Paulo Cavalcante Eu Quero e Ouro e Os Falsificadores

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Extrair ouro e diamantes cumprindo as regras e pagando os impostos estipulados pelo Estado ou fazê-la de modo ilícito, praticando o descaminho. Estas eram as duas faces do mesmo movimento, cujo nome é exploração. Nas Minas Gerais do final do século XVII e das primeiras décadas do XVIII, todos queriam ouro. A qualquer preço.

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  • PAULO CAVALCANTE

    Eu quero ouro!Havia mil e uma maneiras -dedesviar as riquezas descobertas naColnia. De religiosos a governadores,todo mundo dava um jeito deenriquecer sem pagar imposto

    XTRAIR OURO E DIAMANTES CUMPRINDO AS REGRAS

    e pagando os impostos estipulados pelo Estado ou

    faz-Ia de modo ilcito, praticando o descaminho.

    Estas eram as duas faces do mesmo movimento, cu-

    jo nome explorao. Nas Minas Gerais do final do

    sculo XVIIe das primeiras dcadas do XVIII,todos

    queriam ouro. A qualquer preo.

    Os prprios representantes do Estado portugus -

    governadores, ouvidores, provedores etc. -, cuja

    misso era disciplinar a extrao e assegurar a or-

    dem social, contribuam para desviar as riquezas da

    Fazenda Real (a Receita Federal da poca).

    Ordenar a extrao significava estabelecer a de-

  • ~ nif!.

    sordem da explorao. O funcionrio empenha-do em dar cabo de "execrandos delitos" (desca-minhos e contrabando) precisava conviver comeles para melhor extingui-los. O funcionrio quecunhava as moedas dentro da Casa da Moeda fal-sificava-as por fora. O homem de negcios quearrematava os contratos e fazia os pagamentosprometidos Fazenda Real sonegava o gnero -sal, por exemplo - ou dava livre trnsito ao ouroem p, no caso do contrato das passagens (umaespcie de pedgio da poca).

    Os descaminhos eram numerosos e variados.Quanto mais o Estado portugus apertava o cercopara assegurar a sua arrecadao, a mesmo queos desvios do ouro prosperavam, com extrema cria-tividade. O senso comum tornou notria a imagemdo santo de pau oco como smbolo maior dos des-caminhos. Imagens ocas de santos supostamenterecheadas de ouro e diamantes nos servem maiscomo explicitao da contradio entre dois traoscorrentes na sociedade colonial - o fervor religiosoe a cobia material - do que como comprovao deprticas relevantes de evaso.

    Como a sociedade colonial era escravista, os tra-balhadores negros encarregados da mineraoeram vistos como os principais "passadores" (des-caminhadores) de ouro e diamantes. Ouro em p

    salpicado no cabelo de mulheres negras, pepitas ediamantes desviados no pequeno comrcio dos po-voados e das lavras - especialmente pelas chama-das "negras de tabuleiro", que vendiam comidas ebebidas - tambm foram modos de descaminhar ariqueza extrada da terra. Este ltimo era to fortee disperso que foi objeto de uma proibio publica-da em 31 de julho de 1733, no Arraial do Tijuco, pe-lo ouvidor geral Jos Carvalho Mrtires:

    Na pgina ao lado,

    oficial da Cavalaria de

    Minas Gerais da

    segunda metade do

    sculo XVIII:soldados

    contrabandeavam

    ouro em p escondi-

    do nos botes de

    suas fardas.

    A minerao mobilizava menos de 5% da populaode Minas Gerais

    Mando que nenhuma pessoa de qualquer qualidadeou condio que seja mande escravas ou escravos venderdo Corgo das Lages em diante, gnero algum de comest-veis, ou bebidas; pena de que toda a escrava ou escravoque for achado do lugar referido em diante, vendendo osreferidos gneros, ser presa, e pagarem seus senhores cemmil ris de condenao (...) alm desta pena sero os ditosescravos aoitados no lugar mais pblico deste Arraial.

