Paulo Abrantes(Artigo)

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CDD: 128.2 T. Nagel e os Limites de um Reducionismo Fisicalista (Uma introdução ao artigo “What is it like to be a bat?”) PAULO ABRANTES Departamento de Filosofia Universidade de Brasília BRASÍLIA, DF [email protected] A primeira frase do artigo de T. Nagel, ‘Como é ser um morcego?’, ex- pressa a perplexidade diante do que Chalmers (1996, 1997) classificou como o “problema difícil” (the hard problem) em filosofia da mente: o problema da cons- ciência. O problema torna-se ainda mais “difícil” quando se rejeita o dualismo de substâncias e se adota uma postura inequivocamente fisicalista diante do pro- blema mente-corpo. 1 Como podem existir propriedades mentais em um mundo caracterizado essencialmente por propriedades físicas? Essa questão é especial- mente dramática no que tange à consciência. E torna-se incontornável sobretudo para filósofos que defendem ser a consciência a marca distintiva do mental, dei- xando para trás toda uma tradição que enfatizou a intencionalidade em detri- mento da consciência. 2 As dificuldades do trabalho filosófico frente a esse problema começam mesmo antes: quando se constata que o termo ‘consciência’ é empregado em vá- 1 Para uma discussão das diversas modalidades de naturalismo em filosofia da mente e das suas relações com modalidades de fisicalismo, ver Abrantes, 2004b. 2 Polger (2004) é um exemplo dessa tendência na atualidade. É sugestivo compará-la com o modo como Paul Churchland (1991, p. 615) descreve a percepção dos filósofos da mente no início dos anos 1980. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 15, n. 1, p. 223-244, jan.-jun. 2005.

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Nagel e os Limites de um Reducionismo Fisicalista

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  • CDD: 128.2

    T. Nagel e os Limites de um Reducionismo Fisicalista (Uma introduo ao artigo What is it like to be a bat?)

    PAULO ABRANTES Departamento de Filosofia Universidade de Braslia BRASLIA, DF

    [email protected]

    A primeira frase do artigo de T. Nagel, Como ser um morcego?, ex-

    pressa a perplexidade diante do que Chalmers (1996, 1997) classificou como o problema difcil (the hard problem) em filosofia da mente: o problema da cons-cincia.

    O problema torna-se ainda mais difcil quando se rejeita o dualismo de substncias e se adota uma postura inequivocamente fisicalista diante do pro-blema mente-corpo.1 Como podem existir propriedades mentais em um mundo caracterizado essencialmente por propriedades fsicas? Essa questo especial-mente dramtica no que tange conscincia. E torna-se incontornvel sobretudo para filsofos que defendem ser a conscincia a marca distintiva do mental, dei-xando para trs toda uma tradio que enfatizou a intencionalidade em detri-mento da conscincia.2

    As dificuldades do trabalho filosfico frente a esse problema comeam mesmo antes: quando se constata que o termo conscincia empregado em v-

    1 Para uma discusso das diversas modalidades de naturalismo em filosofia da mente e

    das suas relaes com modalidades de fisicalismo, ver Abrantes, 2004b. 2 Polger (2004) um exemplo dessa tendncia na atualidade. sugestivo compar-la

    com o modo como Paul Churchland (1991, p. 615) descreve a percepo dos filsofos da mente no incio dos anos 1980.

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    rios sentidos, tanto na linguagem cotidiana quanto nas discusses dos especialis-tas. Seguem alguns exemplos dessa polissemia.

    Estar consciente associado, comumente, a estar desperto: quando uma pessoa dorme ou est em coma, ou ainda quando est sob o efeito de anes-tsicos, diz-se que no est consciente. tambm comum interpretar-se estar consciente de algo por estar ciente de algo, por conhecer algo. A conscincia tambm , por vezes, entendida como a habilidade para focalizar a ateno e para controlar voluntariamente o comportamento (quando nos comportamos automa-ticamente, no o fazemos conscientemente).

    Alm desses sentidos, o termo conscincia empregado para referir-se capacidade de introspeco e de rastrear os prprios estados mentais. A cons-cincia pode, nesse contexto, envolver a capacidade para instanciar estados meta-psicolgicos: estados mentais acerca de outros estados mentais. A conscincia corresponderia, ento, a um estado de ordem mais elevada, e seu papel seria o de integrar a multiplicidade de sensaes, bem como outros tipos de estados mentais (emoes, crenas, desejos etc.).

    Nas discusses contemporneas em filosofia da mente, conscincia no entendida primordialmente nesses sentidos, mas sim associada experincia fe-nomnica de um sujeito. Essa experincia, em especial as qualidades (qualia) asso-ciadas s sensaes, configuram o problema difcil para os filsofos que tentam ancor-la no domnio fsico.

    O termo fenmeno usado em filosofia da mente com um significado tcnico: aquilo que nos aparece, ou aquilo que est presente mente quando ns exercitamos os sentidos (Guttenplan, 1995, p. 471).3 Fenomnico possui, nesse contexto, um carter essencialmente subjetivo, vinculado ao exerccio dos nossos sentidos.4 A propriedade que um fenmeno tem em nossa experincia

    3 Todas as tradues neste artigo so livres, feitas pelo autor. 4 importante distinguir este significado de fenmeno do significado, bastante co-

    mum, de fato, ou seja, de algo objetivo, fora de ns (que podemos, eventualmente, ob-servar de um ponto de vista de terceira pessoa).

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    seu quale; em outros termos, qualia so as qualidades fenomnicas, associadas a certos tipos de estados mentais, em especial s sensaes.

