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1 PROGRAMA DIREITO PENAL EM 3 MESES LUIZ FLÁVIO GOMES Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. Presidente do Instituto Avante Brasil ALICE BIANCHINI Doutora em Direito Penal pela PUC/SP. Diretora do Portal www.atualidadesdodireito.com.br Comissão da Mulher Advogada OAB/Federal Módulo 1 – Teoria da norma penal Trechos do livro Curso de direito penal: parte geral Editora Juspodvum, 2014 Selecionados pelos profs. Alice Bianchini e Luiz Flávio Gomes Apesar da importância de todos os temas que se encontram nos capítulos 1 e 2 do livro, selecionamos os trechos abaixo, por entendermos ser mais imprescindíveis ao estudo/revisão do direito penal. Recomendamos uma atenção especial aos princípios de direito penal, pois faremos referência a eles em todos os demais módulos do nosso Programa. Boa leitura! Livro: Curso de direito penal: parte geral 1. Direito penal: noções gerais 1. 1. Conteúdo e conceito de direito penal O direito penal constitui um setor do ordenamento jurídico composto: 1) Pelas normas que definem as condutas criminosas. Ex.: norma que define o furto (“Subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel” – CP, art. 155), a corrupção passiva (“Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” – CP, art. 317), a corrupção ativa (“Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” – CP, art. 333), a calúnia (“Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime” – CP, art. 138), o homicídio (“matar alguém” – CP, art. 121) etc.; 2) Pelas normas que definem as consequências jurídicas (pena privativa de liberdade, p. e.) para aqueles que violam as normas penais. Todos os crimes vêm acompanhados de uma consequência jurídico-penal (no furto, pena de 1 a 4 anos de reclusão, p. e.); 3) Pelas normas que regulam os institutos jurídico-penais. Ex.: normas que tratam da tentativa, do crime impossível, da prescrição, da responsabilidade penal, da legalidade do crime e da pena etc.; 4) Pelo conjunto de princípios jurídicos que orientam a aplicação e interpretação das normas

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PROGRAMA  DIREITO  PENAL  EM  3  MESES  

LUIZ  FLÁVIO  GOMES  Doutor  em  Direito  Penal  pela  Universidade  

Complutense  de  Madri.    

Presidente  do  Instituto  Avante  Brasil  

ALICE  BIANCHINI  Doutora  em  Direito  Penal  pela  PUC/SP.  Diretora  do  Portal  www.atualidadesdodireito.com.br  

Comissão  da  Mulher  Advogada  OAB/Federal  

Módulo 1 – Teoria da norma penal

Trechos  do  livro  Curso  de  direito  penal:  parte  geral    Editora  Juspodvum,  2014  Selecionados  pelos  profs.  Alice  Bianchini  e  Luiz  Flávio  Gomes  

Apesar da importância de todos os temas que se encontram nos capítulos 1 e 2 do livro, selecionamos os trechos abaixo, por entendermos ser mais imprescindíveis ao estudo/revisão do direito penal. Recomendamos uma atenção especial aos princípios de direito penal, pois faremos referência a eles em todos os demais módulos do nosso Programa. Boa leitura!

Livro:  Curso  de  direito  penal:  parte  geral  1. Direito penal: noções gerais

1. 1. Conteúdo e conceito de direito penal

O direito penal constitui um setor do ordenamento jurídico composto:

1) Pelas normas que definem as condutas criminosas. Ex.: norma que define o furto (“Subtrair para si ou para outrem coisa alheia móvel” – CP, art. 155), a corrupção passiva (“Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem” – CP, art. 317), a corrupção ativa (“Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício” – CP, art. 333), a calúnia (“Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime” – CP, art. 138), o homicídio (“matar alguém” – CP, art. 121) etc.;

2) Pelas normas que definem as consequências jurídicas (pena privativa de liberdade, p. e.) para aqueles que violam as normas penais. Todos os crimes vêm acompanhados de uma consequência jurídico-penal (no furto, pena de 1 a 4 anos de reclusão, p. e.);

3) Pelas normas que regulam os institutos jurídico-penais. Ex.: normas que tratam da tentativa, do crime impossível, da prescrição, da responsabilidade penal, da legalidade do crime e da pena etc.;

4) Pelo conjunto de princípios jurídicos que orientam a aplicação e interpretação das normas

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penais1. Ex.: princípio da intervenção mínima, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade, da insignificância etc.

Dos elementos acima mencionados e que caracterizam o ramo repressivo do Direito, podemos extrair o conceito de direito penal, sintetizado da seguinte forma:

direito penal é o conjunto de normas que definem as condutas criminosas, bem como as regras para a responsabilização penal de alguém pela violação dessas normas.

O que foi dito acerca do direito penal, no entanto, não responde a várias e importantes questões, como por exemplo:

⎯ Quais condutas devem ser consideradas crime?

⎯ A qual agente podemos imputar a conduta criminosa?

⎯ Quais critérios devem ser levados em consideração no momento da escolha das sanções penais (tipo e quantidade)?

É aqui que surge a necessidade de esclarecer que o conceito de direito penal engloba dois aspectos: seu conceito formal (apresentado anteriormente) e seu conceito material, por meio do qual se chega às respostas das interrogantes acima, já que cuida:

(a) dos critérios que levam uma determinada conduta a ser criminalizada;

(b) do que foi determinante para definir a sanção penal (tipo, quantidade, benefícios penais etc.);

(c) das características do autor da conduta que ensejam a responsabilidade penal, ou seja, aplicação da uma sanção penal pelo fato de ter praticado uma conduta considerada criminosa.

Cada uma dessas questões demanda respostas diversas, conforme a concepção político-filosófica acerca da finalidade do direito penal (que veremos mais adiante - item 1.4).

Por ora, convém assinalar a importância da função limitadora que o direito penal deve desempenhar. A partir da conformação constitucional e internacional desse ramo repressivo do Direito, podemos afirmar que ele possui uma função limitadora, no sentido de conter o poder punitivo do Estado (Zaffaroni). Tal concepção decorre dos estudos da criminologia que evidenciaram o caráter aflitivo do castigo (para os culpados, inocentes, processados, família dos envolvidos e toda a sociedade). É por tal razão que o direito penal “só deve ser usado como medida extrema, porque as suas sanções afetam o que de mais precioso há no ser humano: a liberdade, quando não a própria vida, como ainda sucede em muitos sistemas penais, e, indiretamente, pelo menos, também a honra, em razão da reprovação social que comporta a qualificação de um dado comportamento humano como criminoso”.2 (ver item 1.4).

De forma esquemática, podemos traçar o seguinte paralelo entre os dois tipos de conceitos de direito penal:

1  BITENCOURT,  Cezar  Roberto.  Tratado  de  direito  penal.  19.  ed.  São  Paulo:  Saraiva,  2013,  p.  41.  2  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  33.  

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Conceito  de  direito  penal  Conceito  formal   Conceito  material  

Estabelece  o  conjunto  de  normas  que  define  as  condutas  criminosas,  bem  como  as  regras  para  a  responsabilização  penal  de  alguém  que  viola  tais  normas.      

Estabelece   os   limites   do   poder   punitivo   do  Estado   (caráter   garantista*),   quando   da   sua  tarefa   de   tutelar   bens   jurídicos   relevantes   em  face  de  ofensas  concretas,  graves,  intoleráveis  e  transcendentais   (caráter   fragmentário*),   por  meio   de   penas   ou   medidas   de   segurança,  sempre  que  outros  meios  à  disposição  do  Estado  não  sejam  suficientes  (caráter  subsidiário*).  

*As   três   exigências   do   direito   penal   (caráter   garantista,   fragmentário   e   subsidiário)   decorrem   da  perspectiva  de  um  direito  penal  mínimo  e  garantista,  tema  que  será  estudado  no  item  1.7.

As concepções do direito penal acima trazidas (formal e material) foram desenhadas a partir de orientações/conclusões extraídas, principalmente, da criminologia e da política criminal. São essas ciências que, estudando o complexo fenômeno criminal (com todos os seus componentes) e os instrumentos de controle da criminalidade (considerando as suas diversas nuances), trouxeram importantes contribuições para estabelecer os limites do poder punitivo, ou seja, do direito penal.

O Estado não pode criminalizar o que bem entender nem impor todo tipo de pena. Ele não pode prever, por exemplo, como crime, a conduta de quem não tira o chapéu diante do Presidente da República. Toda atividade estatal no campo penal está limitada. Esses limites decorrem de definições político-filosóficas, amparadas, necessariamente, nas leis, na Constituição Federal e nos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. São eles que determinam o que o Estado pode ou não fazer ou o que deve fazer especificamente em relação ao seu poder de punir.

[...]

1.3. Direito penal, criminologia e política criminal: modelo tripartido das ciências criminais (as ciências integradas do direito penal)

Há um enlace necessário e potencialmente muito fértil entre criminologia, política criminal e direito penal. A começar pelo fato de que se ocupam do crime do criminoso, da vítima, da sanção penal e do controle social, cada qual da sua maneira, a partir de uma dada perspectiva e com vistas a atingir determinado fim.

Exemplificando:   O   que   fazer   com   o   possuidor   de   drogas   para   uso   pessoal?   Incontáveis   estudos  criminológicos  afirmam  que  o  “usuário”  não  deveria  nunca  ser  um  problema  do  direito  penal.  No  campo  da  política  criminal  há  correntes  criminalizadoras  (pena  de  prisão),  despenalizadoras  (sanção  penal,  sem  pena   de   prisão),   liberalizantes   (é   um   problema   individual   de   cada   pessoa,   tanto   quanto   o   álcool   e   o  fumo),  de  redução  de  dano  (é  um  problema  de  saúde  pública,  não  penal)  e  terapêuticas  (o  tratamento  obrigatório   seria   o  melhor   caminho).   Do   ponto   de   vista   penal,   a   doutrina   (a   ciência   penal)   discute   a  natureza   jurídica   do   art.   28   da   Lei   de   Drogas   (Lei   11.343/2006),   que   eliminou   a   pena   de   prisão   ao  “usuário”  (prevendo  somente  penas  alternativas).  Isso  significou  descriminalização  (retirou  a  conduta  do  campo  do  direito  penal)  ou  somente  de  despenalização  (eliminação  da  pena  privativa  de  liberdade)?  O  tema  foi  desenvolvido  no  item  6.6.3.  

Ciência total ou integrada das ciências penais. Modernamente, não se admite que a criação, interpretação, sistematização, aplicação e revisão crítica (reforma) do direito penal possa se dar de forma isolada, sem receber as contribuições relevantes e necessárias advindas dos estudos

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elaborados pela criminologia e pela política criminal sobre o fenômeno criminal. A criminologia e a política criminal devem ser consultadas em todos esses momentos das ciências penais, que se completam com o processo penal e a execução penal. Franz von Liszt (1851-1919), da sua maneira (discutível), foi quem sistemática e originalmente concebeu a ciência total ou integrada do direito penal. Na sua configuração completa, ela possui então cinco momentos: empírico (criminologia), político (política criminal), sistemático (direito penal), processual (processo penal) e executivo (execução penal).

Os conhecimentos trazidos pela criminologia e pela política criminal, como já dito, prestam importante colaboração para que o direito penal possa traçar seus objetivos e instrumentalizar-se para atingi-los.

Esquematicamente:

Veja-se, separadamente, cada uma das relações, a começar pela criminologia, já que é ela a responsável por toda a base científica do estudo do fenômeno criminal e das formas de controlá-lo. Sem que se conheça o objeto de estudo (fenômeno criminal) não se pode (a) interferir sobre ele, (b) prevenir a criminalidade ou, mesmo, (c) coibi-la.

1.3.1. Criminologia e direito penal

O direito penal sem a criminologia é cego e esta sem aquele carece de limites. Jescheck3  

A criminologia é a “ciência empírica e interdisciplinar que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado este como problema individual e como problema social –, assim como

3  Apud  SOUZA,  Artur  de  Brito  Gueiros  da.  JAPIASSÚ,  Carlos  Eduardo  Adriano.  Curso  de  direito  penal.  Rio  de  Janeiro:  Elsevier,  2012.  

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sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no humano delinquente e nos diversos modelos ou sistemas de resposta ao delito”.4

Assim, são objeto de análise da criminologia: o delito, o delinquente, a vítima e o controle social, de modo que este último compreende o conjunto de instituições, estratégias e sanções (legais e/ou sociais), cuja função é promover e garantir a submissão do indivíduo aos modelos e normas sociais. Eles podem ser formais (polícia, ministério público, poder judiciário etc.) ou informais (família, escola, trabalho, esporte, religião, mídia etc.) – ver item 1.5.

A criminologia, além de estudar os fatores do fenômeno criminal (genéticos, etiológicos, sociológicos, psicológicos etc.), também estuda as leis e outros fenômenos lesivos, mesmo quando não definidos como crime (é o caso, agora, do genocídio estatal estudado por Morrison, Zaffaroni etc.). Para a compreensão científica da justiça penal não basta apenas o conhecimento do direito penal “porquanto ele somente declara quais são as condutas proibidas e estabelece as penas e as medidas de segurança. É necessária a conjugação com outros dados fornecidos”5 pela criminologia.

A função da criminologia é de “explicar e prevenir o crime e intervir na pessoa do infrator e avaliar os diferentes modelos de resposta ao crime”.6A fim de cumprir com tal função, a experiência criminológica deve contribuir positivamente para a melhor solução dos conflitos e problemas penais.

Buscando atingir seu objetivo, a criminologia precisa se valer da observação e da experiência. Seu método, portanto, é o indutivo. Não se pode descobrir, p.ex., o que pensa e como são os criminosos e como a sociedade reage em relação ao crime, por meio de pensamentos lógicos ou métodos especulativos. “Pelo contrário, o investigador tem de interrogar a própria vida e cingir-se rigorosamente aos fatos da experiência.”7

Nem sempre as soluções apresentadas pela criminologia para a contenção do crime passam pela utilização do direito penal, trazendo, nesses casos, portanto, indicação extrapenais.

Ilustrando:   Novamente,   traz-­‐se   à   baila   a   questão   do   usuário   de   drogas.   A   orientação   majoritária   da  criminologia   indica   respostas   extrapenais,   voltadas   principalmente   para   a   área  médica,   por   entender  que   elas   atendem   melhor   ao   problema,   sendo   capazes   em   determinados   casos   de   fazer   cessar   a  conduta  (de  ingerir  drogas)  –  ver  item  6.6.3.  

A criminologia apresenta três modelos teóricos que tratam de explicar o comportamento criminoso: biologia criminal, psicologia criminal e sociologia criminal.

Biologia  criminal  

Busca  descobrir  “no  humano  delinquente,  em  alguma  parte  de  seu  corpo,  o  fator  diferencial  que  explique  a  conduta  delitiva,  a  qual  seria  consequência  de  alguma  patologia,  disfunção  ou  transtorno  orgânico”  (explicações  

4  GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Criminologia:  introdução  a  seus  fundamentos  teóricos:  introdução  às  bases  criminológicas  da  Lei  9.099/95,  lei  dos  juizados  especiais  criminais.  São  Paulo:  RT,  2010,  p.  34.    5  DOTTI,  René  Ariel.  Curso  de  direito  penal:  parte  geral.  4.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2012,  p.  156.  6  GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Criminologia:  introdução  a  seus  fundamentos  teóricos:  introdução  às  bases  criminológicas  da  Lei  9.099/95,  lei  dos  juizados  especiais  criminais.  São  Paulo:  RT,  2010,  p.  34.    7  DOTTI,  René  Ariel.  Curso  de  direito  penal:  parte  geral.  4.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2012,  p.  158.  

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antropológicas,  biotipológicas,  endocrinológicas,  genéticas,  neurofisiológicas  etc.).  8  

Psicologia  criminal  

Busca-­‐se,  diversamente,  uma  explicação  do  fato  delitivo  no  mundo  anímico  do  homem,  nos  processos  psíquicos  anormais  (psicopatologias)  ou  em  vivências  subconscientes  com  origem  em  passado  remoto  do  indivíduo;  ou  entende-­‐se  que  o  comportamento  criminal  é  aprendido  por  meio  de  exemplos  (negativos)  –  teorias  psicológicas  da  aprendizagem.9  

Sociologia  criminal  

O  fato  delitivo  é  contemplado  como  um  fenômeno  social,  existindo,  no  entanto,  diversos  marcos  teóricos:  ecológico,  estrutural  funcionalista,  internacionalista,  subcultural  etc.10  

Dois outros importantes ramos da criminologia devem ser destacados: penologia e vitimologia.

Penologia  

Estuda  fundamentalmente  as  penas  e  medidas  de  segurança  que  devem  ser  adotadas  e  o  modo  de  execução  de  cada  uma,  a  fim  de  atingir  o  objetivo  a  que  foram  concebidas  (prevenção  e  repressão  dos  delitos  -­‐  sobre  os  fins  das  penas  ver  item  17.2.).  

Vitimologia  

“A  partir  do  momento  em  que  o  Estado  monopolizou  a  reação  penal,  isto  é,  desde  que  se  proibiu  às  vítimas  castigar  os  agentes  dos  crimes  de  que  são  ofendidos,  a  vítima  foi  quase  esquecida  pelo  direito  penal  que  se  orientava  sobretudo  para  o  delinquente.”11  O  estudo  da  vítima  dos  fatos  criminosos  passou  a  integrar  o  objeto  de  estudo  da  criminologia  só  mais  recentemente  (o  I  Simpósio  Internacional  de  Vitimologia  ocorreu  em  Jerusalém,  em  1973).  

A vertente mais atual da vitimologia leva em consideração uma perspectiva humanitária orientada para a ajuda das vítimas (assistência jurídica, psicológica, econômica), de suas relações com o delinquente (principalmente nos casos de violência doméstica contra filhos ou esposas), de sua participação na composição dos conflitos (mediação, por exemplo), do papel que desempenharam na gênese do crime (a autocolocação da vítima em risco, por exemplo, passou a ser estudada na categoria dogmática imputação objetiva – ver itens 6.5 e 6.6.). O próprio Código Penal, em seu art. 59, traz o comportamento da vítima como uma das circunstâncias que o magistrado deve levar em consideração no momento da cominação concreta da pena (circunstância judicial – art. 59).

1.3.2. Política criminal e direito penal

A política criminal representa o conjunto de medidas e critérios de caráter jurídico, social, educacional, econômico ou de índole similar, estabelecidos por poderes públicos para prevenir e reagir frente ao fenômeno criminal, com o fim de manter sob limites toleráveis os índices de criminalidade.

Exemplificando:   A   Lei   11.340/2006   –   Lei  Maria   da   Penha   -­‐   estabelece   em   seu   art.   8º   as   diretrizes   a  serem   seguidas   pelas   políticas   que   visam   coibir   a   violência   doméstica   e   familiar   contra   a   mulher.  

8  Cf.  GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Criminologia.    8.  ed.  São  Paulo:  RT,  2012.    9  Cf.    GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Criminologia.    8.  ed.  São  Paulo:  RT,  2012.    10  Cf.    GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Criminologia.    8.  ed.  São  Paulo:  RT,  2012.    11  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  188.  

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Qualquer  ação  que  não  leve  em  consideração  tais  diretrizes  deverá  ser  objeto  de  intervenção  estatal.  O  art.  27  determina  que  o  Ministério  Público  deve  “fiscalizar  os  estabelecimentos  públicos  e  particulares  de   atendimento   à   mulher   em   situação   de   violência   doméstica   e   familiar,   e   adotar,   de   imediato,   as  medidas  administrativas  ou  judiciais  cabíveis  no  tocante  a  quaisquer  irregularidades  constatadas  (inc.  II).  Importante  acrescentar  que  a  Lei  Maria  da  Penha  é  uma  das  poucas  legislações  brasileiras  gestadas  após  intenso  diálogo   entre   a   sociedade,   o   Estado   e   os   organismos   não   governamentais   que   se   preocupam  com  a  questão  da  violência  contra  a  mulher,  nas  quais  discussões  criminológicas  e  de  política  criminal  foram   tratadas   com   bastante   profundidade.   O   resultado   de   todo   este   envolvimento:   nossa   LMP   é  considerada,  pela  ONU,  uma  das  três  mais  avançadas  do  mundo.12

A política criminal não se vale exclusivamente de instrumentos penais. Aliás, para alguns fenômenos criminais o melhor controle (prevenção) passa por ações sociais.

Exemplificando:  Um  bom  exemplo   de   estratégia   de   política   criminal   não  penal   (extrapenal)   estudada  pela  criminologia  são  as  programas  instituídos  em  alguns  municípios  em  que  bares  que  vendem  bebidas  alcoólicas   são   proibidos   de   funcionar   a   partir   de   determinado   horário   ou,   em   alguns   casos,   não   é  permitida   a   venda   de   tais   bebidas.   Os   resultados   em   relação   à   diminuição   de   crimes   decorrentes   de  excesso  de  ingestão  de  álcool  (acidentes  de  trânsito,  briga  em  bares,  violência  doméstica  etc.)  são  muito  positivos  e  atingidos  em  curto  prazo.  Trata-­‐se,  neste  caso,  de  uma  intervenção  extrapenal  eficaz,  sempre  preferível  às  opções  penais,  já  que  estas,  devido  ao  elevado  “custo  social”  e  efeitos  nocivos,  devem  ser  sempre  subsidiárias,  de  acordo  com  o  princípio  da  intervenção  mínima  -­‐  ver  item  1.7.1.  

