização individual, fundada em nossos

conhecimentos de teoria social e psicologia moral, o critério de participação paritária não tem

como escapar da acusação de ser injustificadamente discricionário. A saída para essa situação

seria, de acordo com Honneth, considerar as funções que o conceito de participação paritária

tem de cumprir em vista dos requisitos sociais da autonomia individual – o que exigiria uma

análise cuidadosa da conexão entre realização da autonomia e formas de interação social

(UoA: 212de; 179en). Honneth considera, desse modo, que a fundamentação sociológica e

ética da teoria da justiça, assumida aqui como ponto de partida fundamental, está também

presente mesmo no liberalismo procedimental, na forma de uma premissa oculta e

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envergonhada (UoA: 210de). Todas as teorias da justiça dependem, portanto, de linhas gerais

antecipatórias de vida boa – trata-se, no entanto, de uma generalização de caráter hipotético,

já que nosso conhecimento a esse respeito nunca está completo, e tampouco pode ser exaurido

seja com descobertas empíricas, seja com deduções teóricas. Afasta-se, assim, a exigência

supostamente inscrita na teoria do reconhecimento de pressupor a existência de uma

concepção de vida boa universalmente aceita: o fato de Honneth reconhecer que os atores

sociais mobilizam, nos conflitos sociais por reconhecimento, o vocabulário ou a linguagem da

autorrealização não implica que haja uma e apenas uma concepção ética de vida boa.161

A

concepção de autorrealização como dependente da formação não coagida da identidade não

determina a priori qual deve ser essa identidade, e por isso pode ser considerada formal o

suficiente para não levantar a suspeita de arbitrariedade de valores que comumente se dirige

aos comunitaristas mais aguerridos.

Cabe destacar, ainda, que a ideia de participação social equitativa ou paritária é

importante para ambos os autores. Para Fraser, no entanto, a participação paritária é o próprio

fim a ser atingido em uma sociedade justa, já que todos os indivíduos têm o direito a

oportunidades iguais de participar na vida social.162

Para Honneth, por outro lado, a

participação social segundo o princípio da igualdade de autonomia entre todos os sujeitos é

um meio (na verdade, um dos meios) para uma formação bem-sucedida da sua identidade, o

qual deve ser garantido porque os atores sociais merecem a quantidade e a qualidade de

reconhecimento social necessárias para poder perseguir seus ideais e buscar sua

autorrealização (UoA: 208de; 175-6en). Como consequência, a ideia de que as relações de

reconhecimento devem ser o ponto de referência para uma concepção de justiça social

fundamenta-se normativamente na medida em que a igualdade social tem como objetivo a

formação da identidade pessoal de todos os membros da sociedade. Honneth parte, desse

161

A estratégia de Simon Thompson para responder à acusação de Fraser de que a teoria honnethiana seria

autoritária é semelhante, e consiste em postular uma distinção entre ideais de vida boa e condições de

autorrealização, de modo que os primeiros referem-se a uma concepção ética abrangente de como a vida

deve ser vivida (posição que é, por isso, sectária), ao passo que as segundas dizem respeito apenas aos

requisitos mínimos que permitem aos sujeitos levarem uma vida “decente” , independentemente de sua

concepção do “bem” (Thompson, 2006: 38-9).

162 Como visto, contudo, há na proposta de Fraser uma certa circularidade: a paridade de participação representa

tanto o télos da justiça, a ser alcançado mediante políticas de redistribuição e reconhecimento, quanto o

discurso por meio do qual é possível reivindicar, na esfera pública, a implementação daquelas políticas. Em

suma: é preciso paridade de participação para obter redistribuição e reconhecimento; e estes são necessários

para obter aquela.

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197

modo, de um início liberal para colocar a qualidade do reconhecimento como o centro da ética

política (por isso Honneth chama tal perspectiva teórica de “liberalismo teleológico”163

). É

preciso, então, generalizar a sociologia moral da formação da identidade pessoal na direção de

uma “teoria igualitária da eticidade” (UoA: 210de; 177-8en). Honneth pretende, assim, ter

alcançado uma concepção que expõe ao mesmo tempo em que justifica os objetivos

normativos em nome dos quais se considera que a busca por justiça social é uma tarefa

política eticamente bem fundamentada.

É preciso reconhecer que Honneth pretende decerto, com suas reflexões de

psicologia moral, chegar a uma justificação “quase transcendental” da crítica na estrutura da

realidade social. No que tange ao conteúdo, sua hipótese é a de que a integração social

depende sempre de formas reguladas de reconhecimento recíproco cujos déficits e

insuficiências vinculam-se continuamente a sentimentos de desrespeito que, por sua vez,

podem funcionar como motor de transformações sociais (UoA: 282de; 245en). Contra a

acusação de Fraser de que sua teoria dependeria de uma concepção forte e a-histórica acerca

da natureza das necessidades humanas, no entanto, é importante ressaltar que o interesse

fundamental no reconhecimento social é sempre moldado pela estrutura elementar dos

princípios normativos institucionalizados em dada sociedade e em determinado momento.

Para Honneth, nas sociedades modernas, trata-se dos princípios do cuidado (amor), da

igualdade (direito) e do desempenho (estima social).

Contudo, uma dimensão mais profunda da objeção de Fraser não atinge apenas a

suposta a-historicidade da concepção de experiência de desrespeito, mas refere-se à própria

possibilidade de se falar de uma “estrutura elementar” dos sentimentos de injustiça de uma

época (UoA: 283de; 246en). Honneth, neste caso, defende que se pode tentar identificar a

experiência de base dos sentimentos de injustiça social como o resultado falível da

generalização de nosso próprio horizonte atual (isto é: moderno) de experiências. Desse

modo, certamente arriscado, Honneth pode chegar à conclusão de que o cerne das percepções

de injustiça reside nos sentimentos de violação (Verletzung) de expectativas de

reconhecimento tidas pelos concernidos como legítimas. Assim, por um lado, o

reconhecimento não é para Honneth apenas um “remédio” mais ou menos circunstancial para 163

Em outro momento, Honneth afirma que defende “uma concepção teleológica de justiça social” (cf. UoA:

213de; 180en).

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198

uma determinada forma de injustiça social (como quer Fraser), mas um pressuposto

intersubjetivo da integração social moderna que se revela para os sujeitos no momento de sua

negação. Por outro lado, é preciso ter em mente que tampouco se trata de uma necessidade

humana transcendental, mas antes apenas de um conjunto de considerações plausíveis, das

quais, entretanto, é difícil discordar sob as condições sociais do presente.164

Como consequência, a proposta de que os processos sociais que impulsionam

reiteradamente para além da ordem social dada sejam vinculados a sentimentos de

humilhação e desrespeito deve ser avaliada segundo seu poder de persuasão social-

antropológico (UoA: 282de; 245en). Se essa ideia é uma generalização empiricamente

fundada de experiências que são, no presente, especialmente proeminentes, objeções a tal

projeto têm que tomar a forma de provas empíricas contrárias. Fraser, de fato, apresenta um

leque de diferentes sentimentos de injustiça (repugnância à crueldade, aversão à vigilância,

etc.). Resta saber, diz Honneth, se elas não poderiam ser subsumidas à ideia de uma violação

de expectativas de reconhecimento suficientemente diferenciada, isto é, se não se poderia

descobrir uma estrutura unitária de sentimentos de desrespeito nesta miríade de expressões de

descontentamento. Evidentemente, Honneth acredita poder responder afirmativamente a estas

questões. Afinal, ele quer mostrar que o conteúdo moral dos conflitos sociais apenas pode ser

acessado com o conceito de reconhecimento mútuo. “Um primeiro passo em direção a esse

objetivo”, diz ele, “foi a tentativa de tornar claro, com apoio em uma série de investigações

recentes, que a experiência de injustiça social se mede pela recusa de um reconhecimento

tido como legítimo” (UoA: 201de; 170en).

É nesse sentido que pode ser compreendida a proposta de Honneth de uma

antropologia formal: ao passo que as expectativas por reconhecimento social variam de

acordo com as transformações estruturais da sociedade, a sua forma – isto é, a própria

necessidade dos atores sociais de serem reconhecidos – permanece. Assim, a dependência

humana de reconhecimento intersubjetivo é sempre moldada pela maneira particular por meio

164

Sobre isso diz Simon Thompson: “According to this way of responding to Fraser’s criticism, it is difficult to

imagine how serious doubt could be cast on any of these propositions. How could one deny that humans are

social creatures who need to enjoy others’ care and love if they are to flourish? This is not to say that these

are in any way transcendental truths about the human condition; they are simply empirical claims about

human beings from which it would be difficult to dissent (Thompson, 2006: 36).

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199

da qual a mútua concessão de reconhecimento é institucionalizada em uma sociedade (UoA:

162-3de; 138en). Nas palavras de Honneth:

Aquilo que os sujeitos podem em determinado momento considerar como as

dimensões de sua personalidade para as quais eles podem esperar legitimamente

um reconhecimento social se mede pelo modo normativo de sua inserção na

sociedade e, com isso, pelo grau de diferenciação de esferas de reconhecimento

(UoA: 214de; 181en).

Por isso, as expectativas de reconhecimento atribuídas aos sujeitos não podem ser

tratadas como uma grandeza antropológica num sentido forte (UoA: 161de; 137en), assim

como não podem ser derivadas de uma teoria antropológica do conceito de pessoa (UoA:

163de; 138en). Ao mesmo tempo, porém, essas expectativas têm um conteúdo histórico

suficientemente determinado para não corresponder a uma categoria “formal” no sentido

liberal e abstrato do termo. Afinal, para Honneth, “toda forma de perspectivismo

metodológico permanece vazia enquanto não estiver ancorada em concepções de teoria

social acerca de como deve ser de fato concebida a reprodução social das sociedades

capitalistas” (UoA: 186de; 156en).165

3.2.3. Integração e reprodução social

Honneth parece, no início de sua réplica, aceitar o debate nos termos formulados

por Nancy Fraser. O que está em disputa, afirma o autor, é determinar “qual das linguagens

teóricas ligadas respectivamente aos dois conceitos [redistribuição ou reconhecimento, MT] é

mais apropriada para, de maneira consistente, reconstruir e ao mesmo tempo justificar

normativamente no quadro de uma teoria crítica da sociedade as demandas políticas do

presente” (UoA: 134de; 112-3en).166

Ao longo texto, no entanto, a dicotomia entre

reconhecimento e redistribuição – bem como aquela entre cultura e economia, entre o material

165

Aos olhos de Honneth, a diferença fundamental entre Fraser e Habermas reside, a este respeito, em que a

teoria habermasiana repousa sobre um robusto edifício teórico-social – mesmo que Honneth discorde de seus

alicerces –, ao passo que Fraser rejeita apoiar seu dualismo sobre considerações substanciais em termos de

teoria social. Note-se também que, de modo geral, Fraser não se ampara em investigações teóricas ou

empíricas sobre os assuntos tratados, limitando-se a fazer referência a um determinado senso comum teórico-

político a respeito das lutas travadas pelos movimentos sociais contemporâneos.

166 Também o título escolhido para o livro e mesmo a introdução ao debate, assinada por ambos os autores, estão

em consonância com a perspectiva dualista de Fraser, o que certamente contribuiu para uma difundida

incompreensão da posição teórica de Honneth, acusado com frequência de preterir os conflitos econômicos

distributivos em favor de lutas “culturais” pelo reconhecimento das identidades coletivas.

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e o simbólico, e outras formulações do par base e superestrutura – não é apenas abandonada,

mas também questionada de modo explícito pelo autor. Tanto que, mais adiante, Honneth

reformula a colocação do problema, afirmando que o seu objetivo reside em definir os

instrumentos conceituais que podem ser usados por uma teoria social para determinar o que,

na realidade social, é experienciado pelos sujeitos como injusto (UoA: 149de; 126en),

independentemente de sua categorização enquanto injustiças materiais ou simbólicas.

Assim, no que diz respeito à crítica de que não daria conta dos conflitos

distributivos, Honneth sustenta que a teoria crítica apenas pode evitar uma dicotomia

teoricamente intransponível entre o material e o simbólico ao se orientar por um quadro

conceitual unificado (em termos de reconhecimento, por exemplo) e, ao mesmo tempo,

suficientemente diferenciado (em termos das dimensões da personalidade dos sujeitos a serem

reconhecidas). Em lugar de uma contraposição, o autor defende que as experiências de

injustiça, assim como as reações a elas, sejam concebidas ao longo de um continuum de

formas de desrespeito cujas diferenças são determinadas por quais propriedades ou

capacidades os afetados tomam como injustificadamente desrespeitadas (UoA: 160de; 135-

6en). Para Honneth, a distinção entre desvantagem econômica e degradação cultural é

fenomenologicamente secundária porque diz respeito apenas a uma especificação ulterior da

perspectiva sob a qual os sujeitos experienciam o desrespeito e a humilhação social. Mais do

que considerada secundária, tal distinção é manifestamente desaconselhada por Honneth,

apoiando-se em pesquisas cujos resultados mostraram que a esfera econômica também está

inscrita em um (ou mais de um) horizonte cultural de valor:

Nessa medida, também com respeito à ordem econômica capitalista – como

mostraram não apenas os estudos feministas sobre o papel constitutivo do dualismo

de gênero, mas também antes disso já uma série de antropólogos – é pouco

recomendável um isolamento teórico de ações ou relações econômicas sistêmicas

com respeito a variáveis culturais de influência (UoA: 185de; 156en).167

Nessa mesma linha, Honneth recorre mais uma vez aos estudos culturais para

contestar a ideia, defendida por Fraser, bem como por Charles Taylor, de que as lutas por

reconhecimento são uma novidade histórica. Como vimos, autores como E. P. Thompson

(1971) e Barrington Moore (1978) procuraram justamente mostrar ser falso considerar que os

167

Honneth refere-se aqui, no campo da antropologia, a Marshall Sahlins (1976). Não há nenhuma referência

aos estudos feministas que Honneth tem em mente.

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movimentos sociais de protesto tradicionais da classe trabalhadora não reivindicavam

reconhecimento social para suas orientações de valor e suas formas de vida. A predominância

de questões de identidade na teoria e na prática políticas do presente não se deve, portanto, à

emergência de movimentos sociais com demandas que inexistiam anteriormente, mas sim a

uma reinterpretação teórico-categorial acerca da ideia de lutas sociais de modo geral: “O que

atualmente nos induz ou mesmo nos obriga a uma tal revisão categorial são os resultados de

pesquisa reunidos neste ínterim sobre as fontes morais das quais se nutre a experiência do

mal-estar social na sociedade” (UoA: 157de).168

As lutas por reconhecimento não são,

portanto, uma tendência que surgiu com os movimentos sociais emergentes no último quarto

do século XX, mas sim a gramática profunda de todas as formas modernas de conflitos

sociais. Assim, para Honneth, a progressiva separação entre três formas de reconhecimento (e,

correspondentemente, de desrespeito) como motivação moral para os conflitos sociais –

inclusive os distributivos – coincide com o estabelecimento da ordem econômica e social

moderna.

Nesse momento, Honneth aproveita para apontar mudanças na caracterização dos

padrões de reconhecimento que considera necessárias para evitar alguns dos problemas de

Luta por reconhecimento. Na esfera primária das relações afetivas de amor e cuidado, na qual

os indivíduos são reconhecidos como seres carentes, Honneth retifica a tese defendida em

Luta por reconhecimento de que o princípio do amor não seria historicamente variável e não

admitiria, portanto, um potencial de desenvolvimento normativo: “Nesse meio tempo me

convenci de que também no amor está inscrito um excedente de validade a ser desdobrado

mediante conflitos e lutas (interpretativos)” (UoA: nota 35, 170de; 144en).169

Assim, por

exemplo, é na passagem para a modernidade que se observa a “criação” da infância como fase

particular da vida dos sujeitos, bem como da instituição burguesa do amor-casamento (UoA:

164de; 139en). Já o potencial normativo de desenvolvimento desse padrão de reconhecimento

pode ser encontrado na intensificação dos processos mediante os quais a relações

intersubjetivas primárias “são gradualmente liberadas de pressões comportamentais

168

Este papel não é exercido apenas pelos autores dos estudos culturais, mas também pelos já mencionados

(ainda que não explicitamente nomeados) estudos sobre as consequências do colonialismo e da opressão das

mulheres.

169 Cf. Honneth (2000 [1998] e 2000 [1995]).

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econômicas e sociais e, assim, se abrem para o sentimento de afeição mútua” (UoA: 164de;

139en).

Não há grandes alterações, por outro lado, no que tange ao princípio do

reconhecimento jurídico da autonomia individual igual dos sujeitos. Assim como em Luta por

reconhecimento, Honneth sustenta aqui que, na passagem para a modernidade, o conceito de

honra é cindido, dando origem de um lado ao reconhecimento jurídico, e de outro à estima

social. O potencial normativo ou excedente de validade da esfera legal diz respeito à sua

democratização, isto é, à inclusão de um número crescente de atores sociais no círculo dos

membros autônomos – e, nessa medida, igualmente reconhecidos como pessoas legais – da

sociedade (UoA: 166de; 141en).

Uma mudança significativa é implementada, por sua vez, na terceira esfera de

reconhecimento. Inicialmente, também aqui a atribuição de estima social aparece, a partir da

modernidade e com o declínio do princípio da honra, como desvinculada não apenas da

origem e das posses dos indivíduos, mas também de sua autonomia jurídica. Contudo,

Honneth substitui o conceito de solidariedade, presente em Luta por reconhecimento, pela

ideia de desempenho individual,170

de modo que o critério de atribuição de estima passa a ser

a performance do indivíduo no quadro da estrutura da divisão social do trabalho

industrialmente organizado (UoA: 166de; 140en). É necessária, diz o autor, “uma

consideração daqueles valores culturais que exercem influência acerca da respectiva

interpretação do princípio de desempenho na constituição institucional da esfera econômica

e lhe dão a cada vez uma configuração especial na forma de uma divisão do trabalho e de

uma distribuição de status” (UoA: 185de; 155-6en). Assim como o princípio da honra foi (ao

menos potencialmente) democratizado no campo do reconhecimento jurídico, aqui ele pode

ser meritocratizado (UoA: 166de; 141en). Com a modernidade, tem-se então uma “revolução

na ordem moral da sociedade” (UoA: 165de; 140en) que abre as relações primárias para o

princípio do afeto mútuo e desvincula o reconhecimento jurídico da estima social, de modo

que os indivíduos aprendem a referir-se a si mesmos segundo três padrões diferentes de

autorrelações práticas.

170

A palavra alemã Leistung é de difícil tradução para o português, podendo abarcar o sentido não só de

desempenho, mas também de realização, performance, rendimento, mérito e contribuição.

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203

A discussão em torno do princípio do desempenho é especialmente importante

para nossos propósitos porque toca diretamente na questão da integração social. Contra

Habermas e Niklas Luhmann, Honneth defende a ideia de que o capitalismo não é um sistema

econômico livre de normas: afinal, os quadros classificatórios e esquemas de avaliação

profundamente arraigados na cultura da sociedade burguesa-capitalista influenciam não

apenas quais são as atividades que podem ser profissionalizadas e denominadas “trabalho”,

mas também a medida de retorno social (em termos monetários e de status) que cabe a cada

atividade laboral. Assim, a legitimidade das ordens de distribuição depende primariamente

das visões “culturais” da contribuição de diferentes sujeitos, grupos ou estratos sociais para a

reprodução social (UoA: 183de; 153-4en).171

Honneth reconhece, entretanto, que uma

dificuldade adicional emerge quando se trata de reconstruir (nachvollziehen) o potencial

normativo do princípio de reconhecimento do desempenho, vinculado à medida de

contribuição de cada indivíduo para a reprodução social. Como se poderia falar em um

excedente de validade que se redime gradualmente no contexto de um princípio normativo de

reconhecimento que apenas pode ser socialmente implementado mediante interpretações

particulares apoiadas em juízos de valor? (wertgestützte Interpretationen, UoA: 303de). O

autor tem de admitir que a avaliação do desempenho tem um componente ideológico

relativamente forte, tanto que esse padrão normativo no mais das vezes gira em torno da

atividade produtiva do indivíduo burguês, economicamente independente e do sexo

masculino. O princípio individualizado de reconhecimento do desempenho é, portanto, uma

fonte ambígua de legitimidade, já que, mesmo que leve ao abandono da hierarquia pré-

moderna de status e postule a necessidade de se estimar todos os membros da sociedade de

acordo com suas realizações, a própria definição do que é uma realização já é algo unilateral

(UoA: 174de; 147-8en).

Assim, a hierarquização de valores a partir de uma referência normativa e de um

padrão pré-definido pode redundar em uma violência não apenas simbólica, mas também

material, uma vez que “quais e quantos recursos os membros individuais da sociedade

legitimamente têm, cada um, à sua disposição podem se medir pela estruturação unilateral,

ideológica do valor de determinadas realizações” (UoA: 166-7de; 141en). O princípio

171

Desse modo, o vínculo entre hierarquia de status e distribuição de recursos materiais é mais orgânico do que

a relação externa entre superestrutura e base, entre “ideologia” e “realidade objetiva”.

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individualista de desempenho conforma, portanto, o discurso normativo que permite justificar

a distribuição desigual de bens e oportunidades. O que importa ressaltar, entretanto, é que os

processos econômicos distributivos são guiados por valores, e que a interpretação destes está

sempre em disputa, aberta para correções e reformulações. A proposta de Honneth para lidar

com essa questão de forma a não impor uma determinada concepção de vida boa aos sujeitos

concernidos consiste em partir de processos negativos de superação (Überwindung) de

horizontes unilaterais de interpretação, em lugar de processos positivos de aprendizado

(“Bereicherung”). O progresso moral com o qual podemos contar de forma fragmentária

significa, aqui, examinar (hinterfragen) de forma crítica, argumentativa e plena de

consequências os valores éticos que permitem um reconhecimento extremamente particular (e

portanto restrito) dos desempenhos de reprodução e integração social (UoA: 303de; 264en).

Para levar a cabo uma crítica desse tipo, é necessário pôr em operação uma

imaginação categorial com cuja ajuda é possível mostrar por que determinadas atividades, até

então ignoradas, devem ser alçadas à categoria de “trabalho” e dotadas do reconhecimento

social correspondente.172

Qualquer atividade social considerada injustamente menosprezada

tem que ser, deste modo, apresentada sob uma nova luz, em um horizonte transformado de

valores, para mostrar que o sistema vigente de avaliação é unilateral e restritivo, e que

portanto a hierarquia ou ordem estabelecida de distribuição não possui legitimidade suficiente

de acordo com seus próprios princípios de fundo, mais gerais (UoA: 184de; 154-5en). Diz

Honneth:

o que motiva indivíduos ou grupos a questionar a ordem social dominante e se

engajar na resistência prática é a convicção moral de que os princípios de

reconhecimento tidos como legítimos são aplicados, com respeito à sua própria

condição ou sua respectiva particularização, de modo incorreto ou insuficiente

(UoA: 187de; 157en).173

A questão da estima adequada para as mais diversas atividades sociais compõe a

própria matéria (ou uma parte significativa dela, ao menos) dos conflitos quotidianos na

172

Tal inovação conceitual não é, contudo, matéria apenas da filosofia, já que os próprios concernidos também

sempre fizeram um uso inovador da ferramenta da crítica conceitual (UoA: 303-4de; 264en).

173 Há uma ambivalência no texto acerca de como se dão os conflitos em torno da interpretação da hierarquia de

valores que organiza a medida de reconhecimento que cabe a cada atividade de trabalho: trata-se de mostrar

que determinado princípio normativo não está sendo cumprido de forma adequada (aplicação falha de

princípios legítimos), ou de defender a consolidação de novos princípios normativos adquiridos mediante o

exercício de uma imaginação categorial? A questão reaparece e é central em O direito da liberdade,

especialmente na discussão sobre a categoria da reconstrução normativa (cf. Capítulos 5 e 6).

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reprodução da divisão capitalista do trabalho porque o resultado desses conflitos

interpretativos influencia, de maneira direta ou indireta, a redistribuição de bens. Isto significa

que questões “culturais” (morais, normativas) são relevantes para todas as lutas por

reconhecimento na medida em que fornecem o quadro de valores que permite interpretar

necessidades, reivindicações e habilidades (UoA: 187-8de; 158en). Assim, também no caso

do princípio de desempenho a experiência de desrespeito pode ser considerada a raiz de lutas

sociais moralmente motivadas, as quais são levadas a cabo pela reivindicação mediada

argumentativamente do reconhecimento da singularidade de cada contribuição individual

para a integração social, ou, nos termos do debate em torno da identity politics, o

reconhecimento da diferença.

Está claro, logo, que Honneth conecta os conflitos distributivos, por um lado, à

disputa pela interpretação e avaliação do princípio do desempenho. Mas esta é apenas parte do

quadro institucional dos princípios de distribuição de recursos na sociedade capitalista. As

lutas distributivas são, na realidade, duplas: podem se dar tanto por meio de esforços para

reavaliar as definições hegemônicas de desempenho ou contribuição quanto mediante a

mobilização de argumentos legais, vinculados ao princípio de igualdade. Nas palavras do

autor: “Lutas distributivas, portanto, quando não seguem o caminho de uma mobilização por

direitos sociais, são confrontos de definição acerca da legitimidade da aplicação do princípio

do desempenho praticada a cada vez” (UoA: 183de; 154en). Assim, diz Honneth, todas as

lutas por reconhecimento se desdobram em uma “dialética moral entre o universal e o

particular” (UoA: 180-1de).174

Há espaço na teoria da luta por reconhecimento, portanto, para

a diferença assim como para a igualdade. Os atores sociais podem lutar por mais

reconhecimento e, logo, por mais recursos referindo-se ao princípio da igualdade legal

(momento universal) ou à valorização de suas realizações como específicas e merecedoras de

um grau maior de estima (momento particular).

Desse modo, Honneth procura mostrar que se deve evitar tomar as lutas por

redistribuição como dadas de maneira não problemática, como se fossem a projeção imediata

174

Mais adiante, Honneth afirma que esta dialética pode ser colocada em movimento em cada esfera de

reconhecimento “na medida em que, sob o apelo do princípio universal de reconhecimento (amor, direito,

desempenho), é reclamado um ponto de vista particular (necessidade, circunstância de vida, contribuição)

[Bedürfnis, Lebenslage, Beitrag] que ainda não encontrou consideração adequada sob as condições de

aplicação praticadas até o momento” (UoA: 220de; 186en).

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de princípios não disputados de justiça distributiva sobre a realidade social. Não é evidente,

ademais, o papel motivacional de tais considerações de teoria distributiva.175

Em acordo com

sua perspectiva geral, Honneth considera que é preciso problematizar e reconstruir o conceito

de conflitos distributivos de modo que ele não corresponda unicamente ao nível estatal de

medidas redistributivas, permitindo portanto levar em conta espaços não institucionalizados

nos quais têm início esforços individuais e coletivos para deslegitimar o padrão distributivo

dominante (UoA: 179de; 151en). Nesse contexto, a ideia de luta social apenas alcança seu

sentido profundo quando não se resume a debates parlamentares sobre políticas de impostos

ou à negociação pública de salários, por exemplo, mas estende-se àqueles conflitos

quotidianos em que os afetados procuram, mediante seus próprios esforços simbólicos e

práticos, alterar uma ordem distributiva que eles sentem ou percebem (empfinden) como

injusta. Para o autor, a experiência do desrespeito é a base motivacional de todos os conflitos

sociais – sejam eles de caráter “econômico” ou “cultural”.

Por tudo isso, Honneth fala em um monismo moral (no nível normativo), e não

cultural (no nível teórico-social, como entende Fraser): uma vez que as instituições centrais

das sociedades capitalistas precisam ser racionalmente legitimadas do ponto de vista de seus

membros por meio de princípios generalizáveis de reconhecimento recíproco, a sua

reprodução depende sempre da existência e manutenção de um consenso moral mínimo,

conflituosamente alcançado e que serve de base para as expectativas normativas e para a

motivação para novos conflitos. A integração moral da sociedade tem, assim, primazia com

relação aos demais mecanismos de integração (UoA: 186de; 156-7en).

*

175

A centralidade que Honneth confere à ideia de motivação moral dos conflitos sociais não ignora que existem,

com a passagem para a modernidade, diversos novos padrões de comunicação; mas implica admitir que

apenas as três relações distinguidas pelo autor possuem princípios normativos internos que estabelecem

diferentes formas de reconhecimento mútuo, isto é, modelos normativamente substantivos de interação que

não podem ser praticados sem que seus princípios subjacentes sejam minimamente respeitados. Somente as

formas de relação fundadas sobre o reconhecimento mútuo contribuem para o estabelecimento de uma

autorrelação prática positiva dos sujeitos consigo mesmos, a partir de uma participação ativa nas relações de

interação com os demais membros da sociedade. As transformações que acompanham a modernização da

sociedade – especialmente a diferenciação do reconhecimento recíproco em três padrões conectados, porém

distintos – permitem aos atores sociais “ampliar experimentalmente seus horizontes de experiência” e, desse

modo, aumentam as possibilidades de se alcançar uma maior individualização (UoA: 143de).

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Por um lado, após as objeções levantadas por Fraser acerca da ausência de

considerações mais substantivas acerca dos mecanismos sistêmicos de integração da

sociedade, Honneth reconhece que de fato seria necessário, para dar conta dos processos

atuais de desenvolvimento do capitalismo de modo teórico-explicativo, determinar não apenas

a relação entre integração social e integração sistêmica, mas também os papéis assumidos pela

economia, pelo direito e pela cultura nas transformações estruturais das sociedades do tempo

presente (UoA: 285de; 248en). Só assim ele poderia escapar da acusação de tentar explicar o

desenvolvimento do capitalismo contemporâneo apenas do ponto de vista normativo de seus

participantes, sem consideração pelos imperativos econômicos de valorização do capital.

Honneth, contudo, diverge da descrição que dele faz Fraser, isto é, sua caracterização como

um teórico ingênuo, que ignora a existência dos imperativos econômicos e sua importância

para a reprodução do capital. Isso porque, ao reconstruir a ordem de reconhecimento das

sociedades capitalistas modernas, sua intenção não é explicativa; ele não tem o propósito de

formar um quadro categorial básico para elucidar adequadamente todos os processos de

desenvolvimento que ocorrem nessas sociedades. Seu objetivo é muito mais modesto, diz o

autor, na medida em que se restringe a revelar as coerções morais (moralische Zwänge)

subjacentes à interação social em diversos níveis da sociedade capitalista (UoA: 286de;

249en). Como visto, a ideia geral aqui refere-se ao fato de que a inserção (Einbeziehung)

social dos membros da sociedade se dá sempre sob a pressão normativa dos mecanismos de

reconhecimento mútuo, mediante os quais os indivíduos aprendem a se afirmar

intersubjetivamente com respeito a aspectos particulares e fundamentais de sua personalidade.

Desse modo, a integração social está sempre sujeita às coerções normativas que conformam a

ordem de reconhecimento de uma sociedade (UoA: 287de; 249en), e este é o foco da atenção

de Honneth em seu texto. Diz o autor:

os princípios institucionalizados que, tomados em conjunto, estabelecem sob quais

aspectos os indivíduos podem contar com reconhecimento social ou alcançar

‘existência social’ (Judith Butler) representam perspectivas morais de valor ou

princípios gerais aos quais se submete a interação entre os membros da sociedade.

Nessa medida, à tentativa de reconstruir a ordem de reconhecimento da sociedade

moderna e capitalista vinculei apenas a intenção de revelar aqueles princípios

normativos que, aqui, estruturam em grande medida de dentro para fora os

processos de comunicação social (UoA: 287de; 249-50en).

Vale então também para a integração da sociedade sob o capitalismo moderno o

que vale para os demais ordenamentos sociais, isto é: em todos os casos, o escopo disponível

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para as representações sociais de caráter moral é limitado pelos princípios que regulam, em

dado momento, a legitimidade de demandas por reconhecimento social. Este conceito não é

suficiente para esclarecer e explicar a dinâmica dos processos de desenvolvimento do

capitalismo contemporâneo, mas isto não é um problema para Honneth uma vez que seu

objetivo reside apenas em “tornar claras as restrições normativas nas quais tais processos

estão inscritos na medida em que os sujeitos lhes defrontam com determinadas expectativas

de reconhecimento” (UoA: 287-8de; 250en).176

Em sua análise, assim, Honneth confere uma ampla primazia à integração social

(ou “moral”) sobre a integração sistêmica da sociedade. Mesmo transformações estruturais na

esfera econômica não podem ser consideradas, segundo seu ponto de vista,

independentemente das expectativas normativas dos concernidos, contando, ao menos, com o

seu consentimento tácito. Em todas as esferas, a econômica inclusive, a integração social

ocorre na forma de um processo simbolicamente mediado de negociação acerca da

interpretação de princípios normativos subjacentes (UoA: 288de; 250-1en). De acordo com o

quadro teórico desenvolvido por Honneth, e contra qualquer tipo de funcionalismo, então, a

legitimidade das atividades de mercado depende – do ponto de vista dos participantes – tanto

da conformidade com certas normas legais (igualitárias) historicamente conquistadas quanto

do cumprimento de princípios (específicos) de desempenho também alcançados mediante

lutas sociais historicamente determinadas.

Nesse sentido, ademais, Honneth critica a visão funcionalista que Fraser tem do

direito na medida em que o considera meramente como um instrumento (“neutro”) para

garantir conquistas alcançadas em outras esferas. Acontece, diz Honneth, que os direitos

subjetivos já expressam a ideia (normativa) de que nos consideramos reciprocamente como

membros autônomos de uma comunidade legal democrática, e, como consequência, sua 176

Em acordo com Fraser, é preciso destacar, Honneth considera que a percepção de injustiças sociais é sempre

perpassada e conformada por discursos públicos regidos pelo universo semântico em operação na sociedade.

Contra Fraser, porém, ele julga que tais discursos não surgem e se modificam como que fortuitamente, mas

podem ser conectados a um repertório de princípios normativos profundos que compõem o horizonte

linguístico dos pensamentos e sentimentos de caráter moral em dada formação social. O conceito de “ordem

de reconhecimento” refere-se, então, a essa camada de fundo composta pela gramática historicamente

específica da justiça e das injustiças sociais (UoA: 287de; 250en). Diz o autor: “Os sentimentos de injustiça

que podem ser provocados pelas transformações estruturais mais recentes no mundo do trabalho

assalariado são cunhados semanticamente pelos princípios de reconhecimento que regem a esfera da divisão

social do trabalho na forma de interpretações historicamente conquistadas [erkämpft]” (UoA: 288de;

250en).

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concessão ou negação têm um papel decisivo na percepção (Empfinden) subjetiva do estatuto

de cada indivíduo na sociedade (UoA: 289de; 252en). Assim, contra a noção, que considera

fictícia, do homo economicus, Honneth defende que mesmo que se aceitasse a problemática

ideia de que os imperativos de valorização capitalista não são mediados simbólica e

axiologicamente, seria preciso admitir ao menos as limitações normativas oriundas das

garantias jurídicas obtidas mediante processos sociais de lutas políticas e movimentos de

resistência. As expectativas dos concernidos se misturam “de baixo para cima”, diz o autor,

com processos econômicos supostamente anônimos, livres de normas, o que significa que eles

(os concernidos) podem buscar fazer valer tais expectativas porque suas demandas por

reconhecimento social já estão internamente institucionalizadas nas respectivas regulações

legais (UoA: 290de; 252-3en).177

Honneth propõe, então, que se analise a estrutura básica da sociedade em um

quadro teórico-conceitual que permita trazer à vista, se possível, pontos de partida potenciais

(potentielle Ansatzpunkte) para aprimoramentos normativos, o que apenas pode ser feito

quando se destaca categorialmente o substrato das esferas institucionalizadas que pode ser

entendido como resultado de um processo de comunicação ao mesmo tempo conflituoso e

mediado por normas (UoA: 292de; 254en). Assim, por exemplo, a desregulação do mercado

de trabalho é experienciada pelos sujeitos concernidos como uma perda de direitos

(Entrechtung), o que indica que há, sim, normas morais em ação no mercado. O princípio

econômico da maximização do lucro não pode, por conseguinte, ser compreendido como um

requerimento funcional que faz surgir, por si só, toda uma esfera autônoma de ação social:

ele apenas se torna um tal ‘subsistema’ de ação social quando encontra aceitação

normativa suficiente para, com a ajuda de regulações jurídicas, formar uma

instituição na qual uma complexa rede de ações individuais são coordenadas de

modo aparentemente automático pela interação de considerações meramente

utilitárias (UoA: 294de; 255-6en).

Torna-se aqui manifesta uma ambiguidade do posicionamento honnethiano que

não pode ser ignorada: no fim das contas, há espaço na teoria da luta por reconhecimento para

a integração sistêmica? O que significa dizer que a coordenação das ações individuais por

177

A própria Fraser argumenta nesse sentido quando afirma que todos os processos sociais podem ser

interpretados segundo um dos dois princípios de justiça por ela identificados – a redistribuição (processos

“econômicos”) ou o reconhecimento (processos “culturais”). Ora, diz Honneth, esse posicionamento é

incompatível com a ideia, proveniente da teoria de sistemas e adotada por Fraser, sobre o caráter anônimo e

livre de normas da integração sistêmica.

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considerações utilitárias é aparentemente automática? Ao final do texto, Honneth reconhece

que, do seu ponto de vista, a própria oposição entre integração sistêmica e social é

problemática, pois mesmo os meios socialmente generalizados como o dinheiro e o poder

político – que coordenam certas interações humanas de modo “relativamente inquestionado”

– dependem, para funcionar adequadamente, da confiança dos atores sociais em sua

legitimidade, cuja força pode a qualquer momento se ver diminuída ou mesmo desmoronar

(UoA: 294de; 255en). Assim, ainda quando o ponto de vista da lucratividade financeira

parece ter ganhado primazia sobre todos os demais interesses e propósitos, os processos

econômicos continuam, no entanto, perpassados por um mínimo de considerações normativas.

Isto significa que, apesar de afirmar o contrário, Honneth demonstra ter a

intenção, com sua análise da ordem de reconhecimento das sociedades capitalistas, de

contribuir para explicar o funcionamento de mecanismos econômicos. O autor constata que

esses mecanismos estão também factualmente inscritos na ordem social estruturada

normativamente: “sem a vinculação retrospectiva a normas generalizadas, hábitos

estabelecidos de ação e redes de sociabilidade, não seria de modo algum possível garantir a

medida de cooperação, segurança e inovação que é necessária para uma alocação efetiva de

recursos econômicos” (UoA: 294de; 256en).178

Tais elementos de restrição social do mercado

devem necessariamente, diz Honneth, exercer o papel de variáveis independentes na tentativa

de esclarecer os processos econômicos de desenvolvimento. No limite, portanto, o sistema

capitalista não apenas é circunscrito externamente por orientações normativas de valor – sua

eficácia depende internamente de orientações deste tipo. Fraser tem razão, portanto, quando o

acusa de passar da ideia (que ela considera válida) de que a economia capitalista não é um

sistema puramente técnico para a proposição de que “it has no economic dynamics worth

analyzing in their own right” (Fraser, 2003b: 216) – ideia que é certamente mais difícil de

justificar (para Fraser, ela é indefensável).

Honneth reconhece que seria necessário desenvolver suas sucintas reflexões para

mostrar como a ideia do primado da integração moral pode ser usada para fins explicativos,

de modo a permitir uma interpretação dos processos atuais de acelerada mercantilização nas

178

Aqui Honneth parece querer dizer que a integração social ou moral não diz respeito apenas ao ponto de vista

de seus membros, mas também ao do observador que procura explicar o funcionamento estrutural do

capitalismo contemporâneo.

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sociedades capitalistas levando adequadamente em conta os requisitos da integração

normativa da sociedade (UoA: 293de; 255en). O texto termina, entretanto, sem que o autor

possa formular uma abordagem explicativa alternativa, capaz de tomar o lugar de elucidações

funcionalistas acerca da dinâmica da esfera econômica.

*

Honneth procura defender seu projeto teórico da acusação de reducionismo

culturalista apontando que todas as lutas são moralmente motivadas, inclusive as distributivas,

e que as lutas por reconhecimento não são, portanto, novidades históricas; que seu monismo é

moral, e não cultural, e diz respeito ao nível normativo, e não ao da teoria social; que a

distribuição obedece dois princípios: o da autonomia igual e o do desempenho particular, cuja

interpretação está sempre em disputa; que seu objetivo é apontar as coerções morais das

interações sociais, e não explicar os mecanismos econômicos em funcionamento no

capitalismo contemporâneo (ideia que ele parece, no entanto, abandonar no final da segunda

resposta); e que a própria distinção entre o material ou econômico e o cultural ou simbólico

não é factível, bem como aquela entre integração sistêmica e social.179

A imputação de um reducionismo culturalista à luta por reconhecimento revela

que Fraser limita a teoria honnethiana ao campo das identity politics e não a diferencia

suficientemente, por isso, do modelo de reconhecimento de autores como Charles Taylor. O

tipo de reconhecimento mobilizado no discurso das políticas de identidade corresponde

somente a uma das formas diferenciadas por Honneth – o reconhecimento como estima social,

concedido em razão daquelas propriedades e contribuições particulares de membros

individuais da sociedade. Ao negligenciar as outras dimensões da categoria honnethiana do

reconhecimento (especialmente a dimensão jurídica, que garante a igualdade dos atores

sociais independentemente de suas características e realizações específicas), Fraser acaba

projetando, em sua interpretação, o reducionismo que atribui a Honneth.

179

Segundo esse ponto de vista, portanto, o questionamento de Fraser é, desde o início, colocado de forma

inadequada. Enquanto ela defende que é preciso estabelecer relação equilibrada – de acordo com o critério

fornecido pelo princípio normativo da paridade de participação – entre economia e cultura, Honneth tem que

rejeitar, de saída, a própria cisão entre um polo material e outro simbólico.

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212

3.3. Balanço do debate: rupturas e continuidades

Tendo sido apresentados os questionamentos de Fraser à teoria da luta por

reconhecimento e as respostas a eles formuladas por Honneth, cabe agora fazer um balanço do

debate e avaliar o que muda e o que fica com relação ao primeiro modelo crítico honnethiano.

1) A primeira crítica de Fraser recai precisamente sobre o cerne da teoria

honnethiana acerca da gramática moral dos conflitos sociais. É como se, em uma tentativa de

superar as deficiências de um foco unilateral nos processos funcionais que garantem a

reprodução das estruturas sociais – o chamado déficit sociológico, abordado no primeiro

capítulo desta tese –, Honneth houvesse atribuído um estatuto primordial à perspectiva do

participante (o senso de injustiça, a experiência de desrespeito, a expectativa de ser

reconhecido, em suma: a motivação moral das lutas sociais), de modo tão unilateral quanto as

teorias estrutural-funcionalistas às quais ele procurou se contrapor.

Em sua resposta, Honneth reforça a posição teórica de Luta por reconhecimento,

argumentando que uma fenomenologia das experiências subjetivas de injustiça é inevitável se

se quer compreender as metas normativas presentes não apenas no discurso de movimentos

sociais emancipatórios, mas também em formas menos articuladas de resistência. O autor

esclarece aqui que levar as experiências dos atores sociais em consideração não significa,

entretanto, aceitar prima facie suas reivindicações normativas, como Fraser tende a afirmar.

Honneth insiste que tais reivindicações e protestos precisam ser tratados judiciosamente, já

que eles não são nem transparentes nem unívocos, ou, como afirma em “Integridade e

desrespeito”: as reações afetivas negativas dos atores sociais não revelam automaticamente,

mas apenas potencialmente a injustiça que é fruto do desrespeito (IuM: 1054de; 199-200en).

É por isso que, no contexto da teoria crítica, a filosofia deve manter uma estreita relação não

apenas com outras disciplinas das ciências sociais, mas também com a história e a crítica da

arte, as quais detêm uma sensibilidade bastante aguçada para apreender determinadas formas

de sofrimento e suas causas.

Note-se ainda que, para Honneth, a teoria da justiça pode ser concebida, no

contexto crítico, como uma articulação dos objetivos de seus destinatários que são passíveis

de justificação. A tarefa da teoria não consiste apenas, assim, em tornar visível uma camada

profunda dos conflitos moralmente motivados (UoA: 161de). Para além disso, “uma teoria

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crítica da sociedade desdobra sua força normativa no presente na medida em que é capaz de

articular de modo advocatório tais experiências” (UoA: 304de; 264en), isto é, na medida em

que procura conceitualizar reflexivamente os movimentos emancipatórios da época e

trabalhar perspectivamente no sentido de realizar seus objetivos. Para isso, é preciso não

apenas uma interpretação sociologicamente rica das pretensões normativas implícitas nos

conflitos sociais, mas também, como os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social de

Frankfurt mostraram, uma justificação (mesmo que indireta) dos objetivos morais

identificados (UoA: 131de; 110en).

A abordagem objetivista de Fraser, por outro lado, não chega ao menos a tocar no

“problema que consiste na obstrução sistemática do acesso às experiências quotidianas de

injustiça” (UoA: 158de; 134en). Se a resposta de Honneth for convincente, não parece

exagerado, então, o requisito de que a teoria crítica deva ao menos mostrar uma abertura

categorial para perspectiva moral (muitas vezes implícita) dos atores sociais e suas

experiências.

2 e 3) Também no que tange à crítica do recurso a concepções éticas de vida boa,

Honneth parece reafirmar a posição desenvolvida em Luta por reconhecimento, isto é, ele

reitera a defesa da existência de um interesse humano pela autorrealização. A autorrealização

depende da formação não distorcida da identidade pessoal dos atores sociais, e esta conecta-

se, por sua vez, com o desenvolvimento bem-sucedido de relações de reconhecimento em três

níveis. O autor reafirma também que toda essa caracterização deve obedecer à condição de ser

formal o suficiente para evitar justamente o autoritarismo receado por Fraser.

Há aqui, no entanto, pelo menos uma diferença importante com relação ao livro de

1992: o fundamento antropológico da luta por reconhecimento não se apoia mais na

psicologia social de Mead, mas antes em uma concepção histórica de processos de

aprendizado característicos da modernidade. Como Honneth argumenta em detalhe no

posfácio a Luta por reconhecimento (“O fundamento do reconhecimento”),180

o naturalismo

de Mead “é de certa forma forte demais para que seja possível conceber o reconhecimento

como um comportamento habitualizado que se dá em um espaço historicamente desenvolvido 180

Texto publicado originalmente sob o título “Der Grund der Anerkennung: Eine Erwiderung auf kritische

Rückfrage” na revista Inquiry, em 2002 (daqui em diante abreviado como GdA). Ao passo que Honneth

explicita, no posfácio, os motivos pelos quais se afasta da psicologia de Mead, em Redistribuição ou

reconhecimento? as referências ao autor estão de todo ausentes.

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de razões morais” (GdA: 313de; 503en). É correto afirmar, portanto, que Honneth recua

frente às críticas de sua antropologia filosófica e modifica sua posição inicial.181

Nas palavras

do autor:

A solução mais evidente nesse ponto seria evitar quaisquer generalizações

antropológicas, isto é, não atribuir ao sujeito humano uma profunda tendência para

a negação da intersubjetividade, mas se contentar com a afirmação de uma

sensibilidade de injustiça social sempre mediada pela experiência e, assim, apenas

possível (GdA: 313-4de; 503en).

Do mesmo modo, a dependência e a disposição dos atores para relações de

reconhecimento ligadas aos princípios do amor, do respeito legal e da estima social não são

consideradas potenciais objetivos e a-históricos da natureza humana. Elas devem, ao

contrário, ser consideradas “o resultado de um processo histórico de aprendizagem”:

Em nosso mundo da vida, nós, os filhos da modernidade, aprendemos a perceber

nos sujeitos humanos três propriedades potenciais de valor às quais nós podemos

reagir adequadamente, de acordo com o tipo de nossas relações, com o

comportamento correspondente de reconhecimento; o que nós fazemos em tais atos

de reconhecimento, então, tem o caráter da explicitação pública de um saber que

adquirimos no processo de socialização (GdA: 331-2de; 512en).

A crítica de Fraser e de outros comentadores ao caráter antropológico-filosófico

da teoria honnethiana põe em relevo, assim, a necessidade de que a teoria do reconhecimento

seja remetida sempre a estudos e pesquisas capazes de desvelar o devir histórico das formas

atuais de reconhecimento recíproco e de desrespeito, tais como a historiografia e a sociologia

dos estudos culturais ou as investigações realizadas por Bourdieu e pelos outros autores que

Honneth menciona (Todorov, Ignatieff, Margalit, Jonathan Allen). As teses de psicologia

social têm que estar subordinadas, portanto, a um paradigma teórico de caráter histórico, isto

é: a uma teoria da modernidade.

4) A objeção de Fraser centrada na ausência, no modelo de Honneth, de

considerações substantivas sobre os mecanismos sistêmicos de integração nas sociedades

capitalistas é mais difícil de responder. Afinal: há na teoria da luta por reconhecimento espaço

para a análise da integração sistêmica? Se considerarmos que esta depende de mecanismos

que operam livres da influência do horizonte de valores e normas morais da sociedade, então

a resposta deve ser negativa. Ao fim de Redistribuição ou reconhecimento?, como visto,

181

Têm destaque nesse processo os comentários de Arto Laitinen e Heikki Ikäheimo sobre Luta por

reconhecimento publicados no mesmo volume da Inquiry. O texto de Honneth é escrito como uma resposta

aos comentários de Laitinen, Ikäheimo, Carl-Göran Heidegren e Antti Kauppinen apresentados em um

evento na universidade de Jyväskylä em 2002.

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Honneth admite que a própria oposição entre integração social e sistêmica é problemática,

pois a reprodução das sociedades capitalistas modernas depende sempre de um consenso

moral mínimo, capaz de satisfazer ao menos algumas das demandas normativas enraizadas na

interação social. Assim, a tese de Honneth não é a de que a teoria crítica pode prescindir de

considerações sobre mecanismos sistêmicos de integração, mas que não faz sentido falar em

integração sistêmica como tal.182

Isso porque “o social”, para o autor, está inextricavelmente

ligado a um aspecto moral:

O sofrimento e o descontentamento sociais possuem, se o adjetivo “social” quiser

dizer mais do que simplesmente que eles costumam existir na sociedade, um cerne

normativo. Trata-se do desapontamento ou violação das expectativas normativas

que os concernidos consideram justificado dirigir à sociedade; assim, tais

sentimentos de sofrimento e descontentamento coincidem, na medida em que são

designados “sociais”, com a experiência de que algo injusto, algo injustificável é

levado a cabo pela sociedade (UoA: 152de; 129en).

Deste modo, Honneth aprofunda aqui a tendência presente em Luta por

reconhecimento de procurar substituir – em lugar de complementar – o paradigma

funcionalista de interpretação dos conflitos sociais nas sociedades contemporâneas. A

integração da sociedade deixa de ser considerada moral apenas da perspectiva de seus

membros, isto é, dos participantes. Também do ponto de vista do teórico, do observador que

procura explicar o funcionamento e a reprodução sociais, a sociedade é integrada em acordo

com princípios normativos básicos. Não se sustenta, ademais, a defesa do autor segundo a

qual seu monismo seria apenas moral, e não teórico-social: o próprio Honneth borra, no fim

das contas, esse limite. Aqui, portanto, Honneth não apenas mantém, mas além disso

aprofunda sua rejeição a qualquer concepção funcionalista ou sistêmica dos conflitos sociais.

182

Isso não significa que não existam ações estratégicas, mas antes que elas não contribuem de modo

significativo para a integração da sociedade.

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4. Patologias da liberdade

O livro Sofrimento de indeterminação é fruto em grande parte das “Spinoza

Lectures”, duas palestras conferidas por Honneth em 1999 na Universidade de Amsterdam.

Pode causar estranheza, portanto, apresentar a discussão desse volume depois da análise de

Redistribuição ou reconhecimento?, livro publicado em 2003. A escolha se fundamenta,

porém, se atentarmos para os fatos de que o debate entre Honneth e Fraser se deu

anteriormente à publicação do livro (o primeiro texto de Fraser foi apresentado em 1996, por

exemplo), e de que as palestras realizadas em Amsterdam compõem as duas primeiras partes

do livro, que ganhou posteriormente, na versão alemã, uma terceira parte dedicada à

“doutrina da eticidade como teoria normativa da modernidade”.183

Além desses dados

cronológicos, há também que se considerar que, em termos de conteúdo, Sofrimento de

indeterminação representa um maior distanciamento com relação ao modelo crítico da luta

por reconhecimento e um ponto de transição para o modelo centrado na liberdade que ganhou

forma sistemática em 2011 – ao passo que as contribuições de Honneth a Redistribuição e

reconhecimento? oferecem modificações mais tímidas com relação ao livro de 1992.

No que se segue, apresentamos os principais argumentos Sofrimento de

indeterminação – a releitura honnethiana da Filosofia do direito de Hegel (item 4.1.) e a

caracterização das patologias sociais decorrentes do direito e da moralidade, bem como do

caráter “terapêutico” da eticidade (item 4.2.) –, de modo que se possa por em relevo,

posteriormente, os motivos pelos quais esse livro pode ser visto como uma preparação para O

direito da liberdade ao mesmo tempo que conserva importantes aspectos teóricos do

paradigma da luta por reconhecimento (item 4.3.).

183

As palestras foram publicadas primeiro em inglês (Suffering from Indeterminacy: An Attempt at a

Reactualization of Hegel’s Philosophy of Right, em 2000) e no ano seguinte saiu a versão em alemão (Leiden

an Unbestimmtheit: Eine Reaktualisierung der Hegelschen Rechtsphilosophie, 2001, acrescida de dois

capítulos ausentes nas palestras). Na edição brasileira, publicada em 2007, o termo Unbestimmtheit foi

traduzido por “indeterminação” em vez de “indeterminidade”. Daqui em diante, a obra é abreviada como

LaU.

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4.1. Direito e liberdade no Hegel tardio

4.1.1. De Jena para Berlim: ressaltando as continuidades

O primeiro deslocamento teórico importante a ser notado em Sofrimento de

indeterminação é o recurso de Honneth à Filosofia do direito de Hegel em lugar dos escritos

de Jena, que estavam na base da teoria da luta por reconhecimento. Uma retomada da filosofia

política de Hegel é, para Honneth, especialmente oportuna na atualidade por representar, na

medida em que conecta os princípios da justiça a um diagnóstico de época, uma alternativa à

hegemonia das teorias da justiça de inspiração kantiana, como é o caso de Rawls a Habermas.