    Este sentido de conscincia no deve ser confundido, tampouco, com o que freqentemente se denomina auto-conscincia, entendida como a posse do conceito de eu (self). Por exemplo, uma criana recm-nascida (ou um animal) podem ter conscincia fenomnica sem ter tambm auto-conscincia.

    O artigo de Nagel (1991) tornou-se o ponto de partida das discusses contemporneas sobre conscincia em filosofia da mente, por ter introduzido a expresso what is it like to be X que traduzo por como ser X para referir-se experincia de um indivduo (X), possuidor de uma estrutura cognitiva-perceptual particular e, portanto, de uma conscincia fenomnica tambm particular. Nessa expresso, a varivel X pode ser substituda por um sujeito um de ns, um morcego (como prefere Nagel), ou um indivduo de outra espcie biolgica , capaz de ter estados mentais conscientes, que cons-tituem um ponto de vista diante do mundo. A subjetividade do mental con-trasta com a objetividade do fsico esta objetividade resulta, justamente, da tentativa de se eliminar tudo o que seja relativo a um particular ponto de vista, a uma particular conscincia. O como ser... sempre relativo a um sujeito: No h aspectos ou aparncias em um mundo em que no existem sujeitos capazes de ter experincias (Kim, 1996, p.162).

    A locuo what is it like to be... , portanto, usada por Nagel para ca-racterizar o complexo de experincias de um sujeito, associadas aos seus estados mentais (usualmente suas sensaes): ao ver a cor de um tomate, ao sentir uma dor, ao respirar o aroma de um vinho, ao ouvir o som de um obo etc. A expe-rincia que tenho ao ver um tomate maduro possui um quale distinto da minha experincia ao ver um tomate verde.5

    5 Nagel no emprega o termo quale, ou seu plural, qualia, embora sejam de uso

    muito comum na literatura sobre conscincia em filosofia da mente. Ele usa, entretanto, expresses equivalentes, como qualidades experienciais (Nagel, 2002, p.6) para referir-se a um what is it like to be....

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    Esses estados mentais caracterizam-se por uma qualidade que os distin-gue de outros estados mentais. H uma grande controvrsia a respeito de que tipos de estados mentais, alm das sensaes, possuiriam qualia. certo que esta-dos mentais como alegria, inveja, dio etc., tambm tm propriedades fenom-nicas. Mas no com base em tais qualidades que esses estados so classificados enquanto tais, enquanto determinados tipos de estados mentais.

    O mesmo ocorre com estados mentais como crenas, que no parecem ter uma caracterstica qualitativa particular a elas associada (que permita, por exemplo, distinguir crenas de outras atitudes proposicionais como desejos, bem como de outros tipos de estados mentais). No obstante, alguns filsofos so da opinio que mesmo estados intencionais (como as atitudes proposicionais) teriam qualia.6 Mas essa posio contestvel.

    Considere o caso de crenas inativas na memria, que a pessoa em um dado momento no est ciente de ter (crenas disposicionais). Tais crenas no tm, obviamente, nada de qualitativo enquanto a pessoa no as ativa. Mas mesmo no caso de crenas ativas, pode-se questionar se tm algo de fenomnico: um como--ter a crena, por exemplo, que Braslia a capital do Brasil. Se por-ventura um quale est associado a esta crena, no parece essencial a ela e, por-tanto, no com base nessa eventual propriedade fenomnica que identificamos a crena, mas sim com base no seu contedo (a proposio que figura entre aspas, no exemplo), e com base em uma certa atitude frente a esse contedo (de crer, no caso, e no de temer ou outras atitudes). No caso das sensaes, os qualia so essenciais para a sua tipificao.

    No seu artigo clssico, Nagel associa a experincia fenomnica dos mor-cegos a um aparato sensorial radicalmente distinto do nosso. No podemos nem mesmo imaginar como ser um morcego, pois nossa imaginao est circuns-crita s experincias proporcionadas por nosso aparato perceptual espcie-espe-cfico.

    6 o caso de Block, 1995, p. 514. Ver Braddon-Mitchell & Jackson (1996, p. 136-

    141).

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    Para alm dessa limitao, nenhuma teoria neurofisiolgica a respeito dos morcegos, por mais detalhada que seja, nos fornecer uma idia da expe-rincia de ser um morcego. As descries cientficas, como as feitas no campo da neurofisiologia, adotam o ponto de vista de terceira pessoa e, por almejarem uma objetividade, descartam os aspectos subjetivos de qualquer forma de experincia. Em princpio, seres com diferentes sistemas perceptuais poderiam chegar mes-ma descrio objetiva de um objeto ou processo (externo ou interno, como um processo neurofisiolgico) adotando, para isso, um ponto de vista de terceira pes-soa, e eliminando dessas descries as suas respectivas experincias, de primeira pessoa, desse objeto ou processo.

    Mesmo que possamos avanar no campo cientfico, permaneceriam ques-tes filosficas como a seguinte: supondo-se que a neurofisiologia descubra vrias correlaes entre qualia e estados cerebrais, por que se do essas e no outras corre-laes?

    Mesmo que respondssemos a este problema, continuaramos sem com-preender as razes pelas quais existe a conscincia em um mundo fsico. Pode-mos recolocar essa perplexidade do fisicalista em termos nagelianos: como uma propriedade-Nagel (Polger, 2004, p. xix) um como--ser... , pode existir no mbito de propriedades fundamentalmente fsicas, e como se insere nesse mbito? Uma abordagem cientfica da conscincia no poderia resolver tais problemas filo-sficos: difcil ver como a descoberta dos mecanismos neurais da conscincia, por mais detalhado que seja o nosso conhecimento de tais mecanismos, possa contribuir qualquer coisa para dissolver o mistrio do carter fenomnico da conscincia (Kim, 1996, p. 177).