Cada sistema jurídico-penal corresponde a uma determinada opção político-criminal. É nesse terreno que se defrontam as diferentes correntes de opinião acerca do papel que o direito penal (e a pena) desempenha em determinado contexto. Atualmente, sobrevivem três grandes concepções sobre política criminal:

- Minimalista-garantista: propõe uma intervenção comedida e equilibrada do sistema penal, já que a intervenção penal traz uma série de consequências severas para os indivíduos – para os acusados, os condenados, os inocentes condenados injustamente, os inocentes inocentados durante o processo, para a família do condenado etc.;

- Punitivista: o sistema criminal deve intervir o máximo possível, principalmente por entender que a ameaça da pena afasta o cometimento do crime;

- Abolicionista: o mal da pena é maior do que o mal que o crime acarreta e, portanto, não se justifica um mal que nenhum bem traz à sociedade, abrindo, assim, caminho para soluções diversas do sistema penal.

Política punitivista. A política criminal punitivista, ancorada em duas vertentes (neopunitivismo, que confia no sistema penal para punir os crimes clássicos como furto, roubo, homicídio etc., e o direito penal da sociedade de risco, que confia na solução penal para punir os crimes dos poderosos), possui duas concepções: (a) a da “severidade da pena” (nas leis) e (b) a da “certeza do castigo” (o mais suave possível). Muitos países só conseguem cumprir a primeira, sem nunca alcançar a segunda (é o caso do Brasil, onde as penas são severas, mas muito incertas). Beccaria (em 1764) deplorava a severidade da pena e defendeu a certeza do castigo (o mais suave possível) como instrumento de prevenção da delinquência, aliando-a a medidas extrapenais (iluminação das ruas, mais juízes, medidas socioeconômicas e educativas etc.). Beccaria, como se vê, tem a paternidade do sistema minimalista-garantista.

12  Relatório  da  Unifem,  Progresso  das  mulheres  no  mundo  –  2008/2009.  Íntegra  do  documento  disponível  em:  http://www.unifem.org.br/sites/700/710/00000395.pdf.  

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Política minimalista-garantista. De conformidade com o sistema punitivo moldado pela Constituição (por conta dos princípios, direitos e garantias de cunho criminal nela previstos) pode-se afirmar que a política criminal (desenhada na Carta Maior brasileira) é preponderantemente de cunho minimalista-garantista, sendo certo que em algumas passagens da nossa Lei Maior são encontradas normas de cunho punitivista (ex.: previsão dos crimes hediondos, por exemplo – CF, art. 5º, inc. XLIII). Na prática, a política criminal brasileira segue o pior modelo punitivista, centrado apenas na “severidade da pena” (nas leis), sem absolutamente quase nenhuma “certeza do castigo”. Cuida-se de uma política populista, que ilude a população sem nunca apresentar eficácia preventiva (nisso reside uma das explicações para o aumento contínuo da criminalidade).

Política acientífica. A criminologia, como visto no item 1.3.1., dá a receita do que pode ou não ser usado no controle da criminalidade (controle social); tendo em vista os três modelos de política criminal acima apresentados, sua recomendação dirige-se para o primeiro modelo (minimalista-garantista). Nossa legislação, no entanto, é acentuadamente punitivista, o que demonstra que o legislador está se valendo da política criminal acientífica (mera práxis sem teoria), quando deveria fazer uso da política criminal científica (saber prático fundamentado no saber criminológico). Trata-se de um erro clamoroso, que está trazendo drásticas consequências para os brasileiros (aumento contínuo da criminalidade e da insegurança).

Não há dúvida de que uma boa política criminal deveria transformar os conhecimentos da criminologia em ações, proposições, estratégias e/ou programas (não necessariamente repressivos) adequados ao controle e à prevenção do delito, inspirando a criação, interpretação, aplicação, execução e/ou a reforma das leis de cunho penal, processual penal e de execução penal. Ocorre que, infelizmente, a política criminal realizada no Brasil não é de cunho científico, ou seja, não é produzida a partir do saber criminológico, mas ao sabor das reações sociais, oriundas da emoção (inflada pela mídia) e não da razão.

Análise  crítica  da  mídia  e  o  direito  penal.  De  todas  as  possíveis  formas  de  instrumentalização  do  direito  penal   (ou   seja:   de   seu   uso   indevido),   duas,   desde   logo,  merecem  destaque:   a  política   (uso   do   direito  penal   para   atender   fins   políticos   ou   ideológicos)   e   a   levada   a   cabo   pelos   meios   de   comunicação  (instrumentalização  “midiática”).  Diante  da  crise  econômica  e  da  desigualdade  brutal  vigente  no  nosso  país,  aumentam  (assustadoramente)  as  desavenças  e  os  conflitos.  Isso  significa  mais  violência,  que  cria  o  ambiente  propício  para  a  propagação  do  vírus  do  “populismo  penal”  do  legislador,  insuflado  pela  mídia.  O  comportamento  da  mídia,  que  retrata  a  violência  como  um  “produto”  de  mercado,  é  decisivo  (para  a  propagação   do   referido   vírus).   É   impossível,   nos   dias   atuais,   ver   o   “populismo   penal   legislativo”  desgarrado  da  mídia.  Mídia  e  “populismo  penal”  acham-­‐se  umbilicalmente  ligados.  A  criminalidade  (e  a  persecução  penal),  assim,  não  somente  possui  valor  para  uso  político  (e,  especialmente,  para  uso  “do”  político),   senão   que   é   também   objeto   de   autênticos  melodramas   cotidianos   que   são   comercializados  com   textos   e   ilustrações   nos  meios   de   comunicação.   São  mercadorias   da   indústria   cultural,   gerando,  para   se   falar   de   efeitos   já   notados,   a   banalização   da   violência   e   o   consequente   anestesiamento   da  população,  que  custa  a  se  estarrecer  com  novos  fatos  criminosos.13  

Há casos, entretanto, em que a criminologia indica a utilização do direito penal. Quando tais indicações são tornadas realidade (e se cria uma medida penal), tem-se uma proposição científica de política criminal. Vê-se, assim, que a política criminal une o direito penal à criminologia, permitindo o entendimento entre uma ciência “normativa” (direito penal – criada a partir de normas penais) e outra empírica (criminologia – que analisa e estuda o fenômeno criminal e orienta acerca de como controlá-lo).

13  Sobre  o  assunto,  consultar:  GOMES,  Luiz  Flávio;  ALMEIDA,  Débora  de  Souza  de.  Populismo  penal  midiático:  caso  mensalão,  mídia  disruptiva  e  direito  penal  crítico.  São  Paulo:  Saraiva,  2013.  

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Explicando:   Ciência   normativa   é   aquela   que   se   baseia   na   lei,   ou   seja,   o   objeto   de   estudo   é   a   norma  positiva,   cuja   observância   é   obrigatória.   Na   mesma   linha   de   raciocínio,   diz-­‐se   que   o   conceito   é  normativo,  quando  ele  é  dado  pela  própria  Lei  (ex.:  funcionário  público  para  fins  penais,  CP,  art.  327).  A  ciência   é   empírica   quando   se   baseia   na   observação   e   análise   da   realidade.   O   seu   objeto   de   estudo  insere-­‐se  no   campo  do   “ser”,   do   real,   ou   seja,   o   saber  empírico  afasta-­‐se,  definitivamente,  do   campo  cristalinamente  valorativo,  isto  é,  do  campo  do  “dever  ser”.  

1.3.3. Direito penal e dogmática jurídico-penal

Com a vigência das normas penais (direito penal positivo), surge a necessidade de estudá-las, interpretá-las e sistematizá-las, a fim de que sejam melhor aplicadas. Tal função compete, como vimos, à dogmática penal (ou ciência do direito penal), mas isso deveria ser realizado de acordo com a política criminal oriunda, por sua vez, de um saber ancorado na criminologia (saber criminológico). Entre a dogmática penal (estudo, interpretação e sistematização das normas criminais) e a política criminal (estratégias de controle do delito – penais e extrapenais), portanto, há uma relação muito estreita, já que a primeira deve levar em consideração os aportes da segunda.

Também há necessidade de aproximar a dogmática penal da criminologia14. Tal união (da dogmática penal com a criminologia e com a política criminal) dá origem a um novo modelo de dogmática, antes descomprometido com a realidade social e com a justiça e, agora, crítico, global, valorativo.

A política criminal científica é construída a partir de bases criminológicas, o que significa adotar uma atitude valorativa frente aos dados que oferecem as investigações empíricas; significa também a penetração nas diversas categorias do sistema (na concepção do delito, nos seus requisitos – conduta, tipicidade etc. –, na pena etc.) das necessidades e exigências derivadas da política criminal.

Análise  crítica.  Teoricamente  deveria  ocorrer  um  perfeito  entrosamento  entre  a  criminologia,  a  política  criminal  e  o  direito  penal.  Na  prática  da  experiência  legislativa  brasileira  isso  não  acontece.  O  legislador,  populistamente,  legisla  em  todo  momento,  sem  nenhuma  análise  criminológica  prévia  dos  fenômenos.  Quase   todo  movimento  midiático  punitivista   sistemático   resulta  em  reforma  da   legislação  penal:   caso  Medina/lei   dos   crimes   hediondos,   caso   Daniela   Peres/reforma   da   lei   dos   crimes   hediondos,   caso   da  Favela  Naval/lei  da  tortura,  caso  dos  anticonceptivos  falsos/nova  mudança  na  lei  dos  crimes  hediondos  etc.  A  consequência  desse  odioso  e   inconsequente  populismo  penal  é  a  produção   legislativa  aloprada:  de  1940  a  2014  as   leis  penais  foram  reformadas  155  vezes  e  nenhum  crime  diminuiu  a  médio  e   longo  prazos.  Essa  é  a  política  (errada)  da  “severidade  da  pena”  (nas  leis);  porém,  o  que  faz  falta  no  Brasil  é  a  “certeza  do  castigo”  (o  mais  justo  possível).15  

Os conhecimentos criminológicos devem ser transformados em exigências político-criminais e estas, por sua vez, em regras jurídicas de lege lata ou ferenda (Roxin16). Assim, o significado de cada uma das categorias do delito seria deduzido das exigências da política criminal.

Caso   concreto:   O   princípio   da   insignificância   nasceu   dessa   saudável   intersecção   entre   criminologia,  

14  SILVA  SÁNCHEZ,  Jesús-­‐María.    Aproximação  ao  direito  penal  contemporâneo.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  63  e  ss.    15  Para  um  maior  aprofundamento  do  tema,  consultar:  GOMES,  Luiz  Flávio;  ALMEIDA,  Débora  de  Souza  de.  Populismo  penal  midiático:  caso  mensalão,  mídia  disruptiva  e  direito  penal  crítico.  São  Paulo:  Saraiva,  2013.  16  ROXIN,  Claus.  Política  criminal  e  sistema  jurídico  penal.  Tradução  de  Luís  Greco.  Rio  de  Janeiro:  Renovar,  2002.  

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política   criminal   e  direito  penal.   Por  meio  dele,   não   se   considera   típica   (tipicidade  material)   condutas  que   ofendam   de  modo   insignificante   o   bem   jurídico   protegido   pela   norma   penal.   Assim,   passa   a   ser  insuficiente  a  existência  da  tipicidade  formal  para  que  se  possa  considerar  perfectibilizado  o  crime  (ver  item  7.1.).  Quem  subtrai  um  palito  de  fósforo  não  pratica  o  crime  de  furto  do  ponto  de  vista  material  (sobre  a  exclusão  da  tipicidade  material  veja  HC  84.412-­‐SP,  rel.  min.  Celso  de  Mello).

Numa apertada síntese, pode-se dizer que o criminólogo estuda o fenômeno criminal, fornecendo dados que a política criminal transforma, às vezes, em reivindicações de alteração ou mesmo de elaboração da legislação penal; a ciência do direito penal normatiza (transforma em lei penal) essas reivindicações que passam a ter valor jurídico coativo; o processualista cuida da aplicação do poder de punir do Estado (representado aqui pela sanção penal); na fase executiva torna-se realidade a ameaça penal.  

Quanto às principais características diferenciadoras entre direito penal positivo e ciência do direito penal (ou dogmática penal), podem ser apontadas as seguintes:

  Direito  penal  positivo   Ciência  penal  (ou  dogmática  penal)  Finalidade     Proteger  bens  jurídicos  

e  controlar  o  fenômeno  criminal.  

Estudar,  sistematizar  e  buscar  aprimorar  (criticar)  as  disposições  legais  e  as  opiniões  científicas  no  campo  do  direito  penal,  sem  perder  de  vista  sua  base  referencial  (sua  fonte)  que  é  o  direito  positivado  (Constituição,  tratados  internacionais  de  direitos  humanos  e  leis  penais)  e  a  jurisprudência.17  

Objeto  de  valoração  

Conduta  humana  estabelecida  em  uma  norma  penal.  

Valora  o  conjunto  normativo  (leis  penais,  Constituição  e  tratados  de  direitos  humanos)  e,  dessa  forma,  as  interpreta,  sistematiza  e  crítica.  

Instrumentos   Lei  penal,  Constituição  Federal  e  tratados  de  direitos  humanos.  

Conhecimentos  teórico-­‐práticos  advindos  principalmente  da  criminologia  e  da  política  criminal.  

Recapitulando.  Os  conhecimentos  criminológicos  são  importantes  fonte  e  base  de  uma  política  criminal  realista.   Em   nossos   dias   já   não   se   pode   discutir   –   como   em   outros   tempos   –   se   a   criminologia   é  necessária,   senão   como   é   possível   obter   um   conhecimento   criminológico   seguro.   A   necessidade   de  construir  uma  política  criminal  sobre  bases  criminológicas  é  obvia,  mesmo  porque,  se  se  quer  coibir  a  criminalidade,  deve-­‐se  (antes)  conhecê-­‐la.  Aliás,  esse  foi  o  erro  do  direito  penal  clássico:  a  construção  de  sistemas  (mais  ou  menos)  perfeitos  do  ponto  de  vista  lógico  e  estético,  mas  que  não  serviam  para  o  fim  da  prevenção  do  delito,  porque  eram  construídos  à  margem  da  realidade  social  e  não  investigavam  as  “causas”  da  criminalidade.  Uma  política  criminal  moderna  tem  que  conhecer  as  causas  do  crime  e  estar  em  condições  de  obter  e  formular  generalizações  sobre  a  estrutura,  as  conexões  internas  e  as  causas  do  fenômeno   criminoso.   Atualmente,   pode-­‐se   reputar   amplamente   compartilhada   a   opinião   de   que   a  criminologia  tem  que  trazer  uma  valiosa  informação  científica  à  política  criminal  sobre  o  delinquente,  o  delito,   a   vítima   e   o   controle   social;   informação   que   a   política   criminal   deve   transformar   em   ações,  fórmulas   ou   programas   que,   depois,   já   com  o   aval   da   ciência   do   direito   penal,   transformar-­‐se-­‐ão   em  proposições   normativas   obrigatórias   (leis).   Criminologia,   política   criminal,   direito   penal   e   dogmática  penal,  assim,  representam  quatro  momentos  incindíveis  do  problema  do  crime:  o  momento  explicativo-­‐empírico  (criminologia),  o  decisional  ou  programacional  (política  criminal),  o  instrumental  (direito  penal)  e   o   interpretativo-­‐sistemático   (dogmática   penal).   Saber   empírico   e   saber   normativo   hão   de   seguir  caminhos  circunvizinhos.  

1.4. Finalidades do direito penal

17  GOMES,  Luiz  Flávio;  GARCÍA-­‐PABLOS  DE  MOLINA,  Antonio.  Direito  penal:  parte  geral.  Vol.  2.  2.  ed.  São  Paulo:  RT,  2009,  p.  125.  

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[...]

As três finalidades do direito penal. Logo se vê que o bem jurídico (bem ou valor protegido pela norma penal: por exemplo, vida no homicídio, liberdade sexual nos crimes contra a dignidade sexual etc.), que necessita ser relevante, assim como a ofensa (considerada concreta, grave, intolerável e transcendental), desempenham papéis fundamentais no âmbito do direito penal. Sem que todas essas situações se apresentem, o direito penal não é chamado a atuar. Trata-se, aqui, da primeira função do direito penal: (a) a de proteção de bens jurídicos individuais e supraindividuais (os mais relevantes, contra as ofensas concretas, graves, intoleráveis e transcendentais). Protegendo bens jurídicos, naturalmente o direito penal também tutela os seus titulares18. Cada uma das características do bem jurídico e da ofensa serão analisadas nos itens 1.8.1. e 1.8.5.

Análise   crítica:   O   direito   penal,   por   fazer   parte   do   controle   social,   é   bastante   manipulado   e  instrumentalizado   por   quem   detém   o   poder.   Ele   acaba   reprimindo   inclusive   condutas   de   pouca   ou  nenhuma  relevância  social.  Ex.:  a  contravenção  penal  prevista  no  art.  59,  da  LCP:  ”Entregar-­‐se  alguém  habitualmente   à   ociosidade,   sendo   válido   para   o   trabalho,   sem   ter   renda   que   lhe   assegure   meios  bastantes  de  subsistência,  ou  prover  à  própria  subsistência  mediante  ocupação  ilícita”.  Trata-­‐se  de  uma  incriminação  inconstitucional  porque  pune  a  pessoa  só  pelo  que  ela  “é”  (ocioso),  não  pelo  que  ela  “fez”.  Quando  se  pune  alguém  pelo  que  “é”  (como  os  nazistas  puniam  os  judeus  somente  por  serem  judeus),  estamos  diante  do  chamado  direito  penal  de  autor;  quando  se  pune  alguém  pelo  que  “fez”,  fala-­‐se  em  direito   penal   do   fato.   Este   segundo   é   tendencialmente   constitucional.   O   primeiro   é   inequivocamente  inconstitucional,  não  devendo  tal  norma  ser  aplicada  concretamente  por  nenhum  juiz  (que,  nesse  caso,  decide  de  acordo  com  a  Constituição,  não  de  acordo  com  a  lei,  inconstitucional).    

Há ainda que se considerar que o crime desencadeia uma reação na sociedade (bastante emotiva, dizia Durkheim) e que precisa ser contida, anulada ou controlada, sob pena de dar origem a novos crimes. Quando o direito penal não cumpre seu papel de proteção de bens jurídicos, surgem anomalias como os linchamentos (normalmente caracterizados pela lesão corporal – CP, art. 129 ou pelo homicídio – CP, art. 121) e pela vingança privada (ex.: homicídio praticado por “justiceiros”, exercício arbitrário de suas próprias razões – CP, art. 345). É aqui que entra em cena novamente o direito penal, buscando ser o elemento de contenção de tal reação. Quando o direito penal é acionado (por meio do processo penal) e se chega a uma decisão sobre o fenômeno criminoso, a sociedade sente que a “Justiça” foi feita, não ensejando (ou contendo ou controlando) que a sociedade, no intuito de fazer “justiça” com as próprias mãos, pratique condutas delituosas. Trata-se, pois, da segunda função do direito penal: (b) proteção do indivíduo contra a reação (desequilibrada, desarrazoada) da própria sociedade desencadeada pelo crime. “Quando o Estado falha no exercício das suas funções de repressão penal e de prevenção da criminalidade tende a renascer a justiça privada, individual ou organizada, com todos os perigos de excessos e perturbação da paz individual e coletiva, com todos os riscos de novos atos de violência criminal.”19

Por fim, aparece a terceira e última função do direito penal: (c) proteger o indivíduo do próprio poder punitivo do Estado. A garantia do indivíduo contra o poder punitivo estatal (que somente pode atuar dentro dos limites da lei – Montesquieu –, da Constituição e dos tratados internacionais) coincide exatamente com a necessária limitação do direito penal. Na terceira função, essa missão de autolimitação, de redução da própria violência estatal, é realizada por 18  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  53.  19  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  70.  

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meio do cumprimento dos direitos, princípios e garantias constitucionais penais, os quais serão analisados no item 1.8.

Esquematizando:

Funções   do   direito  penal,   numa  perspectiva  minimalista-­‐garantista  

(a)   proteção   de   bens   jurídicos   individuais   e   supraindividuais   (os   mais  relevantes,  contra  as  ofensas  concretas,  graves,  intoleráveis  e  transcendentais);  (b)   proteção   do   indivíduo   contra   a   reação   (desequilibrada,   desarrazoada)   da  própria  sociedade  desencadeada  pelo  crime;  c)  proteger  o  indivíduo  do  próprio  poder  punitivo  do  Estado.  

1.4.2. Finalidades ilegítimas do direito penal

Inúmeras são as funções que o direito penal desempenha, sem que elas encontrem guarida no Estado de direito. Dentre elas, as principais são:

- função simbólica: É o efeito psicológico que a proibição gera na mente dos políticos, do legislador e dos eleitores (autocomplacência e satisfação nos primeiros; confiança e tranquilidade momentânea nos últimos). É uma mera política de gestos diante da coletividade e da opinião pública. Produz-se assim, na opinião pública, a impressão tranquilizadora de um legislador atento e decidido20 que satisfaz a todos, embora realmente não se previnam com eficácia os delitos que se tentam evitar.