Para tanto, é contudo necessário esclarecer e afastar duas ressalvas significativas: (a) a ideia

(o “estereótipo”, diz Honneth) de que a Filosofia do direito teria consequências

antidemocráticas e não poderia, portanto, contribuir para uma metateoria do Estado

democrático de direito; e (b) a reserva metodológica segundo a qual a argumentação de Hegel

nesse livro apenas pode ser compreendida se relacionada com a estrutura da Lógica, que por

sua vez perdeu a compreensibilidade em razão de seu conceito ontológico de espírito. Dois

caminhos então se apresentam: uma atualização direta (com a manutenção dos pressupostos

hegelianos à custa dos padrões de racionalidade pós-metafísica atual) ou indireta (que implica

deixar de lado o conceito substancialista de Estado e as instruções operativas da Lógica, o que

pode comprometer a fidelidade à obra). Honneth fica com a segunda opção, cujo objetivo ele

caracteriza da seguinte maneira:

demonstrar a atualidade da Filosofia do direito hegeliana ao indicar que esta, como

projeto de uma teoria normativa, tem de ser concebida em relação àquelas esferas

de reconhecimento recíproco cuja manutenção é constitutiva para a identidade

moral das sociedades modernas (LaU: 51pt).

Para não fugir da substância da obra, entretanto, Honneth considera necessário

esclarecer dois conceitos fundamentais. O de “espírito objetivo” remete à ideia de que toda

realidade social tem uma estrutura racional, apoiada sobre argumentos racionais que estão

entrelaçados com as nossas práticas e cuja violação causa danos à realidade social. O conceito

de “eticidade”, por sua vez, indica que se encontram dispostas, na realidade social moderna,

esferas de ação nas quais normas morais, interesses e valores imiscuem-se previamente em

formas institucionalizadas de interação, e por isso diferenciam-se de uma orientação

normativa calcada em princípios morais abstratos. O papel de cada um desses conceitos para

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uma atualização da Filosofia do direito de Hegel é retomado e desenvolvido nas seções que se

seguem.

Para Honneth, de qualquer modo, importa destacar os pontos de continuidade

entre os escritos hegelianos de Jena e a Filosofia do direito (LaU: 53-5pt). Quando Hegel trata

do espírito objetivo, isto é, na parte de sua filosofia que tem por objeto os princípios

normativos de uma ordem social justa sob condições modernas, quatro são os aspectos que já

vinham de Jena e permanecem na obra de maturidade: 1) a justificação dos princípios

universais de justiça não pode deixar de levar em consideração que os sujeitos estão sempre já

vinculados uns aos outros por meio de relações intersubjetivas, ou seja: não se pode partir de

uma representação atomista da liberdade individual; 2) os princípios da justiça estão ligados à

justificação das condições sociais sob as quais a liberdade do outro é um pressuposto da

autorrealização individual; 3) os princípios normativos de liberdade devem estar ancorados

nas práticas sociais, e não em coerções e preceitos externos; e 4) é preciso haver na eticidade,

isto é, na cultura da liberdade comunicativa, um espaço para os sujeitos perseguirem

(reciprocamente) seus interesses egoístas.184

Honneth considera que essas intuições foram até

certo ponto preservadas na noção de “vontade livre”, que é objeto da introdução da Filosofia

do direito e refere-se aos ideais modernos de autonomia individual ou autodeterminação.

4.1.2. A noção hegeliana de direito e as concepções de liberdade individual

Na Filosofia do direito, Hegel identifica dois modos insuficientes de tratar a

autonomia: o negativo e o optativo. Diz o autor:

de um lado, a autodeterminação individual foi concebida como a capacidade dos

homens de, por força de uma determinação da vontade, se distanciarem de todas

aquelas “carências, desejos e impulsos” que podem ser experienciados como

limitação da independência do Eu [...]. De outro lado, ao apresentar a mera

contrapartida em face da primeira interpretação, somente negativa, da vontade

livre, Hegel vê uma determinação de acordo com a qual se pode conceber a

autodeterminação individual como a capacidade de escolha ou de decisão refletida

entre “conteúdos dados” (LaU: 58pt).

Ambos os modelos de autonomia individual têm sua razão de ser; mas eles têm

também limitações decisivas. A liberdade negativa pode levar a uma perda da ação, ao passo

184

Honneth não esclarece em sua argumentação o que pode significar a formulação “perseguir reciprocamente

interesses egoístas” (LaU: 19de; 55pt). Parece que nela se reflete o caráter um pouco ambíguo que tem na

obra do autor a ideia da existência de ações estratégicas autointeressadas no seio da eticidade.

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219

que a liberdade optativa conduz ao “dualismo kantiano entre dever e inclinação, entre a lei

moral ideal e a natureza meramente externa do impulso” (LaU: 59pt). Hegel quer

desenvolver um modelo mais complexo de vontade livre, do qual são removidos todos os

vestígios de heteronomia na medida em que o material da autodeterminação individual é

entendido como resultado da liberdade. Para tanto, a vontade tem que ser pensada como uma

relação reflexiva. Nos termos de Hegel: a vontade livre tem que querer a si mesma como livre

(LaU: 60pt). Para compreender essa formulação, Honneth lança mão da descrição que Hegel

faz do afeto na forma da amizade e do amor como modelo paradigmático da liberdade:

Essa liberdade nós já temos, porém, na forma do sentimento, por exemplo, na

amizade e no amor. Aqui não somos unilaterais em nós, limitamo-nos de bom grado

em relação a um outro, mas nos sabemos como a nós mesmos nessa limitação. Na

determinidade, o homem não deve se sentir determinado, mas, ao se considerar o

outro como outro, tem-se aí primeiramente seu sentimento de si (Hegel apud LaU:

61pt).

Na amizade, ademais, “nós nos restringimos a dar preferência a uma inclinação

determinada e cuja prática, não obstante, significa uma experiência de autorrealização

ilimitada e livre” (LaU: 77pt). É retomada, aqui, a primeira intuição que Hegel mantém de

Jena, isto é, sua contraposição ao atomismo. Nesta linha, pode-se compreender sua afirmação

de que o objeto da carência ou da inclinação (no caso do amor e da amizade, o outro sujeito)

deve ser ele próprio livre para que a vontade seja também livre. Honneth destaca que essa

tentativa de síntese dos dois modelos insuficientes de autonomia (experiência ilimitada de si e

autolimitação reflexiva) redunda em um modelo comunicativo de liberdade individual ou, nos

termos de Hegel, um “ser-consigo-mesmo-no-outro” (LaU: 62pt).

A partir do que foi dito, é possível entrever a concepção geral de justiça na

Filosofia do direito. Uma primeira antecipação dessa concepção nos revela o seguinte:

se a liberdade individual designa primeiramente e sobretudo o “ser-consigo-

mesmo-no-outro”, então a justiça das sociedades modernas se mede pelo grau de

sua capacidade de assegurar a todos os seus membros, em igual medida, as

condições dessa experiência comunicativa e, portanto, de possibilitar a cada

indivíduo a participação nas relações da interação não desfigurada (LaU: 78-9pt).

Estas reflexões devem tornar mais compreensível, diz Honneth, o conceito

abrangente de direito presente na obra de Hegel (presente, também, no título do livro que

Honneth publicaria dez anos depois: O direito da liberdade). Em sentido amplo, a noção de

direito diz respeito a todos os pressupostos sociais que se mostraram necessários para a

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220

realização da vontade livre de cada sujeito individual (LaU: 64pt).185

A grande questão passa a

ser, portanto, quais são esses pressupostos. Entre eles destacam-se, para Honneth, as relações

comunicativas, que possibilitam ao sujeito um ser-consigo-mesmo-no-outro. A concepção

hegeliana, ampla de direito repousa, ademais, sobre uma transformação dos portadores de

direitos, que não são mais os indivíduos, e sim relações e estruturas sociais, “formas de

existência sociais”:

Os portadores de “direitos” dos quais trata a Filosofia do direito são

primariamente esferas e práticas sociais que possuem uma pretensão justificada de

reivindicar direitos em face da sociedade como um todo e exigir sua manutenção; e

como destinatários de tais “direitos” de esferas, instituições ou sistemas de

práticas, devemos entender novamente todos os membros daquelas sociedades que

são caracterizadas segundo o princípio normativo de autodeterminação individual

(LaU: 33de; 66pt, trad. mod.).186

Mas o direito, como existência da vontade livre, tem dois significados: não só

condição necessária, mas também e pretensão justificada (LaU: 64pt). Não se pode

negligenciar o fato de que a teoria hegeliana tem assim um forte aspecto normativo, pois a

ideia de direito exige que se apresentem “argumentos racionais para a legitimidade ou

fundamentação das ‘pretensões de existência’ das diferentes esferas sociais” (LaU: 67pt). Os

dois momentos estão, contudo, interligados, de modo que a justificação de tais argumentos se

dá descritivamente, mediante uma apresentação das condições necessárias (“insubstituíveis”)

de autorrealização e de autodeterminação individuais. Nas palavras de Honneth:

Nesse sentido, a Filosofia do direito de Hegel representa uma teoria normativa da

justiça social que precisa ser fundamentada na forma de uma reconstrução das

condições necessárias de autonomia individual, cujas esferas sociais uma sociedade

moderna tem que abranger ou dispor para com isso garantir a todos os seus

membros a chance de realização de sua autodeterminação (LaU: 67pt).

4.2. Diagnóstico de época e teoria da justiça

No entanto, não basta para Hegel “reconstruir corretamente aquelas esferas de

ação intersubjetivas que, em vistas da estrutura comunicativa da liberdade, chegam a ser

185

Ao direito em sentido amplo, concebido como a apresentação ética das condições sociais da autorrealização

individual, opõe-se naturalmente uma concepção mais restrita, caracterizada juridicamente e que é um

momento particular e formal (Kant e Fichte, por exemplo teriam compreendido a noção de direito como “a

ordem estatal de uma vida comum regulada pelo direito”, destacando “com isso o momento da

coercibilidade do Estado”; LaU: 64pt).

186 Na versão em inglês do texto, publicada anteriormente, lê-se ao final da citação: “and the addressees of the

rights of the various spheres, institutions, and systems of practices are all the members of modern societies”

(LaU: 30en; grifo M.T.).

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221

imprescindíveis para a realização da ‘vontade livre’” (LaU: 68pt). É preciso, ainda, atribuir

às outras formas de liberdade, a negativa e a optativa, o seu lugar legítimo na ordem

institucional da modernidade, na medida em que elas representam “condições necessárias,

porém ainda não suficientes – e nessa medida incompletas – da autorrealização individual”

(LaU: 68-9pt). Para Hegel, aqueles modelos de liberdade “não são meras ideias abstratas ou

representações teóricas, mas já influenciaram de tal modo o processo social no mundo

moderno que devem ser tratados sem problema como ‘formas’ do espírito objetivo e

regulados segundo seus ‘direitos’ correspondentes” (LaU: 70-1pt). As liberdades negativa e

optativa possuem pressupostos constitutivos para a participação individual nas esferas

comunicativas. Isso explica, diz Honneth, a tripartição da Filosofia do direito em “direito

abstrato” (que corresponde ao modelo negativo de vontade livre, igualando a liberdade à

fruição de direitos subjetivos), “moralidade” (que corresponde ao modelo optativo de vontade

livre, igualando a liberdade à capacidade de autodeterminação moral), e “eticidade” (que

corresponde ao modelo comunicativo de vontade livre e é tripartida, por sua vez, em

“família”, “sociedade civil” e “Estado”).

É preciso, então, mostrar que, quando for determinado adequadamente o seu lugar

na estrutura social moderna, os dois momentos incompletos da liberdade são necessários para

a sua forma completa, comunicativa. Hegel o faz de modo indireto e negativo, “no sentido de

que tenta circunscrever o ‘lugar’ adequado, o ‘direito’ específico de ambos os modelos

incompletos de liberdade mediante a demonstração dos danos sociais a que levaria o

emprego totalizante de cada um deles” (LaU: 73pt). Tais danos são “rejeições patológicas”

com os quais a realidade social responde à absolutização de uma das versões incompletas da

liberdade individual. Trata-se de um indicador “preciso e ‘empírico’” de que foram violados

os limites (Grenzen) do âmbito de legitimidade social do direito abstrato e da moralidade

(LaU: 73pt). Hegel analisa, em sua argumentação, tanto os perigos da autonomização da

moralidade quanto os efeitos negativos da limitação da liberdade a suas formas constituídas

apenas juridicamente (LaU: 81-2pt). Ao observar os efeitos negativos dessa autonomização

das concepções deficientes de liberdade, é possível entrever o seu lugar legítimo. A tarefa de

Hegel consiste, assim, em mostrar a função necessária das liberdades jurídica e moral em

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vista das condições comunicativas de liberdade inerentes ao conceito de eticidade (LaU:

82pt).187

Esse procedimento indireto de fundamentação está atrelado, assim, a um

diagnóstico de época: empiricamente, diz Honneth, é possível constatar que os dois modelos

incompletos de liberdade tiveram uma influência poderosa no mundo social e que a

absolutização de cada um deles causou a primeira rejeição na autocompreensão prática dos

sujeitos. Além disso, os conceitos que Hegel utiliza para “caracterizar tais patologias sociais

são expressões do diagnóstico da época, tais como ‘solidão’ (§ 136), ‘vacuidade’ (§ 141) ou

‘abatimento’ (§ 149), que podem ser colocados conjuntamente sob o denominador comum de

um ‘sofrimento de indeterminação’” (LaU: 74pt). O que permite a Hegel juntar o projeto de

sua teoria da justiça com um diagnóstico de época é o pressuposto segundo o qual a realidade

social é estruturada “na forma de fundamentos racionais ditados pela própria razão”, de

forma que “a violação prática contra tais fundamentos deve levar à rejeição na vida social”

(LaU: 74pt). Daí deriva a importância do conceito de espírito objetivo, já que, mesmo depois

do abandono dos aspectos metafísicos, ele permite entender a ideia de que em nossas práticas

sociais há “uma estrutura racional que não se comporta indiferentemente em face de

interpretações equivocadas; pois assim se pode afirmar que uma tal concepção falsa ou

unilateral, porque viola a racionalidade da realidade social, deve levar a sérias

consequências práticas, que refletem num ‘sofrimento de indeterminação’” (LaU: 83pt).

Trata-se de uma nova formulação da ideia de interesse emancipatório, segundo a qual “a

realidade social é perpassada de fundamentos racionais que não podem ser violados sem

consequências para nossa autorrelação” (LaU: 84pt).

4.2.1. Valor ético e patologias da liberdade entendida como direito abstrato e

moralidade

Honneth mantém em sua apresentação a ordem empregada por Hegel, isto é:

esclarecer, em primeiro lugar, a função positiva do direito abstrato e da moralidade para sua

187

Se esse modo de proceder é capaz de demarcar os limites para além dos quais o exercício da liberdade em

suas formas negativa ou optativa torna-se patológico, parece-nos, contudo, que ele não é suficiente para

determinar se, no interior do âmbito definido por estes limites, o direito abstrato e a moral são não apenas

aceitáveis, já que não causam patologias sociais, mas também representam de fato condições necessárias

para o exercício da liberdade comunicativa.

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concepção de justiça, para então explicitar “o diagnóstico que o ajudou a determinar o local

exato daquelas duas representações da liberdade em uma teoria das liberdades

comunicativas”, isto é, em uma teoria da eticidade (LaU: 84pt).188

O primeiro momento pode

ser chamado, por isso, diz Honneth, de uma teoria ética do direito e da moral.

O valor ético do direito abstrato reside em permitir que os indivíduos prescindam

de quaisquer relações concretas e papéis sociais e mantenham aberta, deste modo, a

possibilidade de se retirarem de toda eticidade: mediante essa abertura e indeterminidade, os

sujeitos podem manter uma consciência de individualização legítima. É certo que o direito

abstrato é, desde o início, uma instituição intersubjetiva – afinal, o estabelecimento de um

contrato implica o reconhecimento recíproco da pretensão dos sujeitos de direito em alcançar

objetos ou metas desejadas. Na relação jurídica se expressa, entretanto, apenas o lado

negativo da liberdade individual, isto é: a negação de qualquer limitação ao exercício da

vontade. Nela, os sujeitos não precisam mobilizar mais que apenas um mínimo de sua

personalidade e identidade; aqui, além disso, a liberdade do outro aparece somente como o

meio para a satisfação do próprio interesse e da própria liberdade (LaU: 62de; 87-8pt).

Por isso, quando todas as necessidades e intenções dos indivíduos são articuladas

nas categorias estratégicas – e, portanto, limitadas – do direito formal, eles tornam-se

incapazes de participar plenamente da vida social como parceiros em uma relação

intersubjetiva eticamente determinada. A patologia social que assim se instaura corresponde

ao sofrimento de indeterminidade causado por esse estado de coisas.

No capítulo sobre a moralidade, por sua vez, os objetivos perseguidos por Hegel

são vários. Honneth se atém a dois deles: a tentativa de estabelecer o valor ético e os limites

da ideia de autonomia moral; e a fundamentação do fato de que as condições de realização da

vontade livre se encontram completas nas esferas comunicativas da eticidade (LaU: 91pt). A

entrada no “ponto de vista moral” parte da objeção à liberdade jurídica que diz que, para essa

concepção, é completamente irrelevante aquilo que se entende como meta de uma ação livre.

Na autonomia moral, ao contrário, só vale como ação livre o que é considerado como

resultado da autodeterminação reflexiva e racional. Apenas na autonomia moral a liberdade

188

Segundo a ordem de investigação, portanto, parte-se de um diagnóstico de patologias sociais para chegar à

delimitação do domínio legítimo das formas incompletas de liberdade, ainda que, na apresentação, o seu

valor ético preceda as patologias causadas pela sua unilateralização.

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individual é uma relação do sujeito consigo mesmo, uma autorrelação, e “apenas quando um

sujeito de fato avalia reflexivamente como deve agir, podemos então falar propriamente de

liberdade individual” (LaU: 92pt). Seu valor ético reside, portanto, em permitir uma avaliação

reflexiva de cada sujeito em face de si mesmo, de modo que possa “conceber suas atividades

e interações como expressão da liberdade” (LaU: 93pt). Trata-se do direito de tornar o

consentimento para as práticas sociais dependente da avaliação de argumentos racionais

obtidos mediante processos de autorreflexão.

Encontramos o limite da forma moral da liberdade quando nos damos conta de

que o exame racional de normas de ação não pode ser indiferente ao contexto em que tais

normas são colocadas em prática. Na trilha da crítica de Hegel ao caráter abstrato da moral

kantiana, Honneth considera que é necessário se apoiar, em alguma medida, nas práticas

sociais já institucionalizadas. Mas se é necessário recorrer a práticas sociais já

institucionalizadas, cabe a pergunta frequentemente voltada contra Hegel: o filósofo alemão

não cai assim num relativismo moral? É preciso lembrar, contudo, diz Honneth, que para

Hegel as prerrogativas normativas da práxis institucionalizada devem consistir, por seu turno,

em fatos razoáveis e racionais (LaU: 95pt). Essas prerrogativas serão preenchidas com o

conceito de eticidade, no último capítulo da Filosofia do direito, e são tematizadas por

Honneth mais adiante. Se se considera, ao contrário, que as normas e valores subjacentes à

realidade social, bem como suas culturas e tradições, não são dotadas de algum grau de

racionalidade (LaU: 67de; 96-7pt), a única saída para o exercício da liberdade compreendida

como autolegislação moral consiste em manter distância de todos os princípios normativos

existentes, suspendendo-os ou colocando-os entre parênteses. No entanto, “a própria

aplicabilidade do princípio de universalização se deve à confiança na validade racional de

uma série de prerrogativas normativas” (LaU: 97pt). Se, a partir da autonomia moral, se

insiste no caminho do exame meramente introspectivo e da abstração do contexto, a reflexão

moral permanece vazia, e o sofrimento de indeterminidade que aparece como a patologia

social ligada à autonomia moral se expressa na extinção de todos os preceitos práticos e na

consequente perda da capacidade de ação.

*

Honneth caracteriza o sofrimento decorrente das absolutização das formas

incompletas de liberdade com termos bastante fortes, tais como “vazio torturante” (quälende

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Leere, LaU: 70de; 98pt), “um estado torturante de incompletude, de indeterminidade” (ein

quälender Zustand des Unausgefülltseins, der Unbestimmtheit; LaU: 74de; 102pt), “o

tormento da vacuidade e da negatividade” (die Qual der Leerheit und der Negativität; LaU:

69de; 98pt), “sofrimento de indeterminidade e de esvaziamento” (Leiden an Unbestimmtheit,

an Unerfülltsein; LaU: 80de; 106pt).

Em ambos os casos, o sofrimento “é o resultado de uma perspectiva equivocada

derivada de uma confusão filosófica” que está na base das duas compreensões insuficientes de

liberdade representadas pelo direito abstrato e a moralidade (LaU: 71-2de; 100pt). As

consequências da autonomização da moralidade fazem com que a passagem para a eticidade

seja experienciada pelo sujeito individual como uma libertação: “ao compreender que nos

encontramos em relações sociais nas quais a própria normatividade já abrange deveres e

direitos, ou seja, regras morais, então nos libertamos do vazio torturante para o qual a

autonomização do ponto de vista moral nos levou” (LaU: 98pt). Essa libertação, no entanto,

não é apenas a desvinculação de uma situação negativa e opressora, mas também a vinculação

à liberdade efetiva (LaU: 99pt). Nesse duplo significado da libertação (negativa e positiva)

deve ser reconhecida a função terapêutica da doutrina da eticidade.

4.2.2. A função terapêutica da eticidade: libertação do sofrimento, para a autorrealização

Honneth procura apresentar a teoria da justiça de Hegel com termos mais

próximos do quotidiano, como “sofrimento” (Leiden) e “libertação” (Befreiung), os quais não

são as categorias centrais para a estrutura imanente do sistema hegeliano, derivadas da lógica

do ser, da essência e do conceito (LaU: 78de; 105pt). “Sofrimento”, para Honneth, é um

conceito que sintetiza os danos patológicos causados pela orientação da ação apenas segundo

os modelos unilaterais e incompletos de liberdade. “Libertação”, por sua vez, assume um

papel central na medida em que combina aspectos negativos (libertação do sofrimento, das

concepções unilaterais) e positivos (libertação para o exercício pleno da liberdade, para a

satisfação das condições de autorrealização). Na palavras de Honneth: “a eticidade liberta-se

de uma patologia social na medida em que cria igualmente para todos os membros da

sociedade as condições de uma realização da liberdade” (LaU: 79de; 106pt). É nesse sentido

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que o autor compreende o vínculo entre um diagnóstico de época (aspecto negativo) e uma

teoria da justiça (aspecto positivo).

O procedimento terapêutico é caracterizado por Honneth da seguinte maneira:

“partindo da verificação de um ‘sofrimento’ determinado no mundo da vida social, segue-se

primeiramente que esse ‘sofrimento’ é o resultado de uma perspectiva equivocada derivada

de uma confusão filosófica” e é preciso, então, apresentar “a proposta terapêutica de uma

mudança de perspectiva que consistisse na recuperação de uma familiaridade com o

conteúdo racional de nossa práxis da vida” (LaU: 100pt). Parte-se, portanto, de um

sofrimento “pré-filosófico”, expresso por Hegel na forma “quase psicológica” de estados de

apatia e incompletude, para formular o diagnóstico de uma enfermidade (Krankheit) cujas

causas são atribuídas a uma confusão conceitual – isto é, à autonomização do direito abstrato

e da moralidade como formas completas ou suficientes de liberdade. Mas não se trata somente

de um erro cognitivo, pois a confusão conceitual é mais que uma afirmação falsa: para poder

causar as condições sociais do sofrimento, as concepções equivocadas têm que se instituir

(mesmo que inopinadamente) como base das atividades de nossa prática cotidiana. No caso

dos comportamentos equivocados que então se seguem, faz-se necessário um outro passo:

“uma crítica terapêutica no sentido do estímulo construtivo de uma autorreflexão

libertadora” (LaU: 101-2pt).

Chegamos assim ao ponto decisivo de passagem para a eticidade como libertação.

Não se trata apenas da rejeição teórica das interpretações unilaterais da liberdade, mas uma

“proposta de esclarecimento cuja efetuação deve resultar ao mesmo tempo numa ‘libertação’

dos comportamentos patológicos” (LaU: 102pt). Quando se aceita a interpretação de um

conteúdo ético do mundo da vida – isto é, que ele já contém, enquanto eticidade, um espectro

de padrões de interação que asseguram a liberdade – torna-se possível deste modo libertar-se

daqueles comportamentos que até o momento impediram a realização da liberdade (LaU: 102-

3pt). A superação dos comportamentos patológicos permite então o acesso às condições

comunicativas como pressupostos sociais para a realização da autonomia por todos os sujeitos

igualmente. Nas palavras de Honneth:

logo no momento em que os próprios concernidos perceberam que se deixaram

influenciar por concepções insuficientes (porque unilaterais) de liberdade, eles

mesmos são capazes de reconhecer no seu próprio mundo da vida as formas de

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interação nas quais a participação constitui uma condição necessária de sua

liberdade individual (LaU: 103pt).

Apenas com uma “presentificação libertadora”, em que esse processo é

reconstruído de tal forma a revelar que a repressão de uma intersubjetividade precedente é a

causa das concepções unilaterais de liberdade, os sujeitos podem chegar a um conceito de

justiça entendida em termos de uma teoria da intersubjetividade -- que, tanto para Hegel

quanto para Honneth, vincula-se à ideia de uma eticidade moderna. Assim, pode-se dizer que

a análise terapêutica (superação crítica das patologias sociais causadas pela unilateralidade

das concepções de liberdade) tem consequências para a concepção de justiça (apropriação dos

pressupostos comunicativos e consequente percepção das condições intersubjetivas

necessárias da liberdade). Perfaz-se, deste modo, a combinação entre diagnóstico de época e

teoria da justiça aventada por Hegel. Na terceira parte de Sofrimento de indeterminação, cabe

a Honneth mostrar como as esferas sociais que compõem a eticidade poder levar a uma

libertação duradoura dos fenômenos de sofrimento e à possibilidade de autorrealização

individual de todos os sujeitos (LaU: 104pt).

4.2.3. Autorrealização, reconhecimento e formação: condições sociais da eticidade

A partir do que foi dito até o momento, Honneth deriva três condições que a

esfera ética tem que ser minimamente capaz de satisfazer.189

Em primeiro lugar, a eticidade

tem que colocar à disposição de todos os membros da sociedade possibilidades de

autorrealização individual, “cujo uso pode ser experienciado por cada sujeito individual como

realização prática da sua liberdade” (LaU: 106pt). O segundo critério já está implícito e diz

respeito ao caráter intersubjetivo do padrão de ação que constitui a esfera da eticidade. As

condições de autorrealização individual “devem ser compostas em certa medida pelas formas

de comunicação nas quais os sujeitos podem ver reciprocamente no outro uma condição de

sua própria liberdade” (LaU: 107pt). Para Honneth, tais práticas de interação intersubjetiva

somente podem ser compreendidas quando se recorre ao conceito de reconhecimento.

Retoma-se, assim, a hipótese básica dos escritos hegelianos de Jena: “Tal como antes,

189

A princípio, Honneth afirma que são quatro as condições; no entanto, no desenvolver do argumento nesta

seção e no restante do livro torna-se claro que se trata de três condições: possibilidade de autorrealização,

relações intersubjetivas que tomam a forma do reconhecimento recíproco (segundo uma concepção complexa

e diferenciada de reconhecimento) e processos de formação ou aprendizagem. Aglutinam-se, assim, o que no

texto de Honneth aparecem como a segunda e a terceira condições.

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‘reconhecimento’ significa primeiramente a afirmação recíproca isenta de coerção de

determinados aspectos da personalidade que se relaciona com cada um dos modos de

interação social” (LaU: 108pt). Na Filosofia do direito, porém, Hegel procura elaborar com

maior rigor o lado prático do reconhecimento, ligado à ideia de comportamento (LaU: 109pt).

Para Hegel, ademais, existem formas específicas de reconhecimento, e a esfera da eticidade é

composta de uma ordenação gradual de diferentes formas de reconhecimento recíproco.

Honneth afirma, então, que as ações intersubjetivas que compõem a esfera ética exprimem

formas determinadas de reconhecimento recíproco, segundo um modelo de ação complexo o

suficiente “para poder esclarecer os processos de integração social em sociedades

modernas” (LaU: 110pt). Na esfera ética, o ator social pode alcançar a autorrealização apenas

se ele manifesta, “de um modo determinado”, reconhecimento em face de seu parceiro de

interação.190

Para Hegel, a liberdade individual é um fenômeno intersubjetivo; na relação com

outros sujeitos é que podemos nos limitar às nossas inclinações e carências cuja realização é

um “ser-consigo-mesmo”. Nessa limitação, o potencial natural das próprias inclinações

humanas é um processo de configuração, de socialização. Não é mero dado, algo heterônomo.

Ao contrário, Hegel parte do pressuposto de que a “estrutura motivacional dos homens

constitui sempre o resultado dos processos de formação que puderam ter influência suficiente

para fazer que as carências e inclinações atuais fossem penetradas por mandamentos

racionais”. Trata-se, para Hegel, de “um processo supraindividual que a sociedade moderna

reproduz regularmente em si mesma como ‘formação’ [‘Bildung’]” (LaU: 113pt). De acordo

com a última condição da eticidade, então, os padrões de ação nos quais estão vinculados

deveres e inclinações, mandamentos e carências devem ser capazes de se autorreproduzirem.

Para tanto, eles precisam poder pôr em marcha processos de formação nos quais são

produzidos costumes, hábitos práticos e disposições comportamentais que funcionam para

motivar os indivíduos a participarem nas práticas correspondentes (LaU: 114pt). As esferas de

interação éticas contam, portanto, com processos de aprendizado que apontam no sentido de

desenvolver essas disposições comportamentais (LaU: 115pt).

190

A conexão entre realização individual e reconhecimento recíproco se expressa no conceito de “dever”.

Diferentemente de Kant, Hegel considera que os deveres ou determinações éticas são caracterizados como

relações necessárias, pois são elementos internos do padrão de ação correspondente. A execução da ação não

é sentida como um dever, mas é ao mesmo tempo experienciada como evidente e vinculante (LaU: 111pt).

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4.2.4. A arquitetônica da eticidade: individualização e universalização crescentes

O capítulo da Filosofia do direito sobre a eticidade é dividido novamente em três:

família, sociedade civil e Estado. Honneth procura uma fundamentação dessa tripartição fora

do sistema da Lógica, buscando apontar que ela se deve a uma “consciência sociológica

atenta” para as três esferas de ação que compõem a estrutura central das sociedades

modernas. Hegel precisa fornecer uma justificação, então, de porque essas três instituições são

“os únicos âmbitos de ação nos quais, em sua época, autorrealização, reconhecimento e

formação se combinam da maneira exigida” (LaU: 92de; 117pt). Além disso, ele precisa

fundamentar a disposição hierárquica das instituições em questão.

Honneth se concentra apenas na segunda questão. A família, por exemplo, é o

ponto de partida da exposição porque ela representa a eticidade “na forma do natural”, ligada

a “sentimentos naturais”, onde reside um primeiro meio de inclusão dos indivíduos na vida

ética (LaU: 117pt). Assim, “sem o reconhecimento intersubjetivo ao qual chegam as pulsões

no espaço interior da família, a formação de uma ‘segunda natureza’, de um fundo

socialmente partilhado em costumes e comportamentos, não seria possível” (LaU: 118pt).

Trata-se, em termos que Honneth chama de “sociológicos”, da ideia de que na família

consuma-se a socialização das carências humanas.191

A sociedade civil, por sua vez, enquanto esfera da circulação mediada pelo

mercado entre sujeitos econômicos, representa o meio tanto de uma destruição da eticidade

imediata e de um isolamento extremo (pois rompe o laço intersubjetivo entre os atores), como

da viabilização da realização dos interesses individuais (já que a troca permite o acesso a uma

multiplicidade de bens). Nas relações de troca expressam-se “carências sempre crescentes

cuja satisfação o adulto já não pode mais esperar alcançar a partir do círculo da família”

(LaU: 119pt). Trata-se, portanto, não de carências intersubjetivas reciprocamente

manifestadas, mas antes de interesses autorreferidos de pessoas privadas. A superioridade

relativa da sociedade civil frente à família na esfera ética se dá pelo fato de que, na sociedade

191

Note-se que se trata da família “em sua forma dada, ou seja, a pequena família burguesa” onde pode ocorrer

a “satisfação intersubjetiva dos impulsos individuais” na forma da “relação sexual entre os parceiros” e o

“potencial ainda desorganizado da carência da criança é formado pela primeira vez por meio da educação

dada pelos pais” (LaU: 118pt).

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civil, o sujeito já se apresenta como pessoa de direito individualizada, podendo perseguir seus

interesses egocêntricos e com isso tendo uma certa reflexividade diante dos espaços de

comunicação da família, onde o sujeito aparecia antes como membro dependente de uma

comunidade que não escolheu (LaU: 120pt).

Em sua análise da esfera do Estado, por seu turno, Honneth vai contra a leitura

corrente de que nela Hegel não estaria mais preocupado com a liberdade individual dos

sujeitos enquanto cidadãos. O autor indica que há trechos na Filosofia do direito que

permitem a interpretação de que os sujeitos conseguem uma individualização ainda maior no

Estado, porque nele são capazes de “uma atividade universal” (LaU: 121pt) na medida em

que participam ativamente na reprodução da coletividade, tornando suas habilidades

particulares úteis a um fim comum. Desse modo, o indivíduo “chega à existência pública

como um cidadão dotado de razão”: “não em sua carência natural, nem em seu interesse

sempre individual, mas em seus talentos e habilidades formados racionalmente é que o

sujeito se tornou, na esfera do Estado, membro da sociedade” (LaU: 121-2pt).

A passagem a cada nível superior de individualização, iniciando com a família

(esfera da carência natural), depois a sociedade civil (esfera do interesse individual) e o

Estado (esfera da honra derivada dos talentos e habilidades voltados para a reprodução da

coletividade), é caracterizada por Honneth como um processo de formação: “o sujeito chega

ao nível máximo de individualidade quando, por meio da participação nas respectivas

esferas, aprende a dispor gradualmente de esquemas cognitivos e argumentos que são

construídos, um após o outro, no horizonte da ‘sensação’ [‘Empfindung’], racionalidade com

respeito a fins [Zweckrationalität] e razão [Vernunft]” (LaU: 100de; 122pt). Nesse longo

processo de formação, não cresce somente o grau em que é viabilizada a representação social

da individualidade, mas também o nível cognitivo dos jogos de linguagem praticados em cada

esfera (LaU: 123pt). A consequência, diz Honneth, é a tese sistemática segundo a qual as

chances de individualização do sujeito aumentam com o grau de sua capacidade de

universalização das próprias orientações: trata-se de um processo progressivo de

desenvolvimento de uma forma racional e descentrada de subjetividade. Tal descentramento

do sujeito apenas “pode avançar até a linha divisória traçada pelo interesse comum de uma

coletividade concreta” (LaU: 100de; 123pt). A partir das características epistemológicas das

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231

diferentes esferas, então, se deduz de modo progressivo a estreita relação entre modo

cognitivo, forma de reconhecimento e autorrealização (LaU: 124pt).

4.2.5. O perigo da superinstitucionalização das esferas éticas

Para Hegel, prevalece assim nas três esferas normativas que compõem a eticidade

um tipo de cognição que está entrelaçado com certas formas de subjetividade (LaU: 124pt).

Há uma conexão interna entre agir e conhecer. A família, por exemplo, pode ser considerada

uma esfera ética porque a satisfação da carência “natural” realiza-se em uma interação que

ocorre na percepção da interdependência entre os membros familiares: “Nesse ponto, o amor

representa uma forma de ação na qual está contido em forma de ‘sensações’ um saber

comum de acordo com o qual ‘nós’, independentemente uns dos outros, seríamos apenas

sujeitos incompletos, e por essa razão compartilhamos uma ‘unidade’” (LaU: 103-4de; 125pt,

grifo MT). A família preenche, assim, os três critérios da esfera ética: nelas os sujeitos

aprendem, mediante um processo de formação, o que significa ver o outro como um indivíduo

insubstituível (LaU: 126pt); eles podem exercer, mediante assistência e cumplicidade mútuas,

os direitos e deveres nos quais se expressa o reconhecimento recíproco (LaU: 127pt); e podem

por fim buscar sua autorrealização individual, na medida em que na interação familiar o ator

social chega a um autocompletar-se que “se conquista na outra pessoa”. Diz Honneth: “nós

realizamos aqui parte do nosso Self porque por meio do outro são afirmadas de um modo

não violento aquelas nossas inclinações, motivações e carências por meio das quais somos

dotados como seres naturais ‘sensíveis’” (LaU: 128pt). O sentido terapêutico da esfera ética

da família pode ser encontrado no processo mediante o qual a autolimitação, na relação

familiar (Honneth refere-se primariamente ao matrimônio), é uma libertação.

Honneth identifica, não obstante, dois aspectos problemáticos na caracterização

hegeliana da família. Em primeiro lugar, é preciso destacar os “quantos preconceitos Hegel

deixou passar” acerca da divisão de trabalho entre homens e mulheres dentro do ambiente

familiar (LaU: 128-9pt). A caracterização “ingênua” e de “fortes traços patriarcais” do papel

da mulher pode ser abstraída e, diz Honneth, mesmo eliminada “com algumas correções

decisivas” (LaU: 129pt).

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O segundo problema é, para ele, mais importante. Trata-se do abandono da

amizade como o caso exemplar onde a limitação face ao outro conduz à liberdade, como

ocorre na introdução da Filosofia do direito, em nome da pequena família burguesa. Esse

movimento pode ser explicado pela preferência de Hegel por formas juridicamente

institucionalizadas de eticidade. Na amizade, é possível distinguir um potencial de formação

cognitiva, uma disposição para o desenvolvimento da capacidade de julgar moralmente, e a

vantagem de não reduzir a primeira esfera ética a uma única forma de relacionamento, que

seria a família (LaU: 130pt). Por outro lado, no entanto, as relações de amizade não são

formalmente institucionalizadas, e as relações de interação da sociedade moderna só podem,

para Hegel, ser compreendidas como elemento social da eticidade se são institucionalizáveis

de acordo com o direito positivo,

pois sem tal possibilidade de um acesso estatal, as esferas correspondentes não

teriam sequer base de durabilidade, confiabilidade e instaurabilidade necessárias

para se falar de uma condição de liberdade para nós disponível. Por isso, ainda que

o Estado represente a terceira esfera da ‘eticidade’, ele é ao mesmo tempo o espaço

organizador para ambas as esferas éticas de interação (LaU: 131-2pt).

Nesse sentido, por ser estatalmente regulado, o matrimônio é superior à amizade.

Pelo mesmo motivo, Hegel rejeita o amor romântico, baseado somente em sensações ou

sentimentos, como algo contingente e meramente subjetivo, incapaz de conferir estabilidade e

firmeza para a relação. Honneth cita Hegel: “O matrimônio deve ser mais precisamente

determinado na medida em que é o amor juridicamente ético, através do qual desaparece

dele o transitório, caprichoso e meramente subjetivo” (Hegel, Adendo ao § 161, apud

Honneth, LaU: 132pt), e em seguida acrescenta:

sem o espaço próprio do direito positivo, a eticidade não poderia oferecer uma

condição de liberdade estável que tivesse de ser garantida a todos os sujeitos; para

poder falar então que determinadas relações de comunicação em sociedades

modernas representam esferas de realização da liberdade, elas têm de poder manter

uma estabilidade social para além dos motivos subjetivos da ação e ser garantidas

apenas por meio de sanções legais (LaU: 132-3pt).

O argumento, contudo, não convence Honneth. Ele recusa a tese de que uma

suposta capacidade de instaurar ou gerar socialmente práticas de ação “segundo intervenções

controladas” deve levar Hegel a “ater-se à representação de uma inserção estatal da

eticidade” (LaU: 134pt). Segundo tal visão, as esferas da eticidade são abertas para a

participação ilimitada de todos os membros da sociedade somente como “bens públicos”

controlados pelo estabelecimento do direito por meio do Estado. Essa não é a única

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233

interpretação, no entanto, da concepção defendida por Hegel da eticidade como uma

incorporação social de hábitos de ação desenvolvidos historicamente e caracterizados

racionalmente. Para Honneth, hábitos e costumes compartilhados podem ser de certa forma

entendidos como “instituições” que possuem firmeza e estabilidade, ainda que lhes falte o

ancoramento jurídico do Estado.192

Esses hábitos, constituídos por relações de comunicação

produzidas no processo de modernização social, têm um caráter institucional porque

representam costumes suficientemente ancorados em elementos motivacionais. O direito

estabelecido pelo Estado tem assim uma função de apoio para criar condições de ação

correspondentes. Desse modo, a amizade poderia ter sido incluída na primeira esfera da

eticidade.

Hegel acaba tendo, então, uma visão reducionista da primeira esfera ética na

medida em que não distingue entre as ideias de que (a) uma esfera ética necessita do

estabelecimento de pressupostos jurídicos apropriados e que (b) uma instituição deve sua

existência a um contrato sancionado pelo Estado. Por isso Honneth pode afirmar, em

consonância com a posição que viria a defender em O direito da liberdade, que:

O que antes foi chamado de ‘reconstrução normativa’ não significaria então, sob

essas condições revisadas, reconstruir realidades juridicamente institucionalizadas,

mas reconstruir as esferas sociais de valor da modernidade que se caracterizam

pela ideia de uma combinação determinada de reconhecimento recíproco e

autorrealização individual. Hegel poderia representar, com outras palavras, a

sociedade moderna também como um complexo de esferas de reconhecimento que

oferecem espaço de ação suficiente para formas distintas de institucionalização

social (LaU: 136pt).

Para Hegel, como visto, a segunda esfera ética é o lugar da satisfação – via trocas

mediadas pelo mercado entre realizações (Leistungen) e mercadorias – dos interesses privados

dos sujeitos individuais, dos desejos que puderam se formar para eles sem consideração pela

carência e pelos desejos de seus parceiros de interação (LaU: 117de; 136pt). Nesse sentido, a

sociedade civil vincula-se a uma universalidade apenas indireta, pois nela “se encontram

sujeitos individuais isolados com a finalidade de estabelecerem contratos mútuos sobre

transações cujo cumprimento lhes proporciona meios individuais para a realização de

interesses que não são mais tão relevantes quando considerados reciprocamente”; nela “cada

192

Honneth apoia-se em Arnold Gehlen para falar de um conceito antropológico e cultural de “instituição”

(referência que volta em O direito da liberdade).

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indivíduo se fixa em sua particularidade a fim de pode satisfazê-la mediante os parceiros de

troca que se alternam constantemente” (LaU: 137pt). A reciprocidade exigida nas relações de

troca na sociedade civil diz respeito apenas, a princípio, à consciência do caráter obrigatório

dos contratos e suas disposições específicas. Mas também aqui há, como na família, uma

relação de reconhecimento no sentido de que, quando o sujeito entra em uma relação de troca

com outros para realizar seu interesse, isso não é uma postura isolada, mas descreve a

pressuposição normativa que sempre admitimos logo que participamos na práxis de ação

correspondente. Assim, “um sujeito só pode alcançar a realização de seus interesses

particulares e idiossincráticos no momento em que reconhece seus companheiros como

parceiros do contrato que se encontram normativamente em condições de cumprir as

obrigações internas ao contrato” (LaU: 137-8pt).

Há na esfera da sociedade civil também um processo de formação que exige do

indivíduo uma intensa reelaboração das próprias carências e no qual ele aprende tanto a

prorrogar de forma controlada a satisfação de seus interesses quanto a articular seus desejos

particulares em uma linguagem geral, comunicável aos parceiros da troca. A “libertação”

inerente a esse processo de formação diz respeito então precisamente à emancipação da

“imediatez dos desejos”, do “arbítrio do capricho” (Hegel apud LaU: 138pt). O que deve ser

aprendido, aqui, não é um jogo de linguagem com características afetivas, como na família,

mas antes competências sociais da racionalidade com respeito a fins. De qualquer forma, em

ambos os casos “é somente a participação na respectiva práxis de ação que leva a que os

processos necessários de aprendizado possam ser efetivados e as respectivas capacidades

aprendidas” (LaU: 138pt).

Mas Hegel percebeu, como se sabe, os riscos desintegradores do mercado

capitalista. Ele procurou, por conta dessa intuição, inserir no próprio âmbito da sociedade

civil um tipo de subsistema ético que poderia fornecer um grau maior de generalização social

ou de bem comum: as corporações. Nelas, “o sentido para o universal não é produzido pelo

meio indireto da troca, mas pela via direta do estabelecimento de fins partilhados

intersubjetivamente” (LaU: 120de; 139pt). Nas palavras de Hegel: “Vimos, anteriormente,

que o indivíduo, provendo para si mesmo na sociedade civil, age, também, para os outros.

Mas essa necessidade desprovida de consciência não é suficiente: ela só se torna eticidade

sabida e pensante na corporação” (Hegel apud LaU: 139-40pt). Ora, com a introdução das

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corporações no âmbito da sociedade civil, Hegel acaba fazendo com que as esferas não

tenham um só padrão de interação cada uma, pois a troca capitalista e as corporações

implicam formas de reconhecimento inteiramente distintas: “a primeira está ligada às

transações mediadas pelo mercado, mas a segunda a interações orientadas por valores”

(LaU: 141pt). Isso acontece, diz Honneth, porque o ponto de vista hegeliano está muito

fortemente voltado para as formas concretas de organização, ainda que sua intenção formal

fosse atribuir às três esferas apenas um padrão de interação capaz de garantir a liberdade.

Hegel misturaria, assim, duas tarefas: (a) uma análise normativa da estrutura das sociedades

modernas para identificar as condições historicamente produzidas da liberdade individual e

(b) uma análise das instituições para legitimar as formas de organização que se

desenvolveram ancoradas no direito (LaU: 142pt). A sugestão de Honneth consiste em

abandonar essa segunda tarefa e, como consequência, deixar somente o mercado na segunda

esfera, e na terceira, a do Estado, tratar das corporações, entendidas como uma forma

diferenciada de liberdade pública, como uma “indicação da necessidade de uma divisão de

trabalho democrática, publicamente mediada, que fornece aos sujeitos um sentido para a

universalidade de suas atividades individuais” (LaU: 142pt).

O Estado é, para Hegel, a esfera de interação na qual os membros da sociedade

buscam sua autorrealização mediante atividades comuns e universais. Esta formulação pode

ser entendida segundo uma perspectiva menos enfática de liberdade pública, em que cabe aos

sujeitos individuais apenas uma confirmação, “de baixo para cima”, de um universal

concebido como algo substancial. Para Honneth é importante destacar, no entanto, uma outra

possibilidade interpretativa, segundo a qual as atividades “universais” dizem respeito a uma

“forma de prática coletiva na qual cada um pode reconhecer na atividade do outro uma

contribuição para os fins perseguidos em comum” (LaU: 143pt). De acordo com esse ponto

de vista, o Estado seria a esfera que permitiria “aos indivíduos conhecer (e reconhecer) em si

a base das convicções e intenções partilhadas intersubjetivamente que formam o pressuposto

de uma persecução cooperativa de fins comuns” (LaU: 144pt).

Honneth vê na Filosofia do direito de Hegel, portanto, a alternância entre um

republicanismo (apoiado numa concepção de liberdade pública “cuja substância reside na

práxis intersubjetiva de uma atuação com interesses políticos”; LaU: 144pt) e um liberalismo

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autoritário (no qual os cidadãos teriam os direitos fundamentais tradicionais, mas lhes seria

subtraída toda chance de configuração política autônoma). De todo modo, em nenhuma das

alternativas estão previstos quaisquer fóruns ou arenas em que os sujeitos, enquanto cidadãos,

pudessem se reunir e deliberar em conjunto, por meio de procedimentos de deliberação

pública e da formação da opinião, sobre quais fins devem ser qualificados como “universais”:

“não se encontra na doutrina do Estado de Hegel o menor vestígio da ideia de uma esfera

pública política, da concepção de uma formação democrática da vontade” (LaU: 144pt). A

ideia de uma formação democrática da vontade e de uma esfera pública política teria, diz

Honneth, se coadunado perfeitamente com o projeto de uma teoria da justiça esboçado na

Filosofia do direito, na medida em que proporcionaria um arremate democrático da doutrina

hegeliana da eticidade: “enquadrada no contexto de uma ordem moral capaz de assegurar a

liberdade, formada em conjunto pelas três esferas éticas como relações de reconhecimento, a

tarefa da formação da vontade democrática na última esfera, a esfera propriamente política,

teria sido decidir sobre a configuração institucional dos espaços de liberdade” (LaU: 127de;

145pt, trad. mod.).

4.3. A passagem do modelo do reconhecimento para o da liberdade

A partir da análise dos argumentos apresentados no livro, é possível afirmar que

Sofrimento de indeterminação representa um estágio intermediário entre o modelo crítico

centrado na luta por reconhecimento e aquele que tem na noção de liberdade social (aqui

chamada ainda “comunicativa”) o seu ponto de referência.

1) Por um lado, são conservados alguns aspectos importantes da teoria do

reconhecimento que Honneth desenvolveu principalmente na década de 1990. Nota-se, de

saída, que o autor procura em mais de uma ocasião colocar em relevo continuidades entre o

Hegel de Jena e o de Berlim. As diferenças entre o jovem Hegel pré-Fenomenologia e o

Hegel maduro pós-Lógica são minimizadas para que ganhe destaque a disposição filosófica

geral presente ambos os momentos: a crítica ao caráter atomista, formal e abstrato da filosofia

do entendimento, bem como a defesa de uma posição filosófica intersubjetivista,

historicamente situada e vinculada a uma análise do social. Essa disposição filosófica geral –

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condensada na fórmula do ser-consigo-mesmo-no-outro – está na base de ambas as noções

centrais da teoria de Honneth: reconhecimento recíproco e liberdade social.

2) Outro ponto que aproxima o livro em questão da teoria do reconhecimento é a

ênfase conferida aos fenômenos sociais de sofrimento. Aqui, como em Luta por

reconhecimento e Redistribuição ou reconhecimento?, tem importância fundamental

identificar e analisar teoricamente as experiências negativas dos atores sociais. Se antes era a

experiência do desrespeito que permitia ao teórico desvelar a infraestrutura moral, baseada em

expectativas de reconhecimento, das relações sociais, agora são as patologias sociais

expressas em um sofrimento de indeterminidade que revelam a necessidade de uma forma

mais abrangente, ou social, de liberdade. A investigação é, por assim dizer, impulsionada em

ambos os casos pela detecção de estados e circunstâncias que são experienciados pelos atores

sociais como negativos, como prejudiciais às suas possibilidades de autorrealização – estados

cuja superação é “terapêutica” e pode, por sua vez, ser experienciada positivamente como

libertação ou como reconhecimento.193

Esse aspecto comum entre Sofrimento de

indeterminação e Luta por reconhecimento ganhará relevo à luz dos desenvolvimentos

recentes da obra de Honneth, abordadas no próximo capítulo.

Há em Sofrimento de indeterminação, por outro lado, alguns distanciamentos com

relação à teoria do reconhecimento que não podem ser negligenciados.

1) Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que os projetos de reconstruir os

escritos hegelianos de Jena, de um lado, e a Filosofia do direito, de outro, devem portar

diferenças significativas. Não é possível nem cabe fazer aqui uma análise em profundidade

dos estágios pelos quais passa a filosofia hegeliana. Alguns aspectos gerais e pouco

controversos desse processo, contudo, se fazem sentir na transformação do modelo crítico de

Honneth. Chama a atenção, por exemplo, o caráter mais institucionalista de certas

formulações presentes em Sofrimento de indeterminação, como a ideia de que os portadores

(Träger) do direito em sentido amplo são esferas e práticas sociais, ao passo que os indivíduos

passam a ser considerados os destinatários (Adressaten) do direito (LaU: 33de; 66pt). Em que

pese o fato de que a concepção honnethiana de instituição é muito mais fluida, informal e

193

Cf. o seguinte trecho: “Somos efetivamente livres apenas quando sabemos formar nossas inclinações e

carências de tal modo que estas sejam orientadas para o universal das interações sociais e cuja realização,

por sua vez, possa ser experienciada como expressão da subjetividade irrestrita” (LaU: 78pt).

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dinâmica do que a maior parte das abordagens propriamente institucionalistas, é inegável o

deslocamento do autor em direção a formas relativamente cristalizadas de práticas e relações

sociais. Mesmo criticando o risco de superinstitucionalização presente na Filosofia do direito

de Hegel, Honneth aceita, no entanto, um certo grau de formalização que não estava presente

na teoria da luta por reconhecimento. Se, por um lado, ele defende uma distinção entre as

ideias (a) de que uma instituição deve sua existência a um contrato sancionado pelo Estado, e

(b) que uma esfera ética necessita do estabelecimento de pressupostos jurídicos apropriados,

por outro lado, ao favorecer a segunda ideia, decerto menos enfaticamente institucionalista,

Honneth no entanto aceita que o direito garantido pelo Estado possui uma função de apoio

para criar as condições de ação intersubjetiva. Desse modo, o autor procura afastar-se da

superinstitucionalização, mas não de um certo grau de institucionalização mediante a

implementação de garantias jurídicas para o exercício de determinadas práticas sociais.

