Paulo Leminski - O Bandido Que Sabia Latim
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Toninho Vaz
PAULO LEMINSKI
O bandido que sabia latim
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Cip-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
V497p Vaz, Toninho, 1947-
Paulo Leminski: o bandido que sabia latim / Toninho Vaz. Rio de Janeiro : Record, 2001.
ISBN 85-01-05963-3
1. Leminski, Paulo, 1944-1989 Biografia.
2. Escritores brasileiros Biografia. I. Ttulo.
CDD 928.699 01-0411 CDU 92(LEMINSKI, P.)
hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee Copyright Toninho Vaz, 2001 Projeto grfico: Regina Ferraz Todos os direitos reservados. Proibida a reproduo, armazenamento ou transmisso de partes deste livro, atravs de quaisquer meios, sem prvia autorizao por escrito. Direitos exclusivos desta edio reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIOS DE IMPRENSA S.A. Rua Argentina 171 Rio de Janeiro, RJ 20921-380 Tel.: 585-2000 Impresso no Brasil ISBN 85-01-05963-3 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Caixa Postal 23.052 Rio de Janeiro, RJ 20922-970
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CCCCCCCCOOOOOOOONNNNNNNNTTTTTTTTRRRRRRRRAAAAAAAA CCCCCCCCAAAAAAAAPPPPPPPPAAAAAAAA
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente
ainda vai
nos levar alm
PAULO LEMINSKI
OOOOOOOORRRRRRRREEEEEEEELLLLLLLLHHHHHHHHAAAAAAAASSSSSSSS DDDDDDDDOOOOOOOO LLLLLLLLIIIIIIIIVVVVVVVVRRRRRRRROOOOOOOO
Rimbaud curitibano com fsico de judoca, escandindo versos
homricos, como se fosse um discpulo zen de Bash, escreveu
Haroldo de Campos apresentando seu discpulo. Segundo Caetano
Veloso, Leminski tem um clima/mistura de concretismo com
beatnik. Para Augusto de Campos foi o maior poeta brasileiro de
sua gerao. Em versos se autodefiniu: o pauloleminski/ um
cachorro louco/ que deve ser morto/ a pau e pedra/ a fogo e a pique/
seno bem capaz/ o filhodaputa/ de fazer chover/ em nosso
piquenique.
Samurai futurista, pensador selvagem, agitador intelectual,
meio polaco e meio caboclo, provinciano e universal, Paulo Leminski
foi uma inesquecvel tempestade na cena cultural brasileira, antes de
morrer aos 44 anos, em 1989, no auge do sucesso, como um mito.
Fabricando fenmenos e sensaes com sua poesia
perturbadora, Leminski conjugava a densidade fulminante de haicais
com a loucura da contracultura, o coloquialismo e o humor de nosso
primeiro modernismo com sua profunda erudio. Deixou um
testamento ps-joyciano com a prosa ousada de Catatau, e msicas
nascidas de parcerias com Arnaldo Antunes, Itamar Assumpo,
Moraes Moreira, Jos Miguel Wisnik e Caetano Veloso.
O poeta marginal de Curitiba aderiu ao mainstream miditico
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dos anos 80 fixando sua marca em trabalhos assinados na Veja,
Folha de S. Paulo e na televiso, no Jornal de Vanguarda, enquanto
encantava com suas impecveis tradues de John Fante, Alfred
Jarry, Yukio Mishima e Samuel Beckett. Suas biografias de Cruz e
Sousa, Bash, Jesus e Trotski davam a bandeira de sua ligao com
os cavaleiros da paixo e da poesia, e com os limites do perigo
sinalizando: Existe um paradoxo nos produtos culturais, superiores
frutos do trabalho humano: eles sobre-vivem ao autor, so uma
vingana da vida contra a morte. Por outro lado, s podem fazer isso
porque so morte: suspenso do fluxo do tempo, pompas fnebres,
pirmide do Egito. O bandido que sabia latim resgata a vida deste
artista que foi hippie; professor de jud, Histria e redao;
publicitrio; inveterado conquistador e bebedor de vodca; candidato a
monge beneditino; gnio e doido; dolo e mestre que deixou poesia e
saudade para geraes de leitores.
Antonio Carlos Martins Vaz
(Toninho Vaz) nasceu a 2 de
outubro de 1947, em
Curitiba. jornalista e
roteirista de televiso.
Comeou escrevendo no
Dirio do Paran, em 1969.
Foi editor e colaborador de
diversos jornais alternativos
nos anos 70 e 80 Anexo, Raposa, Polo Cultural, Pasquim, Nicolau.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1974. casado com Nan Gama
e Silva e tem uma filha, Maria Carolina. Trabalhou como editor de
texto na Rede Globo durante quatorze anos. De 1995 a 1998 viveu
em Nova York. Atualmente mora em So Paulo.
Capa e quarta capa: fotos Dico Kremer
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Para Nan, pelo amor
e Alice, pela amizade
Para a tia B, que s lia biografias
-
Este livro vai contar a histria de Paulo Leminski Filho, o mais
iluminado e reverenciado poeta curitibano. Esta biografia no
pretende analisar o valor de sua obra e nem discutir a qualidade de
seu trabalho tarefa esta que deve ser delegada a quem de direito:
os crticos literrios. Aqui se pretende fornecer elementos que
possam explicar a existncia e a personalidade de um intelectual to
singular e criativo como Paulo Leminski, poeta responsvel pela
insurreio da fantasia, o autodenominado cachorrolouco, a besta
dos pinheirais, o ex-estranho, o que chegou sem ser notado.
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aqui jaz um grande poeta,
nada deixou escrito,
este silncio, acredito,
so suas obras completas.
Paulo Leminski
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SUMRIO
PREFCIO O tal das qumicas
CAPTULO 1 A plenos pulmes
CAPTULO 2 Uma luz na cidade
CAPTULO 3 A vida no mosteiro e alm
CAPTULO 4 Curitiba, por trs da neblina
CAPTULO 5 Com o diabo no corpo
CAPTULO 6 Delrios e noites cariocas
CAPTULO 7 O dia da criao
Um captulo parte
CAPTULO 8 A Cruz do Pilarzinho
Outro captulo parte
ltimo captulo parte
CAPTULO 9 O poeta descalo
O resto imortal
CAPTULO 10 Perhappiness
EPLOGO 27 clics de Leminski
Apndices
Bibliografia
Discografia
Agradecimentos
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O TAL DAS QUMICAS
A idia deste livro saiu da cabea de Alice Ruiz durante um passeio
pelo centro antigo do Rio de Janeiro no Natal de 1998. Ela fez a
sugesto argumentando que com a morte do poeta, dez anos antes, o
culto sua obra e personalidade principalmente em Curitiba,
onde foi transformado em mito pelas novas geraes s fez
aumentar o interesse e a curiosidade por sua vida vale dizer, to
extraordinria quanto sua obra (ou o Catatau no algo
extraordinrio?!, um sujeito que passa oito anos escrevendo um livro
que poucas pessoas conseguem ler e aquelas que o fazem [a
crtica especializada, em grande parte], chamam-no de obra-
prima?...).
Ela arrematou: Eu mesmo preciso conhecer o homem com
quem vivi por 19 anos. Algum tem que fazer esse trabalho. Assim
nasceu esta biografia. De um ponto de vista estritamente pessoal,
posso garantir sem medo que Paulo Leminski nunca me ofereceu
alternativas: fui seu f at o final.
Da mesma forma, sempre acreditei que, independentemente de
seu gnio potico e de sua obra, Paulo Leminski no foi uma pessoa
normal. No era quando eu o conheci no ano histrico de 1968.
Tinha algo de especial, algo de magntico, algo fora do comum, algo
de louco. Sua profunda erudio e modernidade o transformavam
num intelectual peculiar, brilhante e eloqente um especialista
em generalidades, como se definia. Quando falava e gesticulava
parecia materializar uma utopia em forma de charme. Num certo
sentido pode-se comparar com a apario de um disco voador: quem
viu no consegue esquecer.
Lembro-me como se fosse hoje: ao conversar com ele pela
primeira vez (no tempo que a contracultura era uma postura
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ideolgica e no um produto de consumo) sobre assuntos culturais
diversos, finalmente, a escola e os estudos passaram a fazer sentido
em minha vida. Costumo dizer que me alfabetizei, ento. J
trabalhava como reprter em redao de jornal, cursava o primeiro
ano da faculdade mas no suportava a vida acadmica pelo menos
com aquela rotina que me tinha sido apresentada. Paulo Leminski,
neste sentido, desempenhou um papel decisivo na minha vida
profissional, adicionando contedo e perspectiva sopa rala da
minha pobre cultura ou seria cultura de pobre? Com o passar do
tempo nos tornamos amigos e compadres. (Ele me chamava de
Martins, adotando um dos meus sobrenomes paternos.)
Agora, na virada do ano 2000, subitamente investido no papel
de seu bigrafo, me deparei com a tarefa de traduzir ao leitor quem
realmente foi Paulo Leminski Filho, com todas as suas grandezas e
contradies. Era um convite de grego (helnico, ele diria), pois
teria que mergulhar numa personalidade complexa e inquieta, que
viveu cortejando os limites do perigo, irremediavelmente engajado
no difcil e tendo alguns pontos obscuros na trajetria de sua vida.
No final, no me restou outra alternativa seno agir, mais uma vez,
como ele recomendava: respirando fundo e abordando o trabalho
com raa, mtodo e sinceridade. Eu juro que tentei.
Aps um ano de pesquisas e 81 entrevistas realizadas com
parentes, parceiros, alunos, ex-mulheres, professores, amigos e at
desafetos, foi possvel reunir histrias, escritos, poemas e fotos
inditas; rascunhos de textos inacabados e muitas pegadas
espalhadas pelas trs cidades onde o poeta viveu: Curitiba, Rio de
Janeiro e So Paulo. O resultado est aqui na medida das minhas
pretenses: o retrato de um poeta brasileiro sem disfarces, o ex-
estranho Paulo Leminski.
Toninho Martins Vaz
Abril, 2000
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CAPTULO 1
A PLENOS PULMES
Ipanema, 17 de dezembro, 1986. O telefone toca logo pela
manh, fazendo um rrrrring-rriing estridente prximo ao meu ouvido
no momento mais delicioso do sono. Uma esticada de olho no relgio e
a indicao dos ponteiros: 8 horas. Simplesmente madrugada para um
jornalista de hbitos noturnos como eu, amante de bares, blues e lua
cheia. Arrastei um Alooo?... quase inaudvel com a inteno de ser
interpretado como um bom dia...
Martins? voc?
Imediatamente reconheci a voz de Paulo Leminski e pulei da
cama.
Paulo, que surpresa!
(Vamos dizer que um telefonema do Paulo era sempre uma
surpresa.)
Ainda meio tonto, tentei me recompor...