Análise  crítica:  Que  em  uma  sociedade  de  signos  e  símbolos  também  o  direito  penal  cumpra  uma  certa  função  simbólica  não  se  pode  negar.  O  problema  aparece  quando  se  utiliza  deliberadamente  o  direito  penal   para   produzir   um   mero   efeito   simbólico   na   opinião   pública,   um   impacto   psicossocial,  tranquilizador   do   cidadão,   e   não   para   proteger   com   eficácia   os   bens   jurídicos   fundamentais   para   a  convivência.   Em   épocas   de   crise   e   convulsões   sociais   existe   o   risco   de   que   se   desvirtue   a   função  (instrumental)   do   direito   penal,   porque   a   crise   gera  medo   e   insegurança   e   tais   sentimentos   coletivos  costumam  ser  manipulados.      Ilustrando:   A   lei   dos   crimes   hediondos   (Lei   8.072/90)   aplacou   a   ira   da   população   naquele  momento  (1990),   dando  a   sensação  de  que   resolveria  o  problema  da   criminalidade;  hoje   se   sabe  que   tudo  não  passou  (do  ponto  de  vista  preventivo)  de  uma  ilusão21,  ou  seja:    tais  crimes  não  diminuíram.   - função promocional: o direito penal é utilizado como poderoso instrumento de mudança social e de transformação da sociedade. Do ponto de vista político-criminal a função “promocional” dá lugar a inevitáveis processos de neocriminalização em determinados setores sociais e esferas de atividade: no âmbito econômico e fiscal, no ecológico-ambiental, nas relações familiares e laborais, no de consumo e da qualidade de vida etc. Algumas criminalizações são necessárias, mas em regra o que se vê são abusos. Análise  crítica:  Não  cabe  ao  direito  penal  resolver  a  tensão  (que  toda  sociedade  experimenta)  entre  as  forças  que  pretendem  conservar  o  status  quo  e  as  que  tentam  ou  promovem  a  mudança  social.  O  poder  de   decisão   e   a   iniciativa   necessária   pertencem   às   instâncias   sociais,   não   ao   Direito;  muito  menos   ao  direito  penal.  O  direito  penal  canaliza  a  mudança  social,  não  a  dirige  nem  a  impulsiona.  O  direito  penal  protege  e  tutela  os  valores  fundamentais  da  convivência  que  são  objeto  de  um  amplo  consenso  social,  mas  não  pode  ser  o  instrumento  que  alcance  ou  imponha  referido  consenso.     Ilustrando:  A  proteção  eficaz  do  meio  ambiente  constitui,  sem  dúvida,  um  dos  princípios  organizativos   20    TOLEDO,  Francisco  de  Assis.  Princípios  básicos  de  direito  penal.  4.  ed.  São  Paulo:  Saraiva,  1991.  21  Veja  FRANCO,  Alberto  Silva.  Crimes  hediondos.  5.  ed.  São  Paulo:  RT,  2005.  

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fundamentais  de  nossa  civilização  e,  desde  logo,  um  desafio,  também,  para  o  ordenamento  jurídico,  que  deve   conferir-­‐lhe   uma   tutela   eficiente.  Mas   como   adverte   Silva   Sánchez22   resultaria   temerário   situar  precisamente   o   direito   penal   na   vanguarda   da   “gestão”   do   problema   ecológico   em   sua   globalidade.  Nada  mais   errôneo  que   transformar  o  direito  penal   em  um  Direito  de   gestão  ordinária  de  problemas  sociais.  Por  evidente  que  seja  o  descrédito  que  padecem  as  diversas  instâncias  do  controle  social,  formal  e   informal,  o  direito  penal  não  deve  perder  sua  natureza  subsidiária,  como  ultima  ratio,  nem  chegar  a  ser   o   instrumento   eficaz,   por   excelência,   de   pedagogia   político-­‐social,   de   socialização,   de   civilização.  Nem  lhe  corresponde  tal  função,  nem  parece  sensato  submetê-­‐lo  a  ônus  que  não  pode  suportar.23  

[...]

1.6. Fundamentos e limites do poder de punir do Estado (ius puniendi)

O Estado poderá aplicar penas ou medidas de segurança aos indivíduos que infringirem a lei penal, pois é o legítimo titular do direito de exercer o ius puniendi (direito de punir). Porém, exatamente por conta da arbitrariedade, da desigualdade, da seletividade e da injustiça na aplicação do direito penal, seja no momento de criação das condutas proibidas e sancionadas a título de pena (ou passíveis de aplicação de medida de segurança), seja em razão da equação custo/beneficio (ver item 1.7.1.), a intervenção penal deve ser mínima (conforme a gravidade do fato) e garantista. Porque não é por meio do direito penal (que somente consegue punir 1% ou 2% dos crimes) que se consertam os desvios da sociedade.

Existe uma série de limitações ao Estado no exercício do poder punitivo. Elas estão previstas nas leis, na Constituição e nos Tratados internacionais e são representadas pelos princípios, direitos e garantias de direito penal, processo penal e execução penal. Ex.: dignidade da pessoa, legalidade das incriminações e das sanções, tutela de bens jurídicos, culpabilidade, subsidiariedade, proporcionalidade das sanções, humanização das penas e de sua execução, proibição da pena de morte, proibição da tortura, dentre tantos outros.

Os mais destacados princípios, direitos e garantias de direito penal, e que funcionam como limites ao poder punitivo do Estado, serão vistos no item 1.8.

O ius puniendi (também conhecido como direito penal subjetivo) constitui o poder do Estado de determinar quais os comportamentos humanos devem ser considerados crimes, determinar as sanções aplicáveis e concretizá-las nas ocasiões em que houver descumprimento dos imperativos das normas penais. O exercício de tal poder não pode ser realizado arbitrariamente, “mas dentro da órbita e conforme as normas da lei, isto é, do direito objetivo e, assim, o Estado encontra no direito objetivo a fonte, o modo e o limite da própria ação punitiva. O direito penal é a forma como o Estado entende dever ser exercido o seu poder punitivo e é, nesta perspectiva, fruto do exercício do ius puniendi.”24 Por isso se diz que o Estado age per leges e sub lege (por meio da lei e de acordo com a lei).

Nessa tarefa de contenção e limitação do poder punitivo, os juízes desempenham um importante papel. De acordo com Zaffaroni, “a mais óbvia função dos juízes penais e do direito penal como planejamento das decisões judiciais é a contenção do poder punitivo. Sem a contenção jurídica 22  Cf.  SILVA  SÁNCHEZ,  Jesús-­‐María.  A  expansão  do  direito  penal:  aspectos  da  política  criminal  nas  sociedades  pós-­‐industriais.  2.  ed.  rev.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  99  e  107.    23  SILVA  SÁNCHEZ,  Jesús-­‐María.  A  expansão  do  direito  penal:  aspectos  da  política  criminal  nas  sociedades  pós-­‐industriais.  2.  ed.  rev.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  45.  24  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  35.  

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(judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o Estado de direito e a própria República. [...] A contenção e a redução do poder punitivo, planificadas pelo direito penal para uso judicial, impulsionam o progresso do Estado de direito. Não há nenhum Estado de direito puro; o Estado de direito não passa de uma barreira a represar o Estado de polícia que, invariavelmente, sobrevive em seu interior. Por isso, a função de contenção e redução do direito penal é um compromisso dialético indispensável à sua subsistência e progresso.”25 Quando o juiz deixa de cumprir seu papel mais relevante de contenção do poder punitivo, ele passa a engrossar o poder de polícia, que se transforma naturalmente em arbitrariedade (porque o poder de polícia nada mais é que a coação direta do Estado sem o amparo em uma norma válida do Estado de direito).

Ainda de acordo com o mesmo autor: “Considerando a dinâmica da passagem do Estado de polícia ao Estado de direito, é possível sustentar uma posição dialética: não há estados de direito reais (históricos) perfeitos, apenas estados de direito que contêm (mais ou menos eficientemente) os estados de polícia neles enclausurados.”26

Esquematizando27:

Poder  punitivo  

Definição  das  normas  incriminadoras  

 Define  o  crime  e  as  respectivas  sanções    

Aplicação  da  norma  por  meio  do  processo  

Declara  a  prática  do  crime,  quem  foi  o  criminoso  e  aplica-­‐lhe  as  respectivas  sanções  

Execução  da  pena   Concretizada  na  sentença  condenatória  

O fundamento do direito de punir “está na necessidade de assegurar as tarefas que o Estado cumpre realizar e nessa necessidade encontra o seu limite.”28 É inconcebível admitir a doutrina de Hobbes de que o Estado, para assegurar a paz, teria liberdade total de atuação.

Há determinadas situações em que o Estado concede à vítima a faculdade de ingressar em juízo contra o agressor, estabelecendo uma relação processual. É o que acontece, por exemplo, nos seguintes casos: calúnia – CP, art. 138; difamação – CP, art. 139; introdução ou abandono de animais em propriedade alheia – CP, art. 164; fraude à execução – CP, art. 179.

Mesmo nessas situações, convém esclarecer que o Estado não transfere ao particular o ius puniendi, pois ao particular só cabe o ius persequendi ou ius accusationis (direito de vir a juízo processar o suposto agressor), já que a (aplicação da pena e a) execução da sentença condenatória, na qual se encontra prevista a sanção penal, permanece nas mãos do Estado.29

25  ZAFFARONI,  Eugenio  Raúl;  PIERANGELI,  José  Henrique.  Manual  de  direito  penal  brasileiro:  parte  geral.  Vol.  1.  9.  ed.  rev.  e  atual.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  41.    26  ZAFFARONI,  Eugenio  Raúl;  PIERANGELI,  José  Henrique.  Manual  de  direito  penal  brasileiro:  parte  geral.  Vol.  1.  9.  ed.  rev.  e  atual.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  41.    27  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  36.  28  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  36.  29  Uma  interessante  exceção  ao  monopólio  estatal  pode  ser  encontrada  no  Estatuto  do  Índio  (Lei  6.001/1973)  que  prevê  que  “será  tolerada  aplicação,  pelos  grupos  tribais,  de  acordo  com  as  instituições  

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1.7. Características do direito penal

[...]

1.7.1. Intervenção mínima e garantista do direito penal

O direito penal só deve ser aplicado como ultima ratio e de forma garantista (respeito às regras e princípios legais, constitucionais e internacionais), ou seja, é a última medida e deve, racionalmente, afastar o arbítrio e as incertezas da punição criminal, tanto na criação de delitos, quanto na cominação e na aplicação de penas. Tal se dá pelo fato de que para garantir a ordem social o direito penal se vale de meios especialmente gravosos (as sanções penais). Cabe ao Estado criar um modelo de direito penal mais apto a diminuir a violência que se fixa no interior da sociedade sem se fazer, do mesmo modo – ou mais –, violento, sempre cuidando de só atingir a liberdade individual da qual é garante dentro dos estreitos limites fixados pelo ordenamento jurídico.

Esquematicamente:

A seguir trataremos dos dois principais aspectos que integram o conceito de intervenção mínima do direito penal: fragmentariedade e subsidiariedade.

1.7.1.1. Caráter fragmentário do direito penal

É necessário que o direito penal apenas se ocupe de ataques (ofensas) intoleráveis (geradores de lesões ou perigo de lesão) a bem jurídicos relevantes. O direito penal, por conta do caráter fragmentário que ostenta, somente tutelará e sancionará condutas revestidas de especial gravidade, isto é, condutas que perturbem de forma intolerável o Estado de direito e necessitem da atuação do direito penal. E somente quando dirigidas à tutela de bem jurídicos relevantes. Dois, portanto, são os planos de atuação do caráter fragmentário do direito penal:

- Análise do bem jurídico que se pretende tutelar pelo direito penal, sancionando aqueles que o ofendam " há que ser relevante;

próprias,  de  sanções  penais  ou  disciplinares  contra  seus  membros,  desde  que  não  revistam  caráter  cruel  ou  infamante,  proibida  em  qualquer  caso  a  pena  de  morte”  (art.  57).  

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- Análise da natureza, intensidade e características da lesão ao bem jurídico relevante " tem que ser concreta ou real, grave, intolerável e transcendental.

É por isso que se diz que o direito penal possui natureza fragmentária: é que não protege todos os bens jurídicos (só os mais relevantes); também não protege os bens mais relevantes de qualquer ofensa (somente daquelas consideradas concretas ou reais, graves, transcendais e intoleráveis).

Para que o direito penal se legitime, é necessário que ocorra a materialização do fato punível (princípio da ofensividade), com a conduta transcendendo o âmbito do próprio autor, atingindo bens jurídicos de terceiros, já que o direito penal constitui uma ordem reguladora externa de condutas (direito penal do fato, que se opõe ao direito penal do autor).

1.7.1.2. Caráter subsidiário do direito penal

Por ser o direito penal um mecanismo drástico de controle social, pois em regra acarreta a privação de liberdade do indivíduo que infringe a lei penal, bem como o estigmatiza, dificultando que ele possa se inserir na sociedade por meio de participações legítimas (colocando-o, muitas vezes, portanto, à margem da sociedade), ele deve ser aplicado como última medida, como ultima ratio, isto é, subsidiariamente. Como diz Paulo Queiroz, a atuação do direito penal “há de pressupor o fracasso de outras instâncias menos lesivas de controle social, com as quais deverá concorrer utilmente”.30

O efeito danoso que oriundo da utilização do direito penal afeta não só o individuo culpado, mas também o inocente (investigado/réu e declarado inocente ao final; investigado/réu e declarado culpado, mas que é inocente), os familiares do investigado/réu, a sociedade e o Estado.

Assim, somente quando esgotados todos os outros meios disponíveis ao Estado para a proteção de determinado bem jurídico (individual ou supraindividual) é que o direito penal deve ser acionado – as dimensões da subsidiariedade serão analisadas no item 1.7.1.2.

1.7.2. Caráter garantista do direito penal

Ao cominar pena ou medida de segurança ao indivíduo, o direito penal reveste-se de caráter garantista, pois ninguém poderá suportar uma sanção penal que não esteja expressamente prevista na lei (reserva legal) e que não decorra de um processo penal, no qual todos os princípios, direitos e garantias processuais penais tenham sido atendidos. Ex.: garantia do devido processo legal.

De conformidade com a doutrina de Ferrajoli (principal expoente do garantismo), garantista é o sistema penal em que a pena, excluindo a incerteza e a imprevisibilidade de sua intervenção, ou seja, que se prende a um ideal de racionalidade, condicionado exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da liberdade do cidadão contra o arbítrio punitivo; donde surge o ponto de contato com o minimalismo,31 do qual o autor também é um dos artífices.

Quando se verifica a criação dos tipos penais (crimes) e a aplicação do direito penal, a criminologia moderna trata de desnudar alguns aspectos recorrentes, mostrando o quanto o

30  QUEIROZ,  Paulo.  Direito  penal:  parte  geral.  4.  ed.  Rio  de  Janeiro:  Lumen  Juris,  2008,  p.  XX.  31  FERRAJOLI,  Luigi.  Direito  e  razão:  teoria  do  garantismo  penal.  Tradução  de  Ana  Paula  Zomer;  Fauzi  Hassan  Choukr;  Juarez  Tavares  e  Luiz  Flávio  Gomes.  4.  ed.  São  Paulo:  RT,  2014,  p.  239-­‐333.  

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direito penal, na prática, é32:

- arbitrário, pois não castiga igualmente;

- desigual, já que não investiga todas as infrações delitivas, mas particularmente as oriundas de classes sociais menos favorecidas;

- seletivo, porque, tendencialmente, o direito penal atua contra pessoas vulneráveis (pobres, mulheres, usuários de drogas);

- injusto, uma vez que quase sempre recai sobre a parte mais débil e os extratos economicamente mais desfavorecidos.

Análise  crítica.  O  juiz  que  aceita  resignadamente  aplicar  o  “direito  penal”  do  estado  de  polícia  se  coloca  na   posição   de   garante   dessa   punição   abusiva.   É   também   um   garantista,   porém,   não   do   Estado   de  direito,  sim,  do  estado  de  polícia.  A  função  do  juiz  é  eminentemente  garantista  (de  um  ou  outro  estado).  Toda  pena  desnecessária  é  tirânica  (dizia  Montesquieu).  Parafraseando-­‐o,  pode-­‐se  dizer  que  toda  pena  que   não   siga   rigorosamente   todas   as   limitações   legais,   constitucionais   e   convencionais   é   tirânica   e  despótica.   O   juiz   que   incorre   nessa   tirania   é   garantista   de   um   estado   paralelo,   chamado   estado   de  polícia.

1.8. Princípios, direitos e garantias criminais limitadores da intervenção penal

Considerando-se que a Constituição e os Tratados internacionais contêm inúmeros preceitos (regras e princípios) que direta ou indiretamente conformam ou modulam o sistema punitivo brasileiro, é deles que devemos extrair os postulados político-criminais que demarcam o âmbito da atuação do direito penal. Esse conjunto normativo limitador do castigo tem vigência e validade equivalente ao conjunto de normas que incriminam uma conduta. O direito penal não é somente punitivo, ele é também garantista (ou seja: está dotado de uma série de normas que regulam e limitam a cominação, a aplicação e a execução do castigo). Por princípio do império da lei, tudo deve ser observado (tanto os preceitos sancionatórios quanto os garantistas).

Exemplificando:  Nos  países  que  aboliram  a  pena  de  morte,  ela  não  pode  ser  restabelecida  (Convenção  Americana  de  Direitos  Humanos,  art.  4.º,  3).  A  Constituição  brasileira  atual  (de  1988),  inclusive  por  força  do   princípio   da   proibição   de   regresso   (ou   da   vedação   do   retrocesso,   que   também  é   conhecido   como  “efeito   cliquet”  –  os  alpinistas  utilizam  essa  expressão  para   significar  que   seus   instrumentos   somente  permitem   subir,   nunca   retroceder),   salvo   o   caso   de   guerra   declarada,   permite   a   pena   de   morte   ou  qualquer  pena  de  caráter  perpétuo  (art.  5.°,  XLVII,  a  e  b).  Lei  ordinária  nesse  sentido  não  só  violaria  o  art.  4º,  3,  da  Convenção  Americana,  como  também  a  própria  Constituição.  Propor  ou  estimular  qualquer  debate  sobre  a  pena  de  morte  no  nosso  país,  portanto,  significa  só  incrementar  o  sensacionalismo  e  a  manipulação  do  estado  emocional  do  povo,  iludindo-­‐o  com  um  “produto”  vedado  e  reconhecidamente  discriminatório   (basta   lembrar   que   em   toda   história   da   pena   de  morte,   raríssimos   foram  os   casos   de  execução  de  alguém  com  alto  status  social).33  

A eficácia prática dos princípios irradia-se não só ao momento legislativo de elaboração do direito penal (quando o legislador cria a lei penal), senão também ao aplicativo e interpretativo (nem o intérprete nem o juiz podem ignorá-los), bem como no momento executivo (no momento 32  HASSEMER,  Winfried;  CONDE,  Francisco  Muñoz.  Introducción  a  la  criminología  y  al  derecho  penal.  Valencia:  Tirant  lo  blanch,  1989.      33  Sobre  o  tema,  consultar:  GOMES,  Luiz  Flávio;  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Comentários  à  Convenção  Americana  sobre  Direitos  Humanos:  pacto  de  San  José  da  Costa  Rica.  4.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2013,  p.  45-­‐46.    

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da elaboração de políticas preventivas assim como quando se vai concretizar o comando sancionador contido na sentença condenatória, ou seja, no momento da execução da pena).

Também é a partir da conformação constitucional que reformas penais devem ser realizadas, principalmente por conta do longo espaço de tempo que medeia muitas legislações criminais (nosso Código Penal ainda prevê dispositivos criados na década de 40) e a Constituição (promulgada em 1988), o que leva, inexoravelmente, a uma sempre necessária conformação constitucional da legislação criminal.

Os postulados político-criminais estão contemplados no texto constitucional e nos tratados de direitos humanos de forma expressa (princípio da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade etc.) ou implícita (exclusiva proteção de bens jurídicos, ofensividade do fato etc.). Todos os princípios político-criminais encontram-se ancorados num princípio-síntese do Estado de Direito: dignidade humana (CF, art. 1º, III). Nenhuma ordem jurídica pode contrariá-lo. Qualquer violação a outro princípio afeta igualmente o da dignidade da pessoa humana. O ser humano não é coisa, é, antes de tudo, pessoa dotada de direitos, sobretudo perante o poder punitivo do Estado. Não existe liberdade onde o humano deixa de ser tratado como pessoa para ser enfocado como coisa (Beccaria). É imoral conceber o ser humano como meio e não como fim; ele não pode ser instrumentalizado para a obtenção de nenhuma finalidade (Kant).

Desde a criação do modelo constitucionalista de direito, quem estuda, interpreta ou aplica o direito penal sem conhecer (ou reconhecer) a força normativa e cogente dos princípios constitucionais penais não é um penalista que se pode dizer atualizado. Tampouco está atualizado quem, desde os anos setenta, em razão de toda construção teórica de Roxin, que parte da constatação de que o direito penal não pode ter existência isolada, sem o influxo dos princípios constitucionais fundamentais, ignora a proximidade entre direito penal e política criminal, quem desconhece que os princípios constitucionais indicam a política-criminal a ser adotada pelo legislador e seguida pelos intérpretes e aplicadores da lei penal.

Os princípios penais extraídos direta ou indiretamente de nossa Constituição Federal indicam a opção político-criminal pelo minimalismo penal, sendo que os mais relevantes podem ser agrupados da seguinte forma:

(A) Princípios  relacionados  à  missão  fundamental  do  direito  penal  

(1) Princípio  da  exclusiva  proteção  de  bens  jurídicos    (2) Princípio  da  intervenção  mínima    

(B) Princípios  relacionados  com  o  fato  do  agente    

(3)  Princípio  da  exteriorização  ou  materialização  do  fato    (4)  Princípio  da  legalidade  do  fato    (5)  Princípio  da  ofensividade  do  fato  

(C) Princípios  relacionados  com  o  agente  do  fato  

(6)  Princípio  da  responsabilidade  pessoal    (7)  Princípio  da  responsabilidade  subjetiva    (8)  Princípio  da  culpabilidade    (9)  Princípio  da  igualdade  

(D)  Princípios  relacionados  com  a  pena  

(10)  Princípio  da  legalidade  da  pena    (11)  Princípio  da  proibição  da  pena  indigna    (12)  Princípio  da  humanização  das  penas  (13)  Princípio  da  proporcionalidade  

Vejamos cada um deles:

1.8.1. Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos

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O direito penal não serve para a tutela da moral, de funções governamentais, de uma ideologia, de uma religião etc. É sua missão tutelar os bens jurídicos. Ademais, por conta do princípio da intervenção mínima, conforme se verá no item 1.8.2., somente os bens jurídicos mais relevantes devem ser objeto de proteção do direito penal (não sendo relevante o bem jurídico, não se justifica uma intervenção tão drástica do Estado, como é a que acontece por meio do direito penal). Os bens jurídicos de menor monta podem ser objeto de proteção de outras esferas do direito, como o comercial ou o civil, por exemplo.

