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Sumário

Primeira parte 13

Segunda parte 69

Terceira parte 187

Quarta parte 287

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ParaRuy Espinheira Filhoe Maria Lúcia Martins,poetas da vida inteira

Aos meus pais, in memoriam

Aos amigos da juventude,nunca esquecidos.

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Advertência necessária

Assim como meu romance anterior, Glória partida ao meio, parte de uma trilogia a que me propus escrever, este é um livro de ficção. Diferentemente do anterior, porém, muitos dos personagens que nele apa-recem são verdadeiros, embora aqueles centrais sejam imaginários ou, em alguns casos, baseados em pessoas reais que o autor tomou a liberdade, como ficcionista, de reconstruir – inclusive Trajano, sem dúvida inspirado na sua própria trajetória pessoal.

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And indeed there will be timeFor the yellow smoke that slides along the street

Rubbing its back upon the window-panes;There will be time, there will be time

To prepare a face to meet the faces that you meet;There will be time to murder and create

And time for all the works and days of handsThat lift and drop a question on your plate;

Time for you and time for meAnd time yet for a hundred indecisions,And for a hundred visions and revisions

Before the taking of a toast and tea(...)

And indeed there will be timeTo wonder.

t. s. eliotThe Love Song of J. Alfred Prufrock

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primeira parte

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,Sem nada já que me atraia, sem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

fernando pessoa, Cancioneiro

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Talvez eu não lembrasse de tudo se não tivesse achado aqueles manus-critos de 1969, socados no fundo de uma gaveta, dentro de uma velha e carcomida pasta de cartolina. E se lembrasse nem teria dado a devida importância. Porque aquele para mim era um tempo superado, dissolvido num vasto passado cuja recuperação já não era possível. Sei, no entanto, por tantas coisas misturadas que hoje invadem a minha mente como ardentes raios de sol (desse sol daqui, que me deixa ora enlanguescido ora em estado de dormência e sonho), que a única coisa que sobra, perdura e resiste ao tempo são as palavras. Estas palavras, por exemplo: poesia, amor, musa, amizade, paixão, luta, guerra, liberdade, ódio... Palavras com todas as suas sombras, contornos, ritmos, músicas, danças, revelações. E nomes: como Lúcio, Mauro, Luciano, Josué, Maísa, Fernando, Daniel, Katyusha, Aurino, Hélio e outros tão remotos que já não são fáceis lembrar. Nomes que são cada um uma pequena história, a reconstruir e pintar as cidades com os mitos do passado. Tudo o mais são escombros se dissolvendo inelutavel-mente no nada.

Alguma coisa mais eu também sei. Sei, por exemplo, que a humani-dade nunca viveu em paz; a história da humanidade é a história de suas infinitas guerras. Por isso é que, quando lemos sobre a Antiguidade, desco-brimos que seus poetas e cantadores costumavam ser também guerreiros. Talvez porque, na Antiguidade, viver era quase sempre a mesma coisa que

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guerrear. Evidentemente, tal duplicidade de destinos não perdurou até os nossos dias. Hoje já não se pode dizer que viver seja guerrear embora nunca se saiba o que virá com o futuro. O fato é que os poetas guerreiros foram diminuindo com o passar do tempo. E acabaram se tornando raros. Os poe-tas de hoje preferem guerrear com as palavras, se é que precisam realmente guerrear. De qualquer forma, a poesia costuma ser a sua única arma de combate. Arma que eles preferirão usar, no entanto, como um antídoto para todas as guerras.

Se aqui estou, nesta praia semideserta, longínqua e encharcada de sol, é porque tenho um bom motivo. É verdade que nada em sua geografia se relaciona com o meu passado. Ela mais refletiria o sonho imperscrutável do anacoreta perdido no fim do mundo. O silêncio e a solidão, no entanto, são propícios às rememorações e reconstruções do passado. Por isso é que vim para cá. Para pensar e ressuscitar as palavras marcadas no tempo. Aquelas palavras. Vim para, no isolamento, redescobrir os seus significados, enxer-gar as suas sombras, redefinir os seus contornos. Vim para tentar dançar novamente as palavras, para pronunciá-las, bem alto; e para cantá-las, como se canta aquelas músicas antigas que nem mais suspeitávamos da existência, mas que, de repente, no auge obscuro da noite, nos despertam e nos comovem sem sabermos por que, como uma estranha assombração; e pintar os nomes e os personagens que eles foram ou deixaram de ser; e com eles voltar a dar as mãos e pronunciar mais uma vez as palavras. É isto o que farei, a cada instante desse exercício de escrever. Que mais eu poderia fazer a esta altura da vida?

Redescobrir meus antigos manuscritos foi um passo de felicidade. Antes de tudo, vejo neles uma espécie de autojustificativa de uma deci-são conflituosa. Coisa, por assim dizer, muito particular e sem nenhuma importância (a não ser para mim mesmo) se eles não fossem reveladores do espírito daqueles anos, particularmente os que vão da renúncia do pre-sidente Jânio Quadros à ascensão do general Castelo Branco. Tanto que, basta que eu acrescente em paralelo alguns fatos correlatos para que chegue a um retrato simbólico do país, com toda a sua carga de violência, de medo, de insegurança, de incerteza e de desesperança, como soe acontecer com as sociedades humanas nos períodos de predomínio de contradições políticas antagônicas, que acabam desembocando em dolorosos conflitos. Por isso vou reproduzi-los neste romance, como ilustrações contagiosas daqueles

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dias. Sem a ajuda deles talvez eu não pudesse sistematizar mais nada sobre meu passado remoto.