Ele no esperou:
Mano, o Pedro pediu a conta.
(silncio)
Parei no meio do caminho, segurando o telefone com uma das
mos e esticando o fio com a outra...
Pediu a conta como?...
Se enforcou, se matou, chamou o garom, se foi...
(silncio)
Porra, Paulo, que histria essa?!
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Pedro era o mais novo dos dois irmos Leminski. No incio dos
anos 70, quando o conheci nos bares de Curitiba, tinha 23 anos e
parecia carregar o esprito de Bob Dylan no corpo, fazendo uma
msica visceral e combativa, impregnada de verve revolucionria e
contracultural. Nada muito elaborado, nada exatamente profissional,
mas tudo muito criativo e potico. Num certo sentido, o Pedro sempre
foi uma alma conturbada e sofredora que com o passar dos anos se
moldou na solido e no alcoolismo. No comeo, dizia canes
saturadas de amor e raiva, deixando pela madrugada um rastro de
orqudea selvagem de bar em bar. Se no foi quem ensinou o Paulo a
tocar violo, certamente exerceu nele uma forte influncia na
descoberta das primeiras harmonias e acordes. Comps msicas
notveis e premonitrias como Orao de um suicida, escrita nos
anos 70 e que viria a funcionar, no futuro, como um paradigma da
realidade.
Os irmos Leminski antes que se possa pensar o contrrio
no eram msicos importantes ou mesmo virtuoses em seus
instrumentos. Para eles, poetas contemporneos ligados s mais
variadas formas de expresso, a melodia existia para transformar os
versos em canes. Esta era a exigncia bsica feita ao violo: que ele
pudesse oferecer suporte rtmico a certos poemas... E ponto final. De
qualquer maneira, em curto espao de tempo, o discpulo superou o
mestre e acabou conquistando um relativo sucesso nas paradas da
MPB. Em 1972, Paulo Leminski trouxe luz o projeto Em Prol de um
Portugus Eltrico, onde propunha uma pesquisa mais profunda e
direcionada para o ponto fraco do rock brasileiro: as letras. Era f de
Rita Lee exatamente por ela apresentar estas qualidades musicais.
Mais tarde, suas canes foram gravadas por msicos da importncia
de Caetano Veloso, Moraes Moreira, Itamar Assumpo, Ney
Matogrosso, Arnaldo Antunes, Zizi Possi e, uma suprema glria
pessoal, ngela Maria.
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Nos ltimos anos, qual dois Karamazov, os irmos no se
falavam. Ou, quando o faziam, se desentendiam. Tais diatribes
tinham origem em diversos pontos do relacionamento pessoal, mas
eram, sobretudo, motivadas por um certo desprezo que o Paulo sentia
por pessoas que no produziam. O aparente gesto de severidade para
com o irmo era na verdade um mecanismo de autodefesa ou, a
considerar algumas avaliaes mdicas, uma maneira de mascarar o
medo do prprio destino. Para ele, Paulo Leminski Filho, a simples
idia de consentir uma centelha que fosse com a apatia e o
desnimo representava o fim, o mesmo que desistir do jogo da vida e
da criao. Argumentava como uma metralhadora giratria: O sujeito
tem que apresentar uma produo qualquer, mnima, mesmo que seja
na rea da malandragem.
Antes de morrer, Pedro Leminski fez tudo direito e se isolou. No
momento do gesto extremo, para conseguir quebrar a coluna cervical
com o golpe do enforcamento, foi obrigado a encolher as pernas,
pendurado a um armrio...
A partir deste trgico episdio, segundo observaes de Alice
Ruiz, com quem Leminski viveu por 19 anos, as coisas mudaram
tambm para ele. O poeta assumiria, com a morte do irmo mais novo,
uma postura ainda mais radical diante da vida, resgatando uma
antiga devoo autodestrutiva (self destruction, ele dizia no incio dos
anos 70), que contribuiria para acelerar o processo de cirrose heptica
e provocar sua morte em junho de 1989, aos 44 anos. Quando isto
aconteceu, ele j era considerado um dos nomes mais importantes da
literatura brasileira contempornea.
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CAPTULO 2
UMA LUZ NA CIDADE
Paulo Leminski Filho nasceu s dezenove horas e dez minutos
do dia 24 de agosto de 1944, em Curitiba, mais precisamente na
Maternidade Vtor do Amaral, no bairro da gua Verde.
Este fato, assim narrado de forma trivial e despretensiosa, no
haveria de suscitar nenhum tipo de discordncia ou estranhamento,
no fossem alguns registros publicados na imprensa paranaense
afirmando ter o poeta nascido, na realidade, em Itaipolis, uma
pequena cidade no interior de Santa Catarina. Segundo estas
verses, a famlia Leminski teria se mudado para Curitiba logo aps
o nascimento do primognito. Com o passar do tempo, j adulto e
identificado nacionalmente como um poeta curitibano, o prprio
Leminski estaria encobrindo sua verdadeira origem.
Esta , certamente, uma verso equivocada ou fantasiosa mas
no de todo despropositada, considerando que estaria a a primeira
surpresa (armadilha, troa, truque, sarro) de uma vida e de uma
obra marcadas pelo uso e abuso do sobressalto e da metalinguagem:
ao nascer, o mais famoso poeta curitibano seria, na realidade,
catarinense. Uma anedota espirituosa, sem dvida, mas que, pelo
menos desta vez, no pode ser creditada a ele e nem levada a srio
como informao biogrfica.*
O dia amanhecera frio e mido naquela tera-feira. Uma
* O registro de nascimento est arquivado fl. 12 do livro n 21, do cartrio de Francisco Antonio de Abreu, com data de 26 de agosto de 1944 Curitiba, Paran. Signo de Virgem, no horscopo tradicional, e Macaco no horscopo chins.
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neblina tpica e muito comum nesta poca do ano deixava Curitiba
mergulhada numa tonalidade opaca e suave, quase transparente. Os
jornais do dia anterior e os programas matinais de rdio preveniam
que a temperatura deveria cair nas prximas horas. O termmetro
marcava 15 graus, mas por fora de suas obrigaes com o Exrcito
Brasileiro, onde ocupava a patente de sargento, Paulo Leminski
pulou cedo da cama. Ele tinha o hbito de acordar com os pardais e
dormir com as galinhas, mantendo, mesmo em casa, as normas
disciplinares da caserna. No que fosse um sujeito agitado nos
movimentos ou mesmo vigoroso nas decises; nada disso, muito pelo
contrrio; mas nestes tempos difceis de guerra, ele redobrava a
disposio mantendo-se a servio de uma causa nobre e emergente:
a defesa incondicional das fronteiras do pas.
No plano domstico, 1944 vai representar a data em que o
Brasil comemorou o segundo ano de sua participao na Segunda
Guerra Mundial. No dia 24 de agosto, o presidente Getlio Vargas
celebrava cerimnia alusiva no Palcio do Catete, no Distrito Federal.
A devoo pblica, que levara a nao a viver com um olho no
racionamento e outro na frente de batalha, encontrava no sargento
Leminski um militar convicto e zeloso de suas obrigaes. Ele tinha
ento 33 anos e nutria um sentimento de admirao e respeito pelo
marechal-presidente, Getlio Dornelles Vargas.
Paulo Leminski, o pai do poeta, era filho de poloneses de uma
remota provncia de nome Naryow embora isso nunca tenha sido
devidamente comprovado. A famlia, composta pelo pai Pedro, a me
Catharina e o irmo Miguel, veio para o Brasil no fluxo da grande
migrao de 1895, quando grupos da Polnia e da Ucrnia deixaram
a Galcia (tudo, ento, Imprio Austro-hngaro) e as razes pelas
quais estes xodos aconteceram so histricas: perseguies polticas
e raciais, um surto de clera que atingiu a Ucrnia e, ainda, o
sempre cultivado sonho de um mundo novo e produtivo.
-
Historicamente, sabe-se que os trs fatores agiram simultaneamente
quando os Leminski decidiram encarar a aventura de cruzar o
Atlntico a bordo de um navio. Para quem no tinha nada a perder,
era pegar ou largar. Os Leminski resolveram pegar.
Os documentos oficiais, emitidos por autoridades da Ucrnia,
registram a sada deles pelo porto de Gnova, na Itlia, no dia 9 de
julho. A regio sul do Brasil, pelo seu clima frio e vocao agrcola,
foi o destino anunciado pela maioria das famlias. Paulo Leminski
nasceria em 1911 em Restinga Seca, interior do Paran, quando a
famlia j estava devidamente assentada na regio. Ainda
adolescente, mudou-se para Curitiba, onde acontecem as principais
aes desta histria.
O av materno do poeta, Fernando Pereira Mendes, era um
paulista de Itu, descendente de portugueses e capito do Exrcito na
comarca de Curitiba, para onde fora ainda jovem, tambm na
tentativa de encontrar uma porta aberta para o futuro. J militar,
trabalhava na administrao da Subsistncia, na rua Joo Negro,
uma unidade considerada por sua especfica funo de
abastecimento o supermercado dos oficiais militares. Nas horas
vagas, Fernando compunha versos pungentes e rebuscados na
linguagem, que publicava em jornais do interior de So Paulo. Eram
manuscritos em caligrafia impecvel que iriam denunciar, no futuro,
o fio condutor da linhagem potica da famlia ou, mais
especificamente, de Paulo Leminski Filho, seu neto.
Fernando casou-se em primeiras npcias com Inocncia, filha
de Mrio e Lia Alves, nativos da regio de Paranagu e Antonina, no
litoral paranaense. Ela, da vertente negra e indgena brasileira, com
remota ascendncia carij. Fernando teve nove filhos de dois
casamentos, sendo que as duas esposas eram irms a outra, com
quem se casaria mais tarde, chamava-se Lucila. A moa urea, que
viria a ser a me do poeta, era a terceira filha do primeiro
-
matrimnio, com Inocncia.
Paulo Leminski e urea Pereira Mendes se conheceram nos
tradicionais footings da rua XV de Novembro, agenda social que
embelezava as tardes romnticas de vero nos anos 40. Nesta poca,
quando as pessoas andavam mais devagar, as caladas e vitrines
mais concorridas de Curitiba ficavam entre as ruas Dr. Muricy e
Baro do Rio Branco, um pouco alm da boca maldita, como seria
chamado um certo trecho da avenida Luiz Xavier. Por ali desfilavam
o charme e a elegncia da provncia, que tinha pouco mais de 140
mil habitantes. O que se seguiu entre os jovens enamorados, depois
dos primeiros olhares, foi um namoro rpido, bastante controlado
pelo conservadorismo do pai, e, em seguida, o noivado. Como
resultado da determinao do sargento Leminski, ficou claro, desde o
incio, que ele estava assumindo um compromisso srio com a filha
do capito.