É necessário que o bem jurídico tutelado pelo direito penal esteja contemplado expressamente na Constituição? Não. Fundamental é que o bem jurídico não conflite com o quadro axiológico constitucional, isto é, com os valores que a Constituição contempla.

1.8.2. Princípio da intervenção mínima

O princípio da intervenção mínima possui dois aspectos relevantes: fragmentariedade (não protege todos os bens jurídicos de todas as ofensas a eles dirigidas) e subsidiariedade (sempre que outros meios de tutela forem igualmente eficazes, o direito penal não pode ser utilizado).

Fragmentariedade do direito penal: penal possui duas dimensões:

- somente os bens mais relevantes devem receber a tutela penal;

- exclusivamente os ataques mais intoleráveis a esses bens jurídicos relevantes é que devem ser punidos penalmente.

O Direito tem condições de oferecer aos bens uma proteção diferenciada, que pode ser civil, administrativa, penal etc., devendo a tutela penal ser reservada para aquilo que efetivamente cause lesão ou perigo ao bem jurídico-penal protegido.

Ataques ínfimos, irrisórios, devem ser regidos pelo princípio da insignificância. O princípio da insignificância tem como fundamento a fragmentariedade do direito penal. Não é exatamente a mesma coisa que intervenção mínima, senão uma manifestação dela. O mesmo pode-se dizer do princípio da adequação social (não se pune os pais que perfuram as orelhas da filha para a colocação de brincos) ou do princípio da irrelevância penal do fato (fato não necessitado de pena, como é o caso do perdão judicial ao pai que mata o filho em acidente de carro). Condutas ou resultados considerados pela sociedade como adequados ou que por ela são tolerados, não devem entrar no âmbito do direito penal.

Subsidiariedade do direito penal: o direito penal só tem lugar quando outros ramos do sistema jurídico não se mostram suficientes para a prevenção e reprovação do fato. O direito penal é Direito de ultima ratio (TJSP, AC 113.999-3, rel. Luiz Betanho).

Caso   concreto:   A   firme   jurisprudência   no  nosso   país,   no   sentido   de   que  não   se   configura   o   delito   de  desobediência  quando  há  sanção  administrativa  para  a  conduta,  constitui  exemplo  de  subsidiariedade  do  direito  penal.  Em  vários  julgados,  quando  se  trata  de  descumprimento  de  uma  medida  protetiva  de  urgência  prevista  na  Lei  Maria  da  Penha,  tem  se  entendido  que  não  configura  o  crime  de  desobediência,  tendo  em  vista  que  há  previsão  legal  referente  às  consequências  do  descumprimento:  aplicação  de  uma  medida   ainda  mais   severa,   podendo-­‐se   chegar   à   prisão   preventiva   (desde  que  os   requisitos   se   façam  presentes)  –  STJ,  6ª  T.,  REsp  1.374.653,  j.  em  11/03/2014.  

Por força do princípio da intervenção mínima, o que resulta constitucionalmente proibido no nosso país é o chamado direito penal máximo, que consiste no abuso do direito penal para atender finalidades ilegítimas (atemorização pela imposição de penas exemplares, por exemplo),

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para acalmar a ira da população etc. A utilização do direito penal traz um enorme custo individual e social e ele somente se justifica quando se estiver diante de um bem jurídico relevante que tenha sido ofendido de forma grave, e desde que outros recursos (instrumentos) não possam ser utilizados para se proteger tal bem.

Análise   crítica.   O   direito   penal  máximo,   tal   qual   vem   sendo   sustentado,   é   desproporcional,   desigual,  abusivo  e  arbitrário  (até  porque,  instrumentaliza  uma  pessoa  para  servir  de  exemplo  para  a  sociedade,  violando  um  dos   imperativos  éticos  de  Kant).  Os  defensores  do  direito  penal  máximo  que  vai  além  do  que  é  justo  são  garantistas  do  estado  de  polícia.    

1.8.3. Princípio da materialização do fato (nullum crimen sine actio)

Ninguém pode ser punido pelo que pensa (mera cogitação) ou pelo modo de viver. Só responde penalmente quem realiza um fato (direito penal do fato). Está proibido punir alguém pelo seu estilo de vida, ou seja, está vedado o chamado direito penal de autor, que pune o sujeito não pelo que ele fez, mas sim, pelo que ele é.

Ilustrando:  O  direito  penal  nazista,  regido  doutrinariamente  pela  denominada  Escola  de  Kiel,  é  exemplo  histórico  de  direito  penal  de  autor.  O   sujeito,  na  época  nazista,   era  punido  não  pelo  que   fazia,   senão  pelo   que   era:   judeu,   prostituta,   homossexual,   africano,   latino-­‐americano   etc.   O   art.   59   da   Lei   das  Contravenções  Penais  (Dec.-­‐lei  3.688/41:  vadiagem)  também  é  um  exemplo  de  direito  penal  de  autor  e,  desse  modo,  inconstitucional.  O  abuso  da  prisão  preventiva  contra  os  criminosos  “estereotipados”  que  não   praticam   crimes   violentos   também   se   insere   nesse   contexto   de   “direito   penal   ou   processual   de  autor”  (o  sujeito  é  preso,  muitas  vezes,  pelo  que  ele  “é”  –  pobre,  marginalizado  –,  não  pelo  que  fez).  

O crime omissivo configura exceção ao princípio da materialização do fato? Não, porque a exteriorização da conduta acontece ou por meio de uma comissão (ação) ou por intermédio da omissão. A forma omissiva (não fazer o que a lei determina) é maneira de exteriorização de uma conduta penalmente relevante. O princípio da materialização do fato não pode ser entendido só em sentido naturalístico; ele conta com sentido jurídico e abrange tanto a ação como a omissão. O médico que deixa de prestar socorro a um paciente ferido que está dentro do hospital exterioriza uma conduta omissiva punível.

Ainda em virtude do princípio da materialização do fato, quando não há conduta humana penalmente relevante (não é penalmente relevante, p. ex., condutas praticadas sem consciência em estado de sonambulismo), não há que se falar em crime. A conduta é o primeiro requisito do fato típico; sem ela, não há que se falar em crime (porque não existe crime sem um fato típico).

1.8.4. Princípio da legalidade – CP, art. 1º

A base do princípio da legalidade é a teoria da coação psicológica de Feuerbach: se o fim da cominação penal consiste na intimidação de delinquentes potenciais, a determinação psíquica que se pretende só pode ser alcançada se antes do fato é fixada na lei, da forma mais exata possível; é fundamental saber-se qual é a ação proibida. Pois se falta uma lei prévia ou esta é pouco clara, não se poderá produzir o efeito intimidatório, porque ninguém saberá se sua conduta pode acarretar uma pena ou não.

O direito penal só pode exercer sua dupla função de limitar a liberdade e criar liberdade (Jescheck) ou constituir-se na Magna Carta do delinquente (von Liszt) se se sabe, prévia e precisamente, o que está proibido e o que é permitido. O âmbito do proibido penalmente vem delineado na lei, e só um Estado de Direito, como vimos até aqui, pode garantir o princípio da reserva legal.

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O princípio da legalidade criminal (não há crime sem lei) e penal (não há pena sem lei) encontra-se previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU) de 1948 (art. 11, II), na Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 15, I), na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 9.º).  

As quatro dimensões do princípio da legalidade no direito criminal (direito penal, processo penal e execução penal) são:

a) princípio da legalidade criminal: “não há crime sem lei anterior que o defina” (CP, art. 1.o) – nullum crimen sine lege;

b) princípio da legalidade penal: “não há pena sem prévia cominação legal” (CP, art. 1.o) – nulla poena sine lege;

A Constituição Federal (art. 5º, XXXIX) cuida dos dois princípios acima: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

c) princípio da legalidade jurisdicional ou processual: não há processo sem lei, ou seja, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (nulla coatio sine lege – CF, art. 5º, inc. LIV) ou nemo damnetur nisi per legale iudicium;

d) princípio da legalidade execucional: “a jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal” (LEP, art. 2º) – nulla executio sine lege.

Nove são as dimensões de garantia do princípio da legalidade criminal. Oito delas valem também para a legalidade penal. São elas:

1.a) lex scripta (lei escrita): nosso Direito pertence à (família da) civil law, não à commom law, isto é, entre nós, o que vale é o Direito escrito, não os costumes ou os precedentes jurisprudenciais. Não há crime sem lei anterior que o defina. Isso significa, desde logo, que apenas e exclusivamente a lei é que define crime no nosso país. Os costumes não servem para essa finalidade. Podem ser válidos para a interpretação da lei penal, mas não criam crime ou pena.

Para ter vigência a lei precisa ser aprovada, promulgada, sancionada e publicada. Só pode ter valor jurídico a lei publicada na imprensa oficial (Diário Oficial). E desde que publicada sem vícios.

Caso  concreto:  Na  Lei  9.639/98  publicou-­‐se  um  parágrafo  único  ao  art.  11  que  concedia  anistia  ampla  nos   crimes   previdenciários.   Descobriu-­‐se   depois   que   esse   parágrafo   não   havia   sido   discutido   no  Congresso.   Sendo   assim,   era   absolutamente   inconstitucional.   Jurisprudência   pacífica   passou   a  reconhecer   essa   inconstitucionalidade.   (TRF   3.a   Região   –   RC   1999.61.81.001152-­‐6   –   rel.   Theotonio  Costa  –  DJU  10.04.2001,  Seção  2,  p.  243).  

2.a) lex populi (lei popular): Só pode definir crime a lei formalmente discutida e aprovada pelo Parlamento (TFR, ED, rel. Assis Toledo, RTFR 149, p. 277). Somente os representantes diretos do povo é que podem deliberar sobre o proibido ou sobre a sancionabilidade do fato. Nessa questão reside a fundamentação democrático-representantiva do direito penal.

Não se pode confundir o princípio da legalidade criminal com o princípio da reserva legal ou mesmo com o princípio da anterioridade. Vejamos:

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- princípio da legalidade é um gênero: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, inc. II). Princípio da legalidade criminal significa que não há crime sem lei (CF, art. 5º, XXXIX; CP, art. 1º). Conta hoje com várias dimensões de garantia. Dentre elas acham-se o princípio da reserva legal e o da anterioridade.

- princípio da reserva legal: significa que em matéria penal somente o legislador pode intervir para prever crimes e penas ou medida de segurança (garantia da lex populi). Reserva legal, em síntese, significa reserva de lei aprovada pelo Parlamento, de acordo com o procedimento legislativo previsto na Constituição. No direito penal, em se tratando de normas incriminadoras, vigora o princípio da legalidade, aliás, mais que isso, vigora o (plus) da reserva legal.

- Por força do princípio da anterioridade, a lei penal nova deve entrar em vigor antes e só vale para fatos posteriores à vigência.

Medidas provisórias: não podem, consequentemente, descrever crime ou pena ou mesmo cuidar diretamente de qualquer aspecto punitivo penal (CF, art. 62, § 1.o, I, b). O direito penal, pelas suas implicações na esfera dos direitos fundamentais da pessoa, não pode emanar só do Executivo.

E se a medida provisória for convertida em lei? Nesse caso sua validade se dá a partir da lei, como expressão da vontade do Parlamento e não da data da medida provisória.

Podem tais medidas, entretanto, beneficiar o réu, autorizando, por exemplo, uma determinada conduta descrita formalmente em lei penal.

Caso   concreto:   Foi   o   que   aconteceu   com   a   Medida   Provisória   1.710,   que   criou   um   programa  antipoluição,   permitindo   que   as   empresas   possam   poluir   até   determinados   níveis   e   gradativamente  reduzindo  esses  níveis.  A  conduta  autorizada  por  uma  norma  (sendo  favorável  ao  réu)  não  pode  estar  no  âmbito  da  proibição  de  outra  (teoria  conglobante  de  Zaffaroni).  No  entanto,  há  entendimento  jurisprudencial  no  sentido  de  que  medida  provisória  não  pode  beneficiar  o  agente  (Nesse  sentido,  STJ,  REsp  270.163,  rel.  Gilson  Dipp,  j.  06.06.2002,  DJU  05.08.2002,  p.  373,  que  refutou   a   aplicabilidade   da   MP   1.571,   nos   crimes   previdenciários).   Posição   do   STF:   O   STF,   no   RE  254.818-­‐PR,   rel.   Sepúlveda   Pertence,   discutindo   os   efeitos   benéficos   introduzidos   no   nosso  ordenamento   jurídico  pela  Medida  Provisória  1.571/97   (6ª  e  7ª  edições  –  essas  edições  permitiram  o  parcelamento  de  débitos  tributários  e  previdenciários,  com  efeito  extintivo  da  punibilidade)  proclamou  a  sua  validade.  Para  o  STF  as  medidas  provisórias  podem  beneficiar  o  réu.  Nossa  posição:  Concordamos  com  o  posicionamento  do  STF.  Em  favor  do  réu  cabe  inclusive  analogia.  Até  mesmo  os  costumes  podem  beneficiá-­‐lo.   Nesse   contexto,   não   há   como   afastar   a   possibilidade   de   as   medidas   provisórias  beneficiarem  o  agente.  O  princípio  da   legalidade  estrita  em  direito  penal   impede  a  medida  provisória  contra   o   réu,   não   em   seu   favor.   A   MP   1.571/97,   tendo   sido   convalidada   pela   Lei   9.639/98,   que  suspendeu  validamente  a  aplicabilidade  da  norma  contida  no  art.  95,  d,  da  Lei  8.212/91,  tinha  que  ser  aplicada   em   favor   do   réu.   A  questão  das   fontes  do  direito  penal   deve   ser  bem  compreendida   (ver   item  1.10).  Uma  coisa  é  a  adoção  de  medidas  que  restringem  a   liberdade;  outra  bem  diferente  é  a  solução  quando  a  medida  amplia  o  direito  à   liberdade  e  diminui  o  espaço  do   ius  puniendi.  Ninguém  discute  a  validade   de   causas   supralegais   de   exclusão   do   delito   (consentimento   da   vítima,   inexigibilidade   de  conduta   diversa,   etc.).   Se   até   causas   supralegais   são   admitidas   para   excluir   o   delito,   com  mais   razão  devemos  acolher  a  medida  provisória  que  beneficie  o  réu  (pro  reo).    

Decreto-lei: muitas leis penais no nosso país foram instituídas por decreto-lei. Ex.: Dec.-lei 3.688/41, que instituiu a Lei das Contravenções Penais. São reputadas válidas porque quando editadas o ordenamento constitucional assim permitia (STJ, RHC 5.416, rel. Adhemar Maciel, DJU de 26.08.1996, p. 29.725).

Tratados internacionais: Coube ao STF, no HC 96.007/SP, Primeira Turma, rel. Min. Marco

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Aurélio, j. 12/06/12, DJe-027, divulgação 07/02/13, publicação 08/02/13, corrigir o grande equívoco do STJ, que admitia a possibilidade de tratado internacional (Tratado de Palermo, concretamente) definir crime no âmbito do direito penal interno. O STF, não admitindo o Tratado de Palermo como fonte normativa válida para o direito interno, respeito a garantia da lex populi. A existência de um tipo penal pressupõe lei em sentido formal e material. A Lei 9.034/95 não definia o que se entende por crime organizado (ou organização criminosa), o que somente aconteceu com a Lei 12.850/13. Diante dessa lacuna (até o advento da Lei 12.850/13), pretendeu-se supri-la com a utilização do Tratado de Palermo, que cuida da criminalidade organizada transnacional. Era uma maneira de tentar burlar a garantia do princípio da legalidade. Afirmava-se que o referido tratado passou a vigorar no Brasil por meio do Decreto 5.015/2004, logo, assim estaria atendido o princípio da legalidade. Por vários motivos a tese não foi aceita (veja HC 96.007): (a) porque só se pode criar crime e pena por meio de uma lei formal (aprovada pelo Parlamento, consoante o procedimento legislativo constitucional); (b) o decreto viola a garantia da lex populi, ou seja, lei aprovada pelo parlamento (decreto não é lei); (c) quando o Congresso aprova um Tratado ele o ratifica, porém, ratificar não é aprovar uma lei; (d) mesmo que o tratado tivesse validade para o efeito de criar no Brasil o crime organizado, mesmo assim, ele não contempla nenhum tipo de pena (argumento do ministro Marco Aurélio) e, sem ameaça de pena não existe crime; (e) o tratado foi feito para o crime organizado transnacional, logo, só poderia ser aplicado para crimes internos por meio de analogia, contra o réu, que é proibida.

3.a) lex certa (lei certa): a lei penal deve ser indiscutível em seus termos, isto é, taxativa (princípio da taxatividade). Não pode descrever o crime de forma vaga, aberta ou lacunosa. A segurança jurídica do cidadão exige precisão no texto legal, a fim de que o possa compreender. São contrárias à garantia da legalidade material as leis que descrevem os delitos de forma vaga e imprecisa, deixando nas mãos dos juízes a definição do delito. Tal imposição, no entanto, não impede que o legislador utilize-se, vez ou outra, após uma enumeração casuística, uma formulação genérica que deve ser interpretada de acordo com os casos anteriormente elencados. Ex.: CP, art. 121, § 2º, IV: “Matar alguém... à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido. Cabe ao juiz em cada caso concreto verificar a existência desse outro recurso que dificulte a defesa do ofendido. Por exemplo: a surpresa. Trata-se de um caso de interpretação analógica.

4.a) lex clara (lei clara): lei clara é a lei inteligível, compreensível. O legislador deve utilizar expressões que possam ser entendidas pela população (cuida-se de velha reivindicação de Beccaria). De outro lado, o melhor seria que todas as leis penais fossem inseridas num só código (reserva de código), pois, desta forma, estariam todas elas organizadas sistêmica e racionalmente, resultando, por consequência, numa melhor apreensão pela sociedade do âmbito do que é proibido. Quanto mais esparsas as leis, menos inteligíveis são. Isso conduz, em alguns casos, ao reconhecimento do erro de proibição.

5.a) lex determinata (lei determinada): a lei penal deve descrever fatos empiricamente comprováveis, isto é, passíveis de demonstração em juízo.

6.ª) lex rationabilis: nos dias atuais, quando a preocupação central do juiz deve orientar-se para a solução justa de cada caso concreto, é absolutamente inatendível o velho brocardo que diz: Lex quanvis irrationabilis, dummodo sit clara (a lei, ainda que irracional, sendo clara, tem de ser aplicada). O que deve imperar hoje é exatamente o contrário: a lei irracional não deve ser

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aplicada,34 porque inconstitucional. Nesse caso, aplica-se a Lei Maior, para negar validade à inválida lei ordinária.

7.a) lex stricta (lei estrita): a lei penal deve ser interpretada restritivamente. Sendo assim, está proibida a analogia contra o réu (leia-se: in malam partem). Admite-se, contudo, a analogia em benefício do acusado (in bonam partem).

8.a) lex praevia (lei prévia): a garantia da lei prévia exprime o princípio da anterioridade que significa que a lei penal deve entrar em vigor antes e só vale para fatos que ocorram a partir dela (CP, art. 1.o). A lei penal nova incriminadora não retroage, isto é, não alcança fatos passados.

9.a) nulla lex sine iniuria (a lei deve descrever uma forma de ofensa ao bem jurídico): a lei penal deve utilizar sempre verbos que retratem uma ofensa ao bem jurídico: “matar”, “subtrair”, “constranger”, etc. Deve descrever com clareza a forma de ataque a esse bem. Essa garantia emana do princípio da ofensividade (não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado).

Todas essas dimensões de garantia emanadas da legalidade criminal valem também para as medidas de segurança (aplicáveis aos condenados que sofrem de doença mental), que inclusive estão sujeitas ao princípio da anterioridade (lex praevia). Valem ainda para as contravenções penais (Decreto Lei 3.688/41).

1.8.5. Princípio da ofensividade

O fato cometido e formalmente típico (adequado à letra da lei), para se transformar em crime, deve afetar o bem jurídico protegido pelo direito penal; não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado – nullum crimen sine iniuria. Alguns autores preferem a denominação princípio da lesividade35. Na práxis as duas palavras são usadas indistintamente.

Por força do princípio que estamos analisando, se o fato for formalmente típico (adequado à letra da lei), mas não efetivamente ofensivo ao bem jurídico (lesão ou perigo de lesão), não haverá crime (TACRIM-SP, AC 1.031.723-5, rel. Márcio Bártoli). Ex.: O falso só é crime quando potencialmente lesivo ao bem jurídico; assim, uma falsificação grosseira, afasta o delito (STJ, RHC 5.298, rel. Vicente Cernicchiaro, DJU 16.12.96, p. 50.953). Essa ofensa ao bem jurídico, ademais, deve ser significativa. Quando não se trata de uma ofensa significativa, aplica-se o princípio da insignificância (ou da bagatela), excluindo a tipicidade (material) do fato (STF, HC 84.412-SP).