    Outra forma muito eficaz de desvio foi a fabri-cao de colares para evitar o pagamento do quin-to. Recheadas de colares ou cordes, as pessoascirculavam e propiciavam a fuga do ouro para Por-

    "Na Serra da Estrela",

    aquarela de Thomas

    Ender que mostra um

    trecho do percurso

    para as minas: apesar

    da vigilncia dos

    agentes metropolita-

    nos e da existncia

    de registros, caminhos

    clandestinos permiti-

    ram o descaminho

    do ouro.

  • II '"ossre"'_il!E~_.2JO Q8

    tugal em seu prprio corpo. O recurso foi classifi-cado por funcionrios da Coroa como "mui cavilo-50" (ardiloso). Estava claro que "os tais cordes noservem para uso e ornato das pessoas, seno parapor este meio usurparem os ditos quintos", con-cluiu o rei D. Pedro li em 1698.

    A maneira mais espetacular de desviar ouro eraa falsificao de moedas. Encontravam-se moedas

    falsificadas de diversos tipos: vazada, cerceada (eu-jas bordas eram raspadas para se ficar com o ouro),com peso reduzido ou fundida com metais conside-rados baixos (como cobre, nquel e estanho).

    Em 1708, o juiz da Casa da Moeda do Rio de Ja-neiro informou ao Conselho Ultramarino que re-cebera quinze moedas de ouro de 4 mil ris pro-venientes de So Paulo para serem examinadaspor parecerem falsas. Feito o exame, constatou-sea fraude. Suspeitava-se que as tais moedas haviamsido cunhadas na fbrica de um estrangeiro. O as-sunto era sumamente grave, no s porque asmoedas podiam enganar muita gente, mas tam-bm porque a presena de estrangeiros na costaao sul do Rio de Janeiro comeava a se intensifi-car, e a possvel instalao de uma fundio falsaseria um indesejvel sinal de enraizamento des-ses forasteiros.

    Mas a fbrica de moedas falsas de que realmen-te se tem notcia no foi obra de um estrangeiro.Resultou da ao de um "bom portugus", Inciode Souza Ferre ira, e de uma grande rede de rela-es operando sob a proteo insuspeita do pr-prio governador das Minas Gerais, D. Loureno deAlmeida (1721-1732), e configurando uma "socieda-de de contrabandistas" com conexes internacio-nais. D. Loureno, a propsito, retomou riqussimoa Portugal, com bagagem reluzente, no fim do seugoverno. Estes sim, e no os escravos, foram osgrandes descaminhadores. Neste caso, a moeda erafalsa, mas no era ruim. Ou melhor, s era falsaporque no havia sido cunhada na fbrica oficial.Ao que tudo indica, a moeda da fbrica de Incioera de qualidade, e certamente teve grande aceita-o e circulao (saiba mais na pgina 34).

    Ainda assim, a preocupao_~om os estrangei-ros era pertinente. Afinal, a intensa concorrnciacomercial entre os Estados europeus tornou-separticularmente desafiadora para Portugal quan-do foram descobertos ouro e diamantes na sua co-lnia americana. Era para Minas que todos que-riam ir. A falsificao de moedas tinha o objetivode retirar diretamente o ouro da colnia, desvian-do-o do mundo portugus. E essa prtica no se li-mitava Amrica. Isso j havia ocorrido na Costada Mina, na frica, no incio do sculo XVIII. O

    -c

    6 problema que tanta gente estrangeira, de dife-~~ rentes procedncias (franceses, ingleses, espa-ui5 nhis, holandeses, etc.), iam e vinham costa da~~ Amrica, e eram to vultosos os desvios que se te--c~ mia no s o descaminho, mas a perda do centro-2 le das prprias Minas para uma associao entre