No que tange à história, aliás, não é temerário afirmar que seus aspec-tos humanos são os menos considerados pelos historiadores. Talvez eles não lhes confiram o devido valor na elucidação dos fatos históricos relevan-tes. Mas a verdade é que, quando tais aspectos são investigados com rigor, tornam-se capazes de conferir uma nitidez muito maior àqueles fatos, já sobejamente descritos e explicados por outros ângulos. No caso em questão descobrir-se-ia, em paralelo à hecatombe que fez rolar milhares de cabeças e aos destroços físicos que ficaram bailando no oceano de miséria humana em que o país havia se transformado, uma incomensurável tragédia espi-ritual que atingiu milhares de cidadãos, inocentes ou culpados, com seus milhares de expressões diferentes. Como se esses cidadãos, embora muitas vezes poupados das prisões, da tortura e dos assassinatos então vigentes, tivessem sido condenados a “penas espirituais” ou a “prisões sem grades”, sem os processos e formalidades que antecedem as penas comuns, mas com efeitos igualmente desastrosos para suas vidas e suas trajetórias pessoais. De fato, a ideia central de todo domínio militar é a domesticação dos reba-nhos. O que vem a ser a sua perversão espiritual. E é só pela verificação desse caminho que um dia – e isto é inevitável – se descobrirá, em toda a sua dimensão, o tamanho de nossa tragédia.

Antes de escrever a primeira linha desta narrativa, concebi uma espé-cie de roteiro, e sintetizei-o num sumário mais ou menos extenso, com-partimentando o conjunto da obra que desejava realizar. Mas logo nos pri-meiros passos acabei desistindo deles, por descobrir que não queria con-tar uma longa história dividindo-a em partes sucintas e bem organizadas, com começo, meio e fim bem definidos, como acontece com a maioria dos romances; queria apenas ressuscitar as palavras daquele tempo. Em todo caso não farei mal em reproduzir a página formulada à guisa de sumário. Todos os seus tópicos são definidores e sintetizadores do que eu gostaria de dizer, e eu precisarei referir-me a cada um deles em particular, como expressão condensada de um determinado momento, de uma situação especial daquele tempo, de uma simples indignação, ou até de um estado de poesia que tenha me assaltado. Mas não será um guia a conduzir-me, como

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era o projeto anterior, pois se resume, tão somente, numa espécie de natu-reza morta que eu olho e sinto apenas com os olhos da memória. Eis aqui:

a lógica dos generais / o nascimento da poesiaa marca de sangue / a musa como fonte criadoraa lógica do delegado / as raízes poéticas dominantesa musa de gelo e a musa de fogo / poesia e rebeldiaas musas desnudadas / as dúvidas do poeta atormentadoa lógica do combatente / a poesia divididaa lógica do partido / a resistência da memória poéticaa lógica do delegado (ii) / o tempo glorioso da poesiaa musa traidora e a musa idolatrada / a obra destruídaa lógica dos generais (ii) / o poeta sem palavras

Por outro lado, se meu objetivo não é contar uma história, não nego que, por mais que queira, não poderei fugir dela. Mas posso dizer, com certo orgulho de derrotado, que esta será uma história inversa, talvez uma anti-história, sem o heroísmo das grandes batalhas e sem a glória dos gran-des triunfos. Enfim, será uma história mais amarga do que heroica. É por isso que, quando terminá-la, terei feito provavelmente um registro insó-lito: a trajetória do que certamente (teria que admitir isso pouco tempo depois) não deveria ter acontecido. Mas, por outro ângulo, também a tra-jetória do inevitável.

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Se existem alguns resquícios de história, podemos dizer que eles come-çaram a despontar naquele dia de agosto. Os acontecimentos que estavam em gestação e os rumos que tomaria a minha vida depois deles não pode-riam nem de longe ser detectados por ninguém, muito menos por mim. Minha rotina naquela época era tão simples e continuada que poderia ser recitada com três palavras fundamentais: matemática, literatura e trabalho, sem nenhuma ordem de prioridade. O mais importante, no entanto (creio nisso agora), eram os estudos de matemática, na preparação para o vesti-bular de engenharia, que tinham como força propulsora minha paixão por essa matéria, com todos os reflexos nas chamadas ciências exatas. Vivia um momento de minha vida em que a avidez de conhecimento e o espírito

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cartesiano guiavam minha cabeça. E a cidade ajudava muito esta postura: era um dos mais importantes centros culturais do país e por isso é que eu fora para lá. De repente vi-me surpreendido no meio de um vendaval de lágrimas e de sangue.

Aquele dia de agosto se enquadrava perfeitamente na minha rotina. O Grupo de Estudos Matemáticos do qual eu fazia parte continuava a lei-tura do Principia Mathematica de Bertrand Russell e Alfred Whiteread, ini-ciada algumas semanas antes. Seus três integrantes estavam apaixonados pela obra do filósofo inglês, e como Lúcio havia conseguido emprestado um exemplar original do primeiro volume desse raríssimo livro e logo precisa-ria devolvê-lo, tínhamos resolvido dobrar a rotina de reuniões, passando de uma para duas vezes por semana.

É verdade que nem eu nem Mauro dominávamos o inglês, e para compensar essa lacuna Lúcio já trazia de casa um bom trecho traduzido, enxertado com comentários e interpretações que ajudavam a imprimir uma melhor base à discussão. Tal facilidade, no entanto, não evitava que de vez em quando o estudo entrasse num beco sem saída, porque a matéria era vasta e profunda e nem sempre nós tínhamos clareza dos raciocínios expostos no livro. Mesmo assim, não cedíamos. O fascínio do tema justi-ficava todos os esforços. Muitas vezes varávamos a noite tentando resolver problemas intrincados, transformados em desafios tão poderosos que nos prendiam indefinidamente em volta da mesa.