Em virtude do princípio da ofensividade está proibido no direito penal o perigo abstrato presumido (o perigo é presumido quando se dispensa a prova de sua existência, bastando a periculosidade definida pelo legislador).

Explicando:   O   limite   máximo   de   atendimento   do   princípio   da   ofensividade   é   o   perigo   abstrato   de  perigosidade   real   (no   delito   de   embriaguez   ao   volante,   previsto   no   art.   306   do   Código   de   Trânsito  brasileiro,   não   basta   que   o   condutor   tenha   ingerido   bebida   alcoólica   ou   outra   substância,   é  

34  Sobre  a  irracionalidade  da  criminalização  da  arma  de  brinquedo  cf.  GOMES,  Luiz  Flávio.  Estudos  de  direito  penal  e  processo  penal.  São  Paulo:  RT,  1998,  p.  133  e  ss.  É  certo  que  esse  delito  desapareceu  com  o  novo  Estatuto  do  Desarmamento.  35  FERRAJOLI,  Luigi.  Direito  e  razão:  teoria  do  garantismo  penal.  Tradução  de  Ana  Paula  Zomer;  Fauzi  Hassan  Choukr;  Juarez  Tavares  e  Luiz  Flávio  Gomes.  4.  ed.  São  Paulo:  RT,  2014,  p.  239-­‐333;  ZAFFARONI,  Eugenio  Raúl;  ALAGIA,  Alejandro;  SLOKAR,  Alejandro.  Derecho  penal:  parte  general.  Buenos  Aires:  Ediar,  2001.    

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indispensável   que   conduz   “sob   a   influência”   dessa   substância,   com   alteração   da   capacidade  psicomotora;   essa   influência   assim   como   essa   alteração   somente   podem   ser   comprovadas   com   uma  “direção  anormal”  (zigue-­‐zague,  passar  no  vermelho,  entrar  na  contramão  etc.).  Esse  é  o  perigo  abstrato  de   perigosidade   real,   que   distingue   o   delito   de   embriaguez   ao   volante   da   infração   administrativa  idêntica,  prevista  no  art.  165  do  CTB).   Caso  concreto:  Para  quem  desconsidera  o  princípio  da  ofensividade,  há  crime  no  porte  de  arma  de  fogo  quebrada   ou   desmuniciada   (ou   seja:   não   apta   a   funcionar).   Essa   concepção,   entretanto,   é  inconstitucional,   pois   não   se   pode   restringir   direitos   fundamentais   básicos   como   a   liberdade   ou   o  patrimônio   sem   que   seja   para   tutelar   concretas   ofensas   a   outros   direitos   fundamentais   de   igual  importância.  Entendendo  que  o  porte  de  arma  desmuniciada  não  constitui  crime:  STF,  HC  81.057.  Se  a  arma   não   está   apta   para   uso,   não   coloca   os   bens   jurídicos   primariamente   protegidos   pela   lei   que  incrimina  o  porte  de  arma  ilegal.  Em  sentido  contrário:  STF,  HC  117.206/RJ,  2ª  Turma,  rel.    Min.  Cármen  Lúcia,   j.  05.11.2013,  DJe-­‐228,  divulg    19.11.2013,  public    20.11.2013.  Consta  na  ementa:  “[...]  2.  Porte  ilegal  de  arma  de  fogo  de  uso  permitido  é  crime  de  mera  conduta  e  de  perigo  abstrato.  O  objeto  jurídico  tutelado   não   é   a   incolumidade   física,  mas   a   segurança   pública   e   a   paz   social,   sendo   irrelevante   estar  a  arma  de  fogo  desmuniciada.  3.  Ordem  denegada”;  STJ,  AgRg  no  AREsp  367860/MG,  6ª  Turma,  rel.  Min.  Rogério   Schietti   Cruz,   j.   11.11.2014,   DJe   01.12.2014.   Consta   na   ementa:   “É   pacífico,   no   âmbito   desta  Corte  Superior,  como  bem  ressaltado  pela  Terceira  Seção,  nos  autos  do  AgRg  nos  EAREsp  n.  260.556/SC,  o  entendimento  de  que,  para  a  configuração  do  tipo  penal  de  porte  ilegal  de  arma  de  fogo,  é  irrelevante  o  fato  de  a  arma  estar  desmuniciada,  visto  se  tratar  de  delito  de  mera  conduta  ou  de  perigo  abstrato,  cujo  objeto  jurídico  imediato  é  a  segurança  jurídica.”  

O princípio da ofensividade está atrelado à concepção dualista da norma penal, isto é, a norma pode ser: (a) primária: delimita o âmbito do proibido; ou (b) secundária: cuida do castigo, do âmbito da sancionabilidade.

A norma primária, por seu turno, possui dois aspectos: (a) ela é valorativa: existe para a proteção de um valor (no caso o bem jurídico relevante); e (b) também imperativa: impõe uma determinada pauta de conduta à sociedade.

A norma penal existe para tutelar um bem jurídico relevante e sem ofensa a esse bem não há delito (tem-se aqui o que modernamente é denominado de tipicidade material). Daí se conclui que o crime exige, sempre:

- desvalor da ação: a realização de uma conduta valorada negativamente;

- desvalor do resultado: afetação do bem jurídico que a norma pretende tutelar.

Sem ambos os desvalores, não há crime. Doravante impõe-se o devido ajuste do direito penal à Constituição. Posição do STF sobre o assunto: HC 81.057-SP (posse de arma sem munição não configura nenhum crime). No perigo abstrato presumido só existe o desvalor da ação (de periculosidade presumida pelo legislador). Falta-lhe o desvalor do resultado (e não existe crime sem o desvalor do resultado, que é a ofensa ao bem jurídico protegido). Admitir em direito penal o perigo abstrato presumido significa conceber o delito como mera desobediência da norma, tal como fizera o nazismo de Hitler, consoante a Escola de Kiel, chefiada por Dahn e Schaffestein.

1.8.6. Princípio da responsabilidade pessoal

Não existe no direito penal responsabilidade coletiva, societária ou familiar, ou seja, não há a responsabilidade por fato de outrem. Cada um responde pelo que fez, na medida da sua culpabilidade. Ninguém pode ser punido no lugar de outra pessoa, mesmo porque a pena não pode passar do condenado (CF, art. 5º, XLV – princípio da pessoalidade ou personalidade da

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pena). Ou seja, exige-se que o agente seja, efetivamente, autor, coautor ou partícipe da prática de uma infração penal para que haja responsabilização penal.

Nos crimes tributários e previdenciários, na atualidade, nota-se enorme violação a esse princípio: isso se dá quando a denúncia é oferecida contra todos os sócios da empresa, sem se preocupar em descobrir quem efetivamente cuidava da sua administração no momento do crime. Se “A”, “B” e “C” são sócios de uma empresa, mas a administração segue sob responsabilidade exclusiva de “A”, penalmente falando, a apenas ele deve ser imputado eventual delito tributário ou previdenciário.

Responsabilidade penal da pessoa jurídica: o princípio da responsabilidade pessoal conduz a cuidar do tema da responsabilidade penal da pessoa jurídica (prevista na Lei ambiental 9.605/98, art. 3º). A CF prevê duas hipóteses possíveis de responsabilidade penal da pessoa jurídica: crimes ambientais e econômicos (CF, arts. 173 e 225). Mas até agora apenas no que concerne aos crimes ambientais o assunto foi regulamentado.

Entende-se que a única interpretação possível desse texto legal consiste em admitir que a responsabilidade da pessoa jurídica não é penal no sentido estrito da palavra. Aliás, essa responsabilidade faz parte de um tipo novo de direito, denominado direito judicial sancionador. Responsabilidade pessoal e responsabilidade penal da pessoa jurídica são duas realidades inconciliáveis. Para os que admitem a responsabilidade “penal” da pessoa jurídica, parece inevitável ao menos conceber a preponderante teoria da dupla imputação. Jamais poderia a pessoa jurídica isoladamente aparecer no polo passivo da ação penal; sempre seria necessário descobrir quem dentro da empresa praticou o ato criminoso. Desse modo, são processadas a pessoa que praticou o crime e a pessoa jurídica. Já existe, no entanto, entendimento no sentido da possibilidade de se processar apenas a pessoa jurídica. Confira-se:  

CRIME AMBIENTAL. ARTIGO 60, CAPUT, DA LEI 9605/98. PRELIMINARES AFASTADAS. ABSOLVIDO RÉU POR INEXISTÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO NO DELITO. MANTIDA CONDENAÇÃO DA RÉ GVT. [...] Trata-se de crime de mera conduta, que independe de resultado naturalístico, e de perigo abstrato, uma vez que a lei fala em atividade potencialmente poluidora. A Lei de Política Nacional do Meio Ambiente adotou a sistemática da responsabilidade civil objetiva, recepcionada pela Constituição Federal, sendo irrelevante e impertinente a discussão se o agente agiu com culpa ou dolo.

Comprovada a ausência de participação do réu, que era gerente administrativo financeiro da empresa, sem nenhuma ingerência no licenciamento das antenas, vai absolvido. Comprovado que a ré GVT, sem licença ambiental, fez funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, praticou o crime ambiental previsto no art. 60 da Lei 9.605/98. Prova suficiente para a manutenção da condenação e da pena, corretamente aplicada à ré pessoa jurídica. Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais do Rio Grande do Sul, Apelação Criminal n. 71002552503, j. em 22.02.2011.

1.8.7. Princípio da responsabilidade subjetiva

Não existe responsabilidade penal objetiva no direito penal, isto é, o agente que se envolveu num fato ofensivo a bens jurídicos só pode por ele ser responsabilizado penalmente se agiu com dolo ou culpa.

Ilustrando:   Quem   adquire   veículo   zero   quilômetro   e   na   primeira   viagem   dá-­‐se   a   quebra   da   barra   de  

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direção,  causando  uma  morte,  não  pode  ser  responsabilizado  penalmente  porque  nessa  conduta  não  há  dolo   e   tampouco   era   previsível   o   risco   proibido   criado.   A   simples   participação   material   no   fato   não  significa  automaticamente  responsabilidade  penal.  

Não se admite no direito penal a responsabilidade objetiva (a versari in re illicita): quem pratica um ato ilícito deve ser responsabilizado por todas as suas consequências, independentemente de serem previsíveis, desejadas ou fortuitas.

1.8.8. Princípio da culpabilidade

Só pode ser punido penalmente o autor do fato que podia comportar-se de forma distinta, conforme o Direito. O poder agir de modo distinto, conforme o Direito, constitui a essência do princípio da culpabilidade, que, por seu turno, expressa o fundamento e o limite da pena.

Não pode ser penalmente responsabilizado quem:

- não tinha capacidade de entender, em tese, o sentido das proibições;

- não tinha capacidade de querer (inimputáveis);

- não tinha acesso ao sentido da ilicitude concreta;

- não podia comportar-se de forma distinta.

O princípio da culpabilidade, na atualidade, em suma, significa: (a) que não há pena sem culpabilidade; e (b) que está proibida a responsabilidade penal de quem não podia agir de modo diverso (inimputabilidade, erro de proibição etc.).

Todas as causas de exclusão da culpabilidade (inimputabilidade por loucura, erro de proibição etc.), chamadas de eximentes ou dirimentes, afetam a possibilidade de agir de modo diverso, conforme o Direito.

A culpabilidade do agente consiste no juízo de reprovação realizado sobre ele. Sendo assim, verifica-se que a culpabilidade consiste na ligação entre a teoria do delito (crime) e a teoria da pena, ou seja, a culpabilidade é fundamento para aplicação de pena ao agente. Ela não pertence ao conceito de crime. Sua posição topográfica é a de fazer o elo entre o crime e a pena.

1.8.9. Princípio da igualdade

Existem historicamente duas concepções da igualdade: (a) paritária: a lei deve ser genérica, impessoal e não pode comportar distinções e (b) valorativa: é possível que haja distinções, desde que justificada a diferença de tratamento. É a corrente que hoje prepondera. Não pode haver tratamento injustificado e discriminatório entre iguais. A diferença de tratamento deve ser sempre devidamente justificada. O mesmo órgão jurisdicional pode conferir tratamento distinto a uma situação semelhante, desde que justifique razoavelmente a distinção. O fundamento jurídico desse princípio reside o art. 5º, inc. I, da CF.

Caso   concreto:   O   princípio   da   igualdade   foi   a   base   constitucional   do   entendimento   de   que   a   Lei  10.259/2001,  que  criou  os  juizados  no  âmbito  federal,  devia  também  ter  aplicação  no  âmbito  estadual.  Essa  lei  definiu  como  infração  de  menor  potencial  ofensivo  o  delito  até  dois  anos.  Como  não  podemos  tratar   desigualmente   crimes   iguais,   chegou-­‐se   à   conclusão   de   que   esse   novo   limite   tinha   que   ter  incidência  também  no  âmbito  dos  juizados  estaduais.  Depois  de  muitas  decisões  judiciais  nesse  sentido,  a  Lei  11.313/2006  regulamentou  a  situação  ao  alterar  o  art.  61  a  fim  de  que  fosse  considerada  infração  de  menor  potencial  lesivo  os  crimes  a  que  a  lei  comine  pena  máxima  não  superior  a  dois  anos  (usando,  

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agora,  os  mesmos  parâmetros  da  Lei  10.259/2001  –  Juizados  Especiais  Federais).    

1.8.10. Princípio da legalidade da pena

Configura a segunda das quatro dimensões do princípio da legalidade no direito criminal (direito penal, processo penal e execução penal), que são: (1) legalidade criminal (“não há crime sem lei anterior que o defina” – CP, art. 1.o); (2) legalidade penal (“não há pena sem prévia cominação legal” – CP, art. 1.o); (3) legalidade jurisdicional ou processual (não há processo sem lei, ou seja, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal – CF, art. 5º, LIV) e (4) legalidade execucional (“a jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal” – LEP, art. 2º).

O princípio da legalidade da pena possui guarida constitucional: art. 5º, XXXIX.

1.8.11. Princípio da proibição da pena indigna

O princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) configura a base de todos os demais, assim como do próprio modelo de Estado de direito que adotamos. No âmbito penal, cabe destacar o seguinte aspecto da sua forma normativa: a pena não pode ser ofensiva à dignidade humana.

Ilustrando:  O   juiz  não  pode  aplicar  pena  degradante,  humilhante  ou  vexatória.   Isso  ocorreu  num  caso  em  que  um  advogado   foi  condenado  a   limpar  as   ruas  de  uma  determinada  cidade.  Limpar   ruas  não  é  uma   tarefa   degradante,   em   regra,   mas   para   quem   tem   o   título   de   bacharel   em   direito   pode   sê-­‐lo  concretamente,  mesmo  porque,  como  diz  a  LEP,  toda  pena  deve  ser  fixada  levando  em  conta  a  situação  de   cada   condenado.   O   trabalho   de   um   advogado   seria   muito   mais   útil   à   sociedade   se   ele  desempenhasse  outro  tipo  de  função  (assistência  jurídica  aos  presos,  por  exemplo).  

1.8.12. Princípio da humanidade

A cominação, a aplicação e a execução da pena devem ser pautadas pelo princípio da humanidade, princípio que proíbe que o indivíduo seja tratado de forma cruel, desumana ou degradante, isto é, há que se falar em preservação da dignidade da pessoa humana (CF, art. 5º, III). Também impõe respeito à integridade física do detento (CF, art. 5º, XLIX), etc.

Análise   crítica.   Todas   as   penas   privativas   de   liberdade   executadas   no   Brasil   são   inconstitucionais,  porque   desumanas,   cruéis   e   degradantes,   tendo   em   vista   as   condições   incivilizadas   dos  estabelecimentos   penais.   Afirma-­‐se   que   o   grau   de   civilização   de   um   país   deve   ser   aferido   tendo   em  conta  o  seu  sistema  penitenciário.  Se  essa  métrica  for  aplicada  ao  Brasil  não  há  como  não  concluir  que,  neste  campo  ao  menos,  somos  um  dos  povos  mais  bárbaros  do  planeta.  Praticamente  todos  os   juízes  que   fizeram   algo   no   sentido   de   fazer   valer   nos   presídios   o   Estado   de   direito   (interdição   do  estabelecimento   penal,   por   exemplo)   acabaram   sendo   punidos   ou   advertidos   pelas   suas   respectivas  corregedorias.   Faz  parte  da   cultura  predominante  o   tratamento   cruel  dos  presos.   Isso  acontece  entre  nós   porque   ainda   se   considera   que   o   preso   não   vai   para   a   cadeia   para   cumprir   o   que   a   sentença  estabeleceu,  mas  sim  para  ser  castigado  da  forma  mais  desumana  possível.  Em  outras  palavras,  o  preso  no   Brasil   é   tratado   como   “homo   sacer”   (estudado   por   Agamben),   o   que   pode   ser   torturado   e  exterminado   impunemente.  Nesse   âmbito   (do   sistema   carcerário)   o   Estado  de  direito   é  praticamente  nulo.   Aqui   vigora   muito   mais   o   estado   de   polícia   (coações   diretas   ou   castigos   cruéis   sem   nenhum  amparo  no  Estado  de  direito).  Todo  castigo   fora  dos   limites   legais,   constitucionais  ou   internacionais  é  criação  do  verdugo  que  o  criou.  Isso,  evidentemente,  está  fora  do  “contrato  social”  (fora  do  Estado  de  direito).  São  incontáveis  os  verdugos  garantistas  do  estado  de  polícia  que  atuam  no  âmbito  da  execução  penal.  Desde  funcionários  do  sistema  penitenciário  até  os  próprios  governos:  todos  violam  incontáveis  

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regras  de  direitos  humanos.  Cezar  Peluso,  quando  presidente  do  STF,  disse:  “os  presídios  brasileiros  são  ‘um  crime  do  Estado  contra  o  cidadão’;  são  verdadeiras  escolas  de  formação  de  criminosos".  

1.8.13. Princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade ou da proibição de excesso

Toda intervenção penal, na medida em que constitui uma restrição da liberdade, só se justifica se:

- adequada ao fim a que se propõe (o meio tem aptidão para alcançar o fim almejado);

- necessária, isto é, só está justificada se não há outros meios de intervenção (de caráter não penal) à disposição e que sejam igualmente eficazes para o fim a que se destina a intervenção penal;

- houver proporcionalidade e equilíbrio na pena. Impõe-se sempre um juízo de ponderação entre a restrição à liberdade que vai ser imposta (os custos disso decorrente) e o fim perseguido pela punição (os benefícios que se pode obter). Os valores em conflito devem ser sopesados.

É desse último requisito que se cuida quando se fala do princípio da proporcionalidade da pena. Ele alberga em seu interior o princípio da individualização da pena (CF, art. 5º, XLVI), nos seus três níveis (no momento da cominação legal - previsão abstrata na lei; da aplicação - definição, na sentença condenatória, da pena concreta; ou da execução - momento em que se realiza a sanção prevista na sentença condenatória).

Ilustrando:   1)   Pena   de   seis   anos   para   um   beijo   lascivo   (CP,   art.   214):   cuida-­‐se   de   pena   totalmente  desproporcional.   Cabe   ao   juiz   refutar   sua   aplicação.   A   solução  melhor,   para   o   caso,   é   a   aplicação   da  pena  anterior  à  lei  dos  crimes  hediondos  para  o  caso  do  beijo.  Em  se  tratando  de  um  coito  anal  tudo  é  diferente.   Justifica-­‐se   a  pena  de   seis   anos,   tal   como  descrita  na   lei   penal.     2)  O  homicídio   culposo  no  trânsito  (art.  302  do  CTB  –  Lei  9.503/97)  é  punido  com  pena  maior  que  o  homicídio  culposo  do  CP  (art.  121,  §  3o).   Isso  poderia  até  entrar  no  âmbito  de  liberdade  do  legislador  de  punir  mais  gravemente  um  específico   injusto   penal.   Diferente   é   a   situação   da   lesão   culposa   no   trânsito   (CTB,   art.   303   –   Lei  9.503/97)   que   tem   pena   em   dobro   ante   a   lesão   dolosa   do   CP   (art.   129).   Aqui   há   evidente  desproporcionalidade.    

Sempre que o legislador não respeita o princípio da proporcionalidade, deve o juiz fazer os devidos ajustes.