    Nagel caracteriza o fisicalismo nos seguintes termos: estados mentais so estados do corpo; eventos mentais so eventos fsicos (Nagel, 1991, p. 426). O fisicalismo caracterizado aqui em sua modalidade forte: a teoria da identidade de tipos.7 Segundo essa teoria, tipos mentais so tipos fsicos ou, equivalente-

    7 Estou aqui desconsiderando a possibilidade de que Nagel esteja referindo-se aqui a

    uma identidade de particulares/de casos (token identities), inclusive porque h dvidas de que esta seja, de fato, uma posio fisicalista. Ver Kim, 1996, p. 61.

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    mente, propriedades mentais so propriedades fsicas. No nada intuitivo acei-tar essa tese no caso dos qualia: no entendemos como tais propriedades mentais possam ser idnticas a propriedades fsicas.

    Diante do problema filosfico colocado pela conscincia fenomnica, o fisicalista tem duas opes: negar a existncia dos qualia consider-lo, portanto, um pseudo-problema , ou tentar acomodar tais propriedades no seu quadro de mundo.

    Para os chamados niilistas de qualia, essas supostas propriedades seriam, na verdade, meras fices filosficas, cujo fim ser o mesmo de fices como o flogstico e o calrico. Os defensores dessa posio extrema partem das proprie-dades tipicamente associadas aos qualia infalibilidade e acessibilidade primeira pessoa; incorrigibilidade; inacessibilidade terceira pessoa; carter intrnseco etc. , para defender que so caractersticas obscuras, incoerentes e que no teriam, por conseguinte, qualquer papel a desempenhar na nossa vida mental.8 A soluo de negar a existncia dos qualia considerada, contudo, quixotesca pela maioria dos filsofos da mente.

    Para seguir a via da acomodao da conscincia a um quadro fisicalista do mundo, pode-se tentar articular alguma modalidade no-redutiva de fisica-lismo. A relao de supervenincia9 jogou um papel importante nessa direo: em vez de se dizer que a conscincia idntica a propriedades fsicas uma posio fortemente redutiva , pode-se defender que ela supervm a essas propriedades.10

    8 Uma posio menos extremada seria a de se aceitar a existncia dos qualia, mas dado o seu carter intrnseco, subjetivo, argumentar que no teriam implicaes observveis. Por conseguinte, os qualia no desempenhariam qualquer papel em uma cincia como a psicologia, pois os enunciados a seu respeito no seriam testveis. Eventualmente, os aspectos relacionais e estruturais ligados aos qualia como a eventual habilidade dos su-jeitos em discriminar diferentes qualia e classific-los , poderiam ter implicaes compor-tamentais, logo observveis.

    9 Uma formulao da relao da supervenincia do mental ao fsico seria: indiscer-nibilidade fisica implica em indiscernibilidade psicolgica; ou, equivalentemente, nenhuma diferena mental sem diferena fsica (Kim, 1996, p.10).

    10 Uma outra possibilidade seria dizer que a conscincia supervm organizao fun-cional, posio defendida por Chalmers (1996, cap. 7). Negar a supervenincia ao fsico

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    O funcionalismo, segundo os seus primeiros articuladores, abriria cami-nho para um fisicalismo no-redutivo. As propriedades mentais so consideradas propriedades funcionais, e estas supervm s propriedades fsicas, uma das condi-es de um fisicalismo mnimo (Kim, 1996, p. 10). O funcionalismo afirmou-se em oposio tanto s teses fortemente reducionistas da teoria da identidade de tipos quanto s do behaviorismo filosfico, assimilando certas intuies dessas duas ltimas abordagens para o problema mente-corpo, ao mesmo tempo que tentou responder s objees feitas a estas abordagens. O funcionalismo carac-teriza-se pela idia de que possvel fazer abstrao das particularidades asso-ciadas a uma particular realizao material (fsica/biolgica) dos estados mentais. O que importaria na tipificao dos estados mentais seria a funo que desem-penham em uma dada economia cognitiva.

    Desse modo, o funcionalismo pretendia afastar-se de posturas substan-cialistas seja de um dualismo de substncias, seja de um monismo materialista como o que prope a teoria da identidade de tipos. A questo da natureza do mental deveria ser colocada em um nvel abstrato: um sistema possui mentalidade se tiver o tipo de organizao funcional requerida.11 Essa posio aponta, como veremos, para um dualismo de propriedades.

    O funcionalismo considera que a organizao requerida um conjunto de relaes entre entradas, sadas (incluindo respostas comportamentais) e esta-dos internos. A mltipla realizabilidade do mental segue-se da: a mesma organi-zao funcional, a mesma funo, pode ser implementada em dispositivos com diferentes caractersticas fsicas. Todos esses dispositivos deveriam ser isomorfos funcionais para poderem instanciar os mesmos estados mentais.

    Filsofos de uma orientao anti-fisicalista costumam apelar para expe-rimentos de pensamento no sentido de mostrar que o funcionalismo no deixa

    implica em negar a supervenincia organizao funcional. Mas consistente se afirmar a supervenincia ao fsico e se negar a supervenincia organizao funcional (Ver Kim, 1996, p. 170, 182 nota 23; Braddon-Mitchell & Jackson, 1996, p.126-7).

    11 Uso aqui o termo 'mentalidade' para no incorrer num substancialismo, a que pode remeter o emprego do termo 'mente'.

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    margem para a conscincia.12 Os experimentos de ausncia de qualia e de qualia invertidos so exemplos desse tipo de investida contra o fisicalismo, na sua ver-so funcionalista.