Já havíamos debatido a Introdução à Filosofia da Matemática e achá-vamos que naquela nova obra de Russell faríamos grandes descobertas. Porque não estávamos interessados apenas no estudo da matemática, pura e simples, com objetivos estritos, e se a perseguíamos era para aplicá-la na conquista de conhecimentos mais amplos, em benefício de uma formação humanista, dentro do princípio de “ciência com consciência”.

O que mais nos encantava nesse momento particular era a lógica mate-mática, tema central daquela obra, de que Bertrand Russell era o estudioso de maior peso conhecido. Queríamos sintetizar seus princípios gerais, de modo a transformá-la num método de raciocínio imbatível, não só no estudo da matemática e da física, como também na abordagem geral do mundo e da vida. Esse interesse derivava não só do apelo científico da lógica como de suas possibilidades salvadoras. A lógica como instrumento que nos capacitaria a interpretar com clareza os fenômenos da natureza e da

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sociedade. Enfim, almejávamos adquirir o perfeito raciocínio lógico, grau máximo da inteligência humana, e estudávamos com este objetivo.

Mas sempre que ingressávamos no âmago de questões como tais, mesmo que não quiséssemos o mundo imergia numa espécie de era do silêncio, na qual a humanidade entrava num sono profundo e os números e símbolos ditavam as normas da vida e da matéria paralisadas, até um novo desper-tar. Então valia tudo em matéria de especulação e de experiências aleatórias. Lúcio chegara a admitir a ideia do raciocínio lógico como um predicado oni-potente. Tanto que, exorbitando qualquer parâmetro de modéstia que nos pudesse guiar, já o tinha sintetizado como uma espécie de chave mestra, não só para o avanço da ciência, como da própria humanidade:

– É um dom superior, minha gente – defendia ele –, que é preciso con-quistar. Sem o predomínio da lógica o destino da humanidade será a auto-destruição. Isto é elementar, e não pode ser refutado.

Ao que eu ironizei:– Mas para chegarmos lá não vai ser nada fácil. O problema é que a

humanidade também tem certa inclinação para o ilogismo.– O que eu quero dizer é que a ordem atual do mundo é um produto

da lógica – respondeu ele. – E se esta já é uma ordem avançada, ainda está longe de se tornar a ordem perfeita que almejamos. Mas, em última ins-tância, seu aperfeiçoamento continuará sendo uma conquista natural da lógica. E tudo indica que chegaremos lá.

E por aí seguia, sem nunca se dar por vencido. Dizia perceber nas entrelinhas dos textos de Russell uma defesa da lógica

de conotação humanista, como se ela fosse um veículo de salvação da huma-nidade. Sem a intervenção do raciocínio lógico o mundo ficaria sem rumos, a mercê de suas contradições, e a vida social explodiria em tumultos e revoltas incontroláveis. Nesse aspecto, ela se aproximava da consciência, e se consti-tuía numa força capaz de resolver os conflitos sociais e pessoais, em benefício da razão e do bem-estar de todos. Enfim, predominava entre nós aquele espí-rito racionalista que se apossou da Europa a partir do século XVIII e que na modernidade serviu de anteparo moral para todos os cientistas.

Nossas divagações, no entanto, raramente prosperavam muito, porque, na verdade, nós tínhamos um pé distante da realidade. Lá fora o mundo seguia sua marcha inexorável, enquanto nós parecíamos discutir o sexo dos anjos. Os conhecimentos que almejávamos adquirir não tinham uma

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aplicabilidade clara, pelo menos naquele momento e circunstâncias. Mas com que paixão nós estudávamos e discutíamos!

Na verdade, talvez devêssemos, com muito melhor resultado – se imagi-nássemos o que naquele momento se consumava na capital da República –, redirecionar nossas elucubrações para o papel das sextas-feiras de agosto na vida política nacional, com o que, provavelmente, tivéssemos dado um passo muito mais importante do que constatar a relativização do absoluto, teo-ria com que nos debatíamos sofregamente. Com isso, é provável que nosso método lógico nos levasse a compreender porque um homem acabara de tomar determinada atitude, incompreensível e ilógica, e porque a tomara exatamente naquela sexta-feira, 25 de agosto de 1961, diante de uma popula-ção perplexa e revoltada, subitamente tomada de susto e decepção. Se imagi-nássemos, teríamos estendido a discussão também ao papel do mês de agosto no advento das tragédias políticas e sociais que estavam a determinar a nossa história recente. E talvez tivéssemos descoberto um dos mais esdrúxulos princípios dessa história, válido para toda essa parte do Hemisfério Sul que vai da floresta amazônica às grandes estâncias dos pampas: “toda sexta-feira é maldita; e toda sexta-feira de agosto é duplamente maldita”.

Insatisfeito com o nosso entendimento no que tange à sua manifesta deificação da lógica, Lúcio às vezes complementava seu raciocínio com afir-mações mais provocadoras, embora derivando sempre para o que chamá-vamos de “relativização do absoluto”. Nesse dia sentenciou:

– A lógica não pode ser puramente axiomática. Ao pertencer à esfera da relatividade e não do absoluto, ela pode até tornar-se ilógica. Por isso, não passa de um guia de raciocínio, de um método de abordagem. Sozinha não vai resolver nada, pois precisa ser tão bem aplicada que teria, algumas vezes, que negar-se a si mesma.

– Não compreendi bem – respondi.– É fácil – replicou ele. – Pelo que eu entendi de Bertrand, a lógica só

trata de generalidades, nunca de particularidades. Segundo, a lógica é em si mesma contraditória. Ela sempre leva à contradição. Isto é, ela se nega.