O casamento aconteceu um ano depois, a 7 de outubro de
1943, na casa da noiva, na rua Duque de Caxias, com a presena do
juiz e do padre casamenteiro. Nada de igreja ou desfile de carros
arrastando latas pela cidade, como era costume. Uma cerimnia
simples e ntima selou a unio do casal, com o testemunho apenas
das duas famlias.
Depois da festa os pombinhos seguiram para a casa alugada
na rua Repblica Argentina, 1.136, uma regio ainda hoje conhecida
como Capelinha, numa referncia a um santurio carregado de
significao religiosa e misticismo. O pequeno monumento, onde as
velas ardiam durante a noite, era uma homenagem da famlia
Moletta pioneiros da gua Verde Imaculada Conceio e seria
adotado pelos fiis como um lugar pblico de penitncias e oraes.
Havia nesta poca dois monumentos religiosos bastante populares e
msticos em Curitiba; o outro, que no tinha o formato de uma
capelinha mas sim de uma grande cruz de madeira, ficava no lado
-
oposto da cidade e era conhecido como a Cruz do Pilarzinho.
Juntos, Paulo e urea comearam a descobrir, nestes dias de
guerra, todas as exigncias e dificuldades de uma vida provisria e
racionada; ele, trabalhando pesado em unidades operacionais, sob a
jurisdio do 3 Exrcito; ela, se aprimorando nas tarefas domsticas
e se preparando estoicamente para o lar e a maternidade.
Finalmente, naquela manh, o sargento Leminski pde ouvir
no rdio as ltimas notcias do front: Foras aliadas retomam Paris;
as tropas nazistas recuam. Os boletins noticiosos anunciavam uma
noite de luz e festa em Champs Elyses: O general Charles De
Gaulle exalta a Frana; o escritor Jean-Paul Sartre, um ativo
militante da resistncia francesa, comemora com amigos intelectuais
o sucesso da ofensiva. A guerra estava chegando ao fim. s 11
horas, as contraes comearam.
O nascimento do primognito dos Leminski aconteceu no incio
da noite e foi considerado um parto normal pela equipe mdica. O
beb veio ao mundo com trs quilos e meio, um razovel volume de
cabelos negros na grande cabea e muita disposio aerbica:
chorava alto e em bom tom.
Na opinio de tia Luiza, uma das cinco irms a visitar a jovem
me e seu beb na maternidade, era um guri lindo e saudvel.
Nasceu muito forte e logo se tornou uma criana muito querida. Era
mesmo uma graa, enfatiza, sugerindo uma ligao entre estes
sinais de vivacidade e o carisma que o menino revelaria famlia aos
trs anos de idade. A partir do seu nascimento, e mesmo quando
adulto, ele seria chamado exatamente assim pelas cinco tias que o
cercariam de mimo: Paulinho.
Os pais mandaram fazer pequenos cartes em cores suaves,
com o desenho de uma criana em fraldas, para anunciar o
nascimento do primeiro filho: Paulo e urea P. Mendes Leminski
-
tm o prazer de participar o advento de seu primognito Paulo.
Curitiba, 24 de agosto de 1944.
Num certo sentido, o que aguardava Paulinho no lado de fora
do aconchego materno era um planeta socialmente virado de ponta-
cabea. Os anos ps-guerra estes sim estavam apenas comeando
trariam brisas aromticas e poeiras radioativas numa mesma
lufada durante as dcadas seguintes.
No plano cultural, enquanto o Oriente reunia foras para uma
profunda reestruturao social, o existencialismo francs pontificava
nos sales e cafs europeus. Sartre, que havia lanado no ano
anterior o polmico O ser e o nada, colhia os frutos deste e de outros
sucessos polticos e intelectuais. Nas estradas da Amrica, a arte e a
cultura do novo mundo j apresentando sinais de automao
faziam florescer uma gerao espontnea de artistas, poetas,
escritores, viajores que preconizavam uma revoluo URGENTE no
comportamento e nos costumes da juventude. A performance e a
prosa do aventureiro Jack Kerouac, que neste mesmo dia (24 de
agosto de 1944) estava preso numa delegacia do Bronx, em Nova
York, representavam uma nova expresso da literatura americana
moderna, aquela por ele batizada de a gerao beat.*
No Brasil, as conseqncias da Semana de 22 ainda ecoavam
como uma bofetada no rosto da nao. O manifesto antropofgico,
divulgado em 1928, fora considerado ultrajante pelas elites e de mau
gosto pela classe mdia. Mesmo provocando reaes apaixonadas na
platia (ou contra ou a favor), o fato que, aps a exposio pblica
dos nossos talentos e artimanhas, promovida por intelectuais srios
* Em conversa informal com John Clellon Holmes, em 1948, Kerouac usou pela primeira vez a expresso beat generation, com o propsito declarado de no criar um slogan. Ironia do destino, o que era uma negao [Ah, this is nothing but a beat generation) transformou-se na bandeira de um importante segmento da produo literria americana do sculo XX. Em 1952, o artigo This Is the Beat Generation, assinado por Holmes, seria publicado com pompa e circunstncia em The New York Times, referendando o movimento.
-
e debochados como Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mrio de
Andrade e Tarsila do Amaral, nossa cultura, do ponto de vista de sua
organicidade, jamais seria a mesma. A partir de 22, criamos ainda
que base de doses indigestas de ironia uma identidade verde-
amarela que viria nos ajudar a desenvolver a capacidade de olharmos
para ns mesmos.
Em 1944 (spotlight neste tema, por favor) teve incio uma
macia fase de produo do cinema brasileiro que entraria para a
histria como o glorioso perodo das Chanchadas. Comeava a
surgir nas telas os gnios de Oscarito e Grande Otelo, contemplando
em suas temticas os hbitos e costumes da sociedade carioca. A
reao paulista veio com a criao da Companhia Vera Cruz, um
empreendimento grandioso que na dcada seguinte produziria seu
maior xito: O Cangaceiro, de Lima Barreto. Era o cinema brasileiro
gritando Ao!, no plano industrial e intelectual. Em Bogot, onde
servia na Embaixada do Brasil, o ps-moderno Guimares Rosa
preparava uma coletnea de contos (Sagarana) e apenas iniciava a
gestao do seu romance mais radical, Grande serto: veredas,
editado pela primeira vez em 1956.
Enquanto isso, no aspecto poltico e econmico, o Estado Novo,
de Vargas, empurrava o Brasil um pouco mais para perto dos
brasileiros, anunciando medidas que representariam conquistas
inquestionveis para a classe trabalhadora. Estava criado o salrio
mnimo nacional. Em 1944 chegava ao fim, depois de muita
expectativa e ansiedade, as obras de construo do Aeroporto
Internacional Santos Dumont, no Rio de Janeiro, a Capital Federal.
A infncia de Paulinho, neste contexto, foi normal e saudvel.
No incio, o menino manifestava isoladamente alguns dotes
artsticos, pendores naturais para a arte e os mistrios da
linguagem infantil. Tia Luiza lembra que certa vez foi abordada pelo
pi, antes mesmo de ele completar 4 anos, que lhe mostrou um
-
papel com um desenho que havia feito usando um lpis preto
comum:
Era um fogo, muito bem desenhado para uma criana da
idade dele. Sobre o fogo, vrias panelas vazias...
Na condio de professora ginasial trabalhando em escola
pblica e, portanto, familiarizada com a chamada pedagogia
infantil, tia Luiza foi logo incentivando o artista, fazendo elogios
qualidade da obra... Mas o garoto surpreendeu:
Mas isso muito triste, minha tia!
Triste por que, Paulinho?
Este quadro chama-se Misria e mostra um fogo sem lenha
e panelas sem comida.
Uma idia de misria que certamente no refletia a sua prpria
condio social. Afinal, era filho de um sargento do exrcito que vivia
com simplicidade, mas com conforto.
Tia Luiza lembra que desde cedo Paulinho demonstrava
aptides para encontrar estas informaes dentro dos limites de sua
prpria casa, em livros, jornais e revistas. O garoto se revelou, com a
mais tenra idade, um escarafunchador de publicaes, em todos os
sentidos no incio, com rasges e safanes desordenados, e logo
depois, como um apaixonado pelos livros.
Quando se preparava para completar quatro anos e a casa
paterna se descortinava como um imprio sem limites ou fronteiras,
Paulinho ganhou um irmo. No dia 23 de abril de 1948, nascia o
segundo filho do casal Paulo e urea, que seria batizado com o nome
do av paterno: Pedro Leminski. A famlia aumentava, mas os bons
ventos do ps-guerra anunciavam um perodo de reconstruo e
prosperidade. Vivia-se em todo o pas a febre da procura por bens de
consumo, principalmente de produtos eletrnicos: rdio, geladeira e
chuveiro eltrico. No era necessrio subir em escadas e nem trepar
em rvores para enxergar, logo frente, despontando no horizonte,
aqueles que seriam chamados de Os Anos Dourados.
-
Nestes dias, Paulinho adquiriu o estranho hbito de subir no
guarda-roupa. Ele justificava dizendo que ali no seria importunado
pelo irmo caula, que circulava pela casa engatinhando
freneticamente, procurando confuso. Diariamente, Paulinho pedia
ao pai para coloc-lo sobre o enorme mvel de jacarand, onde
passava horas compenetrado em leituras e divagaes...
Em 1949, por fora de um ato de transferncia interna do
Exrcito, o sargento Leminski se viu obrigado a reunir a famlia e
preparar a mudana de malas e cuia para Itapetininga, no interior
de So Paulo. A viagem e os transtornos decorrentes dela
considerando uma famlia com duas crianas, sendo uma recm-
nascida foram recompensados com a promoo para subtenente,
agora da 2 Companhia de Transmisso. Os garotos Paulinho e
Pedrinho tinham ento 5 anos e 1 ano, respectivamente, e gostavam
de bater continncia sempre que viam o pai fardado.
Na manh de 3 de maro de 1950, atravs de um telegrama
nefasto e carregado de dramaticidade, eles souberam da morte de
Fernando, o pai de urea. Dois dias depois, uma nota seria
publicada no Dirio de Itapetininga, anunciando o passamento, em
Curitiba, de Fernando Pereira Mendes, Membro da Academia de
Letras Jos de Alencar e sogro do Subtenente Paulo Leminski,
atualmente servindo nesta praa.
Novas mudanas viriam em seguida. Antes do final do ano eles
estariam de volta ao Sul, indo morar em Itaipolis, uma pequena
cidade de Santa Catarina. A casa ficava num bairro afastado do
centro urbano, uma vila militar conhecida como Quilmetro 34.
Era um ponto estratgico para o Exrcito, com relao ao que se
imaginava fosse o nosso inimigo em potencial, a Argentina. Foi um
perodo no qual os Leminski viveram cercados por uma paisagem
buclica, de inspirao rural, que iria permitir aos meninos travarem
contato direto com a vida simples do interior, um trao que ficaria
indelevelmente marcado em suas personalidades at o fim.