Os resultados de uma comparação entre a composição das esferas éticas com a dos

padrões de reconhecimento, especialmente entre o amor e a família e entre a estima e o

Estado, podem ser compreendidos nessa chave. Assim, por exemplo, em Luta por

reconhecimento, a esfera do amor diz respeito antes de tudo à relação de delimitação e

deslimitação entre mãe e criança nos primeiros anos de vida, a qual, se bem-sucedida, permite

ao indivíduo o desenvolvimento de sua autoconfiança (fundamental, por sua vez, para a

vivência de relações amorosas e de amizade na vida adulta, as quais dependem de sentimentos

de simpatia e atração). Já em Sofrimento de indeterminação, ganha destaque na primeira

esfera ética uma concepção de família que, embora não necessariamente conformada pelo

direito positivo mediante a regulamentação jurídica do matrimônio e das relações de

paternidade, está apoiada ao menos sobre costumes e hábitos e pode ser considerada, portanto,

uma instituição que possui “firmeza e estabilidade” precisamente na medida em que não está

submetida ao sabor dos afetos e dos sentimentos, entendidos aqui de certo modo como

caprichos subjetivos e transitórios. É verdade que Honneth insiste na inserção da amizade na

primeira esfera ética, e argumenta até no sentido de que ela poderia ser considerada o caso

exemplar do ser-consigo-mesmo-no-outro. Mas mesmo a amizade tem que ser concebida

“como uma ‘segunda natureza’ e, com isso, algo inteiramente estável” (LaU: 133pt) para

poder fazer parte da eticidade.

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Um movimento correlato pode ser observado na comparação entre a

caracterização da estima como terceiro padrão do reconhecimento e a do “Estado” como

terceira esfera da eticidade. A estima social, tal como aparece em Luta por reconhecimento, é

uma relação de reconhecimento recíproco que depende de “uma confiança emotiva” (KuA:

210pt) na posse de capacidades consideradas valiosas pelos demais membros da sociedade a

partir de uma hierarquia de valores que é cada vez mais abstrata, aberta e instável, perdendo o

caráter fixo, enrijecido e invariável típico das sociedades tradicionais. A terceira esfera da

eticidade, por sua vez, é certamente concebida por Honneth de modo menos institucionalista

que Hegel, já que são implementadas correções precisamente neste sentido. Assim, por um

lado, Honneth procura incorporar na liberdade pública da terceira esfera a necessidade de

fóruns adequados para a formação democrática da vontade e para a deliberação conjunta entre

todos os membros da sociedade acerca das questões que lhes afetam como um todo. Trata-se

da tentativa de compatibilizar a Filosofia do direito de Hegel, em seus traços mais gerais, com

a exigência pós-tradicional da uma esfera pública na qual a participação política possa ser

exercida, ao menos em princípio, de maneira igualitária e democrática. Se com isso pode-se

dizer que Honneth de fato escapa do “liberalismo autoritário” presente como tendência na

filosofia hegeliana do Estado, neutralizando até certo ponto o perigo da

superinstitucionalização da eticidade, por outro lado é preciso reconhecer que a busca, na

realidade institucional da modernidade, por plataformas ou arenas coletivas de formação

intersubjetiva da vontade – tais como as corporações, por exemplo – representa já um passo

adiante na direção de uma posição teórico-filosófica que valoriza o caráter “firme e estável”

das instituições sociais como garantidoras das condições sociais para o exercício da liberdade

e a busca pela autorrealização individual, mediante a força motivacional que deriva seja de

princípios jurídicos positivados e assegurados de modo estatal, seja de um conjunto de

práticas sociais estabilizadas na forma de hábitos e costumes duradouros.

A segunda esfera ética (a sociedade civil), por sua vez, não corresponde, tal como

é caracterizada em Sofrimento de indeterminação, à segunda dimensão do reconhecimento,

isto é, ao direito como fonte de autorrespeito. A sociedade civil, como esfera ética que sucede

a família na Filosofia do direito de Hegel e nas obras de Honneth que nela se baseiam (isto é:

Sofrimento de indeterminação e O direito da liberdade), corresponde antes à esfera do

mercado que à do direito. O âmbito da troca de mercadorias (incluindo a mercadoria trabalho)

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mediada pelo mercado decerto é regulado juridicamente, o que se expressa de forma

especialmente destacada no dispositivo do contrato, mas as próprias noções de direito e de

contrato diferem em cada modelo, inclusive porque a concepção de mercado (introduzida na

obra de Honneth apenas posteriormente a Luta por reconhecimento) altera-se pari passu. A

comparação pode ser feita, portanto, em dois momentos.

Em primeiro lugar, cabe lembrar que Honneth se viu impelido a tratar da esfera

econômica a partir das críticas à teoria da luta por reconhecimento que nela apontavam a

ausência de considerações sobre as relações de reconhecimento sob o sistema capitalista e a

consequente escamoteação das injustiças de cunho econômico-distributivo. Como foi

discutido no capítulo anterior, Honneth insiste, em Reconhecimento ou Redistribuição?, na

inserção moral do mercado, e o faz apoiando-se sobre o argumento de que a própria distinção

entre um âmbito econômico livre de valores e uma forma normativa de integração social é

fictícia e enganosa.194

No volume conjunto com Nancy Fraser, portanto, como dito

anteriormente, Honneth aprofunda a tendência presente em Luta por reconhecimento de opor-

se a paradigmas funcionalistas de teoria social, recusando todo tipo de caracterização

instrumental da ação social, inclusive a de caráter econômico. Em Sofrimento de

indeterminação, por outro lado, o mercado aparece na esfera da sociedade civil como um

momento vinculado apenas indiretamente à universalidade, visto que os indivíduos nele se

inserem de modo isolado, “com a finalidade de estabelecerem contratos mútuos sobre

transações cujo cumprimento lhes proporciona meios individuais para a realização de

interesses que não são mais tão relevantes quando considerados reciprocamente” (LaU:

137pt). Em nenhum momento isso fica tão claro quanto na distinção que Honneth faz entre a

lógica do mercado e a das corporações com o objetivo de defender a inserção destas na esfera

do Estado ou do que se pode chamar de “liberdade pública”. Como visto, o autor afirma que

“a primeira está ligada às transações mediadas pelo mercado, mas a segunda a interações

orientadas por valores” (LaU: 141pt). A lógica do mercado, portanto, não é regulada

normativamente. Ela gira em torno da busca pela satisfação de interesses privados,

autorreferidos ou egocêntricos dos indivíduos, e envolve um processo de aprendizagem de

194

Se atentarmos para o fato de que a estima social está ligada, nesse contexto, à escala de valoração da divisão

social do trabalho, podemos dizer que a esfera do mercado está mais próxima da terceira dimensão do

reconhecimento, a estima ou solidariedade, enquanto que a segunda dimensão aproxima-se de uma

concepção política de igualdade e participação.

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capacidades ligadas ao exercício da racionalidade com respeito a fins, isto é, de caráter

instrumental. A normatividade da interação econômica se resume ao reconhecimento dos

parceiros da troca como capazes de compreender o caráter vinculante do direito contratual.

Esse deslocamento se reflete, então, na concepção correspondente de direito (e,

portanto, de contrato). No livro de 1992, o reconhecimento jurídico é fruto de um processo

histórico mediante o qual a estima separa-se do respeito, sendo que a dimensão jurídica

refere-se ao reconhecimento de todo ser humano como um fim em si e como um sujeito

moralmente imputável, o que implica o estabelecimento tanto de deveres quanto de direitos de

cada indivíduo com relação a um outro generalizado. O ato de demandar direitos representa

um meio de expressão simbólica cujo reconhecimento público torna possível o autorrespeito.

No modelo teórico do reconhecimento, assim, o respeito jurídico é normativamente

carregado, demandando uma forma relativamente exigente de interação social. Não à toa,

neste contexto, a dimensão do reconhecimento jurídico está ligada ao estatuto de todos os

membros da sociedade como pessoas de direito igualmente capazes de participar da vida

social.195

Já em Sofrimento de indeterminação, como se sabe, Honneth segue de perto a

caracterização hegeliana do direito abstrato enquanto instância eminentemente negativa e por

isso insuficiente da vontade livre. Apesar de ser intersubjetivo, o contrato que está na base do

direito abstrato não exige dos sujeitos mais do que a mobilização de um mínimo de sua

personalidade e identidade. Os demais participantes do contrato representam, em sua própria

liberdade, somente um meio para a satisfação do próprio interesse. O direito abstrato permite,

portanto, que o sujeito antes se retire da eticidade, em lugar de ser um meio de inclusão na

esfera ética.

Uma consequência relevante da transformação das concepções de mercado e de

direito reside em que, com a caracterização, em Sofrimento de indeterminação, da relação

jurídica como liberdade negativa, o direito – reduzido ao direito abstrato – é como que

expulso da eticidade. Mas a situação é um pouco mais complexa, visto que Honneth acaba por

reinseri-lo na eticidade quando concebe a sociedade civil precisamente como uma esfera de

relações econômicas reguladas apenas pela liberdade jurídica expressa no contrato. A

195

Além disso, em Luta por reconhecimento a indeterminidade fundamental inerente ao estatuto de pessoa

moralmente imputável não redunda em sofrimento e patologias sociais, mas em “uma abertura estrutural do

direito moderno para ampliações e precisões gradativas” (KuA: 182pt).

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concepção de eticidade torna-se, assim, diversificada, pois inclui a liberdade negativa como

um momento de seu processo de desenvolvimento.

2) Também no que diz respeito ao segundo aspecto de aproximação entre

Sofrimento de indeterminação e as obras centradas na categoria do reconhecimento há

diferenças que precisam ser colocadas em relevo por uma abordagem comparativa. Isso

porque as experiências negativas de desrespeito ou de frustração das expectativas de

reconhecimento e as de sofrimento de indeterminidade são profundamente diferentes quando

se considera o papel que elas exercem no contexto geral da teoria honnethiana dos processos

sociais e do desenvolvimento histórico. Vimos anteriormente (cf. especialmente o item 2.2.)

que o desrespeito, enquanto violação de expectativas de reconhecimento consideradas

justificadas, produz um tipo de sofrimento que é moral e se expressa no sentimento de

injustiça, e que esse sentimento traz consigo possibilidade de se alcançar uma consciência de

injustiça. A experiência de injustiça nessas duas dimensões – sensível e cognitiva – pode

então levar os atores à resistência contra os fenômenos tido como injustos, e essa resistência

pode se dar de maneira passiva ou ativa, individual ou coletiva. De qualquer forma, estão

abertas as portas para um confronto, para uma luta por reconhecimento que,

independentemente de seu resultado concreto, não pode deixar a realidade social inalterada,

possibilitando um processo histórico de aprendizagem. A luta, portanto, tem um papel

transformador que certamente não tem de modo necessário um caráter progressista, mas

configura um momento de abertura em que é possível disputar os rumos das mudanças

sociais. Para o Honneth da década de 1990, a ampliação das relações de reconhecimento

depende, portanto, de um processo conflituoso que tem seu estopim, por assim dizer, em um

ato de desrespeito que leva ao desvelamento da infraestrutura moral da sociedade. Se a

passagem para uma ordem de reconhecimento mais ampla, democrática e inclusiva depende

da luta que é impulsionada pelo desrespeito, a experiência do desrespeito não pode ser

considerada uma patologia social. Ao contrário: o sofrimento e o sentimento de injustiça

causados pelo ato de desrespeito são parte constitutiva do devir tanto individual quanto

histórico-social.

Já no livro de 2001, a ênfase na ideia de sofrimento não exerce a mesma função

teórica. Em primeiro lugar, o sofrimento de indeterminidade não parece ser o resultado de um

processo intersubjetivo, e sim o oposto: trata-se do exercício de formas de liberdade que são

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insuficientemente intersubjetivas. Em segundo lugar, e talvez por isso, o sofrimento de

indeterminidade não aparece no livro como potencial gatilho para lutas sociais. As

consequências do sofrimento são caracterizadas por Honneth muitas vezes mediante

expressões que denotam precisamente a ausência de disposição para o confronto social:

apatia, vacuidade, abatimento, solidão. Apesar de torturante, o sentimento de vazio que marca

o sofrimento de indeterminidade não parece ter a capacidade de impulsionar os sujeitos para

um conflito que contém em si a possibilidade de superação do estado de coisas que está na

base do sofrimento. Vale notar ainda que o sofrimento de indeterminidade está circunscrito ao

direito abstrato e à moralidade, ao passo que as esferas éticas estão neutralizadas de conflitos

normativos, de uma forma que lembra vagamente a distinção habermasiana entre sistema e

mundo da vida, ao menos na versão relativamente caricata criticada pelo próprio Honneth em

Crítica do poder. O desrespeito, o sofrimento e a luta são expulsos da eticidade, e a única

coisa que pode impedir a emergência do sofrimento ou dele libertar os sujeitos é o

confinamento das formas negativas (jurídica ou moral) de liberdade ao seu domínio legítimo.

Quando avançam para além do âmbito que lhes cabe, afinal, as formas monológicas de

liberdade penetram no domínio da liberdade comunicativa, interferindo negativamente nas

esferas relacionais da eticidade.196

Apenas a mudança de perspectiva que permite uma

reconexão com “o conteúdo racional de nossa práxis da vida” (LaU: 100pt) pode ter o efeito

terapêutico que, antes, estava vinculado à luta social. Agora, aquele processo se detém no

sofrimento de indeterminidade expresso na apatia e no abatimento; alternativamente, ele pode

levar à compreensão do sofrimento como resultado de uma confusão filosófica e dessa

compreensão surge a possibilidade de libertação do sofrimento (apesar de não estarem claros

os elementos motivacionais que suscitariam esse percurso). Aqui, entretanto, essa terapia

carece dos elementos práticos intersubjetivos e conflituosos que caracterizam o processo de

aprendizagem que decorre da luta social. Nesse sentido, o modelo da liberdade social

inaugurado em Sofrimento de indeterminação parece ter deixado para trás um dos aspectos

mais originais da renovação honnethiana da teoria crítica.

O distanciamento com relação ao modelo crítico da luta por reconhecimento é

acompanhado, contudo, de uma vantagem teórica que não deve ser subestimada. Trata-se da

196

Não fica claro como precisamente esse processo se diferencia daquilo que Habermas, na linha teórica

herdada de Kant e seu projeto crítico, chamou de “colonização”.

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possibilidade que se abre para caracterizar determinados estados de coisas como propriamente

patológicos, isto é: como condições sociais que representam obstáculos à emancipação e cuja

superação, portanto, deve estar no horizonte da teoria crítica. Afinal, quando o sofrimento

causado pelo desrespeito enquanto violação de expectativas de reconhecimento é concebido

como algo que faz parte do desenvolvimento por assim dizer saudável das sociedades

modernas, não cabe considerar a sua ocorrência como manifestações de uma patologia social.

O sofrimento de indeterminidade, por outro lado, é fruto de processos sociais que não contêm

em si, a princípio, o impulso para a sua própria superação num estágio posterior de

desenvolvimento, nem apontam para brechas e possibilidades de transformação da realidade

social. A indeterminidade consiste, ao contrário, na própria ausência de tensão, na apatia, na

incapacidade de ação, no isolamento e na solidão. Essa incapacidade de articular o sofrimento

caracteriza, então, o que há de patológico na sociedade.197

Um passo adiante consistiria em pôr em relevo essa conexão entre as patologias

sociais que ocasionam o sofrimento de indeterminidade e precisamente um travamento do

conflito e das lutas sociais. Uma tentativa nessa direção aparece no segundo ensaio que

Honneth dedica ao tema das patologias sociais.

197

É difícil não remeter essa contraposição entre desrespeito e indeterminidade (sendo que ambos causam

sofrimento) à oposição se pode implementar entre o crime e a anomia, tal como concebidos por Durkheim

(1991 [1893], 1895 e 2000 [1897]). Tanto o crime quanto o desrespeito são “normais”, ao passo que a

anomia e a indeterminidade são “patológicos”. A comparação é ainda reforçada se lembrarmos que o crime

tinha um papel central no desenvolvimento da luta por reconhecimento nos escritos do jovem Hegel

mobilizados por Honneth no livro de 1992.

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Excurso II: Patologias da razão

Assim como no ensaio de dez anos antes sobre as patologias do social, em “Uma

patologia social da razão” (2004)198

Honneth argumenta em favor de uma crítica social mais

robusta que a permitida por concepções liberais de justiça – hoje dominantes na filosofia

política – que procuram critérios para identificar normativamente as injustiças sociais mas não

visa compreender o quadro institucional das injustiças mediante a sua vinculação com um

determinado tipo de sociedade (PdV: 29de; 20en). O autor considera que, no campo crítico,

“essa negatividade não deve ser delimitada em sentido mais restrito por infrações de

princípios de justiça social, mas antes, em sentido amplo, por violações das condições da

vida boa ou bem-sucedida” (PdV: 31de; 22en). O enfraquecimento da crítica social foi

aprofundado, diz Honneth, pelas transformações políticas das últimas décadas: um dos efeitos

da pulverização das grandes narrativas em inúmeras visões de mundo culturalmente

contingentes consistiu na diminuição das expectativas acerca do escopo normativo da crítica

social.

De acordo com a tendência liberal dominante, a questão motivacional tampouco é

tarefa da crítica: “em contrapartida, a questão de por que os concernidos mesmos não

problematizam ou atacam tais males morais não cai mais na jurisdição da crítica social

como tal” (PdV: 40de; 29en). Isso está conectado a um problema mais geral: “a questão da

disposição motivacional dos sujeitos, que aqui deveria estar no centro, em boa medida

desaparece porque a reflexão sobre as condições da implementação na prática não é mais

algo que se espera da crítica mesma” (PdV: 49de; 37en). A própria relação entre teoria e

prática é, portanto, excluída das reflexões, de modo que não cabe mais à crítica da sociedade,

hoje, pensar sobre como pode contribuir para superar as injustiças e as patologias sociais.

A teoria crítica aparece aqui, então, como uma força contrária a essa tendência,

pois ela requer um posicionamento mais substancial do teórico frente à realidade criticada.199

198

Título original: “Eine soziale Pathologie der Vernunft. Zur intellektuellen Erbschaft der Kritischen Theorie”

(abreviado daqui em diante como PdV).

199 Diferentemente do texto de 1994, aqui Honneth considera a detecção de patologias sociais como

característica específica da teoria crítica, e não da filosofia social em geral. Há também uma maior

delimitação do que deve ser entendido como fenômeno patológico: ao passo que o título do ensaio de 1994,

ao utilizar a expressão no plural, faz referência a uma multiplicidade de patologias do social, agora trata-se

de uma patologia social da razão. Correspondentemente, a reconstrução da história da tradição crítica não vai

mais de Rousseau a Butler, ficando restrita ao caminho que leva de Hegel a Habermas. Isso porque a teoria

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Na medida em que se exige um alto grau de entendimento intersubjetivo, “na teoria crítica é

pressuposto um ideal normativo de sociedade que é incompatível com as premissas

individualistas da tradição liberal” (PdV: 38de; 27en). Nos termos de Horkheimer em

“Teoria tradicional e teoria crítica”, trata-se de uma comunidade de homens livres (1975

[1937]). Por outro lado, entretanto, a teoria crítica não se alinha ao comunitarismo, na medida

em que considera que “a orientação para a práxis libertadora da cooperação não deve

resultar de sentimentos de pertencimento ou consonância, mas antes de um discernimento

racional” (PdV: 39de; 28en). O tipo de universalidade presente no quadro teórico crítico é

submetido, desse modo, aos critérios da justificação racional. Com isso, Honneth procura se

afastar do particularismo ético característico das concepções comunitaristas de filosofia

política.

Essa ideia já estava parcialmente presente no texto de 1994 sobre as patologias do

social. Aqui, como lá, Honneth destaca que o vocabulário próprio da tradição crítica está

fundado na distinção básica entre o normal (ou “intacto”) e o patológico. Tal negatividade

aparece em categorias como organização irracional (Horkheimer), mundo administrado

(Adorno), sociedade unidimensional e tolerância repressiva (Marcuse), e colonização do

mundo da vida (Habermas). Essas formulações contêm a noção implícita de um estado intacto

de relações sociais no qual todos os membros têm a possibilidade de autorrealizar-se. Mais

uma vez, portanto, um ponto decisivo que os teóricos críticos têm em comum é um

“negativismo” da teoria social (sozialtheoretischer Negativismus; PdV: 31de) que não se volta

apenas contra situações injustas, mas essencialmente contra formas de vida patológicas.

Aqui, contudo, o que unifica as diferentes vozes da teoria crítica não é apenas o

fato de que todas se colocam como tarefa identificar patologias sociais que impedem, limitam

ou deformam as possibilidades de autorrealização humana: para Honneth todos os autores do

campo crítico consideram, mais especificamente, haver uma relação entre as patologias

sociais e uma racionalidade deficiente. Deste modo, a teoria crítica defende uma mediação

entre teoria e história que se expressa em um conceito de “razão socialmente efetiva” (sozial

wirksame Vernunft; PdV: 30de). O objetivo do autor reside, então, em recuperar o potencial

contestatório da ideia de uma patologia social da razão: se “o passado histórico deve ser, com

crítica ainda se apoia sobre a possibilidade de ver, de alguma forma, a razão como fio condutor da história

(PdV: 28de; 20en).

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uma intenção prática, entendido como um processo de formação cuja deformação patológica

[...] apenas é superável quando se dá início, entre os envolvidos, a um processo de

esclarecimento” (PdV: 30de; 21en), a teoria crítica pode ter um papel fundamental na

superação prática de situações patológicas. Teoria e prática estão, aqui, necessariamente

vinculadas uma à outra.

Honneth caracteriza os distúrbios que podem ser considerados patológicos em

termos hegelianos:200

eles expressam-se na perda de sentido ocasionada pela apropriação

insuficiente da razão “objetiva” já tornada possível em determinada época histórica. A cada

etapa do trajeto, estabelecem-se novas instituições éticas que permitem aos indivíduos

direcionar suas vidas de acordo com fins socialmente reconhecidos e, assim, experienciar suas

vidas como plenas de sentido. Nesse contexto, “todo aquele que não permite que sua vida

seja determinada por tais fins racionais objetivos sofrerá em contrapartida as consequências

da ‘indeterminidade’ e desenvolverá sintomas de perda de orientação” (PdV: 33de; 23en).

É preciso destacar que, como de costume, Honneth procura se afastar dos aspectos

mais idealistas da filosofia de Hegel. Nesse texto, é a introdução definitiva da sociologia no

quadro teórico de referência da teoria crítica que propicia o abandono não só da linguagem

hegeliana da filosofia do espírito, como também da filosofia especulativa da história que

ainda informava, na visão de Honneth, os modelos teóricos de autores como Marx e Lukács.

A teoria crítica precisa, para o autor, apoiar-se na pesquisa social empírica como instrumento

imprescindível para avaliar, por exemplo, a incidência de patologias em determinada

sociedade e a disposição dos atores sociais para engajar-se, na arena pública, em conflitos

sociais para superá-las (PdV: 50de; 37en). Uma abordagem propriamente sociológica da

deformação da racionalidade social permite a Honneth, também, tomar distância com relação

à tendência liberal predominante na filosofia moral e política, para a qual parece ser suficiente

expor determinadas injustiças na sociedade com base em valores e normas bem

fundamentados, porém sem lastro na experiência quotidiana dos atores sociais.

A pergunta que então deve se colocar diz respeito ao conteúdo concreto dessa

ideia de racionalidade. Honneth reconhece que, de Horkheimer a Habermas, há uma grande 200

Coerentemente com a publicação, pouco tempo antes, de Sofrimento de indeterminação, Honneth recorre

aqui não mais aos escritos hegelianos de Jena, mas sim à Filosofia do direito de Hegel, onde o autor afirma

encontrar as raízes da ideia ética que pretende atualizar e fundamentar nos termos da teoria social

contemporânea.

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variedade de concepções, mas indica também que há um ponto em comum não só entre os

autores considerados membros da teoria crítica em sentido estrito, mas também entre estes e

Hegel, qual seja: a efetivação da racionalidade historicamente latente se manifesta em uma

espécie cooperativa de liberdade, segundo a qual a autorrealização individual apenas pode ser

bem-sucedida se estiver conectada, em seus fins, com a autorrealização de todos os outros

membros da sociedade. Essa ideia, que se tornará central em O direito da liberdade, não é,

contudo, levada adiante no texto. Mais à frente, Honneth conecta a ideia de racionalização a

um grau crescente de reflexividade na superação de problemas sociais, de modo que “devem

ser distinguidos tantos aspectos de racionalidade quantos são os desafios socialmente

perceptíveis na reprodução (condicionada ao assentimento) das sociedades” (PdV: 44de;

32en). Isso não impede que a efetivação da razão seja vista como um “processo conflituoso e

estratificado de aprendizagem [...] no qual um conhecimento generalizável é forjado apenas

muito gradativamente, no curso de soluções aprimoradas para problemas e contra a

resistência dos grupos dominantes” (PdV: 43de; 31en), mas certamente restringe a ideia de

racionalidade ao aspecto funcional da reprodução social. A tensão entre essas duas formas de

conceber a “racionalidade historicamente efetiva” perpassa todo o texto – e também boa parte

do modelo crítico de Honneth.

Esse novo modo de colocar a questão das patologias sociais tem implicações

importantes. Honneth destaca a conexão que mormente existe entre a ocorrência de injustiças

ou patologias sociais e a falta de respostas a elas no espaço público: “a injustiça [Mißstand]

social possuiria então, entre outras, a propriedade de originar por seu turno precisamente

aquele silêncio ou aquela apatia que ganha expressão na ausência de reações públicas”

(PdV: 40de; 29en). A teoria crítica deve, de fato, “Diferentemente das abordagens que hoje

alcançaram dominância, vincular a crítica das injustiças sociais a um esclarecimento dos

processos que contribuíram para o seu ofuscamento geral” (PdV: 41de; 30en). Apesar de não

utilizar a expressão “crítica da ideologia”,201

Honneth dela se aproxima ao reconhecer que a

ideia do “obscurecimento da injustiça” é retirada da obra de Marx (tendo raízes nos conceitos

de fetichismo da mercadoria e de reificação) e está presente, com diferentes roupagens, em

diversos modelos críticos – nas categorias, por exemplo, de contexto de ofuscamento

201

Parece-nos que os autores da teoria crítica que vieram depois de Habermas não abandonaram a crítica da

ideologia, mas passaram a chamá-la de “distúrbios de segunda ordem”. Cf., por exemplo, Stahl (2013), Zurn

(2011) e Celikates (2009), entre outros.

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(Verblendungszusammenhang) de Adorno, a unidimensionalidade de Marcuse, a reificação

de Lukács e mesmo na ideia de positivismo, tal como a concebem tanto Adorno quanto

Habermas. Honneth relaciona esse fenômeno, além disso, ao desenvolvimento da economia

capitalista, que é vista aqui como a ordem social na qual “são recompensadas com sucesso

social sobretudo atitudes e orientações cuja fixação na utilidade individual impele a uma

relação meramente estratégica consigo mesmo e com os demais sujeitos”, onde “um

determinado tipo de racionalidade limitada e ‘reificadora’ possui dominância prática” (PdV:

48de; 35-6en).

A relação entre a deformação social da racionalidade objetivamente disponível

como patologia social propriamente dita, de um lado, e como ofuscação ou obscurecimento da

situação patológica, de outro, redunda numa situação aparentemente sem saída. Os teóricos

críticos compartilham:

não apenas o esquema formal de um diagnóstico do capitalismo como uma relação

social de racionalidade bloqueada ou unilateralizada, mas também a noção sobre o

meio adequado de terapia: as forças que podem contribuir para a superação das

patologias sociais devem advir precisamente daquela razão cuja efetivação é

impedida pela forma social de organização do capitalismo (PdV: 48de; 36en).202

Ora, se o que pode levar à superação das patologias sociais é justamente aquilo

que elas impedem, como se pode pensar a possibilidade da emancipação? Para Honneth, a

resposta a essa questão deve ser procurada com a ajuda de teorias sociais e psicanalíticas que

buscam “revelar as raízes motivacionais que mantêm viva no sujeito individual, apesar de

todo dano racional, a disposição para a cognição moral” (PdV: 51de; 38en). É preciso

explicar, então, de onde podem emergir as forças subjetivas que teriam a capacidade de

oferecer aos sujeitos a oportunidade de converter o conhecimento crítico em prática

emancipatória apesar de toda a “cegueira, unidimensionalidade ou fragmentação” (PdV:

49de; 36en). A saída de Honneth consiste em reconhecer que a patologia social do presente

distorce, deforma e limita a racionalidade social que é a única possibilidade de superação das

injustiças sociais – mas não a destrói inteiramente (PdV: 50de; 37en).

O fato de, sob o capitalismo, a racionalidade estar apenas distorcida, e não

completamente eliminada, permite que os atores sociais busquem a superação da patologia

202

Essa ideia está de acordo com a sugestão de Freud de que “a pressão do sofrimento compele à cura mediante

precisamente as mesmas forças racionais cuja função foi prejudicada pela patologia” (PdV: 53de; 39-40en).

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social da razão – mas não explica o que os impele nessa direção. Dito de outro modo: está

dada até o momento a possibilidade dos atores se engajarem na luta emancipatória, mas não

foi discutida a motivação para fazê-lo. É por isso que Honneth considera importante

estabelecer a conexão entre a distorção da razão como patologia social e o sofrimento

individual dela decorrente. Diz o autor: “todo desvio do ideal assim esboçado deve conduzir a

uma patologia social na medida em que os sujeitos sofrem reconhecivelmente de uma perda

de metas universais, comunais” (PdV: 34de; 24en). É o sofrimento causado pela patologia

social da razão que compele os atores sociais a se rebelarem contra a sua condição e a se

engajarem em uma luta para superá-la.

Honneth constrói esse argumento em duas etapas. Em primeiro lugar, o autor

apresenta a tese segundo a qual é possível inferir, a partir do fato de que uma racionalidade

deficiente conduz a sintomas de uma patologia social, que os atores sociais são submetidos a

experiências de sofrimento advindas das condições existentes na sociedade. Todo sujeito sofre

com a restrição da possibilidade de realizar sua concepção de vida boa, que é consequência da

distorção da racionalidade social.203

É importante perceber que, aqui, o sofrimento individual

não aparece como um mero sintoma que indica a existência de uma patologia social, mas sim

como o motivo mesmo pelo qual determinados fenômenos podem ser considerados

patológicos: “Os desvios do ideal que seria alcançado com a efetivação social do universal

racional podem ser descritos como patologias sociais porque eles devem ser acompanhados

de uma perda sofrida de chances de autorrealização intersubjetiva” (PdV: 35de; 25en). E

Honneth não considera que este seja um acréscimo seu à teoria crítica: de Horkheimer a

Habermas, a ideia central é a de que “a patologia da racionalidade social conduz a danos que

se manifestam de modo não menos importante na experiência dolorosa da perda de

faculdades racionais” (PdV: 52de; 39en).204

Antes de passar para o segundo passo do argumento, cabe sublinhar que está

sendo defendida aqui a tese antropológica de que os seres humanos não podem ficar

203

Diz Honneth: “nenhum indivíduo pode evitar se ver como prejudicado [beeinträchtigt] ou se deixar descrever

como prejudicado pelas consequências de uma deformação da razão porque com a perda de um universal

racional afundam também as chances de uma autorrealização bem-sucedida, apoiada sobre a cooperação

recíproca” (PdV: 51de; 38en).

204 Honneth lamenta que, apesar disso, essa ideia não foi suficientemente discutida e desenvolvida pelos autores

da teoria crítica.

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indiferentes a uma restrição de suas capacidades racionais: “uma vez que sua autorrealização

está vinculada ao requisito de um exercício cooperativo de sua razão, eles não podem evitar

sofrer, em um sentido psíquico, com a deformação dela” (PdV: 52-3de; 39en). Essa é uma

ideia que tem origem, diz o autor, nos escritos de Freud apropriados por diversos autores do

campo crítico que foram fortemente influenciados pelo insight freudiano acerca da conexão

interna que deve existir entre um estado psicológico intacto e uma forma não distorcida de

racionalidade (PdV: 53de; 39en). Nas palavras de Honneth:

O ímpeto para conectar a categoria do ‘sofrimento’ com patologias da

racionalidade social advém provavelmente apenas com a ideia freudiana de que

toda enfermidade neurótica resulta de uma deterioração do Eu racional e deve

desembocar em uma pressão individual de sofrimento [Leidensdruck] (PdV: 51-2de;

38en).

A segunda etapa do argumento consiste na ideia de vinculação entre sofrimento

social e o ímpeto de libertar-se dele. Trata-se da noção de interesse emancipatório, que

também tem na psicanálise de Freud (além de Habermas) uma referência: “dela tomam os

autores o pensamento de que as patologias sociais devem sempre se manifestar em um

sofrimento que mantém vivo um interesse na força emancipatória da razão” (PdV: 49de;

36en). Assim como no caso do paciente examinado pelo psicanalista, na sociedade afetada por

uma patologia os atores sociais desejam – em algum nível – libertar-se de sua condição

patológica:

De todo modo, é pressuposto na teoria crítica que esse sofrimento subjetivamente

vivido ou objetivamente atribuível conduz, entre os membros da sociedade, ao

mesmo desejo de cura e de libertação dos males sociais que o analista deve supor

em seus pacientes; e aqui, como lá, o interesse na própria recuperação deve ser

documentado mediante a disposição [Bereitschaft] para reativar, contra toda

resistência, precisamente aquelas forças racionais que foram deformadas pela

patologia individual ou social (PdV: 54de; 40en).205

É por isso que Honneth considera essencial, para a teoria crítica, esperar de seus

destinatários um interesse latente em explicações razoáveis e interpretações racionais que

205

Nesse texto, portanto, permanece a tensão ou ambiguidade entre sofrimento subjetivamente experienciado e

sofrimento objetivamente atribuível: “Na teoria crítica, não é sempre claro se se pode falar dessa pressão do

sofrimento [Leidensdruck] que busca a cura apenas no sentido de uma experiência subjetiva ou também no

sentido de um evento ‘objetivo’” (PdV: 53de; 40en). Neste momento ainda sem muita centralidade, essa

questão será importante para a discussão das “doenças da sociedade”, que Honneth traz à tona dez anos

depois.

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252

contribuem para reconstruir uma racionalidade social que pode, por sua vez, satisfazer o

desejo pela libertação do sofrimento (PdV: 54de; 40en).206

Se a ideia de interesse emancipatório não for mantida como traço fundamental da

teoria crítica, Honneth teme que ela esteja fadada a tornar-se completamente inofensiva diante

das forças dominantes. O interesse pela emancipação confere o impulso racional para que a

teoria relacione-se reflexivamente com uma práxis potencial na qual as elucidações que ela

oferece sejam implementadas tendo em vista a liberação com relação ao sofrimento. Nesse

sentido, “sem um conceito realista de ‘interesse emancipatório’ que supõe um cerne

inerradicável de responsividade racional dos sujeitos para os interesses da crítica, esse

projeto teórico não possui futuro algum” (PdV: 55de; 41en).

206

Uma consequência do modelo crítico defendido por Honneth é um afastamento da tradição marxista no que

se refere ao destinatário da teoria: aqui, o destinatário da teoria não é mais o proletariado, mas o conjunto dos

membros da sociedade, os quais são todos virtualmente aptos (em termos motivacionais) a buscar reativar

uma capacidade racional que se encontra reprimida, submersa. Esse pressuposto tem ainda efeitos relativos à

própria relação entre autores e destinatários da teoria: “os representantes da teoria crítica não compartilham

com os seus destinatários os mesmos objetivos ou projetos políticos, mas antes um espaço de razões

potencialmente comuns que mantém o presente patológico aberto para a possibilidade de uma

transformação mediante discernimento racional” (PdV: 54de; 40en).

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253

III

LIBERDADE

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254

5. Esboço de uma eticidade democrática

Em 2011, Honneth publica O direito da liberdade,207

um extenso volume (a

edição alemã conta com mais de seiscentas páginas) no qual o autor persegue um projeto

ambicioso: em uma espécie de versão pós-convencional da Filosofia do direito hegeliana,

Honneth pretende destrinçar os diferentes sentidos que a liberdade individual – “o ideal

moderno por excelência” – assumiu desde a filosofia social de Rousseau até as correntes

filosóficas contemporâneas,208

para então identificar as patologias sociais que decorrem da

generalização indevida das formas incompletas de liberdade representadas pelo direito (ou

liberdade negativa) e pela moralidade (ou liberdade reflexiva).209

Na terceira parte do livro,

Honneth pretende formular um diagnóstico de tempo de longo alcance, indicando os avanços

e retrocessos da efetivação da liberdade social (a liberdade individual na sua versão mais

elevada e abrangente) em cada uma das três esferas relacionais da eticidade nos últimos

duzentos anos de história da Europa ocidental.210

Especialmente na segunda parte, a argumentação de Honneth segue de perto a

caracterização da liberdade jurídica e da liberdade moral presente em Sofrimento de

indeterminação, apesar de existirem diferenças que serão abordadas adiante. Mas é na terceira

parte do livro que podem ser encontradas as dissonâncias mais evidentes com relação ao livro

de 2001, já que, em O direito da liberdade, Honneth passa a tomar a eticidade não apenas em

seu caráter “terapêutico”, mas também em sua reprodução transtornada, problemática e

marcada por anomalias. Por esse motivo, e também por conta da extensão dessa terceira parte

do livro, ela não será apresentada em sua totalidade. A exposição terá como fio condutor uma

tentativa de sistematizar os fenômenos disruptivos que Honneth chama de “desenvolvimentos

anômalos” (Fehlentwicklungen) a fim de estabelecer, ao final do capítulo, uma interpretação

comparativa com relação à ideia de patologias sociais presente na segunda parte do livro.211

207

Título original: Das Recht der Freiheit: Grundriss einer demokratischen Sittlichkeit (abreviado doravante

como RdF).

208 Trata-se da parte A (Presentificação histórica: o direito da liberdade), que abordaremos no item 5.1.

209 Parte B (A possibilidade da liberdade), tematizada no item 5.2.1.

210 Parte C (A realidade da liberdade), objeto dos itens 5.2.2. e 5.2.3.

211 Cf. item 5.2.4.

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255

5.1. Presentificação histórica: os sentidos da liberdade como conceito filosófico

A primeira parte de O direito da liberdade é dedicada a contar a história

intelectual dos três sentidos de liberdade identificados por Honneth na história europeia. Para

cada uma – a negativa, a reflexiva e a social – o autor cria uma narrativa que explica o

caminho filosófico percorrido desde seu surgimento até as correntes teóricas contemporâneas

que bebem de cada uma dessas três fontes.

5.1.1. Direito

Segundo a história conceitual apresentada por Honneth, a liberdade negativa ou

jurídica surge com as guerras civis-religiosas dos séculos XVI e XVII na Europa. O grande

representante desta concepção filosófica de liberdade é, em sua origem, Thomas Hobbes, para

quem a autodeterminação individual repousa sobre a ausência de oposição à vontade do

sujeito. Aqui, não importa o tipo de fim perseguido pelos indivíduos; o que vale é que não

haja obstáculos externos para que ele seja alcançado.212

Com essas poucas determinações,

Hobbes considera estar suficientemente caracterizada a liberdade natural dos seres humanos.

Nas palavras de Honneth:

Não é necessário nenhum passo adicional na reflexão, uma vez que para a

realização da liberdade não cabe uma justificação dos propósitos em virtude de

pontos de vista de grau superior. “Negativa” é essa classe de liberdade, já que não

se deve voltar a questionar seus objetivos quanto à sua capacidade de satisfazer ou

não suas condições de liberdade; tampouco o devem ser quanto à escolha

existencial e aos desejos que serão satisfeitos, bastando o ato puro e desimpedido

do decidir para que a ação resultante seja qualificada como “livre” (RdF: 49de;

49pt; 40es).

Independentemente do uso político que esta concepção de liberdade pode ter tido

na época de Hobbes,213

o que permaneceu dela foi um núcleo bastante estreito que podemos

sintetizar como a capacidade de assegurar aos sujeitos uma margem de ação protegida para

212

Diz o autor: “uma vez que a liberdade do homem deve consistir em fazer tudo o que seja de seu interesse

próprio imediato, não devem ser tomadas como restrições às ações livres mesmo as complicações

motivacionais que resultam, no mais amplo sentido, de uma falta de clareza sobre suas próprias intenções”

(RdF: 45de; 44pt; 37es).

213 Trata-se afinal, segundo Quentin Skinner, de fazer oposição à crescente influência do republicanismo político

na guerra civil inglesa (RdF: 46de; 37es).

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atitudes egocêntricas, liberadas da pressão da responsabilidade intersubjetiva. Essa ideia

detém, para Honneth, algum nível de correção intuitiva para além de sua inserção no debate

público do momento.214

Combinada ao individualismo, que atinge seu ápice no século XX, a

liberdade negativa coloca ênfase sobre o direito do indivíduo à sua própria especificidade e

até mesmo à excentricidade (RdF: 39es; 47-8de).

A teoria da justiça que parte de um conceito negativo de liberdade deve, por sua

vez, identificar os arranjos institucionais capazes de garantir um âmbito privado de ações

autointeressadas. Ela assume a forma, de modo geral, de um experimento intelectual no qual o

estabelecimento consensual de um contrato permite a abolição de um estado natural fictício,

no qual as vontades egocêntricas dos sujeitos encontrar-se-iam livres de quaisquer amarras, e

passa-se assim a um estado civil ou político no qual a liberdade individual (negativa) de cada

um é garantida mediante um acordo recíproco de não violência. E é aqui que começam a

aparecer os limites desta primeira concepção de liberdade:

Toda tentativa de retirar do estado fictício de natureza a drástica belicosidade

hobbesiana, na medida em que são implantadas restrições de caráter moral, conduz

aos limites do modelo de liberdade negativa; afinal, a efetividade daquela moral só

poderia ser compreendida sem contradições como uma espécie de autorrestrição

individual, de modo que, já de início, a liberdade seria provida de um elemento de

reflexividade (RdF: 53de; 53pt; 43es).

A passagem do estado natural para uma comunidade regida pelo contrato

pressupõe que haja algum tipo muito básico de moralidade (ou ao menos o princípio do

consenso) que permita aos atores sociais pôr em prática uma autolimitação de sua liberdade

inicial, “pois a resposta à referida questão e, portanto, o projeto de um determinado

ordenamento jurídico só podem ter validade jurídica se for demonstrado hipoteticamente que

no estado pré-contratual todos os sujeitos poderiam tê-lo aceitado” (RdF: 54de; 54pt; 43-

4es).

Numa ordem jurídica desse tipo, os indivíduos não contam com a possibilidade de

revisar (isto é: avaliar e, dependendo do caso, renovar ou rejeitar) conjuntamente sua

214

Ele procede, então, a um rastreamento deste núcleo de sentido até os dias atuais, passando por John Locke e

John Stuart Mill até chegar em Jean-Paul Sartre e Robert Nozick. Em Nozick, há uma radicalização da ideia

negativa de liberdade somada a uma adaptação às sociedades pluralistas e altamente individualizadas do

presente: aqui, nem mesmo a racionalidade da vontade como interesse próprio é mantida como requisito para

a autonomia individual; uma vez que os seres humanos são, nesta chave interpretativa, impenetráveis uns aos

outros devido à enorme complexidade de suas pulsões e inclinações, o único critério que limita a liberdade é

a compatibilidade externa com os objetivos dos demais sujeitos (RdF: 50-1de).

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aceitação às decisões estatais, pois não há procedimentos para a criação e revisão dos

princípios jurídicos. Como consequência, os atores sociais apenas podem medir a

legitimidade da ordem estatal de modo individual, tendo como padrão somente seus próprios

interesses (RdF: 55de; 44es).

5.1.2. Moralidade

Partir de uma liberdade apenas negativa não permite, então, conceber os cidadãos

como autores de, e capazes de revisar, seus próprios princípios jurídicos – posto que para isso

seria necessário conceitualmente acrescentar, no desejo por liberdade do indivíduo, um ponto

de vista de nível superior, segundo o qual se justificaria atribuir a ele um interesse na

cooperação com todos os demais. Para que a liberdade individual seja concebia também como

autonomia ou autodeterminação, é necessário que a própria definição dos fins almejados

possa ser considerada como um ato livre: “o que o indivíduo realiza quando age ‘livremente’

deveria poder ser visto como resultado de uma determinação que ele próprio realiza para si”

(RdF: 57de; 57pt; 45es). Sem isso, a determinação dos propósitos dos indivíduos é sempre

heterônoma, referida a forças causais.215

A liberdade reflexiva ou moral aparece no texto, então, como uma forma (mesmo

que preliminar) de superar esses limites. No entanto, ao contrário da liberdade negativa, que é

uma conquista da modernidade, a forma reflexiva remonta aos antigos. Seu cerne consiste

sobretudo em pensar uma autorrelação do sujeito: é livre aquele que se deixa guiar apenas

pelos seus próprios fins, que são determinados reflexivamente – e essa determinação não é

prévia, mas parte constituinte da própria liberdade. É o momento da autorreflexão que está

ausente na forma anterior (lógica, e não cronologicamente) de liberdade. O representante

maior dessa figura da liberdade é Jean-Jacques Rousseau, cuja obra deu origem às duas

vertentes da liberdade reflexiva na modernidade: uma fundada na ideia de autonomia e outra

215

Nas palavras de Honneth: “o conceito de liberdade negativa se refere inteiramente à liberdade ‘externa’ da

ação, enquanto seus objetivos são confiados às forças que operam de maneira causal: em Hobbes era a

natureza contingente do interesse próprio individual; em Sartre, a espontaneidade da consciência pré-

reflexiva; e em Nozick, por fim, o acaso de desejos e preferências pessoais que decidem por quais objetivos o

sujeito vai orientar sua ação”. O autor continua: “Em nenhum desses casos a liberdade do sujeito adentra a

possibilidade de estabelecer seus próprios fins, que ele deseja realizar no mundo; é sempre a causalidade,

seja da natureza interna, seja do espírito anônimo que conduz o sujeito, por detrás de suas costas, à escolha

de seus objetivos de ação” (RdF: 57de; 57pt; 45-6es).

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na de autorrealização. O cerne dessa concepção de liberdade consiste na Selbstgesetzgebung,

o dar-se a si próprio a sua lei, enquanto que agir de acordo com os impulsos, e não com a

vontade formada de modo autorreflexivo, redunda em uma ação heterônoma e, assim, não

livre.

A corrente da autonomia, que tem sua inspiração especialmente em Do contrato

social de Rousseau, é aquela que vai dar em Kant, para quem a liberdade é resultado da

autolegislação. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, como se sabe, o critério para

a ação autônoma é a universalizabilidade das máximas da ação, que são autolimitadas de

modo racional. Segundo a atualização que Honneth faz dessa primeira vertente para os dias

atuais, temos novamente uma bifurcação: de um lado, a reconstrução da capacidade de

liberdade segundo uma reformulação empírica (representada por Jean Piaget, Sigmund Freud

e Lawrence Kohlberg), e, de outro, a reconstrução a partir da intersubjetividade (segundo a

correção intersubjetivista implementada por Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel).

Partindo de Emílio, Confissões e A nova Heloísa, por sua vez, a vertente da

autorrealização, que Honneth também chama de autenticidade, concebe a liberdade

individual como a articulação de desejos autênticos e sinceros. Tal como aparece nos

românticos e primeiros idealistas, representados aqui na figura de J. G. Herder, trata-se de um

cultivo do próprio eu com o intuito de descobrir sua autenticidade e agir segundo ela, de modo

que se pode dizer que o indivíduo segue o cerne da sua individualidade. Por isso, Honneth

considera que essa corrente se contrapõe tanto à heteronomia quanto a tentativas de

universalização.216

No que tange à relação dessas concepções de liberdade com a ordem social justa,

o procedimento metodológico permanece o mesmo: “a partir dos conceitos que servem de

pressupostos à liberdade reflexiva, seja o da autodeterminação, seja o da autorrealização,

derivam noções a respeito de quais realidades institucionais seriam necessárias para

possibilitar o exercício da própria liberdade a todos os indivíduos” (RdF: 79de; 79pt; 40en).

216

As variedades atuais dessa vertente, dissociadas a partir das críticas de Freud e Nietzsche, consistem na que

foca na autorrealização como processo construtivo que necessita de outros padrões de medida, e na que se

dedica à autenticidade não como a descoberta introspectiva de um self imutável, mas como a combinação

entre vontades de primeira e de segunda ordem que haviam sido separadas (Harry Frankfurt).

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Honneth identifica a teoria de John Rawls em Uma teoria da justiça (2000

[1971]) e a de Habermas em Direito e democracia (1997 [1992]) como as herdeiras da

tradição que parte da ideia kantiana de autonomia. Seja a justiça como equidade e igualdade

de oportunidades, seja como uma construção social que permite a cada um articular sua

história de vida sem violar a liberdade dos outros, ambas focam na possibilidade de os atores

sociais formarem reflexivamente sua vontade e de agirem conforme a ela. Já no campo da

teoria da justiça que emana da vertente da liberdade reflexiva como autorrealização, Honneth

aponta uma versão individualista e outra coletivista. A primeira, representada por John Stuart

Mill, consiste em conferir ao governo o dever de criar uma “atmosfera de liberdade” que

permita a cada indivíduo construir e descobrir individualmente sua originalidade, suas

faculdades e suas capacidades. A segunda versão, ao contrário, concebe o alcance da

autorrealização como um empreendimento eminentemente comunitário, cooperativo. Trata-se

de uma concepção mais substancial de justiça, apoiada sobre a construção coletiva do si

autêntico na esfera pública, característica do republicanismo liberal de Michael Sandel e

Hannah Arendt. O que conta como justo, segundo essa versão, são aquelas instituições

capazes de promover atitudes de solidariedade entre os cidadãos, um pré-requisito para a

atividade conjunta na esfera pública.

Honneth reconhece que as variantes reflexivas da ideia de liberdade individual são

tão distintas que se torna difícil definir um denominador comum para além daquilo que as

diferencia das concepções negativas de liberdade, isto é, seu foco na cooperação em

detrimento de um sistema social fundado no autointeresse individual, de modo que “O grau

de cooperação dos sujeitos que tem de ser pressuposto para que se possam fixar as condições

sociais de ratificação da liberdade reflexiva é desproporcionalmente mais elevado do que no

caso da liberdade meramente negativa” (RdF: 78de; 79pt; 40en). Para além dessa exigência,

contudo, não há um modelo comum a todas as concepções de liberdade reflexiva, seja como

autonomia ou autodeterminação, seja como autorrealização ou autenticidade.

Essa não é, entretanto, a maior limitação do conceito reflexivo de liberdade.

Apesar de não ser tão formal e abstrata quanto a liberdade puramente negativa, falta-lhe ainda

concretude histórica e social. Isso porque, diz Honneth, a questão acerca dos requisitos

institucionais de realização da liberdade reflexiva apenas aparece quando nos perguntamos

sobre que tipo de ordem social justa corresponde a esta concepção de liberdade. Desse modo,

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nenhum dos conceitos de liberdade abordados até o momento – nem a negativa nem a

reflexiva – interpreta as condições sociais que permitem o exercício da liberdade como

elementos da própria liberdade. Trata-se, apenas, de circunstâncias sociais adicionadas

externamente, como constituintes da justiça social, mas não como inerentes à liberdade

mesma.

A exceção, diz Honneth, é a liberdade reflexiva enquanto teoria do discurso

(Habermas e Apel), que ao menos aponta para uma expansão institucional do conceito de

liberdade que não é externa, mas interna. Este é o ponto de passagem para a terceira

concepção em jogo: a liberdade social.

5.1.3. Vida ética ou eticidade

Para Honneth, mesmo à liberdade reflexiva que deriva de uma teoria do discurso,

no entanto, falta ainda concretude social, visto que o próprio discurso é tomado como uma

forma universal, e não como uma instituição particular, específica em termos temporais e

culturais. Para escapar a essa tendência que considera formalista, Honneth se volta novamente

aos escritos de Hegel que expressam a exigência de que a realidade externa também obedeça

aos critérios de liberdade, e não apenas a interioridade do sujeito (ou dos sujeitos). Em poucas

palavras, pode-se dizer que a liberdade social está fundada em instituições que permitem aos

indivíduos se relacionarem entre si de tal forma que possam conceber aqueles que se lhes

contrapõem como um “outro” para o seu self, mas um outro que constitui não um limite, e sim

uma condição da sua própria liberdade: “que os outros não se contraponham às aspirações

próprias mas as possibilitem e promovam constitui o esquema da ação livre em contextos

sociais antes de quaisquer tendências individuais de retração” (RdF: 113-4de; 115pt; 87es;

195en-2009). Reconhece-se, aqui, a fórmula hegeliana do “ser-consigo-mesmo-no-outro”.217

Isso já indica que o reconhecimento recíproco tem um papel central na concepção

social de liberdade. Para Hegel, a liberdade pode se efetivar na realidade objetiva apenas

quando o sujeito pretende alcançar fins cuja realização pressupõe a existência de outros

217

Essa ideia não é, contudo, inspirada apenas em Hegel, mas também em John Dewey, na medida em que este

indica que a experiência de um jogo mútuo e não coagido entre a pessoa e o ambiente intersubjetivo no qual

ela está inserida representa o padrão de toda liberdade individual para todo ser que, como o ser humano, é

orientado para interações com os seus semelhantes (Dewey apud RdF: 113-4de).

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sujeitos que possuem fins autônomos, porém complementares. É neste sentido que ele fala em

desejos “universais”: trata-se de um processo de socialização por meio do qual os indivíduos

aprendem a limitar seus desejos àqueles que podem ser satisfeitos mediante a ação

complementar dos outros indivíduos. Nas palavras de Honneth: “uma vez que os sujeitos

dispõem de fins desse tipo, eles podem experienciar, nas relações de reconhecimento

correspondentes, o fato de que estão ‘a um só tempo consigo mesmos na objetividade’” (RdF:

92de; 93pt; 72es; 183-4en-2009).

O processo de aprendizagem que leva a essa universalização de desejos e

intenções não pode se dar sem o apoio de instituições de reconhecimento relativamente

estáveis e capazes de formar e reproduzir hábitos normativos inscritos na prática dos atores.