– E o que você quer dizer com isso? – perguntou Mauro.– Exatamente o que este trecho que eu traduzi tenta explicar. Bertrand

considera que a lógica não pode mencionar nenhum objeto particular. Por exemplo, a proposição “se Jânio é um homem e todos os homens são

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mortais, então Jânio é mortal” não é uma proposição lógica. A proposição lógica seria: “se x tem a propriedade y e tudo o que tem a propriedade y tem a propriedade z, então x tem a propriedade z, quaisquer que sejam x, y e z”. A primeira proposição é apenas uma manifestação particular da segunda, que é a verdadeira proposição lógica. Creio que isto foi formulado por Euclides.

– Ora, mas a que leva tal raciocínio? – insistiu Mauro.– Aí é que está. Pode parecer banal, mas não é. O primeiro caso trata de

uma qualidade particular. O segundo caso de uma verdade formal. A lógica é sempre formal. É por isso que Bertrand também afirma que a matemática e a lógica são idênticas.

– Agora eu percebi – disse eu. – Trata-se de saber se certas qualidades particulares estão contidas dentro de uma generalidade que as transcende. Se não estão elas escapam do processo lógico. Certamente é aí que entraria o aspecto contraditório da lógica de que falou?

– É uma consequência disso, sem dúvida. O que Bertrand diz, concor-dando com Poincaré, é que a lógica não é estéril, isto é, ela engendra a con-tradição. Ou seja, em todos os processos previamente aceitáveis pelos lógi-cos, a lógica matemática moderna põe em evidência o que se deduz serem contradições. Na matemática, temos o caso aqui exemplificado, relativo aos números ordinais e cardinais máximos. O termo máximo da série de núme-ros ordinais não existe. Porque qualquer que fosse o termo máximo que se quisesse tomar, denominando-o de “n” haveria sempre um maior, que é o número “n+1”. Daí é que advém a noção de infinito. Formule-se uma equa-ção matemática para se quantificar um conjunto em torno de séries como essa e se verá que sua solução não pode ser encontrada. O mesmo raciocí-nio pode ser empregado no caso dos cardinais.

– Magnífico. Então não se pode falar de uma série ordinal a não ser como uma particularidade e não como uma generalidade. É realmente contraditório.

– Esta é uma contradição da matemática, mas temos ainda o caso da contradição da própria lógica, em si mesma. Como vocês sabem, Bertrand usou um exemplo simples, porém de uma contundência a toda prova, tomando o caso da linguística. Suponhamos – é ele quem diz – que um homem diga “Estou mentindo”. Se mente, sua afirmação é certa e, por-tanto, não está mentindo; se não mente, então quando diz que mente está

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mentindo. Assim, qualquer hipótese implica sua contraditória. Isto tam-bém vem lá da antiguidade grega, provavelmente de Aristóteles.

– Excelente – inferi. – Nesse caso, então, a lógica estará sempre pró-xima da dialética.

As palavras de Lúcio só agora pareciam ter alguma relação com a rea-lidade do mundo em que vivíamos, ao sugerirem sua face contraditória, de soluções complicadíssimas, e em que os ideais humanos às vezes se mos-tram impotentes, não conseguindo ultrapassar o simples limite do floresci-mento. Ao que Mauro, apoiado naquelas ferinas explicações, acabou esten-dendo-as a uma direção especulativa completamente diferente:

– Você tem razão quanto ao caráter axiomático, contraditório e relativo da lógica. A lógica só seria onipotente se pudéssemos expressar todos os fenô-menos da vida material e social através de equações matemáticas, mesmo que tivéssemos de chegar à equação do milésimo grau. E assim, os miríades de seres vivos da natureza, das florestas e dos oceanos, tanto animais como vege-tais, e mesmo o mundo mineral em seu multifacetado e complexo formato e estado, poderiam ser expressos por equações com uma precisão absoluta, e decifrados e controlados inteiramente pela inteligência humana. Essa pre-cisão axiomática se deveria à obediência de toda a matéria a uma fórmula que a controlasse. Mas não só a matéria. Também os sentimentos humanos poderiam ser interpretados com precisão. Com isso, as contradições econô-micas, sociais e políticas que perseguem a humanidade há milênios poderiam ser solucionadas muito mais facilmente, por meio de formulações algorítmi-cas e cálculos infinitesimais. Seria o começo do fim da injustiça, da opressão, da fome e da barbárie, com todos os seus reflexos na psicologia humana. A matemática teria então um papel tão revolucionário que...

– Mas tem uma coisa, Mauro – cortei-lhe bruscamente. – Einstein até admitia que todas as coisas pudessem ser descritas cientificamente, o que implica a possibilidade de sua representação matemática, mas ao mesmo tempo alertava que isto não tinha sentido. Deixou claro o absurdo de uma sinfonia de Beethoven ser descrita como uma variação nas pressões de uma onda sonora. Algumas coisas só podem ser vistas e compreendidas através da poesia. É por isso que, se por um lado me interesso pela matemática e pela lógica, por outro me interesso ainda mais pela poesia. Em alguns aspectos ela talvez seja mais sábia e mais poderosa.

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– Acontece... – disse Mauro fazendo menção de me responder, mas parando subitamente. Acabávamos de ser interrompidos por seu pai, Dioclécio, que emergindo de surpresa no pequeno cômodo onde nos reu-níamos, levou a que todos se calassem, ao anunciar, num estilo pausado de quem vai dar um recado importante:

– Desculpem interromper os estudos de vocês, garotos, mas o Repórter Esso acaba de noticiar a renúncia de Jânio Quadros. Estamos sem presi-dente, e os generais não querem saber do Jango. Parece que vamos entrar numa crise muito séria. O incidente cheira a golpe militar e ditadura.