-
Na lembrana de Tia Luiza, que por duas vezes visitou a irm
urea em Itaipolis, Paulinho era mesmo um menino esperto e
superativo, no sentido moderno da palavra. Iniciou os estudos
oficiais aos cinco anos, quando foi matriculado numa escola pblica
perto de casa. Gostava de subir em rvores e dormir no sto das
casas. Certa vez, dona urea foi surpreendida com a visita de um
grupo de ndios que vieram entregar peas de artesanato
encomendadas pelo garoto e j pagas com suas prprias economias.
tia Luiza quem conta:
Os ndios trouxeram arcos, flechas e pequenos utenslios em
madeira e couro. Foi surpreendente, pois o Paulinho era apenas uma
criana, conhecendo novos amigos e fazendo negcios a srio.
Na hora de comer, Paulinho tinha sempre um bom apetite,
fazendo do trivial arroz, feijo e banana o seu prato preferido.
Quando ficava em casa, principalmente nos dias de chuva, gostava
de observar a me desenvolvendo as tarefas domsticas, no preparo
do almoo e do jantar, enquanto ouvia no rdio os ltimos sucessos
de Agostinho dos Santos, Pedro Vargas ou Dalva de Oliveira, seus
artistas favoritos:
Lbios que eu beijei, mos que eu afaguei...
Quando j era um poeta famoso, Paulinho (grafando assim o
nome como uma referncia criana que havia dentro dele)
escreveria poemas onde se percebe com nitidez a inspirao
originada nestas janelas do tempo:
l fora e no alto
o cu fazia
todas as estrelas que podia
na cozinha
-
debaixo da lmpada
minha me escolhia
feijo e arroz
andrmeda para c
altair para l
sirius para c
estrela dalva para l
Ou este outro, tambm fruto da observao do cotidiano
materno:
Minha me dizia:
ferve, gua!
frita, ovo!
pinga, pia!
E tudo obedecia
Quando em muitos aspectos a ordem social e poltica no Brasil
estava sendo reorganizada, surgem os primeiros problemas trazidos
pelo lcool para dentro da famlia Leminski. O sargento, como ele
ainda era conhecido, vinha transformando o hbito de tomar
aperitivos sociais num ritual cada vez mais destemperado na
quantidade e nas conseqncias. Era considerado um bom marido e
um pai zeloso, mas sua imagem naturalmente dolente e calada
ganhava agora a aparncia doentia de um homem de pijamas e com
a barba por fazer. Certa vez, quando uma visita entrou na cozinha
para tomar gua, foi aconselhada pelo pequeno Paulinho a no usar
determinado copo que estava na cristaleira. O garoto nem falava
direito, mas j se fazia entender:
No pode usar porcoso que este o copo que o meu pai
gosta de beber cachaa.
-
Em seguida, uma nova transferncia para outra base militar e
os Leminski estavam agora na pequena Rio Negro, na divisa do
Paran com Santa Catarina, a 50 km de Itaipolis. A rigor, eles
apenas mudaram de bairro e foram morar na Vila Paraso, onde se
concentravam as casas dos oficiais que vinham de outras regies.
Ali, Paulinho concluiu a ltima srie do curso primrio no Colgio
Estadual Dr. Caetano Munhoz da Rocha, onde tambm prestou o
exame de admisso ao ginsio, em 1955. Nos seis crditos do teste
de admisso, ele foi aprovado com mdia 7,48, sendo que suas
melhores notas foram em Geografia e Histria, com as notas 9,5 e
7,2, respectivamente. Mais tarde, ele diria ter produzido, nesta
poca, aos 8 anos, seu primeiro poema, O Sapo, cuja temtica
remetia vida campesina e buclica do interior do Brasil.
No dia do seu aniversrio, quando completaria dez anos,
Paulinho e toda a nao brasileira foram surpreendidos logo pela
manh com uma notcia dita bombstica: Getlio Vargas se
suicidara com um tiro no corao. A crise poltica no Palcio do
Catete chegava a seu ponto culminante com a divulgao da carta-
testamento assinada de prprio punho pelo presidente. Como
conseqncia deste infausto acontecimento, a festa de aniversrio de
Paulinho foi bastante contida e reservada; alm do irmo Pedro,
agora com 6 anos, poucos amigos do bairro apareceram para cantar
o Parabns pra voc.
Dois anos depois, em agosto de 1956, finalmente os Leminski
arrumariam as malas e voltariam para Curitiba. Foram morar numa
pequena casa de alvenaria na rua Heitor Guimares, 624, no bairro
Seminrio, a poucos metros do tradicional Internato Paranaense. O
aluguel no era caro e as despesas continuavam compatveis com os
proventos de um oficial militar. Provavelmente teria sido a
proximidade fsica com o colgio e no propriamente uma
inclinao religiosa a razo pela qual Paulinho seria matriculado
-
na tradicional instituio dos irmos maristas, um ensino com
prestgio na cidade.
Para se entender o que vai acontecer com Paulo Leminski deste
ponto em diante, necessrio antes avaliar ainda que
sucintamente a importncia e o significado do ensino religioso na
educao e na formao intelectual de geraes de brasileiros.
Concebidas como pilares vocacionais das ordens missionrias
jesuticas, as escolas de cunho religioso que se espalhavam pelo pas
na virada do sculo funcionavam como um veculo para arregimentar
e catequizar, muito alm de alfabetizar. Apenas flertando com as
elites, as aes sociais da Igreja ampliavam os laos de integrao
com as comunidades (fiis) de base, tornando-se todos, por muitas
vezes e em diferentes circunstncias, uma grande famlia. Era o
Brasil das missas, das novenas e das quermesses dominicais. O
Brasil cristo. E dos milagres dirios.
Os mtodos de ensino e o relacionamento com o mundo
exterior eram diferentes para cada ordem religiosa, e as mais
conhecidas e presentes na vida brasileira eram justamente as dos
maristas, franciscanos, dominicanos, clareteanos (ordem fundada
por Santo Antonio Maria Claret, com hbitos pretos e colarinhos
brancos) e beneditinos. Algumas ordens eram reconhecidamente
mais liberais, outras mais conservadoras. Alm de uma certa
pedagogia educacional de elite, os colgios ofereciam, em alguns
casos, outros bens igualmente inestimveis aos seus alunos: cama,
comida e roupa lavada.
Paulo Leminski Filho foi aceito no Colgio Paranaense que
continuava, informalmente, sendo chamado apenas de Internato
em agosto de 1956. Tinha onze anos e foi matriculado na 1 srie,
turma B, turno da manh, em regime de semi-internato o que lhe
permitia passar as noites em casa. Ali, ele encontraria pela primeira
-
vez, entre as nove disciplinas do currculo, o latim e o francs as
lnguas estrangeiras, com as quais ganharia no futuro o status de
tradutor poliglota.
Neste primeiro ano entre os maristas, dizem os boletins, o
aluno obteve bom rendimento em geografia, francs, histria do
Brasil e latim, nesta ordem. Sua paixo pelos idiomas acabaria
funcionando, tambm, como um catalisador de seus interesses pelos
estudos clssicos. Foi neste perodo que Paulo Leminski encontrou e
se fascinou com ensinamentos contidos em dicionrios e
enciclopdias. Passou a decorar, por sua prpria iniciativa, palavras
em ingls e francs, tentando freneticamente dominar o vocabulrio.
Ficava horas debruado sobre o Caudas Aulete e a enciclopdia
Britannica (em ingls, pois apenas nos anos 60 seria editada no
Brasil), suas fontes preferenciais de consulta.
No ano seguinte, 1957, os estudos trariam uma outra
aguardada novidade: o ingls, que finalmente passava a fazer parte
do currculo, completando uma grande rea de interesses em torno
dos idiomas. O resultado do boletim da 2 srie, igualmente
significativo, registrava a mdia final 7,50. Os melhores
aproveitamentos seriam em francs, com nota 8,40; latim, 8,12; e
ingls, 7,40. O desempenho mais fraco seria em matemtica, com
4,40 de mdia. Mas, certamente, no foram estas as nicas
tendncias da temporada. A grande surpresa estava no interesse
sbito que o menino passou a demonstrar pela vida religiosa. Foi
apresentado pelos maristas s obras completas de padre Antonio
Vieira e toda a literatura catlica. Devorou o que encontrou pela
frente. No final do ano, estava aprovado com mdia 6,43 nada
excepcional, mas o suficiente para conseguir uma matrcula na 3
srie.
Para a me, o garoto revelava na intimidade:
Vou decorar tudo, saber o significado de cada palavra!
Passou o ano inteiro no desenvolvimento desta magistral e
-
enlouquecida tarefa. Deixou a famlia preocupada e chamou a
ateno de professores e educadores para o seu comportamento
precoce. Tinha uma espantosa capacidade de memorizao,
decorando textos e poemas com extrema facilidade. Era fissurado em
Cames, Homero, Antero de Quental, que faziam parte de sua leitura
diria. O pai militar contribuiu com Euclides da Cunha e o relato
pico de Os sertes. O aluno foi aconselhado a recorrer a estudos
ainda mais rigorosos, seguindo uma possvel vocao religiosa e
contrariando o desejo do pai, que sonhava em v-lo na Academia
Militar. Foi assim que Paulinho, durante um perodo de pesquisa
autogerenciada e informal, acabou conhecendo o Colgio So Bento,
em So Paulo, uma instituio secular mantida pelos monges
beneditinos.
Descobriu que os monges viviam em mosteiros misteriosos e
lgubres, concentrados em leituras e anlises meticulosas de
palimpsestos e manuscritos da Idade Mdia. Ficou sabendo que a
Ordem dos Beneditinos fora fundada por So Bento de Nrsia (480-
547), tambm criador das Regras, uma espcie de normas para a
vida no Monastrio. Curioso, fez perguntas e obteve respostas
precisas sobre tudo. Ouviu relatos sobre as verdades bblicas e j se
sentia familiarizado com as diversas teorias da criao, quando sua
imaginao voou... Em poucos dias estava com o endereo do
mosteiro na mo e ps-se a escrever uma carta para o coordenador
da escola, D. Clemente, pedindo informaes sobre como devia
proceder para tornar-se um monge. A mensagem foi escrita de
prprio punho e nela Paulinho se candidatava a uma vaga na 3a srie
do curso ginasial, em regime de internato. Anos mais tarde, D.
Clemente recordaria esta troca de correspondncia:
Ele fez tudo sozinho, apesar de sempre consultar a famlia.
Eu respondi explicando as regras do Colgio, lembrando que por
uma questo de idade, ele deveria vir para o curso dos oblatos, como
so chamados os alunos do ginasial ainda sem idade para o
-
noviciado. Ele gostou da idia e prometeu cuidar de tudo.