    Suponhamos que, em nosso mundo, sujeitos cujas mentes possuem uma certa organizao funcional tm estados mentais com propriedades qualitativas (e.g. dores, sensaes etc.). So concebveis mundos nos quais isomorfos funcio-nais desses sujeitos no teriam estados mentais com qualia (um mundo de dupli-catas-zumbis)?13

    Um experimento de pensamento clssico para argumentar que h di-menses do mental, como a conscincia, que o funcionalismo no consegue cap-turar, o da populao da China. Sem entrar nos detalhes a respeito do modo como esse sistema concebido14, a concluso do argumento apia-se no fato de que no atribuiramos mentalidade a esse sistema mesmo que satisfaa rigoro-samente as condies impostas pelo funcionalista. O experimento refora a nossa intuio de que por mais que dois sistemas possam ser similares em sua orga-nizao funcional, um deles pode ter e o outro no ter experincia fenomnica, no ter conscincia.

    O experimento dos qualia invertidos est na base de uma objeo anloga: dois sistemas cognitivos funcionalmente isomorfos poderiam ter qualia invertidos, comparados um ao outro. concebvel que, por exemplo, apresentem inverso na sua experincia do espectro de cores que, por exemplo, um duplicata funcional

    12 Estou deliberadamente deixando em segundo plano, neste artigo, o modo como os fisicalistas lidam com os tipos mentais que exibem intencionalidade.

    13 A relao entre conceber algo e a possibilidade desse algo existir , notoriamente, problemtica. Podemos errar ao inferir a possibilidade de algo existir, desse algo ser concebvel. Essa relao pode depender, por exemplo, do estgio do nosso conhecimento ou do carter dos nossos conceitos. Hoje em dia, no concebemos, e no achamos possvel, um mundo em que, por exemplo, haja calor mas no haja movimento (energia cintica) das molculas. Entretanto, no passado, quando se tinha menos conhecimento a esse respeito, ou se acreditava em outras teorias do calor, isso poderia parecer concebvel. Veremos ao final desse artigo que Nagel acata esse tipo de problematizao.

    14 A populao da China organizada de tal modo a instanciar a tabela de uma m-quina de Turing, com as devidas conexes de entrada e de sada.

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    meu olhe para a grama verde que se apresenta a mim, aqui e agora, com um quale associado cor verde (chamemo-lo de verdido), mas que tenha outra experincia, a experincia que tenho ao olhar para um objeto com uma cor vermelha (cha-memos a esse outro quale, invertido em relao ao meu, de vermelhido).

    Esses experimentos de pensamento do respaldo intuio de que h propriedades mentais intrnsecas e que, portanto, no poderiam ser tipificadas em termos funcionais. Em outras palavras, qualia no poderiam ser identificados a quaisquer propriedades relacionais de um sistema.15

    O fisicalista poderia acatar essas objees e reagir do seguinte modo: alm de estarem no mesmo estado funcional, dois sistemas tero as mesmas experincias qualitativas somente se estiverem no mesmo estado fsico.16

    O fisicalista pagaria, contudo, um preo alto por essa sada: ele seria for-ado a abrir mo de uma das intuies que motivaram o funcionalismo: a possi-bilidade da mltipla realizao (irrestrita) do mental.17 Ou seja, uma modalidade de fisicalismo no-redutivo deixaria de se mostrar promissora.

    Embora se pensasse, inicialmente, que o funcionalismo fosse uma moda-lidade de fisicalismo no-redutivo, o desenvolvimento dos debates entre filsofos da mente mostrou, alm disso, que o funcionalismo no somente compatvel com uma verso da teoria da identidade, mas que a funcionalizao pode ser vista, na verdade, como um mtodo para a reduo de propriedades mentais a propriedades fsicas.18

    15 H nuances nessas discusses que no so relevantes para os propsitos deste

    artigo. Chalmers, por exemplo, defende que se um sujeito tem experincia qualitativa, qualquer isomorfo funcional dele tambm ter experincia qualitativa (ele no ser um zumbi). Mas as suas experincias qualitativas podem ser diferentes, por exemplo, eles po-deriam ter qualia invertidos. Ver Chalmers, 1996, p.263.

    16 Para uma discusso dessa tese fisicalista, ver Kim, 1996, p. 115; Braddon-Mitchel & Jackson, 1996, p. 126-7.

    17 A possibilidade da mltipla instanciao do mental foi a principal objeo feita teoria da identidade de tipos.

    18 No caso de um funcionalismo conceitual, como o que prega Armstrong (ver abai-xo), essa formulao em um registro ontolgico substituda por uma formulao em um registro conceitual: conceitos mentais so reduzidos a conceitos fsicos. No estarei, neste

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    Segundo Nagel, o fisicalista pretende efetivar a reduo conceitual com-pleta do mental ao fsico (Nagel, 2002, p. 15), nos moldes das redues que vm sendo feitas com sucesso no domnio das cincias fsicas. Sabemos como dar sen-tido a redues que resultam em asseres de identidade como: a matria ener-gia; o calor o movimento das molculas etc.

    O problema para Nagel com essas asseres est no uso do verbo ser, nas suas formas , so. No sabemos, no caso do problema mente-corpo, co-mo construir a base terica e conceitual que d sentido a identidades anlogas. Como entender identidades do tipo dor estimulao da fibra C, se dores apre-sentam evidentes propriedades fenomnicas, se possuem uma dimenso subjetiva que est ausente em um processo meramente fisiolgico?

    Ao reduzirmos uma propriedade nas cincias fsicas, em primeiro lugar fazemos uma reconstruo funcional do conceito que a ela se refere. Deixamos de conceber essa propriedade como uma propriedade intrnseca e passamos a conceb-la como uma propriedade extrnseca, por exemplo, caracterizando-a em termos de relaes causais (Kim, 1998, p. 24-5; p. 98 et seq.).

