Paulo Cavalcante Descaminhos da América

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72 TEMAS BRASILEIROS: ESTRADA REAL CONTRAPONTO O Na colônia, o lícito e o ilícito serviam ao mesmo propósito. A transgressão foi aqui instituinte, espelhando as relações sociais e atendendo à acumulação do capital Brasil é isso! O Brasil é isso quer dizer o quê? O desencan- to com a corrupção e o tráfico de influências na política brasileira traz de volta esse tipo de comentário, geralmente feito quando uma lei não é cumprida e fica afamada como a lei que “não pega”, quando os jornais estampam fotografias dos “gatos” na rede elétrica das ruas das grandes cidades ou simplesmente quando os brasileiros experimentam a consciência de que, como nação, não conseguem se impor no cenário mundial e “conquistar” o status de “país de primeiro mundo”. Tudo se passa como se aqui o desvio fosse regra, e a regra, a não-regra. Trans- gressão aos olhos do colonizador, em seu discurso endereçado à terra, no geral, e aos índios, em particular, fixado desde o século XVI por Pero de Magalhães Gandavo: “A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente”. O esforço de compreender por que o Brasil é assim leva os brasileiros por PAULO CAVALCANTE Descaminhos Johann Moritz Rugendas: Lavagem de ouro perto da montanha de Itacolomi diretamente para o chamado “período colonial”. Neste, os mais precipitados encontram todo tipo de resposta super- ficial: desde o “mal de origem” de índios e degredados, passando pelo “mal” da escravidão, e chegando até a deliberada exploração que os países europeus (Por- tugal e Inglaterra), e depois os Estados Unidos, teriam ou têm nos imposto. Desse modo, a história é convocada para resolver um mal-estar, uma insa- tisfação com o rumo da coletividade, sem antes ter o cuidado de formular um problema, simplificando a questão, arti- culando os temas tradicionais disponíveis e oferecendo diferentes tipos de veredicto. O finalista: “É, não tem jeito mesmo. Começou errado só podia dar no que deu”. O moralista: “Eta povinho de...” E fazendo até piada: “Sabe a última do brasileiro no primeiro mundo?”. Qual seria, então, a maneira de abor- dar esse desencontro entre os brasileiros e sua imagem coletiva? Como integrar no esforço de compreensão os temas da AMÉRICA

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O descaminho é um modo de reinventar a colonização portuguesa na América, isto é, de superar o dia-a-dia de carestia e exploração, de promover a extração da riqueza em proveito do pequeno reino metropolitano e de si próprio, e de ativar as engrenagens gerais da acumulação de capital. Por isso, falar de corrupção naquele tempo é anacrônico, tanto porque a relação entre o público e o privado é outra como porque a apropriação privada é parte inseparável daquele sistema de relações, concorrendo para o mesmo fim. Por sua vez, atribuir à corrupção de hoje a causa dos males da sociedade pertence à superfície do senso comum que não enxerga nem a profundidade das relações capitalistas nem as suas raízes históricas, tomando assim o efeito como causa, invertendo, como convém ao discurso ideológico, a lógica de funcionamento do sistema.

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    CONTRAPONTO

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    Na colnia, o lcito e o ilcito serviam ao mesmo propsito. A transgresso foi aqui instituinte, espelhando as relaes sociais e atendendo acumulao do capital

    Brasil isso! O Brasil isso quer dizer o qu? O desencan-to com a corrupo e o trco

    de inuncias na poltica brasileira traz de volta esse tipo de comentrio, geralmente feito quando uma lei no cumprida e ca afamada como a lei que no pega, quando os jornais estampam fotograas dos gatos na rede eltrica das ruas das grandes cidades ou simplesmente quando os brasileiros experimentam a conscincia de que, como nao, no conseguem se impor no cenrio mundial e conquistar o status de pas de primeiro mundo.

    Tudo se passa como se aqui o desvio fosse regra, e a regra, a no-regra. Trans-gresso aos olhos do colonizador, em seu discurso endereado terra, no geral, e aos ndios, em particular, xado desde o sculo XVI por Pero de Magalhes Gandavo: A lngua deste gentio toda pela costa uma: carece de trs letras no se acha nela F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assim no tm F, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justia e desordenadamente.

    O esforo de compreender por que o Brasil assim leva os brasileiros

    por PAULO CAVALCANTE

    Descaminhos

    Johann Moritz Rugendas: Lavagem de ouro perto da montanha de Itacolomi

    diretamente para o chamado perodo colonial. Neste, os mais precipitados encontram todo tipo de resposta super-cial: desde o mal de origem de ndios e degredados, passando pelo mal da escravido, e chegando at a deliberada explorao que os pases europeus (Por-tugal e Inglaterra), e depois os Estados Unidos, teriam ou tm nos imposto.