Em seguida, disse até logo e se retirou.Ficamos perplexos. Ninguém esperava uma notícia daquela. O país

parecia perfeitamente dentro dos eixos, e de repente...Sem saber o que fazer diante daquela notícia nos mantivemos em

silêncio por vários minutos, entreolhando-nos como que hipnotizados, em busca de uma explicação do inexplicável. A inação denotava o abalo cole-tivo. Estávamos simpatizando com o governo de Jânio, apesar de suas lou-curas, ou talvez por isso mesmo. E agora acontecia aquela coisa sem cabi-mento. O que estava por trás de tudo?

– Creio que estamos diante de um dilema: dizer “dane-se” e continuar nossos estudos ou ir ver o que está acontecendo por aí. Acho que está na hora de olharmos um pouco mais para fora de nós mesmos – arrisquei, gracejando. – O mundo está desabando e nós aqui num quarto fechado. Não é verdade?

– Não deixa de ser – respondeu Mauro. – Mas quem somos nós para fazer o que quer que seja...

– Parados é que não podemos ficar – completou Lúcio. – Seu pai falou em possibilidade de uma ditadura. Os estudantes já devem estar em polvo-rosa por aí a fora. Acho que devemos conferir isso de perto, ver o que está acontecendo nas ruas e como anda a reação popular.

Por fim levantamos, fechamos os livros e cadernos e demos por encer-radas as discussões do dia, que julgamos não ter mais sentido naquelas circunstâncias.

A relevância da notícia fez com que tudo o mais se tornasse repenti-namente secundário. Sem que nos déssemos conta, aquele acontecimento soou como um chamamento, como se nós fôssemos obrigados a partir

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imediatamente rumo a um lugar incerto, para atender a não se sabe quais novos compromissos. Estava implícito nas palavras do pai de Mauro que a situação política do país desaguava num grave dilema: ditadura ou liber-dade. Seria a lógica matemática capaz de interpretá-lo e de vislumbrar cami-nhos para superá-lo? Se enveredássemos por uma ditadura, quais seriam as consequências para o país e para nós? Fiquei tomado por um grave tumulto interior. A palavra golpe militar feriu meu peito como uma adaga, como se o episódio pudesse interferir gravemente em minha vida. Nunca havia presenciado uma crise política de maior gravidade. Quando Getúlio se sui-cidara eu tinha acabado de entrar na adolescência e me recordava mais do incidente pelo fato de não ter havido aula por três dias seguidos em nossa escola e pela tristeza estampada na face das pessoas. E desde que me tor-nara capaz de compreender minimamente os acontecimentos políticos, só conhecera a calmaria aparente da incipiente democracia brasileira, que o reinado de Juscelino conferira. Agora, me via na iminência de viver numa ditadura, regime que os livros de história condenavam, com toda a sua sim-bologia de horrores. Não gostei nada da ideia, e toda uma sensibilidade libertária que dormitava em meu peito de repente despertou.

Já Lúcio, o paladino da lógica, esforçando-se para interpretar aquela notícia, foi o primeiro a constatar a sinistra coincidência que a entrelaçava com outros incidentes anteriores:

– Getúlio suicidou-se numa sexta-feira, 24 de agosto, em resposta a uma tentativa de deposição. Agora Jânio renuncia também numa sexta-feira, 25 de agosto. Pelo visto, uma nova tentativa de golpe. Estas sextas-fei-ras não são apenas sintomáticas, mas fatídicas, como se alguma lei maior as tivesse determinado. Isso tem lógica? Devemos imaginar uma lei particular para as sextas-feiras de agosto?

Eu queria responder a Lúcio, mas não sabia exatamente como. A coin-cidência envolvendo os dois episódios era de fato intrigante. Intimamente me perguntava o tempo inteiro: “O que será que está por trás da renúncia de Jânio?” Mas limitei-me a dizer:

– Você tem razão. Tudo isso soa muito estranho. Não vejo nenhuma lógica, só coincidência mesmo. A não ser que me expliquem melhor o que está acontecendo. Se houvesse lógica, o povo deveria ficar atento na aproximação de qualquer mês de agosto, e mais particularmente de suas sextas-feiras.

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– De qualquer sorte, acho que poderíamos falar de uma síndrome das sextas-feiras de agosto a rondar o cenário político brasileiro.

E ficamos assim, pensativos e dispersos, na presunção de que no tabu-leiro do jogo faltavam peças fundamentais que nos possibilitariam fazer qualquer avaliação mais profunda do acontecimento. Estávamos tão caren-tes de informações mais sistematizadas que não tínhamos condições de compreender nem muito menos interpretar os fatos, mesmo porque não acompanhávamos o dia a dia da política nacional. Por que motivo Jânio renunciara? Por trás de seu gesto pairavam inúmeras perguntas, que mal tínhamos condições de formular e muito menos de responder. E onde obter as respostas necessárias? Nas ruas?

A casa de Mauro ficava na subida final da Rua do Ouro, na Serra, e lá havia um rádio potente e um bom televisor. Afinal, seu pai ocupava alto cargo na SEMP, uma das principais fabricantes desses aparelhos, e possuía o que havia de melhor. Então resolvemos permanecer por lá mesmo, ao pé do rádio e da televisão, em busca de notícias mais frescas e opiniões mais abalizadas sobre a renúncia.