No mbito domstico, a notcia soou como uma bomba. O velho
reagiu demonstrando inicialmente uma certa inquietao com o
futuro do filho, mas no final acabou ajudando a organizar a viagem
inclusive tirando do colete sua grande coleo de conselhos e
provrbios, com os quais sempre alinhavava as conversas reservadas
com a famlia. Dona urea, que no estava com o esprito preparado
para esta situao, sofreu o impacto da notcia. Tentou fazer o filho
recuar da deciso, mas, nos dias que se seguiram, j sem
argumentos, chorava dia e noite. Na verdade, ela chorou at a hora
da partida de Paulinho, numa manh de fevereiro de 1958.
Quando entrou num nibus na rodoviria de Curitiba, em
companhia do pai, o garoto ento com 13 anos sabia que aps
uma viagem de quase oito horas teria pela frente um perodo difcil,
possivelmente com noites de solido e saudades de casa. Talvez at
mesmo viesse a estranhar a comida ou o novo colcho... Mas
nenhum obstculo ou desconforto, por maiores que fossem, parecia
suficiente para afastar dele a idia de se tornar um monge e atingir,
atravs de exerccios de meditao e estudos aprofundados, a to
almejada sabedoria.
-
CAPTULO 3
A VIDA NO MOSTEIRO E ALM
O mosteiro de So Bento uma construo quadriltera no
estilo normando, de trs andares, solidamente edificada no centro da
cidade de So Paulo lembra, em muitos aspectos, uma fortaleza
impenetrvel. O edifcio passou por diversas reformas ao longo dos
sculos, mas a iniciativa de constru-lo em grandes propores deve-
se ao legendrio bandeirante Ferno Dias Paes, um devoto de So
Bento e amigo dos beneditinos. A escritura, lavrada em 17 de janeiro
de 1650, denomina a rea como aldeia de Piratininga. As obras de
construo da abadia se estenderam por mais de dez anos. O colgio
foi inaugurado somente em 1903, oferecendo vagas para turmas em
regime de internato e externato.
Com o passar dos anos, o Colgio de So Bento colocaria
disposio dos estudantes, alm da cultura secular da ordem
eclesistica dos beneditinos, uma rica e formidvel biblioteca com
cerca de 70 mil volumes, catalogados com rigor e metodologia. Tal
acervo contribuiria para a formao intelectual de alunos ilustres
como Godofredo da Silva Teles, conceituado jurista paulista e
primeiro aluno a se matricular no colgio; Srgio Buarque de
Hollanda, Guilherme de Almeida, Amrico Brasiliense, Francisco
Prestes Maia e... Paulo Leminski Filho.
Quando chegou ao mosteiro de So Bento, Paulinho se fazia
acompanhar do pai e carregava com dificuldade uma mala com
roupas de inverno e um pequeno ba repleto de livros. Eram obras
clssicas de literatura e alguns dicionrios, dos quais o aplicado
-
aluno dava sinais de no querer se separar em momento algum. Pai
e filho foram recebidos na portaria do prdio principal pelo diretor da
Escola Claustral, D. Clemente, que lhes deu as boas-vindas em nome
do mosteiro, e por Jos Maria Siviero, o hospedeiro,* ento com 11
anos, representando os novos colegas. O sargento Leminski estava
vestido com elegncia naquela tarde, exibindo um terno bem cortado
de casimira e chamando a ateno por manusear um vistoso chapu
de feltro, em tom escuro. D. Clemente lembra-se do efeito causado
pela impoluta figura:
Era um homem forte e educado, muito cerimonioso. Ele
estava trazendo o filho, do qual tinha muito orgulho, e aceitou o
convite para passar a noite como nosso hspede.
Um detalhe ao acaso permite que o hospedeiro Jos Maria
consiga lembrar com exatido, quarenta e um anos depois, a hora da
chegada dos Leminski ao mosteiro: 17:15. O jantar no refeitrio
coletivo tinha como tradio religiosa ser servido pontualmente s
17:30. No momento em que as malas e o ba estavam sendo
arrastados para dentro do claustro, os outros alunos j se
acomodavam nas mesas. Ele e Leminski tiveram pouco tempo para
largar a bagagem no terceiro andar, na ala dos oblatos, e descer para
se juntar aos demais. Na pressa, Siviero largou o chapu do pai de
Leminski sobre o ba e correu escada abaixo, excitado:
Foi engraado porque aps o jantar, quando fui buscar o
chapu, aconteceu um imprevisto. A sala do terceiro andar estava
escura e eu acabei batendo com o joelho na quina do ba o que,
alm de provocar uma dor terrvel, me fez cair sentado sobre o
chapu. O objeto adquiriu o formato de uma pizza... Ns, os garotos,
rimos muito desta cena, enquanto o pai dele tentava consertar o
estrago.
* Como era chamado o aluno escolhido para fazer o contato entre o claustro e o mundo exterior, na funo de hospedar novos companheiros ou receber visitas oficiais. O cargo no era vitalcio.
-
A escola de oblatos tinha nesta poca vinte e dois alunos, que
ocupavam quase todo o terceiro andar da ala dos fundos do edifcio.
Um elevador antigo, com estrutura de ferro e chave privativa, servia
de acesso exclusivo para monges e professores. Os meninos faziam
uso da escada que comea ao lado da piscina interna, passa pelas
salas de aula do segundo andar e vai terminar em frente porta que
d acesso aos dormitrios, no topo do edifcio. No total, so dez
cubculos (aposentos individuais) fechados por cortinas de pano,
formando um semicrculo no salo. No centro, uma mesa e duas
cadeiras.
Todos os cubculos, como prprio de um monastrio,
ostentavam o mximo em despojamento material: uma cama, uma
mesa e uma cadeira. (Estava sendo criada a ambivalncia esttica
que ele adotaria para o resto da vida.) Do outro lado, seguindo pela
porta da esquerda, chega-se ao aposento coletivo onde dormiam
os alunos menores , um grande salo com capacidade para outras
dez ou doze camas. E, finalmente, bem direita, a porta que conduz
ao aposento de D. Clemente, o supervisor, hoje transformado em
capela.
Os novios alunos mais velhos, que usam hbitos de monge
ocupavam as clausuras da ala frontal do mosteiro, ou seja, no
lado oposto aos aposentos dos oblatos, que usam hbitos brancos
em dias de cerimnia. Em ambos os casos, as janelas laterais
voltadas para o ptio interno o claustro oferecem uma viso
completa e area do vistoso jardim, onde se destacam a rvore
smbolo pau-brasil e um pequeno lago com gua corrente e peixes
ornamentais. um lugar onde se respira paz e tranqilidade, e o
silncio sagrado. Conservando uma tradio que se mantm at
hoje inabalvel, mulheres no podem entrar neste ambiente.
Sabe-se que Paulinho no teve nenhuma dificuldade de
adaptao na escola. Aps uma semana, exatamente no dia 4 de
-
maro, ele escreveu a primeira carta para a me, saudando-a
como faria regularmente, a partir de agora com a palavra latina
Pax! Falava da rotina no mosteiro e anunciava que tinha visitado o
rgo de tubos e os sinos da baslica. E conclua:
Aqui temos futebol (eu no gosto e no jogo), piscina e
cinema. D. Clemente, os monges e os meninos so
muito bons para mim. As aulas j comearam. Despede-
se o Paulo com um beijo e um abrao; ao Pedro minhas
lembranas.
Entre seus novos companheiros, Paulo Leminski (que
comeava a abandonar a identidade de Paulinho para ser chamado
apenas de Leminski) foi encontrar um verdadeiro time de futebol j
armado. Sinval de Itacarambi Leo, um paulista de Araatuba, era o
centro-avante deste time. Mesmo sendo de uma turma mais velha,
Sinval lembra-se vivamente de quando o jovem curitibano,
matriculado com o nmero 277, passou a fazer parte da vida do
mosteiro:
O Leminski apareceu provocando um impacto na turma com
a sua inteligncia e sagacidade. Era, sem nenhuma dvida, o mais
culto entre ns. Possua uma inquietao cultural e existencial muito
grande. Com apenas 13 anos tinha carisma e, talvez o mais
importante, era generoso e no nos ofendia com sua inteligncia.
Para Sinval que no futuro seria jornalista e editor da revista
Imprensa o curto perodo que Leminski passou no mosteiro um
pouco mais de um ano parece ter sido multiplicado por dois, tal a
intensidade da relao entre o novo aluno, os colegas e a instituio.
(No futuro, Leminski iria valorizar esta passagem, dizendo ter ficado
dois, trs anos no So Bento.) Sinval recorda-se que logo nas
primeiras semanas Leminski consolidara grandes amizades no novo
-
ambiente, inclusive com os monges mais eruditos do mosteiro. Entre
eles, um em particular acabaria exercendo forte influncia em sua
vida: D. Joo Mehlmann, um exegeta igualmente inquieto que, alm
de ser considerado um intelectual sofisticado e srio, ocupava a
funo tcnica de organista da Baslica. D. Joo, que passava o dia
lendo e fumando charutos, reagiria com surpresa ao saber que um
certo aluno, oriundo da turma dos oblatos, se vangloriava de ter lido,
aos doze anos, uma enciclopdia inteira, de A a Z. At ento, ele
acreditava ser o nico a ter realizado tal faanha. Ato contnuo, deu
duas baforadas e cruzou os corredores do mosteiro; entrou no
elevador e subiu at a ala dos obtatos no terceiro andar; queria
conhecer pessoalmente Paulo Leminski. A partir do primeiro
encontro, que aconteceu sob o signo dos estudos e do conhecimento,
os dois ficaram bons amigos.
Foi D. Joo Mehlmann, um doutor na Sagrada Escritura, cuja
especialidade era estudar os autores gregos no original, quem
apresentou a Leminski a biblioteca do mosteiro, no segundo andar.
Ali, o garoto encontrou o que procurava: obras de autores clssicos
servidas de bandeja por um orientador (tradutor) ideal para a tarefa.
Interessou-se por latim e grego, tendo se aprofundado no estudo do
Panteo, onde se perfilam os deuses sagrados da mitologia. Atualizou
estes estudos religiosos atravs de Spinoza (Baruch), um expoente do
pantesmo moderno, que organizou e catalogou as religies,
conferindo-lhes definies, axiomas e postulados.
A partir deste encontro, Leminski receberia informaes
msticas e se deixaria fascinar pela cultura religiosa. Conheceu e se
dedicou a entender a semiologia musical do Canto Gregoriano, um
gnero difundido entre os monges e freqentemente entoado pelo
coral durante as cerimnias oficiais. fato, tambm, que ficou
visivelmente impressionado quando soube que na Idade Mdia os
monges compuseram os Cantos Gregorianos acreditando ser a
msica cantada por anjos e santos, no Cu, diante do Senhor. Na
-
terra, os monges recebiam uma graa momentnea e compunham
estes cantos, identificados por Leminski como o verdadeiro som
celestial:
Dominas dixit ad me: Fillius meus es tu, ego hodie genui te.