Caso   concreto:   O   STJ,   aplicando   o   princípio   da   proporcionalidade   em   relação   à   pena   cominada  abstratamente   na   receptação   qualificada,   decidiu   manter   o   quantum   previsto   antes   da   alteração  promovida  pela  Lei  9.426/96.  Confira-­‐se:  “1.  Segundo  entendimento  desta  Corte,  a  pena  a  ser  aplicada  ao   crime  de   receptação  qualificada  deve  manter  o  quantum   previsto  no  artigo  180,  caput,   do  Código  Penal,  ou  seja,  o  mesmo  patamar  do  preceito  secundário  da  receptação  simples.  [...]  (STJ,  HC  90.235/SP,  6ª  Turma,  rel.  Min.  Maria  Thereza  de  Assis  Moura,  j.  04.05.2010,  DJe  24.05.2010,  RB,  vol.  560,  p.  26).  2.  Fruto  da  Lei  9.426/96,  o  §  1º  do  art.  180  do  CP  –  receptação  qualificada  –  reveste-­‐se  de  imperfeições  –  formal   e  material.   É   que   não   é   lícita   sanção   jurídica  maior   (mais   grave)   contra   quem   atue   com   dolo  eventual   (§   1º),   enquanto   menor   (menos   grave)   a   sanção   jurídica   destinada   a   quem   atue   com   dolo  direto   (art.   180,   caput).   3.   Há   quem   sustente,   por   isso,   a   inconstitucionalidade   da   norma   secundária  (violação   dos   princípios   da   proporcionalidade   e   da   individualização);   há   quem   sustente   a  desconsideração  de  tal  norma  (do  §  1º,  é  claro).  4.  Adoção  da  hipótese  da  desconsideração,  porque  a  declaração,   se   admissível,   de   inconstitucionalidade   conduziria,   quando   feita,   a   semelhante   sorte,   ou  seja,  à  desconsideração  da  norma  secundária  (segundo  os  kelsenianos,  da  norma  primária,  porque,  para  eles,  a  primária  é  a  norma  que  estabelece  a  sanção  negativa  e  também  a  positiva).   (STJ,  AgRg  no  REsp  772.086/RS,  6ª  Turma,  rel.  Min.  Nilson  Naves,  j.  23.06.2009,  DJe  28.09.2009).  Em  sentido  contrário:  1)  “Alegação   de   inconstitucionalidade   do   art.   180,   §   1º,   do   CP.   4.   A   Segunda   Turma   já   decidiu   pela  

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constitucionalidade  do  referido  artigo:  Não  há  dúvida  acerca  do  objetivo  da  criação  da  figura  típica  da  receptação   qualificada,   que   é   inclusive   crime   próprio   relacionado   à   pessoa   do   comerciante   ou   do  industrial.  A   ideia  é  exatamente  a  de  apenar  mais   severamente  aquele  que,  em  razão  do  exercício  de  sua  atividade  comercial  ou  industrial,  pratica  alguma  das  condutas  descritas  no  referido  §  1°,  valendo-­‐se  de  sua  maior  facilidade  para  tanto  devido  à  infraestrutura  que  lhe  favorece.”  (RE  443.388/SP,  Rel.  Min.  Ellen   Gracie).   (STF,   ARE   799.649   AgR/RS,   2ª   Turma,   rel.  Min.   Gilmar  Mendes,   j.   25.03.2014,   DJe-­‐072,  divulg  10.04.2014,  public  11.04.2014).  2)  “A  questão  de  direito  de  que  trata  o  recurso  extraordinário  diz  respeito   à   alegada   inconstitucionalidade   do   art.   180,   §   1°,   do   Código   Penal,   relativamente   ao   seu  preceito  secundário  (pena  de  reclusão  de  3  a  8  anos),  por  suposta  violação  aos  princípios  constitucionais  da   proporcionalidade   e   da   individualização   da   pena.   [...]   Inocorrência   de   violação   aos   princípios  constitucionais   da   proporcionalidade   e   da   individualização   da   pena.   Cuida-­‐se   de   opção   político-­‐legislativa   na   apenação   com  maior   severidade   aos   sujeitos   ativos   das   condutas   elencadas   na   norma  penal   incriminadora   e,   consequentemente,   falece   competência   ao   Poder   Judiciário   interferir   nas  escolhas  feitas  pelo  Poder  Legislativo  na  edição  da  referida  norma.  Recurso  extraordinário  improvido.”  (STF,  RE  443.388/SP,  2ª  Turma,  rel.  Min.  Ellen  Gracie,   j.  18.08.2009,  DJe-­‐171,  divulg  10.09.2009,  public  11.09.2009,  ement  vol-­‐02373-­‐02,  pp-­‐00375).  3)  “Por  ocasião  do  julgamento  do  EResp  n.  772.086/RS,  a  Terceira  Seção  desta  Corte  de   Justiça   firmou  o  entendimento  de  que  a  aplicação  da  pena  prevista  no  crime   de   receptação   qualificada   não   ofende   o   princípio   da   proporcionalidade,   por   ter   o   legislador  buscado  punir  de  forma  mais  rigorosa  a  conduta  do  agente  que  atua  no  exercício  de  atividade  comercial  ou  industrial.  Igual  entendimento  é  esposado  pelo  STF.”  (STJ,  AgRg  no  REsp  1.423.316/SP,  5ª  Turma,  rel.  Min.  Moura  Ribeiro,  j.  12.08.2014,  DJe  15.08.2014).  

No estrito campo do castigo penal, são subprincípios da proporcionalidade os seguintes:

- princípio da necessidade concreta da pena;

- princípio da individualização da pena;

- princípio da personalidade da pena;

- princípio da suficiência da pena alternativa;

- princípio da adequação temporal da pena (proporcionalidade entre a pena e o fato, entre a gravidade da pena e o dano gerado pelo delito).

Vejamos cada um deles:

(a) princípio da necessidade concreta da pena

Beccaria, fulcrado em Montesquieu, dizia que “toda pena desnecessária é tirânica”. Depois de constatada a culpabilidade do agente, que é o primeiro fundamento da pena, impõe-se ao juiz verificar a sua necessidade concreta, nos termos do que dispõe o art. 59 do CP (o juiz deve aplicar a pena suficiente e necessária para a prevenção e reprovação do crime). O perdão judicial é um exemplo de desnecessidade da pena (CP, art, 121, §5º; 129, §8º; 140, §1º, I e II, entre outros).

(b) princípio da individualização da pena

A idoneidade ou adequação da pena exprime-se por meio de dois subprincípios: da individualização e da personalidade da pena. Em relação ao princípio da individualização da pena (CF, art. 5.º, XLVI) importa pôr em destaque os seus três níveis: momento da cominação, da aplicação e da execução. Todos fazem parte do princípio da proporcionalidade (aliás, são expressões dele). Da cominação da pena (ou seja: previsão in abstrato da pena no tipo legal) quem se encarrega é o legislador, que deve cominar penas proporcionais em cada caso. Um

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homicídio não pode nunca ter pena idêntica a um furto. Um crime doloso não pode ter pena paritária à modalidade culposa e assim por diante. Quem individualiza a pena no momento da aplicação é o juiz, observando os critérios (judiciais) do art. 59 do CP (culpabilidade do agente, antecedentes, motivação, circunstâncias do delito etc.). Quem individualiza a execução é tanto o juiz como o próprio pessoal que integra o sistema penitenciário.

Caso   concreto:   A   proibição   de   progressão   de   regime   nos   crimes   hediondos   violava   claramente   esse  princípio  da  individualização  da  pena  (Cf.  STF,  HC  82.959,  que  julgou  inconstitucional  o  §  1.º  do  art.  2.º  da   Lei   8.072/1990).   A   Constituição   Federal   mandou   que   o   legislador   estabelecesse   critérios   de  individualização   da   pena.   No   caso   da   lei   dos   crimes   hediondos   o   legislador   bloqueou   a   atividade  individualizadora  do   juiz.   Isso   significa  afetar  o  núcleo  essencial  do  direito.  O   legislador  não  pode  agir  dessa  maneira.  Aliás,  isso  ficou  mais  que  certo  na  Lei  11.464/2007  (que  passou  a  permitir  a  progressão  de   regime   nos   crimes   hediondos,   assim   como   a   concessão   de   liberdade   provisória   sem   fiança).   No  julgamento  do  HC  97.256-­‐RS,  STF,  rel.  Min.  Ayres  Britto,  o  STF  passou  a  admitir  penas  substitutivas  no  delito  de  tráfico  de  drogas,  declarando  a  inconstitucionalidade  parcial  do  art.  44  da  Lei  11.343/2006,  que  as  proibia.  E  tudo  foi  feito  com  base  no  princípio  da  individualização  da  pena.    

(c) princípio da personalidade ou da pessoalidade da pena

Nos termos do art. 5.º, XLV, da CF, “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido”. Esse princípio tem total correlação com o princípio da responsabilidade pessoal, que proíbe a imposição de pena por fato de outrem. Ninguém pode ser punido por fato alheio. O filho não responde pelo delito do pai, a esposa não responde pelo delito do marido etc. A pena não traduz nenhum efeito preventivo quando recai sobre quem não praticou o fato punível.

A pena de prisão imposta ao pai não passa ao filho (caso aquele venha a falecer). A pena de prisão é intransferível (ou seja: é personalíssima). E a multa? Do mesmo modo, também a multa não se transfere aos sucessores, porque o dispositivo constitucional acima mencionado somente excepcionou duas coisas: (a) obrigação de reparar o dano e (b) decretação do perdimento de bens. Nenhuma interpretação pode ampliar as exceções da Constituição. Se a Constituição excepcionou duas situações, o intérprete não pode ampliá-las. Daí a conclusão de que a multa não passa aos herdeiros ou sucessores. Aliás, deixa de existir no momento em que o condenado morre. Em outras palavras: ela não atinge sequer o patrimônio do morto. Outras sanções penais (penas substitutivas, por exemplo) seguem a mesma disciplina: não passa aos herdeiros ou sucessores;

(d) princípio da suficiência da pena alternativa

Outra expressão da proporcionalidade da pena está no princípio da suficiência da pena alternativa, isto é, se a pena alternativa é suficiente, não se deve impor a pena de prisão. A locução pena alternativa, aqui, está sendo utilizada em sentido amplo. Significa, portanto, uma pena efetivamente alternativa (como o é a aplicada na transação penal) ou uma pena substitutiva (CP, art. 43 e ss.). De qualquer maneira, havendo alguma medida menos onerosa, ela deve contar com a preferência do juiz, se suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Isso é o que está dito com clareza no art. 59 do CP: o juiz aplicará a pena conforme seja necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do delito;

(e) princípio da proporcionalidade em sentido estrito

A pena (e o regime do seu cumprimento, claro), por último, deve ser proporcional ao fato praticado. Tanto o legislador como o juiz se acham limitados pelo princípio da

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proporcionalidade. E sempre que o legislador não respeita o conteúdo do referido princípio, deve o juiz fazer os devidos ajustes.

Ilustrando:   Pena   de   seis   anos   para   um   beijo   lascivo   (CP,   art.   213):   cuida-­‐se   de   pena   totalmente  desproporcional.   Cabe   ao   juiz   refutar   sua   aplicação.   A   solução  melhor,   para   o   caso,   é   a   aplicação   da  pena  anterior  à  lei  dos  crimes  hediondos  para  o  caso  do  beijo.  Na  prática  muitos  juízes  desclassificam  o  fato   para   a   contravenção   de   importunação   ofensiva   ao   pudor.   Em   se   tratando   de   um   coito   anal,   em  razão  da  afetação  de  direitos  vários  personalíssimos  da  vítima,  a  começar  pela  dignidade,  não  há  ofensa  à  proporcionalidade.    

Colisão de princípios

Os princípios que norteiam a aplicação da lei penal devem ser aplicados conjuntamente, ou seja, não há que se falar em aplicação de um princípio em detrimento de outro.

Havendo conflito entre os princípios, há que se aplicar o princípio da ponderação de interesses, o qual determina que os princípios, acaso existentes mais de um no caso concreto, sejam sopesados, analisados caso a caso, prevalecendo aquele princípio mais adequado e justo àquela situação, caso seja impossível aplicar um ou mais princípios concomitantemente. Deverá prevalecer o interesse mais relevante em detrimento do menos relevante.

1.9. Principais classificações do direito penal

[...]

Outras classificações:

1.9.4.   Direito penal de emergência: É o direito penal editado sob o império do populismo penal para atender demandas punitivas da sociedade nascidas a partir de casos midiáticos concretos (exemplo: lei dos crimes hediondos).

1.9.5.  Direito de intervenção: Para Hassemer o direito penal deveria ser dividido em dois: o clássico (para as ofensas aos bens jurídicos tradicionais como vida, patrimônio, integridade física etc.) e o direito penal de intervenção para os casos de bens jurídicos supraindividuais, caracterizado pela aplicação de medidas não penais (como ressarcimento dos danos, medidas de segurança não pessoais etc.).

1.9.6.   Direito penal de dupla velocidade (Silva Sanchez): Para esse autor o direito penal clássico com todas as garantias deveria ficar reservado para as ofensas tradicionais (vida, patrimônio etc.) e, para os crimes supraindividuais, haveria um direito sancionador sem a pena de prisão, porém, com garantias diminuídas.

1.9.7.  Direito penal funcionalista: Para vários autores o direito penal se justifica em função de alguns objetivos. Para Roxin o direito penal existe para a proteção de bens jurídicos, de forma fragmentária e subsidiária. Para Jakobs o direito existe para a proteção da norma penal (que a função de estabilização da sociedade). Para Hassemer o direito penal existe em função do cumprimento das garantias constitucionais. Para Zaffaroni o direito penal existe para a contenção (redução) do poder punitivo estatal. O tema foi tratado no item 3.4.2.

1.9.8.  Direito penal minimalista-garantista: ver item 1.7.1

1.9.9.  Direito penal simbólico: ver item 1.4.2. (função simbólica do direito penal)

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1.9.10.  Direito penal consensuado (plea bargaining): está coligado com a chamada “Justiça consensuada”, que é um gênero que comporta quatro espécies: (a) Justiça reparatória (que se faz por meio da conciliação e da reparação dos danos. Exemplo: juizados criminais previstos na Lei 9.099/95); (b) Justiça restaurativa (que exige um mediador, distinto do juiz; visa à solução definitiva do conflito, que é distinta de uma mera decisão) e (c) Justiça negociada (que se faz pela plea bargaining, tal como nos EUA, ou pelo patteggiamento, como na Itália). Em virtude das peculiaridades legais previstas na Lei 12.850/13, reputamos mais adequado conferir autonomia à (d) Justiça colaborativa (que premia o criminoso quando colabora consensualmente com a Justiça criminal), embora não passe, no fundo, de uma forma de Justiça negociada. Em todas essas quatro situações, temos o direito penal consensuado.

1.10. Fontes do direito penal

Fonte é o local de onde emana alguma coisa. Quando o tema é visto sob a ótica das normas jurídico-penais, entram em cena alguns questionamentos:

- Quem pode produzir a legislação relacionada com o direito penal (titularidade)?

- Como o direito penal se exterioriza formalmente (forma de revelação do direito penal)?

A primeira pergunta relaciona-se com a fonte material (fonte de produção do direito penal) e a segunda refere-se às fontes formais (fonte de conhecimento ou de exteriorização ou de cognição do direito penal). Estas últimas, por sua vez, classificam-se em imediatas e mediatas, conforme provenham, ou não, diretamente de uma norma expressa (escrita, positivada). Como exemplo da primeira, temos a lei; da segunda, a jurisprudência. Esquematicamente:

Fonte  material   Fontes  formais  Fonte   de   produção   do  direito  penal    

Fontes   de   conhecimento   ou   de   exteriorização   ou   de   cognição   do   direito  penal  Imediatas:   provêm   diretamente   de  uma  norma  expressa    Ex.:  lei  penal  

Mediatas:   não   provêm   diretamente  de   uma   norma   expressa.   Ex.:  jurisprudência  

Vejamos cada uma delas:

1.10.1. Fontes materiais, substanciais ou de produção (fonte de produção do direito penal)

Somente o Estado está autorizado a produzir (criar) o direito penal. Ele é responsável, portanto, pela criação do conjunto de normas que integra o chamado direito penal objetivo (conjunto de normas penais positivadas, que definem as condutas criminosas, cominam as respectivas consequências jurídico-penais para quem as pratica e define as condições e o modo da sua aplicação). Em sua tarefa criadora, deve levar em conta as aspirações sociais, políticas, econômicas e culturais da sociedade.

O Estado é o único titular do ius puniendi – CF, art. 22, I. Somente ele pode determinar a prática de condutas ou a sua abstenção, sob a ameaça de uma sanção penal (processo de criminalização de condutas = criminalização primária). Assim, é impossível qualificar como crime um fato que não esteja contemplado na previsão formal da lei. Sem lei não há crime.

Os Estados-membros não se encontram autorizados a legislar sobre temas fundamentais do direito penal (sobre o princípio da legalidade, sobre as causas de exclusão da antijuridicidade, sobre a configuração do delito etc.). Também não podem definir crimes e penas. Contudo, lei complementar federal pode autorizar os Estados membros a legislar sobre direito penal,

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restringindo-se, no entanto, a questões específicas de interesse local (CF, art. 22, par. ún.), como, p. ex., uma regra penal sobre trânsito em uma determinada localidade, sobre meio ambiente em uma região.

1.10.2. Fontes formais, cognitivas ou de conhecimento

É por meio das fontes formais que conhecemos o conteúdo do direito penal vigente. É a maneira como o direito penal se exterioriza, ou seja, como ele é revelado para a sociedade que a ele deve obediência (direito penal objetivo/positivado). Todos que querem conhecer o direito penal devem estudar suas fontes formais. São elas: (a) lei, (b) Constituição Federal; (c) tratados internacionais; (d) medida provisória, regulamento, decreto, portaria, etc.; (e) doutrina; (f) jurisprudência; (g) costumes; (h) princípios gerais do direito.

Quanto se analisa sob o prisma da maior ou menor proximidade com a gênese de produção da norma, as fontes se dividem em: (a) diretas (ou imediatas ou primárias) e indiretas (ou mediatas ou secundárias). Tal classificação, no entanto, não possui qualquer utilidade prática, pois o que importa, na atualidade, é estabelecer, entre todas elas, qual deve preponderar em uma dada situação (não havendo mais hierarquia). É que, por força do princípio interpretativo pro homine (sempre deve ser aplicada a norma mais ampliativa, a que mais otimiza o exercício do direito), quando se trata de normas que asseguram um direito, vale a que mais amplia esse direito (lei ordinária, Constituição ou Tratado, por exemplo); quando, ao contrário, estamos diante de restrições ao gozo de um direito, vale a norma que faz menos restrições (em outras palavras: a que assegura de maneira mais eficaz e mais ampla o exercício de um direito).

Ilustrando:  Entre  a  norma  da  CADH  que  garante  o  duplo  grau  de  jurisdição  no  âmbito  criminal  (art.  8º,  2,  "h")  e  a  que  restringe  esse  direito  (CPP,  art.  594),  vale  a  de  maior  amplitude  (a  CADH),  consoante  o  que  ficou  proclamado  no  HC  88.420-­‐PR  –  Primeira  Turma  do  STF.    

A análise de cada uma das fontes formais do direito será realizada no item 1.10.2, quando trataremos do tema referente à interpretação das normas penais.

Aprofundando:  Grande  parte  da  doutrina  traz  somente  como  fonte  formal  imediata  a  lei  (BITENCOURT,  PRADO,   DOTTI,   etc.).   Do   ponto   de   vista   do   direito   penal   incriminador   (o   que   prevê   crimes   e   penas),  realmente   a   lei   é   a   única   fonte   normativa.   Considerando   o   direito   penal   como   um   todo,   a   partir  principalmente   da   EC   45,   o   tema   merece   atualização,   para   incluir   os   tratados   e   convenções  internacionais  de  direitos  humanos.  Além  disso,  a  Constituição   também  é  uma   fonte   formal   imediata,  por  conta  da  necessária  análise  acerca  da  conformação  horizontal  da  lei  com  a  Constituição  Federal.    

2. Lei penal e norma penal

O direito penal, para cumprir as funções que lhe são destinadas (proteção de bens jurídicos relevantes; proteção do indivíduo contra a reação social que o crime desencadeia e proteção do indivíduo contra o poder do Estado – ver item 1.4.), utiliza-se do recurso ao castigo, sancionando certas condutas (as que ofendam de forma grave, intolerável e transcendental bem jurídicos relevantes – item 6.6.) com penas. A ideia central é a de que o direito penal motive os cidadãos (seja pela ameaça da pena, seja pela adesão aos valores contidos na norma penal), no sentido de ajustarem seus comportamentos externos com respeito ao conteúdo da lei. É por tal razão que se diz que a norma penal possui dois aspectos: ela é norma de valoração e de determinação. Vejamos:

a) Aspecto valorativo da norma: a norma encerra um juízo de valor, ao considerar dignos de proteção determinados bens jurídicos (vida, patrimônio, meio ambiente etc.); o legislador valora positiva ou negativamente certos fatos; quando valora positivamente, está comunicando que

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realizá-los é ajustado ao Direito; quando os valora negativamente, informa que são contrários ao Direito; nenhuma norma jurídico-penal é neutra (do ponto de vista valorativo); todo crime constitui uma valoração negativa do legislador; toda norma penal existe em função de um valor protegido; para isso é que ela existe; a conduta humana que realiza o tipo legal sem afetar esse valor não pode constituir crime, como veremos adiante;

b) Aspecto imperativo (ou de determinação) da norma: da norma penal também devemos extrair uma determinação (uma imposição, um dever imperativo) dirigida a todos os cidadãos, no sentido de que não devem incorrer nos fatos desvalorados (matar alguém, p. ex.), sob pena de castigo e de que podem realizar as condutas autorizadas (matar alguém em legítima defesa, p. ex.).

Os dois aspectos da norma primária não se excluem; ao contrário, convivem harmonicamente. Ou seja, ao mesmo tempo em que a norma penal existe para a tutela de um valor, ela também cumpre o papel de determinar o comportamento a ser seguido por todos os destinatários da norma penal.

No direito penal o valor que se tutela é chamado de bem jurídico (que são aqueles considerados essenciais à vida do indivíduo ou do convívio social). A conduta a ser criminalizada precisa afetar (ofender) o bem jurídico. É exatamente tal exigência que diferencia o direito penal dos demais ramos do direito que também protegem o mesmo bem jurídico (ver item 1.8.5).