    ~ -" - .' ~. "" ... "" ~~Os vrios modos do verbo furtar

    Tanto que l chegam, comeam a furtarpelo modo indicativo,porque a primeira in-formao que pedem aos prticos queIhes apontem e mostrem os caminhos poronde podem abarcar tudo. Furtam pelomodo imperativo, porque, como tm o me-ro e misto imprio, todo ele aplicam despo~ticamente s execues da rapina. Furtampelo modo mandativo, porque aceitamquanto Ihes mandam, e, para que mandemtodos, os que no mandam no so ceei-tos. Furtam pelo modo optativo, porque de-sejam quanto Ihes parece bem e, gabandoas coisas desejadas aos donos delas, porcortesia, sem vontade, as iozem suas. hs-tam pelo modo conjuntivo,porque ajuntamo seu pouco cabedal com o daqueles quemanejam muito, e basta s que ajuntem asua graa, para serem quando menosmeeiros na ganncia. Furtam pelo modopotencial, porque, sem pretexto nem ceti-mnia, usam de potncia. Furtam pelo mo-do permissivo, porque permitem que outrosfurtem, e estes compram os permisses.Furtam pelo modo in~nitivo, porque notm o ~m o furtar com o ~m do govemo, esempre l deixam razes em que se vocontinuando os furtos. Estes mesmos mo-dos conjURam por todas as pessoas, por-

    que a primeira pessoa do verbo a suo, ossegundas os seus criados, e as terceirosquantas para isso tm indstria e conson-cio. Furtam juntamente por todos os tem-pos, porque o do presente - que o seutempo - colhem quanto d de si o trinio;e para indurem no presente o pretrito efuturo, do pretrito desenterram crimes, deque vendem os perdes, e dvidas esqueo-dos, de que se pagam inteiramente, e dofuturo empenham as rendas e antecipamos contratos, com que tudo o cado e nocado Ihes vm a cair nas mos. Finalmen~te, nos mesmos tempos, no Ihes escapamos imperfeitos, perfitos, plus quam perfei~tos, e quaisquer outros, porque fUrtam, fUr~taram, furtavam, furtariam e haveriam defurtar, se mais houvesse. Em suma, que oresumo de toda esta rapante conjugaovem a ser o supino do mesmo verbo:a fur~tar paro furtar.E quando eles tm conjuga~do assim toda o voz ativa, e os miserveisprovncias suportado toda a passiva, eles,como se tiveram feito grandes servios, tor-nam carregados de despojos e ricos;e elas~cam roubadas, e consumidos.

    ("Sermo do Bom Ladro", do padreAntnio Vieira, 1655)

  • colonos e estrangeiros, em particular os france-ses. Esse o limite extremo do convvo entre or-dem e desordem, entre comrcio legal e descami-nhos: quando estes ameaam o negcio portugusda colonizao.

    As ilegalidades seguiam uma lgica mercantil.O ouro ilcito imediatamente entrava no circuitocomercial geral. Por exemplo: o ouro sado dos ri-beiros desimpedia-se dos controles locais, venciaas serras da Mantiqueira e do Mar, perpassava osregistros nas passagens dos rios Paraibuna e Para-ba, entrava no Rio de Janeiro, desvencilhava-se denovos controles, alcanava os negociantes estran-geiros, desembaraava-se da Alfndega, embarcavanos navos da frota, apartava nas ilhas do Atlnti-co ou em Lisboa, desembaraava-se novamente daAlfndega, prosseguia para Londres ou Amsterd,e de l rumava nos navos anglo-holandeses reuni-dos no chamado "comboio de Esmirna" (ou Izmir)em direo ao Mediterrneo, para o intercmbioneste e em outros portos da pennsula da Anatlia(Turquia), aos quais chegavam as rotas comerciaisterrestres do Levante com sedas da Prsia, entreoutros artigos.