Quare fremuerimt gentes: et populi meditati sunt inania?*
O depoimento de D. Clemente, concedido anos mais tarde,
quando se encontrava afastado do monastrio, pode ajudar a
elucidar o relacionamento entre Leminski e D. Joo Mehlmann:
Os dois passaram a estudar juntos e discutir temas de
grande profundidade. D. Joo transferiu para o Leminski uma carga
muito grande de conhecimento, o caminho das pedras para o
aprendizado das lnguas clssicas. Eles gostavam de discutir as
obras-mes, como diziam.
O resultado desta convivncia se traduziria nas primeiras
notas do ano letivo de 1958, as chamadas argies do boletim,
onde se pode ver um 10 em histria geral, dois 9, em latim e religio,
e um 8 em francs. As piores notas do primeiro semestre, dois zeros
categricos, foram em matemtica, nos meses de abril e maio. O
comportamento do aluno, neste sentido, revelava uma forte
inclinao pedaggica: as coisas que ele amava, amava muito e se
esforava para entender; as que no gostava, sequer tomava
conhecimento... Desde cedo seus professores perceberam que o
melhor seria investir nos estudos em que ele demonstrasse interesse
e aptido, para no dizer voracidade intelectual. Assim foi feito com
as lnguas incluindo o portugus e histria universal, ctedras
com as quais Leminski criaria uma estreita relao no futuro.
O gosto pela poesia o aproximaria tambm de Lus de Cames
* O Senhor me disse: Tu s meu filho, eu hoje te gerei. Por que as naes se amotinam e os povos meditam coisas vs? Ad missam innocte (A missa da noite), cnticos de Natal.
-
foi visto vrias vezes com Os Lusadas debaixo do brao e,
assim que se estabeleceu, juntou-se a Sinval de Itacarambi para
fundar, informalmente, a Academia de Letras Miguel Kruse, em
homenagem ao abade que construiu o Colgio de So Bento, no
incio do sculo. Eles fizeram uma rplica da ABL, constituindo
estatutos, regulamentos ticos e cadeiras, sendo que a de nmero 1
seria destinada a Carlos Francisco Berardo, que se recorda da
homenagem:
A academia foi fundada sob a inspirao de D. Clemente,
mas Leminski e Sinval eram seus maiores entusiastas. Acredito que
o Leminski, nesta poca, j se correspondia com escritores famosos.
Notava-se nele, ento, alguns traos de boemia, no com relao s
bebidas, evidentemente, mas com relao ao romantismo.
Ao mesmo tempo, o ritual secular do mosteiro, que comeava
diariamente s 5:30, era forte componente disciplinar na vida dos
oblatos. O grupo mantinha a rotina de assistir missa das 6 horas,
mesmo no inverno mais rigoroso, para s depois fazer o desjejum no
refeitrio. As aulas comeavam invariavelmente s 7:05, com todos j
sentados espera do professor. Revelando uma memria prodigiosa,
Leminski em poucas semanas j tinha decorado vrios salmos de
Davi e demonstrava preferncia pelo de n 105, cujo canto 34 faz um
resumo do xodo, referindo-se especialmente s nuvens de
mosquitos e gafanhotos. Uma imagem cinematogrfica para uma
literatura transcendental.
Segundo o depoimento de Sinval de Itacarambi, Leminski
passou o ano inteiro estudando com empenho, sem trgua e sem
hora de recreio:
Apesar de ficar a maior parte do tempo sobre os livros, ele
no era visto como um aluno caxias; pelo contrrio, era
considerado mais um anarquista com idias prprias e originais.
Gostava de nos envolver com questes que ele mesmo definia como
-
fundamentais. Sabia conversar e tinha orgulho do prprio
discernimento. Assim que o conhecemos ficamos fascinados por ele.
Outro monge, D. Jos Leandro, um paranaense de
Guaraqueaba que tambm havia sido aluno do Internato, em
Curitiba , no esconde um sorriso ao lembrar de Leminski
circulando garboso pelos corredores, falando para os colegas que se
preparavam para jogar futebol, em tom de brincadeira:
Vamos, existem coisas mais importantes do que futebol.
Faam consultas ele dizia, levando o dedo indicador cabea ,
aqui dentro tem uma enciclopdia. grtis...
D. Leandro se emociona ao falar do carisma do jovem
estudante que, segundo ele, se destacava por apresentar um nvel
cultural bastante acima dos demais:
Apesar disso ele era muito bagunceiro e esperto. Participava
das festividades da escola e era querido por todos.
O decano desta turma, a quem cabia, na estrutura social da
escola, organizar e disciplinar seus prprios colegas, era Osvaldo
Torrell de Almeida Costa, escolhido para o cargo exatamente por ser
um dos mais velhos do elenco. Torrell tinha muito trabalho com
Leminski na questo disciplinar:
Ele costumava desaparecer com muita freqncia. Certa vez,
ao fazer a conferncia na hora de dormir, percebi que ele no estava
em sua cama. J era tarde e, depois de muito procurar na vastido
daqueles aposentos, fui encontr-lo dormindo atrs do piano, com
um travesseiro no rosto e um ar angelical.
possvel que um pouco da tolerncia encontrada junto aos
novos colegas deva-se ao fato de que Leminski, ao contrrio da
maioria dos garotos, no sabia jogar futebol, o que poderia ser
considerado algo de menos neste pequeno universo ldico. (Em
matria de futebol, o mximo a que Leminski arriscou foi ser
torcedor do Atltico.) De qualquer maneira, tal deficincia era
amplamente compensada pelo estilo e personalidade do rapaz. Para o
-
hospedeiro Jos Siviero, suas qualidades eram marcantes:
O Leminski tinha um fsico avantajado, um corpo de atleta
emoldurando uma personalidade forte. O fato de no jogar futebol,
como mandava um certo figurino, no fazia dele um molengo. Ele se
impunha numa conversa, falava alto e com determinao. Discutia
com os professores, criava clima para o debate... Isto, na idade dele,
era uma coisa fora do comum.
No incio, ele ocuparia uma cama no dormitrio coletivo, junto
aos alunos menores. Mais tarde, devido ao seu tamanho, seria
separado dos infantes e transferido para um cubculo individual,
indo se juntar aos garotos de 14 e 15 anos. Nesta poca, o que j era
uma tendncia no seu comportamento acabou se transformando em
atitude: definitivamente, no gostava de tomar banho. Participava
das brincadeiras no stio dos padres, em Itapecerica da Serra,
exercitando salto em altura ou jogando futebol (era desajeitado e
algumas vezes foi visto atuando na defesa), mas na hora de ir para o
chuveiro procurava desconversar: Tenho mais o que fazer, dizia,
referindo-se s jornadas de estudos com as quais vinha
conquistando a fama de aluno excepcional. Era vaidoso com o fsico
e gostava de andar sem camisa, sempre que o clima e as ocasies
permitiam.
Quase na metade do ano, mais precisamente no feriado do Dia
do Trabalho (1 de maio), os monges programaram um passeio dos
oblatos a Santo Amaro, naquela poca um bairro afastado do
centro de So Paulo. Era a chcara dos padres, uma espcie de clube
de campo do noviado. Para os garotos, seria uma trgua nos
estudos, um merecido e aguardado dia de recreao ao ar livre.
Afinal, ningum de ferro!, diziam. Todos se prepararam com
antecedncia com grande expectativa, o que acabou gerando uma
ansiedade maior que se arrastou por interminveis dias da semana
anterior... Finalmente, a viagem foi feita numa jardineira ou
-
lotao, como eram chamados os micronibus de ento.
Fazia uma tarde agradvel, com cu azul e sol forte. Na
lembrana de alguns ex-colegas e no registro de vrias fotografias
Leminski foi o nico que no entrou no lago, preferindo brincar
longe da gua. Mesmo sendo alvo de zombarias, no se intimidava e
mantinha uma franca estratgia de contra-ataque ao promover um
desfile in vitro de suas qualidades fsicas, desafiando qualquer um
para os chamados esportes olmpicos: salto em distncia, corrida
livre... Nestas horas, podiam-se ouvir msicas no rdio transistor e
cantar junto os grandes sucessos do momento, a italiana Nel blu
dipinto di blu, com Domenico Modugno, e Chega de saudade, com
Joo Gilberto:
Pois h menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca...
Certa vez, Leminski tornou-se o centro das atenes dos
colegas ao participar, involuntariamente, de uma cena curiosa. Ao
ser descoberto um rato no dormitrio dos menores, imediatamente os
alunos deram incio a uma verdadeira caada ao animal. A correria e
a algazarra se instalaram por alguns minutos no 3 andar do
mosteiro. Em flagrante desespero, o indesejado roedor corria de um
lado para o outro, passava zunindo, ora em ziguezague, ora por
debaixo das camas, arrastando uma horda de garotos atrs dele.
Leminski estava parado, assistindo a tudo encostado num pilar,
quando o rato passou-lhe pela frente. Num gesto rpido e certeiro ele
desferiu um chute fatal no animal, que subiu e foi bater na parede
oposta, antes de cair estatelado no assoalho. Foi uma cena
surpreendente... Em seguida, saiu dizendo num jeito muito
particular dele:
Tem certas coisas que melhor fazer sem suar a camisa...
-
O fascnio e o interesse pela secular tradio dos beneditinos,
sua histria e personagens, teriam levado Leminski a escrever,
nestes dias, aquele que seria o seu primeiro (esboo de) livro: as
biografias dos principais santos da Ordem. Estudou a vida do
patriarca, o venervel So Bento de Nrsia, a partir de uma obra
escrita no ano 593 pelo papa Gregrio Magno, em latim. Suas
anotaes o teriam levado, ao longo de vrias semanas, a
esquematizar e ordenar esta curiosa rvore genealgica dos
beneditinos. O resultado da empreitada parece ter sido um pequeno
caderno escolar com dezenas de folhas preenchidas, das quais no
se conhece nenhum vestgio.
provvel, tambm, que Leminski tenha estabelecido nesta
mesma poca os primeiros contatos com os fundamentos filosficos
de outras religies, notadamente o budismo e o zen-budismo. De
qualquer forma, sabe-se que atravs de D. Joo Mehlmann ele ficaria
conhecendo o outro lado da religio, as chamadas filosofias
orientais. Dizia-se atrado por um pensamento que pudesse
estabelecer uma unidade harmnica entre o indivduo e o Universo,
sem intermedirios. Seguindo o pensamento de Santo Agostinho,
porm sem as amarras da ortodoxia. No futuro, estas descobertas e
influncias seriam marcantes em sua vida intelectual e
devidamente utilizadas como temtica de alguns ensaios e inspirao
para muitos poemas.