Isso resulta mais do que evidente nas normas administrativa e penal que desejam evitar a condução de veículo por agente embriagado. São dois os dispositivos legais que cuidam do tema: arts. 165 e 306, ambos do Código de Trânsito brasileiro. O primeiro configura uma infração administrativa (fundada no perigo abstrato presumido: é perigoso dirigir veículo em estado de embriaguez). O segundo é um crime. Qual a diferença entre eles? O primeiro se contenta com o perigo abstrato presumido, enquanto o segundo requer um perigo abstrato de perigosidade real (ou seja: uma conduta anormal – zigue-zague, subir calçada, entrar na contramão etc. – praticada sob a influência do álcool, com alteração da capacidade psicomotora). A conduta de perigosidade real afeta os bens jurídicos que a norma visa a proteger (vida, integridade física etc.). O aspecto valorativo da norma é ofendido com essa perigosidade real. Sem ela, não se ofende o valor protegido pela norma penal.36

O infrator quando comete o crime não viola a lei penal, sim, a norma penal (pois é a norma que valora e determina o comportamento a ser seguido pelos indivíduos). Para que o comportamento seja criminoso, ele deve corresponder exatamente ao que diz a lei penal (sob pena de não ser legalmente típico). Só a conduta adequada à lei (adequação típica) é que conflita com a norma respectiva (ou seja: é que é antijurídica ou ilícita).

Ilustrando:  O   tipo  penal   formula  um  primeiro   juízo  de  desvalor  do   fato   (ofensa  a  um  bem   jurídico),  o  qual,  no  entanto,  pode  se  alterar  na  medida  em  que  se  depara  com  determinadas  circunstâncias.  Assim,  matar   outra   pessoa   é   em   regra   desvalioso,  mas,   se   a   conduta   for   praticada   no   contexto   da   legítima  defesa,  deixa  de  ser  ilícita.  O  ato  de  matar  conflita  com  a  norma  imperativa  decorrente  da  lei  penal  que  diz  “é  proibido  matar”.  Mas  se  a  morte  aconteceu  no  contexto  de  uma   legítima  defesa,  o   fato  resulta  justificado.  Violou-­‐se  a  norma  penal  imperativa  de  forma  justificada  (juridicamente  legítima).  

36  Sobre  o  assunto,  consultar:  BEM,  Leonardo  Schmitt  de;  GOMES,  Luiz  Flávio.  A  nova  lei  seca:  comentários  à  Lei  n.  12.760,  de  20-­‐12-­‐2012.  São  Paulo:  Saraiva,  2013,  p.  51-­‐53.    

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O aspecto valorativo da norma, entretanto, é fonte de controvérsias. Há quem entenda que a norma existe para proteger a si mesma (essa é a doutrina do funcionalismo radical de Jakobs – ver item 3.3., “c”).

Analisando, agora, sob a ótica da lei penal, temos que a cominação de uma sanção penal a um determinado comportamento humano (fato) é realizada por meio de uma lei penal (aliás, como menciona o art. 1º do CP: “não há crime sem lei anterior que o defina; não há pena sem prévia cominação legal”). Lei penal é a que disciplina algum aspecto do ius puniendi estatal, ou seja, a que delimita o âmbito do que está proibido (ou permitido) ou que dispõe sobre a punibilidade (castigo) do fato.

Desde que evoluímos da fase da vingança privada para a fase do controle público, o conflito gerado pelo crime passou para o domínio do Estado, significando dizer que à vítima (ou a alguém em nome dela) não é dado o direito de fazer justiça no caso concreto, deixando nas mãos do Estado (por meio de seus aparatos repressivos: polícia, ministério público, magistratura, etc.) a consecução da Justiça criminal (selecionando as condutas criminosas e punido quem as pratica). Ninguém pode fazer justiça com suas próprias mãos, sendo, inclusive, considerado criminoso quem assim atua (CP, art. 345).

A lei penal é fonte de comandos normativos penais. Ela delimita o âmbito do que está proibido (ou permitido) e ainda dispõe sobre a punibilidade (castigo) para o fato. A norma penal nasce da lei penal. A lei penal, como se vê, constitui um prius lógico da norma penal. Sem aquela, esta não existe.

Ilustrando:  O  art.  121  do  CP  prevê:  “Matar  alguém.  Pena:  reclusão  de  6  a  20  anos”  (essa  é  a  lei  penal).  O  comando  normativo   é   o   seguinte:   “é   proibido  matar”.   Como   se   vê,   só   podemos   conhecer   a   norma   a  partir  do  texto  da  lei.  Sem  lei  penal  não  se  pode  extrair  a  norma  penal.    

Pelo que vimos anteriormente, as leis penais veiculam as normas penais e com ela não se confundem. Vejamos de forma esquemática:

Lei  penal   Norma  penal  4 Descritiva   de   um   comportamento:  descreve   os   comportamentos   humanos   (fatos)  e  prescreve  as  sanções  penais  respectivas.    

4 Imperativa   (determinativa)   de   um  comportamento   (positivo   ou   negativo)   e   valorativa  (existe  para  a  tutelar  um  valor,  que  no  âmbito  penal  é  o  bem  jurídico).  

4 Fonte  da  norma.   4 Comando  normativo.  4 É  o  continente.   4 É  o  conteúdo.  

Agora que já delimitamos o espaço de atuação da lei e da norma penal, é hora de verificarmos as classificações das normas penais. Tal análise possui utilidade prática principalmente no momento de se estudar a exegese das leis penais, pois a forma de interpretar a lei penal é diferente conforme se esteja diante de um ou de outro tipo de norma penal.

2.1. Classificação das normas penais

O direito penal possui uma série de normas (criminaliza condutas, comina penas, estabelece causas de exclusão da ilicitude, cria circunstâncias que fazem com que um crime deixe de ser punido, traz as circunstâncias que agravam a pena, identifica causas que isentam de pena etc.). Tais situações advêm de normas, as quais recebem a seguinte classificação:

- Quanto ao conteúdo: as normas podem ser incriminadoras ou não incriminadoras, conforme

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contenham, ou não, a definição do crime e a sanção respectiva; sendo incriminadoras, há as normas que prescrevem preceito primário (descrição da conduta) e as que se ocupam do preceito secundário (cominação da sanção);

- Quanto ao comportamento esperado: pode-se esperar que o sujeito se abstenha do comportamento (normas proibitivas – ex.: não pratique a conduta de matar alguém – CP, art. 121) ou que ele se comporte de determinado modo (normas mandamentais – ex.: preste socorro em relação a uma pessoa que esteja em perigo – CP, art. 135).

Vejamos cada uma delas:

2.1.1. Lei penal incriminadora (norma incriminadora) e lei penal não incriminadora (norma não incriminadora)

A lei penal incriminadora (norma incriminadora) trata de três aspectos do crime: (1) seus requisitos essenciais (as elementares – ex.: morte no crime de homicídio); (2) as suas circunstâncias (acaso existentes – ex.: matar por motivo fútil) e (3) das sanções cominadas a quem praticar a conduta delituosa (penas privativas de liberdade e/ou multa); portanto, ela estabelece o conjunto dos dados descritivos do delito e da sanção. Quando preenchidos todos esses requisitos descritos na lei, dizemos que se perfaz a tipicidade formal (ou seja, que o fato encontra-se adequado à letra da lei).

Somente a lei, como já dito, constitui fonte formal válida para criação de crimes ou sanções penais. Ou seja, por força, p. ex. de um princípio, não se pode criar crime ou pena (nessa área, é imprescindível a lei formal, aprovada pelo Parlamento – ver item 1.8.4). Nenhuma outra fonte normativa substitui a lei nessa tarefa (de criar crimes e penas). Nem a Constituição pode fazer isso, muito menos medida provisória etc.

Ilustrando:   Por   força   do   princípio   da  moralidade   (CF,   art.   37)   não   se   pode   inferir   a   criminalização  do  incesto.  Como  o  incesto  não  está  previsto  na  nossa  legislação,  não  existe  esse  crime  (embora  a  conduta  seja  imoral).  

A lei penal não incriminadora versa sobre algum aspecto do poder punitivo (que é o poder do Estado de aplicar a lei penal contra quem a violou) diverso do âmbito daquilo que está proibido e da imposição do castigo. Ela pode tratar de causas que afastam o caráter criminoso da ação (são as excludentes de ilicitude - ex: legítima defesa – CP, art. 25), da forma como a lei penal deve ser aplicada (ex.: lei posterior favorável se aplica em benefício do agente mesmo após o trânsito em julgado), de causas que afastam a culpabilidade (ex.: inimputabilidade – CP, art. 26), de causas que afastam a punibilidade do fato (ex: filho que furta algo dos pais – CP, art. 181) ou meramente explicativas (ex: “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” – CP, art. 1º).

Assim, as normas penais não incriminadoras podem ser:

- de aplicação: estabelecem os limites de aplicabilidade das normas incriminadoras;

- declarativas ou explicativas: definem certos conceitos previstos na lei;

- diretivas: fixam os princípios a serem observados em determinadas matérias;

- interpretativas: servem à interpretação de outras normas;

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- permissivas: permitem a prática de determinados atos que normalmente seriam proibidos (ilícitos), mas que em razão de especiais circunstâncias são permitidos, são lícitos. Exemplo: norma que permite o aborto em caso de estupro (CP, art. 128, II);

- justificantes: são as que justificam um fato típico em razão de uma causa excludente da ilicitude (legítima defesa e estado de necessidade, por exemplo).

As normas incriminadoras, por sua vez, podem ser primárias ou secundárias, sendo que as primeiras podem ser normas proibitivas ou mandamentais. Esquematicamente:

Normas  incriminadoras  

Primárias  (dirigidas  a  todos)  

 Proibitivas      Mandamentais  

Secundárias  (dirigida  ao  juiz)  

Vejamos cada uma delas:

Norma penal primária é a norma dirigida a todas as pessoas (que devem respeitar o valor protegido por ela e se comportar de acordo com sua determinação). Norma penal secundária é a dirigida ao juiz que, quando do processo penal, diante da violação da norma penal primária, deve impor a sanção legal prevista, sob pena de punição administrativa e eventualmente penal, como é o caso da prevaricação.

A norma penal primária (dirigida a todos) possui um preceito primário assim como um preceito secundário. Há uma escolha predeterminada pelo legislador em relação às condutas (proibidas/exigidas e permitidas/justificadas) a serem seguidas. O mesmo ocorre com a escolha da sanção (em abstrato) a ser aplicada àquele que praticar a conduta. Percebe-se aqui que a qualidade jurídica crime não se encontra no fato, mas é criada pela lei e pela norma respectiva que determinam que seja punida a prática desse fato. “Não há crime sem lei anterior que o defina” (CP, art. 1º). Inexistindo uma lei e a respectiva norma que descreva o fato e o sancione, não há como se qualificar tal fato como crime.

Cuida-se, aqui, de exigências básicas para que se criar um crime: que se descreva uma conduta e que se a ela atribua uma sanção de natureza penal. A realização da primeira exigência dá ensejo ao preceito primário; a segunda, ao preceito secundário. Eles aparecem, no entanto, somente quando se trata de lei penal incriminadora.

Norma penal primária proibitiva e norma penal primária mandamental (ou mandatórias):

As normas penais podem ser proibitivas (quando determinam que o agente não realize determinada ação) ou mandamentais (quando determinam a prática de uma conduta).

Ilustrando:  No   art.   121  do  CP   a   norma  primária   é   a   seguinte:   É   proibido  matar.   Essa   norma  exige   de  todos  nós  a  abstenção  desse   comportamento.  No  art.   135  do  CP  a  norma  primária  é:  Preste   socorro,  

Descrição  da  conduta  

Preceito  primário  Ex.:  Matar  alguém.  

1  Cominação  da  sanção  

Preceito  secundário  Ex.:  pena:  reclusao  de  6  a  20  

anos.  

2  

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quando   não   há   risco.   Essa   norma   nos   impõe   um   comportamento   ativo   (de   ajudar   as   outras   pessoas,  sempre  que  possível).  

As normas mandamentais determinam uma ação, razão pela qual deve o indivíduo agir, ou seja, praticar determinada conduta. A omissão, a inércia, configura a violação da norma, pois o agente descumpriu o mandado legal, que era no sentido de agir. Ex.: o agente que deixa de prestar assistência à criança abandonada, nos termos do artigo 135, do Código Penal, viola a norma penal, pois descumpre a ação determinada, ou seja, descumpre o mandado legal, o qual exigia a sua ação.

Esquematizando:

Classificação  das  normas  penais  incriminadoras*  

Quanto  à  estrutura     Imperativa:  a  norma  determina  um  comportamento.    

Valorativa:  a  norma  protege  um  valor.    

Quanto  ao  comportamento  esperado  

Proibitivas:  espera-­‐se  que  o  sujeito  se  abstenha  do  comportamento.  Ex.:  não  mate  alguém  (CP,  art.  121).  

Mandamentais:  espera-­‐se  um  comportamento  ativo  do  sujeito.    Ex.:  preste  socorro  (CP,  art.  131).  

Quanto  ao  destinatário   Primárias:  normas  dirigidas  a  todos.    

Secundárias:  normas  dirigidas  ao  juiz.  

A diferenciação entre normas incriminadoras e normas não incriminadoras é fundamental para se estabelecer as suas fontes formais de conhecimento, assunto a ser tratado a seguir. Antes, no entanto, faz-se necessário falar um pouco mais sobre a norma penal, agora, inter-relacionando-a com o fato.

2.2. Norma penal e fato

Além da ligação entre lei penal e norma penal, conforme visto anteriormente, há, ainda, um outro importante entrelaçamento que precisa ser compreendido: norma penal e fato.

Enquanto o mundo dos fatos constitui o ser, ou seja, o que acontece, o mundo das normas exprime o dever ser, ou seja, o que deveria acontecer (e não o que de fato acontece).

Fatos ª ser (mundo da realidade) | Norma penal ª dever ser (mundo dos deveres)

É característica da norma jurídica (seja penal, civil etc.) ser vinculante, ou seja, obrigar a que todos se conduzam de acordo com ela, para tanto, conformando os comportamentos dos indivíduos. O descumprimento da norma leva a uma consequência, que, no caso de ela ter natureza penal incriminadora, é representada pela sanção penal (pena ou medida de segurança).

A norma penal, decorrente da lei penal, portanto, informa as proibições ou determinações legais. São as normas, derivadas das leis, que descrevem a conduta proibida penalmente e a sanção a ser aplicada àquele que pratica tal conduta (descumprindo a norma).

Dizendo com Germano: “A norma penal exprime um juízo de desvalor jurídico sobre o fato que descreve e reafirma-o com a punição de quem atue com violação dessa norma.”37

A fonte da norma penal (quando incriminadora) é a lei penal, não o espírito da sociedade, muito 37  SILVA,  Germano  Marques  da.  Direito  penal  português  I:  introdução  e  teoria  da  lei  penal.  3.  ed.  Lisboa:  Verbo,  2010,  p.  34.  

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embora ele possa ser considerado no momento da interpretação da lei penal, para o fim de, por exemplo, afastar a ilicitude de uma conduta exatamente porque a sociedade atual não mais a reprime ou, até mesmo, a tolera.

Caso   concreto:   Apesar   de   o   adultério   ter   sido   criminalizado   até   28.03.2005   (Lei   11.106/2005)   na  legislação   penal   brasileira,   raramente   havia   denúncia   por   conta   de   tal   fato   e,   quando   havia,  normalmente  inexistia  condenação  (são  casos,  principalmente,  de  aplicação  do  princípio  da  adequação  social).    

A Constituição Federal, por conta de seus valores, princípios, direitos e garantias, bem como dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, conforma um tipo de direito penal (limitado, mínimo, humanizador – ver item 1.7.). Consequentemente, a norma penal (quando da descrição dos comportamentos ilícitos e da cominação da sanção) deve servir de garantia do cidadão contra o arbítrio do poder, impedindo a criminalização, por exemplo, de condutas que não atentem de forma grave, intolerável e transcendental contra bens jurídicos relevantes, ou que preveja penas desproporcionais ao desvalor da conduta e do resultado.

Esquematicamente, pode-se traçar uma linha evolutiva entre fato, valor e norma penal (os conceitos de fato, valor e norma constituem a espinha dorsal na teoria tridimensional de Miguel Reale):

 

Há situações em que o senso comum até conflita com a norma penal vigente.

Ilustrando:  No  caso  do  jogo  do  bicho,  o  senso  comum  não  recrimina  o  ato  de  apostar;  no  entanto,  do  ponto  de  vista  formal,  há  norma  proibitiva  a  respeito  dele  (Decreto-­‐lei  6259/44,  art.  58).

Por outro lado, há casos em que a norma penal não corresponde ao senso comum de justiça. Isso foi o que ocorreu no nazismo.

De forma esquemática, tem-se o seguinte quadro que traça as principais diferenças entre norma, norma jurídica e norma penal incriminadora:

  Norma   Norma  jurídica  (não  penal)   Norma   penal  incriminadora  

Conceito   “É   uma   regra   que  deve  ser  respeitada  e  

“São   estruturas  fundamentais   do   Direito   e  

É   aquela   que  desvalora   uma  

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que   permite   ajustar  determinadas  condutas   ou  atividades.”  

nas   quais   são   gravados  preceitos   e   valores   que   vão  compor   a   ordem   jurídica.   A  norma   jurídica   é   responsável  por   regular   a   conduta   do  indivíduo,   e   fixar   enunciados  sobre   a   organização   da  sociedade   e   do   Estado,  impondo   aos   que   a   ela  infringem   as   penalidades  previstas,   e   isso   se   dá   em  prol   da   busca   do   bem  maior  do  Direito,  que  é  a  Justiça.”  

conduta   e   determina  um   comportamento  negativo   ou   positivo,  ameaçando   com  sanção  penal  (pena  ou  medida  de   segurança)  quem  a  descumprir.    

Mundo  do    dever  ser  

Social,   cultural,  religiosa,  ética,  moral   Jurídico   Idem  

Características  Vincula   somente   os  que   se   sentem  obrigados  por  ela  

-­‐   É   vinculante:   obriga   a   que  todos   se   conduzam   de   acordo  com  ela  -­‐   Sua   execução   é   garantida   por  uma   sanção   externa   e  institucionalizada  (Bobbio)  -­‐  decorre  de  um  texto  legal  

Idem  

Consequências  do  descumprimento  

Reprovação   ética,  moral  ou  religiosa.  

Sanção   administrativa,   civil,  trabalhista,  tributária,  etc.  

Sanção   penal,  fundamentalmente.    

Pressuposto  para  a  sanção   Não  há.  

O  fato  que  deu  ensejo  à  sanção  pode   estar   previsto   em   lei,  medida   provisória,  Regulamento,   contrato   (escrito  ou  verbal),  etc.  

O   fato   previsto   como  crime   e   a   sanção  correspondente   têm  que   estar   previstos  em  uma  lei  

Fonte   Espírito  da  sociedade.  Lei,   medida   provisória,  regulamento,   contrato   (escrito  ou  verbal),  etc.  

Lei  penal.  

Exemplo  

Proibição   de  transfusão  de   sangue  em     determinadas  religiões.  

Obrigatoriedade   de   pais  cuidarem   da   saúde   dos   filhos  (CF,  art.  227).  

Dever   do   médico   de  salvar   a   vida   do  paciente,   prestando-­‐lhe   o   devido   socorro  quando   alguém  necessita  dele  (CP,  art.  135).  

2.3. Fontes formais de conhecimento da norma penal

Foi dito anteriormente que duas são as fontes do direito penal: materiais (de produção) e formais (de conhecimento) – ver item 1.10. A fonte material, conforme já mencionado (item 1.10.2) é o Estado. As fontes de conhecimento, por seu turno, são aquelas que revelam o direito penal.

Para se conhecer o direito penal há que se estudar amplamente todas as suas fontes formais: (a) lei, (b) Constituição Federal, (c) tratados internacionais, (d) medida provisória, regulamento, decreto, portaria, etc., (e) doutrina, (f) jurisprudência, (g) costumes e os (h) princípios gerais do direito. Vejamos cada uma delas

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(a) Lei penal: tratando-se de norma penal incriminadora (a que prevê crimes e penas ou agrava essas últimas), apenas a lei penal formal aprovada após o cumprimento estrito do devido processo legislativo poderá criar crimes ou estabelecer ou agravar penas. Estão terminantemente excluídos desse âmbito: medidas provisórias, leis delegadas, decretos ou decretos legislativos, regulamentos, portarias etc. Nem mesmo a Constituição, ou tratados internacionais podem definir crimes. Nesse ponto, portanto, existe uma reserva absoluta de lei (criada de acordo com o procedimento legislativo previsto na CF).

Caso  concreto:  STF,  HC  96.007,  decidiu  que  o  tratado  internacional  não  pode  definir  crime  no  âmbito  do  direito  interno  brasileiro.  Discutia-­‐se  se  o  Tratado  de  Palermo  podia  valer  internamente  para  o  efeito  de  descrever  a  organização  criminosa,  que  somente  agora  –  pela  Lei  12.850/13  –  foi  definida  legalmente.  O  entendimento   do   STF   foi   no   sentido   negativo   (somente   lei   aprovada   pelo   Parlamento   pode   definir  crime).  

O Estado, como dito, é a única fonte de criação do direito penal (incriminador). Para exteriorizar o direito penal (incriminador), ele se vale da lei penal. A lei é a fonte formal imediata do direito penal, tendo em vista o princípio da reserva legal. Quando se trata de criar proibições ou impor condutas, sob a ameaça de pena (normas incriminadoras) somente a lei pode estabelecê-las. É o que preceitua o art. 5º, XXXIX da CF: “não há crime sem lei anterior que o defina, não há pena sem prévia cominação legal.”

No entanto, quando se trata de normas penais não incriminadoras (normas que não preveem crimes ou penas), outras fontes são admitidas. Por exemplo: em favor do réu até mesmo analogia é permitida.

(b) Constituição Federal: não obstante a CF não albergar leis penais em seu bojo, ela consagra inúmeros princípios, direitos e garantias penais, deles emanando a própria configuração do direito penal. Assim, o legislador não é livre para criar o direito penal, mas em sua tarefa de determinar o direito penal precisa levar em consideração os mandamentos constitucionais. Também é da Constituição que emanam os mandados expressos de criminalização, dirigidos ao legislador e querendo indicar a obrigatoriedade de criminalização de determinadas condutas e de configuração de determinadas especificidades de caráter penal. Como exemplo desse último, tem-se o art. 5º, XLIII da CF que determina que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.”