    Desse modo, a histria convocada para resolver um mal-estar, uma insa-tisfao com o rumo da coletividade, sem antes ter o cuidado de formular um problema, simplicando a questo, arti-culando os temas tradicionais disponveis e oferecendo diferentes tipos de veredicto. O nalista: , no tem jeito mesmo. Comeou errado s podia dar no que deu. O moralista: Eta povinho de... E fazendo at piada: Sabe a ltima do brasileiro no primeiro mundo?.

    Qual seria, ento, a maneira de abor-dar esse desencontro entre os brasileiros e sua imagem coletiva? Como integrar no esforo de compreenso os temas

    daAMRICA

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    tradicionais (degredados, escravido e explorao, entre outros) sem desaguar no juzo de valor, no discurso moralista e na explicao conservadora? Como formular o problema?

    O primeiro passo admitir as grandes diferenas que existem entre a sociedade contempornea e a sociedade colonial, embora reconhecendo, como fez o histo-riador Caio Prado Jnior em 1942, que a condio necessria para conhecermos a atualidade identificar os aspectos estruturais gerados ao longo do processo histrico. Vamos ento combinar as es-pecicidades de uma determinada poca com as suas estruturas socioeconmicas para responder pergunta: Qual foi o papel do desvio e da no-regra, ou sim-plesmente, do descaminho no processo de colonizao da Amrica portuguesa?

    Corrida do ouroDescaminho um nome da poca

    para uma prtica condenada pela lei. O ato de descaminhar constitui-se em deter ou desviar o curso esperado dos tributos e di-reitos reais, isto , impedindo, frustrando ou simplesmente dicultando a entrada do resultado da drenagem de recursos no tesouro do rei de Portugal. E como isso se faz com pessoas, o descaminho pressupe um conjunto de relaes ilcitas em curso paralelo rotina ocial. So governadores, provedores, ouvidores, padres, monges, frades, comerciantes, camaristas, homens livres pobres, negras de tabuleiro, gente forra (pretos forros), senhores, escravos, enm, todo o espectro social. Em outras palavras, a regra metropolitana em seu movimento de promover a colonizao se diferencia a ponto de praticar a sua prpria negao. Se assim no o zesse no haveria colonizao e assim o fazendo produz um outro resultado, numa palavra, o Brasil.

    O lcito e o ilcito de mos dadas concorrendo para o mesmo propsito:

    A preocupao maior do rei era pr ordem explorao.Isto , garantir que lhe pagassem a quinta parte do que fora extrado

    a explorao da terra. Explorao esta que se processa enquanto a prpria sociedade se constitui. Por isso o desca-minho instituinte. Porque ele estava l desde o incio, sendo, a um s tempo, manifestao conspcua de um conjunto especco de relaes sociais e manifes-tao peculiar ao processo de explorao colonial vinculado ao processo maior de acumulao de capital.

    Tudo isso ca claro no sculo XVIII ao tempo da explorao de ouro e dia-mantes. A descoberta dos veios aurferos pelos bandeirantes no nal do sculo XVII deu a largada para uma grande e intensa corrida do ouro. O Estado por-tugus, a Igreja, comerciantes e toda sorte de gente se precipitaram sobre as Minas. Percorrendo o caminho dos currais da Bahia, o caminho de So Paulo ou pas-sando pelo Rio de Janeiro, inicialmente por sua caracterstica de porto mais prximo e, depois, por se tornar o acesso mais curto e direto aps a abertura do chamado Caminho Novo, uma multido rumou em busca da riqueza.

    Aos poucos mais e mais funcion-rios foram designados para a regio, os aparelhos do Estado foram instalados, vilas fundadas, pelourinhos erguidos, alfndegas ampliadas, provedorias, ouvi-dorias, intendncias, casas de fundio e moeda, registros de passagem (a espcie de pedgio da poca), tropas etc., enm, um uxo nunca antes visto cruzou ca-minhos ociais e variantes clandestinas para drenar e desviar.

    A preocupao maior do rei era pr ordem explorao, o que em outras palavras quer dizer impor a sua ordem, isto , assegurar o pagamento da quinta parte daquilo que fora extrado, o famo-so quinto. em torno das diculdades para arrecadar o quinto que o tema do descaminho ganha largo curso na docu-mentao da poca. Em todas as esferas

    do governo se oferecem discursos sobre a convenincia, as facilidades e as diculda-des da sua imposio. E todas as decises scais tomadas pelo Estado tinham em vista o que era mais conveniente aos interesses rgios, sossego dos povos e liberdade de comrcio, uma precauo calculada tanto para preservar a justia do pacto entre o rei e seus sditos nas conquistas como para ocultar toda a violncia da medida.