Assim que se sentiu vontade no novo ambiente, Leminski
adquiriu um outro hbito que no futuro lhe acarretaria alguns
aborrecimentos junto direo do mosteiro: passou a colecionar
fotos de mulheres (vedetes) em trajes sumrios, publicadas na ltima
pgina do jornal A Gazeta Esportiva. Ele aproveitava as eventuais
sadas normalmente para ir s aulas de canto orfenico, com a
turma do coral e, de uma forma dissimulada e sorrateira,
comprava o jornal numa banca das redondezas. Na poca, A Gazeta
-
era uma publicao bastante popular entre os torcedores de futebol,
fanticos por jogos e mulheres ao que tudo indica, nesta ordem
que, a bem da verdade, faziam exatamente como ele: recortavam as
fotos e as penduravam em paredes de oficinas ou em murais de
escritrios. No caso dele, num lbum secreto escondido sob o
colcho.
A ttulo de ilustrao, sabe-se que a favorita entre as starlets,
aquela que ocupava o lugar de destaque na imaginao e no lbum
do adolescente, era nada mais e nada menos do que a incomparvel
(dizia-se a coqueluche do momento) atriz francesa Brigitte Bardot.
O sucesso nas telas em ... E Deus criou a mulher (o ttulo uma
sagrada coincidncia), filme dirigido pelo marido Roger Vadim dois
anos antes, confirmava a preferncia da torcida brasileira pelo
sotaque francs de BB. Os lbios carnudos e a pose lnguida
estampada no lbum certamente embalaram algumas homenagens
do garoto bela musa, na solido dos cubculos.
Foi com a cumplicidade de alguns monges ditos progressistas
que Leminski e Clemens Schrage, um dos craques do time dos
oblatos, tiveram acesso aos 14 anos a La Putaine Respectueuse,
de Sartre. Clemens lembraria mais tarde:
Eu e o Leminski tnhamos a mesma idade e fizemos muitas
sabotagens juntos. Andvamos sobre o telhado do mosteiro e
acabamos delatados pelos moradores dos edifcios prximos. Para
contra-atacar, arrombamos algumas salas eternamente fechadas,
que continham o inventrio da elite do colgio.
Em uma destas salas, a dupla dinmica encontraria trinta
pianos e uma coleo inacreditvel de penicos coloridos de porcelana
francesa. Era uma viso fantstica, que eles se permitiriam vivenciar
repetidas vezes:
Nossas aes neste setor do edifcio nunca foram
descobertas e nem reveladas.
-
Para compensar alguma possvel tendncia para o relaxo,
cortejado quase sempre nas esferas dedicadas a Eros, o deus da
sensualidade, havia os momentos de extremo rigor, que continuavam
permeando de informao e conhecimento os dias de Leminski no
mosteiro. As cerimnias pomposas na baslica, em datas especiais,
lhe mostrariam a magnitude do ritual litrgico. Como a missa
celebrada no Sbado de Aleluia, por exemplo. Era sempre um dia de
grande excitao no mosteiro. Durante a cerimnia, na condio de
aclitos,* os garotos entravam na baslica vestidos com paramentos
roxos assim como todas as esttuas dos santos, que permaneciam
cobertas desde o incio da Quaresma. Havia um momento, durante o
ofertrio, em que um dos coroinhas aparecia na entrada principal da
igreja carregando um cordeiro; era o Agnus Dei, o cordeiro de Deus
que tirais os pecados do mundo. Numa outra passagem, todos
trocavam de roupa na sacristia, rapidamente, para voltar com
vistosas e alegres batinas amarelas. Era um momento mgico. Os
panos roxos das esttuas caam e o abade D. Afonso entoava Gloria
in Excelsis Deo, com uma voz soberba e poderosa. No rgo de
tubos, profundamente compenetrado, D. Joo Mehlmann.
Era um jogo de cena incrvel, uma metamorfose que
encantava a todos lembra Siviero, ele mesmo o encarregado,
durante trs anos seguidos, de conduzir o cordeiro ao altar.
Nestas ocasies, os sinos monumentais eram acionados,
aumentando o tom solene da cerimnia. O Cantabola, o maior e mais
pesado de todos os sinos, com 4,5 toneladas, badalava com alegria e
majestade, fazendo-se ouvir por todo o extenso vale do Anhangaba.
A baslica impregnada de incenso, as pessoas tossindo
baixinho, o bruxulear das velas, tudo remetia a uma atmosfera de
meditao e recolhimento. O refinamento e a beleza observados
nos vitrais da baslica, nos tecidos de linho branco e nas obras de
* Como so chamados os coroinhas que ajudam o padre a celebrar a missa.
-
arte sacra eram oferecidos como uma espcie de recompensa para
aqueles que escolheram a abstinncia e a f como o Caminho da
Verdade. Paulo Leminski viveu intensamente este clima, deixando-se
tocar pelos dogmas da religio, tornando-se para sempre uma pessoa
de vida simples e hbitos despojados.
Logo depois da Pscoa, a primeira data especial no mosteiro
era o Corpus Christi, no incio de junho, quando voltavam as
cerimnias pomposas e os oblatos podiam novamente vestir seus
hbitos brancos. Para confirmar as boas notcias em mbito
nacional, antes mesmo do final do ms, no dia 29, o Brasil ganharia
a Copa do Mundo, vencendo a Sucia na deciso, em Estocolmo, por
4 x 0, com um show de Pel, agora o rei do futebol.
Foi assim, em meio ao furor das comemoraes, que seria
acertado entre seu pai e D. Clemente, atravs de uma troca de
cartas, um perodo de frias em Curitiba. Foi uma visita rpida, que
ajudou a matar as saudades de todos em casa. Em carta
encaminhada a D. Clemente, pelas mos do prprio filho, o
subtenente Leminski agradecia a ateno e a gentileza da direo do
mosteiro pelo financiamento antecipado, que permitiu pagar a
passagem do garoto sem muita burocracia.
O boletim com as notas do segundo semestre veio confirmar a
tendncia do aluno para as lnguas, com as mdias 8,24 em latim,
6,50 em francs e 9,62 em histria geral (nota final). Apesar disso, a
mdia global no passou de 5,79, o suficiente para ser promovido
4a srie. Alm de matemtica, o aluno apresentava deficincia de
aprendizado tambm em desenho e canto orfenico. E, mesmo
estudando em regime de internato, o boletim registra onze faltas em
aulas normais e outras cinco em educao fsica.
Quando setembro chegou, dando um refresco no inverno de
So Paulo, trouxe junto o escndalo da temporada. Foi um
burburinho no colgio, que se espalhou rapidamente por todos os
-
andares e corredores. No se sabe como, o lbum de vedetes de
Leminski, escondido durante vrias semanas sob o colcho de sua
cama, havia sido descoberto por um monge bisbilhoteiro. O fato foi
notificado imediatamente direo da escola. A partir deste episdio,
lembram os ex-colegas, as coisas comearam a mudar para ele. O
desconforto tornou-se evidente e, como conseqncia, ele se sentia
como um estranho no ninho. Sinval de Itacarambi, testemunha
ocular destes acontecimentos, reconhece que o lbum foi apenas a
gota dgua:
J havia uma certa disposio da direo do mosteiro em
sugerir a volta de Leminski para Curitiba. Na verdade, ele comeava
a dar sinais de inquietao e impacincia no claustro. Estava
ultrapassando os limites fsicos e intelectuais da escola.
O colega de carteira, Armando Loreto Jnior, lembra que seu
comportamento era considerado meio amalucado. Ele andava,
falava e pensava mais rpido que qualquer outro garoto da sala. Um
dia, obedecendo ao ritual de levantar-se diante da chegada do
professor sala de aula, como era de praxe, Leminski o fez de forma
exagerada, provocando um forte barulho com o assento da carteira.
O gesto irritou o professor Paulo Cechetto, de portugus, que depois
de um breve sermo de reprovao, determinou:
Ou voc vem aqui na frente e bate trs vezes com a cabea
no cho ou ser colocado para fora da sala! Voc escolhe.
Ser colocado para fora da sala significava uma punio
extremamente grave neste contexto, uma mancha na ficha pessoal
do aluno. Como regra bsica, qualquer garoto deveria evitar este tipo
de referncia. Diz Armando:
O Leminski no teve qualquer escrpulo e, para surpresa da
turma e mais ainda do professor, foi frente e bateu com a cabea
no cho trs vezes. E o fez com tal vigor que o barulho foi ainda
maior do que quando bateu no assento da carteira.
-
Diante de tantos registros relacionados com a disciplina, a
famlia foi aconselhada, em tom cordial e amigvel, a requerer a
transferncia do aluno para outro colgio. Todos concordaram,
entretanto, que o ano letivo deveria ser cumprido normalmente, at o
final e que qualquer mudana ficaria para o ano seguinte. Em
novembro, com o boletim nas mos e tendo conhecimento prvio do
seu destino, os alunos entrariam em frias. Alguns vinham de longe
a maioria do interior de So Paulo enquanto outros se
reconheceriam exilados na rua principal e simplesmente
mudariam de bairro. Ele, Paulo Leminski Filho, esperou o pai ir
busc-lo e, juntos, tomaram o nibus de volta para casa.
Em entrevista publicada vinte e quatro anos depois (a 29 de
outubro de 1982), no jornal O Estado do Paran, ele deixaria
registrado:
Acontece que eu descobri a mulher. No mosteiro eu sentia
umas coisas, uns arrepios que me faziam pensar: ou o arcebispo
ou algum. Era a mulher. Ento, tinha coisa melhor que Deus.
Depois, discretamente, revelaria ter boas razes para suspeitar
que a descoberta do lbum secreto da Brigitte era resultado de uma
trama urdida a partir das revelaes feitas no confessionrio, onde
acumulava penitncias pelas rotineiras homenagens s belas e
sensuais vedetes aludindo-se mitologia, uma referncia a Onan.
Com o passar do tempo e com a repetio sistemtica destas
penitncias, os monges teriam identificado em sua personalidade
(ainda em formao) pontos visveis de soberba, vaidade e
sensualidade, elementos considerados incompatveis com a vida
monstica. Ou, analisando de outra forma, havia evidncias
suficientes de que faltava ao aluno vocao espiritual para a vida
religiosa.
O pedido de transferncia do mosteiro, datado de 20 de janeiro
de 1959, foi assinado de prprio punho por Paulo Leminski Filho,
com a autorizao do pai estampada logo abaixo, no canto direito.
-
Chegava ao fim um perodo de intensa convivncia com os
beneditinos cujo significado, para ele, no futuro, seria mais profundo
do que uma simples passagem pela escola dos oblatos.
Logo aps a partida e nos meses seguintes, Leminski escreveria
vrias cartas para D. Clemente, a primeira delas em latim, a 28 de
maro de 1959, assinada por Paulus L. Junior. Em maio, uma nova
correspondncia e uma confisso: Das infinitas coisas que sinto
falta, do Mosteiro, as principais so o silncio (que eu contribu para
diminu-lo), a capela e os sombrios corredores.