Isso leva, diz Honneth, a uma dinâmica caracterizada por um ciclo de efeitos recíprocos entre

socialização dos indivíduos e manutenção das instituições: “a socialização em complexos

institucionais de reconhecimento proporciona que os sujeitos aprendam a constituir fins

universais e que necessitam complementação, que poderiam então ser satisfeitos unicamente

mediante práticas recíprocas, por força das quais aquelas instituições se mantêm vivas”

(RdF: 93de; 93-4pt; 72-3es; 184en-2009). Os sujeitos apenas podem ver-se como membros

autoconscientes de uma sociedade que garante a sua liberdade se tiverem crescido e se

desenvolvido em meio a práticas cujo sentido é a realização comum de fins complementares:

“Nessa medida, Hegel pode concluir que os indivíduos só podem de fato experienciar e

efetivar a liberdade quando participam de instituições sociais caracterizadas por práticas de

reconhecimento recíproco” (RdF: 94de; 94-5pt; 73es; 185en-2009).218

Nota-se que, no livro, o sentido honnethiano de “instituição” – apropriado de

Hegel e retrabalhado com recurso à concepção antropológica do termo, bem como à

formulação de Arnold Gehlen219

– refere-se a complexos de comportamentos normativamente

218

Marx aparece aqui como um defensor da liberdade social na tradição pós-hegeliana: “Para Marx, a produção

cooperativa representa o meio institucionalizado entre as liberdades individuais de todos os membros de

uma comunidade. [...] tão logo as atividades produtivas dos indivíduos já não são mais coordenadas umas

com as outras de maneira direta pela instância mediadora da cooperação, mas sim pelo ‘mediador

estranho’ do dinheiro, assim argumenta Marx, também são perdidas de vista as relações de reconhecimento

recíproco, de modo que, ao final, cada qual se vê a si mesmo apenas como um ser acumulador,

‘autointeressado’, solitário” (RdF: 96-7de; 97-8pt; 75es; 186en2009).

219 O que diferencia as concepções hegeliana e gehleniana das instituições – e torna a primeira mais interessante

para os propósitos de Honneth – é a existência, no caso de Hegel, de um critério para determinar quais

instituições podem ser consideradas como promotoras de liberdade, enquanto que Gehlen não distingue entre

diferentes tipos de instituições, desde que elas cumpram sua função de oferecer aos atores sociais um sistema

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regulados que representam corporificações suficientemente estáveis da liberdade

intersubjetiva (RdF: 98-103de; 99-103pt; 76-9es; 187en-2009). Desse modo, quando afirma

que diferentes práticas, papéis e costumes estabilizados e tomados em conjunto formam a

unidade de uma instituição que serve para a satisfação recíproca de objetivos individuais,

Honneth quer dizer que essas estruturas sociais são compostas por padrões de ação social que

contêm categorias de comprometimento recíproco. Apesar de adotar uma interpretação

relativamente fraca e informal da noção de “instituição”, com a ênfase que coloca sobre este

conceito em O direito da liberdade, Honneth realiza um deslocamento teórico significativo

com relação a estágios anteriores (que poderiam ser caracterizados até mesmo como anti-

institucionalistas) de seu modelo crítico. Voltaremos a este ponto adiante.

Outro ponto que merece relevo diz respeito ao fato de que as instituições sociais

que regulam essas práticas não são suplementos ou condições externas para a liberdade

individual, mas o seu próprio meio interno. É aqui que Honneth procura situar a diferença da

abordagem hegeliana da vontade livre com relação à concepção de liberdade reflexiva

inspirada em Kant: este pode ficar satisfeito com a pluralidade potencial de fins individuais

desde que esses fins satisfaçam as condições da reflexividade moral, ao passo que Hegel não

pode se furtar a delimitar quais tipos de fins individuais podem ser realizados apenas graças à

mediação institucional em uma reciprocidade não coagida. Isso significa que as teorias

procedimentais da justiça, frutos da concepção reflexiva de liberdade, são compostas por dois

momentos qualitativa e logicamente distintos: 1) o estabelecimento dos critérios que tornam

uma ação livre, isto é, racional e reflexiva (a universalizabilidade das máximas de ação, por

exemplo); e, posteriormente, 2) a definição das condições sociais sob as quais a liberdade

formulada no momento anterior pode se realizar. Ou seja: aqui, a teoria da justiça depende de

uma justificação preliminar de princípios normativos e de sua subsequente aplicação a

contextos sociais concretos.220

Ora, se a liberdade social se diferencia das formas logicamente

anteriores de liberdade por incluir em si mesma, necessariamente e de saída, as condições

estável de orientação ou condução da vida e de lhes retirar, assim, o peso de uma demanda excessiva de

estímulos e instintos: “Enquanto em Hegel o ‘social’ da liberdade consiste em que instituições do ‘espírito

objetivo’ abrem para os sujeitos caminhos e estações onde eles podem realizar conjuntamente seus objetivos

em reciprocidade, a Gehlen nada interessa quanto a essa ausência de coerção do sistema de ordenamento

social; para ele, o ‘social’ da liberdade manifesta-se ao contrário precisamente em que as instituições

exercem uma pressão disciplinar, somente por meio da qual se constitui a liberdade individual do indivíduo”

(RdF: 102de; 103pt; 79es).

220 O mesmo acontece na liberdade jurídica e na concepção de justiça social correspondente.

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sociais e institucionais que permitem a sua realização, a teoria da justiça como análise da

sociedade que Honneth pretende desenvolver a partir das reflexões críticas de Hegel não

requer um passo posterior de aplicação, separado da justificação da concepção social de

liberdade. Diz Honneth: “Se o conceito pressuposto de liberdade já contém em si as

indicações de relações institucionais, de sua exposição deve resultar, quase que por si só, o

epítome de um ordenamento social justo” (RdF: 105de; 106pt; 81es; 189en-2009). Hegel

pretende tornar a concepção da ordem social justa equivalente à soma das instituições sociais

que são necessárias para a realização da liberdade intersubjetiva dos indivíduos mediante a

garantia da possibilidade de tomar parte em relações de reconhecimento socialmente

corporificadas. Assim, diz Honneth, “toda a teoria da justiça de Hegel resulta em uma

apresentação de relações éticas, em uma reconstrução normativa daquele ordenamento

graduado de instituições nas quais os sujeitos podem realizar sua liberdade social na

experiência do reconhecimento recíproco” (RdF: 109de; 110pt; 84es; 192en-2009). Como

consequência, a teoria da justiça correspondente se torna mais robusta: se se parte do requisito

de que os indivíduos têm que estar aptos a participar em instituições de reconhecimento,

“para o centro da ideia de justiça social move-se a concepção de que determinadas

instituições, que são normativamente substantivas e, portanto, denominadas ‘éticas’

demandam garantia jurídica, proteção estatal e apoio da sociedade civil” (RdF: 115de;

117pt; 88es; 196en-2009).

Isso tem ainda outras implicações para a peculiaridade da liberdade social com

relação aos dois modelos anteriores. Neles, diz Honneth, o próprio agir é uma condição

suficiente para a liberdade – seja pelo fato de não encontrar um limite externo (liberdade

jurídica), seja por se dar no interior de uma situação reflexiva (liberdade moral). Os atores

sociais podem ser pensados, então, como suficientemente livres antes de qualquer ligação

com uma ordem ou contexto social. Essa situação é invertida na concepção social de

liberdade, na qual o sujeito só pode ser considerado livre naquele espaço em que seus fins são

preenchidos ou realizados. Inverte-se, assim, a relação entre o processo de legitimação e a

ideia de justiça social, de forma que os atores sociais precisam ser pensados como já ligados a

certas estruturas ou instituições sociais que garantem a sua liberdade antes que eles possam

ser considerados livres em um processo que protege a legitimidade da ordem social. Essa

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264

inversão redunda na rejeição, por exemplo, do modelo da justiça baseado no consenso

(mesmo que hipotético) entre os membros de uma coletividade,

uma vez que a geração de um consenso desse tipo (seja celebrando um contrato,

seja na construção da vontade democrática) se daria sob precondições segundo as

quais, por falta de vinculação institucional, os sujeitos ainda não seriam

suficientemente livres para efetivamente poderem já dispor de uma opinião e uma

perspectiva bem ponderadas (RdF: 110-1de; 112pt; 85es; 193en-2009).

Desse modo, Hegel foi levado a colocar a construção de uma ordem social justa e

de um sistema de instituições que protejam a liberdade em primeiro plano, sem o que não há

como acessar as decisões individuais ou coletivas dos atores sociais. Na leitura que Honneth

faz de Hegel, portanto, o reconhecimento em instituições precede a liberdade tanto de sujeitos

individuais isolados quanto de deliberações discursivamente formuladas. O procedimento de

legitimação não é assim simplesmente descartado, mas assume nova função: ele deve ser

aplicado ao quadro de uma ordem social já considerada minimamente justa (pelo menos em

seus ideais normativos geralmente aceitos), na qual, ao invés de fundamentar a ordem social,

o procedimento funciona como “guardador de lugar” (Platzhalter) para a prova de

legitimidade de cada indivíduo (RdF: 109de; 111pt).221

Hegel reserva, portanto, um espaço no qual o indivíduo pode legitimamente

avaliar se uma dada instituição corresponde às suas (da instituição) próprias regras. Assim são

integradas as liberdades negativo-jurídica e reflexivo-moral no contexto ético da liberdade

social: por meio do reconhecimento de seus direitos abstratos e de sua moralidade, os sujeitos

podem manter suas opiniões individual ou reflexivamente adquiridas contra a ordem

normativa dominante. O limite dessas liberdades se encontra, contudo, no ponto em que elas

passam a colocar em perigo a própria estrutura institucional da liberdade social na medida em

que se pretende construir a partir delas novas ordenações sociais. Tanto para Hegel quanto

para Honneth, as liberdades jurídica e moral garantem aos indivíduos o direito de se recolher

legitimamente diante das expectativas normativas do sistema ético de instituições, mas elas

não são capazes de criar, por si mesmas, novas estruturas e instituições sociais – elas apenas

oferecem aos indivíduos a possibilidade de avaliar as instituições já existentes. Nas palavras

de Honneth: “os esquemas interpretativos que as ideias de liberdade negativa e reflexiva

oferecem têm de ser aplicados às instituições éticas no sentido de que constituem o padrão

221

Consequentemente, não se extrai a ideia de justiça do procedimento, mas o procedimento é que é extraído de

ideia de justiça.

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265

justificado da verificação de sua legitimidade” (RdF: 115de; 117pt; 88es; 197en-2009). É

preciso reconhecer, desse modo, que o direito e a moral se apresentam como momentos da

realidade e não são, portanto, meras ilusões. Entretanto, estas formas de liberdade são

parciais, incompletas ou indeterminadas, porque não incluem, ainda, a relação do sujeito com

os demais – a qual tem que ser pressuposta como anterior. Nesta medida, elas caracterizam

sempre um segundo nível da liberdade: “O trato com os outros, a interação social

necessariamente precede os distanciamentos que se fixam nas relações da liberdade negativa

ou reflexiva”.222

A liberdade social, ao contrário, refere-se à “experiência de uma falta de

coerção e de uma ampliação pessoais que resulta do fato de que meus objetivos são

promovidos mediante os objetivos do outro” (RdF: 114-5de; 116pt; 87-8es; 196en-2009),

experiência que acontece dentro do quadro das instituições sociais às quais os indivíduos

encontram-se vinculados.

Não se trata aqui, contudo, de quaisquer instituições, mas somente daquelas em

que são fixadas e cristalizadas relações de reconhecimento mútuo e que tornam possível uma

forma duradoura de realização recíproca de fins individuais. Mas como se pode fazer uma tal

seleção de instituições?223

Recorre-se aqui à reconstrução normativa como método que exige

um equilíbrio entre fatores sócio-históricos e considerações racionais, entre realidade histórica

e conceito. De acordo com Honneth, Hegel faz uma “comparação corretiva” entre o que os

indivíduos deveriam buscar racionalmente e as determinações empíricas da socialização de

necessidades requerida na modernidade. Tornam-se visíveis, assim defende o autor, os fins

que os indivíduos têm realisticamente que perseguir para se realizarem sob determinadas

circunstâncias: “pelo fio condutor de uma determinação geral do que os sujeitos razoáveis

poderiam racionalmente desejar, devem ser destilados a partir das relações historicamente

dadas aqueles fins que eles perseguem aproximando-se efetivamente o máximo possível do

ideal conceitual” (RdF: 106de; 108pt; 82es). Isso significa que, quando procura nomear os

fins gerais da liberdade, Hegel tem que se colocar, ao mesmo tempo, na perspectiva do 222

A razão de ser, os limites e as patologias relacionadas à liberdade jurídica e à liberdade moral são o tema da

parte B do livro de Honneth, “A possibilidade da liberdade”, que será analisada em seguida (note-se a

semelhança com relação à argumentação desenvolvida em Sofrimento de indeterminação; as diferenças

também serão abordadas adiante).

223 Honneth volta a discutir, aqui, a segunda premissa do método reconstrutivo delineado na introdução, a qual

chamamos “seletividade” (cf. item 6.2.3.). Como ela é particularmente controvertida, os argumentos

empregados pelo autor nessa discussão serão expostos e problematizados para que, posteriormente, se possa

avaliar o sucesso ou o fracasso da implementação da reconstrução normativa no livro como um todo.

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filósofo (e assim “delinear de maneira puramente conceitual os objetivos que todo sujeito

humano racionalmente deveria adotar”) quanto na do teórico social (“para então ajustá-los

às intenções empíricas dadas, às quais os indivíduos aspiram com base em seu crescimento

na cultura moderna”). O resultado dessa comparação corretiva, diz Honneth, são as metas

“que os sujeitos historicamente situados perseguem enquanto seres razoáveis na

modernidade” (RdF: 106-7de; 108pt; 82es; 190en-2009).

O resultado desse procedimento reconstrutivo deve orientar também a

identificação de complexos institucionais que oferecem aos sujeitos a possibilidade de

experienciar sua liberdade como algo objetivo, isto é, a possibilidade de perceber, nos papéis

institucionalizados de seus parceiros de interação, as condições para realização de seus fins

individuais. A quantidade de complexos institucionais a serem destacados do caos da

realidade empírica depende, portanto, da quantidade de metas que se pode considerar como

fins universalizáveis na modernidade, “considerando que para cada um desses fins deve

corresponder uma estrutura institucional na qual perduram as práticas da reciprocidade que

garantem sua satisfação intersubjetiva” (RdF: 108de; 109pt; 83es; 191en-2009). O conjunto

dessas instituições é chamado por Hegel, e também por Honneth, de “eticidade”

(Sittlichkeit).224

Como sabemos, Honneth seguirá em linhas gerais a divisão da eticidade proposta

por Hegel na Filosofia do direito entre família, sociedade civil e Estado. Não há, em O direito

da liberdade, entretanto, a tentativa de justificar – para além da mera referência à

arquitetônica hegeliana – a estruturação da eticidade nas esferas das relações pessoais, da ação

econômica de mercado e da formação da vontade democrática. Essa ausência se faz tanto

mais presente quando se tem em vista o caráter complexo e exigente da reconstrução

224

É importante ter sempre em vista que a apresentação hegeliana da ordem ética – isto é, das instituições de

reconhecimento que formam a eticidade – não é apenas uma construção, mas sim uma reconstrução, de

forma que não pode haver uma distância grande demais entre o ideal da ordem justa inscrito nas instituições

sociais e os valores reais de sujeitos historicamente situados. Afinal, Honneth vem pondo em relevo desde há

muito que não se trata da projeção de um ideal, mas antes de uma descrição posterior (Nachzeichnung) –

porém crítica – de relações historicamente já dadas. Desse modo, Hegel introduz um “índex histórico” na

concepção de justiça que torna impossível reduzi-la a princípios ou procedimentos universais.

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normativa no que tange à premissa da seletividade, descrita na introdução do livro justamente

para evitar as acusações de aceitação acrítica do real.225

5.2. Patologias sociais e desenvolvimentos sociais anômalos

5.2.1. Patologias sociais: judicialização e moralização

A tarefa essencial que Honneth se coloca, então, é identificar o lugar das

liberdades negativa-jurídica e reflexiva-moral em uma eticidade pós-tradicional. Por isso, a

segunda parte do livro é dedicada a uma análise da razão de ser (Daseinsgrund), dos limites

(Grenzen) e das patologias (Pathologien) do direito e da moralidade – análise que parte do

ponto de vista da liberdade social. Honneth procura, portanto, não apenas identificar o

sentido ético de cada forma anterior de liberdade, mas apontar também a sua parcialidade e,

além disso, os riscos que se corre de gerar patologias sociais quando elas são tomadas pelo

todo, e não como elementos parciais inscritos na eticidade.

a) Patologias da liberdade jurídica

Como visto, a liberdade jurídica tem a importante função de criar um âmbito

privado no qual o sujeito se encontra livre da pressão exercida pelas obrigações

comunicativas. Protegido de intromissões externas (seja qual for a sua origem), o indivíduo

tem garantido o direito de experimentar egoisticamente a sua própria vontade: suas paixões,

preferências e intenções, assim como sua concepção da vida boa.226

O esquema de

comportamento que assim se impõe ao sujeito envolvido em relações jurídicas é o do agente

solitário com objetivos e fins que, em princípio, são apenas estratégicos. A autonomia

privada, cuja proteção é a finalidade central da liberdade negativa, refere-se, portanto, à ideia

de que:

tal sujeito jurídico dispõe de um espaço de proteção aceito universalmente e

exigível individualmente que lhe permite, sobretudo, retirar-se de suas obrigações e

225

Leve-se em consideração, também, a crítica que Honneth endereça a David Miller, em texto recente,

exatamente por não problematizar sua tripartição da “eticidade” em esfera pública política, mercado e

comunidade (cf. item 6.2.4.).

226 O autor se contrapõe aqui à interpretação de Marx do direito liberal como instrumento ideológico das classes

dominantes.

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laços sociais, a fim de, numa autoconsideração assim desobrigada, ponderar e

estabelecer suas preferências e orientações de valor individuais; assim sendo, o

núcleo da liberdade jurídica é conformado pela constituição de uma esfera de

privacidade individual (RdF: 147de; 147pt; 112es).

Sem a pressão de justificação pública de todas as ações que são compatíveis com

o sistema de direitos subjetivos, os indivíduos se veem em um tipo de relação de

reconhecimento cuja peculiaridade reside em que as motivações éticas e razões pessoais para

a ação não serão verificadas. Os direitos subjetivos liberais (como os direitos religiosos, de

expressão e pensamento) permitem ao indivíduo retirar-se do âmbito comunicativo das

obrigações mútuas e recolher-se a uma posição de questionamento e revisão (privados) de

normas de ação.

Essa descrição ainda não explica completamente, entretanto, o sentido ético da

liberdade jurídica. Para compreender a conexão com a liberdade social – que fundamenta

tanto a razão de ser quanto os limites da forma negativa de liberdade – é necessário recorrer à

caracterização honnethiana da relação entre as diferentes classes de direitos subjetivos.

Honneth segue a tripartição de Thomas H. Marshall entre direitos civis, políticos e sociais; ele

não leva em consideração, contudo, as circunstâncias históricas e a ordem temporal do

estabelecimento desses direitos, visto que sua preocupação é antes conceitual e normativa que

empírica. Trata-se, deste modo, de organizar os diferentes tipos de direitos subjetivos de

acordo com o princípio da liberdade individual, para extrair a conexão normativa que existe

entre eles. É porque Honneth pretende reconstruir normativamente as diferentes gerações de

direitos subjetivos sem levar em conta sua sucessão histórica e empírica que ele pode criar

uma distinção entre, de um lado, os direitos civis e sociais e, de outro, os direitos políticos.

Segundo essa interpretação, os direitos sociais têm como finalidade garantir as condições

materiais necessárias para os indivíduos exercerem de modo efetivo seus direitos liberais ou

civis. Honneth esvazia, assim, os direitos sociais – que ele chama também de “direitos

complementares de participação [Teilhabe] social” – de sua substância em termos de uma

concepção de vida boa (RdF: 143de; 143pt; 109es). Eles não servem, portanto, para avaliar ou

mesmo ajudar a entrever os objetivos de vida estabelecidos, mas contribuem apenas para a

liberação das coerções materiais que restringem sistematicamente a reflexão sobre objetivos

de vida futuros: “Toda tentativa de limitar esses direitos sociais ou torná-los dependentes de

boa conduta acaba perfurando a conexão normativa que eles têm com a garantia estatal da

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autonomia privada” (RdF: 143de; 143pt; 109es).227

A relação entre os direitos políticos e os

direitos liberais de primeira geração é mais difícil estabelecer. Enquanto as duas primeiras

formas discutidas de direito permitiam ao indivíduo se retirar do âmbito comunicativo da

justificação pública de normas de ação, o próprio conceito de direitos políticos “remete a uma

atividade que só pode ser exercida em cooperação ou, ao menos, em um intercâmbio com os

demais partícipes do direito” (RdF: 144de; 110es). Segundo essa distinção, que lembra a

distinção de Isaiah Berlin entre a liberdade negativa dos modernos e a liberdade positiva dos

antigos, os sujeitos podem então assumir dois papeis: destinatários (direitos civis individuais

e sociais) e autores (direitos políticos) das leis que instituem e garantem os direitos

subjetivos.

Podemos resumir a questão da seguinte maneira: os direitos subjetivos que

constituem a liberdade jurídica são aqueles que outorgam aos membros das sociedades

liberais modernas uma margem privada de ação garantida pelo Estado mediante uma ordem

jurídica igualitária. As normas que caracterizam essa esfera de ação autônoma não exigem

aprovação moral nem dependem de um acordo ético: elas requerem apenas uma aceitação

puramente instrumental, aplicável pelo Estado mediante coerção. Honneth nota, entretanto,

que o surgimento e estabelecimento dos direitos subjetivos e, portanto, da liberdade jurídica

se dá paralelamente ao processo de consolidação do Estado democrático de direito, o que

permite que os sujeitos que são os destinatários daqueles direitos possam ver-se também

como seus autores.

Nesse sentido, podemos dizer que a ordem jurídica igualitária moderna tem duas

funções intimamente conectadas: a proteção tanto da autonomia privada quanto da autonomia

coletiva. E é nessa dupla função que Honneth identifica o sentido ético e, portanto, a “razão

de ser” (Daseinsgrund) da liberdade jurídica. Nas palavras do autor,

Nesse segundo significado, que é ativo e cooperativo, a instituição do direito

moderno exige mais do que apenas modos racional-instrumentais de obediência; ela

dependerá muito mais de todo um circuito de atitudes, práticas e convicções

democráticas, já que, sem a existência destes, o impulso coletivo para uma

atualização conjunta dos direitos se extinguiria. Nessa medida, o sistema jurídico,

no sentido de uma possibilitação da autonomia coletiva, só pode aparecer quando

227

Essa redução da categoria dos direitos sociais a pré-condições materiais dos direitos civis liberais vai de par

com a redução do ideal de igualdade a uma mera predicação da liberdade, tomada como o valor moderno por

excelência.

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se trata das esferas institucionais da liberdade social, no âmbito, portanto, do que

Hegel chamara de “eticidade” (RdF: 131de; 130-1pt; 101es).

Os direitos políticos remetem, assim, para além da liberdade meramente negativa:

ao passo que a liberdade privada não diz respeito a como se dará o seu emprego pelos

indivíduos, a liberdade instaurada pelos direitos políticos apoia-se do início ao fim no

compromisso de que os sujeitos dela façam uso (RdF: 146de; 146pt; 111es). Esse outro tipo

de liberdade, à qual apenas se faz alusão aqui, não pode ser satisfatoriamente esquadrinhada

mediante uma “lista de direitos subjetivos”:

Ainda que hoje as Constituições das sociedades democráticas liberais tenham

catálogos mais ou menos abrangentes de tais direitos de participação política, o

sentido normativo do tipo de liberdade que se faz possível por meio deles só pode

ser elucidado pela inclusão de todas as atitudes e práticas sociais necessárias à sua

realização comum. Na categoria dos direitos políticos, a relação jurídica indica

uma esfera social de liberdade cuja condição de existência é todo um conjunto de

formas éticas de comportamento (RdF: 146de; 146pt; 111es).

A liberdade jurídica encontra seu limite, assim, no fato de que a determinação de

seus próprios fins não pode se dar sem alguma forma de interação social, de modo que

depende sempre, para sua efetivação no real, dos pressupostos intersubjetivos da

comunicação. Desse modo, a consideração apenas do tipo jurídico de liberdade corre o risco

de excluir o indivíduo, devido à sua estrutura privatista, justamente das relações

intersubjetivas de comunicação necessárias para a determinação de sua vontade individual.

Honneth critica assim o formalismo abstrato e vazio inerente à relação jurídica, que produz

uma liberdade específica no âmbito na autonomia privada mas que não tem a capacidade de

construir a base sobre a qual essa liberdade pode ganhar efetividade. O indivíduo tomado

apenas em seu envolvimento em relações jurídicas não tem acesso, pois, ao mundo dos laços e

das responsabilidades intersubjetivas, o que tem como resultado o seu mergulho em um

“estado de quase completa indeterminidade” (RdF: 153de; 153pt; 116es).228

Isso ocorre

enquanto se permanece no modo do puro questionamento de obrigações anteriores e enquanto

planos de vida são explorados apenas monologicamente: “Os direitos subjetivos vêm servir

somente para questionar e revisar nossas ideias do bem, mas não para preparar e formular

novas versões dela” (RdF: 153de; 154pt; 116es). A liberdade jurídica não forma uma esfera

de autorrealização individual porque, embora garanta a possibilidade de suspender ou

questionar os laços e vínculos, ela não abre a oportunidade de realizar projetos e objetivos

228

Note-se a passagem da perspectiva subjetiva do sofrimento (Leiden) de indeterminidade (LaU) para um ponto

de vista objetivo: um estado (Zustand) de indeterminidade.

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éticos, concretos e substanciais. Honneth usa as metáforas da “moratória” e do “estado de

emergência temporário” para caracterizar essa forma da liberdade, na qual o contexto da

conformação de uma vida autônoma é posto provisoriamente fora do foco ou entre parênteses.

A patologia típica da liberdade jurídica consiste, então, justamente na perenização

dessa “moratória comunicativa” que deveria ser apenas temporária. O problema surge com a

desvinculação da liberdade jurídica do contexto social no qual está inserida, o que a torna

parcial e incompleta quando tomada isoladamente. Quando não se compreende o sentido

negativo (e por isso apenas parcial) associado à liberdade jurídica, ela é tomada pelo todo e

elevada a ponto de referência exclusivo para a autocompreensão dos sujeitos, o que leva, por

sua vez, a uma crescente judicialização do mundo da vida. Esse abuso da liberdade negativa

se manifesta, por exemplo, na orientação da ação exclusivamente segundo uma imagem

jurídica da sociedade ou na postergação sempre renovada das obrigações de ação. Essas são as

duas formas patológicas contemporâneas da liberdade jurídica.

No primeiro caso, a liberdade passa de meio a fim em si de toda ação, levando à

judicialização excessiva. Isso acontece devido a uma tendência social de atribuir quase

automaticamente ao sistema jurídico a tarefa de resolver todos os distúrbios e conflitos

sociais. Cada vez mais, os sujeitos tendem a planejar suas ações segundo as perspectivas de

êxito frente a um tribunal, realizando para isso as abstrações e suspensões necessárias. Na

medida em que estas escapam dos limites dos tribunais e adentram cada vez mais

profundamente o cotidiano social, impõe-se:

um modo de comportamento no qual os sujeitos aprendem a observar suas próprias

intenções e aquelas de suas contrapartes sob o aspecto de sua utilidade jurídica:

perde-se a capacidade de distinguir o primeiro plano estratégico e o pano de fundo

do mundo da vida no parceiro de interação, e resta apenas a pessoa como soma de

suas pretensões jurídicas (RdF: 163-4de; 165pt; 123es).

Ganha cada vez mais força, então, a tendência dos atores sociais a se restringirem

ao tipo de interação estratégica que o direito reconhece como forma legítima de interrupção

da comunicação. O que seria apenas um rechaço temporário das obrigações comunicativas do

mundo da vida se converte em horizonte normativo exclusivo da ação cotidiana, em

detrimento de razões e motivações para a ação que poderiam ser compartilhadas por todos os

parceiros de interação. A ação é vista, assim, apenas como a execução de ponderações e

intenções puramente privadas. Para Honneth, a “liberdade negativa, que o direito abriu como

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uma oportunidade, converteu-se em um estilo de vida” (RdF: 166de; 167pt; 125es). A

subjetividade do indivíduo se reduz à pessoa jurídica e assim se cristaliza.229

A segunda patologia da (unilateralização da) liberdade jurídica consiste não em

substituir as razões éticas para a ação por uma racionalidade jurídica estratégica, mas em

deixar um espaço vazio em seu lugar. Aqui, também, é perpetuada a suspensão dos laços

vinculantes e das obrigações comunicativas. Mas o espaço deixado por essa suspensão não é

preenchido com “opções de ação juridicamente permitidas” (RdF: 169de; 127es), e sim pela

própria ideia de suspensão de laços vinculantes, de modo que a interrupção de toda imposição

comunicativa redunda em um vazio que impede a constituição de aspirações e convicções

duradouras. A ideia (legítima) de aliviar, sob proteção jurídica e por um determinado intervalo

de tempo, a própria ação das obrigações intersubjetivas para poder orientar as intenções

individuais ao êxito perde seus limites temporais e esvazia toda referência para a

autocompreensão dos atores sociais. Absorvendo apenas o caráter suspensivo do direito como

forma de coordenação de todas as interações, o indivíduo torna-se assim incapaz de qualquer

decisão vinculante.230

*

Se compararmos a posição que o direito (no sentido jurídico mais estreito) ocupa

em Luta por reconhecimento com seu papel em O direito da liberdade, ficará claro que ele foi

como que expulso da eticidade. No livro de 1992, o direito corresponde ao segundo padrão

das relações de reconhecimento, permitindo que os sujeitos construam seu autorrespeito e sua

autonomia como pessoas de direito mediante o respeito a todos os outros como pessoas de

direito. Além disso, a imposição de cada nova classe de direitos representada pela passagem

dos direitos civis de liberdade individual para os direitos políticos de participação e deste para

os direitos sociais de bem-estar (segundo a classificação de Marshall) é vista como imposta

historicamente numa luta por reconhecimento centrada na exigência de ser um membro com

igual valor da coletividade política (KuA: 191). Já na obra de 2011, Honneth concebe o

direito de forma muito mais limitada, como o âmbito unicamente do exercício de uma

229

Essa patologia é ilustrada pela disputa judicial descrita no filme “Kramer vs. Kramer”, de 1979.

230 Honneth ilustra a segunda patologia com a figura do indeciso, que aparece em diversos romances

contemporâneos.

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liberdade negativa, constituindo portanto um escape (mesmo que legítimo) às relações

comunicativas que são o próprio tecido da eticidade.

b) Patologias da liberdade moral

As patologias da liberdade moral assemelham-se em alguns pontos às da liberdade

jurídica expostas. Antes de analisá-las, é preciso identificar o seu valor no marco da

constituição ética das sociedades contemporâneas.

Como visto anteriormente, a liberdade reflexiva ou moral postula que cada

membro de uma sociedade é livre para recusar demandas vindas da ordem social dominante

se considerar que elas não cumprem os critérios da aprovação (potencial) de todos os

concernidos. Surgem, assim, motivos emancipatórios de resistência moral contra condições

sociais injustificadas. Esse tipo de liberdade se manifesta nas sociedades modernas em um

primeiro momento e antes de tudo em seu significado polêmico, crítico ou negativo. A ideia

de autonomia moral não nos esclarece, portanto, como deveríamos estruturar nossa vida, mas

se refere, antes, à possibilidade de sempre questionar normas de ação institucionalizadas.

A liberdade de questionamento moral é inalienável e não exige nenhum requisito

social ou psicológico específicos, pois “Todo indivíduo, não importa qual posição social ele

assuma ou quais capacidades psíquicas ele tenha à disposição, possui, em qualquer situação

imaginável, a liberdade de indagar a respeito da juridicidade das demandas com as quais é

confrontado” (RdF: 179de; 180pt; 135es). Desse modo, a ideia de que podemos rechaçar

expectativas normativas mediante a verificação da sua universalizabilidade se converte em um

“padrão cultural de orientação” que adentra “os poros do mundo da vida social” (RdF:

181de; 182pt; 135es).

Mas a liberdade moral tem, também, um sentido positivo. Ela não pressupõe

apenas que possamos recusar expectativas de papéis com base em razões compreensíveis

universalmente, mas também que devamos orientar nossas ações de acordo com uma

autolegislação que parte da interioridade do sujeito, mediante uma reflexão acerca da sua

aceitabilidade geral. Honneth analisa duas maneiras de interpretar esta tese, partindo para

tanto da tradição kantiana da autonomia e de suas interpretações por parte de Christine

Korsgaard e Jürgen Habermas: a verificação deliberativa da orientação da ação medida pela

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universalizabilidade de motivos normativos racionais pode ser compreendida (a) como uma

coerção transcendental ou racional de nossa autoconfirmação ética (Korsgaard) ou (b) como o

resultado de uma transformação de nossas ideias morais mediante um processo histórico de

aprendizagem sociocultural (Habermas).

No primeiro caso, Korsgaard segue Kant ao afirmar que toda determinação

reflexiva da ação requer que o sujeito se atenha a leis que possa considerar como originadas

por ele mesmo. Ela vai além de Kant, contudo, ao apontar para um passo seguinte, no qual o

sujeito deve poder supor que a fonte de tais leis gerais não são apenas imperativos morais,

mas antes a própria identidade prática desse sujeito: “impor uma lei a si mesmo significa,

segundo a convicção de Korsgaard, querer expressar ao longo do tempo, em suas ações

reflexivamente determinadas, que tipo de pessoa se gostaria de ser” (RdF: 184de; 186pt;

138es). A ideia de liberdade moral nas condições das sociedades altamente desenvolvidas é

para Habermas, por outro lado, o nível mais alto da consciência moral em um processo

(filogenético) gradativo de formação da consciência moral e de aprendizagem mediante

diferentes formas de socialização dos indivíduos. Trata-se também de um processo

(ontogenético) de formação pelo qual todos os sujeitos competentes devem ter passado.

Em que pesem as diferenças entre as duas interpretações da autonomia moral

kantiana, um ponto em comum reside no fato de que a liberdade individual é entendida

segundo o modelo de uma vinculação a normas morais que devem possuir um caráter

estritamente universalista. O fundamento aqui é a ideia kantiana de que nossa liberdade se

deve em última instância à possibilidade de nos desvencilharmos, quando surgem conflitos de

ação, de todos os laços e obrigações particulares e determinar nosso comportamento a partir

de ponderações generalizáveis (RdF: 141-2es). A liberdade moral outorga aos sujeitos não só

o poder de rechaçar circunstâncias sociais existentes em virtude de sua irracionalidade (como

na liberdade jurídica), mas também a força e a competência intelectual de poder ir além, de

forma fundamentada, dos sistemas dados de normas de ação. A figura da autolegislação moral

permite ao indivíduo, desse modo, livrar-se das concepções morais dominantes da eticidade

concreta na qual está inserido, opor-se às regras normativas existentes e defender um outro

sistema de normas.

Para Honneth, o valor ético dessa ideia de liberdade está na inseparabilidade que

ela implica entre distanciamento radical e acordo geral, entre desprendimento do que é dado e

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275

consenso universalista, entre respeito pelo indivíduo e sua inclusão na comunidade social, em

suma: entre individualidade e generalidade. O autor afirma, então, que a liberdade reflexiva

“promete ao indivíduo ou grupo cooperante que não perderá o consenso com o restante da

humanidade ao colocar entre parênteses o mundo da vida social e orientar-se segundo a lei

ética” (RdF: 190de; 191pt; 142es). Em resumo, podemos dizer que a ideia da liberdade moral

ocupa um lugar legítimo na estrutura institucional de sociedades modernas porque reconhece

e garante que todo indivíduo possa justificadamente se recolher a uma atitude reflexiva

quando recusa imposições sociais de papéis e normas estabelecidas de ação.

Assim como a autonomia garantida pelo sistema jurídico moderno, o princípio da

autonomia moral tem a capacidade de preparar e possibilitar a liberdade, mas não de realizá-

la. Aqui também é outorgada ao indivíduo apenas a oportunidade de “de recolher-se das

obrigações intersubjetivas de ação, a fim de, à luz de um ponto de vista especial, o da moral,

conectar-se novamente com um mundo da vida outrora experienciado como cindido” (RdF:

174-5de; 175-6pt; 131es). O processo de autolegislação (seja ela individual ou cooperativa)

requer um distanciamento reflexivo de todas imposições normativas e laços sociais, o que

deve permitir ao indivíduo assumir um ponto de vista a partir do qual pode avaliar a

universalizabilidade dos princípios morais em questão. O problema dessa concepção de

liberdade, para Honneth, refere-se ao que ele chama de “ilusão necessária”: trata-se do

pressuposto da autonomia moral de que, ao refletir moralmente e suspender os laços nos quais

está inicialmente envolvido, o ator social poderia alcançar uma perspectiva da qual pode

verificar de maneira imparcial e neutra a aprovação geral de seus princípios morais possíveis,

como se ele não compartilhasse com outros sujeitos uma certa compreensão prévia das

condições e normas institucionais (RdF: 146es). Assim, a perspectiva de uma

universalizabilidade das razões morais da ação só aparece como autônoma na medida em que

não se torne evidente sua vinculação retroativa a convicções já existentes e aceitas, de modo

que a consciência moral é apenas um estágio momentâneo em um processo individual de

verificação. A consciência moral não é capaz de reconhecer que seu próprio ponto de vista já

adquiriu determinada forma na realidade social. Nessa ficção se manifestam os limites da

liberdade moral: se os sujeitos podem assumir um ponto de vista no qual lhes é permitido

distanciar-se de seus laços concretos e das obrigações a eles associadas, não o podem fazer

com respeito aos próprios arranjos institucionais nos quais estão inseridos (RdF: 147es).

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276

Honneth nota que essa objeção coincide com a crítica de Hegel à filosofia prática

de Kant, segundo a qual o procedimento kantiano de verificação das máximas apenas pode

ocorrer sob a condição de regras de convivência social aceitas previamente (RdF: 151es). Isso

não significa que devamos aceitar tais regras como fatos imutáveis, mas que tampouco

podemos ignorar que elas existem. Nas palavras de Honneth:

o indivíduo, a fim de amparar seu agir somente em princípios autoestabelecidos,

sempre torna a encontrar regras normativas que ele não pode conceber como

autoestabelecidas; em vez disso, ele é coagido a, em primeiro lugar, aceitá-las

como fatos institucionais diante dos quais decerto são possíveis distintas

interpretações, mas não esforços voluntários invalidá-los ou colocá-los entre

parênteses (RdF: 203-4de; 206pt; 151es).

Contudo, da mesma forma que a liberdade jurídica, também a liberdade moral

acaba por se converter no fundamento normativo das relações sociais nas mais variadas

esferas: ela não é apenas um recurso do qual se lança mão em uma prática pública de

deliberação racional, mas adentra profundamente também a vida cotidiana dos indivíduos – o

que dá ensejo ao surgimento de patologias sociais. Como no caso da liberdade jurídica, a

extrapolação do caráter excetuador da liberdade moral conduz a patologias – não mais na

forma de judicialização das relações sociais, mas na crescente disposição a interpretar a

própria autonomia pessoal apenas segundo categorias do correto e das obrigações morais de

justiça em detrimento de concepções substanciais do bem. Assim, em lugar de interagir

criativamente, a partir de uma situação reflexiva, com as regras de ação institucionalizadas

mediante relações de reconhecimento mútuo, os indivíduos se guiam por interpretações dessas

regras que reproduzem “incorretamente” seu sentido social (RdF: 206de; 153es). Tais

interpretações errôneas levam a modos de comportamento que dificultam a participação nos

processos de cooperação social e acabam por isolar os sujeitos que nelas incorrem. Para

Honneth, “as patologias sociais representam o resultado da violação de uma racionalidade

social corporificada como ‘espírito objetivo’ na gramática normativa dos sistemas de ação

institucionalizados” (RdF: 206de; 209pt; 153es). Mas do que se trata propriamente quando se

fala em “interpretações falhas” (Fehldeutungen) e “reproduções incorretas do sentido social”

das normas de ação?

Quando abstraímos o fato de que nossa relação com os demais parceiros de

interação está regulada “desde sempre” por determinadas normas de ação que não estão à

nossa disposição, isto é, não podem ser simplesmente anuladas por nossas ações moralmente

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orientadas, é criada a ilusão de uma posição não situada, imparcial. Esse “ofuscamento

[Ausblendung] ilusório de toda facticidade normativa” pode levar a duas formas patológicas

distintas da liberdade moral: o tipo moralista de personalidade e as formas de terrorismo

fundamentadas na moral (RdF: 207de; 153-4es).

As patologias da liberdade reflexiva (como visto no caso do direito) residem em

não se levar em conta os limites inerentes à autonomia moral, de modo que o tipo de

desvinculação exigido na reflexão moral acerca das normas de ação é estendido a todas as

práticas da vida social. Sem compreender que a liberdade moral apenas lhes oferece a

oportunidade – relativamente restrita – de verificação reflexiva de normas socialmente

aceitas, os indivíduos a tomam como fonte única de sua autocompreensão e acabam perdendo

a possibilidade de se conectar com as interações do mundo da vida. Eles se veem petrificados,

com o atuar paralisado e, por conta da perda da capacidade de comunicação, cada vez mais

isolados. No entanto, Honneth destaca que, à diferença da liberdade jurídica, essa patologia da

liberdade moral não consiste apenas em extrapolar o mecanismo de verificação da autonomia

moral para todas as esferas da vida a todo tempo, mas também em uma falha no próprio

momento de colocá-la em prática. Aqui, sim, se trata de um “exercício efetivamente

equivocado” da liberdade outorgada (RdF: 208de; 211pt; 154es). Essa falha está relacionada à

ficção aludida anteriormente: os sujeitos que manifestam a personalidade moralista se julgam

imparciais e “se veem efetivamente no papel de um legislador para um mundo de seres

humanos, como se o mundo dado desde sempre já não fosse cunhado por uma série de regras

normativas que de antemão limitam o horizonte de nossas considerações morais” (RdF:

208de; 211-2pt; 154-5es). A transposição dos limites da autolegislação para a legislação do

mundo como um todo – e a partir de um posicionamento supostamente imparcial – leva,

assim, a um rígido moralismo. Em lugar do descentramento de um sujeito situado

socialmente, o que temos é a supressão de todos os aspectos da identidade pessoal de um

sujeito ilusoriamente não situado. É claro que o mecanismo reflexivo de verificação de

normas morais exige uma medida de abstração das situações particulares concretas, mas ao

fazê-lo, como lembra Honneth, não colocamos “entre parênteses as normas da paternidade,

do coleguismo ou da amizade que determinam nossa personalidade” (RdF: 209de; 213pt;

155es). Tal é o efeito alienante de uma moralidade incondicional, desprovida de toda

mediação social:

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Mas, tão logo o contexto limitador é posto entre parênteses, tão logo se tenha

procedido como se já não fôssemos previamente obrigados por normas de ação

elementares, surge a ficção de um sujeito desvinculado, que tem de obter todos os

seus princípios pela perspectiva abstrata de uma humanidade universal; os

objetivos de vida que tal sujeito pode ser propor carecem ao fim de toda coloração

pessoal, pois no exercício da autonomia individual, é preciso se abstrair de todas as

obrigações concretas que, como pressupostos normativos de nossas relações

intersubjetivas, compõem o núcleo de nossa identidade (RdF: 210de; 213pt; 156es).

A segunda patologia da liberdade reflexiva consiste no surgimento de ideologias

terroristas fundamentadas na moral. Neste caso, o que pode ter começado como uma boa

intenção acaba se convertendo, na medida em que evoca apenas os interesses anônimos da

parte oprimida da humanidade em geral, em violência revolucionária:

passo a passo, todas as circunstâncias institucionais são postas entre parênteses

com relação ao seu entorno social, de modo que, ao final, só persiste um

universalismo dos “oprimidos de todo o mundo” completamente abstrato,

desprovido de referentes. A partir de tal perspectiva, que permite ao indivíduo

considerar-se no papel fictício de um legislador para um mundo possível de puros

fins, perdem toda força de validade não apenas as normas constitucionais do

Estado de direito, mas também toda e qualquer força de validade dos laços

existentes de amizade e de vida em família; resta apenas a ideia fantasmagórica de

ter de combater com meios terroristas essa ordem social moralmente corrompida

em seu todo (RdF: 218de; 222pt; 161es).

Honneth não dedica muito espaço a esta segunda patologia, afirmando que se trata

de “algo que se pode, antes que reconstruir, apenas intuir em uma distância retrospectiva”

(RdF: 161es).

*

Assim como no caso da liberdade negativa ou jurídica, o valor da liberdade

reflexiva ou moral reside em uma “tomada de distância puramente negativa com respeito a

um contexto de práticas já estabelecido” (RdF: 204de; 152es). Quando ocorrem conflitos de

ação causados pelas tensões presentes em um mundo da vida ético, os sujeitos – como

indivíduos ou membros de uma comunidade discursiva – podem verificar os princípios de

suas atitudes a partir da análise de sua universalizabilidade e, assim, apontar uma solução que

possa ser tanto defensível racionalmente quanto aceita individualmente. A liberdade moral é,

assim, empregada por aqueles que procuram tomar distância das práticas institucionalizadas

no mundo da vida ética para poder voltar a se vincular a elas sendo capaz de justificar

publicamente a adoção de determinadas práticas sociais ou a rejeição de demandas

consideradas inaceitáveis ou incompatíveis. Desse modo, a liberdade moral tem, como a

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liberdade jurídica, um caráter postergante, de interrupção. Ambas são, em certo sentido,

liberdades negativas.

A negatividade inerente aos dois tipos de liberdade pode ter, não obstante,

interpretações distintas. Enquanto que no exercício da liberdade jurídica o indivíduo faz uso

de seus direitos subjetivos ao se retirar do contexto da vida ética para poder, assim, adquirir

para si um âmbito livre de intervenções externas para determinar seus objetivos de vida

pessoais, a adoção dos mecanismos reflexivos que caracterizam a autonomia moral tem como

finalidade última a retomada (crítica, pois envolve uma recusa racional e discursivamente

justificada) dos laços suspensos durante a prova de universalizabilidade. A negatividade da

liberdade moral tem, portanto, uma força transformadora que não está presente na liberdade

jurídica, cuja negatividade reside não em criticar racionalmente, mas em suspender o juízo

acerca das demandas normativas da ordem ética. Na liberdade moral, diz Honneth:

podemos contribuir para a transformação de dada sociedade na medida em que sua

referência de universalidade permita um questionamento público da interpretação

das normas do mundo da vida. No espaço protegido da liberdade jurídica, nos

recolhemos de certo modo apenas a nós mesmos, com o assentimento de todos os

outros, mas, na moratória reflexiva da autolegislação moral, temos de chegar a

soluções de conflitos de ação que sejam intersubjetivamente justificáveis, de modo

que nossas decisões individuais tenham sempre também efeitos recíprocos nos

demais (RdF: 205de; 208pt; 152es).

Essa diferença fundamental se reflete no valor dessas formas de liberdade:

“Assim, o valor da liberdade moral supera o da liberdade jurídica: se na liberdade jurídica

possuímos o direito de mudar nossa vida de maneira desimpedida, na liberdade moral,

contudo, temos o direito de provocar um impacto sobre a interpretação pública das normas

morais” (RdF: 205de; 208pt; 152-3es).231

c) E as injustiças sociais? Patologias como distúrbios de segunda ordem

Se, na discussão dos limites das formas negativa e reflexiva da liberdade, Honneth

descreve as patologias sociais como “desenvolvimentos sociais que levem a uma notável

deterioração das capacidades racionais dos membros da sociedade de participar de formas

231

Uma outra diferença consiste em que o direito é garantido pelo Estado, enquanto as condições para o

exercício da reflexão moral não são necessariamente sancionadas de forma estatal, mas dependem de sanções

informais (do sentimento de culpa e de vergonha, por exemplo) que compõem o arcabouço de um sistema de

ação institucionalizado socialmente.

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decisivas da cooperação social” (RdF: 157de; 157pt; 119es; 86en), elas se diferenciam da

ideia de injustiças sociais porque estas consistem em condições não necessárias de exclusão e

vilipêndio das oportunidades de participação paritária, enquanto que as patologias

propriamente ditas operam em um nível mais alto da reprodução social, isto é, no nível

reflexivo que permite o acesso aos sistemas primários de normas, práticas e ações sociais.

Assim, “sempre que alguns ou todos os membros da sociedade, em razão de

causas sociais, já não estejam em condições de compreender adequadamente o significado

dessas práticas e normas, podemos falar numa ‘patologia social’” (RdF: 157de; 157-8pt;

119es).232

Trata-se, portanto, de um distúrbio de segunda ordem,233

de um conjunto de déficits

de racionalidade que impedem que convicções ou práticas de um primeiro nível sejam

adequadamente apropriadas e problematizadas pelos concernidos em um segundo nível,

caracterizado justamente pela reflexividade.234

Ao interpretar erroneamente o sentido ético e o

conteúdo normativo das práticas institucionalizadas, o sujeito se isola do restante da

sociedade, cuja integração se dá mediante formas de reconhecimento mútuo apreendidas e

conhecidas em comunidade. Diz Honneth: “as patologias sociais representam o resultado da

violação de uma racionalidade social corporificada como ‘espírito objetivo’ na gramática

normativa dos sistemas de ação institucionalizados” (RdF: 206de; 209pt; 153es).

A distinção entre injustiças e patologias sociais, entre distúrbios de primeira e

segunda ordem, parece não ter, contudo, maiores consequências para a argumentação de

Honneth. Apesar de o autor fazer, na introdução do livro, uma crítica às teorias da justiça de

cunho procedimental, como a de John Rawls e mesmo a de Habermas, e afirmar que seu

objetivo é construir uma teoria da justiça em sentido ampliado, não procedimental, a partir da

232

É importante destacar que esse fenômeno tem causas sociais, isto é: “aquele que não está em condições de

compreender o uso racional de uma determinada prática socialmente institucionalizada não está

psiquicamente doente, mas apenas desaprendeu, em razão de influências sociais, a praticar adequadamente

a gramática normativa de um sistema de ação que, no fundo, é conhecido intuitivamente”(RdF: 157de;

158pt; 119es). Os sintomas dessas patologias tampouco se expressam individualmente, como

“extravagância” ou “desvio de caráter”, por exemplo.

233 Honneth apoia-se aqui em Zurn, 2011. Para uma crítica convincente da interpretação de Zurn sobre a obra de

Honneth e da influência que ela acabou tendo em escritos mais recentes do autor, cf. Freyenhagen, 2015.

234 Não é fácil, segundo Honneth, chegar a uma descrição acurada de tais fenômenos: “No entanto, apenas

raramente encontramos sintomas desse tipo diretamente sob a forma de resultados de levantamentos

empíricos: instrumentos de análise da pesquisa sociológica são, mesmo quanto empregados

qualitativamente, por demais grosseiros para poder trazer à luz estados de ânimo difusos ou sensibilidades

coletivas desse tipo” (RdF: 158de; 159; 119-20es).

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análise da sociedade, esta ideia praticamente desaparece no restante do texto. Para se ter uma

ideia, a palavra “injustiça” (Ungerechtigkeit) aparece apenas duas vezes nas mais de

seiscentas páginas que compõem o livro. Honneth não esclarece a interação concreta possível

entre injustiças e patologias sociais (isto é, entre distúrbios de primeira e de segunda ordem),

ou entre injustiças e anomalias sociais (são ambas de primeira ordem? O que difere uma da

outra?), e tampouco discute as causas e as formas de manifestação peculiares das injustiças

sociais. Tivesse Honneth seguido esse caminho, poderiam ter sido articuladas produtivamente

as perspectivas da injustiça (experiência de desrespeito) e da patologia (sofrimento de

indeterminidade).

5.2.2. As anomalias da liberdade social: exclusão, desagregação e alienação

Em O direito da liberdade, o termo “patologia social” tem, portanto, um uso

bastante delimitado. Trata-se de processos de unilateralização de regras de ação específicas às

formas jurídica e moral da liberdade que levam, em última instância, a que os concernidos não

sejam capazes de combater reflexivamente as mazelas de primeira ordem que lhes afetam

(isto é, as injustiças sociais). Em termos mais concretos, podemos dizer que as patologias

correspondem aos fenômenos de judicialização e moralização descomedidas de um sistema de

ação, que engessam as lutas sociais em lugar de lhes conferirem força e vitalidade. É preciso

notar, entretanto, que Honneth define o termo mediante a contraposição com outra forma de

caracterizar distúrbios sociais: os “desenvolvimentos sociais anômalos” ou “anomalias

sociais” (soziale Fehlentwicklungen).

Essa distinção aparece no início da seção sobre a realidade ou efetividade da

liberdade (Parte C). Nessa terceira parte, a reconstrução das regras normativas de ação

presentes nas três esferas éticas (relações pessoais, esfera econômica e esfera política) não

corresponde sempre ao que os sujeitos praticam de fato em sua vida cotidiana, o que significa

que Honneth se depara, no curso da reconstrução, com desvios dos padrões de ação “típico-

ideais” para cada esfera, e é a esses desvios que o autor dá o nome de anomalias sociais. E o

que difere, então, tais anomalias das patologias sociais, abordadas no contexto anterior (Parte

B)? Para Honneth, a diferença reside no fato de que, enquanto as anomalias têm origens

externas, as patologias derivam das próprias normas de ação da concepção de liberdade

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correspondente. Nas liberdades jurídica e moral, as práticas normativas que decorrem das

regras de ação correspondentes carecem de autonomia e dependem de uma complementação

por parte dos complexos de ação do mundo da vida. Isso não é visível quando elas são

colocadas em prática, de modo que o caráter parcial de tais formas de liberdade aparece como

o seu contrário, isto é, como absoluto. Por isso, diz Honneth, tais patologias podem ser

atribuídas a um “convite” do sistema de ação subjacente à forma de liberdade em questão a

considerar a mera possibilidade da liberdade como toda a sua realidade (RdF: 231de; 172es).

Já nas esferas éticas de realização da liberdade social, as regras normativas de ação

subjacentes não demandam a inclusão de práticas externas, pois o seu uso racional não precisa

ser aperfeiçoado por uma reconexão com o mundo da vida – de modo que não há, aqui, a

tentação de tomar a parte pelo todo. Por sua própria natureza, a concepção social de liberdade

não pode ser unilateralizada, absolutizada, exagerada de alguma forma para fora dos seus

limites. Sendo uma forma mais desenvolvida, encarnada, por assim dizer, a liberdade social é

limitada apenas externamente, ao contrário das formas negativa e reflexiva, cujos limites

internos é que levam à passagem para uma forma mais abrangente. Assim, diz Honneth, os

desenvolvimentos anômalos com os quais nos topamos nas instituições relacionais “não são

desvios induzidos pelo sistema, não são ‘patologias’ em sentido estrito; tratam-se, antes, de

anomias cujas fontes não podem ser encontradas nas regras constitutivas dos respectivos

sistemas de ação, mas em outros lugares” (RdF: 231de; 234pt; 172es). Mas que lugares são

esses?