    Um exemplo de identidade terica nas cincias empricas a de gene segmento de um cromossomo. O conceito de gene analisado previamente em termos relacionais, incluindo referncias observao (traos fenotpicos, por exemplo) e a outras relaes causais. Em seguida, uma investigao emprica des-cobre a seqncia molecular que desempenha o papel causal atribudo ao gene, e especificado pela anlise conceitual prvia. Outros exemplos de reduo via fun-cionalizao resultam em identidades como: o sal de cozinha um composto i-nico NaCl; o raio uma descarga eltrica; a luz uma onda eletromagntica.

    Podemos tentar transportar essa estratgia de reduo para lidar com o problema mente-corpo. J Armstrong defendera19 que um trabalho filosfico de

    artigo, distinguindo de forma cuidadosa um funcionalismo de propriedades e um funcio-nalismo conceitual. Ver, a esse respeito, Abrantes & Amaral, 2002.

    19 Grande parte do livro de Armstrong (1968) dedicado a propor anlises causais de diversos conceitos mentais, como os de percepo, crena, propsito etc. importante ressaltar que, em seu livro, Armstrong no fala de propriedades mentais, mas somente de

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    anlise dos conceitos mentais pode abrir caminho para uma identificao entre estados mentais e estados fsicos (1991, p. 183). Um conceito mental, segundo a anlise que props, o conceito de um estado funcional: de um estado definido pelo seu papel em uma rede causal envolvendo estmulos, respostas comporta-mentais e, via de regra, tambm outros estados internos.

    Suponhamos que o conceito de dor seja analisado em termos do seu papel causal: a dor (e.g. provocada por uma queimadura na mo) passa a ser con-cebida como um estado interno causado, tipicamente, por um dano em algum tecido e que, por sua vez, causa um gemido, a retrao do brao etc. Se a neuro-fisiologia descobrir que a estimulao da fibra C justamente o estado interno que desempenha essa funo ou seja, que o estado neurofisiolgico usualmente causado por um dano em algum tecido e que, por sua vez, causa os comporta-mentos de dar um grito, de retrair o brao etc. , segue-se que aquilo que denomi-namos dor a estimulao da fibra C. Uma identidade psicofsica resultaria, por-tanto, de uma descoberta (baseada em pesquisa emprica) de que dois conceitos tm a mesma definio.

    Assim, para o caso da dor, poderamos montar o seguinte argumento: 1) A dor o ocupante do papel causal R (um fato aceito); 2) O ocupante do papel causal R estado cerebral B (uma descoberta

    emprica); Logo: 3) A dor estado cerebral B (por transitividade da identidade).20 Se no aceitamos a telecinese, no faz sentido dizer que a dor causa dire-

    tamente a retrao do brao, mas sim que h uma cadeia causal que comea com um evento no crebro (e.g. a ativao da fibra C), que a causa real da retrao.

    conceitos mentais. Ele no compartilha de um dualismo de propriedades como o associa-do ao funcionalismo clssico (hard-core). O funcionalismo s veio a tornar-se uma po-sio respeitvel em filosofia da mente, posteriormente. Os primeiros artigos do Putnam-funcionalista datam de 1966-7. De toda forma, a ontologia associada ao funcionalismo (a distino entre propriedades de primeira ordem e de segunda ordem) no era clara poca, nem para os prprios funcionalistas.

    20 Exemplo adaptado de Braddon-Mitchell & Jackson, 1996, p. 92.

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    Para restabelecer o papel causal do estado mental dor, identifica-se este estado com o estado fsico ativao da fibra C.21

    Lewis, do mesmo modo que Armstrong, defendeu uma teoria materia-lista da mente segundo a qual ... o conceito de dor, ou mesmo de qualquer ou-tra experincia ou estado mental, o conceito de um estado que desempenha um certo papel causal, um estado com certas causas e efeitos tpicos. o conceito de um estado apto a ser causado por certos estmulos e apto a causar um certo com-portamento... (Lewis, 1991b, p. 230).

    O conceito de dor no o conceito do estado neurofisiolgico que rea-liza a dor em um indivduo particular ou em uma populao de indivduos (de uma espcie particular).22 O conceito de dor, segundo o funcionalista, pode de-signar diferentes estados fsicos/neurofisiolgicos em diferentes indivduos ou em diferentes populaes.23 uma questo contingente que a dor de um indiv-duo particular, ou de cada um dos indivduos de uma espcie, seja idntica ( instanciao de) um tipo de estado neurofisiolgico. Temos somente uma redu-o local, ou ento uma reduo mais ampla, porm ainda assim restrita a um tipo de estado fsico ocorrendo em uma dada espcie (e.g. animal).24

    21 Aquele que defender um papel causal independente para a dor estar incorrendo em

    dupla causao: a dor e a estimulao da fibra C, ambos, causariam a retrao do brao. A identidade via funcionalizao evita este problema: s h uma causa, j que dor idntico a estimulao da fibra C.

    22 importante confrontar essa tese negativa e a tese segundo a qual o conceito de dor o conceito de uma funo desempenhada por um estado fsico (ver, acima, a discusso da proposta de uma anlise funcional por Armstrong).

    23 Numa linguagem mais tcnica, esta ltima tese pode ser expressa nos seguintes termos: o conceito de dor no um designador rgido.

    24 Se a dor idntica a tipos diferentes de estados fsicos em diferentes espcies, pode-mos escrever as seguintes identidades: a dor em humanos a estimulao da fibra C, a dor em golfinhos a estimulao da fibra D, a dor em robs construdos no ano 2050 a estimulao de [segue o estado fsico correspondente]. Temos a mltipla realizao do estado mental dor. Claro que podemos perguntar-nos se se trata do mesmo tipo de esta-do mental em todos esses casos. Se o tipo mental dor um tipo funcional, a resposta afirmativa.