    O maior beneficio do ato de driblar a lei era ev-tar o pagamento do quinto - os 20%devdos ao rei-, cujo "recibo" era um cunho real, marcado na bar-ra de ouro oficialmente fundida. Por isso, um dosmais engenhosos e bem-sucedidos descaminhos erafalsificar o prprio cunho. A posse de um cunho fal-so garantia ao seu dono o poder de legalizar toda equalquer barra fundida sem que o Estado sequersentisse o cheiro da sua parte devida. Um dos casosmais interessantes de falsificao aconteceu em SoPaulo em 1698. Os autores da fraude foram o vig-rio de Taubat, Jos Rodrigues Preto, um monge be-neditino chamado Roberto e um certo DomingosDias de Torres. Nada surpreendente que homens dereligio deixassem de lado suas prioridades espiri-tuais para dar golpes do gnero. A cobia no discri-minava condio social ou credo. E eles ainda se be-neficiavam de um privilgio legal: os religiosos nopodiam ser punidos pelo governador, pois estavamfora da sua jurisdio. Mas, assim como burlar a leiera prtica disseminada, cumprir os ritos juridicostambm no era to obrigatrio. Resultado: os en-volvidos foram presos pelo governador Artur de Se Meneses (1697-1702).Logo em seguida, fugiram.Mais tarde, o rei D. Pedro Il, "o Pacfico", resolveuperdoar a todos e deixar por isso mesmo: "Vosorde-no que toca ao tempo passado se no fale mais nes-te delito", escreve ao governador em 1700.

    Os populares santos

    de pau oco so mais

    representativos da

    contradio entre f

    e cobia do que da

    pratica do contraban-

    do de ouro e dia-

    Tamanha misericrdia no foi caso isolado.Afinal, ignorar normas e decretos era comporta-mento rotineiro at entre os agentes do Estado.Bom exemplo a prpria criao das casas de fun-dio para arrecadar o quinto. Elas foram institu-das em Minas por um bando publicado em Vila Ri-ca no dia 18 de julho de 1719, conforme a lei de14 de fevereiro de 1719. Entretanto, s funciona-ram de fato a partir de 10 de fevereiro ~e 1725. Porqu? Por causa da resistncia dos potentados lo-cais. Ningum queria ver a sua parte' do butim di-

    rnantes.

    Guardas da fiscalizao transportavam ouro emp escondido nos botes de seus uniformes

    minuda. Mas no houve jeito, e juntamente comas fundies veio a ordem de proibir a circulao'de ouro em p (por sua natureza, muito fcil decontrabandear). Nem por isso o ouro deixou de es-correr por entre os dedos do Estado: seus guardas,nos registros, transportavam ilegalmente aquelapulverizada riqueza... escondida dentro dos bo-tes dos uniformes!

  • Saiba Mais

    FURTADO, junia Ferreira.O livro da capa verde: oRegimento Diamantino de1771 e a vida do Distrito

    Diamantino no perododa RealExtrao.SoPaulo:Annablume, 2008.

    MELLO E SOUZA, Laurade. Desclassificados do Ou-ro: a pobreza mineira nosculo XVIII. 4' ed. rev.ampl. Rio de janeiro:

    Graal,2004.

    VIEIRA,Antnio.Escritos his-tricos e polticos. SoPaulo:Martins Fontes,1995.

    ossi

    A ousadia dos descaminhos do ouro no conhe-cia limites. O lance mais espetacular ocorreu napresena do prprio rei D. Joo V.A sua quinta par-te arrecadada dos mineradores de Cuiab em 1727havia sido acondicionada em quatro cunhetes (cai-xotes de munio de guerra). Recheados de ouro,eles, obviamente, estavam muito bem protegidos:guardados em cofres-fortes, sob a rigida vigilnciade muitos guardas, foram colocados com toda a ce-rimnia junto ao trono do rei, sob o olhar cobiosodo sqito de cortesos e representantes estrangei-ros. No momento em que D. Joo ordenou a aber-tura dos cofres ... surpresa geral: o ouro havia desa-parecido! Em seu lugar, diante de todos, revelou-seaos ps de Sua Majestade um metal nada nobre - ochumbo. D para imaginar a cara rei ...