A distinção honnethiana entre patologias e anomalias sociais semeia uma dupla

dificuldade para a reconstrução normativa proposta: por um lado, a caracterização das

patologias sociais carece de concretude histórico-social e, por outro, a caracterização das

anomalias sociais carece de sistematicidade. A caracterização das patologias sociais carece de

concretude histórico-social porque os processos de judicialização e moralização decomedida,

descritos no item anterior, permanecem sempre em um nível muito alto de abstração. A

caracterização das anomalias sociais perde sistematicidade porque elas não são vistas como

consequência de um fenômeno específico (como a unilateralização do direito e da moralidade

e o consequente estado de indeterminidade que causa sofrimento nos sujeitos afetados, por

exemplo). Aparece no texto uma miríade de desenvolvimentos anômalos que acometem a

realização da liberdade social nas esferas éticas.

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Uma vez que o próprio Honneth não procurou apresentar as anomalias sociais de

modo sistemático, a busca por uma estruturação dos argumentos por ele utilizados torna-se

não apenas custosa, como também arriscada. Assumindo o risco de atribuir à obra um arranjo

que não está nela presente de forma intencional, procuramos reorganizar o texto de Honneth

de acordo com nossa hipótese de interpretação: a partir de uma leitura detida da terceira parte

do livro, foram identificadas três anomalias fundamentais e três críticas correspondentes: a

exclusão (socioeconômica), a desagregação (sociocultural) e a alienação (sociopolítica), que

são objeto, respectivamente, das críticas social-distributiva, cultural-relacional e político-

reflexiva.235

Todas elas se manifestam em cada uma das esferas da eticidade (ver tabela 1).

a) Anomalias das relações pessoais

Os desenvolvimentos anômalos que afetam a esfera das relações pessoais estão

ligados de forma geral aos imperativos de lucratividade do mercado capitalista, que exercem

uma pressão muito grande para que os membros da sociedade submetam o exercício dos

vários papéis sociais complementares que lhes correspondem (enquanto amigos, parceiros

amorosos ou membros familiares) à premissa de acumulação de capital, resultando em

processos de desagregação, exclusão e alienação.

No âmbito das relações de amizade, o processo de individualização dos sucessos e

fracassos e a necessidade premente de sempre aumentar o rendimento no mercado de trabalho

levam a um decréscimo significativo do domínio de ação livre de cálculo estratégico que é

imprescindível para o florescimento de relações desinteressadas entre os atores sociais. Há,

assim, entre amigos, cada vez menos espaço para o interesse mútuo no bem-estar do outro e

para um compartilhamento empático, confidencial e lúdico do destino de vida de cada um.

Este fenômeno tem um forte e claro efeito dessocializante.236

235

Nossa estruturação é em parte influenciada pela distinção entre “crítica social” e “crítica artista” de

Boltanski & Chiapello (1999).

236 Apesar de reconhecer a ameaça representada pelos imperativos do mercado capitalista para as relações de

amizade, o autor questiona o alcance empírico de tal afirmação e mantém uma visão otimista dessa

instituição social. Para Honneth, a amizade “pode ser, dentre todas as relações pessoais de nossos dias,

aquela que possui a maior força de persistência em meio aos acelerados processos de individualização e

flexibilização. Se, além disso, se considerar que esse tipo de amizades se estende hoje, mais fortemente que

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Tabela 1: Anomalias sociais em O direito da liberdade

Crítica Social Crítica Cultural Crítica Política

Relações pessoais

Amizade ↓ Tempo para cultivar amizades

↑ Competição

↓ Relações desinteressadas

Ø

Amor ↓ Tempo para cultivar relações íntimas

↓ Disposição para aceitar obrigações de papéis complementares e laços duradouros

Ø

Famílias

↓ Segurança financeira

↓ Tempo para a convivência familiar

↓ Reconhecimento das atividades de cuidado

↓ Preparação das crianças para a participação na comunidade política

Mercado

Consumo

↑ Desabastecimento de bens básicos

↑ Consumo ostentoso

↑ Estratificação dos consumidores

↑ Manipulação de interesses

↑ Atomização e privatização

↑ Desequilíbrio de poder: (↑empresa x ↓consumidor; ↑empregador x ↓trabalhador)

↓ Cooperativas de consumo

↓ Mecanismos discursivos p/ politização das demandas

Trabalho

↑ Pauperização social

↑ Instabilidade

↓ Salários

↑ Mecanização

↑ Individualização da responsabilidade

↑ Competição

↑ Estratificação

↓ Cooperação

↓ Reconhecimento

↑ Controle da classe trabalhadora

↓ Sindicatos

↓ Mecanismos discursivos de articulação coletiva de interesses

Esfera Política

Esfera pública

↑ Exclusão sócio-econômica

↑ Estratificação entre classes sociais

↑ Exclusão cultural-identitária (racismo, discriminação de gênero, xenofobia)

↑ Nacionalismo

↑ Competição

↓ Horizonte cultural comum

↑ Desacoplamento esfera pública x aparato estatal

↑ Impermeabilidade do Estado

↑ Corporativismo liberal

↑ Desencantamento e apatia com a política

↓ Esferas públicas alternativas

Estado de direito

antes, para além de todas as fronteiras das classes sociais, que mal se detém a diferenças étnicas e que

perdem, cada vez mais, também a vinculação a um lugar em comum, então talvez se possa reconhecer nelas

o fermento mais elementar de toda eticidade democrática” (RdF: 252de; 255-6pt).

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Se voltarmos a atenção para as relações íntimas, o quadro não é muito diferente.

Os casais estão cada vez menos dispostos, diz Honneth, a cultivar os sentimentos de

obrigação, aquiescência e limitação do próprio self que estão na base do exercício a longo

prazo de papéis complementares no campo do amor. O fenômeno é especialmente visível

quando se tem em mente, por exemplo, o crescimento das taxas de divórcio e do caráter

conflituoso das relações amorosas, e pode ser atribuído, em grande parte, a uma priorização,

por parte dos atores sociais, das intenções de fazer carreira individual e dos objetivos de

autorrealização profissional.237

Assim, as relações pessoais amorosas acabam perdendo

terreno para – ou no mínimo sendo perpassadas por – cálculos estratégicos relativos à esfera

do mercado de trabalho, cujas fronteiras com o lazer e as relações pessoais em geral tornam-

se crescentemente turvas. Em suma: com a intensificação das exigências de flexibilidade no

trabalho e outras demandas que acompanham o que é chamado de “formação capitalista da

subjetividade” (RdF: 275-6de),238

novos desafios e também obstáculos se antepõem à

capacidade dos indivíduos envolvidos por uma relação amorosa de articularem de forma

autêntica e livre sua identidade mediante a experimentação emocional e corporal de papéis

normativos recíprocos proporcionada pelos laços íntimos. Tanto na instituição do amor como

na da amizade, portanto, a anomalia predominante é a desagregação das relações sociais, que

é criticada a partir de um ponto de vista cultural-relacional.239

Também no contexto familiar, os imperativos do mercado têm consequências às

quais podemos chamar anômalas. Aqui, contudo, não se trata tanto da disseminação irrefreada

da subjetividade capitalista quanto da deterioração das condições socioeconômicas

(“objetivas”) vitais para o exercício não coagido e não distorcido dos padrões normativos de

ação característicos desta esfera. Isso significa que, na família, tem lugar de destaque a crítica

social-distributiva, a qual determina que, sob condições favoráveis, os indivíduos disporiam

de períodos de tempo suficientes para participarem da criação dos filhos bem como de

perspectivas estáveis de subsistência material da família, principalmente – mas não

237

Honneth também menciona, sem desenvolver, a preponderância dos direitos de liberdade sexual sobre o tipo

de restrição requerida para o estabelecimento de laços pessoais amorosos duradouros.

238 Honneth refere-se aqui a Dardot & Naval (2010).

239 A crítica social-distributiva também incide sobre as esferas amorosa e de amizade, mas com intensidade

bastante inferior. Os processos de exclusão socioeconômica privam os sujeitos especialmente do tempo

necessário para o cultivo de relações de camaradagem e afeição mútuas. Não consta, no texto de Honneth,

como a crítica político-reflexiva poderia fazer destas relações seu objeto.

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286

necessariamente – mediante a participação no mercado de trabalho. Tempo o bastante e

estabilidade financeira (e profissional) garantiriam uma margem de ação para que as

obrigações relativas à vida familiar pudessem ser distribuídas de modo o mais igualitário

possível entre seus membros (não apenas entre homens e mulheres, como também entre pais e

filhos). A ausência de políticas sociais que garantam satisfatoriamente tais requisitos

configura uma anomalia que impede a institucionalização e o desenvolvimento de práticas

normativas mais democráticas no âmbito da família.

Do ponto de vista cultural-relacional, mesmo os sistemas de seguridade social dos

países desenvolvidos do ocidente são falhos, na medida em que seus benefícios – tais como

auxílio em caso de doença, aposentadoria, e mesmo seguro-desemprego – permanecem

atrelados ao exercício (atual, passado ou potencial) de trabalho remunerado. Neste cenário, as

atividades de cuidado e interação com os membros mais vulneráveis da comunidade familiar

(crianças, idosos, pessoas com necessidades especiais em geral), vitais para a realização da

liberdade social na esfera da família, não detêm quase nenhum reconhecimento social e não

recebem em geral nenhuma contrapartida monetária ou mesmo em termos de políticas sociais

de bem-estar, já que não oferecem ao mercado possibilidades de maximização de lucros e

valorização de capital.

A crítica político-reflexiva também incide sobre a esfera familiar. Honneth

destaca que, se uma de suas principais funções consiste na criação e socialização dos

membros mais jovens da comunidade familiar, o seu fracasso em cumprir de forma

apropriada este papel – por falta de tempo, segurança financeira ou reconhecimento das

atividades de cuidado – tem como consequência a preparação cada vez mais inadequada das

crianças para a participação ativa na comunidade política.

*

Na esfera das relações pessoais, portanto, as anomalias sociais – seja do ponto de

vista social, do cultural ou do político – estão quase que invariavelmente ligadas, direta ou

indiretamente, à “colonização” desta esfera pelos imperativos de lucratividade advindos do

mercado capitalista.240

240

A relação entre as três esferas éticas será abordada em detalhe mais adiante (cf. item 5.3.2.).

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287

b) Anomalias do mercado

De saída, Honneth aponta dois tipos clássicos de crítica às relações que se

estabelecem na esfera econômica sob o capitalismo: a condenação de grandes setores da

população à miséria e ao exercício de um trabalho degradante (crítica social-distributiva) e o

enfraquecimento ou esvaziamento dos laços sociais (crítica cultural-relacional). Ao longo do

capítulo, surge ainda uma terceira crítica, que incide sobre a incapacidade dos sujeitos

econômicos de tematizarem publicamente e, assim, combaterem reflexiva e coletivamente as

anomalias de primeira ordem mencionadas (crítica político-reflexiva).241

Aqui, a crítica social-distributiva diz respeito às condições estruturais de vida dos

sujeitos econômicos, isto é, à promessa do mercado de fornecer a todos os indivíduos as

condições objetivas mínimas de subsistência que correspondem à sua participação específica

nas atividades econômicas e às suas necessidades individuais. Trata-se da promessa, portanto,

de alocar não apenas de modo eficiente, mas também justo e solidário, os recursos escassos

existentes em determinado ordenamento social. Apesar de insistir na inserção moral do

mercado, Honneth reconhece que o sistema capitalista falhou sonoramente em cumprir as

expectativas que estão na base de sua legitimidade normativa, de modo que o seu

desenvolvimento pode ser retratado quase que inteiramente como anômalo (o que ameaça a

própria ideia de anomalia, de desvio).

A anomalia mais característica dessa dimensão é o fenômeno da pauperização

social, já descrito por Hegel no século XIX como o crescimento incessante do contingente de

pobres e miseráveis (Pöbel, em alemão), e que fica evidente nas revoltas periódicas

decorrentes do desabastecimento de bens básicos – o qual é ocasionado, por sua vez, pela

orientação prioritária do mecanismo de mercado para a valorização e acumulação de capital.

O consumo ostentoso de bens supérfluos como maneira de marcar a distinção de status

aparece aqui como o outro lado da moeda, pois desvela que é a lógica da lucratividade – e não

241

Note-se que nenhuma destas críticas diz respeito exclusivamente à esfera do consumo ou à esfera do

trabalho; tampouco as anomalias que lhes correspondem afetam de forma suficientemente diferente

trabalhadores (os quais Honneth chama frequentemente de “produtores”) e consumidores.

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288

a do reconhecimento mútuo entre os sujeitos em termos de suas necessidades e contribuições

– que impera na alocação dos recursos.

Mas Honneth aponta ainda uma série de outras anomalias que acometem o âmbito

distributivo e estão direta ou indiretamente relacionados à pauperização social, tais como a

instabilidade no emprego (que gera sentimentos de injustiça e impotência nos sujeitos

atingidos), a desvalorização dos salários (que conecta-se não apenas à deterioração das

condições objetivas de vida dos trabalhadores, mas também a uma diminuição correspondente

do reconhecimento social de suas atividades laborais), e a exploração econômica do trabalho

(já que, como sabemos desde Marx, os trabalhadores são obrigados, por suas condições

sociais, a firmar contratos que são invariavelmente abusivos, na medida em que os colocam

em grande desvantagem com relação aos empregadores e que os compelem, muitas vezes, não

só à aceitação da exploração de sua força de trabalho como ao exercício de atividades laborais

degradantes).242

O autor destaca também os graves efeitos negativos da especulação

financeira e da destruição ambiental, frutos do caráter não regulado da comercialização do

dinheiro e da terra – bens que, de acordo com Polanyi, precisam ser introduzidos no mercado

sob estrita supervisão.

A crítica cultural-relacional refere-se nesse contexto, por sua vez, ao fracasso do

mercado em satisfazer outra promessa que serve de fundamento para a aquiescência e a

motivação dos sujeitos em se engajar nas atividades econômicas, seja como fornecedores de

mão de obra, seja como consumidores de artigos submetidos à troca. Trata-se da expectativa

de que, no mercado, os indivíduos possam reconhecer que dependem uns dos outros,

mediante o exercício de papéis complementares, para a satisfação de suas necessidades

recíprocas – e que possam, assim, não apenas suprir suas carências materiais, mas também

compreender a sua própria atividade como algo que contribui para a reprodução social e é,

portanto, digno de valor.243

A crítica cultural-relacional denuncia, portanto, a violação do

242

É preciso destacar que Honneth diferencia sua abordagem daquela de Marx na medida em que procura tomar

como desafios os déficits de liberdade que este aponta, o que implica em reconhecer na falta de liberdade nos

contratos e na exploração do trabalho não a existência de déficits estruturais que só podem ser eliminados

com a abolição do sistema capitalista, mas sim desafios colocados pela própria promessa normativa do

mercado, que devem então poder ser resolvidos no interior do sistema de mercado mesmo.

243 Essa é a dimensão a que Honneth dedicou mais atenção ao longo de sua obra, de modo que alguns intérpretes

acabaram por considerá-la como o todo do conceito de reconhecimento.

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289

reconhecimento de papéis complementares, que impede os sujeitos de verem a liberdade dos

demais como condição – e não limitação – para a sua própria liberdade e acaba, desse modo,

por ser decisivo para o processo de enfraquecimento dos laços sociais observado por Honneth.

Tal violação se dá de diversas maneiras. As expectativas cada vez maiores de

rendimento conduzem, por um lado, a uma crescente mecanização e fragmentação dos

processos de trabalho, o que tem como efeito a depreciação ou menosprezo das habilidades

dos indivíduos244

e um acentuado decréscimo do valor social conferido às atividades

produtivas – o que se reflete inclusive na remuneração monetária das práticas laborais. Neste

sentido, vale destacar a incorporação do vocabulário em torno da “humanização do mundo do

trabalho” (isto é: a tentativa de estimular a espontaneidade e evitar operações repetitivas e

heterônomas) na gramática moral do movimento operário. As demandas de incremento de

produtividade fomentam, por outro lado, ambientes de trabalho calcados na competição, e não

na cooperação ou colaboração entre os indivíduos. Em tais ambientes prevalece a

responsabilização individual pelos êxitos ou derrotas de cada projeto ou empreendimento. O

sentimento de ser o único responsável pela própria sobrevivência e sucesso no mercado de

trabalho contribui para que os indivíduos se submetam sem grandes resistências (e

especialmente sem resistências coletivas) a atividades degradantes e à instabilidade no

emprego. Soma-se a isso a demanda crescente de flexibilidade, que os obriga a priorizar as

exigências do mercado em detrimento das condições necessárias para a manutenção de laços

sociais autênticos e duradouros.245

Assim, na medida em que é minada a rede de convicções

normativas de solidariedade, tornam-se bastante claras as consequências desintegradoras

desse processo, as quais ultrapassam as fronteiras do mercado e alastram-se por outras esferas

de ação, como os relacionamentos amorosos e as relações de amizade. O fenômeno é

reforçado pela internalização de comportamentos eminentemente individualistas

proporcionada pela consolidação de uma cultura capitalista, fundada na ideologia liberal da

244

Segundo a interpretação de Polanyi, isso é resultado de não incluir o trabalho (como o dinheiro e a terra, já

mencionados) no rol de bens cuja inserção no mercado deve ser supervisionada de perto para evitar

distorções graves e os distúrbios sociais que delas decorrem.

245 É importante destacar que os fenômenos de individualização da responsabilidade e da flexibilidade no

ambiente de trabalho (e para além dele), que são aqui consideradas anomalias denunciadas pela crítica

cultural-relacional, aparecem na teoria de Boltanski & Chiapello (1999) precisamente como respostas à

crítica artista. Na medida em que conduzem a novos distúrbios nas relações sociais, essas respostas podem

ser consideradas paradoxais, no sentido desenvolvido por Honneth nos textos acerca dos paradoxos da

modernização capitalista (cf. Honneth 2001 e 2002, e Honneth & Hartmann, 2004).

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soberania do consumidor. Concorre para isso, também, o contínuo desenvolvimento da

indústria cultural e sua capacidade de condicionamento de interesses com o objetivo de

garantir o consumo de bens produzidos em massa e evitar a ameaça à economia capitalista

representada pela superprodução. O consumo privatista, que atomiza e despolitiza os

indivíduos, não dá sinais de arrefecimento desde as décadas de 1950 e 1960; mesmo o

surgimento da tendência do consumo consciente não foi suficiente para reverter essa situação

e acabou, na realidade, contribuindo para uma fragmentação ulterior dos indivíduos enquanto

consumidores (conscientes, carentes ou supérfluos, cujos interesses são frequentemente

conflitantes), os quais não dispõem dos mecanismos discursivos para chegarem coletivamente

a um entendimento e atuarem em conjunto.

Este tema nos conduz à crítica político-reflexiva, que se encontra na interface do

mercado com a esfera da formação da vontade democrática. Por ser reflexiva, ela incide sobre

anomalias de segunda ordem, isto é, sobre fenômenos que colocam obstáculos para superação

das anomalias de primeira ordem abordadas até o momento. De modo geral, a crítica político-

reflexiva denuncia a ausência de uma articulação coletiva de interesses e necessidades que

seja capaz de influenciar os rumos das relações sociais sob o mercado capitalista. Tal ausência

se deve, de um lado, à mencionada estratificação social que atinge os membros da sociedade

tanto enquanto trabalhadores como enquanto consumidores. A exigência crescente de

competitividade, o deslocamento de grandes contingentes de trabalhadores para o setor

terciário (que, além de contribuir para a fragmentação da classe trabalhadora, tem

tradicionalmente uma capacidade inferior de mobilização e organização solidária da

categoria), a privatização do consumo, etc. – em suma: o processo geral de atomização dos

sujeitos individuais torna cada vez mais difícil encontrar um solo comum para a estruturação

de ações coletivas. De outro lado, e ligado a isto, está o declínio da aptidão de associações de

profissionais e de compradores – como os sindicatos e as cooperativas de consumo – para

fomentar os processos de socialização necessários para a construção desse solo comum.246

Ao

passo que, depois da Segunda Guerra Mundial, as cooperativas de consumo praticamente

246

Para Honneth, as cooperativas de consumo que surgiram na Inglaterra a partir das ideias de Richard Owen,

bem como as corporações descritas por Hegel e as cooperativas de produção que surgiram posteriormente são

verdadeiras “escolas de socialização moral” (RdF: 370de), nas quais os indivíduos compartilham

publicamente táticas para burlar a lógica de lucratividade das empresas capitalistas e que representam a

tentativa (ao final, malsucedida) de socialização do mercado a partir de baixo.

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desapareceram, os sindicatos não apenas continuaram a existir, como até ganharam força e

aumentaram sua taxa de adesão nos trinta anos gloriosos que caracterizaram o pós-guerra,

tendo assistido apenas a partir da década de 1990 a uma pronunciada decadência. O problema,

no caso dos sindicatos, é que eles ficaram, mesmo em seu auge, virtualmente restritos ao

papel de organização de interesses no sentido mais limitado do termo, vale dizer, à articulação

de demandas imediatas e muitas vezes apenas monetárias, falhando assim na tarefa crucial de

promover espaços e mecanismos de fomento de solidariedade entre os trabalhadores, bem

como de fortalecimento de sua autoconsciência coletiva. Contribui para esse processo a

“domesticação” das tentativas de realizar reformas sociais mais substanciais, fruto de uma

conjunção de fatores econômicos e culturais.247

O mercado parece ter a capacidade de

transformar as contestações de sua lógica subjacente em ideologias que levam a restruturações

não hostis, mas sim amigáveis e até mesmo favoráveis ao capitalismo.248

Assim, por exemplo,

apesar de os trabalhadores encontrarem-se mais protegidos e valorizados sob o Estado de

bem-estar do que em toda a existência do sistema de mercado, as políticas sociais do período

tenderam a atomizá-los, tratá-los como sujeitos jurídicos monológicos e autocentrados, e a

excluí-los das comunidades das quais faziam parte. Por outro lado, as estratégias de marketing

cada vez mais elaboradas utilizadas pelas empresas passaram a ter um poder crescente sobre

as preferências, os costumes e a autoimagem dos consumidores, tornando-os mais suscetíveis

aos imperativos do mercado e à lógica da valorização capitalista. O indivíduo isolado torna-

se, assim, menos apto a se ver como membro de uma classe autoconsciente, deixando de

realizar esforços para exercer influência sobre os rumos da esfera produtiva e, assim, alcançar

um grau mais elevado de codeterminação no mercado (o que é potencializado pela a ausência

de mecanismos discursivos de participação real nas empresas). Como resultado, observa-se a

pacificação e o controle dos trabalhadores, além de um acentuado desequilíbrio de poder entre

estes e a elite econômica e política (os empregadores e proprietários dos meios de produção).

As dificuldades enfrentadas pelas organizações de ação coletiva não significam

que não haja nenhum tipo de resistência em face dos desenvolvimentos anômalos que

acometem os indivíduos enquanto participantes do mercado. Como vimos, ao contrário,

247

Conjunção que se caracteriza, diz Honneth na esteira de Weber, por uma “afinidade eletiva”

(Wahlverwandtschaft, RdF: 405de).

248 Cf. a argumentação de Luc Boltanski e Ève Chiapello (1999) acerca da absorção da crítica e sua reconversão

em reformas benéficas para o sistema vigente.

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Honneth confere destaque aos sentimentos de injustiça manifestados pelos atores sociais

quando algum processo é por eles percebido como uma violação de expectativas normativas

legítimas. Nesse sentido, o autor reconhece uma série de formas não verbais de resistência,

como a subversão quotidiana de determinados imperativos do mercado e o desenvolvimento

de estratégias silenciosas de evasão de exigências consideradas excessivas. À diferença de

seus escritos mais antigos (especialmente os que vão da década de 1980 até Redistribuição ou

reconhecimento?), entretanto, Honneth põe em relevo também o caráter amplamente

inadequado das tentativas de tradução propriamente política dos sentimentos de injustiça e

desrespeito que afloram em tais práticas individualizadas e privatizadas de resistência. Sem

fóruns apropriados para tematizar de forma reflexiva as diferenças que os separam e sem os

mecanismos discursivos para negociar conjuntamente soluções para os problemas que lhes

afetam, os indivíduos são privados da possibilidade de articular uma revolta coletiva e

discursivamente estruturada.

Se o próprio mercado não parece ter sido capaz, até o presente momento, de

fornecer os dispositivos que permitiriam a conversão política daquilo que Hegel chamou de

“indignação” (Empörung) em assuntos públicos e sujeitos às exigências de justificação moral

e comunicativa, eles precisam ser buscados alhures. Isto não implica que o mercado seja

desprovido de orientações normativas de valor, mas sim que ele carece dos meios adequados

para fazê-las valer:

O mercado mesmo, considerado puramente como um meio [...] de coordenação do

agir econômico, não dispõe de qualquer instrumento para influenciar

normativamente o comportamento de seus participantes; por esse motivo

concebemos as muitas limitações e regulações que se conectam a ele no momento

de sua institucionalização social como corporificações de seus fundamentos pré-

contratuais de legitimação (RdF: 371de; 381-2pt; 203en, 269es).

Para que o mercado seja concebido como uma esfera da liberdade social, é preciso

que tais normas sejam “em geral” respeitadas (RdF: 241es). Honneth considera, contudo, que

somente a problematização das anomalias do mercado no discurso público pode levar às

transformações almejadas.

*

Se, como vimos, na esfera das relações pessoais os desenvolvimentos anômalos

podem ser descritos como efeitos da penetração dessa esfera pelos imperativos do mercado,

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na esfera econômica as anomalias sociais estão ligadas à autonomização dos imperativos de

valorização capitalista. É importante compreender que, para Honneth, a caricatura do homo

economicus não corresponde à realidade dos sujeitos sob a economia de mercado, ou melhor:

não corresponde perfeitamente. Sua insistência em compreender o capitalismo como uma

ordem econômica dotada e dependente de orientações de valor é notória,249

assim como sua

crítica à neutralização normativa do sistema econômico. Ao mesmo tempo, é impossível não

considerar que, na forma como o mercado capitalista se desenvolveu, aquelas orientações de

valor que constituem sua base de legitimação sempre estiveram e continuam estando muito

distantes de uma realização mínima – que dirá de uma plena efetivação. Assim, o que para

uma série de autores é o caminho natural e a própria definição de mercado (processos de troca

na ausência de imperativos morais) passa, na perspectiva de Honneth, a uma caracterização

crítica do estado atual do mercado como contraditório (ou paradoxal) com relação a seus

próprios pressupostos. Quando fala, portanto, das consequências negativas da penetração das

relações pessoais pelos imperativos do mercado, Honneth está se referindo àqueles

imperativos que se autonomizaram do quadro moral no qual estariam inseridos em uma

situação social não anômala. Assim, a colonização das outras esferas pelo mercado pode ser

considerada um desenvolvimento anômalo apenas se o próprio mercado for considerado como

tendo se desenvolvido de forma anômala. Do contrário, a influência que as relações de

mercado poderiam exercer sobre as relações pessoais e a formação da vontade democrática

não seria necessariamente negativa, podendo, ao contrário, contribuir para a realização da

liberdade nestas esferas.

As transformações econômicas mais recentes, que se popularizaram sob o termo

“neoliberalismo”,250

representam para Honneth um retrocesso nas conquistas sociais do

período anterior, e podem ser consideradas amplamente anômalas. Diz Honneth sobre elas:

O que se consuma na sequência do acoplamento “segundo afinidades eletivas” é

antes uma lenta autonomização de imperativos específicos do mercado financeiro

ou de capital que traz consequências imediatas não apenas parao mercado de

trabalho, mas também para as esferas sociais vizinhas. No âmbito do mercado

capitalista de trabalho [...] o estatuto normativo do trabalho assalariado começa a

249

Em Redistribuição ou reconhecimento?, Honneth chega a afirmar que o capitalismo é uma “ordem de

reconhecimento”.

250 Honneth considera que a expressão não é suficiente para descrever a desorganização da economia capitalista

nos países ocidentais; por isso ele evita o termo e, quando o utiliza, o faz sempre entre aspas.

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erodir então como consequência do desregramento dos interesses por lucros

capitalistas, de conglomerados empresariais multinacionais e de estratégias

transnacionais de produção, de tal forma que é preciso que se fale em uma perda

real dos avanços conquistados até então (RdF: 455-6de; 469pt; 328-9es; 245en).

A consequência negativa potencialmente mais grave do fenômeno de negação dos

princípios normativos que sustentam o mercado é um decréscimo significativo da motivação

dos indivíduos em participar das atividades econômicas, cujas regras de funcionamento

passam a ser consideradas ilegítimas pelos participantes:

A instituição do mercado de trabalho capitalista é tida como injustificada ou

ilegítima a partir do ponto em que não mais garante a seus participantes uma renda

capaz de garantir a vida, quando recompensa desempenhos factuais de modo

insuficiente em termos de de remuneração e de reputação social, bem como quando

dificilmente oferece ainda quaisquer possibilidade de experiência de estar

cooperativamente envolvido na divisão social do trabalho (RdF: 458de; 472pt;

330es; 246en).

Quando perdem efeito as normas compartilhadas que advêm da promessa do

mercado de garantir seguridade econômica, reconhecimento social e codeterminação aos

indivíduos, e são asseguradas apenas as condições legalmente aceitas da liberdade negativa,

emerge um duplo processo de crises: crises de legitimidade e crises no funcionamento do

mecanismo do mercado, que são periódicas e podem variar em termos de intensidade, de

alcance e de nível de articulação pública. Sem legitimidade normativa ou eficiência

econômica, o mercado parece condenado a um estado de anomia que pode conduzir ao

colapso da ordem econômica capitalista tal como a conhecemos. O que era a esperança de

Marx parece, entretanto, ser o receio de Honneth.

c) Anomalias da esfera política

Ao tratar do domínio da política, composto pela esfera pública e pelo Estado

constitucional, Honneth aponta uma série de desenvolvimentos anômalos que também podem

ser agrupados em três grandes conjuntos temáticos, que estão intimamente conectados entre

si: a fragmentação da arena pública (crítica cultural-relacional), a exclusão de determinados

setores da população do debate público e das deliberações políticas (crítica social-distributiva)

e o desacoplamento entre a esfera pública informal e o sistema político formal (crítica

político-reflexiva). Enquanto os dois primeiros afetam a estrutura tanto da esfera pública

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quanto a do Estado constitucional, o terceiro diz respeito justamente à relação (ou a falta dela)

entre estes dois âmbitos.

A fragmentação da arena pública (que está fortemente conectada à exclusão

política de determinadas parcelas da população) é um dos pontos mais destacados por

Honneth. Ele sublinha em diversos momentos as consequências desagregadoras da ausência

de um horizonte cultural comum nas sociedades contemporâneas. Para o autor, o grande

desafio a ser enfrentado na atualidade consiste em consolidar sentimentos de pertença e

solidariedade entre os membros da comunidade política a partir de uma normatividade

compartilhada que consiga capacitar os cidadãos para uma participação ativa na arena pública.

Não há em vista por enquanto, contudo, soluções viáveis para responder satisfatoriamente a

tal desafio. Esse quadro desfavorável pode ser intensificado, diz Honneth, por três processos:

a mercantilização da imprensa, a difusão do uso das plataformas digitais e os fenômenos de

migração em escala global.

Assim, em primeiro lugar, os meios de comunicação de massa, cuja função

“ideal” consistiria em permitir a transmissão e o intercâmbio de opiniões, tornam-se cada vez

mais semelhantes a empresas submetidas aos imperativos da lucratividade. A formação de

monopólios, a dependência com relação à indústria publicitária e o apelo ao sensacionalismo

são alguns dos efeitos deste processo. A mercantilização da mídia limita a autonomia

jornalística dos órgãos de imprensa e a sua capacidade de informar o público de modo

minimamente “objetivo” e esclarecedor. Segundo o autor, existem cada vez mais produções

culturais voltadas para determinados nichos de consumidores, cujo critério central reside no

poder aquisitivo e no nível educacional de seu público-alvo. Surge assim, por exemplo, uma

indústria de entretenimento voltada especificamente para as classes baixas, cuja função

consiste não em informar, mas apenas em amenizar (de modo superficial) as duras condições

de vida que elas enfrentam.251

Aqui observa-se, portanto, um processo de uniformização e

normalização dos indivíduos no âmbito interno a cada classe social – processo que não é

oposto, mas complementar à estratificação em curso. Por outro lado, Honneth acredita que a

251

Esse quadro difere dramaticamente do período anterior à Segunda Guerra, quando havia o que Honneth

chama de “vida pública proletária”, contrária à ordem dominante. Há um século, existia na Inglaterra, na

França e na Alemanha uma esfera pública midiática autônoma das classes despossuídas, na qual uma

“consciência de classe” podia ser articulada comunicativamente em uma imprensa organizada, mesmo

permanecendo restrita a tais espaços alternativos.

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disseminação da internet desnuda um poder de descentramento que parece exacerbar as

tensões já existentes no quadro nacional. De forma semelhante ao que ocorre com a

mercantilização da imprensa, a internet pode contribuir para aumentar a estratificação social

mediante uma distinção entre, de um lado, conteúdo esclarecedor e debates qualificados para

uma elite cosmopolita, e, de outro, entretenimento de baixo nível cultural e interação social

sem a exigência de justificação racional-comunicativa para as classes subalternas. Para

Honneth, o uso político das plataformas digitais traz mais riscos de deterioração da arena

pública do que possibilidades (que existem, mas são limitadas) de uma atuação política

renovada e democratizada. Na trilha dos processos de globalização e de migração em escala

mundial, por fim, surge a questão da integração (não apenas política, como também cultural e

econômica) dos membros recém-chegados a comunidades nacionais já estabelecidas. Na

medida em que boa parte do contingente de imigrantes é formada por trabalhadores

assalariados de outros países, culturas e etnias, a alteração na composição populacional acaba

por abalar o fundamento nacional do “nós” da vida pública democrática, especialmente nos

países centrais da Europa ocidental.

Todos esses processos tornam mais difícil a formação de um público democrático

cujos participantes compartilham um horizonte normativo básico na medida em que se

identificam uns com os outros em função de uma história comum e de expectativas

interconectadas de futuro. Uma das formas historicamente prevalentes de remediar esse

problema consistiu em fomentar ideologias de cunho nacionalista; elas trazem, contudo, o

perigo de instauração de uma anomalia de outra espécie – a exclusão de setores da população

da participação política.252

Dependendo do critério utilizado para definir a “nação”, o

nacionalismo pode passar de fonte de solidariedade entre os membros de um país a veículo de

racismo e xenofobia,253

motivo pelo qual Honneth considera necessário buscar fontes

252

Nesse sentido, a exclusão denunciada como anomalia pela crítica social-distributiva mostra que ela não trata

unicamente da distribuição de bens econômicos ou materiais, mas também de poder e reconhecimento (ponto

de vista que aproxima nosso autor da concepção de “poder simbólico” e Bourdieu e da noção de autoestima

como parte dos “bens básicos” de Rawls, ao mesmo tempo que o afasta da ideia de “políticas de identidade”

de Iris Young, autora que considera que poder e reconhecimento não podem ser objeto de distribuição,

requisitando a utilização de uma gramática inteiramente diversa do vocabulário econômico).

253 Considerado o desenvolvimento anômalo por excelência da esfera política, o regime nacional-socialista na

Alemanha expôs o quão frágeis são as conquistas e avanços reconstruídos em termos de liberdade social.

Trata-se, para Honneth, de uma anomalia tão estranha ao desenvolvimento da liberdade individual na esfera

da formação da vontade democrática que tal período é considerado um “outro” impossível de reconstruir

normativamente.

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alternativas para fomentar sentimentos de reciprocidade e cooperação. A persistência, na

atualidade, de orientações de valor de cunho nacional contribui para outra forma de

desenvolvimento anômalo na esfera política, que atinge especialmente comunidades

multinacionais como a União Europeia: na medida em que obstrui o caminho para a

consolidação de um horizonte normativo mais abrangente, supra- ou transnacional, a

solidariedade limitada ao quadro do Estado-nação fortalece uma integração entre os países

membros que é apenas negativa e diz respeito quase que somente a aspectos econômicos. Sem

a criação de um quadro igualitário e supranacional de direitos civis, políticos e sociais, os

imperativos de acumulação de capital continuarão a ter primazia sobre o exercício efetivo da

democracia real e determinados setores da população continuarão a ser excluídos

politicamente.

Para Honneth, aliás, essa uma das anomalias mais acentuadas que afetam a esfera

política: a exclusão fundada nas desigualdades socioeconômicas. De acordo com a

interpretação desenvolvida no livro, o Estado constitucional moderno foi marcado desde seus

primórdios por uma seletividade classista mediante a qual os extratos sociais mais altos

procuraram garantir seus interesses econômicos em face do restante da sociedade – em que

pese a função declarada do sistema político de representar a vontade geral da população em

seu conjunto. Na medida em que são contrariados os princípios normativos que estão na sua

base, o exercício seletivo, parcial, opressor e muitas vezes violento do poder de controle do

Estado representa um uso ilegítimo da autoridade que lhe é outorgada sob determinadas

condições. Exemplos bastante ilustrativos desse fenômeno são a proibição histórica e

marginalização atual de organizações trabalhistas em diversos países considerados

democráticos, de um lado, e, de outro, a ocupação de boa parte das posições do aparato

burocrático do Estado por membros das classes economicamente dominantes, o que conduz a

uma arbitrariedade (classista) na implementação das deliberações alcançadas na arena pública.

Essa situação anômala apenas pareceu ser mitigada pelo acordo característico do

pós-guerra entre governos, elites econômicas (mediantes associações patronais) e a classe

trabalhadora (mediante associações trabalhistas e sindicatos). Tal corporativismo liberal é

problemático porque, em primeiro lugar, a melhoria das condições de vida dos trabalhadores

encontra seu limite nos imperativos de lucratividade do mercado (o que ficou patente nas

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298

crises econômicas a partir dos anos 1970), e, em segundo, porque sendo articulados em um

âmbito extraparlamentar, tais acordos acabam por evadir e, assim, solapar os mecanismos

constitucionais de deliberação política característicos das sociedades democráticas. O quadro

atual não é muito diferente daquele do fim do século passado: com o estabelecimento do

consenso neoliberal, ficou cada vez mais claro que, apesar de contar com canais e

mecanismos democráticos, o sistema político continuou a privilegiar as demandas da elite

econômica, obstruindo o exercício da autonomia legislativa de grandes parcelas da população

– o que deu ensejo ao conceito crítico de “pós-democracia”.

Pode-se dizer, como consequência, que o caráter problemático do cenário político

moderno é agravado pelo desacoplamento entre a formação da vontade na esfera pública e o

aparato político constitucional. Isso significa que nem sempre as conquistas de liberdade

social em um polo se refletem no outro. Assim, a democratização do aparelho burocrático

estatal ocorreu paralelamente à manutenção e mesmo intensificação de mecanismos altamente

excludentes de participação na esfera pública política hegemônica. Por outro lado, o debate

acerca da “questão social” – que questiona inclusive tais dispositivos de exclusão política –

ficou na maior parte do tempo restrito a esferas públicas não hegemônicas, sendo incapaz de

influenciar de forma efetiva a agenda política institucional parlamentar dominada por agentes

das elites econômicas. Não sem razão, a grande parte da população que é excluída das

decisões políticas que lhe afetam considera que os órgãos estatais são na maior parte do tempo

impermeáveis às suas demandas e necessidades, de forma que sua relação com a esfera da

política institucional é marcada por sentimentos de desconfiança e desencanto. Tal percepção

não levou, entretanto, à manifestação coletiva de insatisfação, por exemplo, mediante

protestos e greves de cunho político. O desencantamento com a política conduziu, ao

contrário, à apatia e à indiferença – que tiveram como consequência um aprofundamento na

deterioração dos mecanismos de participação democrática, gerando assim um círculo vicioso

entre exclusão e abstencionismo ou alienação.

*

A esfera política, assim como a das relações pessoais, é acometida por graves

anomalias quando os imperativos de lucratividade capitalista se sobrepõem às expectativas

normativas específicas dessas esferas. A priorização das exigências impostas pelo mercado

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não apenas ocasionou uma parcela bastante significativa dos desenvolvimentos anômalos

observados pelo autor, como se associou historicamente a formas já existentes de

desenvolvimentos anômalos – tais como o racismo, a xenofobia, o nacionalismo e a

discriminação de gênero – reforçando e potencializando-as reciprocamente.

5.2.3. A correlação (Zusammenspiel) entre as esferas éticas

Honneth não se demora muito na discussão sobre como cada esfera se relaciona

com as demais. Algumas considerações específicas sobre esse tema são tecidas na última

seção do livro, sobre cultura política, onde o autor afirma que a relação entre as três esferas

deve consistir em uma “reciprocidade contributiva” (RdF: 615de). O objetivo de Honneth

aqui é criticar as teorias da democracia que conferem um poder de influência muito grande à

esfera política (e especialmente ao domínio jurídico-formal dessa esfera) em detrimento das

esferas das relações pessoais e da economia de mercado.

Por um lado, Honneth admite que a autolegislação que ocorre nas complexas

estruturas da formação da vontade democrática é frequentemente reconhecida como o centro

ativo da ordem institucional como um todo, já que se espera que ela produza uma regulação

político-jurídica das outras esferas sociais. É preciso tomar cuidado, por outro lado, para não

atribuir um poder criativo exagerado ao processo democrático, uma vez que as medidas

tomadas no âmbito do Estado de direito não conseguem influenciar por completo as demais

instituições relacionais (RdF: 613de; 329en; 438es). O autor considera ter mostrado que tanto

as relações pessoais quanto o sistema econômico de mercado têm normas autorreferenciais

próprias, que são ligadas, por sua vez, a formas independentes de liberdade social e não

prescindem forçosamente, para sua realização, de intervenções jurídico-políticas. Os avanços

que observamos ao longo do tempo devem ser considerados, ao contrário, fruto de conflitos

sociais que transformam a percepção coletiva e que mobilizam os princípios de liberdade

correspondentes. Muitas vezes, assim, o direito apenas tornou juridicamente vinculantes

melhorias que já haviam sido conquistadas mediante lutas sociais.254

Para Honneth, portanto,

254

Isso leva o autor a questionar as teorias da justiça contemporâneas que se guiam quase que exclusivamente

pelo paradigma legal: é preciso, ao contrário, levar em conta a sociologia e a historiografia, já que estas

disciplinas têm, segundo Honneth, uma maior sensibilidade para transformações cotidianas no

comportamento moral dos sujeitos.

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300

“O motor e o meio dos processos históricos de realização de princípios institucionalizados de

liberdade não é acima de tudo o direito, mas sim as lutas sociais acerca do entendimento

adequado de tais princípios e as alterações de comportamento que daí emergem” (RdF: 613-

4de; 630pt; 329en; 438es).

Se a relação entre as esferas deve consistir em uma reciprocidade contributiva, é

preciso considerar, além disso, que a própria esfera da formação da vontade democrática

depende de uma realização mínima das condições de liberdade social nas esferas que lhe

circundam – condições que ela não pode, por si só, trazer a efeito. Assim, como visto, uma

esfera pública saudável depende, por exemplo, da socialização bem-sucedida das crianças no

âmbito familiar e da inexistência de um grau exacerbado de desigualdades econômicas entre

as classes sociais. Tirando uma conclusão geral, Honneth afirma que as “teorias da

democracia deliberativa devem pressupor na esfera econômica e na família relações já

consideradas ‘justas’, isto é, em acordo com seus próprios princípios” (RdF: 615de; 631pt;

330en; 439es). A ideia de uma eticidade democrática deve levar em consideração, portanto,

que só há democracia onde os princípios de liberdade institucionalizados em cada esfera

foram realizados e corporificados em práticas e hábitos correspondentes. Isso significa que a

formação política da vontade democrática pressupõe ao mesmo tempo em que cria as

condições para a realização da liberdade nas outras esferas: a autolegislação pública é um

processo de aprendizagem normativamente orientado, no qual podemos presentificar

liberdades antecedentes (e existentes alhures) como condições de sua própria realização.

Desse modo,

A esfera política da formação democrática da vontade apenas faz justiça à sua

demanda normativa de inclusão não coagida de todos os concernidos se os

participantes aprendem que as lutas sociais pela realização das demandas de

liberdade institucionalizadas em cada uma das outras esferas de ação merecem

apoio porque estão aí em jogo, também, os requisitos da própria liberdade. [...] O

participante livre do mercado, a cidadã autoconsciente e democrática e o membro

emancipado da família – todos figuras que correspondem aos ideais de cada esfera

institucionalizados em nossa sociedade – determinam-se reciprocamente, uma vez

que as propriedades de um não podem se efetivar, em última instância, sem a dos

outros dois (RdF: 615-6de; 632pt; 330-1en; 440es).

Ainda assim, existem duas razões pelas quais a terceira esfera ética possui um

caráter especial. Em primeiro lugar, de acordo com princípios constitucionais modernos, os

órgãos estatais estão autorizados de forma legítima a tornar os avanços alcançados mediante

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301

lutas sociais em todos os âmbitos de ação em fatos sancionados, isto é, em garantias

jurídicas.255

Desse modo,

a autolegislação democrática e o Estado de direito a ela associado formam por

assim dizer um centro institucionalmente bastante destacado em meio a outros

centros ancorados nas respectivas normas de liberdade porque apenas ele está

equipado com o poder universalmente reconhecido para interromper o fluxo das

disputas que ocorrem em outros lugares e fixar os seus resultados com ajuda de

estatutos legais (RdF: 616de; 633pt; 331en; 440-1es).

Em segundo lugar, apenas a esfera da formação da vontade democrática tem seu

cerne formado por um princípio de liberdade que consiste em uma autotematização reflexiva.

Tal processo pode se dar, é verdade, nas outras duas esferas – e este é um dos sentidos em que

se pode falar em uma “democratização” das relações pessoais e de mercado –, mas não é parte

constitutiva de sua estrutura institucional desde o início. Assim, “Apenas na esfera política-

democrática a colaboração entre os sujeitos é pensada como um intercâmbio recíproco de

argumentos, isto é, como uma processo reflexivo, ao passo que nas outras duas esferas a

colaboração cooperativa está disposta primariamente como um completar mútuo de ações ou

desempenhos práticos e pode apenas secundariamente ser complementada por mecanismos

reflexivos” (RdF: 617de; 633pt; 331en; 441es).

Na esfera política há, portanto, uma reflexividade institucionalizada que pode ser

mobilizada para colocar em evidência e trazer para a discussão temas que, por conta de

desenvolvimentos anômalos e processos de dominação, acabam sendo retirados do debate. É

nessa esfera, portanto, que podem ser combatidas diretamente as anomalias de segunda

ordem. Isso porque as normas autorreferenciais do próprio processo democrático instauram

sobre os cidadãos de uma comunidade política a coerção de ter que tomar partido de tudo

aquilo que, em determinado momento histórico, contribui para a realização dos princípios

institucionalizados de liberdade. O autor reconhece, contudo, que critérios normativos

compartilhados apenas podem ser alcançados se houver, na sociedade, um horizonte cultural

comum, um sentimento conjunto de pertença – que é o que permite o próprio processo de

construção da vontade na esfera pública democrática. A partir dessa consciência histórica,

255

Não fica claro se Honneth relaciona essa discussão na seção final do livro com o que foi dito anteriormente

sobre a liberdade jurídica. Este poderia ser, aliás, um caminho para integrar as duas reconstruções realizadas

no livro: mostrar histórica e concretamente a medida em que a orientação jurídica das ações tem um efeito

positivo ou negativo para a realização da liberdade social. Note-se, no trecho que segue, a semelhança com a

função da liberdade jurídica tal como descrita na seção B.I.1 de O direito da liberdade.

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seria preciso investir de vitalidade um “patriotismo inerente ao repertório europeu de lutas

coletivas por liberdade” que “visa à efetivação de todas as promessas de liberdade

institucionalizadas nas distintas esferas” sociais (RdF: 624de; 640pt; 445-6es; 335en). As

perspectivas não são, para Honneth, muito alentadoras, e ele vê poucas chances de que se

desenvolva uma “cultura europeia de cuidados compartilhados e solidariedades ampliadas”

(idem) que possibilite a consolidação de uma esfera pública transnacional e socialmente

comprometida.256

Não resta muito mais que essa esperança.

*

Ao longo de toda a terceira parte do livro, contudo, o destaque fica por conta da

autonomização dos imperativos de lucratividade do mercado como desenvolvimento anômalo

da esfera econômica, e sua penetração nas esferas vizinhas como causa de uma série de novas

anomalias e a potencialização das já existentes. Trata-se, para Honneth, de uma força

dessocializante muito poderosa que afeta decisivamente as relações sociais, seja privando os

indivíduos das condições básicas para o exercício adequado de suas funções complementares,

seja transformando a própria forma deles interagirem entre si no sentido de satisfazer as

demandas cada vez mais exigentes do mercado capitalista. São prejudicadas, assim, tanto as

relações desinteressadas e afetuosas entre parceiros amorosos, amigos e membros da família

quanto a capacidade dos cidadãos de, em conjunto, formular discursiva e politicamente

respostas para os problemas sociais que lhes afetam como um todo.

O aspecto que mais parece preocupar o autor neste contexto é o fenômeno da

formação capitalista da subjetividade: no caso das relações íntimas, por exemplo, os sujeitos

estão cada vez menos em condições de aceitar aqueles vínculos que são imprescindíveis para

a manutenção de laços pessoais de afeto em detrimento de diversas “competências” que são

valorizadas pelo mercado de trabalho, como a flexibilidade de horários, o estar continuamente

256

Como visto na análise da esfera política, estamos diante de um processo de esvaziamento da força normativa

representada pelo paradigma da nação, sem que tenha, até o momento, aparecido uma alternativa viável no

horizonte político. Honneth encerra o livro contrapondo-se à ideia de patriotismo constitucional, solução

proposta por Habermas, entre outros, para consolidar um sentimento comum de solidariedade que pudesse

capacitar os cidadãos para uma participação ativa e engajada na esfera pública política. O patriotismo

constitucional permanece, diz o autor, muito estreitamente ligado ao meio do direito, e a narrativa de triunfos

e derrotas na luta compartilhada por liberdade é algo que abarca muitos mais eventos históricos do que as

lutas pela efetivação de normas constitucionais. As demandas morais dos movimentos sociais que lutam por

liberdade não podem ser resumidas às demandas legais das constituições europeias.

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disponível e acessível para novas tarefas, a capacidade de estabelecer relações

fundamentalmente estratégicas com seus parceiros de interação, etc. (RdF: 203-4es, 154en,

276de). Em certo sentido, Honneth considera as relações pessoais como o alicerce da

eticidade democrática e, portanto, caso venha de fato a se concretizar esse esvaziamento

interno, ela será privada de seu fundamento, isto é, a possibilidade de que os membros da

sociedade se sintam institucionalmente protegidos não apenas em sua carências afetivas

“naturais”, como também em suas relações confidenciais e desinteressadas com outros

membros da sociedade e em seu processo de socialização mediante a alternância (tanto lúdica

quanto factual) de papéis geracionais no âmbito do convívio familiar.257

Se esse quadro puder

ser expandido para além das relações amorosas, e tudo indica que pode, Honneth teme que

esteja em curso uma transformação da correlação ou do jogo entre as diferentes formas da

liberdade social e, por conseguinte, da própria estrutura da eticidade democrática. Trata-se do

perigo de “definhamento interno” (innere Auszehrung; RdF: 276de) da instituição da

liberdade social.

O mesmo processo de desequilíbrio no jogo entre as esferas ocorre, como visto,

na relação entre mercado e política: os interesses das elites econômicas e das associações

patronais são claramente privilegiados na agenda política dos Estados-nações (e das

associações entre Estados) em detrimento do controle democrático das decisões públicas pelo

conjunto dos cidadãos. A esfera política, quando tomada pelos imperativos mercado, não é

capaz de fornecer aos indivíduos mecanismos discursivos eficazes para a deliberação acerca

de normas gerais juridicamente vinculantes e meios legais-burocráticos para a implementação

efetiva de tais normas.

O papel nocivo que a autonomização dos imperativos de lucratividade exerce nas

três esferas éticas faz com que se torne vital estabelecer fronteiras e obstáculos a esse

processo, em favor de uma reinserção ética da esfera econômica:

Por isso será preciso, no tratamento da esfera econômica da liberdade social, da

ação econômica mediada pelo mercado, determinar seus limites normativos de uma

maneira que se pode chamar de reconstrutiva, de tal forma que o perigo da

257

Apesar do autor afirmar, de certa forma, que a esfera das relações pessoais detém uma posição privilegiada

(RdF: 276de), essa ideia não encontra eco no restante do livro. Como visto, Honneth destaca o caráter

peculiar tanto do mercado quanto da esfera pública política, sendo que às relações familiares, de amizade e

de amor (mais uma vez) cabe um espaço reduzido tendo-se em vista o conjunto da obra.

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colonização de esferas de liberdade social vizinhas não possa ao menos surgir

(RdF: 276de; 281; 203-4es, 154en).

É preciso levar em conta ainda o fato de que as anomalias causadas pela

colonização da esfera das relações pessoais pela lógica do mercado têm consequências

negativas também para a esfera política, e vice-versa. De um lado, uma estrutura familiar com

precárias condições de manutenção da existência e de convívio socializador das crianças – as

quais, quando adultas, adicionalmente encontram dificuldades no cultivo de laços solidários e

íntimos com amigos e parceiros amorosos – contribui para a formação de cidadãos com uma

capacidade reduzida de atuar coletivamente. De outro lado, concorrem para tais

desenvolvimentos anômalos das relações pessoais, por sua vez, uma esfera pública excludente

e um aparato estatal que não garante a todos os cidadãos os direitos sociais e de bem-estar

necessários para uma convivência pessoal saudável, formadora e protetora em todos os níveis.