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    A teoria da identidade de tipos (agora restritos a espcies), ou a teoria da identidade de particulares/de casos/ (token identities) podem ser, portanto, assimi-ladas pelo funcionalismo, ou mesmo apresentadas via o funcionalismo.25 claro que identidades como a estabelecida na concluso 3 do argumento acima so relativas a espcies, e no podem ser generalizadas para qualquer outra espcie animal ou para outros sistemas que, supostamente, possam instanciar esse mesmo tipo de estado mental (dor). A descoberta emprica (2) relativa a um animal particular ou a uma populao de animais de uma espcie particular. Ou seja, o ocupante do papel causal R em um outro sistema capaz de sentir dor pode ser um outro tipo de estado fsico (e.g. no-neurofisiolgico, como uma distribuio de voltagens em um circuito de silcio de um rob).

    H duas maneiras, portanto, de se caracterizar um tipo mental: a) em termos de propriedades de primeira ordem, ou; b) em termos de propriedades de segunda ordem, como so as propriedades funcionais. A teoria da identidade na sua formulao original em Smart e outros , tentou a primeira via, j que indentifica tipos mentais e tipos fsicos, e os tipos fsicos so caracterizados (em princpio) por propriedades de primeira ordem.

    O funcionalismo prope a segunda via: uma propriedade de segunda or-dem uma propriedade especificada a partir de uma outra propriedade, de primeira ordem, tal que esta ltima satisfaa a uma determinada condio C. Para um fisicalista, as propriedades de primeira ordem relevantes so propriedades fsicas.

    25 Essas teorias so, por vezes, conhecidas como um fisicalismo de tipos (type

    identities), ou um fisicalismo de particulares/de casos (token identities). H controvrsia, co-mo disse em nota anterior, se a ltima posio de fato atende aos requisitos de um fisica-lismo mnimo. Ao longo do texto estou propondo duas tradues alternativas para token identity: identidade de particulares e identidade de casos, uma vez que ainda no se con-solidou uma terminologia em portugus. No considero apropriada a traduo identidade de ocorrncias, adotada por alguns filsofos brasileiros, j que o termo ocorrncia reme-te a significados esprios.

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    As propriedades funcionais so casos especiais de propriedades de se-gunda ordem em que a condio estabelecida uma relao causal vigente entre estados que possuem propriedades de primeira ordem.26

    A supervenincia das propriedades mentais s propriedades fsicas segue-se do fato de que propriedades mentais so propriedades de segunda ordem especificadas em termos de relaes envolvendo propriedades fsicas (de primeira ordem).

    As propriedades funcionais so, consequentemente, propriedades extrn-secas ou relacionais.27 As propriedades de primeira ordem, por sua vez, seriam, supostamente, propriedades intrnsecas.28 Como apontei acima ao comentar os exemplos de identidades tericas nas cincias fsicas , quando funcionalizamos (o conceito de) uma propriedade, deixamos de consider-la uma propriedade in-trnseca e passamos a consider-la uma propriedade extrnseca, caracterizada em termos de relaes causais.

    No argumento exemplificado acima, uma vez que definimos dor em termos do seu papel causal (ou seja, uma vez funcionalizada a dor), a porta est aberta para identificarmos as suas propriedades a propriedades fsicas (digamos, s propriedades associadas estimulao da fibra C). Nesse sentido, o funciona-lismo conduz a um fisicalismo de particulares/de casos, ou a um fisicalismo de tipos, porm restrito a espcies.29

    O funcionalista tenderia, portanto, a considerar os qualia propriedades relacionais, funcionais, extrnsecas e, portanto, redutveis, via funcionalizao, a propriedades fsicas.30 Contra essa posio pode-se argumentar que dor designa,

    26 Essas relaes causais do-se em um mundo regido por um conjunto de leis fsicas. 27 Ver Kim, 1999, p. 21. 28 Pode-se questionar, contudo, que muitas das propriedades fisicas conhecidas sejam

    intrnsecas. Ver Chalmers, 1996, p. 153-155. 29 Ver nota 25. 30 Nagel (2002) critica explicitamente essa estratgia e distingue diferentes tipos de

    funcionalismo.

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    em qualquer mundo possvel, um estado com uma qualidade (quale) de dolorido e, portanto, com uma propriedade intrnseca.31

    Nagel rejeita tanto a modalidade forte (identidade irrestrita de tipos) quanto as modalidades mais fracas (identidade de tipos restrita a espcies; iden-tidade de particulares/de casos) de reduo das propriedades mentais, especial-mente no caso da conscincia fenomnica. Os qualia so, para ele, um caso paradigmtico de propriedades intrnsecas e, portanto, no se prestam a redues como as que se aplicam s noes funcionais nas cincias fsicas, como as de calor ou de gene. No faria sentido funcionalizar a conscincia, associada experincia fenomnica e, por essa via, reduzi-la a estados descritos em termos exclusivamente fsicos.

    Embora aponte os limites do fisicalismo, Nagel defende que as relaes mente-corpo devem ser compatveis com a nossa imagem cientfica de mundo. Um modo de fazer isso seria conceder um lugar quelas relaes ao lado das relaes conhecidas entre propriedades fsicas. Isso o que prope, por exemplo, Chalmers (1996): existiriam leis psicofsicas, relaes entre propriedades fsicas e propriedades mentais, irredutveis s leis da fsica (pelo menos s atualmente co-nhecidas): a experincia consciente surge do fsico de acordo com algumas leis da natureza, mas no , ela prpria, fsica (Chalmers, 1996, p.161).