    Vrios mtodos foram utilizados, mas dois se destacaram: o das casas de fundi-o e a capitao e senso das indstrias. O primeiro se resume em levar o ouro at a casa ocial de fundio onde quintado (reserva-se a quinta parte) e devolvido fun-dido em barra com uma marca indicando que o quinto havia sido pago. Com este mtodo cava proibida a circulao de ouro em p. O segundo, aplicado entre

    Santinho do Pau Oco. A mo da esttua era removvel, possibilitando que seu espao

    interior fosse utilizado no transporte clandestino de ouro e pedras preciosas

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    1735 e 1750, estabelecia que o escravo, o homem livre e o ocial de qualquer ofcio pagassem cada um quatro oitavas e trs quartos de ouro; as lojas grandes, vinte e quatro oitavas, dezesseis as menores e oito as inferiores. Com este mtodo o ouro em p circulava livremente.

    importante dizer que a sociedade co-lonial na primeira metade do sculo XVIII muito mais complexa do que sugere a tradicional diviso entre senhores e escra-vos. Particularmente nas Minas, regio de fronteira aberta, o padro da sociedade litornea do acar tendeu a se exibili-zar. No que o escravismo no fosse uma realidade. Pelo contrrio, a predominncia

    da mo-de-obra escrava, as distines jur-dicas entre livres e escravos, os princpios hierrquicos baseados na cor e na raa, as atitudes senhoriais dos proprietrios e a deferncia dos socialmente inferiores, tudo isso era radicalmente presente e continu-aria assim sculo e meio afora, em abono da frase do historiador Stuart Schwartz, para quem o escravismo criou os fatos fundamentais da vida brasileira.

    Acontece que a prpria sociedade do planalto paulista no sculo XVII, desco-bridora das Minas e para as quais forneceu os primeiros povoadores/exploradores, j se organizava de modo diverso do litoral aucareiro. No planalto e nas Minas o

    sedentarismo solar da casa-grande, da grande propriedade rural e do tempo da monocultura no tinha lugar. No h aqui, como disse o historiador Srgio Buarque de Holanda, a coeso externa e o equilbrio aparente do litoral nordestino. o movimento que prevalece, seguido de instabilidade e imprevisto.

    O movimento dos caminhos ind-genas, dos veios aurferos, dos arraiais e povoados, das gentes de toda espcie, espe-cialmente a pobre, para quem migrar ne-cessrio, portanto, movimento no espao. Mas tambm mobilidade, o movimento das hierarquias sociais. Ainda que forte-mente hierarquizada, o auxo de pessoas e a mercantilizao resultante da circulao de ouro e diamantes tornaram mais com-plexa e variadas as distines sociais. Que no se pense em movimento em direo igualdade social. De nenhum modo. Esta uma sociedade escravista fundada com base no modelo da sociedade europia estraticada em ordens. Nesta, o ideal ser desigual. A mercantilizao fez crescer a quantidade de pessoas em condies de se diferenciar, reforando hierarquias e privilgios. Enm, um mundo muito diferente do nosso atual.

    Mesmo assim, aqui h resistncias. H tambm revoltas e acordos. no captulo das resistncias discretas e dos acordos ardilosos que o descaminho se compe. A revolta esgara os os do tecido social. O descaminho os tece. Por isso pelo menos dois governadores coloniais tiveram de ne-gociar a quantidade de ouro quintado e as condies para a mudana nos mtodos de arrecadao. Tanto D. Pedro de Almeida e Portugal, conde de Assumar (governador da capitania de So Paulo e Minas entre 1717 e 1721), como D. Loureno de Almeida (pri-meiro governador da capitania de Minas separada de So Paulo entre 1721 e 1732) enfrentaram e transigiram, impuseram e recompuseram, dialogando com membros das cmaras, potentados locais, clrigos, enm, dialogando com diferentes esferas de poder local constitudas numa terra em construo para explorao.

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    As casas de fundio, por exemplo, foram institudas nas Minas por um bando (espcie de decreto) publicado em Vila Rica em 18 de julho de 1719. Entre-tanto, s funcionaram de fato a partir de 1o de fevereiro de 1725. Os governadores, Assumar e D. Loureno, encontraram grandes resistncias. A chamada Sedio de Vila Rica (1720), que culminou com a execuo de Felipe dos Santos, revelou toda uma teia de relaes e interesses (lcitos e ilcitos) que se viram ameaados com o estabelecimento das fundies, mas no s. Assumar tambm dispunha sobre a arrematao de novos contratos de abas-tecimento e de novas taxas nos registros de passagem. O negcio estava em jogo. Fundies funcionando mesmo, clandes-tinas e ociais, s com D. Loureno e com o perseverante descaminho.