5.2.4. Patologias versus anomalias

O fato de Honneth caracterizar o perigo de definhamento da eticidade democrática

como “interno” parece enfraquecer aquela distinção que o autor faz entre patologias sociais

(que derivam da própria forma de liberdade considerada) e desenvolvimentos sociais

anômalos (cujas causas são externas à forma da liberdade social). A partir de uma leitura

generosa do texto, a diferença parece residir em que as patologias decorrem do excesso ou

unilateralização das liberdades jurídica ou moral, enquanto que as anomalias advêm da

deficiência ou o esgotamento da liberdade social, impulsionados pelo desenvolvimento

anômalo que tem como ponto de partida a decrescente inserção moral da esfera ética do

mercado, o que se alastra pelas demais esferas relacionais e acaba por causar ou fortalecer

tendências anômalas de forma recíproca. A corrosão da eticidade democrática seria interna,

assim, no sentido de que é fruto do desenvolvimento anômalo de uma esfera ética (que

penetra as demais), mas suas causas seriam externas em sua relação com o funcionamento

mesmo da liberdade social (trata-se justamente da falta, e não da unilateralização de seus

princípios normativos).

É preciso destacar, então, que tanto quando se trata das patologias quanto dos

desenvolvimentos anômalos estamos diante da perda do caráter social da liberdade. As

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liberdades jurídica e moral, quando unilateralizadas, excluem do seu exercício justamente o

conteúdo intersubjetivo das relações sociais normativamente mediadas; e a liberdade social,

por sua vez, quando acometida pelo definhamento interno decorrente da autonomização da

esfera econômica, é privada das condições que permitem aos atores se reconhecerem

reciprocamente como necessários (e não limitantes) à liberdade dos demais. Nos três casos, a

própria estrutura do ser-consigo-mesmo-no-outro é comprometida, o que deve levar ao

questionamento da necessidade ou mesmo da conveniência da distinção conceitual entre

patologias sociais e desenvolvimentos sociais anômalos. Não parece haver nada que a

demande, nem que a torne especialmente útil para a análise dos fenômenos que obstruem a

realização plena da liberdade individual. Na medida em que não é suficientemente claro nem

o critério para identificar que tipos de distúrbios são causados interna ou externamente, e

tampouco em que isso poderia contribuir para a sua análise crítica, poderíamos ir mais longe e

dizer que, em certo sentido, a distinção não apenas não ajuda, mas pode complicar ainda mais

a reconstrução normativa proposta por Honneth – já que ela coloca uma série de problemas

adicionais e de difícil elucidação.258

Que tipo de relação existe, por exemplo, entre as

patologias sociais e os desenvolvimentos sociais anômalos? Quais as consequências, para o

teórico crítico e para os atores sociais, da distinção entre origem interna ou externa da

restrição da liberdade? A forma de combater os distúrbios sociais difere dependendo de se

tratar de anomalias ou patologias? Os sujeitos são afetados de formas distintas por cada uma?

258

Existem, ainda, uma série de problemas relacionados à distinção da origem – interna ou externa – dos

fenômenos sociais negativos. Em primeiro lugar, há contraexemplos dessa distinção no próprio livro de

Honneth. Assim, por exemplo, as patologias da moralidade não são causadas apenas pela extrapolação (no

tempo e nos campos de ação) dos limites da verificação da autonomia moral, mas também por um exercício

falho da liberdade moral dentro de seus próprios limites, que é o que acontece quando o indivíduo se alça à

posição de legislador universal e imparcial do mundo social como um todo. A liberdade moral, por um lado,

produz sua própria unilateralidade e é, assim, limitada internamente; por outro lado, entretanto, ela não pode

ser considerada a causa do exercício falho e unilateral pelos indivíduos, o que complica a distinção entre

causas externas e internas das patologias e anomalias sociais. Outro exemplo são os distúrbios causados pelo

nacionalismo, analisados na parte C do livro, que podem ser atribuídos ao excesso de um princípio interno à

liberdade social, já que o desenvolvimento da esfera pública democrática contou com a ajuda da formação

dos Estados nacionais e das culturas nacionalistas (cf. Freyenhagen, 2015). Outra questão, não menos

importante, que se deve colocar neste contexto diz respeito à complexidade dos nexos causais que estão na

base dos distúrbios sociais, o que torna especialmente custoso, se não impossível, diferenciar a origem (em

sentido forte) de uma patologia ou desenvolvimento anômalo da sua forma de manifestação. Um exemplo

pode tornar isso mais claro: todos os distúrbios que assumem a forma de uma legislação vinculante são

necessariamente frutos de uma patologia da liberdade jurídica, ou pode se tratar de um fenômeno que tem

origem na liberdade moral ou mesmo na liberdade social mas que é implementado mediante instrumentos

legais? Esta e outras questões do gênero não são problematizadas por Honneth e não parece fácil encontrar

uma resposta a elas a partir de O direito da liberdade.

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Por que tipo de sofrimento cada uma é responsável? Como alocar as patologias que não são

rigorosamente internas e as anomalias que não são propriamente externas? Como o autor não

chega a abordar estes problemas, o argumento do livro acaba sendo enfraquecido por uma

cisão que não é suficientemente justificada. Nos parece que a distinção feita por Honneth na

segunda parte do livro e posteriormente abandonada, aquela entre patologias de primeira e de

segunda ordem (entre injustiças sociais e patologias sociais “propriamente ditas”), poderia

oferecer um caminho mais produtivo.

*

Tal questionamento nos conduz a um outro problema encontrado no modo como

Honneth estruturou sua argumentação no livro: o desacoplamento entre a reconstrução

teórico-conceitual e a reconstrução histórico-social. Honneth afirma, no texto que serve de

introdução a O direito da liberdade, que o livro será dedicado a elaborar, de acordo com as

exigências da reconstrução normativa, uma teoria da justiça ligada a uma análise da

sociedade. Isso significa que é preciso haver uma vinculação muito estreita entre os

momentos de reconstrução conceitual (que, no livro, corresponde à parte B) e de reconstrução

histórica (parte C). Mas não é o que acontece: a reconstrução conceitual realizada por

Honneth é limitada, referindo-se quase que exclusivamente a conceitos abstratos. Não

obstante a intenção do autor ser esclarecer o que vai estar em jogo na reconstrução histórica,

praticamente toda a argumentação acerca das formas negativa e reflexiva de liberdade, bem

como sobre as patologias correspondentes, desaparece na análise da eticidade na terceira parte

do livro.

Há, assim, como que um abismo entre os momentos de reconstrução conceitual e

de reconstrução histórica. Por um lado, as patologias descritas na segunda parte do livro –

decorrentes de processos de judicialização e moralização excessivas – permanecem sempre

em um nível muito alto de abstração. Por outro lado, e este é apenas o outro lado da moeda, a

análise da trajetória histórica do jogo entre realização e entrave da liberdade social nas esferas

da eticidade carece de qualquer consideração acerca das patologias descritas no passo

anterior. Os processos de judicialização e moralização patológicas do mundo da vida não têm

lugar na reconstrução histórica de longo alcance que Honneth leva a cabo na seção sobre a

efetividade da liberdade.

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Cabe também notar que tampouco o sentido ético das formas anteriores de

liberdade é substancialmente examinado na “análise da sociedade” da terceira parte do livro.

Afinal, as formas anteriores de liberdade não são apenas fontes de patologias (o que acontece

quando elas são unilateralizadas e tomadas como o todo da liberdade), mas também têm a sua

razão de ser (quando permanecem dentro dos limites de seu âmbito de ação). Para além das

passagens em que o direito exerce timidamente o papel de institucionalização jurídica de

conquistas em termos de liberdade social (como no caso das transformações jurídicas acerca

do estatuto das relações amorosas e familiares ou da legalização de procedimentos

democráticos de participação popular), não se faz referência a precisamente como os

processos de suspensão (temporária) das obrigações comunicativas – seja para a criação de

um espaço privado de experimentação da vontade, seja na avaliação reflexiva das normas

sociais existentes – podem contribuir para a realização da liberdade individual. Em que

sentido, então, se pode dizer que as liberdades negativa-jurídica e reflexiva-moral formam a

possibilidade da liberdade? Parece, ao contrário, que a liberdade social não subsume (no

sentido de aufheben) as outras duas, mas que as abandona e parte do início novamente.

Desse modo, o direito abstrato e a moralidade (as liberdades jurídica e moral) não

aparecem como partes da eticidade – ao contrário, elas apenas permitem aos sujeitos tomar

distância com relação a esta. Mesmo que sejam liberdades objetivadas em instituições, elas

não estão corporificadas nas instituições específicas da eticidade moderna (família ou

relações pessoais; sociedade civil ou ações econômicas de mercado; e Estado ou formação da

vontade democrática), o que nos leva a questionar se Honneth não incorre no mesmo tipo de

posicionamento pelo criticou Habermas e sua cisão entre sistema e mundo da vida: em lugar

de uma distinção meramente analítica entre concepções de liberdade que, de resto, convivem

em um mesmo ambiente social, ele parece considerar que há domínios sociais distintos nos

quais valem diferentes normas de ação, segundo os distintos ideais de liberdade. Faltam,

assim, mediações entre o diagnóstico de tempo e a reconstrução conceitual; as patologias que

aparecem aqui não têm efeitos lá. Sem um laço que una ambos os momentos da reconstrução,

o livro de Honneth na verdade parece ser dois: de um lado, uma sistematização dos diferentes

sentidos que o ideal da liberdade assumiu na era moderna (Parte B) e sua genealogia filosófica

(Parte A), e, de outro, um diagnóstico de tempo de longo alcance (do século XVIII até os dias

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308

de hoje) centrado no grau de efetivação da liberdade social nas três esferas da eticidade (Parte

C).

Trata-se, aqui, de uma fragilidade teórica que tem entre suas causas o fato de

Honneth não observar adequadamente as exigências que ele mesmo havia conectado ao

método reconstrutivo. Se, de um lado, o núcleo racional dos ideais dominantes na

modernidade não é destilado do mundo empírico mediante um cuidadoso trabalho conjunto

entre filósofos e teóricos sociais, e se, de outro lado, as esferas e instituições que compõem a

eticidade moderna não são, por sua vez, extraídas da realidade social mediante uma

semelhante comparação corretiva entre conceito e história, não é de se surpreender que, no

resultado final, a reconstrução conceitual e a reconstrução histórica (diagnóstico de época)

encontrem-se desacopladas.

*

O fato de Honneth distinguir patologias de anomalias sociais e, na parte do livro

dedicada ao diagnóstico de época, abandonar as primeiras em favor das segundas revela mais

do que simplesmente uma certa arbitrariedade nos critérios de distinção e o consequente

desacoplamento entre os diferentes momentos reconstrutivos do texto. O foco nas anomalias

revela um aspecto institucionalista e mesmo funcionalista do livro. Afinal, as anomalias são

transtornos que acometem, antes de tudo, instituições relacionais, esferas éticas e o equilíbrio

entre elas, e não sujeitos sociais individual ou coletivamente considerados. Com a renúncia,

na prática, à metáfora da patologia e às suas consequências para os indivíduos (como ainda

era o caso em Sofrimento de indeterminação), perde espaço a análise das experiências

negativas dos atores como componente essencial dos distúrbios sociais.259

Esse movimento

teórico, caracterizado pela importância crescente das normas sociais institucionalizadas e,

inversamente, pela relevância cada vez menor dos conflitos sociais normativamente

motivados, é ainda reforçado em textos mais recentes do autor.

259

Note-se, aliás, que apesar de Honneth manter em O direito da liberdade o argumento central de Sofrimento

de indeterminação acerca do surgimento das patologias sociais decorrentes das formas insuficientes de

liberdade, desaparecem completamente aqueles termos que indicavam, no livro de 2001, o caráter negativo

de como as patologias são subjetivamente experienciadas, tais como Leere (vazio) e Leerheit (vacuidade),

Unerfülltsein (esvaziamento, esgotamento) e Unausgefülltsein (incompletude), Einsamkeit (solidão),

Gedrücktheit (abatimento), Qual (tortura, tormento) e o adjetivo quälend (torturante, atormentador). Mesmo

os termos Leiden (sofrimento) e Unbestimmtheit (indeterminidade) perdem qualquer traço de centralidade

nos capítulos dedicados às patologias da liberdade individual.

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Excurso III: Doenças da sociedade

A contraposição entre patologias sociais e desenvolvimentos sociais anômalos, tal

como Honneth a formula em O direito da liberdade, perde forças nos escritos mais recentes

do autor. Em “As doenças da sociedade”,260

texto publicado na revista do Instituto de

Pesquisa Social em 2014, Honneth procura esclarecer sua posição atual acerca da ideia de

patologias sociais – e já apresenta discrepâncias conceituais significativas com relação a O

direito da liberdade, publicado apenas três anos antes. Mais importante que tais discrepâncias,

entretanto, é o fato de que o texto representa um aprofundamento das tendências

funcionalistas já presentes no livro de forma menos desenvolvida.261

No texto em causa, Honneth considera que, para que se possa falar em doenças da

sociedade, é preciso poder atribuir “um princípio interno de funcionamento intacto” não

apenas a indivíduos, mas também à própria comunidade (KdG: 45de). O autor reconhece,

contudo, que esse vocabulário pode ser utilizado arbitrariamente para depreciar determinados

grupos sociais – encontramos um bom exemplo disto, é claro, na história da Alemanha no

século XX – e por isso deve ser empregado de forma criteriosa. Outra dificuldade que surge

quando se procura transpor o conceito de “doença”262

para o todo da sociedade diz respeito ao

fato de que não é suficientemente claro, de saída, quem deve estar de fato doente (erkrankt):

trata-se (a) da soma de uma quantidade suficientemente ampla de pessoas individuais e suas

enfermidades; (b) de coletivos ou grupos homogêneos entendidos como grandes sujeitos

portadores de um conjunto de sintomas (Krankheitsbild) que caracterizam uma enfermidade

social (como é o caso de Sartre e seu conceito de neurose coletiva); ou (c) da própria

sociedade que, por meio de uma determinada organização anômala das instituições sociais, é

260

Título original: “Die Krankheiten der Gesellschaft. Annäherung an einen nahezu unmöglichen Begriff”

(abreviado daqui em diante como KdG). A tradução foi feita por Arthur Bueno e revisada pela autora. A

primeira parte do título corresponde ao de um texto de Alexander Mitscherlich (1983 [1957]): “Die

Krankheiten der Gesellschaft und die psychosomatische Medizin”.

261 Já no livro, Honneth diz ser favorável a um “funcionalismo normativo” (RdF: 334, 336, 339 e 344de). No

ensaio de 2014, ele volta a falar em um “funcionalismo normativamente ampliado” (KdG: 53de), o que não

parece se diferenciar de uma teoria sistêmica que leve e consideração a existência e a eficácia de valores

morais no funcionamento dos subsistemas que compõem a sociedade (não é à toa que Honneth aproxima-se

cada vez mais de Durkheim e Parsons). Cf. McNay (2015) para uma crítica semelhante ao funcionalismo

(mas mais focada na noção teleológica que lhe acompanha) de O direito da liberdade.

262 Note-se que, apesar de Honneth referir-se às “doenças” da sociedade sempre entre aspas, ele afirma estar em

busca de defini-las “em um sentido não meramente figurativo [übertragen], mas literal [buchstäblich]” (KdG:

46de).

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assim prejudicada em sua “competência funcional” (Funktionstüchtigkeit), de modo que se

poderia falar sem receio de estados doentios (krankhafte Zustände) ou doenças sociais (como

é o caso de Durkheim e sua categoria de “anomia social”)? Uma parte significativa do texto é

dedicada a discutir, com recurso crítico às obras de Alexander Mitscherlich e Sigmund Freud,

a dificuldade relativa à atribuição das patologias sociais.

Honneth compartilha com ambos os autores a ideia de que problemas de

adaptação entre indivíduo e sociedade estão entre as principais causas de níveis anormais

daquelas enfermidades (Erkrankungen) que não podem ser explicadas apenas

fisiologicamente e requerem um exame adicional do ponto de vista psíquico. Trata-se de

distúrbios na integração entre o ambiente social e o processo de individuação que levam a

transtornos de vivência (Erlebnisstorungen) manifestados em uma série de sintomas sem

contornos muito precisos, como tensões emocionais ou irritações psíquicas, e que podem ser

diagnosticados provisoriamente apenas como um “fracasso de desempenho”

(Leistungsversagen; KdG: 45de). Outra tese subjacente à posição de Freud e Mitscherlich que

Honneth considera convincente é a de que as patologias sociais são fenômenos específicos

encontrados unicamente na própria sociedade, e não na soma ou generalização das patologias

psíquicas de seus membros individuais (KdG: 49de). Dito de outro modo: apesar de os

indicadores médicos acerca da emergência e disseminação de determinadas formas de

adoecimento individual serem em alguma medida relevantes para descobrir transtornos

profundos no processo de integração social, tais transtornos não estão no mesmo nível do

sofrimento e das enfermidades dos atores sociais isolados, ou mesmo de grupos de atores no

interior da sociedade. Assim, mesmo se as doenças da sociedade forem consideradas as causas

para as enfermidades psíquicas cujo alastramento chama a atenção e demanda explicação, é

preciso reconhecer que “entre as duas grandezas existe, entretanto, uma diferença ontológica

[ontologische Differenz] que impede a utilização, nos dois casos, da mesma linguagem da

psicologia ou da psicanálise” (KdG: 49-50de). Ao tratar da sociedade como sujeito ao qual se

atribui a doença, portanto, faz-se necessário utilizar o vocabulário próprio da teoria social.

Por outro lado, Honneth discorda da premissa que, em Freud como em

Mitscherlich, está ligada a essa caracterização das patologias sociais, qual seja: apenas

podemos falar em doenças da sociedade quando “um número notavelmente grande de seus

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membros sofre sintomas de uma anormalidade psíquica de modo suficientemente forte para

buscar em grande quantidade consultas com médicos ou terapeutas” (KdG: 48de). Dois são

os motivos pelos quais Honneth discorda dessa tese: (1) existem casos em que podemos

inferir distúrbios na vida social conjunta a partir de indicações muito vagas, como situações

difusas de mal-estar ou de indisposição, por exemplo, “sem que estas devam ter se

precipitado como transtornos funcionais experienciados pelos indivíduos como sofrimento e

assim perceptíveis como ‘doença’” (KdG: 48de); (2) e, inversamente, a mera consideração de

um aumento, nos indicadores médicos, de determinados sintomas psíquicos não é suficiente

para atribuir ao ambiente social dos indivíduos afetados uma patologia social ou um

transtorno funcional social propriamente ditos (em certo sentido porque os próprios médicos

podem se enganar quanto à interpretação, que nunca é inequívoca, de um dado conjunto de

sintomas psíquicos).

Para Honneth, então, a conexão entre diagnósticos médicos de enfermidades

psíquicas individuais e a descoberta de doenças sociais é mais frouxa do que acreditam Freud

e Mitscherlich. O cerne da discordância de Honneth com relação a essa premissa pode ser

interpretado da seguinte maneira: o autor reconhece que é preciso haver formas de identificar

as doenças sociais a partir de fenômenos patológicos individuais – mas não necessariamente

de patologias psíquicas tais como elas são categorizadas pela medicina ou pela psicologia.

Pode-se partir, por exemplo, de “modos de comportamento perturbadores, inquietantes”

(KdG: 51de). Assim, por um lado:

sem que se note quaisquer estranhezas ou desequilíbrios [Einseitigkeiten] irritantes

na vida social, não chegaríamos de modo algum à ideia de empreender a

investigação de fontes possíveis para transtornos funcionais sociais; se o fracasso

da socialização individual não se espelhasse de modo algum em anormalidades

comportamentais de seus membros, não haveria qualquer oportunidade de refletir

sobre possíveis ‘enfermidades’ da sociedade (KdG: 51de).

A questão reside, entretanto, em que tais anormalidades (Abnormitäten,

Auffälligkeiten ou Absonderlichkeiten) muitas vezes não se encontram no campo de visão no

qual se movem os sintomas de uma enfermidade psíquica observados pelo médico ou

terapeuta. Grande parte das estranhezas ou anormalidades que nos levam a suspeitar da

ocorrência de uma patologia social não acedem ao limiar de visibilidade próprio da medicina,

da psicologia ou da psicanálise, já que podem consistir em distúrbios de comportamento que

não causam sofrimento individual nem estão conectados a transtornos funcionais psíquicos ou

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312

emocionais (seelisch).263

É certo que tais suspeitas e observações iniciais têm que ser,

posteriormente, comprovadas em sua capacidade de fornecer uma chave interpretativa,

própria da teoria social, para só então tornar-se possível alcançar “um diagnóstico convincente

de transtornos funcionais na engrenagem social” (KdG: 51de).

Essa é uma maneira de interpretar o texto, mas ele é relativamente ambíguo.

Chama a atenção na argumentação de Honneth a ideia de que “os indivíduos não precisam

forçosamente padecer das patologias que podem ser investigadas hipoteticamente no seu

ambiente social” (KdG: 49de), pois não fica ainda exatamente claro se Honneth está apenas

negando uma transposição sem as devidas mediações das patologias psíquicas individuais

para o conjunto da sociedade (como a interpretação acima sugere), ou se seu objetivo é

questionar a própria ideia de que os atores sociais, enquanto membros de uma sociedade

afetada por uma dada patologia social, apresentam, em decorrência disso, algum tipo de

sofrimento patológico – mesmo que este seja difuso, sem contornos precisos e não seja,

assim, passível de ser diagnosticado segundo as concepções médicas e psicanalíticas de

doença. Nessa segunda alternativa, pode-se considerar que Honneth procura afastar-se da

ideia de que a existência de um grande número de casos de determinado transtorno psíquico

em uma sociedade constitui um forte indicador (mesmo se não o único) de alguma forma de

doença social. Dito de outra forma: o autor parece oscilar entre uma crítica bastante plausível

da redução das doenças sociais à soma das doenças psíquicas individuais médica ou

psicanaliticamente diagnosticadas, de um lado, e, de outro, uma recusa (que exigiria um maior

esforço de justificação) em tomar o sofrimento psíquico individual de modo geral como

sintoma constitutivo das patologias sociais.

O impasse parece ter origem numa confusão entre doença e sofrimento

(psíquicos) individuais: ao negar a presença necessária da primeira para o diagnóstico de

patologias sociais, Honneth acaba descartando, também, a ideia – que lhe foi tão cara

anteriormente – de que o sofrimento vivenciado pelos atores sociais é um componente

importante não apenas na identificação, mas também na própria definição das patologias

sociais. Isto acontece porque, no quadro funcionalista no qual o autor passa a se mover, não

há lugar para as experiências negativas que os membros da sociedade vivenciam como tais 263

Em casos muito complexos, a identificação de anormalidades pode ser considerada o “resultado de um dom

de observação muito refinado, idiossincrático” (KdG: 51-2de).

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(isto é, como negativas), mas apenas para o que pode ser considerado pelo bom observador

como um distúrbio de comportamento. Trata-se de um posicionamento prenhe de

consequências: enquanto o distúrbio comportamental é detectado unicamente pelo teórico,

que aqui assume o papel externo de observador, a apreensão do sofrimento exige uma

capacidade interativa e dialógica de escuta e interpretação das manifestações de dor e

padecimento dos atores sociais. Tais manifestações podem se dar de diversas maneiras, e não

somente mediante a articulação discursiva de demandas por parte de movimentos sociais

organizados – é preciso estar atento também a formas não verbais, não institucionalizadas e

pré-políticas de expressões de sofrimento e sentimentos de injustiça. Tais expressões de

sofrimento podem ser identificadas, por exemplo, em estudos historiográficos e sociológicos,

em pesquisas etnográficas, obras literárias ou cinematográficas, bem como outros tipos de

manifestações artísticas e mecanismos de apreensão de fenômenos sociais sutis e sentimentos

coletivos difusos – como o próprio autor tantas vezes empenhou-se em colocar em relevo.

O raciocínio desenvolvido por Honneth no texto mostra assim que sua concepção

de patologias sociais está, neste momento, muito mais próxima de uma teoria social

funcionalista do que se poderia imaginar lendo seus escritos de juventude. Afinal, de acordo

com a visão defendida atualmente pelo autor, as doenças sociais devem “sempre consistir no

fracasso ou no transtorno de uma função cuja realização é importante para a sobrevivência

da ordem social; e, de modo correspondente, poderíamos concluir […] que podem existir não

apenas uma, mas tantas doenças da sociedade, quantas nela estão dadas funções que

asseguram a sua existência [bestandssichernde Funktionen]” (KdG: 58de). O que importa,

então, é o bom funcionamento da sociedade, sua sobrevivência, manutenção e reprodução.

Honneth decerto ressalva que o que conta como exigências funcionais nunca está

definitivamente dado, já que é algo culturalmente determinado e depende sempre da

autocompreensão de uma sociedade, de modo que as doenças sociais aparecem quando a

sociedade “fracassa, em seu arranjo institucional, em uma das tarefas que ela se colocou a si

mesma no interior do círculo funcional de socialização, elaboração da natureza e regulação

das relações de reconhecimento de acordo com as convicções de valor nela dominantes”

(KdG: 58de). O autor também expõe a reserva de que não se deve abandonar por completo a

intuição de que as patologias sociais têm a ver “com um comprometimento experienciado de

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certo modo como restrição da liberdade”, como um “estreitamento da margem de liberdade”

(KdG: 58-9de).

Se Honneth tivesse levado estas colocações adiante e proposto a investigação de

como as exigências funcionais se transformam com o tempo e a partir de lutas sociais, de

como se dão os conflitos mediante os quais determinadas convicções de valor passam a ser

hegemônicas, e, acima de tudo, de como o fracasso do arranjo institucional em cumprir tais

ideais dominantes afeta negativamente os atores sociais em suas demandas de autorrealização,

talvez fosse possível escapar à tendência funcionalista do texto. No sentido contrário,

entretanto, Honneth volta a afirmar que “tais doenças sociais se dão em um nível

fundamentalmente superior ao dos indivíduos e, por isso, não devem obrigatoriamente

encontrar uma precipitação em transtornos funcionais dos indivíduos vivenciados com

sofrimento [leidvoll erlebt]” (KdG: 58de). O autor vai ainda mais longe: para diferenciar

doenças sociais propriamente ditas de meros desenvolvimentos anômalos e adaptações

institucionais anômalas (institutionelle Fehlanpassungen), Honneth afirma ser necessário

abrir mão de analisar transtornos na realização de metas de autopreservação específicas,

culturalmente delimitadas, e focar em vez disso no nível superior ligado à correlação

recíproca (Zusammenspiel) entre as esferas funcionais da reprodução social. Para o autor, o

entrelaçamento dos distintos domínios funcionais é afetado por distúrbios e transtornos que

vão desde a desarmonia até o prejuízo recíproco. Essa concepção parece adequada para falar

em doenças sociais, segundo a perspectiva de Honneth, porque ela indica, mediante a ideia de

atritos e tensões, que há um distúrbio na relação de um sujeito (no caso, a própria sociedade)

consigo mesmo. Assim, “a restrição à liberdade que pertence a nosso conceito de ‘doença’

consiste, no caso da sociedade, em que as soluções institucionais dos domínios funcionais

singulares se bloqueiam mutuamente e impedem um desdobramento frutífero” (KdG: 59de).

Para completar essa virada teórica de tendência funcionalista, Honneth conclui o

texto com um paralelo entre sociedade e organismo. O autor defende a tese forte de que o

vocabulário em torno das “doenças da sociedade” somente pode ser utilizado de forma

consistente e substancial “se representarmos a sociedade segundo o modelo de um organismo

vivo no qual as esferas ou subsistemas singulares, pensados como órgãos, podem atuar

reciprocamente em harmonia de tal forma que nos permita forjar uma ideia de seu

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desdobramento desimpedido ou ‘livre’” (KdG: 59de). Por um lado, Honneth parece conceber

esse organicismo de forma tão ampla e abstrata que pode ser atribuído não só a Parsons, mas

também a Hegel e até mesmo Marx.264

Por outro lado, seu texto é inequívoco em defender

uma interpretação funcionalista mais estrita da sociedade: o foco teórico é aqui

completamente deslocado dos processos conflituosos que levam a transformações sociais para

os aspectos funcionais necessários para a manutenção da ordem social. Isso fica evidente nas

escolhas terminológicas de Honneth: ele favorece, de um lado, termos como harmonia,

competência funcional intacta, equilíbrio, bom funcionamento, sobrevivência e reprodução

social; de outro lado, os termos usados para designar condições sociais patológicas incluem

atritos, tensões, desequilíbrios, estranhezas e anormalidades. Fica patente, assim, que a

normatividade subjacente a tal concepção de patologia ou doença social não visa a

transformações sociais voltadas para a emancipação: se as patologias ou doenças da

sociedade são compreendidas como processos mediante os quais “as soluções institucionais

dos domínios funcionais singulares se bloqueiam mutuamente e impedem um desdobramento

frutífero” (KdG: 59de), elas só podem conceber seu reverso como uma harmonia entre os

diversos subsistemas sociais de acordo com os valores e normas dominantes, aspirando à

“reprodução não transtornada das sociedades” (KdG: 59-60de). No horizonte da crítica

social não está mais a vida (boa), mas antes a sobrevivência.

É preciso destacar, ainda, o esforço do autor em retirar das experiências

individuais e coletivas de sofrimento o caráter de elemento constitutivo das doenças da

sociedade, relegando-as ao papel do sintoma que chama a atenção para a patologia, mas que

não faz parte de seu cerne de significado. Honneth privilegia, em seu lugar, “distúrbios

comportamentais” – os quais, de acordo com o autor, possuem a característica um tanto

curiosa de poderem ser vividos como restrições de liberdade sem necessariamente causar

sofrimento nos atores sociais. Nesse contexto, faz sentido sua terminologia passar de

264

Honneth afirma que essa ideia foi utilizada por Hegel na suposição, presente na Filosofia do direito, “de uma

atuação conjunta [Zusammenwirken], direcionada a um fim, de todas as esferas sociais”; por Marx “quando

ele pressupõe tacitamente, em sua análise de um conflito entre forças produtivas e relações de produção, um

ideal do jogo [Zusammenspiel] orgânico entre ambos”; e por Parsons “quando ele compreende a reprodução

não transtornada das sociedades como um processo no qual os diferentes subsistemas servem,

interconectadamente, à meta da realização de valores superiores” (KdG: 59-60de).

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patologias do social para doenças ou enfermidades da sociedade:265

ao passo que a ênfase

recaía, antes, sobre um processo de alguma forma sofrido pelos sujeitos (tendo em vista a

manutenção do sentido etimológico do termo “patologia”, do grego pathos, vinculado à ideia

sofrimento), agora ela recai sobre a ideia de um estado de fraqueza e desequilíbrio que impede

o funcionamento normal de um organismo, estado que é antes de tudo observável por um

especialista (o médico que diagnostica a doença). Mas há uma outra mudança de ênfase

quando se troca patologias sociais ou do social por doenças da sociedade: no primeiro caso, o

sujeito acometido pelas patologias é mais indeterminado (já que o termo “sociais” expressa

apenas uma qualificação, e não o sujeito, das patologias, e que mesmo “o social” como aquilo

a que se atribuem as patologias não delimita um sujeito de modo preciso), e no segundo “a

sociedade” aparece como um sujeito unificado – nos moldes de um organismo – que tem suas

próprias necessidades de sobrevivência e regras de bom funcionamento, em um nível

ontologicamente superior ao dos atores sociais e mesmo dos “órgãos” que formam o

organismo enquanto tal.266

Ora, se as doenças da sociedade são caracterizadas como a

“vivência [Erleben] de um estreitamento na margem de liberdade” (KdG: 58-9de), a questão

que se coloca, então, diz respeito a como se poderia conceber que a própria sociedade

vivencia essa restrição, se não mediante alguma forma de sofrimento experienciada por seus

membros.267

No início do texto, Honneth afirma que sua intenção é dar continuidade às

intenções presentes em seu texto de vinte anos antes sobre as patologias do social (PdS) –

com a diferença (fundamental, diga-se de passagem) de que, agora, o autor considera

inevitável tomar a sociedade como portadora de uma determinada organicidade (o que, no

texto de 1994, “ainda não estava claro”, KdG: 46de, nota 1). Procuramos mostrar que, ao

265

Etimologicamente, o termo “Krankheit” seria melhor traduzido para o português por “enfermidade”, visto

que ambos remetem à ideia de debilidade.

266 Parece apontar nessa direção também a preferência de Honneth em utilizar, em alemão, o termo

gesellschaftlich em detrimento de sozial (ambos significando “social”, mas o primeiro mais concreto e

vinculado à ideia de “sociedade”, podendo ser também traduzido por “societário”, e o segundo mais abstrato;

note-se como o termo aparece substantivado nas décadas de 1980 e 1990 – “o social” – como um conjunto de

relações de reconhecimento que forma a infraestrutural moral da socidade).

267 Trata-se aqui de defender não um individualismo metodológico, mas, nos termos de Freyenhagen, um

individualismo normativo: se algo não é, em algum nível, prejudicial para os indivíduos, não há motivos para

que seja considerado prejudicial em geral. Assim, “Applied to the issue of social pathology: society can only

be ill if, in some broad sense, individuals within it (or affected by it) are ill (in the broad sense that their

well-being and/or self-realisation is detrimentally affected)” (Freyenhagen, 2015: 30).

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afirmar que “Sem a reabilitação de uma tal representação do organismo, há muito tempo

declarada morta, dificilmente deixa-se fundamentar, assim o temo, a tese de que também

sociedades, como tais, podem ser acometidas por doenças” (KdG: 60de), Honneth é

inequívoco a respeito do caráter incontornável desse funcionalismo organicista e que as

implicações desse deslocamento são mais significativas do que o autor parece disposto a

reconhecer.

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IV

RECONSTRUÇÃO

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6. Um modelo reconstrutivo de teoria crítica

Em diversas ocasiões de seu trajeto intelectual, Honneth insiste na conexão

interna entre filosofia normativa e pesquisa social, conexão que ele considera estar em

atividade no projeto do materialismo interdisciplinar formulado por Horkheimer no Instituto

de Pesquisa Social. Sua proposta teórica não equivale, porém, a uma volta à perspectiva dos

anos 1930: ele considera que a virada comunicativa característica da obra de Habermas é um

caminho sem volta e, além disso, representa um avanço para a teoria crítica.268

A tentativa de

Honneth consiste justamente em levar adiante de modo consequente as intuições de Habermas

quanto à importância da dimensão comunicativa, mas sem assumir sua distinção entre sistema

e mundo da vida. Honneth procura elaborar uma teoria não dualista que leve em conta,

entretanto, o atual contexto pós-metafísico da disciplina filosófica, isto é: sem reabilitar a

categoria da “totalidade” em sentido forte. Para tanto, ele defende uma concepção de teoria

crítica apoiada sobre a ideia de reconstrução normativa. É preciso pôr em relevo, contudo, o

fato de que, apesar de Honneth referir-se seguidamente a Hegel na sua caracterização, a

formulação habermasiana do método reconstrutivo revela-se de importância central nessa

empreitada.

A análise das acepções do termo reconstrução ao longo da obra de Habermas é

tema para um projeto independente e de grande envergadura.269

Apesar dos diversos

deslocamentos de sentido a que a ideia de reconstrução foi submetida no trajeto teórico

habermasiano, talvez se possa dizer que a definição que o autor oferece na introdução a Para

a reconstrução do materialismo histórico, de 1976, contém os elementos mais centrais do

procedimento reconstrutivo, aqueles que se mantiveram a despeito de todas as mutações

conceituais. Diz Habermas:

Reconstrução significa, em nosso contexto, que uma teoria é desmontada e

recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se fixou:

esse é o modo normal (quero dizer: normal também para os marxistas) de se

comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas

268

Cf., por exemplo, o seguinte trecho: “A virada linguística não deve com isso ser revertida, mas sim

diferentemente formulada” (Honneth & Boltanski, 2008: 89).

269 Cf., entre outros: Celikates (2009), Kavoulakos (2005), Nobre (2008a), Nobre & Repa (2012a, 2012b),

Pedersen (2008), Repa (2008a, 2008b), Voirol (2012).

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cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar (Habermas, 1983 [1976]:

11).

Ora, a reconstrução foi aplicada por Habermas não apenas ao materialismo

histórico: na Teoria do agir comunicativo, por exemplo, o objeto da reconstrução é a história

das teorias da sociedade, o que inclui autores tão distantes do marxismo quanto Max Weber,

G. H. Mead, Émile Durkheim e Talcott Parsons. A reconstrução tampouco foi aplicada

exclusivamente a teorias: as ciências reconstrutivas, que Habermas propõe ao longo da

década de 1970, têm por objeto as “estruturas do agir e do entendimento inscritas no saber

intuitivo de membros competentes das sociedades modernas” (Habermas apud Nobre & Repa,

2012: 31). Tais estruturas profundas, que compõem as condições de possibilidade de uma

comunicação não distorcida, podem ser analisadas então dos pontos de vista sincrônico e

diacrônico – mediante, respectivamente, o desenvolvimento de uma pragmática formal e de

uma teoria da evolução social. Se o objeto da reconstrução pôde variar de tal maneira, o que

resta de elemento comum? A nosso ver, o modo reconstrutivo de proceder é um componente

básico constante em meio às demais transformações: trata-se de tomar o objeto da

reconstrução (seja um corpo teórico, sejam determinadas condições de possibilidade ou

estruturas do agir) e decompô-lo para, então, recompô-lo de modo novo, a fim de explorar o

seu potencial de estímulo ainda não esgotado. Apesar de bastante simplificada, nos parece que

essa leitura da ideia de reconstrução em Habermas coloca em relevo aqueles aspectos que

puderam exercer uma influência de longo alcance no pensamento de Honneth.

Nas palestras que deram origem ao livro Sofrimento de indeterminação, Honneth

se vale repetidamente das expressões “reconstrução” e “reconstrução normativa”. Ainda que

elas não sejam suficiente e sistematicamente desenvolvidas nesse momento, é possível extrair

do texto algumas conclusões importantes acerca dos sentidos que o conceito pôde assumir no

trajeto filosófico de Honneth. Com base no texto de Sofrimento de indeterminação e partir da

interpretação de Marcos Nobre (2013) acerca do paradigma reconstrutivo na teoria crítica,

então, propõe-se no que se segue uma distinção entre reconstrução teórico-conceitual e

reconstrução histórico-social (item 6.1.). Ao conjunto dessas duas versões do método

reconstrutivo chamaremos reconstrução normativa.

A segunda parte do capítulo (item 6.2.) é dedicada a uma análise de como o

próprio autor caracterizou a reconstrução normativa em alguns textos chaves, produzidos a

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321

partir da década de 2000. A forma mais sistemática de apresentação do método reconstrutivo

encontra-se na introdução a O direito da liberdade escrita em 2007, onde, com referência à

Filosofia do direito hegeliana, são enumeradas as quatro premissas básicas desse modo de

proceder em sua acepção honnethiana (6.2.3.). Já em 2000, entretanto, Honneth havia

vinculado o procedimento da teoria crítica de modo geral à ideia de uma crítica social

reconstrutiva (6.2.1.). Retomaremos também o posfácio a Luta por reconhecimento escrito

em 2002, no qual Honneth reage a comentários e críticas formulados por debatedores de sua

obra e, entre elas, discute a ideia de “crítica interna reconstrutiva forte” (6.2.2.). Feita uma

análise desses três momentos, o passo seguinte consiste no exame do vínculo concreto entre

filosofia normativa e pesquisa social sustentado por Honneth no prefácio de 2008 à edição

alemã de Principles of Social Justice, de David Miller (6.2.4.).

6.1. Os sentidos da reconstrução: teórico-conceitual ou histórico-social

O texto de Sofrimento de indeterminação nos oferece a oportunidade de analisar

um dos primeiros momentos em que o termo “reconstrução” é empregado por Honneth de

modo mais consistente e esclarecer os diferentes sentidos que ele pode assumir. É claro que a

menção da palavra ocorre em obras anteriores de Honneth, mas é aqui que a utilização do

termo ganha um grau de sistematicidade que torna possível falar em um procedimento

empregado de forma consciente, ainda que em estágio rudimentar.

É preciso, no entanto, distinguir dois usos do termo “reconstrução” no livro. As

primeiras ocorrências do termo se dão em um momento introdutório do texto no qual Honneth

procura definir quais são os elementos indispensáveis para uma leitura atual da Filosofia do

direito para, assim, poder decidir entre uma reatualização direta ou indireta da obra tardia de

Hegel. Em poucas palavras, trata-se de optar por se apropriar de uma versão mais fiel à letra

do texto de Hegel, e manter, portanto, os pressupostos metafísicos que ela implica, ou por

abandonar tais pressupostos (especialmente o conceito substancialista de Estado e as

instruções operativas da Lógica) e tornar o texto hegeliano mais plausível num contexto pós-

metafísico – mesmo que isso comprometa de alguma forma o rigor estritamente filológico da

análise.270

Apesar de optar pela segunda opção, Honneth enfatiza que os conceitos de espírito

270

Cf. Capítulo 4.

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322

objetivo e eticidade não podem ser deixados de fora para que a reatualização indireta que ele

privilegia possa ser considerada uma “reconstrução adequada e justa” da obra de Hegel

(LaU: 19en; 14de; 51pt). Logo adiante, Honneth reforça o recado: “quem renuncia à

reconstrução racional dos conceitos de ‘espírito objetivo’ e de ‘eticidade’ sacrifica seu teor

substancial em favor de uma plausibilidade superficial do texto” (LaU: 20en; 16de; 52pt).271

Em ambos os casos citados, trata-se da reconstrução da teoria hegeliana e de seus conceitos

fundamentais, isto é: trata-se de uma reconstrução eminentemente teórica. Em obras

anteriores, Honneth utiliza os termos “atualização”, “presentificação” e “reatualização” para

referir-se ao procedimento reconstrutivo no sentido específico da reconstrução de teorias:

note-se a presentificação histórica da filosofia de Hegel do período de Jena (na primeira parte

de Luta por reconhecimento), bem como a presentificação histórica das diferentes concepções

filosóficas de liberdade (negativa, reflexiva e social) em O direito da liberdade; a atualização

sistemática da filosofia hegeliana de Jena em termos das relações sociais de reconhecimento

(na segunda parte de Luta por reconhecimento); e a reatualização da filosofia do direito de

Hegel em Sofrimento de indeterminação (aparecendo, aliás, no subtítulo da obra).

Essa discussão diz respeito, contudo, apenas a um dos sentidos reconstrutivos que

podem ser encontrados em Sofrimento de indeterminação e na obra de Honneth de modo

geral. Em diversas outras ocasiões em que o termo é usado, não se trata de reconstruir um

determinado arcabouço teórico, mas antes propor uma interpretação da própria realidade

social a partir de diferentes aspectos que a compõem. A este tipo de reconstrução chamaremos

reconstrução social. Vejamos a primeira ocorrência do termo com esse emprego alternativo:

Nesse sentido, a Filosofia do direito de Hegel representa uma teoria normativa da

justiça social que precisa ser fundamentada na forma de uma reconstrução das

condições necessárias de autonomia individual, cujas esferas sociais uma sociedade

moderna tem que abranger ou dispor para com isso garantir a todos os seus

membros a chance de realização de sua autodeterminação (LaU: 31en; 34de; 67pt,

grifos MT).

Nas páginas seguintes, a expressão volta a aparecer com significados bastante

semelhantes: trata-se de inspirar-se na obra hegeliana para uma tentativa de “reconstrução

gradual das condições comunicativas da autorrealização” (LaU: 31en; 35de; 68pt) e, mais a

diante, de “reconstrução das condições necessárias da autorrealização individual” (LaU:

271

Uma terceira ocorrência do termo “reconstrução” com esse sentido aparece quando Honneth trata do capítulo

sobre a moralidade da Filosofia do direito e afirma que irá se limitar, em sua “breve reconstrução”, a apenas

duas das quatro metas colocadas originalmente por Hegel (LaU: 52en; 61de; 91pt).

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323

32en; 37de; 70pt). Parece repetir-se em Honneth, portanto, aquela diferenciação presente na

obra de Habermas entre reconstrução teórico-conceitual (do materialismo histórico e da

história das teorias da sociedade, para Habermas, e da filosofia hegeliana, para Honneth) e o

que chamamos de reconstrução histórico-social (respectivamente, das condições de

possibilidade da comunicação não distorcida e das condições de possibilidade da

autorrealização individual).272

Em nenhum um outro trabalho nos parece haver uma sistematização mais

minuciosa e abrangente da reconstrução teórica na obra de Honneth do que na interpretação

oferecida por Marcos Nobre. Por esse motivo, seguiremos bastante de perto a sistematização

feita pelo autor no texto “Reconstrução em dois níveis” (Nobre, 2013b) – sem deixar de

destacar ao longo da exposição os pontos em que tal interpretação difere daquela que

procuramos desenvolver nesta tese.

Nobre procura mostrar em seu texto que Honneth não se vincula somente ao

campo da teoria crítica, mas também ao paradigma reconstrutivo da teoria crítica que foi

inaugurado por Habermas.273

Para o autor, podem ser identificados na obra habermasiana dois

momentos distintos no que tange à concepção de reconstrução: na década de 1970, é

destacada a proposta habermasiana das ciências reconstrutivas, as quais deveriam poder dar

conta, mediante reconstruções de tipo vertical (diacrônica) e horizontal (sincrônica), dos

elementos que compõem as estruturas profundas capazes de gerar os sistemas de regras e

competências fundamentais para a comunicação. No entanto, visto que as ciências

reconstrutivas assim concebidas não tiveram desenvolvimentos significativos, Habermas

propõe, já na década de 1980 (e especialmente na Teoria da ação comunicativa), um outro

tipo de reconstrução: nas palavras de Luiz Repa, trata-se de uma “reconstrução sistemática da

272

Existe ainda um terceiro sentido, mais frouxo, do termo: em diversas situações Honneth declara que vai

reconstruir os argumentos de um determinado autor, querendo, com isso, dizer que pretende simplesmente

retomar o passo-a-passo argumentativo, e não sistemática e normativamente reconfigurar um corpo teórico

com potenciais de desenvolvimento não exauridos.

273 Nobre considera que a ideia de paradigma crítico está vinculada ao mesmo tempo a um modelo crítico e a um

diagnóstico de tempo: “Pode-se falar em um ‘paradigma crítico’ quando um modelo crítico estabiliza

formulações determinadas para os problemas teórico-críticos fundamentais, formulações que passam a ser,

a partir daí, pressupostas por modelos críticos posteriores. Essas formulações, por sua vez, estão

internamente vinculadas, como em qualquer modelo crítico, a diagnósticos de tempo determinados. O que

significa dizer, portanto, que também os diagnósticos de tempo de modelos críticos vinculados a um

paradigma têm estruturas comuns determinadas, formulações pressupostas que cabe explicitar a cada vez”

(Nobre, 2013b: 13).

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história da teoria da sociedade tendo por finalidade uma teoria da racionalização social”

(Repa [2008a: 139] apud Nobre, 2013b: 18). De início, Nobre enuncia a tese de que foi o

segundo tipo de reconstrução – a reconstrução indireta, da história da teoria – que se

estabilizou como o paradigma crítico ao qual se filiaria não apenas Honneth, como também

boa parte dos representantes da mais nova geração da teoria crítica (Nobre, 2013b: 20). Na

terminologia adotada neste capítulo, isso significa dizer que, para Nobre, a versão teórica de

reconstrução presente na obra de Habermas teria prevalecido sobre a reconstrução social nos

desdobramentos posteriores da teoria crítica. Assim formulada, tal caracterização parece

descolar-se da hipótese deste trabalho: procuraremos sustentar que, no modelo crítico de

Honneth, está presente a tentativa de uma reconstrução social, e não apenas teórica, na medida

em que permanece em seu horizonte de intenções uma reconstrução de “estruturas geradoras

de normas” – entendidas não mais no sentido comunicativo habermasiano, por certo, mas

como vinculadas aos pressupostos que compõem a infraestrutura moral das relações de

reconhecimento necessárias para a autorrealização individual. Honneth não pretende fazê-lo

mediante uma tentativa de reabilitar a proposta habermasiana de um novo campo disciplinar,

as ciências reconstrutivas, mas antes com apoio na apropriação do resultado de investigações

de cunho teórico-social ou empírico já existentes. A discordância se mostrará, no entanto,

mais terminológica e sistemática do que propriamente interpretativa.

Com a introdução da ideia de atualização em seu modelo crítico, diz Nobre,

Honneth explicita que uma reconstrução crítica é sempre também e ao mesmo tempo uma

reconstrução em dois níveis: 1) é preciso reconstruir os próprios modelos e paradigmas

críticos de que se parte, o que Nobre chama de “reconstrução inaugural modelar”; 2) e a

partir dos resultados do primeiro nível, são reconstruídos teorias e conhecimentos disponíveis

em geral, e essa é a reconstrução a que Honneth chama “atualização”. Nos dois casos, vale

lembrar, é preciso ter um diagnóstico de tempo orientado para a emancipação. A importância

da distinção entre os dois níveis de reconstrução reside em que ela é precisamente o que

caracteriza, para Nobre, esse procedimento como crítico. Cabe ainda ressaltar que a

reconstrução modelar de primeiro nível tem precedência lógica sobre as reconstruções de

segundo nível:

a reconstrução inaugural modelar que diz respeito à teoria crítica (no caso de

Habermas, a do projeto da teoria crítica da década de 1930, tal como conceituada

nos escritos de Max Horkheimer) tem precedência (lógica, ao menos) sobre todos os

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demais sentidos e sobre todas as reconstruções posteriores de todas as demais

teorias, que se orientam por essa reconstrução inaugural modelar (Nobre, 2013b:

23).

No caso de Habermas, então, a reconstrução (teórica) de primeiro nível tem por

objeto o modelo crítico de Horkheimer desenvolvido na década de 1930 a partir do que Nobre

chama “webero-lukácsianismo”. A reconstrução (teórica) de segundo nível, por sua vez,

estaria encoberta na obra habermasiana.

Já no caso de Honneth, o primeiro nível diria respeito à reconstrução de um

“webero-habermasianismo” (em Crítica do poder) e o segundo à reconstrução, entendida

como atualização, da filosofia hegeliana (em Luta por reconhecimento, Sofrimento de

indeterminação e O direito da liberdade). A crítica de Honneth a Habermas em Crítica do

poder já foi exposta aqui e é bastante conhecida: ao subestimar o fundamento social da teoria

crítica – o conflito social –, Habermas teria hipostasiado dois pólos distintos (imperativos de

integração sistêmica e de socialização dos indivíduos) sem a ação social como mediadora

entre eles. Honneth defende que se parta, ao contrário, dos próprios conflitos sociais para

então buscar as suas lógicas, o que o aproxima das aplicações empíricas das ciências

humanas. Trata-se, em resumo, da crítica ao que Honneth chamou de déficit sociológico. Essa

reconstrução inaugural da obra de Habermas é o ponto de partida para as demais

reconstruções de segundo nível, chamadas por Honneth de modo geral de “atualização”, a

mais desatacada das quais é a de diferentes aspectos da obra de Hegel. A atualização em

sentido geral se divide subsequentemente em presentificação, atualização (em sentido

restrito) e reatualização.

Nobre indica que, no modo de apresentação de Luta por reconhecimento, há

primeiro uma reconstrução dos escritos hegelianos de Jena que Honneth chama de

“presentificação histórica” (historische Vergegenwärtigung) e, depois, uma “atualização”

mediada por teóricos posteriores a Hegel (a tradução, por exemplo, das premissas metafísicas

hegelianas em termos materialistas, com a ajuda de Mead e dos resultados de pesquisas

empíricas).274

Por fim, temos a “reatualização”, que aparece em Sofrimento de

indeterminação quando Honneth procura apropriar-se da Filosofia do direito hegeliana sem

comprometer-se com os pressupostos metafísicos que decorrem da adoção das prescrições

operacionais da Lógica e de uma concepção substancialista e superinstitucionalista de Estado. 274

Ao final do livro, Honneth atualiza também o conceito hegeliano de eticidade.

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Na presentificação histórica, diz Nobre, falta algo à teoria que é objeto da

reconstrução: no desenvolvimento de sua trajetória filosófica, Hegel acabaria perdendo,

segundo Honneth, a intuição intersubjetiva original acerca da centralidade da luta por

reconhecimento e cederia consequentemente às tentações sistemáticas da filosofia da

consciência. Além de superar essa falta, Honneth tem como objetivo inserir a teoria hegeliana

no contexto da filosofia social moderna e contemporânea, contrapondo-a a formulações

alternativas acerca do caráter dos conflitos sociais (Nobre, 2013b: 34).

Por sua vez, a atualização (em sentido restrito) ou “reconstrução atualizadora”,

que corresponde à segunda parte de Luta por reconhecimento, destaca o papel de mediadores

teóricos que permitem superar a falta identificada pela presentificação. O destaque do livro de

1992 é dado, como se sabe, a G. H. Mead, o qual é, no entanto, abandonado a partir do fim da

década de 1990, quando não mais é considerado frutífero para o modelo crítico de Honneth.275

Já a reatualização aplica-se a teorias que contêm “elementos que se tornaram

mudos para o presente”, algo de excessivo (em contraste com a presentificação, que

caracteriza uma falta). Trata-se, em Sofrimento de indeterminação, da abdicação dos

conceitos hegelianos considerados de tal forma metafísicos que não podem ser reabilitados na

atualidade (Nobre, 2013b: 35). Em resumo, diz o autor:

a “presentificação” destacava o aspecto identificado como lacunar (a partir da

reconstrução de primeiro nível) na teoria a ser reconstruída (em segundo nível); a

“atualização” encontrava os meios (os mediadores teóricos) para preencher essa

lacuna; e, por fim, a “reatualização” identificava (sempre a partir da reconstrução

de primeiro nível) aqueles elementos da teoria a ser reconstruída (em segundo

nível, igualmente) que não eram passíveis de atualização, necessitando, portanto, de

um esforço reconstrutivo especial (Nobre, 2013b: 35-6).

No que tange à obra recente de Honneth, a tese de Nobre é a de que as três formas

de reconstrução se mantêm em O direito da liberdade, mesmo se não são, em sua maior parte,

nomeadas explicitamente. Por um lado, o termo “presentificação” aparece no título do

primeiro capítulo, mas a presentificação histórica do livro de 2011 não é a mesma do de

1992.276

Já os termos “atualização” e “reatualização” estão completamente ausentes da letra

275

Cf. Crissiuma (2013) e, nesta tese, o item 3.3.