    Essas leis psicofsicas assegurariam, para Chalmers, o carter naturalista da sua posio, por faz-la compatvel, desse modo, com o quadro de mundo que nos traa a cincia contempornea:

    Na viso que eu advogo, a conscincia governada pela lei natural e, eventual-mente, pode haver uma teoria cientfica razovel dela. No h nenhum princpio a priori que afirme que todas as leis naturais sero leis fsicas; negar o materialismo no negar o naturalismo. Um dualismo naturalista expande a nossa viso de mundo, mas ele no invoca as foras do obscurantismo (Ibid. p. 170).

    Nagel seguramente classificaria essa soluo de conservadora, pois ela

    mantm, explicitamente, um dualismo que lhe parece inaceitvel. Sua aposta ,

    31 Ver a nota 23 sobre a noo de um designador rgido.

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    em vez disso, em um monismo que, contudo, no seria fisicalista, nem tampouco panpsiquista!32 Ele no se mostra confortvel com um dualismo de propriedades como o proposto por Chalmers, porque no explica o vnculo entre propriedades mentais e fsicas:

    ... o que acontece na conscincia muito claramente superveniente ao que acontece fisicamente no crebro. No estado presente de nossas concepes de conscincia e de neurofisiologia, essa dependncia estrita um fato bruto e completamente misterioso. Mas a supervenincia pura, inexplicada, nunca a soluo para um pro-blema, mas o sinal de que existe algo de fundamental que no conhecemos. Se o fsico necessita o mental, deve haver alguma resposta questo de como ele faz isso. Uma conexo sistemtica bvia, que permanece ininteligvel para ns, clama por uma teoria (Nagel, 2002, p. 24).

    Embora reconhea a supervenincia e a dependncia do mental com

    respeito ao fsico, Nagel tenta delinear os contornos de uma ontologia que unifi-que esses dois domnios e, desse modo, possa explicar e tornar transparente as relaes entre o mental e o fsico. O carter necessrio dessas relaes mostrar-se-ia em um nvel mais profundo de realidade do que aquele em que se do as relaes manifestas entre esses domnios (descritas pela psicologia de senso comum, por exemplo) e tambm mais profundo do que o descrito pelas cincias fsicas (pela neurofisiologia, por exemplo).

    H muito Nagel vem defendendo a necessidade de uma ontologia mais rica: a de um nvel de realidade caracterizado por propriedades fundamentais que no somente explicariam a relaes entre o mental e o fsico (de uma pers-pectiva sincrnica), mas que tornariam necessrio, inevitvel e no-acidental, o aparecimento de mentes de uma perspectiva diacrnica.33 Em seu livro de 1998, ele nos fala de uma cosmologia mais amigvel s mentes [mind-friendly] do que a atualmente advogada pelas cincias fsicas.

    32 Nagel rejeita propostas segundo as quais o elemento comum entre o fsico e o

    mental seria um elemento descrito em termos dos nossos conceitos atuais relativos ao mental (2002, p. 28).

    33 Ver, por exemplo, Nagel, 1986, p. 81.

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    O empreendimento de Nagel o de estabelecer as bases lgicas de uma nova concepo de mundo que acomode a conscincia, com suas caractersticas intrnsecas, sem tentar reduzi-la a um mundo como o descrito pelas cincias hoje constitudas. O fisicalismo, como usualmente entendido, prope redues que no so aceitveis porque eliminam justamente o que, na sua viso, o mais caracterstico do mental: a experincia fenomnica.

    Ao mesmo tempo, Nagel rejeita um dualismo de substncias e considera insuficiente um dualismo de propriedades (nas modalidades at aqui propostas). Tampouco v com bons olhos o emergentismo, por este deixar obscuro justa-mente o que precisa ser esclarecido e explicado. Nesse tocante, ele no acompa-nha Searle.34

    Para Nagel, as propriedades mentais e as propriedades fsicas mais fun-damentais so intrnsecas, e uma nova teoria deve tornar evidente a relao in-terna e necessria entre elas (Nagel, 2002, p. 27). A relao entre a conscincia e a sua base neurofisiolgica no poderia ser contingente:

    Eu concordo com Searle que a abordagem correta do problema mente-corpo deve ser essencialmente biolgica, e no funcional ou computacional. Mas a proposta dele ainda, como eu a compreendo, dualista demais: ao relacionar o fisiolgico e o mental como causa e efeito, ela no explica como cada um literalmente impossvel sem o outro. Uma teoria causal de propriedades de ordem superior radicalmente emergentes no mostraria como a mente surge da matria por necessidade. Esse o custo por se prender aos nossos atuais conceitos mentais e fsicos (Nagel, 2002, p. 48).

    Uma base terica para enfrentar o problema mente-corpo e que via-

    bilize redues nesse mbito que no deixem de fora a experincia fenomnica , precisa ser construda, segundo Nagel, a partir de conceitos originais, no disponveis atualmente, seja no estoque de conceitos mentais seja no de conceitos fsicos. Uma teoria que se sirva dos conceitos fsicos ora disponveis (e.g. neuro-fisiolgicos) no conseguir realizar essa tarefa, na medida em que eles no res-pondem pelo carter subjetivo intrnseco da conscincia fenomnica. Tampouco

    34 Ver, por exemplo, Nagel, 2002, p. 15, 47.

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    os atuais conceitos psicolgicos permitem construir uma teoria segundo a qual estados mentais, em particular os que envolvem a conscincia, necessariamente tambm tenham um aspecto neurofisiolgico e, portanto, objetivo.35 As bases de uma nova teoria de um nexo psicofsico necessrio ainda precisam ser esta-belecidas.