    Desde o descobrimento do primeiro veio, descaminhou-se. Uma vez aberto o primeiro caminho, instalou-se o primeiro registro de passagem e, com ele, o prove-dor complacente e as variantes que o con-tornavam. Quando se decidiu incentivar o estabelecimento de roas ao longo dos principais caminhos, com o m de asse-gurar a sua manuteno e garantir alguma alimentao e pousada para os viajantes, abriram-se simultaneamente infinitas

    possibilidades de extravio. o caminho que

    convida ao des-caminho.

    Suponho nalmente que os ladres de que falo no so aqueles miserveis, a quem a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gnero de vida, porque a mesma sua misria, ou escusa, ou alivia o seu pecado (...) O ladro que furta para comer, no vai, nem leva ao inferno; os que no s vo, mas levam, de que eu trato, so outros ladres, de maior calibre e de mais alta esfera (...) os ladres que mais prpria e dignamente merecem este ttulo so aqueles a quem os reis encomendam os exrcitos e legies, ou o governo das provncias, ou a administrao das cidades, os quais j com manha, j com fora, roubam e despojam os povos. Os outros ladres roubam um homem: estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco: estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, so enforcados: estes furtam e enforcam. (...)

    Dom Fulano diz a piedade bem intencionada um dalgo pobre: d-se-lhe um governo...

    Antnio Vieira, Sermo do Bom Ladro (1655)

    A cena mais espetacular da prtica ilcita ocorreu na presena do prprio rei D. Joo V. O resultado do quinto arrecadado dos mineradores de Cuiab em 1727, quatro cunhetes (caixotes onde se acondicionam munio de guerra) re-cheados de ouro, devidamente guardados em cofres-fortes e protegidos por muitos guardas, foi solenemente posto junto ao trono sob o olhar cobioso do squito del-rei, de cortesos e de representantes estrangeiros. Soada a trombeta e abertos os cofres, para espanto geral, Sua Excelncia o Ouro havia desaparecido! Em seu lugar e diante de todos, prostrou-se aos ps de Sua Majestade o vil Chumbo. D para imaginar a cara do pessoal...

    O ouro sumia mesmo. Em seu longo perodo como governador da capitania do Rio de Janeiro (1733-1763), Gomes Freire de Andrada viu de tudo um pouco. Em 1737, respondendo tambm pelo governo de Minas Gerais, relatou um caso raro ocorrido na Casa dos Contos. Nesta, como se sabe, funcionava a Fazen-da Real com seus contadores, escrives,

    almoxarifes, tesoureiros, provedores, cofres e cupins. Isso mesmo,

    cupins, e com muito apetite. Segundo Gomes Frei-

    re (28/8/1737): Em um dos cofres havia

    dado um bicho a quem chamam os naturais cupim, fui no

    referido dia Casa dos Contos em que se achavam os cofres com o provedor da Fa-zenda Real, e mais ociais dela, e vi que o dinheiro que se achava no dito cofre estava misturado, e averiguando-se se havia falta nele se achou a de setecentos vinte e oito mil, novecentos e vinte ris... . Ora vejam, que cupins! No s desfalcaram a Real Fazenda como deixaram um prejuzo que o gover-nador fez repartir entre todos os ociais da Casa, inclusive ele. Que terra inculta! At a natureza descaminha.

    Chuva midaMas uma ajuda sempre cai bem. Se

    terra dita inculta juntarmos os ladres de que nos fala o padre Vieira a explo-rao estar garantida. D. Loureno de Almeida se encaixa bem na gura do ladro por excelncia. E isso quem disse foi o vice-rei do Estado do Brasil entre 1720 e 1735 Vasco Fernandes Csar de Meneses, conde de Sabugosa, no sem algum exagero, em 1734: ...D. Loureno de Almeida foi o nico mvel, e causa total dos desconcertos dessas Minas, tanto no prejuzo da Fazenda Real, como na m administrao da justia, e por descuido, ou cuidado seu, continuaram as fraudes e descaminhos, permitindo que se zessem assemblias, ajustando nelas novas formas, e mquinas para extrair o ouro...