O problema é que a censura à imprensa já estava vigorando em todo o território nacional e poucas informações nós conseguimos acrescentar ao conteúdo dos comunicados oficiais. Mesmo assim, naquela noite come-çava uma experiência completamente nova na vida daqueles três crédulos estudantes secundaristas, agora interessados em acompanhar os aconteci-mentos políticos do país por novos ângulos, que não apenas o dos princí-pios gerais da lógica e dos rigores e precisões matemáticas. Para mim, além disso, o vislumbre de uma nova poesia também pairava no ar: a saga dos homens maus.

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“A poesia sempre esteve dentro de mim, é parte do meu espírito, como um órgão qualquer em relação ao corpo. Em toda a minha vida, jamais consegui me separar dela, nem ela de mim, querendo ou não. Mas o mesmo não posso dizer do ofício de poeta. Este, eu abandonei um dia, por alguma razão, ou ele me abandonou, quem sabe, num momento de vacilação, dúvida ou mesmo carência de inspiração. E esta renúncia ou abandono teve mais implicações em minha vida do que qualquer acontecimento anterior a

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ela. Por isso, não poderia ser outro o motivo que me levou a escrever estes apontamentos.

“Valer-me-ei de um método muito pessoal para escrevê-los. Iniciarei falando dos primeiros dias de minha vida de poeta e depois me concentra-rei nos últimos, guardando apenas um pequeno espaço para as lembran-ças intermediárias. Pois ao menos disso eu tenho certeza: os primeiros e os últimos dias foram os mais importantes de todos, foram os dois extremos que se opuseram e se excluíram um ao outro. Tanto que, para falar dos pri-meiros, eu preciso, já de saída, me referir aos últimos, pois foi neles que se deu a reconstrução memorial dos primeiros e, ao mesmo tempo, a ruptura forçada com eles. E mesmo quando estiver terminando de contar tudo o que acho necessário, pelos últimos evidentemente, haverei de ter sempre em mente os primeiros, que foram os mais gloriosos. Na verdade, falando de qualquer dia, estarei sempre retornando aos primeiros, única forma de poder concluir estes apontamentos pelos últimos.”

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As informações colhidas na televisão continuavam a não explicar satis-fatoriamente a renúncia de Jânio, embora isso já não importasse muito. O que todos estavam a discutir agora era se a atitude do ministro do Exército Odílio Denys vetando a posse de Jango estava certa ou errada. O vice-presi-dente, que pela Constituição do país deveria ser o sucessor natural de Jânio, estava em Cingapura, de volta da China Popular e demoraria ainda alguns dias para chegar ao Brasil. O argumento do general Denys era de que Jango era indesejável para o povo brasileiro, pois representava o perigo de “comu-nização” do país, e por isso precisava ser descartado preventivamente. Eles iriam prendê-lo se se atrevesse a entrar no país.

Recebi essa informação com profunda estranheza, sentindo repulsa, por não encontrar nas palavras do ministro nenhuma justificativa séria e sincera. Então um cidadão honesto é eleito vice-presidente da República, sai em viagem oficial a serviço do país e ao retornar vai preso simplesmente porque o Presidente renunciou e os generais não o querem?

– Isso não tem pé nem cabeça – exclamei. – Nem justifica nada nem tem nenhuma lógica. É uma falsa explicação. Jango comunista? E daí, mesmo que fosse? Para que serve a Constituição? Jango não foi eleito? Então tem

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que tomar posse. Esta é a ordem natural das coisas. Temos ou não temos regras; respeitamos ou não respeitamos a Constituição. É simples. A não ser que ele tenha cometido falta grave. Mas, pelo visto, não se trata disso.

– Você disse bem, esta é a questão lógica inquestionável – completou Lúcio. – De onde se deduz que, se os militares não a aceitam é só porque querem o poder para si mesmos. Então, se aproveitam da renúncia para colocar no governo um representante dos quartéis. Para atingir este fim tudo serve de pretexto. Qualquer pessoa que pense logicamente chegará a esta conclusão. Isto também é simples.

– Sim, mas não tem nenhum cabimento. Não se pode aceitar que des-respeitem a constituição dessa forma. E o que houve com Jânio? Será que saiu por sua livre e espontânea vontade ou foi destituído? O golpe seria anterior ou posterior à renúncia? – aduziu Mauro.

– Se Jânio saiu de livre vontade só pode ser um louco – enfatizou Lúcio.E continuei:– Bem, são perguntas cujas respostas nós não temos. Acho que o

Congresso é que deveria decidir os rumos do país agora, dando um basta a essas manobras golpistas. Resta saber se ele está contra ou a favor dos militares.

E continuamos a buscar notícias na televisão e no rádio. A mal ini-ciada discussão foi mais uma vez interrompida pela insuficiência de ele-mentos que a sustentassem. Não éramos militantes, mas as circunstâncias nos empurravam para a política.

No final da manhã de sábado, a censura era tão completa que nenhuma informação importante tinha chegado mais até nós, nem mesmo pelos jor-nais do dia, disputados acaloradamente em cada banca de revista. Quando conseguíamos alguma era sempre fragmentária ou unilateral, o que impos-sibilitava uma melhor avaliação do episódio. Só as destacadas manchetes dos jornais davam uma ideia da dimensão da crise:

JÂNIO RENUNCIOU! MILITARES VETAM JANGO!

A princípio, tudo o que queríamos era ficar bem informados. Não tínhamos nenhuma ideia do que deveríamos fazer. Mas com o transborda-mento das primeiras notícias de resistência, obtidas da boca do povo, fomos tocados por certo sentimento de rebeldia. No decorrer da manhã de sábado tomamos conhecimento de que a juventude estudantil se mobilizava em

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todo o país em protesto contra o provável golpe de Estado. Então, aquela sensibilidade aguçada para com a justiça e os ideais libertários, tão própria da juventude, começou a crescer rapidamente em nossos corações. Não tinha cabimento permanecermos como meros espectadores diante de um fato de tamanha gravidade, que começava a traumatizar a nação. O acom-panhamento da situação política tornava-se um imperativo e se sobrepu-nha às nossas antigas ocupações. Começamos a nos sentir reféns dos acon-tecimentos, a ponto de nos esquecer momentaneamente dos estudos, da matemática e da lógica.