    A necessidade requer reduo como reconhece Nagel , mas essa re-duo no uma reduo ao fsico, ou ao neurofisiolgico, como o concebemos hoje. As redues efetivadas pelas cincias fsicas no servem de guia para uma soluo satisfatria do problema mente-corpo, como vimos. Nagel vislumbra uma reduo a um nvel em que o mental e o fsico seriam diferentes aspectos dos mesmos constituintes bsicos do mundo.36 As identidades resultantes, do mesmo modo que as identidades que resultam das redues nas cincias fsicas,

    35 As discusses de Nagel sobre o status da subjetividade e da objetividade so in-

    trincadas, e se prestam a algumas confuses para as quais quero chamar a ateno nesta nota. A conscincia envolve para ele uma dimenso subjetiva, no propriamente no sentido de que o sujeito tem um acesso epistmico privilegiado aos seus prprios estados mentais, mas no sentido de que a experincia fenomnica desse sujeito implica um ponto de vista. Mas esse ponto de vista remete, como Nagel deixa explcito, a um tipo e pode ser, em princpio, compartilhado por outros sujeitos suficientemente semelhantes ao tal sujeito em sua constituio cognitiva. Portanto, cada sujeito pode adotar um (outro) ponto de vista, desde que seja a de um semelhante (a ele). No haveria, portanto, obstculos intransponveis ao desenvolvimento do projeto de uma fenomenologia objetiva. Contudo, esse projeto inscreve-se inteiramente no mbito do mental, da experincia fenomnica. Essa objetividade no deve ser confundida com a objetividade conquistada pelas redues fsicas, no caso, neurofisiolgicas (ou, melhor dizendo, com o movimento em direo a uma maior objetividade realizado pelas cincias fsicas). Relacionada a esta ltima objetividade est, entretanto, a dimenso objetiva dos estados mentais (o seu aspecto objetivo, a que me refiro no texto) , no somente por eles se realizarem no fsico, ou em algum nvel mais fundamental como especula Nagel , mas tambm pelo fato de que estados mentais se inserem em uma rede de relaes causais com o comportamento e, portanto, produzem efeitos pblicos, aferveis de um ponto de vista de terceira pessoa.

    36 Nagel reconhece as similaridades entre a sua proposta e a teoria do duplo aspecto de Spinoza (Nagel, 2002, p. 21, 25). Na nota 15 do seu artigo "What is it like to be a bat", ele j sugere essa ontologia.

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    no poderiam ser estabelecidas a priori, por mera anlise conceitual, mas seriam descobertas a posteriori.37

    Nagel pretende estabelecer as bases lgicas de uma teoria do nexo psi-cofsico38, de uma nova teoria cientfica da mente (Nagel, 2002, p. 47) que ele espera possa ser testvel empiricamente, e compatvel com as demais teorias cientficas a respeito de diferentes setores do mundo (Ibid., p. 65). Trata-se de mostrar a viabilidade de uma identidade psicofsica no contingente (2002, p. 4), de um nexo constitutivo e no meramente causal.39

    Nessa fase de proto-cincia em que se encontra o programa, o papel da filosofia seria o de contribuir para delinear o carter lgico de uma teoria diferente e de conceitos diferentes e, por essa via, permitir vislumbrar possibilidades inconcebveis luz das teorias e conceitos que atualmente empregamos, tanto os relativos ao mental quanto os relativos ao fsico (Nagel, 2002, p. 65-6).

    Os estados mentais tm, para Nagel, uma essncia dual, fenomenolgica-e-fisiolgica, mas no compreendemos atualmente como isso possvel (Nagel, 2002, p. 35). Na verdade, o papel causal que estados mentais desempenham no comportamento como destaca apropriadamente o fisicalismo funcionalista j sugerem esse carter dual, a que se refere o aspecto de terceira pessoa dos con-ceitos mentais que hoje empregamos:

    37 A dvida de Nagel para com Kripke imensa e explicitamente reconhecida, mas ele

    no acompanha Kripke quando este conclui que a conexo entre a conscincia feno-mnica e processos cerebrais s pode ser contingente (ou seja, de que concebvel um crebro com as mesmas caractersticas do nosso mas que no d suporte conscincia). Essa possibilidade s concebvel diagnostica Nagel porque os conceitos que dispomos atualmente so inadequados para lidar com a conscincia.

    38 Trata-se, na verdade, de um nexo mais amplo, envolvendo a fenomenologia, a fisio-logia e o comportamento (Nagel, 2002, p. 30).

    39 Nagel defende claramente uma postura realista com respeito a essa nova teoria, condio para que sirva de base a uma nova ontologia (2002, p. 46). Sobre as relaes en-tre metafsica e cincia, ver Abrantes, 2004a.

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  • Paulo Abrantes 242 O ponto de vista correto seria um que, contrariamente s possibilidades conceituais presentes, inclusse de cara tanto a subjetividade quanto a estrutura espao-tem-poral, todas as suas descries implicando ambas essas coisas de uma vez; de modo que ele descreveria simultaneamente os estados internos e suas relaes funcionais com o comportamento, e uns em relao aos outros, e no em paralelo, a partir de uma internalidade [inside] fenomenolgica e de uma externalidade [ouside] fisiolgica. Os conceitos mentais e fisiolgicos, e sua referncia a esse mesmo fenmeno interno, seriam ento vistos como secundrios, cada um deles capturando parcialmente o fenmeno. Cada um deles seria visto como referindo-se a alguma coisa que se estende para alm do seu campo de aplicao (Nagel, 2002, p. 45-6).

    Partindo dessa conjectura extravagante (Nagel, 2002, p. 53), o que nos

    parece hoje inconcebvel, poderia tornar-se um dia concebvel. E o que hoje nos parece concebvel um mundo de zumbis, de duplicatas fsicos e funcionais nossos, mas sem conscincia passaria a ser inconcebvel.

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