    O exagero no est na caracterizao de D. Loureno como gatuno. O gover-nador da capitania do Rio de Janeiro, Lus Vahia Monteiro (1725-1732), tinha a

    Barra de ouro da Casa de Fundio de Sabar (23 quilates de pureza e 55 gramas de peso). O braso nela impresso indicava que o quinto, o imposto rgio, havia sido pago

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    mesma opinio formada. E a historiadora Adriana Romeiro comprovou o vnculo ilcito entre o governante das Minas e Incio de Sousa Ferreira, fundidor de barras e moeda falsa numa fbrica na serra do Paraopeba. De fato, o vnculo no se limitava a duas pessoas. Tratava-se de uma verdadeira sociedade cuja rede de relaes, imensa e variada, cruzava a fronteira entre o lcito e o ilcito. E tudo s foi desbaratado graas atuao sigilosa do ouvidor Diogo Cotrim de Souza, que escondeu deliberadamente de D. Louren-o a diligncia planejada para estourar a fbrica e prender os descaminhadores.

    O exagero est em atribuir ao de uma pessoa aquilo que pertence dinmica social. Com D. Loureno nada aconteceu. Ao nal do seu governo re-tornou a Lisboa ostentando uma fortuna de fazer inveja. O governador no o mvel e causa total nem muito menos o a incultura da terra. O que explica o processo de produo social da prtica ilcita engendrado, de um lado, por uma sociedade em que a posio de prestgio carrega consigo a preeminncia poltica e assegura o ganho econmico e, de outro, por uma estrutura econmica montada para explorar e acumular.

    SAIBA MAIS

    Consses de um falsrio: as relaes perigosas de um governador nas Minas. Adriana Romeiro. Histria: fronteiras (XX Simpsio Nacional da ANPUH). Humanitas, FFL-CH-USP, ANPUH, vol. 1, pgs. 321-337, So Paulo, 1999.

    Cultura e opulncia do Brasil. Antonil. Companhia Editora Nacional, So Paulo,1967.

    Escritos histricos e polticos. Antnio Vieira. Martins Fontes, So Paulo,1995.

    Formao do Brasil Contemporneo: Colnia. Caio Prado Jnior. Brasiliense, So Paulo,1986.

    Contrabando, ilegalidade e medidas polticas no Rio de Janeiro do sculo XVIII. Ernst Pijning. Revista Brasileira de Histria, vol. 21, no 42, pgs. 397-414, So Paulo 2001.

    Desclassicados do ouro: a pobreza mineira no sculo XVIII. Laura de Mello e Souza. Graal, Rio de Janeiro, 2004.

    Negcios de Trapaa: caminhos e descaminhos na Amrica Portuguesa (1700-1750). Paulo Cavalcante. Hucitec, Fapesp, So Paulo, 2005.

    Tratado da Terra do Brasil Histria da Provncia de Santa Cruz. Pero de Magalhes Gandavo. Itatiaia, Belo Horionte e Edusp, So Paulo,1980.

    Caminhos e fronteiras. Srgio Buarque de Holanda. Jos Olympio, Rio de Janeiro,1957.

    Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). Stuart Schwartz. Companhia das Letras, So Paulo,1988.

    PAULO CAVALCANTE doutor em histria social pela USP e professor dos departamentos de histria da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), do Instituto de Aplicao Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ) e da Universidade Gama Filho. autor de Negcios de trapaa: caminhos e descaminhos na Amrica portuguesa.

    O jesuta Antonil, no incio do sculo XVIII, fazia assemelhar os diversos mo-dos de descaminhar chuva mida que d grandes lucros aos campos, a qual, continuando a reg-los sem estrondo, os faz muito frteis. na persistncia do pequeno que encontramos a rela-o mais difcil de identificar, no s porque profunda, mas porque, de to integrada ao nosso modo de existir his-

    trico-social, se faz invisvel e ausente, levando-nos a julgamentos superciais.

    O descaminho um modo de reinven-tar a colonizao portuguesa na Amrica, isto , de superar o dia-a-dia de carestia e explorao, de promover a extrao da riqueza em proveito do pequeno reino metropolitano e de si prprio, e de ativar as engrenagens gerais da acumulao de capital. Por isso, falar de corrupo na-quele tempo anacrnico, tanto porque a relao entre o pblico e o privado outra como porque a apropriao privada parte inseparvel daquele sistema de relaes, concorrendo para o mesmo m. Por sua vez, atribuir corrupo de hoje a causa dos males da sociedade pertence superf-cie do senso comum que no enxerga nem a profundidade das relaes capitalistas nem as suas razes histricas, tomando assim o efeito como causa, invertendo, como convm ao discurso ideolgico, a lgica de funcionamento do sistema.

    Maximiliano, Prncipe de Weid: Carregamento de uma besta. Era impossvel para a Coroa controlar todos os caminhos

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