No final da manhã, decidimos descer para o centro. Alguma coisa devia estar acontecendo por lá. Ao saltar no ponto central dos trólebus, vimos logo que havia um clima de agitação nas redondezas. Parecia que o povo estava se mobilizando para alguma manifestação. Havia certo rebu-liço nas ruas. Descemos a Rua da Bahia e quando alcançamos a Afonso Pena vimos numerosos grupos se reunindo pelas esquinas, em torno das bancas de revistas, embaixo das marquises ou no canteiro central, alguns já marchando em direção à Praça Sete. Caminhamos três quarteirões quando Mauro avistou do outro lado da avenida um velho conhecido do bairro, que falava muito alto e de forma agitada para um grupo de quatro ou cinco jovens. Era Luciano, um estudante de sociologia, que ele já sabia estar envol-vido até o pescoço com o movimento estudantil. Provavelmente fosse a pes-soa que nos faltava para fornecer as informações que a grande imprensa não podia publicar. E, quem sabe, proporcionar-nos alguma orientação prática, pois certamente estava por dentro de tudo o que acontecia na arena política. Mauro comentou isso conosco e decidimos ir ao seu encontro.

Luciano ficou surpreso com o surgimento repentino daqueles três jovens, que ele sabia muito distantes das atividades políticas. Que interesses podiam ter nos acontecimentos já que viviam inteiramente dedicados aos estudos? Mas Mauro foi logo se abrindo, dando resposta antecipada a suas prováveis interrogações:

– Nós o vimos passando e resolvemos vir ao seu encontro, pois esta-mos muito desinformados do que está havendo.

Apresentou-nos a ele e perguntou:– O que nos diz sobre tudo isso?– Bem, o que vocês estão sabendo? – revidou Luciano.

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– Muito pouco – antecipei-me. – Só que os militares não querem a posse de Jango.

– É verdade. Mas a coisa é bem mais séria. Impedir a posse de Jango é apenas um pretexto para acobertar outro objetivo.

– Para quê, exatamente? – perguntei.– Para a implantação de uma ditadura, é claro.– Claro como? Por que eles querem implantar uma ditadura? – insisti.– Esses militares têm um velho plano. O que está se passando agora é

o desdobramento de uma série de acontecimentos anteriores que faz parte desse plano. Tentaram a mesma coisa na época do suicídio de Getúlio e na posse de Juscelino. Agora as coisas se complicaram. No dia 19 deste mês Jânio condecorou Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, e no mesmo dia o Congresso americano aprovou o boicote a Cuba. Ou seja, duas medidas antagônicas entre si. Além disso, Jânio reatou relações diplomáticas com a União Soviética, e brevemente faria o mesmo com a China Popular, para onde enviou o Jango, em missão oficial. Nesse ínterim, pôs para fora de seu gabinete um diplomata americano que foi lhe oferecer 100 milhões de dólares para que o Brasil fizesse vista grossa a uma possível invasão de Cuba. Esta sucessão de episódios pode não explicar totalmente o que está acontecendo, mas é bastante sintomática. Na carta em que anunciou sua renúncia Jânio fala de forças poderosas que não lhe deixavam governar. Do que se conclui que a direita não aceitou ficar de braços cruzados diante desses “desvios” de um governo que ela acreditava fiel ao seu projeto político. A situação tornou-se bastante confusa e os militares decidiram agir.

– Mas eles não têm esse direito. Então acham que podem rasgar a Constituição do país a seu bel prazer? – voltei a perguntar.

– Acham sim.– Não posso concordar, isto não tem lógica – acrescentou Lúcio. – Esta é a lógica deles.– Então depuseram o Jânio? – perguntou Lúcio.– Não foi bem isso. É provável que tenham querido apenas enquadrá

-lo. E como Jânio só queria governar com plenos poderes, preferiu sair. Pode ser também que ele esteja planejando um retorno triunfal, que não está dando certo. Então a crise se instalou. Uma crise que, de qualquer forma, os militares e as forças reacionárias do país provocariam mais cedo ou mais tarde. Como eu disse, eles têm um velho plano, que implica uma mudança

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completa nos rumos do país, a começar pelo fim da política externa inde-pendente que vem sendo praticada e sua atrelagem à geopolítica ocidental sob a liderança dos Estados Unidos. A linha mestra desse projeto é a defesa intransigente da propriedade privada dos meios de produção, do grande capital financeiro nacional e internacional e do latifúndio.

– Que eles tenham seu projeto político é aceitável. Mas que queiram impô-lo pela força é inaceitável. Então o que você acha que se deve fazer: iniciar uma luta para impedir a implantação dessa ditadura?

– Exatamente isso – concordou Luciano.– Acho que fomos apanhados de surpresa – arriscou Mauro – Estes

homens tudo podem, têm as armas nas mãos.– Sim, mas ainda não perdemos nada – esclareceu Luciano. – Vamos

lutar. A resistência está só no começo, e ganhando força. O que vocês estão fazendo aqui?

– Imaginamos que alguma coisa ia acontecer no centro e viemos dar uma olhada.

– O que posso adiantar é que os sindicatos operários e as entidades civis e estudantis comprometidas com a liberdade e a constituição convo-caram manifestações de protesto em todo o país. Será o estopim de uma greve geral de apoio à posse de Jango. É isto que propugnamos. Lutaremos pela sua posse, que é a única forma, no momento, de impedir uma ditadura.