    Mas a melhor poca para a prtica corriqueirados desvios era a das frotas. Navios fundeados, al-fndegas abarrotadas e mercadores por toda parte:

    Os furtos e desvios no eram coisa de negronem de pobre. No eram vcio moral nem sinalde cultura bastarda. Eram uma prticabranca, europia

    Casa da Intendncia e

    Fundio de Sabar,

    atual Museu do Ouro:

    evitar pagar o quinto

    era um dos expe-

    dientes mais vantajo-

    sos para os que bur-

    lavam as leis do reino.

    no caudal das gentes fluam os negcios conformeacertos e desacertos. Tudo to grave e inslito queo governador do Rio de Janeiro, Lus Vahia Montei-ro (1725-1732), um dos maiores combatentes con-tra os descaminhos, sugeriu que se pusesse sobcontrato o servio das "tomadias", isto , as opera-es de represso aos descaminhos. Vahia props

    ao rei que, to logo a frota ancorasse e os navios es-tivessem protegidos pelos guardas, ele deveria"mandar pr Editais para arrendar as tomadias doouro em p porque estou certo que o contratadorachar os meios para o descobrir, e sempre faltamquando as administraes se fazem para Sua Ma-jestade adonde todo mundo liberal em furtar, emuito mais em dissimular os furtos". Na prtica, is-so significava, em termos atuais, a privatizao dopoder coercitivo legitimamente exercido pelo Esta-do. Uma total inverso.

    Ao contrrio de yahia, quantos governadoresno dividiram sua lealdade entre o rei e seus pr-prios bolsos, ou melhor, as suas "casas"? A "casa"em questo compunha-se no s da famlia, comoa compreendemos hoje, mas de todas as demaispessoas ligadas por laos de sangue e de afinidadeque gravitavam em tomo dela. Pelo poder do ouro,as "casas" das autoridades cresciam e aumentavamseu prestgio social. Tantos o faziam, e de modo toexplcito, que um dos mais destacados homens domundo portugus na poca moderna, o padre An-tnio Vieira (1608-1697), dedicou-lhes uma partedo famoso "Sermo do Bom Ladro" (ver box).

    O que concluir disso tudo? O rei absolve os des-caminhadores. Governadores e oficiais furtam emtodos os tempos e por todos os modos. Ento, serque o descaminho mesmo uma aberrao do pro-cesso? Ou uma caracteristica inerente e indispens-vel prpria colonizao? Provavelmente, a se-gunda hiptese. A extrao de ouro e diamantesapenas potencializou uma caracterstica presentena Colnia desde o incio.

    No era coisa de negro nem coisa de pobre. Noera vcio moral nem sinal de cultura bastarda. Eraprtica branca, europia, chegou Amrica com aexpanso comercial e com o processo de formaodo capitalismo, e aqui contribuiu, desde o primei-ro momento, para a instituio da sociedade colo-nial. Por isso suas razes so to profundas.

    A prtica do descaminho e o chamado exclusivocomercial (o to conhecido "pacto colonial", segun-do o qual as metrpoles reservavam para si pr-prias o comrcio ultramarino) so dois lados damesma moeda. Uma moeda que, falsa ou verdadei-ra, sempre levou consigo o ouro do maior quilate. H

    PAULO CAVALCANTE PROFESSOR DE HISTRIA DAUNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO(UNI RIO), DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DEJANEIRO (UERJ) E AUTOR DO LIVRO NEGCIOS DE TRAPAA:CAMINHOS E DESCAMINHOS NA AMRICA PORTUGUESA (1700-1750), (HUClTEC, 2006).

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    PAULO CAVALCANTE

    Os falsificadoresCom ~ proteo do governador, fbricaclandestina de moedas e barras de ourofez fortuna no incio da minerao

    No FINAL DA DCADA DE 1720, floresceu no vale doRio Paraopeba, na base da atual Serra da Moeda -nome bastante sugestivo -, uma verdadeira fbricade barras e moedas de ouro. A fundio produziaininterruptamente, e ganhou fama pela qualidadedo ouro utilizado e do acabamento das peas. S ti-nha um problema: era totalmente ilegal.

    E nada discreta. Sob o comando de um certo In-cio de Souza Ferreira trabalhavam cerca de 100 ho-mens, entre brancos, negros, mulatos, mestios,gente de outras capitanias, de outras partes dos do-mnios portugueses e at antigos funcionrios da ad-ministrao lusa na Amrica. Como passaria desper-cebida uma fbrica de tais dimenses, mesmo _protegida por mato e montanhas? Quem arriscou ahiptese de que a fbrica de ilicitudes contava comapoio oficial acertou na mosca. E de gente grada: oprprio governador das Minas, D. Loureno de Al-meida (1721-1732).A cobertura oficial ia alm da"vista grossa" - tambm azeitava as redes de comer-ciantes e contrabandistas capazes de fazer as barrase moedas chegarem Europa.