276 Em Luta por reconhecimento, diz Nobre, Honneth reconstrói a teoria hegeliana de Jena que foi abandonada

pelo autor e permaneceu em estado fragmentário, procurando aprofundá-la e torná-la sólida, consistente, de

modo que pudesse contribuir do forma decisiva para compreender a gramática moral dos conflitos sociais do

presente. Toda a primeira parte do livro de 1992 é dedicada a essa empreitada, ao passo que, em O direito da

liberdade, Honneth considera que essa tarefa já foi suficientemente cumprida na introdução, mediante a

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do texto – o que não impede que Nobre rastreie os seus aspectos reconstrutivos presentes na

substância da obra. Assim, a reatualização presente em O direito da liberdade é semelhante à

de Sofrimento de indeterminação, isto é: em ambos os casos, a Filosofia do direito de Hegel

serve de objeto de uma reconstrução de segundo nível apenas se condicionada ao abandono

das premissas metafísicas que marcam o sistema hegeliano.277

A atualização, por sua vez,

parece se fazer com a ajuda de Durkheim e Parsons como mediadores teóricos, uma vez que a

psicologia social de Mead já havia sido deixada de lado pelo menos desde Sofrimento de

indeterminação (Nobre, 2013b: 35).

É preciso destacar também, no entanto, que o conceito de reconstrução normativa

apresentado na introdução a O direito da liberdade e que Honneth procura levar a cabo mais

adiante no livro (bem como em outros escritos) amiúde assume o sentido daquilo que

chamamos de reconstrução histórico-social. É desse modo que compreendemos a colocação

de Nobre quando, ao contrapor a reconstrução presente em O direito da liberdade à

desenvolvida por Habermas, afirma que:

o objeto da reconstrução para Honneth não é, como em Habermas, aquele conjunto

de estruturas normativas profundas, geradoras de normas; Das Recht der Freiheit

pretende reconstruir as “condições históricas e sociais” que impõem a cada vez os

limites do que pode entrar em linha de conta como “norma” (Nobre, 2013b: 41).278

apresentação das quatro premissas do método reconstrutivo que ele propõe em substituição às premissas

idealistas de Hegel (voltaremos a essa questão adiante). Assim, “a ‘presentificação histórica’ que também dá

título a toda a primeira parte se aplica agora à discussão moderna e contemporânea sobre a liberdade e seu

vínculo com uma teoria da justiça, culminando com a apresentação da noção de ‘liberdade social’” (Nobre,

2013b: 45). Nobre ressalva, contudo, que ambas as presentificações têm um aspecto em comum: ambas têm

caráter polêmico, na medida em que confrontam as concepções (seja de concepção intersubjetivista de

conflito social, seja de liberdade social) inspiradas na obra hegeliana com alternativas filosóficas

consideradas insuficientes ou incompletas (a redução do conflito social à luta por autoconservação e a

restrição da liberdade individual às modalidades negativo-jurídica e reflexivo-moral; Nobre, 2013b: 45).

277 Para Nobre, no entanto, Honneth se esquiva em O direito da liberdade de fazer o esforço de liberar de suas

premissas idealistas o procedimento metódico hegeliano utilizado. Isso causa dificuldades que aparecem ao

longo do texto, sendo que a mais evidente é a a demarcação de antemão, nos limites do conceito, do existente

a ser reconstruído. Nas palavras de Nobre: “Mesmo com uma interpretação não conservadora da

correspondência de conceito e efetividade (ou seja, sem fazer de Hegel um mero apologeta de instituições e

de formas de vida existentes), o conceito continua a colocar os limites de uma formação histórica racional”

(Nobre, 2013b: 32).

278 Cf. também Nobre, 2013b: 41, 43 e 47. O autor destaca que, enquanto Habermas caminha cada vez mais em

direção à abstração, representada em sua obra recente pela ideia de procedimento, Honneth faz o contrário

em O direito da liberdade, procurando dar mais concretude ao paradigma reconstrutivo.

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O objeto da reconstrução normativa aqui não se limita, portanto, ao corpo teórico

da Filosofia do direito ou qualquer arcabouço conceitual específico seja de um autor, seja de

um conjunto de autores, filiados ou não à teoria crítica. O objeto da reconstrução, aqui, são

condições históricas e sociais – ou, nas palavras de Honneth, de esferas de ação – que

permitem a realização da liberdade.279

O aspecto histórico-social da reconstrução é tematizado

por Nobre ao final do texto, quando destaca a vinculação da reconstrução normativa com a

formulação de um diagnóstico de tempo:

Porque se trata justamente de reconstruir, no fundo, “experiências de liberdade

social” [...] que só se mostram diante do olhar treinado por um diagnóstico do

tempo em que a realidade possível da emancipação é ressaltada e tornada plausível

mediante analises concretas das instituições sociais existentes (Nobre, 2013b: 47).

Tais “análises concretas das instituições sociais existentes” são levadas a cabo

por Honneth, em O direito da liberdade, com a ajuda de uma série de estudos realizados no

âmbito da teoria social.

A reconstrução de tipo histórico-social não está presente apenas, por certo, em O

direito da liberdade. Ela marca todo o trajeto intelectual de Honneth. Antes de passarmos a

essa discussão, porém, é preciso que fique bastante claro que a distinção entre reconstrução de

tipo teórico-conceitual e histórico-social proposta aqui não deve ser compreendida de forma

estanque. Isso porque não se pode negar, por um lado, que há elementos de reconstrução

social e de diagnóstico de época na presentificação e na reatualização que Honneth faz de

Hegel, por exemplo – do contrário não se teria parâmetros para selecionar quais aspectos da

teoria hegeliana devem ser objeto de um procedimento reconstrutivo. O mesmo acontece na

reconstrução honnethiana da teoria crítica. Tampouco há como recusar, por outro lado, a

presença de elementos reconstrutivos teórico-conceituais na reconstrução honnethiana das

condições de possibilidade do reconhecimento recíproco, na sua forma atual bem como no seu

vir-a-ser histórico: é a partir das faltas e excessos identificados na reconstrução de primeiro

nível que Honneth faz tanto da teoria crítica quanto da filosofia hegeliana que ele pode

proceder à reconstrução social das normas de reconhecimento com a ajuda atualizadora de

mediadores tais como a psicologia social e as teorias das relações de objetos de G. H. Mead e

279

Cf. o seguinte trecho, citado pelo autor: “Para ser possível perfazer, portanto, a ‘efetividade’ da liberdade

nas relações sociais de nosso tempo, é necessária agora uma reconstrução das esferas de ação nas quais os

comprometimentos de papéis mutuamente complementares cuidam para que os indivíduos possam

reconhecer nas livres atividades de seus parceiros de cooperação a condição para a efetivação de seus

próprios fins” (Honneth [RdF] apud Nobre, 2013b: 47).

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de Donald Winnicott e Jessica Benjamin (para reconstruir o padrão de reconhecimento das

relações afetivas), assim como as teorias de T. H. Marshall e de Rudolph von Ihering (para

reconstruir o surgimento do padrão jurídico de reconhecimento), ou ainda os resultados das

investigações dos estudos culturais (para reconstruir a infraestrutura moral dos conflitos

sociais), e assim por diante. O cerne da diferença entre a reconstrução dos autores da teoria

crítica e a reconstrução dos saberes disponíveis em geral reside em que, na primeira, o corpo

teórico que é objeto da reconstrução é decomposto e recomposto tendo em vista dos objetivos

que ele próprio de se colocou, ao passo que, na segunda, os saberes disponíveis são

decompostos e recompostos em vista dos objetivos de reconstrução histórico-social do teórico

crítico que faz a reconstrução, e não dos objetivos da teoria reconstruída.

A partir, então, da chave de leitura proposta, podemos caracterizar o paradigma

reconstrutivo da seguinte maneira: iniciado por Habermas e desenvolvido por Honneth e

diversos outros representantes contemporâneos da teoria crítica, o procedimento reconstrutivo

é composto por duas dimensões. Na primeira, que chamamos de teórico-conceitual (e que

corresponde ao nível que Nobre chamou de “reconstrução inaugural modelar”), são

reconstruídos os quadros teóricos dos quais o autor em questão se considera um continuador –

dito de outro modo, trata-se de uma reconstrução da própria teoria crítica, entendida aqui em

sentido amplo (já que inclui Hegel, por exemplo280

). Para Habermas, o objeto da reconstrução

de primeiro nível, teórico-conceitual, é o materialismo histórico, bem como sua versão

horkheimeriana ou webero-lukácsiana. Para Honneth, o objeto da reconstrução teórico-

conceitual são modelos precedentes de teoria crítica (especialmente Habermas, mas também

Horkheimer e Adorno, em Crítica do poder e diversos artigos,281

além de Lukács em

Reificação) e a filosofia hegeliana (em Luta por reconhecimento, Sofrimento de

indeterminação e O direito da liberdade). Para que a reconstrução teórico-conceitual seja bem

sucedida, é imprescindível que as teorias reconstruídas sejam “corrigidas” mediante a

identificação de seus déficits e excedentes que comprometem a plausibilidade de sua

aplicação no presente. Neste sentido, consideramos que tanto a presentificação quanto a

280

Para Nobre, “Em um primeiro nível, trata-se de reconstruir os próprios modelos e paradigmas críticos de

que se parte e que, em última instância, têm sua origem na obra de Marx” (Nobre, 2013b: 21).

Consideramos que Hegel pode ser considerado um precursor da teoria crítica na medida em que sua obra

permitiu o surgimento da esquerda hegeliana da qual Marx certamente é o maior representante.

281 Trata-se, como visto no Capítulo 1, do excesso representado pela centralidade conferida à tese da

tecnocracia, e da falta representada pela subestimação do papel dos conflitos sociais moralmente motivados.

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reatualização fazem parte do primeiro nível da reconstrução, isto é, da reconstrução teórico-

conceitual.

Na segunda dimensão do método reconstrutivo, à qual chamamos histórico-social,

são reconstruídos os elementos da realidade social (práticas, estruturas de expectativas,

esferas de ação, instituições) que podem ser compreendidos como condições de possibilidade

para a emancipação, seja ela concebida como a efetivação de uma interação comunicativa não

distorcida pelos meios do dinheiro e do poder (Habermas) ou como a autorrealização

individual dos atores sociais mediante relações bem-sucedidas de reconhecimento recíproco

(Honneth). A reconstrução histórico-social vincula-se constitutivamente a um diagnóstico de

época que é elaborado com a ajuda dos saberes disponíveis em geral, os quais são

rearranjados e recompostos em vista dos objetivos mais gerais da reconstrução. Os saberes

disponíveis incluem “teorias dos mais variados tipos e procedências: teorias tradicionais,

filosofias da modernidade, contribuições de diferentes áreas do conhecimento e assim por

diante” (Nobre, 2013b: 21). Por isso, consideramos que a reconstrução histórico-social abarca

aquilo que Nobre identificou na obra de Honneth como atualização, (em sentido restrito, isto

é: com o auxílio de teorias sociais mediadoras). Para Habermas, esse papel seria cumprido

inicialmente pelas ciências reconstrutivas (pragmática formal e teoria da evolução social) e,

após o insucesso destas, pela reconstrução da história das teorias da sociedade. Para Honneth,

como visto, a reconstrução histórico-social se dá com o suporte de investigações nos campos

da psicanálise e da psicologia social, dos estudos culturais, do funcionalismo normativo de

Durkheim, Polanyi e Parsons, do pragmatismo americano, etc. Grosso modo, pode-se dizer

que a reconstrução teórico-conceitual é levada a cabo com vistas a um modelo crítico próprio,

e que a reconstrução histórico-social se faz com vistas a um diagnóstico de época específico.

Neste ponto cabe a pergunta: como se pode caracterizar a relação entre os dois

níveis da reconstrução? É certo que há uma interdependência entre eles. Mas seria possível

afirmar a precedência de um sobre o outro? A primeira dimensão (a reconstrução teórico-

conceitual) precede logicamente a segunda (reconstrução histórico-social)? Quando se presta

atenção ao modo de apresentação, este parece sem dúvida ser o caso, ao menos no modelo

crítico de Honneth: as investigações teórico-sociais mediadoras são mobilizadas, aqui, na

medida em que se considera que elas são capazes de oferecer pistas ou saídas para algumas

das aporias às quais a teoria crítica de primeira e segunda geração acabou sendo levada. Por

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outro lado, contudo, é possível dizer inversamente que os déficits ou aporias de que sofre a

teoria crítica apenas puderam ser identificados por Honneth, de início, a partir das leituras

empiricamente informadas do tempo presente que contribuem para a formulação de um

diagnóstico de época. Em certo sentido, portanto, as reconstruções de segundo nível podem

fornecer o impulso para as de primeiro nível.

O entrelaçamento dos níveis teórico-conceitual e histórico-social aparece de modo

especialmente claro, por exemplo, em Sofrimento de indeterminação, onde Honneth

reconstrói (teoricamente) o pensamento de Hegel com vistas a extrair dele a ideia de

reconstrução (histórico-social). Diz Honneth:

o procedimento de que Hegel lança mão na terceira parte de sua Filosofia do direito

para identificá-la com as esferas da eticidade não pode ser concebido segundo o

padrão de uma construção, da formação de uma teoria ideal; antes, seu

procedimento é adequadamente compreendido se for interpretado como a tentativa

de fazer uma “teoria da sociedade” em que os dados sociais da modernidade

liberam justamente aquelas esferas de ação que parecem corresponder aos critérios

anteriores indiretamente esboçados (LaU: 115-6pt).

É nesse momento de Sofrimento de indeterminação, aliás, que o autor introduz o

termo “reconstrução normativa”:

Para poder sublinhar a diferença com o construtivismo de tradição kantiana, talvez

o procedimento hegeliano tenha de ser interpretado primeiramente com a ajuda do

conceito de “reconstrução normativa”: as relações modernas da vida foram

reconstruídas de um modo normativo com o fio condutor dos critérios até aqui

desenvolvidos, de modo que nestes se revelam aqueles padrões de interação que

podem valer como condições imprescindíveis de realização da liberdade individual

de todos os membros da sociedade (LaU: 115-6pt).282

Daqui em diante, então, utilizaremos a expressão reconstrução normativa para

abarcar o entrelaçamento entre os níveis reconstrutivos histórico-social e teórico-conceitual,

tendo em vista que ambas, além disso, estão igualmente submetidas ao requisito de orientação

para a emancipação.

282

O termo é retomado em um trecho que só aparece na versão em inglês das Spinoza Lectures: “In accord with

the idea developed in the division on ‘morality’ that the social contexts of our moral deliberation already

embody the outlook of practical reason, the method employed by Hegel consists in a kind of normative

reconstruction: given conditions of social life are to be scrutinized for well-stablished, habitual practices,

which possess an inner normativity in the sense that they can be reproduced only when certain duties and

rights are customarily accepted; and perhaps here it would be better and more fitting to speak of practices

and institutions that owe their entire facticity solely to their following certain moral rules” (LaU: 59en,

ênfases MT).

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332

6.2. Formulações da reconstrução normativa

Até o momento, a discussão do paradigma reconstrutivo esteve centrada na

caracterização geral das formas que pode assumir o objeto da reconstrução. Se lembrarmos

que a reconstrução foi concebida como o procedimento por meio do qual o objeto da

reconstrução é decomposto e então recomposto de modo novo, a partir de determinados

elementos resultantes da decomposição, para que se torne possível explorar o seu potencial de

estímulo ainda não esgotado, a questão que se coloca em seguida é necessariamente a

seguinte: que critérios podem ser empregados para fundamentar a seleção de certos elementos

a serem novamente combinados no processo reconstrutivo, e não de outros? No que se segue,

o ponto focal desloca-se para uma análise mais pormenorizada de como Honneth caracteriza,

em diferentes momentos de sua obra, o procedimento da reconstrução normativa, procurando

dar conta do problema da fundamentação da crítica reconstrutiva.

6.2.1. Crítica reconstrutiva e ressalva genealógica: processos de aprendizagem e

deslocamentos de sentido

O primeiro texto que Honneth dedica inteiramente à análise da reconstrução como

aspecto distintivo da teoria crítica é “Crítica social reconstrutiva sob ressalva genealógica”,283

publicado em 2000, no qual o autor indica aspectos do método genealógico que podem ser

frutiferamente combinados com a concepção de normatividade da teoria crítica. O ponto de

partida de Honneth é a recusa do que é chamado de “crítica forte”, cujo ponto de referência

normativo é externo e, portanto, não está ancorado nas práticas e instituições sociais

existentes. Um importante inconveniente desse modelo forte de crítica reside na dificuldade

de sua justificação em um contexto pós-metafísico: com o descrédito paulatino e sistemático

das teorias marcadas por pressupostos metafísicos ou grandes narrativas e com a virada

hermenêutica na filosofia da linguagem, apenas uma crítica fraca, contextualista ou interna

aparece como justificada (RGV: 48de; 44en). A crítica forte não pode ser mantida sem o

perigo de tornar a teoria epistemologicamente autoritária.

Honneth pretende mostrar, no entanto, que a intenção normativa da teoria crítica

não se enquadra nem no modelo forte, nem no modelo fraco de crítica: ela busca transcender

283

Título original: “Rekonstruktive Gesellschaftskritik unter genealogischem Vorbehalt: Zur Idee de ‘Kritik’ in

der Frankfurter Schule” (abreviado daqui em diante como RGV).

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o contexto a partir do próprio contexto.284

Trata-se de um procedimento que Michael Walzer

chamou de “interpretação” 285

e que Honneth denomina “reconstrução”, e que é definido no

texto como “a tentativa de alcançar as bases normativas da crítica social mediante a

reconstrução das normas morais que estão ancoradas nas práticas sociais de uma dada

sociedade” (RGV: 61de; 47en). Desse modo, em oposição aos métodos construtivos – que na

tipologia de Walzer correspondem à “invenção” (Erfindung) e implicam basear a legitimidade

dos princípios e normas morais alcamçado mediante um procedimento considerado justificado

(lembre-se do debate iniciado por Uma teoria da justiça, de John Rawls) –, o método

reconstrutivo toma como recursos legítimos para fundamentar a crítica social somente os

princípios ou normas que já foram de alguma forma cristalizados em determinado contexto

social. Trata-se, como se pode perceber, de uma crítica imanente. É decisivo para Honneth,

contudo, demonstrar que, apesar de serem reconstruídos a partir da própria realidade, esses

princípios têm uma dimensão de transcendência que permite que a ordem social existente seja

submetida a uma crítica justificada (RGV: 61de; 47en).

Enquanto Walzer identifica esse tipo de crítica primariamente com a corrente

hermenêutica, Honneth destaca a crítica marxista da ideologia – inspirada, por sua vez, na

crítica de Hegel a Kant – como um de seus precursores históricos centrais (RGV: 62de; 47en).

O que diferencia a interpretação hermenêutica, de um lado, e a teoria crítica, de outro, é o

caminho encontrado por cada vertente para justificar a validade normativa dos princípios

extraídos da realidade: a primeira se apoia na confiança de sempre poder encontrar, em

qualquer cultura humana, um mínimo moral de normas de reciprocidade (RGV: 65de; 49en);

a segunda, por inspirar-se em Hegel, recorre a um conceito de razão que se desenvolve

historicamente mediante processos de aprendizagem. Dito de outro modo: no curso histórico

da reprodução social, as “realizações racionais” (Vernunftleistungen) dos sujeitos são

incorporados na práxis social, estruturando paulatinamente um conjunto de ações sociais cada

vez mais complexo, de modo que a história humana como um todo aparece então como “um

processo de efetivação da razão”:

284

Honneth afirma que seu propósito é apreender a ideia geral de crítica nessa tradição, sem se comprometer

com as premissas de teoria social ou com os resultados concretos das pesquisas da Escola de Frankfurt. Desse

modo, o autor estende a reconstrução normativa para toda a teoria crítica.

285 Honneth baseia-se aqui em uma versão modificada da distinção formulada por Walzer (1993) a partir do tipo

de justificação a que cada tipo de crítica social recorre (cf. RGV: 61de; 47en).

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Pois a reconstrução normativa deve significar agora desvelar na realidade social

de uma dada sociedade aqueles ideais normativos que oferecem um ponto de

referência para uma crítica justificada na medida em que eles representam a

corporificação da razão social (RGV: 66de; 50en).

De acordo com Honneth, porém, a primeira geração da teoria crítica não

conseguiu levar esse programa adiante porque seu conceito de racionalização social era muito

estreito, já que limitado à dimensão do trabalho e da ação instrumental, deixando de fora não

apenas a dimensão comunicativa, como apontou Habermas, mas também o âmbito de

validade moral da ação social. Assim, se o que distingue uma teoria crítica de outras

abordagens teóricas é um hegelianismo de esquerda marcado pelo vínculo profundo entre um

procedimento imanente de extração de normas morais e um conceito de racionalidade que

transcende o contexto, é preciso, contudo, aprimorá-lo para que não se fique preso a uma

interpretação unilateral do processo de reprodução social – e, consequentemente, de suas

patologias (RGV: 66de; 51en).

Honneth reconhece haver na crítica reconstrutiva, portanto, uma inescapável

dimensão teleológica. Ela não corresponde perfeitamente, contudo, a uma filosofia da história

apoiada na confiança da realização progressiva e linear da razão. Ao contrário: é preciso

manter sempre ativa uma desconfiança metodológica com relação aos acontecimentos

históricos e os princípios morais institucionalizados que lhes servem de referência. É no

procedimento genealógico de extração nietzscheana (e também foucaultiana) que Honneth

encontra a inspiração para caracterizar esse procedimento: sem se propor a fornecer uma

justificação para a crítica, o procedimento genealógico tem, no entanto, a vantagem de

permitir uma problematização dos ideais incorporados nas instituições sociais – e de impedir,

portanto, que os valores e normas morais vigentes sejam tomados pelo teórico imediatamente

como válidos. Para que a proposta faça sentido, é preciso ter em mente o que Honneth

entende por genealogia: trata-se da “tentativa de criticar uma ordem social ao demonstrar

historicamente a medida em que suas ideias e normas definidoras servem para legitimar uma

prática disciplinar ou repressiva” (RGV: 62-3de; 48en). A genealogia analisa ao mesmo

tempo que pressupõe o caráter opressor das normas estabelecidas, as quais não raro conduzem

à realização de princípios morais opostos aos que lhes deram origem.

Os membros da primeira geração da teoria crítica incorporaram, diz Honneth, esse

tipo de questionamento: a partir da experiência do nazismo, eles abandonaram a confiança

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antes depositada sobre o cerne racional dos princípios normativamente reconstruídos da

realidade social.286

É preciso ter sempre em mente, ao contrário, que as regras de sua

aplicação não são dadas pelos princípios e ideais morais eles mesmos, mas dependem do

contexto prático no qual eles são mobilizados. Isso significa que seu conteúdo não é fixo, mas

sim poroso, aberto e vulnerável (verletzbar) a deslocamentos de sentido mais ou menos

intensos, de forma que o tipo de questionamento levantado pela genealogia adquire um

estatuto metodológico a ser combinado com a crítica imanente de inspiração hegeliana que

anima o modo de proceder da teoria crítica. Isso implica, na prática, estudar o contexto

histórico real de aplicação dos princípios normativos socialmente estabelecidos, procurando

detectar as metamorfoses do significado moral que lhes deu origem para assim verificar se

eles ainda estão ancorados nesse significado. Assim, diz Honneth, a partir do fim da década

de 1940, Adorno, Horkheimer e Marcuse aproximaram-se da genealogia nietzschiana – eles

não simplesmente substituem o modelo hegeliano de esquerda anterior, mas antes

“incorporam a genealogia em seu modelo reconstrutivo como uma espécie de ponto de vista

metacrítico” (RGV: 68de; 52en)

Para Honneth, só se pode falar em teoria crítica da sociedade no sentido

originalmente proposto se ambas as exigências – a crítica reconstrutiva da realidade social e a

análise genealógica das normas morais nela em operação – forem cumpridas. A reconstrução

deve mostrar a existência de uma racionalidade potencial que se revela na realidade social sob

a forma de ideais morais e a genealogia, por sua vez, avalia a possível deformação de tais

ideais morais racionais no curso de sua aplicação.

É importante destacar que o critério para avaliar um ideal moral inscrito na

realidade institucional da sociedade como justificado (e, portanto, para considerar seu

deslocamento semântico uma deformação patológica) reside em que se possa mostrar que ele

representa uma etapa num processo histórico de aprendizagem no qual se corporifica a

racionalidade social.

286

Nas palavras de Honneth: “agora, contudo, com o estabelecimento do sistema de dominação nacional-

socialista mostrou-se que sob a validade dos mesmos ideais poderia se desenvolver uma práxis social que

estava extremamente distante de seu conteúdo de sentido moral original” (RGV: 67de; 52en).

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6.2.2. Uma crítica interna reconstrutiva forte

No texto “O fundamento do reconhecimento” (2002), que passou a ser publicado

juntamente a Luta por reconhecimento na forma de posfácio, Honneth reelabora certos

pontos-chave de sua teoria do reconhecimento a partir das críticas formuladas por alguns

debatedores de sua obra. Nesse contexto, a proposta interpretativa de Antti Kauppinen (2002)

foi responsável por chamar a atenção de Honneth para um aspecto central da crítica

reconstrutiva presente em seu modelo teórico. Kauppinen parte da distinção entre crítica

interna e crítica externa: a teoria crítica, ao adotar a primeira, assume “que as normas têm de

ser compartilhadas ‘de alguma forma’” entre o teórico crítico e o ator social (GdA: 334de;

514en). A crítica interna se subdivide então em duas: “Quando os critérios internos possuem

um caráter explícito, isto é, são publicamente articulados na sociedade em questão,

Kauppinen fala de uma ‘crítica interna simples’, porque ela requer apenas o confronto

daquelas normas explícitas com uma práxis que delas diverge”. Por outro lado,

Quando se assume acerca dos critérios internos, ao contrário, que eles têm um

significado apenas “implícito” para os destinatários, então a situação se torna

consideravelmente mais complicada e exige uma “crítica interna” que Kauppinen

chama de “reconstrutiva”; pois as normas que devem estar na base da crítica

devem agora ser obtidas interpretativamente na forma de uma “reconstrução” a

partir da rede de significado da práxis social existente antes que elas possam ser

consideradas como critérios implícitos (GdA: 334de; 514en).

A interpretação de Kauppinen se mostra interessante porque com a expressão

“crítica interna” ele já dá conta do fato de que a crítica tem que partir de padrões avaliativos

que estão ancorados na realidade social, em oposição à crítica externa, e assim o termo

“reconstrutivo” passa a ser utilizado para enfatizar que tais padrões avaliativos não estão

prontos à disposição para o observador, mas estão presentes no mais das vezes de modo

implícito e desarticulado nos discursos, reações emocionais e práticas quotidianas dos atores

sociais, devendo por isso ser cuidadosamente reconstruídos pelo teórico, em diálogo com os

atores concernidos.287

Influenciado pelo pragmatismo americano, especialmente por Robert

Brandom e seu Making it Explicit, Kauppinen defende que:

adquirimos consciência das normas que regulam nosso comportamento na forma de

um “knowing how” apenas naqueles momentos em que nossas expectativas são

transtornadas; a interrupção da ação nos obriga a explicitar aquela parte de nossas

287

De acordo com essa interpretação, a posição que Nancy Fraser defende em Redistribuição ou

reconhecimento? corresponderia à crítica interna simples, já que ela toma como ponto de partida empírico as

demandas articuladas pelos movimentos sociais – posição que Honneth considera um “atualismo míope”

(UoA: 217de).

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convicções latentes de fundo que são indispensáveis para o entendimento da

situação (GdA: 336de; 515en).

Esta não é, evidentemente, uma tarefa fácil, e por isso o recurso da teoria crítica a

investigações no campo das ciências sociais e da psicanálise é tão importante. Por esse

motivo, também, as experiências de injustiça e reações negativas dos atores têm um papel

central: elas representam uma oportunidade de tornar explícitas normas latentes, apenas

pressupostas na prática quotidiana. A norma pode vir à consciência (e impulsionar a ação)

quando ela é violada, causando aquelas emoções morais negativas como a indignação, a

vergonha e a humilhação. Como dito em outros momentos, contudo, é preciso ressaltar que as

experiências de injustiça não são suficientes, por si sós, para motivar lutas e conflitos sociais

por reconhecimento. É necessário que haja também, ao menos, uma linguagem interpretativa

compartilhada que seja adequada para traduzir as emoções em ações coletivas.288

A crítica interna reconstrutiva divide-se subsequentemente, na proposta de

Kauppinen, em duas versões: “se ela coloca demandas ‘fracas’, então as normas

implicitamente praticadas possuem para ela um caráter apenas contingente, particular, ao

passo que se ela persegue metas ‘fortes’, então ela deve poder demonstrar a necessidade

universal de tais normas implícitas” (GdA: 335de; 514en). O autor considera ambos

Habermas e Honneth como representantes da versão forte da crítica interna reconstrutiva –

interpretação com a qual Honneth afirma estar de acordo. Desse modo, é preciso demonstrar

que as normas implícitas de reconhecimento que são reconstruídas a cada vez não são

meramente contingentes ou particulares, e possuem um conteúdo universalista. Para tanto,

Honneth reconhece ser necessário recorrer a uma concepção, mesmo que fraca, de progresso:

“para poder mostrar que as normas de reconhecimento hoje predominantes não têm uma

validade apenas relativa, mas sim universal, a sua superioridade normativa deve poder ser

afirmada frente a todas as formas passadas de reconhecimento” (GdA: 340de; 517en).

Isso significa que a crítica social que reconstrói as normas de reconhecimento que

estão implícitas nas relações sociais entre os membros de uma dada sociedade deve procurar

mostrar, em um diálogo com seus destinatários, como suas práticas e instituições estão muitas

288

Mesmo que estejam presentes estes dois elementos (experiências negativas e uma linguagem compartilhada),

nada garante que irá surgir um movimento social de resistência – o que não invalida a abordagem

honnethiana, mas apenas torna evidente que a realidade social e histórica está sempre aberta à disputa. A

teoria crítica não pretende explicar os fenômenos sociais no sentido de prever seu desdobramento, mas antes

de compreender suas condições de possibilidade e seus potenciais de desenvolvimento.

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vezes em contradição com os seus ideais implicitamente praticados. Mas significa mais do

que isso: para Honneth, “mesmo quando entre a práxis concreta e as normas implícitas não

parece haver nenhum abismo, os ideais das distintas formas de reconhecimento exigem

sempre graus maiores de comportamento moralmente apropriado do que é praticado a cada

vez na realidade particular” (GdA: 341de; 517en). Há na abordagem honnethiana, assim, a

pressuposição de que as normas do reconhecimento sempre possuem em sua estrutura um

excedente de validade, isto é: elas demandam “a partir de si mesmas uma perfeição ulterior

de nosso agir moral, de modo que no processo histórico existe uma pressão permanente de

aprendizagem” (GdA: 341de; 517en). Do contrário, Honneth “dificilmente poderia esclarecer

como pôde haver aquele progresso nas transformações históricas das relações de

reconhecimento” que devem estar na base do modelo forte de crítica que ele pretende

defender (GdA: 341de; 517en).

6.2.3. Premissas da reconstrução normativa: normatividade, imanência, seletividade e

transcendência

No texto sobre a crítica reconstrutiva publicado em 2000, Honneth afirmara ser

“impossível fazer uma crítica social que não utilize a pesquisa genealógica como um detector

para extrair os deslocamentos sociais de sentido dos seus ideais centrais” (RGV: 68de;

53en). Cumpre notar que em O direito da liberdade, contudo, o autor minimiza a importância

de examinar os deslocamentos de sentido dos valores morais dominantes, de forma que

desaparece toda referência ao procedimento genealógico ligado a Foucault e Nietzsche. Aqui,

Honneth parece considerar que a proposta de uma teoria da justiça como análise da sociedade

inspirada na Filosofia do direito de Hegel fornece um conjunto de premissas básicas que é

suficiente para uma concepção completa do método crítico da reconstrução normativa.

A explanação desse método é o objeto da introdução a O direito da liberdade,

publicada separadamente três anos antes do livro sob o título de “Teoria da justiça como

análise da sociedade”.289

Honneth a inicia o texto com o seguinte diagnóstico teórico: “Uma

das maiores limitações de que sofre a filosofia política do presente é o seu desacoplamento

289

Título original: “Gerechtigkeitstheorie als Gesellschaftsanalyse: Überlegungen im Anschluss an Hegel”

(abreviado daqui em diante como GaG). O texto foi apresentado no ano de 2007 em um seminário na

Universidade de Potsdam e publicado no ano seguinte em Menke & Rebentisch (2008).

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da análise social e, com isso, sua fixação em princípios puramente normativos” (GaG: 14de).

Isso não implica, contudo, que se deva abandonar o ponto de vista normativo, sem o qual as

questões acerca da legitimidade das ordens sociais não podem encontrar ressonância na

reflexão teórica; mas uma concepção puramente normativa de teoria, diz Honneth, cujos

princípios de justiça são formulados isoladamente com relação às instituições e práticas

existentes, vê-se confrontada com a dificuldade de ter que aplicar seus resultados à realidade

social de forma retroativa – isto é, de maneira externa e artificial. Trata-se da crítica forte

discutida e rejeitada já no início de “Crítica social reconstrutiva sob ressalva genealógica”.

Tal procedimento não apenas torna mais problemática a sua aplicação ao material empírico,

mas levanta dúvidas sobre a própria possibilidade da aplicação: afinal, sem um ancoramento

na própria realidade, não há nada que garanta a plausibilidade dos princípios formulados

teoricamente. Isso significa que há aqui, também, um déficit motivacional, já que não fica

claro porque os atores sociais poderiam ser levados a pôr em prática princípios de justiça que

lhe são alheios.

Essa tendência, diagnosticada aqui como o grande problema das concepções

liberais de justiça da atualidade, sinaliza para Honneth a hegemonia gradualmente

conquistada pelas teorias de inspiração kantiana, isto é, que partem de uma cisão fundamental

(e em última instância, portanto, intransponível) entre ser e dever-ser, entre o real e o ideal,

entre facticidade e normatividade. Hegel procurou, em sua época, superar a distinção kantiana

e indicar as mediações entre a filosofia e a efetividade. Hegel tinha o propósito, diz Honneth,

de “conciliar as duas coisas em uma unidade: explicar a realidade institucional de seu tempo

em suas linhas decisivas como já racional e, inversamente, demonstrar a razão moral como

já efetivada nas instituições modernas centrais” (GaG: 16de).

As gerações posteriores a Hegel, contudo, não tiveram sucesso em manter acesa

essa inspiração – seja por parte da esquerda hegeliana, que arrefeceu após o declínio, ao longo

do século XX, de interpretações revolucionárias da teoria de Hegel; seja por parte da direita

hegeliana, cuja chave interpretativa faz jus às acusações de conservadorismo voltadas contra o

próprio Hegel, segundo as quais o ancoramento no real que ele propõe não significaria muito

mais do que uma justificação posterior do existente, redundando numa defesa do status quo.

Mesmo as tentativas mais recentes de reabilitar a teoria hegeliana – Honneth refere-se aqui a

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Walzer (2003) David Miller (2001) e Alasdair MacIntyre (2007 [1981]) – apesar de

procurarem superar o kantismo predominante na filosofia política, tampouco teriam cumprido

inteiramente o projeto esboçado por Hegel de uma construção imanente de princípios

normativos, pois lhes falta a etapa adicional que consiste na avaliação desses princípios com

vistas à sua justificação racional.290

Dito de outro modo: enquanto que no liberalismo político

falta a dimensão da imanência, falta aqui a dimensão da transcendência, que é precisamente

aquilo que permite a crítica do real.

Feito esse diagnóstico, resta a Honneth apresentar uma concepção alternativa,

capaz de sanar as dificuldades decorrentes da tendência ao desacoplamento entre teoria

normativa e análise social. Sua proposta, contudo, não vai no sentido de abandonar o

paradigma hegeliano, mas sim de reabilitá-lo de forma mais adequada. Para tanto, Honneth

reconhece que é imprescindível proceder a certo número de mediações, já que uma aplicação

direta da teoria hegeliana presente na Filosofia do direito ignoraria não só as transformações

sociais ocorridas nesses mais de duzentos anos – representadas pelo duplo movimento de

radicalização da modernização e de ruptura com uma visão otimista do progresso histórico

(especialmente após o terror vivenciado na Segunda Guerra Mundial) –, mas negligenciaria

também as mudanças no nível propriamente filosófico, em especial o declínio do idealismo e

a consolidação de um quadro de pensamento pós-metafísico.291

De forma similar a como

procede Lukács com relação a Marx em “O que é marxismo ortodoxo?”,292

Honneth propõe

que, independentemente dos resultados das análises concretas de Hegel acerca do quadro

institucional e das práticas sociais de sua época, seja mantida a sua intenção metodológica.

Numa guinada repleta de consequências, porém, Honneth não se refere, como Lukács, ao

método dialético, e sim àquilo que ele resume, “para poupar[-se] da reprodução de

290

Neste sentido, a obra dos autores em questão se enquadraria, segundo a distinção de Antti Kauppinen aceita

por Honneth no posfácio de Luta por reconhecimento, no método reconstrutivo fraco, sendo que a teoria

crítica exigiria um método reconstrutivo forte (cf. item 6.2.2.).

291 Trata-se da necessidade, portanto, de reconstruir – no sentido de presentificar e reatualizar – a teoria

hegeliana.

292 Cf. o seguinte trecho: “Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a investigação contemporânea tenha

provado a inexatidão prática de cada afirmação de Marx. Um marxista ‘ortodoxo’ sério poderia reconhecer

incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses particulares de Marx, sem, no

entanto, ser obrigado, por um único instante, a renunciar à sua ortodoxia. O marxismo ortodoxo não

significa, portanto, um reconhecimento sem crítica dos resultados da investigação de Marx, não significa

uma ‘fé’ numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro ‘sagrado’. Em matéria de marxismo, a ortodoxia se

refere antes e exclusivamente ao método” (Lukács, 2003: 64).

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complicadas discussões”, na expressão “reconstrução normativa” (GaG: 23de). O que

Honneth apresenta aqui, portanto, não é um desenvolvimento explícito das mediações que ele

considera indispensáveis para uma apropriação adequada da filosofia hegeliana do direito na

atualidade, mas antes uma enumeração daqueles elementos inspirados em Hegel que podem

ser mantidos em uma concepção de reconstrução normativa fecunda para o presente.293

Esses

elementos são organizados na forma de quatro premissas – às quais chamaremos

normatividade, imanência, seletividade e transcendência –, que Honneth pretende que sejam

justificadas pela sua argumentação ao longo do livro.

Normatividade

A premissa inicial refere-se a um tema central na obra de Honneth: a ideia de que

a integração e a reprodução sociais dependem de um horizonte comum de normas e valores

capazes de orientar as ações dos sujeitos e, nesta medida, conferir legitimidade às práticas

institucionalizadas. Com essa premissa, Honneth pretende rejeitar todos os quadros teóricos

de cunho funcionalista, focados apenas em ações estratégicas, que tomam os atores sociais

como agindo unicamente em função de um cálculo maximizador orientado pelo seu auto-

interesse, ou que simplesmente pressupõem a existência de âmbitos sociais normativamente

neutros, isto é: independentes de valores socialmente compartilhados. Essa premissa é crucial

porque uma teoria da ação baseada na motivação moral dos conflitos sociais constitui o

pressuposto básico da teoria do reconhecimento honnethiana: ela fornece o ponto de

referência para os questionamentos e objeções que Honneth dirige à antropologia inerente ao

paradigma dominante na filosofia social moderna desde Maquiavel e Hobbes, baseada na ação

estratégica e na luta pela autoconservação (cf. o primeiro capítulo de Luta por

reconhecimento) de um lado; e, de outro, ao déficit sociológico dos principais modelos

anteriores da própria teoria crítica (cf. especialmente Crítica do poder). Ambas as formas de

questionamento constituem momentos na preparação do caminho para o modelo honnethiano

de teoria crítica. A teoria da luta por reconhecimento repousa, neste sentido, sobre a ideia de

293

Marcos Nobre mostra que “Honneth não se dedicou neste último livro a expor longamente a ‘ideia de

liberdade’ em Hegel e seu vínculo interno com a ‘análise social’. […] essa tarefa foi sublimada na forma da

apresentação, na ‘Introdução’ de quatro premissas substitutivas àquelas do idealismo hegeliano” (Nobre,

2013b: 45).

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que os sujeitos mobilizam, na sua interação recíproca, não apenas os imperativos de uma luta

por bens escassos, mas especialmente as variadas expectativas normativas que eles mantêm

com relação ao seu próprio reconhecimento.

No texto em causa, um dos autores nos quais Honneth se apoia para defender tal

posicionamento é Talcott Parsons. O que ele considera marcadamente frutífero no paradigma

parsoniano, caracterizado aqui como um “modelo sistêmico de uma teoria da ação” (GaG:

18de), é a ideia de que os valores éticos, por serem dotados da capacidade de orientar as ações

dos indivíduos, formam a “realidade última” de todas as ordens sociais e, por conseguinte,

penetram em todos os subsistemas da sociedade. Tal penetração se dá de forma distinta em

cada subsistema; porém, como todos eles, sem exceção, estão ancorados nas ações dos

sujeitos e estas, por sua vez, dependem sempre em alguma medida da existência de normas e

convicções compartilhadas e institucionalizadas em práticas sociais, essa perspectiva não

permite que se conceba âmbitos sociais livres de valores éticos, que funcionariam unicamente

com base em exigências sistêmicas de reprodução social. Mesmo a esfera econômica, não raro

considerada como o campo da ação racional estratégica por excelência, é incluída aqui no

quadro dos subsistemas cuja integração social ocorre normativamente, e com isso Honneth

distancia-se não apenas de representantes clássicos da teoria de sistemas como Niklas

Luhmann, mas também do próprio Habermas, na medida em que sua distinção entre sistema e

mundo da vida impede (ao menos na Teoria da ação comunicativa) uma apreciação da

dimensão moral fundamental presente no mercado, assim como no campo político da

administração estatal.

Se de acordo com o primeiro requisito podemos dizer que a integração social

depende de um certo horizonte comum de normas e valores, isso não implica, contudo, uma

visão das sociedades modernas como culturalmente indiferenciadas, sem disputas ideológicas

internas ou visões de mundo concorrentes. Para Honneth, o horizonte normativo

compartilhado refere-se a uma estrutura ética básica que permite a própria convivência e a

integração sociais, e não a um conjunto restritivo de valores e crenças (isto é: não configura

uma “doutrina abrangente”, para falar como Rawls). Assim, também nas sociedades atuais

(que Honneth chama de “heterogêneas”, GaG: 19de), valores compartilhados orientam seja a

reprodução material, seja a socialização cultural; e é precisamente por conta de sua relevância

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343

nos processos sociais que há, nas sociedades crescentemente complexas e diferenciadas, uma

pressão contínua para que tais valores sejam cada vez mais compreensivos e gerais. Por esse

motivo, chamamos de premissa da normatividade o pressuposto inicial do conceito

honnethiano de método reconstrutivo.

Imanência

O segundo pressuposto enunciado por Honneth está intimamente ligado à

premissa da normatividade: se a reprodução social depende de normas e valores que orientam

a ação dos membros de cada sociedade, o conceito da justiça não pode ser entendido

independentemente desses valores socialmente compreensivos: “deve ser considerado ‘justo’

aquilo que no contexto de uma sociedade está apto a realizar, em instituições e práticas, os

respectivos valores aceitos como gerais” (GaG: 21de). Essa é a premissa da imanência,

segundo a qual a ideia normativa de justiça, para ter efetividade, não pode ser formulada

como algo autônomo, independente ou autoexplicativo. Na esteira de Hegel e Marx, Honneth

argumenta que só faz sentido falar em critérios da justiça se eles não forem externos e se

referirem à capacidade das instituições ou práticas sociais existentes de realizar da maneira

mais completa possível aqueles ideais que efetivamente conquistaram, em determinada

sociedade, uma aceitação geral; vale dizer: os ideais que pautaram a própria consolidação

dessas instituições e práticas. A ideia de uma análise imanente do real é, não se pode

esquecer, uma das principais marcas da teoria crítica desde a censura de Marx aos socialistas

utópicos – e fora desse campo propriamente dito, desde a crítica hegeliana ao caráter abstrato

e formal da filosofia prática de Kant. No cerne dessa ideia está uma radicalização da

exigência, que surge com a modernidade, de autocertificação da razão,294

isto é: o requisito de

evitar justificar qualquer análise por meio da adução de argumentos que gozam de autoridade

em outros campos que não o do objeto analisado – assim, numa teoria da justiça, são

excluídos de saída argumentos oriundos das esferas religiosa ou moral, por exemplo. Dito de

outro modo: é o próprio objeto que dá as leis de sua interpretação, já que a partir da

294

Habermas (2000 [1985]: 12) afirma, a esse respeito: “a modernidade não pode e não quer tomar dos modelos

de outra época os seus critérios de orientação, ela tem de extrair de si mesma a sua normatividade. A

modernidade vê-se referida a si mesma, sem a possibilidade de apelar para subterfúgios”.

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multiplicação das esferas culturais de valor – descrita por Weber como o surgimento de um

politeísmo de valores – não há mais um quadro de referência unívoco que permita justificar,

racionalmente, a introdução, na argumentação, de critérios exógenos, supostamente

universais, que carecem de justificação e que por isso correm sempre o risco de serem

completamente irrealizáveis.

Honneth reconhece que algumas propostas contemporâneas de origem kantiana (é

o caso de Rawls, evidentemente, mas também o de Habermas) valorizam a congruência

histórica que pode ser observada entre os princípios normativos que elas formulam de

maneira independente ou “construtiva” e aqueles que factualmente encontramos nas

sociedades modernas, ou seja: conferem importância à plausibilidade histórica de seus

modelos. O problema aqui é que tal congruência entre o normativo e o factual está com o

sinal trocado: não é a realidade que dá o material do normativo, mas é um procedimento

normativo anterior que determina uma adequação da realidade social. Para Honneth, portanto,

é necessário abdicar completamente do método construtivo, baseado em uma dedução, para

obter princípios de justiça e proceder reconstrutivamente a partir do quadro de normas e

valores já em operação em dada sociedade. É decisivo ter em mente, contudo, que o fato de a

reconstrução rejeitar as teorias puramente normativas não implica a defesa de uma mera

recopilação dos elementos que conformam o quadro total existente de normas e valores; é

preciso, adicionalmente, comprovar no próprio curso da reconstrução a vantagem normativa

dos valores atuais em relação aos anteriores. Nesse sentido, também aqui Honneth admite

(GaG: 22de) a inevitabilidade de uma certa teleologia, que podemos ligar mais uma vez à

concepção inspirada em Hegel do decurso histórico como conjunto de processos de

aprendizagem.

Seletividade

Com essa reflexão chegamos à terceira premissa para uma reconstrução

normativa, que diz respeito à seletividade inerente a tal forma de proceder e que a impede de

ser apenas a compilação mais exaustiva possível de dados da realidade social (isto é: uma

teoria tradicional no sentido proposto por Horkheimer). As práticas e instituições sociais a

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serem normativamente reconstruídas não são obtidas mediante uma descrição geral, mas antes

por meio de uma concatenação criteriosa do material empírico. Se simplesmente tomarmos as

análises sociais disponíveis como descrições acabadas do concreto e aplicarmos

normativamente tais descrições de novo à realidade, permanecerá intocada a divisão de tarefas

entre a filosofia (teoria normativa) e as ciências sociais (investigações empíricas), entre quem

descreve e analisa o ser e quem formula o dever-ser. Nas palavras de Honneth: “Para evitar o

perigo de simplesmente reaplicar os princípios da justiça adquiridos de forma imanente de

volta à realidade dada, essa realidade social mesma não deveria ser pressuposta como um

objeto já suficientemente analisado” (GaG: 25de). Uma teoria crítica da justiça deve, na

concepção de Honneth, evitar portanto tomar os dados sociológicos disponíveis tais como eles

se apresentam à primeira vista e deve, ao contrário, tomar uma posição ativa quanto à

concatenação desses dados e pôr abaixo, deste modo, a rígida cisão entre teoria normativa e

análise social. Quais são os critérios, porém, para selecionar aquilo que faz parte da eticidade

e deve, portanto, ser normativamente reconstruído?

Na introdução de O direito da liberdade, Honneth oscila entre duas respostas

possíveis para essa questão. De início, o critério para a concatenação dos elementos da

realidade social consiste em identificar, destacar e analisar somente as instituições e práticas

que são fundamentais para a reprodução social. Como esta depende, por sua vez, de normas

e valores, as práticas e estruturas selecionadas devem ser analisadas segundo a sua capacidade

de e importância para a consolidação dos valores socialmente institucionalizados em cada

esfera social que compõe a eticidade, isto é, que participa de modo constitutivo do processo

de reprodução social. Por esse motivo é que Honneth pode considerar que há uma intersecção

entre esse método inspirado em Hegel e as teorias sociológicas de Durkheim e Parsons.295

Em outros momentos, porém, Honneth afirma que as instituições e práticas a

serem reconstruídas são aquelas que corporificam ideais considerados justificados ou

racionais na medida em que contribuem para a realização da liberdade individual sob

condições modernas (GaG: 14de; 16de). Tais normas e valores, para estarem aptos a

funcionarem como condições de possibilidade do exercício da liberdade social e, assim, da

autorrealização individual, devem ser caracterizados por um alto grau de generalidade e 295

Os quais, não obstante, não tinham como objetivo dar o passo adicional de assentar as bases para uma teoria

da justiça a partir de sua análise social (GaG: 23-4de).

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inclusão. Aqui reside, acreditamos, o aspecto democrático da eticidade que aparece no

subtítulo de O direito da liberdade. Assim, em sentido contrário à interpretação da teoria

hegeliana como uma defesa conservadora das práticas e instituições existentes e,

consequentemente, da ordem dominante, Honneth defende que Hegel “procurava proceder de

maneira muito mais seletiva, tipificadora e normativa do que seria permitido por um

positivismo aristotélico” (GaG: 26de). Isto significa que a reconstrução da realidade social

proposta por Honneth e inspirada em Hegel é normativa desde a própria caracterização inicial

das condições estruturais das sociedades contemporâneas e das formas de vida existentes: só

está habilitado a ser objeto da reconstrução normativa aquilo que faz parte da eticidade na

medida em que contribui para a efetivação dos valores e ideias modernos mais gerais. Não

entram na conta, logo, valores que sejam retrógrados, ou seja: particulares, elitistas,

excludentes ou autoritários.296

Transcendência

Da premissa anterior somos conduzidos ao quarto e último requisito do método

reconstrutivo: a de que ele ofereça sempre a possibilidade de ser empregado criticamente

(GaG: 28de). Para afastar ainda mais os traços de conservadorismo que ameaçam contaminar

o legado hegeliano de forma geral, Honneth procura mostrar a intenção crítica presente no

método desenvolvido por Hegel. Como visto, o critério para avaliar a razoabilidade das

práticas e estruturas sociais para a efetivação dos valores generalizados não decorre de

requisitos abstratos e externos; ao contrário, a reconstrução normativa dirige a seus objetos –

instituições e práticas socialmente consolidadas – as exigências provenientes daqueles

mesmos princípios normativos internos que foram extraídos dessas instituições e práticas e

que permitiram a sua própria reconstrução inicial como elementos da eticidade. Isso denota 296

Uma alternativa para compreender essa ambivalência no pensamento de Honneth seria considerar que há uma

correlação entre valores morais vigentes, que possibilitam a reprodução social, e valores morais

normativamente legítimos, isto é: racionais, que permitem a autorrealização individual. Desse modo, seriam

combinados elementos teóricos funcionalistas e normativos. Diz Honneth: “de forma semelhante a Hegel em

sua Filosofia do direito, eles [Durkheim e Parsons, MT] ordenam as esferas sociais de acordo com a

importância funcional que elas possuem para a estabilização e a realização da hierarquia moderna de

valores” (GaG: 28de; grifos MT). Como indicado anteriormente (cf. nota 261), não fica clara qual seria,

então, a diferença entre esse funcionalismo normativo que é defendido de maneira explícita por Honneth na

terceira parte de O direito da liberdade e uma teoria sistêmica que não negligencia os valores morais que

orientam a ação dos sujeitos nos diferentes subsistemas.

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que não apenas a reconstrução, mas também a crítica tem que ser interna às práticas ou

estruturas dadas, sem se referir, portanto, a um estado ideal imaginado, mas antes às

possibilidades latentes contidas no próprio real. Assim, a crítica de práticas existentes está

ligada ao “delineamento prévio de vias de desenvolvimento ainda não exauridas” (GaG:

27de), de caminhos que foram abertos pela própria generalização e estabilização de valores

normativos nas sociedades modernas – valores que são efetivados, contudo, de maneira

sempre incompleta. Dito de outro modo: é preciso “interpretar a realidade existente com

vistas aos potenciais de práticas nos quais os valores gerais poderiam ser efetivados melhor,

isto é, de maneira mais abrangente ou mais fiel” (GaG: 27de). Nesse contexto, pode ser

compreendido aquilo que é chamado por Honneth de “excedente de validade normativa”

(normativer Geltungsüberschuss) dos princípios morais.297

Essa premissa adquire uma importância decisiva no campo da teoria crítica, uma

vez que permite um comportamento justificadamente não conformado perante a realidade

social. Ao apontar a contradição entre os valores gerais compartilhados e a sua realização

apenas parcial nas práticas e instituições que lhes correspondem, o teórico crítico abre o

caminho para uma antecipação plausível (porque não utópica) de alternativas às condições do

presente consideradas patológicas. Honneth resume da seguinte maneira essa premissa da

transcendência:

se aquilo que representa valores ou ideais gerais por meio de um conjunto de

práticas institucionalizadas é considerado como uma instância da eticidade, então

os mesmos valores podem ser aduzidos para criticar aquelas práticas dadas como

não sendo ainda, com respeito aos seus desempenhos representativos, apropriadas.

O autor continua:

Em uma tal “crítica reconstrutiva”, portanto, as instituições e práticas dadas não

são simplesmente contrapostas a parâmetros externos; são antes os mesmos

parâmetros com base nos quais elas puderam ser inicialmente destacadas do caos

da realidade social que são utilizados para confrontar com elas uma corporificação

insuficiente, ainda incompleta dos valores gerais aceitos (GaG: 28de).