– Mesmo com suas explicações eu continuo sem entender a renúncia de Jânio – retroagiu Lúcio.

– E quem entende? – retornou Luciano. – É verdade que os militares não estavam contentes com ele. Mas seja como for, sua renúncia é o ato mais ilógico que se pode conceber em toda a história do país. Nem é com-preensível nem aceitável, e nem tem sentido. Como se pode entender que um homem que acaba de obter uma esmagadora vitória nas urnas, que tinha todo o poder nas mãos, tome uma atitude como essa? Mas isso já não importa. Não estamos aqui para chorar a renúncia de Jânio. O que importa agora são as ameaças às liberdades democráticas do país. As pessoas com um mínimo de consciência têm o dever de contribuir para livrá-lo dessa ameaça ditatorial. – E virando-se para mim, acrescentou: – Tudo o que os militares querem é uma ditadura. Já vêm tentando isso há muito tempo, desde 1946, mas sem êxito. Então, estão se aproveitando mais uma vez das circunstâncias favoráveis, do fato do vice-presidente se encontrar no exterior e o cargo de

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presidente estar vago. Daí que a luta contra uma ditadura deve assumir agora a forma de uma luta em defesa da legalidade constitucional.

– Bem, suponho que o Congresso tem um papel fundamental neste momento.

– Infelizmente o Congresso está sendo manipulado. Os militares estão jogando duro em cima dele. A maioria dos deputados e senadores parece acovardada, com medo de que eles resolvam dissolvê-lo. É verdade que deram posse provisória na Presidência ao Ranieri Mazzilli. Mas isso só deu certo porque ele é homem de confiança dos militares. De qualquer forma, a ala progressista do Congresso resiste heroicamente à tentativa de golpe.

Luciano tinha tocado num ponto crucial, e eu comecei a vislumbrar essas obrigações morais que normalmente as situações de impasse insti-tucional colocam para a sociedade. Compreendi perfeitamente suas expli-cações e me senti inclinado a aceitar a orientação que ele desse. Cheguei a expressar a ideia um tanto ingênua de que, como no caso de uma decla-ração de guerra, a ninguém era dado o direito de ficar omisso. Com isso, tentava justificar o fervor de minha nascente revolta.

– É isso mesmo companheiros! – elogiou Luciano. – Fico sensibilizado com esta disposição. Vocês estão captando com muita rapidez o sentimento de liberdade e de nacionalidade que domina a opinião pública do país neste momento. Para mim isso é uma febre epidêmica, que se alastra incontrola-damente. Não tenham dúvidas, o povo vai se levantar, não vai aceitar passi-vamente a imposição dos militares golpistas. Eu acredito na disposição de vocês porque é o que estou vendo por toda parte.

Fez uma pausa e conclamou:– Mas vamos andando que as coisas já estão acontecendo lá na praça.– Vamos lá – concordou Lúcio. – Esta é a única posição lógica aceitável.

Havia uma particularidade nessa história que é preciso esclarecer. Ao contrário de meus companheiros do grupo de estudos, eu tinha apoiado Jânio para presidente, e não Lott, embora o apoio a Jango, para vice, tenha sido comum. Essa opção estava agora me intrigando. Sentia-me traído, daí o motivo maior de minha decepção. Lembrei-me que só bem depois das eleições, quando comecei a tomar contato com grupos políticos organiza-dos que atuavam no meio estudantil é que pudera sopesá-la. Eu caminhava

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cabisbaixo, matutando sobre tudo isso; e como se descobrisse meus pensa-mentos, Mauro disse:

– Até hoje não entendo por que você não apoiou o Lott. Ele era o can-didato dos nacionalistas e dos patriotas, o candidato que tinha uma história de bravura e de lealdade à democracia e à legalidade. Sem ele Juscelino não teria tomado posse. Então...

– É verdade. Mas naquela época não deu. Tive meus motivos.– Poderia me explicar quais foram?– Na verdade eu nutria uma resistência interior enorme aos militares.

Achava-os, em sua grande maioria, um bando de obtusos, que usavam viseira e que não estavam interessados em resolver os reais problemas do país. Talvez isso adviesse da tradição golpista dos militares na América Latina. Além disso, o que mais me interessava era a cultura e eu enxergava os militares muito distantes dela. Não tinha como avaliar se Lott era uma exceção.

– Claro que sim. Esse é o erro das generalizações.– Também acho. Mas que fazer agora? São águas passadas. De acordo

com o que eu pensava naquela época eu poderia montar o seguinte silo-gismo: se Lott é um general e todos os generais são golpistas, então Lott é um golpista. Eis aqui uma falsa lógica, porque partida de uma falsa pre-missa. Será que não existem generais do nosso lado? Como você disse, eu incorri no erro das generalizações.

– Então eu lhe pergunto: se as eleições fossem hoje, você apoiaria Jânio novamente?

– Eu nunca votei em Jânio, Mauro. Metaforicamente, eu poderia dizer que votei num poema.

– Agora ficou mais difícil ainda de lhe entender. Num poema? Como assim?

– Exatamente. Num poema de Manuel Bandeira. Eu já não gostava dos militares. Quando li o poema de Bandeira sobre Lott me decidi por Jânio.

– Não conheço esse poema.– É claro que as bandeiras da campanha de Jânio também me influen-

ciaram. Achei sensacional o símbolo de uma vassoura varrendo a corrup-ção. Do outro lado não havia graça, só tínhamos a espada, um símbolo de prepotência e de corrupção. Você sabe que durante a campanha Lott foi agraciado por seus pares com uma espada de ouro?

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