Em outubro, D. Clemente receberia um bilhete de apenas dez
linhas onde Leminski reconhecia, em tom de serenidade: Mudei um
pouco e tenho mais ordem externa e interna. Continuo tendo por
lema AUT EGO AUT NIHIL (Ou eu ou nada).
No dia 2 de fevereiro de 1960, mais uma carta com dois
motivos aparentes: lembrar a D. Clemente que o Congresso
Eucarstico Nacional seria celebrado em Curitiba e perguntar, as
obras do dominicano Giordano Bruno esto no Index?.
Em julho, numa carta recheada por questes, digamos,
profundas, ele se mostraria frustrado por no constatar progresso
no estudo da lngua grega:
Nestas frias estudei latim, histria antiga, francs (leio
Telmaco e o gnio do Cristianismo, Chateaubriand),
hebraico (tenho um amigo que me cedeu uma
gramtica) e procurei mais santos e vultos beneditinos
para minha lista, numa enciclopdia catlica italiana;
grego com uma gramtica me consumiu boas horas,
porm acho ainda estar imaturo para me embeber do
esprito da lngua de Xenofonte (emprestei da Biblioteca
a Anlise. Nada consegui. Bem, disse com meus botes,
-
deve ser o dialeto que Xenofonte usa que no tico,
mas mescla de jnio. Empresto ento Dilogos, de
Plato, um dos mais puros escrevinhadores. Nada!).
Aproveitava para fazer uma srie de consultas tcnicas a D.
Clemente, sobre regras gramaticais, e se despedia pedindo a bno
para o Leminski.
Dois meses depois, uma nova correspondncia, iniciada aps
ouvir a missa vespertina pelo rdio, trazia mais informaes sobre
seus progressos nos estudos:
Me aprofundo agora na literatura latina. Traduzi alguma
coisa de Virglio e Salstrio que meu prosador
predileto e leio tambm as cartas de S. Jernimo no
original latino. Se souberes de algum livro que traga a
biografia de Champollion, seria favor informar-me.
A ltima correspondncia entre eles, datada de 19 de dezembro
de 1960, tem como motivo
algo que me alegra deveras: aps meses de estudo do
hebraico, j estou em condies de estudar as Sagradas
Escrituras ( algo que no me larga!) no original. Vou
at s cinco da manh estudando os salmos. A alegria
de poder l-los no original imensa. Todas as formas
caractersticas do hebraico me so conhecidas.
Ele voltaria algumas vezes ao So Bento, nos anos seguintes,
sem jamais passar da recepo, pois sempre se faria acompanhar da
mulher e da filha urea. O colega Sinval de Itacarambi, por sua vez,
estima que esteve com Leminski pelo menos oito vezes, nos anos
-
seguintes, sendo a ltima em 1986, em Curitiba. Os outros colegas,
personagens deste pequeno captulo do mosteiro, jamais o viram
novamente, embora tivessem notcias suas pela imprensa. Alguns
compraram seus livros e conhecem sua obra. Brigitte Bardot, j
afastada do cinema, se tornaria uma incansvel ativista em defesa
dos animais, e, acredita-se, nunca mais voltou a ser capa em lbum
secreto de adolescente.
Vrias experincias vividas nesta poca foram registradas por
Leminski em folhas de papel e, posteriormente, em livros, tornando-
se verdadeiras pegadas autobiogrficas lavradas no bojo de sua obra.
Num poema escrito em agosto de 1984, quando completou 40 anos,
ele diria:
IN HONORE ORDINIS SANCTI BENEDICTI
ordem de so bento
a ordem que sabe
que o fogo lento
e est aqui fora
a ordem que vai dentro
a ordem sabe
que tudo santo
a hora a cor a gua
o canto o incenso o silncio
e no interior do mais pequeno
abre-se profundo
a flor do espao mais imenso
Na mesma entrevista, Leminski diria que aos 40 anos ainda
me sinto um Beneditino e vai ser assim para sempre... Mais
-
tarde, no incio dos anos 90, foi encontrado entre seus alfarrbios
cuidadosamente programado para ser editado este poema que ele
decidiu chamar de
SACRO LAVORO
as mos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o po e o vinho forte
na carne e sangue de cristo . . .
hoje transformam palavras
num misto entre o bvio e o nunca visto
Em junho de 1968, a Escola Claustral do Colgio de So Bento
foi fechada por deciso da abadia, como conseqncia de uma crise
financeira e de uma onda de escndalos envolvendo denncias de
homossexualismo entre monges e alunos. A notcia foi mantida longe
dos foros da imprensa diria, mas mesmo assim D. Clemente
abandonou o mosteiro e voltou vida civil com o nome de batismo:
Jos Maria da Costa Vilar.
D. Joo Mehlman faleceu nos anos 70 em decorrncia de
problemas com alcoolismo. O oblato Pedro Uzum tambm se afastou
da vida religiosa por outros motivos e foi trabalhar como
psiclogo na cidade de So Paulo. D. Jos Leandro e D. Estevo
continuam no mosteiro ainda hoje, onde so monges professores; o
decano Oswaldo Torrell, com a identidade religiosa de D. Lucas,
exerce a funo de prior do mosteiro de So Bento, em Vinhedo,
interior de So Paulo. Armando Loreto Jnior, colega de carteira de
Leminski, formou-se em engenharia eletrnica e leciona matemtica
e religio numa universidade em So Paulo. Carlos Francisco
-
Berardo, o ocupante da cadeira n 1 da Academia de Letras Miguel
Kruse, formou-se em direito e, na virada do ano 2000, era juiz do
Trabalho.
Posteriormente, fazendo um breve resumo sentimental deste
perodo, Leminski criaria este emblemtico e despojado poema sem
ttulo:
nunca sei ao certo
se sou um menino de dvidas
ou um homem de f
certezas o vento leva
s duvidas continuam em p
-
CAPTULO 4
CURITIBA, POR TRS DA NEBLINA
Certa vez, durante uma entrevista a um grupo de jornalistas,*
ao analisar aspectos culturais da cidade de Curitiba, Paulo Leminski
diria:
Primeiro: esta uma cidade em que a sexualidade, o Eros da
vida, reprimido. E Eros coincide com a criatividade. Ento, a
represso de Eros a represso da criatividade. No criamos nada
no setor primrio e secundrio, ou seja, nem agricultura e nem
indstria. Curitiba , portanto, uma cidade de administrao e
tabelionatos, onde se vive a plenitude do determinismo econmico da
classe mdia. Segundo: em Curitiba (como em todo o Paran) existe o
que se pode entender como a mstica do trabalho, herana
equivocada dos imigrantes alemes, italianos e polacos, empenhados
em se convencer de que o trabalho dignifica a vida. Uma idia
certamente criada por aqueles que se consideravam
irremediavelmente por baixo, na escala social.
As anlises sobre a cidade onde nasceu e viveu a maioria dos
seus 44 anos tinham para Leminski, invariavelmente, este tom
dramtico e visceral. Suas teses incluam, como elementos inerentes
ao discurso, a polmica e a provocao. Neste sentido, ele foi um dos
mais mordazes e agudos crticos que a cidade j conheceu. No
necessariamente em tom depreciativo que fique bem claro isso ,
mas quase sempre irnico at porque ele se considerava,
sobretudo, um curitibano:
* Revista Quem, Curitiba, maio 1980.
-
Eu jamais consegui morar em outro lugar por muito tempo.
Agora, aos 40 anos, estou mais tranqilo, pois descobri que sou
como o pinheiro, que no se pode transplantar.
A cidade de Curitiba, assim como todo o universo que o
cercava, vai aparecer em vrios momentos de sua obra, seja em
forma de poemas, ensaios ou o que aconteceria com mais
freqncia entrevistas publicadas em jornais e revistas.
No final dos anos 80, produziria o poema Curitibas, no plural,
para dizer:
Conheo esta cidade
como a palma da minha pica.
Sei onde o palcio
Sei onde a fonte fica
S no sei da saudade
A fina flor que fabrica.
Ser, eu sei. Quem sabe,
esta cidade me significa.
Para se conhecer a Curitiba que Paulo Leminski cantou em
prosa e verso, com suas caractersticas e idiossincrasias, recomenda-
se antes estabelecer uma conexo, atravs do tempo, com as
correntes migratrias que ocuparam o Sul do Brasil em diferentes
pocas. Afinal, at o sculo XVIII o planalto curitibano tambm era
uma terra de ndios no bom sentido, claro , onde viviam as
tribos j, tingi (da grande nao guarani) e tupi, das quais existem
hoje poucos vestgios e quase nenhuma narrativa oral. Algumas
pegadas indgenas ainda podem ser encontradas na nomenclatura
dos bairros: Capanema, Atuba, Juvev, Guabirotuba. A palavra
-
Curitiba seria grafada, segundo o idioma guarani, algo como Kur ity
ba.*
Os colonizadores que se estabeleceram no planalto da Serra do
Mar, aps o pioneirismo do povoador Mateus Leme, chegaram
atrados sobretudo pelo garimpo do escasso ouro da regio (quase
nada, se comparado ao das Minas Gerais). A Vila de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais, primeiro nome do povoamento, situada a 900
metros acima do nvel do mar, demorou a se desenvolver
economicamente justamente por no ter muito a oferecer, alm de
um frio rigoroso e temperaturas no raro inferiores a zero grau. At
ento, a vila era usada como pernoite pelos tropeiros que faziam o
trnsito de gado para So Paulo (o famoso corredor Viamo-
Sorocaba) e exportao de erva-mate, via porto de Paranagu, a
partir de 1820.
Mesmo com as evidentes dificuldades climticas, a regio
atraiu a primeira leva de imigrantes alemes (na verdade, um
movimento de reimigrao) vindos de Rio Negro para se estabelecer
em terras cedidas pelo Imprio como parte do plano de ocupao
territorial, em 1833. Paradoxalmente, o clima da regio ajudou os
negcios de Michael Mller e Anna Krantz, pioneiros na explorao
deste solo, que trouxeram inovaes tcnicas no cultivo de frutas
europias e batatas inglesas.
Os poloneses (incluindo os ucranianos) chegariam a partir de
1871, assentando-se no anel perifrico da cidade, onde criariam as
colnias Toms Coelho, Muricy, Santa Cndida, Orleans, Lamenha e
Pilarzinho. Em seguida, os holandeses se estabeleceram numa rea
mais central do Paran, a regio de Castro, onde construiriam uma
cidade industrial, Castrolndia, cuja principal atividade econmica
* Mais tarde, j no sculo XX, o humorista Millr Fernandes criaria uma piada denunciando que, etimologicamente, o sufixo ritiba quer dizer do mundo.