    A fbrica foi desbaratada pelo ouvidor geralDiogo Cotrim de Souza. Ele precisou cercar a ope-rao de muito sigilo para que o governador nosuspeitasse de nada. O local, alm da posio estra-tgica para facilitar a comunicao com diversaspartes da Colnia, era bastante protegido. O histo-riador Augusto de Lima Jnior chegou a chamar afbrica de "fortaleza", pois esta tinha para sua de-fesa cancelas, cercas, pontes estreitas, muita gentee armas. Observe a imagem e acompanhe a nume-rao. O nmero 1 assinala a "entrada pelo matoserra abaixo que tem meia lgua at a casa de In-cio de Souza" (17). O nmero 2 indica duas cance-las sucessivas que serviam de defesa e de pontos de

  • controle das pessoas que ali trabalhavam. No n-mero 29, cruzamos a cerca por uma pequena pas-sagem. Note como as margens do caminho estoescuras e tracejadas, o que indica "a aspereza quetem a servido (passagem) naquela serra". Cruzadaa cerca, caminha-se por longo trecho at a primei-ra ponte (8) sobre o ribeiro (7). esquerda, as sen-zalas em expanso (20 e 21); direita, a casa de fun-dio do cunho e demais casas; em frente, umapequena igreja (ermida) e a casa do Incio (17). To-da a parte superior da casa do lncio uma espciede grande varanda/terrao de onde se pode obser-var todas as instalaes do lugar. Para se chegar casa da moeda falsa propriamente dita (26 e 28), preciso cruzar nova ponte sobre outro ribeiro (27)e depois nova cerca. No h simplicidade nem pre-

    cariedade. A planta registra uma cena complexa,bem planejada e em expanso.

    A fundio ilegal encerrou suas operaes em1731, mas D. Loureno de Almeida j havia se be-neficiado o suficiente do esquema para voltar ri-qussimo a Portugal, onde sequer foi punido - pelocontrrio, continuou desfrutando de cargos e deprestgio social. J lncio, o chefe da fbrica, mofouna cadeia. Deixando de lado os destinos pessoais,os dois eram faces da mesma moeda. Juntos, viabi-lizaram o negcio da colonizao. H

    PAULO CAVALCANTE PROFESSOR ElE HISTRIA DA UNI-VERSIDADE FEDERAL DO ESTADO RIO DE JANEIRO (UNIRIO).DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) EAUTOR DO LIVRO NEGCIOS DE TRAPAA CAMINHOS E DESCA-MINHOS NA AMRICA PORTUGUESA (1700-1750). (HUCITEC. 2006).

    Saiba Mais

    GUIMARES,Andr Re-zende. "Falsrios e con-trabandistas nas MinasSetecentistas: Incio deSouza e 'sua rede inter-nacional de negcios ilci-

    tos". Dissertao demestrado (UFMG. 2008).

    GUIMARES, Andr Re-zende. "Moedas falsas enegcios: o territrio dolcito e do ilcito nas Mi-nas setecentistas", dispo-

    nvel em:httpJ/www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais/st_trab--pdf/pdC9/andre_st9.pdf

    TLlO, Paula Regina AI-bertini. "Falsrios d'el rei:Incio de Souza Ferreirae a casa de moeda falsado Paraopeba". Disserta-o de mestrado (UFF,2005).

    Desenho aquarelado

    da fbrica clandestina

    de barras e moedas

    de ouro onde, sob o

    comando de Incio

    de Souza, trabalhavam

    cerca de 100

    homens, entre bran-

    cos, negros, e at fun-

    cionrios da adminis-

    trao rgia.

    digitalizar0016.jpgdigitalizar0094.pdfdigitalizar0095.pdfdigitalizar0096.pdfdigitalizar0097.pdfdigitalizar0098.pdfdigitalizar0099.pdfdigitalizar0100.pdf