Honneth afirma ter encontrado um bom exemplo desse procedimento na

apresentação das corporações feita na Filosofia do direito, ao final do capítulo sobre a

sociedade civil, onde Hegel chama a atenção, explica Honneth, para um potencial normativo 297

O termo “normative Uberschusse” aparece já em 1981, em “Consciência moral e dominação social de classe”

(MsK: 183de). A ideia também está presente em outras expressões, como “Geltungsüberhang” (GdA: 340de)

e “gesellschaftlich unausgeschopfte Gerechtigkeitsanspruche” (MsK: 183-4de).

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negligenciado das instituições já existentes: as corporações não incluem membros na medida

que seria necessária para que elas cumprissem a tarefa a que se propõem, que é “fornecer às

camadas comerciantes [gewerbetreibend] uma consciência ética de sua contribuição

constitutiva para a reprodução mediada pelo mercado” (GaG: 29de).

Comparando a introdução a O direito da liberdade, escrita em 2007, e o texto

publicado sete anos antes acerca da crítica reconstrutiva, algumas diferenças saltam à vista.

Em primeiro lugar, chama a atenção no texto a ausência de referências diretas não apenas a

Nietzsche ou a Foucault, mas também ao próprio conteúdo da ressalva representada pelo

método genealógico. Ao longo de O direito da liberdade, Honneth examina os diferentes

sentidos da concepção de liberdade presentes na história da filosofia moderna (partes A e B) e

avalia o grau de sua realização nas diferentes esferas sociais (parte C), mas em nenhum

momento ele dedica seus esforços analíticos aos deslocamentos de sentido da norma moral

reconstruída (o ideal da liberdade social), na medida em que eles têm consequências

disciplinares, repressivas, ou ao menos incompatíveis com o seu significado “original”.

Por fim, é preciso destacar também que Honneth parece diferenciar aqui, de forma

sutil, reconstrução normativa e crítica reconstrutiva. A primeira é levada a cabo mediante as

três primeiras premissas (tanto que o autor usa o termo “reconstrução normativa” para se

referir à terceira premissa, que depende das duas anteriores), e Honneth a atribui não só a

Hegel, mas também a autores como Durkheim e Parsons. O que falta a ela é precisamente o

elemento crítico, que é como que acrescentado ao procedimento reconstrutivo já colocado em

movimento. Afinal, Honneth afirma que a reconstrução normativa sempre oferece também a

oportunidade de um emprego crítico (GaG: 28de). Se esta for realmente a intenção do autor,

podemos dizer que, ao separar reconstrução e crítica, Honneth corre o risco de reproduzir em

seu texto precisamente o desacoplamento entre teoria social e ponto de vista crítico contra o

qual ele estava inicialmente direcionado.

Em outro texto da mesma época, porém, Honneth fornece argumentos concretos

contra esse desacoplamento.

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6.2.4. Reconstrução filosófica e pesquisa social empírica

Deve ter ficado claro até o momento que o marco distintivo da teoria crítica é,

para Honneth, justamente a sua autocompreensão enquanto um conhecimento histórico do

presente que, não obstante uma estreita relação com a realidade dada, tem uma intenção

crítica cuja normatividade é extraída da própria realidade histórica:

Uma vez que a teoria crítica, enquanto distinta das abordagens tradicionais, [tem]

que ser consciente de seu contexto de desenvolvimento, assim como de sua

aplicação política e, portanto, [deve] representar uma espécie de autorreflexão do

processo histórico, as normas ou princípios aos quais a crítica se [refere podem] ser

apenas aqueles que, de alguma forma, [estão] ancorados na própria realidade

histórica (RGV: 64de; 49en).

O pressuposto fundamental para que essa exigência seja cumprida é uma intensa

colaboração entre teoria social e filosofia normativa. Mas como exatamente se dá essa

colaboração? Como os resultados das pesquisas no campo das disciplinas das ciências sociais

podem ser articulados sob uma perspectiva eminentemente normativa? Seu papel limita-se a

fornecer os dados concretos sobre os quais se aplica a crítica? Em outras palavras: a análise

social está restrita a uma fonte de dados para as premissas da normatividade, da imanência e

da seletividade, restando para o teórico de perspectiva normativa o momento da

transcendência (crítica)?

Em “Filosofia como pesquisa social”, um texto de 2008 que inicialmente serviu

como prefácio para a edição alemã de The Principles of Justice, de David Miller, Honneth

fornece importantes elementos que esclarecem sua concepção acerca do vínculo entre

filosofia e análise social.298

O estudo de Miller, publicado originalmente em 1999, representa

segundo a visão de Honneth uma notável tentativa de superar o abismo que se colocou, a

partir do arrefecimento do embate entre liberalismo e comunitarismo e da consequente

hegemonia daquele em detrimento deste, entre a teoria política normativa dos filósofos e a

práxis política factual dos demais atores sociais. Como consequência, diz Honneth, “começa

novamente a se disseminar o velho mal-estar de uma justaposição entre filosofia política e

ação política, entre teoria e práxis” (PaS: 7de). Esse abismo deve-se ao fato de que os

princípios filosófico-políticos que gozam de consenso na teoria são formulados de forma tão

independente da experiência prática que, ao fim e ao cabo, eles não possuem um ponto de

298

Título original: “Vorwort. Philosophie als Sozialforschung: Die Gerechtigkeitstheorie von David Miller”

(abreviado daqui em diante como PaS).

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apoio na realidade para que possam contribuir para os debates que se dão entre os atores

políticos acerca de dilemas de justiça no nível empírico. Assim, “é preciso extrair outras

normas, ainda não justificadas filosoficamente, antes que se abra a visão para uma solução

‘justa’” (PaS: 8de).

O livro de Miller se apresenta como um esforço para superar essa situação porque

questiona o desacoplamento prevalente na atualidade entre as concepções liberais de justiça

que se tornaram consensuais, de um lado, e o mundo pré-científico das convicções, de outro.

Miller questiona a generalização da igualdade como princípio único da justiça para todos os

contextos sociais, ao passo que são preteridas as demais concepções de justiça dos sujeitos

concretos e é, assim, eliminada a diversidade de princípios realmente existente.299

Tal

“esquecimento com relação à empiria” (Empirievergessenheit) das teorias da justiça

predominantes na atualidade reflete-se na sua baixa ressonância quanto à resolução dos

desafios concretos presentes no discurso público. A proposta de Miller é fazer jus à

pluralidade de concepções pré-teóricas validadas pelos destinatários de sua teoria, isto é, pelos

próprios sujeitos concernidos (PaS: 9de).

Honneth reconhece que Miller não é único autor que propõe uma pluralidade de

princípios de justiça. Tanto Michael Walzer quanto Luc Boltanski e Laurent Thévenot

notoriamente trabalham com essa diversidade, por exemplo.300

Mas há, para Honneth, uma

diferença fundamental entre esses autores e David Miller: em lugar de definir – seja

hermeneuticamente (Walzer), seja empiricamente (Boltanski e Thévenot) – quais são os

princípios de justiça que coordenam a distribuição em uma sociedade a partir dos bens a

serem distribuídos, ele realiza uma espécie de combinação entre pesquisa sociológica e

filosofia política que o permite observar os diferentes princípios de distribuição a que os

sujeitos recorrem dependendo do tipo de relação que estabelecem entre si. A questão não se

299

O grande exemplo aqui é, mais uma vez, a teoria da justiça de John Rawls: apesar de afirmar que chega a

seus princípios de justiça em consonância com as concepções básicas dos cidadãos comuns, ele não se

preocupa, diz Miller, com os estudos empíricos nos quais essas convicções foram de fato pesquisadas. À

diferença da apropriação escrupulosa das pesquisas no campo da psicologia moral, da teoria econômica e de

outras disciplinas, a sociologia moral não tem espaço em Uma teoria da justiça. Se Rawls tivesse levado

essas pesquisas acerca das sensibilidades cotidianas de justiça em consideração, acredita Miller, ele não teria

confinado os princípios de justiça aos limites da ideia de equidade.

300 Cf. Walzer (2003); Boltanksi & Thévenot (1991). O autor aborda especificamente esses pensadores em

Honneth (1991) e Honneth (2008), respectivamente.

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limita, portanto, à constatação concreta da pluralidade de bens sociais, mas abrange a tentativa

de interpretação do sentido das relações sociais entre os atores.

Sem se deter muito longamente no conteúdo específico da concepção de justiça

elaborada por Miller, Honneth se debruça sobre o método que levou a ela: partindo de estudos

empíricos (pesquisas quantitativas com a aplicação de questionários) acerca dos juízos que

motivavam as decisões dos atores sociais comuns em temas ligados a problemas de

distribuição, Miller procede, no entanto, de maneira crítica, não aceitando sem mais os dados

obtidos nesses estudos. É preciso, segundo o autor, fazer uma triagem (Sichtung) do material

obtido, uma vez que ele não tem, ainda, a forma sistemática de uma teoria da justiça. É

preciso, além disso, organizar e selecionar as respostas coletadas visto que os sujeitos

entrevistados podem, por exemplo, mobilizar considerações de autointeresse (e não de justiça)

para decidir uma solução no caso de um choque entre diferentes princípios de ação.

Essa é a principal dificuldade encontrada por Miller. Como fazer a triagem do

material empírico? A saída é encontrada pela combinação mencionada entre teoria normativa,

de um lado, e, de outro, convicções e percepções de justiça factuais, quotidianas. Ele dedica o

terceiro capítulo de Principles of Social Justice ao esclarecimento dessa interdependência,

resumida da seguinte forma por Honneth:

Miller está convencido, com razão, de que as pesquisas empíricas permanecem

“cegas” para as normas morais cotidianas enquanto não submeterem as

classificações que utilizam a um exame filosófico; de fato uma tal clarificação

preliminar não irá ajudar, em cada caso, a eliminar todas as dificuldades na

avaliação do material, mas ao menos irá garantir que, em determinadas formas de

comportamento ou juízo, padrões de justificação morais sejam unívoca e

consistentemente distinguidos de padrões não morais (PaS: 10de).

Uma teoria filosófico-normativa é o que pode ajudar o pesquisador a diferenciar,

dos motivos morais para a ação e a tomada de decisões, aqueles meramente autointeressados.

Isso mostra que o caminho é de mão dupla: Miller não apenas mobiliza pesquisa empíricas

para formular sua teoria dos princípios de justiça, mas também a própria pesquisa sociológica

é orientada em função desta. Nas palavras de Honneth:

O que vale em uma direção para a pesquisa empírica da justiça, vale segundo

Miller na direção oposta também para a teoria filosófica da justiça; assim como o

sociólogo se apoia nas clarificações conceituais do filósofo político, também este

depende, inversamente, das investigações daquele acerca da cultura moral

cotidiana (PaS: 11de).

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Para tanto, em sua pesquisa, Miller sugere que os sociólogos de orientação

empírica entrem em um contato preliminar com as discussões de filosofia moral acerca de

uma teoria normativa da justiça, o que lhes auxiliaria a encontrar distinções “justificáveis e

plenas sentido” entre diferentes tipos de motivação para os comportamentos e julgamentos

morais encontrados na realidade social (PaS: 11de).

Uma vez, no entanto, que as pesquisas empíricas carecem na maioria das vezes de

clarificações filosóficas preliminares, faz-se necessário realizar não apenas a triagem do

material empírico, mas também um processamento interpretativo e categorial, que Honneth

chama nesse texto de “reconstrução filosófica” (PaS: 163de). O modo como isso é realizado

no livro de Miller é considerado por Honneth uma obra-prima, uma “joia” (Glanzstück) da

combinação entre pesquisa social e filosofia (PaS: 12de).301

O procedimento se dá da seguinte

maneira: os resultados que, à primeira vista, têm a aparência de um conjunto caótico de todas

as posturas possíveis com relação a situações distributivas e não parecem tomar quase

nenhuma forma sistemática, ganham uma ordenação na medida em que as respostas são

agrupadas de acordo com critérios que são teoricamente formulados sem violentar o material

coletado (PaS: 12de) – o que dá a entender que tais critérios não estão já prontos antes de se

iniciar a análise do material, mas são formulados em sua versão mais acabada justamente ao

longo dessa análise, numa relação de efeitos recíprocos com os dados empíricos. Assim,

Miller consegue não apenas inferir conclusões sobre se os envolvidos utilizam regras

consistentes para a resolução de problemas de justiça, mas também filtrar ou destilar

(herausdestillieren) gradualmente, da multiplicidade das tomadas de posição, uma

regularidade na utilização de regras de distribuição.

No caso de Miller, o principal resultado dessa reconstrução aponta não para um,

mas para três princípios mobilizados quotidianamente pelos concernidos em questões de

justiça, dependendo do contexto social no qual eles são tocados por um problema de

distribuição:302

o princípio da igualdade (nas relações entre cidadãos na esfera pública e

301

Miller realiza essa triagem no capítulo 4 de seu livro, intitulado “Distributive Justice: What the People

Think”.

302 Ao defender essa concepção tripartite e, portanto, pluralista de justiça, Honneth se contrapõe à noção de que

há apenas um princípio ou um procedimento legítimos de justiça. Esta concepção monista da justiça se

encontraria não apenas em Rawls, mas também em outros autores criticados por Honneth, como Fraser (para

quem tanto a redistribuição quanto o reconhecimento são meios para o princípio mais alto da paridade de

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política), o da necessidade (entre pessoas com valores e experiências de solidariedade

compartilhados), e o do mérito (nas relações voltadas a fins econômicos considerados

legítimos). Até esse ponto, ressalva Honneth, apesar de potencialmente frutífero, um tal

procedimento não se diferencia ainda de uma espécie sofisticada de positivismo. Afinal,

afirma o autor, falta a dimensão normativa:

É necessário, para que se chegue a princípios normativos a partir dos dados

empíricos, dar um passo argumentativo adicional que exponha por que deve ser

correto seguir as diferenciações morais das cidadãs e dos cidadãos; o que ainda

falta é, portanto, a delineação de um ponto de vista normativo que faça surgir como

algo justificado o ato de tomar o pluralismo factual dos juízos cotidianos de justiça

como a base de uma teoria sistemática da justiça (PaS: 11de; 124en).

Para dar conta dessa exigência, Miller desenvolve no segundo capítulo de seu

livro as linhas gerais de uma concepção de justiça cuja única fonte de justificação são as

nossas “crenças intuitivas compartilhadas”, de forma que se considera que uma teoria da

justiça bem fundamentada é aquela na qual os juízos encontrados empiricamente entram em

uníssono com nossas – isto é, do ponto de vista do teórico – convicções intuitivas

teoricamente refinadas (PaS: 15de; 125en). Tal refinamento consiste em identificar os

elementos que podem ser considerados relevantes com referência ao tipo de relação que é

estabelecida entre os sujeitos em questões de justiça, separando-os dos inúmeros outros que

constroem a realidade social em seu conjunto. É isso que significa uma reconstrução reflexiva

de nossas concepções intuitivas, que se distingue de forma sutil – mas decisiva – de uma

descrição de nossas concepções factuais de justiça. Com razão, Honneth reconhece nesse

procedimento uma semelhança com o mecanismo rawlsiano do “equilíbrio reflexivo”, com a

diferença de estabelecer um vínculo com os resultados das pesquisas sociológicas de cunho

empírico. Ao passo que Rawls pretende encontrar um equilíbrio entre princípios de justiça

filosoficamente assegurados (pelo teórico) e as intuições quotidianas bem refletidas (também

pelo teórico, apesar de ele visar encontrar intuições “razoáveis”, que os concernidos possam

aceitar), Miller procura a interseção entre as intuições de justiça socialmente estabelecidas

mas teoricamente depuradas (pelo teórico) e os juízos factuais de justiça (dos atores sociais;

PaS: 166de).

participação) e autores que partem da ética do discurso, como Rainer Forst (que considera as diferenças entre

contextos da justiça o resultado da aplicação diversificada de um mesmo princípio procedimental, ligado à

ideia de justificação).

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354

Se Miller imputa a qualquer membro competente da sociedade a capacidade de

alocar intuitivamente questões de justiça nas diferentes esferas da convivência social,

Honneth atribui isso a uma espécie de gramática comum, um “mapa moral” (moralische

Landkarte) conjuntamente construído e partilhado, que nos permite distinguir os diferentes

contextos de justiça (PaS: 16de). É essa gramática comum que permite a coincidência (vaga e

prévia, diz Honneth) entre a distinção de contextos sociais alcançada intuitivamente pelo

teórico e aquela mobilizada pelos afetados – sem o quê, a concepção de justiça alcançada

reconstrutivamente não poderia ser tomada como justificação normativa das concepções

empiricamente disponíveis de justiça. Como resultado, Miller apresenta três “modos de

relacionamento humano”: as comunidades solidárias, as associações instrumentais (no

mercado) e a cidadania jurídica (na esfera pública).

Como não é difícil perceber, Honneth argumenta precisamente segundo a linha

defendida em “Teoria da justiça como análise da sociedade”, em especial segundo os

princípios lá enumerados da normatividade, da imanência e da seletividade. O próximo passo

seria, logicamente, desvelar a dimensão crítica, de transcendência. Miller, entretanto, não

segue trilhando por esse caminho, e é a partir desse ponto que Honneth se distancia do seu

projeto. Isso ocorre porque Miller pretende instituir uma independência entre os três

princípios normativos de justiça (igualdade, mérito e necessidade), de um lado, e os três

contextos ou esferas de relações sociais empíricas às quais eles correspondem (esfera pública

política, mercado e comunidade solidária), de outro. Essa independência serviria para escapar

à circularidade de explicar um polo sempre por referência ao outro. Honneth, contudo, ao se

identificar como herdeiro da filosofia hegeliana, afirma que não precisa haver nem

independência, nem circularidade. Isso porque os princípios de justiça social só podem ser

obtidos a partir de uma análise das práticas normativas de instituições concebidas como

“éticas” (PaS: 17de; 127en), o que equivale a dizer que o princípio reconstrutivo é o mesmo,

tanto para (a) definir quais são os contextos de interação social que compõem a eticidade,

quanto para (b) identificar e formular as concepções normativas de justiça que subjazem a

cada contexto e funcionam como referência não só para descrevê-los, mas também para

criticá-los.

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355

O caminho trilhado por Miller ao procurar impedir essa interpenetração entre

prática social e norma moral implica, aos olhos de Honneth, um problema importante. Se

Miller não se dá por satisfeito com a reconstrução normativa das pressuposições de nossas

práticas de justificação de cada princípio em sua esfera correspondente, ele precisa aduzir

novos argumentos normativos de justificação, e não fica claro como ele poderia fazê-lo. Nas

palavras de Honneth:

Nesse sentido, Miller parece flutuar entre duas interpretações do seu próprio

procedimento, ora argumentando de maneira meramente imanente e histórica, ora

querendo inserir adicionalmente uma justificação normativa; por isso seu livro

permanece, em seu conjunto, indecidido quanto a esse ponto, isto é, quanto ao que

diz respeito à fundamentação de uma teoria da justiça como contrapeso aos

achados empíricos (PaS: 11de; 128en).

Acrescenta-se ainda o problema, conectado a isto, de que Miller não apresenta

uma justificação convincente de sua caracterização das sociedades liberais mediante distinção

entre as três esferas de interação. Apesar de plausível, essa pressuposição carece, no entanto,

do mesmo cuidado com que Miller trata da apropriação filosófica do material empírico. Se é

assim, questões fundamentais como o devir histórico dessa tripartição e as transformações

sofridas por ela ao longo do tempo acabam por permanecer fora do campo de visão. Sem uma

teoria social adequada e sem poder apoiar-se em uma filosofia da história, a tripartição das

esferas de interação social de Miller acaba ficando sem fundamento. Isso é particularmente

problemático porque a divisão das esferas está intimamente vinculada, como vimos, à

fundamentação dos próprios princípios de justiça. A justificação de sua legitimidade precisa

ser, em alguma medida, moral: a mera existência não é suficiente (PaS: 19de; 129en). Como

dito, Honneth procura resolver a questão da legitimidade da teoria ao fundamentar tanto a

concatenação dos dados concretos acerca da realidade social obtidos empiricamente quanto

sua crítica no caráter ético das instituições e esferas de interação social reconstruídas

normativamente – o que traz também as suas ambiguidades, visto que o próprio Honneth

oscila entre diferentes sentidos de eticidade, o que ficou claro na análise da introdução de O

direito da liberdade.

O que pode, portanto, ser extraído desse texto para clarificar o posicionamento

honnethiano sobre o vínculo entre filosofia normativa e análise social deixa-se resumir na

seguinte formulação: a única forma de evitar seja a introdução de critérios heterônomos na

crítica social empiricamente informada, seja o seu oposto, a mera reafirmação dos padrões de

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356

justificação já existentes, exige uma interconexão originária entre apreensão e concatenação

da realidade social, de um lado, e de outro a formulação das regras normativas que fundam a

crítica do existente. Isso torna-se possível na medida em que ambos os polos da questão têm

por base o mesmo princípio, que é a reconstrução das instituições e práticas sociais que

formam a eticidade – o que, por seu turno, pode ser levado a cabo apenas quando se

reconhece que todos os membros de uma sociedade (o teórico crítico inclusive) compartilham

em maior ou menor medida uma gramática moral comum, uma linguagem sem a qual as

próprias motivações morais das decisões e ações dos atores sociais comuns permanecem

opacas diante do olhar do teórico.

Cabe, por fim, destacar que, se o vínculo entre as dimensões de transcendência e

imanência que caracteriza a teoria crítica deve ser originário, isso não implica a necessidade

de que o próprio filósofo ou teórico crítico conduza pesquisas sociais empíricas – apesar de

essa ser a proposta do materialismo interdisciplinar horkheimeriano e, em certa medida, do

programa de pesquisas para o Instituto de Pesquisa Social formulado por Honneth quando

assumiu a sua direção, no início dos anos 2000.303

O teórico crítico pode acessar

indiretamente a realidade social, mediante a apropriação do trabalho de etnógrafos,

sociólogos, historiadores, psicólogos sociais etc. que não necessariamente apresentam

pretensões normativas. Acontece que a introdução por parte do teórico crítico da dimensão

transcendente à descrição do mundo social realizada pelos demais teóricos não deixa tal

descrição intacta. Se ambos os momentos – imanência e transcendência – não podem ser

pensados segundo uma separação estanque, como se fossem apenas justapostos na formulação

do teórico crítico, pode-se afirmar que a apropriação das teorias sociais disponíveis não

envolve propriamente um acréscimo do teórico. Com efeito, o procedimento de apropriação

de análises sociais consideradas não críticas implica uma seleção dos elementos analíticos que

apresentam interesse para a teoria crítica, o que deve ser avaliado com base nos requisitos

(vinculados à perspectiva da emancipação) para a reconstrução das práticas e instituições

sociais da eticidade. Em poucas palavras: se as ciências sociais descrevem determinados

aspectos da realidade, o papel da filosofia crítica consiste em de extrair daí o que pode ser

considerado a infraestrutura ética do mundo social e em indicar seus potenciais

emancipatórios não realizados. 303

Cf. Honneth (2001 e 2002) e Honneth & Hartmann (2010 [2004]).

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357

Desse modo, de acordo com a visão de Honneth, ao elaborar seu diagnóstico do

tempo, o teórico crítico procede a uma reconstrução da própria descrição da qual parece

partir. São os elementos constituivos desse diagnóstico, por sua vez, que permitem e

informam a perspectiva crítica, que não existe no vazio, antes do contato com a realidade.

Consequentemente, o método proposto por Honneth não equivale à reunificação de polos que

se encontram separados: trata-se, antes, da afirmação do caráter indissolúvel de dimensões do

procedimento crítico que apenas analiticamente podem ser pensadas de modo isolado.

*

É preciso destacar nessa discussão que, mesmo quando ainda não havia sido

elevada ao estatuto de conceito metodológico consciente e central da teoria de Honneth, a

ideia de reconstrução já se fazia presente – especialmente no sentido formulado pelo autor no

posfácio a Luta por reconhecimento, isto é: no sentido de procurar reconstruir aquelas normas

orientadoras da ação que não são explícitas, articuladas e organizadas formalmente, mas

transparecem apenas mediante um trabalho de desvelamento das atitudes, discursos, estruturas

emocionais e comportamentos práticos presentes no quotidiano dos atores sociais. É nessa

direção que deve ser compreendida a reconstrução biográfica que caracteriza a proposta de

uma metodologia intersubjetivista e processual para a realização de investigações empíricas

de teoria social feita por Honneth (et al.) no texto sobre a biografia latente, ainda no final dos

anos 1970. Na sua produção teórica posterior, se Honneth não procurou dar continuidade ao

método reconstrutivo da biografia latente, os mesmos objetivos foram perseguidos mediante a

apropriação das pesquisas sociais de uma série de vertentes conceituais – historiográficas,

sociológicas, psicanalíticas e etnográficas – bem como da sensibilidade não conceitual de

apreensão da realidade representada pela arte.

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Reconstruindo a passagem do reconhecimento à liberdade

Sofrimento e resistência

A passagem do modelo crítico da luta por reconhecimento para o da liberdade

social a que Honneth dá início com Sofrimento de indeterminação encontra seu fecho em O

direito da liberdade. Por um lado, se comparamos a arquitetônica das principais obras

monográficas do autor, Luta por reconhecimento e O direito da liberdade, o modo de

apresentação se mostra bastante similar. Ambos iniciam com a presentificação histórica de

uma noção central na obra de Hegel (luta por reconhecimento e liberdade social,

respectivamente), a qual é contraposta a versões em geral dominantes, porém insuficientes de

tais noções (luta por autoconservação, de um lado, e liberdades negativa e reflexiva, de

outro).304

Nesse momento inicial, Honneth argumenta em favor da superioridade (em termos

explicativos e normativos) da perspectiva intersubjetiva e conflituosa, de inspiração

hegeliana, acerca das lutas sociais por reconhecimento e das formas de institucionalização da

liberdade – desde que devidamente atualizada de acordo com as condições sociais e

filosóficas do presente. A essa reconstrução teórico-conceitual segue-se a análise

respectivamente das possibilidades de uma autorrealização individual bem-sucedida e da

efetivação social da vontade livre, bem como dos obstáculos que se antepõem, a cada vez, a

essas metas emancipatórias. Em ambos os casos, a reconstrução histórico-social sucede a

reconstrução teórico-conceitual.

Essa similaridade não deve nos impedir de notar que o modo de investigação de

um livro parece ser o inverso do outro. A escrita de Luta por reconhecimento foi motivada,

como uma análise de seus textos da década de 1980 mostra (cf. o Capítulo 1), pelo esforço

de compreender por que os atores sociais demonstram uma disposição para se engajar em

diferentes tipos de lutas sociais. Suas reações negativas aos sentimentos de injustiça e às

experiências de desrespeito são tidas como algo que pode revelar a violação de princípios

normativos implícitos que, do contrário, permaneceriam velados, invisíveis na esfera pública

304

Note-se que, ao contrário do que acontece em O direito da liberdade, Honneth não desenvolve em Luta por

reconhecimento consequências sociais negativas da fixação na concepção insuficiente – centrada no

autointeresse – de motivação dos conflitos sociais; e tampouco está presente uma consideração do papel

positivo que essa concepção poderia exercer, quando integrada de modo adequado, na compreensão da

realidade social. Esta parece ser uma consequência do fato de que Honneth procura se contrapôr de forma tão

intensa à tese da tecnocracia que marca os modelos de teoria crítica que lhe precedem, que a própria ideia de

ação estratégica, instrumental ou autointeressada sai decisivamente de cena.

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bem como para a teoria social (e, inclusive, para os próprios atores sociais). Honneth defende,

portanto, em seu livro de 1992 (cf. o Capítulo 2), que os conflitos sociais são colocados em

movimento por diferentes formas de desrespeito, que levam ao desvelamento (Erschliessung),

tanto pelo teórico quanto pelos atores sociais, da infraestrutura de reconhecimento que está na

base da sociedade. Assim, é a partir de uma violação, de uma negação, que é alcançado o

conceito positivo de reconhecimento. Para cada forma de desrespeito há, portanto, uma forma

correspondente de reconhecimento cuja violação impele os sujeitos a engajarem-se em uma

luta social. É precisamente essa luta, essa negatividade que fornece o ímpeto para um

alargamento das relações de reconhecimento e, ao mesmo tempo, produz novas – e mais

exigentes – expectativas de reconhecimento. Esse processo de aprendizagem pode ser

concebido como uma sucessão “dialética” de desrespeito, experiência de injustiça, luta por

reconhecimento, superação da luta, criação de novas expectativas de reconhecimento,

emergência de uma nova negação de reconhecimento que leva a uma nova experiência de

injustiça e a uma nova luta, e assim por diante. As lutas sociais, portanto, permitem não

apenas o desvelamento, mas também o desdobramento das expectativas de reconhecimento. O

sofrimento, então, é importante para a ação e, portanto, para o reconhecimento. Não há

reconhecimento antes ou sem desrespeito e sofrimento. Não há reconhecimento antes ou sem

uma luta por reconhecimento. E essa luta é de vida ou morte. O caminho para o

reconhecimento é, portanto, não apenas um processo conflituoso, mas também violento – o

qual pode levar à destruição mútua, mas também, dadas as condições sociais adequadas, a um

nível mais alto do desenvolvimento moral da sociedade mediante processos de

aprendizagem.305

A cristalização das relações de reconhecimento em figuras institucionais –

isto é, o momento em que um dado conflito alcança uma resolução (provisória) e a luta é

temporariamente suspensa – não parece tão importante para Honneth quanto a dinâmica

colocada em movimento no mundo pré-institucional do social.

305

Abordagens que consideram frutífero o vínculo entre sofrimento e motivação para a resistência podem ser

encontradas – não sem críticas ao projeto teórico de Honneth – em Basaure (2011b), Bernstein (2010), Foster

(1999), Iser (2008 e 2013) e Pilapil (2011 e 2013). V. d. Brink (2007) estabelece uma conexão entre o papel

dessa noção de interesse emancipatório nos escritos de Honneth com uma “ética da resistência” que ele

identifica na Minima moralia de Adorno. Apesar de, em sua réplica ao texto de v. d. Brink, Honneth recusar

essa interpretação, suas reflexões em “Uma fisiognomia da forma de vida capitalista: esboço da teoria social

de Adorno” parecerm oferecer elementos para corroborá-la (Honneth, 2007 [2005]).

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360

O modo de investigação em O direito da liberdade, por outro lado, reduz

decisivamente o papel da negatividade (cf. o Capítulo 5). Em lugar de um desvelamento

meticuloso da contraparte positiva de violações ocultas e sentimento latentes de injustiça,

como fez nos escritos que preparam o caminho para a teoria da luta por reconhecimento,

Honneth toma como ponto de partida, agora, o ideal da liberdade individual tal como ele

aparece articulada e explicitamente tanto na filosofia social e política quanto, em menor

medida, nos movimentos sociais modernos e contemporâneos. É como se Honneth abdicasse

de reconstruir a gramática profunda das lutas sociais por reconhecimento e passasse a centrar

esforços em reconstruir a história institucional na qual se cristalizam as concepções modernas

de liberdade. Mas qual é o critério utilizado para a escolha da liberdade como o ideal

normativo a ser reconstruído, e não da igualdade, por exemplo? Na introdução do livro,

Honneth afirma que os valores ou ideais normativos nos quais uma teoria da justiça deveria se

apoiar devem representar condições indispensáveis para a reprodução social sob as

circunstâncias atuais (RdF: 20de; 4en). A liberdade individual deve ser considerada o valor

moderno por excelência, então, porque é vital para a reprodução e estabilização das

sociedades contemporâneas, na medida em que apenas ela fornece uma mediação entre o

indivíduo e a ordem social (RdF: 36de; 15-6en).306

Esse foco na reprodução social e não na

autorrealização individual explica a abordagem limitada e assistemática das experiências

negativas dos atores sociais em O direito da liberdade. Apesar de certamente presentes no

livro, os obstáculos à emancipação (entendida como autorrealização) aparecem, no entanto,

não como fontes normativas para a luta social e as transformações históricas, mas antes como

desenvolvimentos sociais anômalos, isto é, como desvios de uma realização progressiva, não

necessariamente conflituosa da liberdade individual (tendo a concepção social de liberdade

como ideia regulativa). Dito de outro modo: a negatividade perde seu potencial histórica e

teoricamente produtivo, e passa a ser vista como uma interrupção anômala que apenas pode

levar o desenvolvimento histórico-social a um estado de estagnação ou mesmo regressão, e

não a um processo conflituoso e doloroso de aprendizado social.

306

Se essa é uma questão ainda em aberto no livro de 2011 (afinal, há momentos em que Honneth aponta que os

valores ou ideais a serem reconstruídos devem poder ser justificados racionalmente e ser considerados mais

avançados que os valores historicamente anteriores em termos de inclusão e generalização), os

desenvolvimentos posteriores ao livro indicam que o autor tomou o caminho do funcionalismo.

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O deslocamento teórico levado a cabo por Honneth nos vinte anos que separam

um livro do outro poder ser visto então como uma transmutação do questionamento do “Por

quê?” hermenêutico para o do “Para quê?” funcionalista acerca da infraestrutura moral da

sociedade. A pergunta de partida de Luta por reconhecimento – “Por que determinados

valores ou ideais normativos impelem os indivíduos e grupos a se engajarem em lutas

sociais?” – é substituída, em O direito da liberdade, pela seguinte: “Quais valores ou ideais

normativos são funcionais para a reprodução social não transtornada?”. Tomando em

consideração a própria concepção honnethiana do déficit sociológico da teoria crítica – isto é,

o insucesso em levar em conta adequadamente seja o caráter conflituoso, seja o caráter

normativo da integração social –, parece que O direito da liberdade sofre ao menos

parcialmente de uma deficiência similar. Afinal, em que pese o fato de que a normatividade

continue central para a abordagem de Honneth, a noção de transformações sociais que

acontecem como o resultado de conflitos e lutas sociais perde gradual mas decisivamente

espaço para uma concepção de reprodução social cujos mecanismos funcionam apesar das

anomalias sociais que acometem, como transtornos de funcionamento, primordialmente a

relação harmoniosa entre instituições ou esferas éticas. Essa tendência é reforçada com a

posterior adoção do vocabulário em torno das doenças ou enfermidades da sociedade, vista

como doravante como um organismo ontologicamente diferenciado dos indivíduos que a

compõem e analisável a partir da perspectiva do observador (cf. o Excurso 3).

Não é claro, então, se o livro de 2011 pode reconciliar essa visão com sua

contraparte necessária: o ponto de vista dos atores sociais concernidos. Ao tentar superar o

que foi por vezes visto como uma fragilidade da teoria da luta por reconhecimento, Honneth

parece ter debilitado uma dimensão decisiva de sua força: a capacidade de extrair da dinâmica

da luta, e não da estática do instituído, o material daquilo que podemos chamar de “o social”.

O diagnóstico de patologias sociais

Essa é uma maneira de interpretar a passagem do modelo crítico da luta por

reconhecimento para o da liberdade social ao longo do trajeto intelectual de Honneth. Até

aqui, procuramos sublinhar os motivos pelos quais esse caminho poder ser visto na chave de

uma perda em termos de potencial crítico da teoria honnethiana. De outra perspectiva,

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contudo, entram no campo de visão ganhos críticos cruciais do deslocamento teórico que leva

de Luta por reconhecimento a O direito da liberdade.307

Tendo apenas os escritos de Honneth dos anos 1990 em vista, não fica claro como

o sofrimento individual se traduz em uma espécie de resistência que pode ser coletivamente

articulada e resultar em reivindicações políticas de movimentos sociais;308

Honneth tampouco

fornece indícios explicativos que possam ajudar a entender por que é tão frequente que essa

tradução ocorra de modo distorcido ou simplesmente não aconteça. O autor foi amplamente

criticado por não ter lidado de forma satisfatória com estas questões. Assim, uma série de

autores ressaltou o que parece ser a maior fragilidade do modelo crítico honnethiano da luta

por reconhecimento: o menoscabo das condições estruturais de poder e dominação

característicos das sociedades capitalistas contemporâneas que impedem os atores sociais de

articular suas experiências negativas e de resistir ao desrespeito injustificado. De certa forma

preso a uma concepção hegeliana do movimento dialético, que enfatiza o lugar da

reconciliação das contradições, Honneth não se mostrou em condições de incluir em sua

abordagem os travamentos estruturais e sistemáticos que impedem o transcorrer paulatino

(ainda que conflituoso e não linear) dos processos sociais de aprendizagem, concebidos como

a realização de uma racionalidade social latente na modernidade. Essa crítica a Honneth

assumiu diferentes formas na pena de seus comentadores, como foi sugerido na Introdução

desta tese. Ela foi concebida muitas vezes como a reprovação de uma visão essencialmente

positiva da ideia de reconhecimento e mesmo da luta por reconhecimento, que não atenta para

fenômenos de opressão inscritos no ordenamento social (déficit de negatividade), como falta

de análises focadas nas instituições (déficit institucional), como ausência de uma teoria do

poder e de análises de problemas como a submissão e o autoritarismo (déficit político), ou

como negligência dos fenômenos da exploração e da desigualdade social (déficit econômico).

O resultado dessa perspectiva foi enunciado também, finalmente, como um déficit

normativo.309

307

Nosso capítulo sobre Honneth em The Palgrave Handbook of Critical Theory apenas discute em detalhes as

perdas, e não os ganhos representados por esse percurso (cf. Teixeira, 2016).

308 Exatamente este é o ponto criticados por Basaure (2011b), que sugere a categoria de “reconhecimento

político” para sar conta dessa deficiência.

309 Enquanto boa parte dessas críticas levanta importantes questões a serem enfrentadas por Honneth, uma parte

delas é fruto, por certo, de uma profunda incompreensão do modelo crítico da luta por reconhecimento.

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A obra de Honneth posterior a Luta por reconhecimento é, então, em grande

medida fruto de sua tentativa de solucionar essas deficiências de seu modelo crítico apontadas

por seus interlocutores. Já em Redistribuição ou reconhecimento? (cf. o Capítulo 3),

Honneth se vê compelido a tratar de questões de distribuição e de desigualdade econômica,

chegando à concepção do sistema capitalista como uma ordem de reconhecimento (o que não

representa, entretanto, uma ruptura significativa com relação à posição do livro de 1992). A

principal mudança apresentada nesse livro, entretanto, diz respeito ao caráter mais histórico –

e não antropológico – que Honneth confere à sua teoria das dimensões do reconhecimento.

Esse deslocamento lhe permite, a princípio, sanar o déficit histórico do modelo crítico do

reconhecimento – mas não os demais.

Com o deslocamento teórico representado pela publicação de Sofrimento de

indeterminação (cf. o Capítulo 4) e do ensaio sobre “uma patologia social da razão” (cf. o

Excurso 2), por sua vez, pelos menos duas ideias fundamentais entram em cena. Em primeiro

lugar, temos no livro de 2001 a noção de que as relações intersubjetivas entre os atores sociais

assumem formas mais ou menos estabilizadas, e nessa medida institucionalizadas, que

configuram as estruturas relacionais da eticidade. Com isso, abre-se a possibilidade de

compreender formas sistemáticas de dominação, bem como de refletir sobre as arenas nas

quais podem surgir e se articular movimentos sociais de resistência coletiva (tarefa que,

entretanto, Honneth não leva a cabo no livro). Em segundo lugar, no ensaio de 2004, a noção

de patologias sociais perde o caráter relativamente vago de sua formulação em “patologias do

social” (cf. o Excurso 1), texto escrito dez anos antes no qual elas aparecem como todo

fenômeno negativo que é objeto de crítica da filosofia social, concebida de modo amplo. No

texto de 2004, as patologias sociais recebem uma caracterização mais determinada como

patologias da razão, precisamente no sentido de que representam bloqueios e travamentos

daquele processo dialético de aprendizagem e realização da racionalidade disponível no

mundo social. Isso torna-se possível a partir do vínculo constitutivo que Honneth estabelece

nesse momento entre a distorção da racionalidade social, a obstrução das possibilidades de

autorrealização, a experiência dolorosa de desrespeito e o ímpeto para a libertação do

sofrimento. Essa pode ser condensada na noção de interesse emancipatório, desenvolvida

inicialmente por Habermas em Conhecimento e interesse. Honneth, portanto, reforça aqui a

ideia de que as patologias sociais são processos que impedem que os indivíduos persigam

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livremente sua concepção de vida boa, acrescentando que essa perda de perspectivas para a

autorrealização intersubjetiva é necessariamente acompanhada de algum tipo de sofrimento

social (PdV: 35de; 25en). Honneth atribui a Freud a noção, apropriada pela teoria crítica, de

que as patologias sociais devem expressar-se sempre em um tipo de sofrimento que mantém

vivo o interesse no poder emancipatório da razão (PdV: 49de; 36en). Essa experiência é

dolorosa porque, para Honneth, os seres humanos não podem permanecer indiferentes diante

de uma restrição injustificada de suas capacidades racionais.

Assim, o desrespeito é responsável, em Luta por reconhecimento, por uma

experiência de sofrimento na medida em que prejudica as condições necessárias para a

autorrealização individual, e desse modo impulsiona, subsequentemente, uma luta social por

reconhecimento que, de modo conflituoso, pode conduzir a processos de aprendizagem e de

renovação de expectativas normativas. Já nos escritos da década de 2000, por outro lado, a

obstrução das possibilidades de autorrealização e o consequente sofrimento são causados por

uma distorção de racionalidade que é precisamente aquilo que poderia fornecer aos atores

sociais os recursos reflexivos para apreender esse sofrimento e articular a busca por meios

para superar a suas causas. Isto é: o que causa sofrimento são fenômenos caracterizados pela

ausência de vitalidade, motivação e atividade: apatia, indeterminação, esgotamento, solidão e

abatimento, etc. Diferentemente dos sentimentos de sofrimento que resultam de atos de

desrespeito, o sofrimento de indeterminidade não é em geral capaz de motivar os atores social

para a ação e a resistência. Ao contrário: ele pode comprometer (mas não eliminar, diga-se de

passagem310

) a capacidade de reação prática dos atores sociais. Podemos dizer, então, em

resumo, que nesse novo contexto, com uma noção refinada de patologias sociais, o

desrespeito não é patológico: patológico é o impedimento estrutural da reação ao desrespeito

sofrido – por mais inconsciente, informal, implícita, não articulada ou individual que seja essa

reação.

As implicações desse deslocamento são profundas. O objetivo das teorias e

práticas de orientação emancipatória não reside, segundo essa perspectiva, na eliminação do

sofrimento a ser alcançada em um mundo redimido, livre de qualquer forma de desrespeito:

310

Se Honneth não houvesse acrescentado a ressalva de que a racionalidade social é assim apenas distorcida, e

não eliminada, seu modelo crítico estaria no entanto fadado às mesmas aporias que caracterizam parte da

teoria crítica da primeira geração.

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365

trata-se, antes, de reconstruir (teórica e praticamente) a racionalidade social que se encontra

distorcida, fragmentária e velada no mundo da vida dos sujeitos, o que contribuiria para

destravar a expressão prática do conceito realista de interesse emancipatório e poderia

conduzir, assim, a um processo de aprendizagem na direção do desenvolvimento de condições

cada vez mais democráticas e criativas de resistência e luta. O sofrimento é um componente

decisivo, inevitável – e, possivelmente, produtivo – da vida social. A meta que deve estar no

horizonte da teoria crítica não consiste na eliminação do sofrimento, mas antes no objetivo de

que estejam disponíveis para os atores sociais concernidos os meios para lidar com o

sofrimento de forma cada vez mais frutífera.

Esse deslocamento é crucial, também, porque possibilita que se formule um

diagnóstico do tempo presente, algo que é relegado a um plano secundário no modelo crítico

do reconhecimento.311

É nessa direção que se pode compreender, ademais, a promissora

noção de paradoxos que Honneth desenvolve no mesmo período, mas que perde importância

pouco tempo depois. De início, Honneth propõe que a ideia de paradoxos substitua o

vocabulário hegelo-marxista centrado na ideia de contradição.312

No sentido que procuramos

por em relevo aqui, contudo, a ideia de paradoxos depende da de contradição: o paradoxo é

um travamento do processo dialético posto em movimento pela contradição. Assim, se o

paradoxo é a própria negação da contradição, ele não faz sentido sem ela – tanto que Honneth

passa a falar em “contradição paradoxal”.313

Por isso, contra a interpretação de Honneth de

sua própria obra, esta tese defende que seu modelo crítico tem um componente dialético que,

à sua maneira, é central e decisivo – mesmo quando Honneth diagnostica a obstrução do

processo dialético na realidade social.

Quando o caminho descrito então se completa, isto é, com O direito da liberdade,

acabam-se perdendo, no entanto, os aspectos mais fecundos do período de transição

representado pelos escritos da década de 2000: as patologias sociais perdem espaço, na

311

Em termos de diagnóstico, aliás, o percurso de Honneth faz sentido: a importância de uma noção realista de

interesse emancipatório é enfatizada nos anos 1980 e início dos 1990, tendo em vista a efervescência política

dos anos 1960 e 1970; com a posterior apatia e hegemonia neoliberal, a partir da década de 1990 até os anos

2000, a possibilidade de que o sofrimento ou o desrespeito, as patologias ou injustiças impulsionem

movimentos de resistência ativa e coletiva parece minguar drasticamente.

312 Cf. Honneth (2001 e 2002).

313 Cf. Honneth & Hartmann (2010 [2004]).

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formulação do diagnóstico de tempo, para a noção de desenvolvimentos sociais anômalos,

cujo caráter essencialmente contingente e sem maiores consequências para os atores sociais

impede que sejam vistos como mais que desvios. Eles não contêm a brecha emancipatória que

caracteriza tanto a contradição quanto o paradoxo (de forma bloqueada, porém criticável – e,

portanto, passível praticamente de se colocar em movimento). Rompe-se aqui, então, a

vinculação fundamental que Honneth havia defendido entre fenômenos negativos que

comprometem a autorrealização individual (seja a experiência de desrespeito, seja o

sentimento de solidão e abatimento), de um lado, e de outro o sofrimento que deles decorrem;

rompe-se, também, a conexão entre sofrimento individual e o surgimento do ímpeto, nos

atores sociais, para superá-lo. Com essa ruptura – que não é fruto de diagnóstico (como no

caso das patologias e dos paradoxos), mas de uma reorientação da perspectiva teórica em

direção ao ponto de vista do observador externo –, a ideia de interesse emancipatório perde o

seu poder explicativo e, simultaneamente, o poder de fundamentar normativamente teorias e

práticas críticas.

O sentido terapêutico ou emancipatório da reconstrução

A ideia de reconstrução pode oferecer um instrumento valioso para revigorar a

dimensão emancipatória do projeto crítico de Honneth. Uma reavaliação do conceito de

biografia latente pode ajudar a iluminar esta questão.314

Como visto (item 1.2.2.), tal

conceito foi cunhado por Honneth em pesquisa realizada junto a Birgit Mahnkopf e Rainer

Paris em 1979 a respeito dos potenciais críticos presentes na autocompreensão biográfica da

juventude trabalhadora alemã e foi concebido como um instrumento teórico que fosse

apropriado para uma abordagem reconstrutiva e crítica das teorias de classes e da

socialização. A intenção principal daquele estudo era encontrar um instrumento interpretativo

314

Isso significa reconhecer que, apesar de Honneth ter dedicado a introdução de O direito da liberdade para

uma apresentação da reconstrução normativa como método da teoria crítica que permitiria estabelecer a ponte

entre teoria da justiça e análise social, o livro de 2011 não representa necessariamente a melhor

implementação prática de tal método na obra de Honneth.

O propósito aqui não é, entretanto, recomendar um retorno aos escritos mais antigos de Honneth e o

abandono de qualquer desenvolvimento a partir de meados da década de 1980. Minha intenção é muito mais

modesta (e plausível) na medida em que se limita a sugerir que alguns dos impasses da obra de Honneth

podem se beneficiar das respostas ao debate conceitual entre teoria da ação e teoria sistêmica que o autor

mesmo formulou em seus escritos de juventude.

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367

capaz de identificar aqueles potenciais críticos sem, de um lado, tomar a autocompreensão dos

jovens trabalhadores de forma acrítica, como se ela correspondesse imediatamente e

completamente à sua realidade profunda, mas também evitando, de outro lado, atribuir essa

realidade profunda a fatores heterônomos, externos ao atores sociais mesmos. A ideia de

biografia latente é desenvolvida, então, precisamente para superar a aporia entre o relativismo

de um método estritamente hermenêutico e o objetivismo das teorias estrutural-funcionalistas

das classes sociais. O pressuposto básico, aqui, é o de que formas de vida cultural específicas

de classe conformam um contexto simbólico que delineia o repertório de modos possíveis de

afirmação da identidade pessoal. Transmitido mediante a cultura de classe, esse repertório

silenciosamente ajuda a conformar as histórias de vida dos sujeitos, suas atitudes e decisões

biograficamente significativas. Modos de autocompreensão pessoal são, assim, sempre

levadas a cabo individualmente, mas são também estruturadas no interior do contexto

simbólico circunscrito pela cultura de classe (ZlB: 931-2). Isso apenas vem à tona, contudo,

no próprio processo de reconstrução biográfica realizado pelos atores sociais mesmos em

diálogo com um observador – nesse caso, o teórico social – que lhes pede que recontem

narrativamente suas histórias de vida, suas lutas e desejos. “Uma teoria crítica da sociedade

desdobra sua força normativa no presente”, Honneth afirma posteriormente, “na medida em

que é capaz de articular de modo advocatório tais experiências” (UoA: 304de; 264en). A

crítica apenas pode se transformar em uma práxis social, contudo, se os atores sociais dela

participam: “O conteúdo de crítica social dos padrões culturais específicos de classe que

adentram as autocompreensões biográficas permanece latente enquanto os sujeitos não o

transformarem, de modo autorreflexivo, na medida de sua própria ação” (ZlB: 938).

Latente, aqui, portanto significa mais do que simplesmente “oculto” ou “velado”.

O potencial crítico da autocompreensão dos atores sociais á velado porque não é explícito e

precisa, portanto, ser desvelado, isto é, tornado visível em suas camadas profundas (UoA:

136en). Mas esse conteúdo crítico também é latente no sentido de que ele pode ser

potencialmente ativado, desdobrado e posto em movimento mediante uma práxis social

dialógica. Trata-se, é preciso ressaltar, de um processo aberto, em disputa, sem um desfecho

pré-determinado. A práxis reconstrutiva tem, assim, uma dimensão criativa que não pode ser

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368

negligenciada.315

O processo reconstrtutivo não recompõe algo (as expectativas de

reconhecimento, a infraestrutural moral da sociedade) tal como existiam antes, antes de serem

destruídas pelo desrespeito, isto é: como se fosse apenas uma questão de trazer à luz algo que

já está pronto e acabado, mas que foi ocultado ou esquecido sob uma série de camadas de

relações sociais. Ao contrário: o processo posto em movimento pela reconstrução é

potencialmente terapêutico ou emancipatório precisamente porque, ao rearranjar os elementos

de uma estrutura de expectativas que foi destruída pelo desrespeito, ela não deixa intocada

essa estrutura, mas a reconfigura de maneiras inéditas e imprevisíveis, sempre abertas à

disputa e talhadas no devir das lutas sociais. Contra interpretações que consideram o recurso à

ideia de terapia algo conservador, modelos reconstrutivos de teoria crítica inspirados na

psicanálise316

podem mostrar que a intenção da terapia não é tornar funcional o indivíduo que,

acometido por uma patologia, sofre, mantendo assim o mundo social como está. O propósito

da terapia é, ao contrário, construir a uma linguagem compartilhada que permita a articulação

pública da patologia e, a partir disso, resistir ativamente a ela.317

A reconstrução pode ser

terapêutica, então, não porque ela de alguma forma desfaz o dano causado pelo desrespeito,

pela violência e pelo sofrimento decorrente, mas antes porque ela contribui para o trabalho

reflexivo que permite a articulação do sofrimento e que é distorcido pelas patologias sociais.

A reconstrução pode contribuir para o restabelecimento do vínculo entre sofrimento e

resistência.

Uma vez que não se trata de um procedimento estático, ademais, mas sim algo

que acontece no decorrer do tempo e se renova continuamente, a noção de crítica

reconstrutiva permite um interplay concreto entre diferentes perspectivas na forma de uma

troca interativa onde ambos, observador e participante, buscam uma compreensão mais

profunda e complexa das contradições da realidade social, seus potenciais emancipatórios, e

315

Uma tentativa bastante interessante de identificar o lugar da criatividade na teoria da luta por reconhecimento

a partir de uma leitura alternativa da psicologia social de Mead pode ser encontrada em Markell (2007).

Markell aponta para a origem intersubjetiva da criatividade, em lugar de localizá-la em uma potencialidade

misteriosa do “Eu” como força pré-social.

316 Cf. a interpretação de Celikates (2009) e Repa (2008a) acerca do modelo reconstrutivo de Habermas em

Conhecimento e interesse

317 Cf. Pilapil (2011) e Ventura (2011). Pilapil propõe uma aproximação entre o modelo de Honneth e a proposta

de Iris Youg de incluir uma linguagem narrativa nos processos de justificação, de modo a dar uma expressão

pública ao sofrimento individual (cf. Young, 1996 e 2000). Para o autor, as linguagens normativa (teórica) e

narrativa (pré-teórica) se informam reciprocamente, sem primazia de uma sobre a outra.

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seu próprio papel prático nesse contexto.318

Aqui, deve-se ter em mente que o teórico é

sempre, também, um participante (na medida em que está engajado no tecido das relações

sociais que procura entender), e que o participante é sempre, também, um observador (na

medida que articula narrativas para suas experiências de vida). O diálogo ou a conversa entre

eles assume uma forma mediada no entrelaçamento da teoria social e da filosofia normativa

com a historiografia, a sociologia e a etnografia.319

Apenas mediante a revitalização e ulterior

desenvolvimento dessa colaboração a teoria crítica pode fazer justiça às suas intenções

práticas.

318

O problema é bem colocado, mesmo se não necessariamente bem resolvido, por Celikates (2009) e Cooke

(2006).

319 A defesa do caráter imprescindível dessa cooperação entre teoria filosófica e pesquisas de cunho empírico é

uma constante nos escritos de Olivier Voirol (cf., por exemplo, Voirol 2007, 2012a e 2012b).

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