(c) Tratados de direitos humanos: não obstante as normas incriminadoras do direito internacional não tenham aplicação no âmbito interno (salvo se tiver um correspondente em nossa legislação penal), as normas penais incriminadoras lá contidas servem de parâmetro no momento da interpretação dos tipos penais.

Ilustrando:   Todos   os   tipos   penais   que   preveem   a   expressão   “tráfico   de   pessoas”   devem   ser  interpretados  à  luz  da  definição  trazida  no  art.  3º  do  Protocolo  para  Prevenir,  Suprimir  e  Punir  o  Tráfico  de  Pessoas,  especialmente  Mulheres  e  Crianças  (ver  Decreto  n.  5.017,  de  12  de  março  de  2004).  

No plano do direito internacional: Se, de um lado, tratados de direitos humanos, como dito acima, não podem criar crimes e penas no âmbito do direito interno, no plano do direito internacional a situação é diversa. Foi o que aconteceu, p. ex., no Tratado de Roma, que definiu os crimes de competência do TPI. Mas tais crimes só valem do âmbito do direito internacional, ou seja, somente terão aplicação pelo próprio TPI, significando dizer que cometido um dos crimes previstos no Tratado de Roma, ainda que por brasileiro, no território nacional, um promotor nacional não poderá propor uma denúncia, salvo se houver um crime correspondente na legislação brasileira.

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Medida provisória, regulamento, decreto, portaria etc.: o monopólio da lei formal (aprovada de acordo com o procedimento legislativo constitucional), como fonte única do direito penal incriminador, no âmbito do direito interno (dentro do Brasil), não se aplica quando se trata de norma penal benéfica (que traz algum benefício para o acusado, como por exemplo uma diminuição de pena),  ocasião em que podem ser usados, em favor do réu, medidas provisórias, costumes e, inclusive, analogia in bonam partem.

Uma das fortes razões para admitir, por exemplo, a medida provisória em favor do réu é a seguinte: em direito penal admitem-se inclusive causas de exclusão da antijuridicidade ou culpabilidade supralegais. Ex.: o consentimento do ofendido em algumas situações exclui a antijuridicidade; a inexigibilidade de conduta diversa exclui a culpabilidade. Se se admitem em favor do réu causas que estão até mesmo fora da lei, por que não se haveria de aceitar uma medida provisória? Posto isso, é possível concluir que as medidas provisórias podem beneficiar de qualquer forma o agente – lex mitior - ou, até mesmo, contemplar o fenômeno da abolitio criminis, ou seja, exclusão do crime.  

Caso   concreto:   RE   254.818-­‐PR   (cf.   Informativo  209  do   STF):  Discutiu-­‐se   acerca   da  MP  1.571/97   e   dos  efeitos,  ressalte-­‐se,  benéficos,  decorrentes  da  edição  da  referida  medida  que  dispôs  sobre  a  extinção  da  punibilidade   àqueles   que   parcelassem   débitos   tributários   e   previdenciários.   O   STF   entendeu   que   é  plenamente  admissível  a  edição  de  medida  provisória  beneficiando  o  réu.  Em  sentido  contrário:  TRF,  4.ª  Reg.,  Ap.  Crim.  451747  e  475534,  rel.  Vladimir  Passos  de  Freitas.  

(d) doutrina: a função da doutrina consiste em explicar, estudar, interpretar e criticar as fontes formais imediatas do direito penal (Constituição, tratados de direitos humanos, leis e súmulas vinculantes). Não conta com caráter vinculante (o juiz a adota se quiser), mas muitas vezes acaba cumprindo bem o seu papel de evitar a improvisação e o arbítrio, oferecendo conceitos coerentes que muito contribuem para a boa e adequada sistematização, interpretação e aplicação do direito penal objetivo.

Ilustrando:  A  diferenciação  do  dolo  eventual  (quando  o  sujeito  assume  o  risco  de  produzir  o  resultado  criminoso)   frente   à   culpa   consciente   (o   agente   prevê   o   resultado,   mas   não   o   quer)   é   inteiramente  doutrinária,   pois   a   lei   penal   não   traçou   a   diferenciação   entre   uma   e   outra.   Seu   valor   é   indiscutível,  sobretudo   quando   o   doutrinador   traduz   no   seu   pensamento   o   devido   respeito   aos   direitos  fundamentais  de  todos  os  envolvidos  no  conflito  penal  (vítima,  acusado  e  sociedade).  

(e) jurisprudência: jurisprudência é a interpretação reiterada de juízes e tribunais num determinado sentido. A jurisprudência, a partir da (ou seja: por meio da) interpretação das demais fontes do direito penal (Constituição, tratados e leis etc.), “cria” muitas regras jurídicas. Ex.: quem afirma no Brasil que só existe crime continuado quando as infrações não se distanciam mais de um mês umas das outras? A jurisprudência.

Súmulas vinculantes: as súmulas vinculantes representam a jurisprudência consolidada do STF (CF, art. 103-A). Também elas constituem fonte do direito penal. Embora não possuam força de lei nem emanem do Poder Legislativo, não há como negar o valor delas como fontes imediatas do direito penal (em geral). Elas só não podem criar crimes ou penas, porque para isso a lei formal (do Parlamento) é absolutamente indispensável.38

g) costumes: os costumes são “normas” não escritas que definem comportamentos ou procedimentos que as pessoas obedecem de maneira uniforme e constante (requisito objetivo), com a convicção de sua obrigatoriedade jurídica (requisito subjetivo). Eles podem ser incluídos entre as fontes informais do direito penal, precisamente porque não possuem a forma da lei.

38  Sobre  a  retroatividade  ou  irretroatividade  das  súmulas  vinculantes  em  matéria  penal,  vale  conferir:  FRANCO,  Alberto  Silva;  STOCO,  Rui  (coords.).  Código  penal  e  sua  interpretação:  doutrina  e  jurisprudência.  8.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2007,  p.  72.      

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Não podem criar crimes ou penas ou medida de segurança ou agravar a pena, mas podem beneficiar o agente em casos específicos. Caso  concreto:  O  costume  das  tribos  indígenas  de  promoverem  relação  sexual  com  a  adolescente  logo  após  sua  primeira  menstruação,  ainda  que  tenha  menos  de  14  anos,  já  foi  invocado  para  beneficiar  um  índio  acusado  de  estupro  de  vulnerável.  Tratava-­‐se  de  um  costume  em  favor  do  réu  (e  foi  acolhido)  (RT  594/365).  

Três são as espécies de costume: contra legem (costume vai de encontro ao texto legal, que muitas vezes deixou de ser aplicado em razão de sua desatualização), secundum legem (o costume, nesse caso, ratifica o texto legal) ou praeter legem (o costume vai além da lei, ou seja, preenche as lacunas da lei).

Os conceitos de ato obsceno (CP, art. 233) e de repouso noturno (CP, art. 155, § 1º) são dados a partir dos costumes. Em relação ao último, somente a análise do comportamento de dada comunidade pode trazer informações sobre o horário do repouso noturno, o que muda muito quando se trata, p. e., de um ambiente rural comparado a um urbano. O repouso noturno “não se identifica com a noite, e sim com o tempo em que a cidade ou local repousa.” (TJSC, RT 423/449).

Casos  concretos:  1)  “Período  de  sossego  noturno  é  o  tempo  em  que  a  vida  das  cidades  e  dos  campos  desaparece,  em  que  seus  habitantes  se  retiram,  e  as  ruas  e  as  estradas  se  despovoam,  facilitando  essas  circunstâncias  a  prática  do  crime  (NORONHA,  Magalhães.  Direito  Penal.  33.  ed.  São  Paulo:  Saraiva,  2003.  p.   235).”   (TJ/SC,   Apelação   Criminal   2008.007115-­‐1   (acórdão),   1ª   Câmara   Criminal,   rel.   Desa.   Marli  Mosimann  Vargas,  j.  19.05.2009.  Disponível  em:  www.tjsc.jus.br.  Acesso  em:  19  set.  2014).  2)  “O  Juiz,  no  convívio  com  a  comunidade  a  que  presta  jurisdição,  possui  condições  privilegiadas  para,  averiguando  os  costumes   locais,   indicar   o   período   do   repouso   noturno.”   (TJ/SC,   Apelação   Criminal   2008.024242-­‐0  (acórdão),   1ª  Câmara  Criminal,   rel.  Des.  Amaral   e   Silva,   j.   08.07.2008.  Disponível   em:  www.tjsc.jus.br.  Acesso  em:  19  set.  2014).  3)  “A  qualificadora   ‘repouso  noturno’  deve  ser  sempre  observada  quando  o  agente   age   na   ausência   de   luz   solar,   dentro   da   realidade   cultural   do   local   do   crime,   uma   vez   que   o  legislador  se  preocupou  em  proteger  o  patrimônio,  que  fica  mais  vulnerável  durante  aquele  período  do  dia.”   (TJ/MG,  Apelação  Criminal   1.0569.05.001233-­‐9/001,   5ª   Câmara  Criminal,   rel.  Des.  Maria   Celeste  Porto,  j.  06.05.2008,  data  da  publicação  da  súmula:  17.05.2008.  Disponível  em:  www.tjmg.jus.br.  Acesso  em:  19  set.  2014)  

Uma questão interessante refere-se à possibilidade, ou não, de os costumes retirarem a eficácia da lei penal. Apesar  de  a  doutrina  e  a  jurisprudência  dominantes  entenderem  que  somente  uma  lei  pode  revogar  outra  lei  (seja  de  forma  expressa  ou  tácita),  entende-­‐se  que  há  casos  em  que  isso  pode  acontecer.

Questão  controvertida:  Costumes  podem  retirar  a  eficácia  da  lei  penal?  No  sentido  positivo:  “CÓDIGO  PENAL.   ART.   228.   FAVORECIMENTO   À   PROSTITUIÇÃO.   ART.   229.   MANTER   CASA   DE   PROSTITUIÇÃO.  ATIPICIDADE.  A  manutenção  de  casa  de  prostituição  com  conhecimento  das  autoridades,  sem  imposição  de  restrições,  desfigura  o  delito  previsto  no  art.  229  do  CPP.  Conduta  que,  embora  prevista  como  ilícita,  é  aceita  pela   sociedade  atualmente.  No  caso  dos  autos,  não  há  prova  de  que  a   ré   induziu  ou  atraiu  a  vítima   para   a   prostituição,   visto   que   a   mesma   já   fazia   programas   antes   de   a   acusada   adquirir   o  estabelecimento.  Absolvição  mantida.  APELO  DO  MINISTÉRIO  PÚBLICO  IMPROVIDO.  UNÂNIME.”  (TJ/RS,  Apelação   Crime   70059523357,   5ª   Câmara   Criminal,   rel.   Des.   Ivan   Leomar   Bruxel,   j.   02.07.2014,   DJ  10.07.2014).  No  mesmo  sentido:  TJ/RS,  Apelação  Crime  70.058.420.621,  7ª  Câmara  Criminal,  rel.  Des.ª  Jucelana  Lurdes  Pereira  dos  Santos,  j.  16.04.2014,  DJ  13.05.2014:  “2.  Reconhecida  a  atipicidade  material  do  artigo  229  do  CP,  porque  a  manutenção  de  casa  de  prostituição  é  aceita  socialmente,  com  base  nos  princípios   da   razoabilidade   e   adequação   social.”   Em   sentido   contrário:   A   Sexta   Turma   do   Superior  Tribunal  de  Justiça  destacou  que  a   jurisprudência  desse  egrégio  Tribunal  orienta-­‐se  no  sentido  de  que  eventual  tolerância  de  parte  da  sociedade  e  de  algumas  autoridades  públicas  não  implica  a  atipicidade  material  da  conduta  de  manter  casa  de  prostituição,  conduta  que  continuou  a  ser   tipificada  no  artigo  

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229  do  Código  Penal.  E  mais:  “(...)  a  manutenção  de  estabelecimento  em  que  ocorra  a  exploração  sexual  de  outrem  vai  de  encontro  ao  princípio  da  dignidade  da  pessoa  humana,  sendo  incabível  a  conclusão  de  que   é   um   comportamento   considerado   correto   por   toda   a   sociedade”.   (STJ,   REsp   1.435.872/MG,   6ª  Turma,   rel.   Min.   Sebastião   Reis   Júnior,   rel.   p/acórdão   Min.   Rogerio   Schietti   Cruz,   j.   03.06.2014,   DJe  01º.07.2014).  Nossa   posição:   Há   que   se   ter   em  mente   situações   nas   quais   há   uma   intensa   falta   de  reprovação  social.  Os  fatos  sem  reprovação  social  são  atípicos  por  força  da  teoria  da  adequação  social.  

h) princípios gerais do direito: os princípios gerais do direito podem ser retirados da Constituição, de tratados de direitos humanos ou de outros documentos, podendo ser explícitos ou implícitos. Os que mais interessam ao direito penal serão analisados no item 1.8. Convém esclarecer que nenhum deles podem ser utilizados processode incriminação de condutas (de criação de tipos penais).

Ilustrando:   O   art.   66,   CP   prevê   que   “a   pena   poderá   ser   ainda   atenuada   em   razão   de   circunstância  relevante,   anterior   ou   posterior   ao   crime,   embora   não   prevista   expressamente   em   lei”.   Algumas  circunstâncias  inominadas  reconhecidas  pela  doutrina:  extrema  penúria  do  autor  de  crime  patrimonial,  o   arrependimento   do   agente,   a   facilitação   do   trabalho   da   Justiça   com   a   indicação   do   local   onde   se  encontra  o  objeto  do  crime,  réu  que  tenha  sido  vítima  de  crime  sexual    na  infância,  etc.    

Conhecendo e compreendendo as fontes formais de conhecimento da lei penal, a tarefa de interpretação da norma penal torna-se mais simples. É o que veremos a seguir.

2.4. Interpretação das leis penais

Interpretar a lei penal significa descobrir o seu significado, o seu sentido, a sua exata extensão normativa (ou seja, seu âmbito concreto de incidência). Uma coisa é o “programa da norma” (âmbito aparente de incidência da norma, que se extrai da sua literalidade, do seu conteúdo linguístico), outra bem distinta é o seu âmbito específico ou concreto de incidência.

Ilustrando:  O  art.  155  do  Código  Penal  é  dotado  de  um  “programa  normativo”  bastante  amplo  (“subtrair  coisa  alheia  móvel”).  Seu  concreto  âmbito  de   incidência,  entretanto,  é  bem  mais   restrito   (se  a  coisa  é  insignificante  –  ver  item  11.1. –,  por  exemplo,  não  há  que  se  falar  em  crime).  Conclusão:  nem  tudo  que  está   literalmente   programado   para   ingressar   numa   norma   (nem   tudo   que   integra   o   “programa   da  norma”)  faz  parte  do  seu  efetivo  e  concreto  âmbito  de  incidência.  

O que se interpreta é o sentido da lei, não a vontade do legislador (a mens legis, não a mens legislatoris), embora esta última constitua um dos critérios de interpretação. Muitas vezes o que resulta interpretado pelos juízes não tem nada a ver com o teor literal da norma. Por isso é que se diz que o senhor do Direito (em última instância) é o juiz.

A ciência que disciplina este estudo (da interpretação das normas) é a hermenêutica jurídica, sendo que as regras e critérios de interpretação jurídica são válidos, indistintamente, para todos os ramos do direito, com duas importantes exceções quando se trata de reconhecer a existência de crimes ou de sanções penais. Nesses casos não são permitidas a analogia, a aplicação dos princípios gerais do direito e a interpretação extensiva (ver item 2.4.4.).

2.4.1. Espécies de interpretação

(a) Quanto ao sujeito que a realiza, a interpretação pode ser:

- autêntica ou legislativa: feita pelo próprio legislador. Ex.: conceito de funcionário público que é dado pelo art. 327 do CP;

- doutrinária ou científica: interpretação que emana de estudiosos, por meio de seus trabalhos de doutrina;

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- judicial ou jurisprudencial: interpretação feita pelos juízes e pelos tribunais.

Nenhuma das espécies de interpretação possui caráter vinculante. A única exceção a essa regra reside nas chamadas “súmulas vinculantes”, sendo uma parte da jurisprudência consolidada do STF, também elas constituem fonte imediata do direito penal (ver item 1.10). Embora não possuam força de lei nem emanem do Poder Legislativo, não há como negar o valor dessas súmulas como fontes imediatas do direito penal (em geral) (CF, art. 103-A e Lei 11.417/2006), cabendo reclamação ao STF quando inobservadas (Lei 11.417/2006, art. 7º). Elas só não podem criar crimes ou penas, porque para isso a lei formal (do Parlamento) é absolutamente indispensável.

A clássica doutrina manifestava-se no sentido de que a interpretação judicial não criava o Direito. Atualmente, tal entendimento há que ser revisto, já que inúmeras regras no direito penal foram criadas pelos juízes. Ex.: só se admite crime continuado quando os delitos não se distanciam um do outro por mais de trinta dias. Quem criou essa regra foram os juízes e tribunais – jurisprudência.

(b) Quanto aos meios ou critérios utilizados pelo exegeta, a interpretação pode ser:

- gramatical: é a interpretação literal, a busca do sentido das palavras empregadas pelo legislador. O ponto de partida de toda interpretação reside justamente na literalidade do dispositivo legal (“letra da lei”); - lógica: alguns tipos de argumentos lógicos são muito apropriados também no direito penal (argumento contrario sensu ou a contrario, argumento a fortiori etc.). Se o Código Penal pune a bigamia (CP, art. 235), a fortiori, pune também o terceiro casamento, o quarto etc.;

- teleológica: deve-se sempre saber qual é a finalidade da lei e, em consequência, da norma concreta; faz parte da interpretação teleológica a descoberta do bem jurídico protegido; o tipo penal deve sempre ser interpretado nesse sentido; - histórica: é relevante também descobrir toda tramitação legislativa, os projetos, as emendas etc. A história da lei é relevante não para se descobrir a vontade do legislador, sim, para se saber qual é o sentido do texto legal em vigor (mens legis);

- sistemática: toda lei deve ser interpretada de acordo com sua topologia assim como de conformidade com todo ordenamento jurídico.

De todos os critérios, o mais relevante na atualidade é o teleológico, isto é, a primeira tarefa do intérprete é descobrir a finalidade da norma penal concreta, é dizer, qual o bem jurídico protegido por ela e que deve ser afetado concretamente para que exista delito. Partindo-se da concepção do delito como ofensa a um bem jurídico, sem essa ofensa não há crime.

(c) Quanto ao resultado a interpretação pode ser:

- declaratória: quando o significado ou sentido da lei corresponde exatamente à sua literalidade;

- restritiva: quando a lei diz mais do que deveria – Lex plus scripsit, minus voluit. Ex.: coisa de valor absolutamente insignificante não faz parte da literalidade do art. 155 do CP ou

- extensiva: quando a lei diz menos do que deveria – Lex minus dixit quam voluit. Ex.: o crime de bigamia (CP, art. 235) alcança também o terceiro casamento, o quarto etc.; no crime de perigo de contágio venéreo, se aceita também a própria transmissão (CP, art. 130).

Aplica-se o princípio in dubio pro reu quando da interpretação da lei? Excepcionalmente, a interpretação extensiva pode ser utilizada quando fica claro que a situação concreta se ajusta

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indubitavelmente ao sentido do texto legal. É a vontade da lei que manda (não a vontade do legislador e muito menos a do intérprete). Nenhum intérprete pode ampliar o sentido do texto legal (para além do limite da vontade da lei). Pode revelá-lo, nunca ampliá-lo em matéria penal e muito menos contra o réu. Isso porque, na interpretação, há que se buscar o verdadeiro sentido da lei. Nessa busca, a interpretação pode não favorecer o réu, sempre que a interpretação restrita se converta em um escândalo por sua notória irracionalidade.39

E havendo dúvida insuperável? Aqui a resposta inverte-se em relação à questão anterior, ou seja, esgotados todos os meios e recursos interpretativos, caso subsista dúvida, pode-se aplicar o princípio in dubio pro reu. Pelo menos na sentença isso é inequívoco. Esse mesmo juízo pode não ser o adotado pelo acusador no momento da denúncia. Mas na sentença é diferente. Ainda vigora o aforismo poenalia sunt restringenda, isto é, as disposições que cominam penas (ou que criminalizam condutas) devem ser interpretadas restritivamente (RT 594/365). Aliás, enuncia o art. 22, 2, do Estatuto de Roma: “A previsão de um crime será estabelecida de forma precisa e não será permitido o recurso à analogia. Em caso de ambiguidade, será interpretada a favor da pessoa objeto de inquérito, acusada ou condenada.”

O principio in dubio pro reu deve ser sempre respeitado quando se está em jogo questões probatórias (fatos) não as questões de direito (interpretação da lei penal), salvo, nesse último caso, quando se trata de dúvida insuperável (como visto anteriormente).

2.4.2. Princípios reitores da interpretação

São princípios que devem ser respeitados no momento da interpretação: - princípio hierárquico: a interpretação deve ser feita segundo a Constituição. Aqui se fala na interpretação conforme, isto é, interpretação conforme a Constituição; - princípio de vigência: entre duas interpretações possíveis, é preferível a que dá sentido para as palavras da lei em lugar da que as nega; - princípio da unidade sistemática: todos os textos do ordenamento possuem vigência simultânea; - princípio dinâmico: os textos mudam de sentido com o passar do tempo;

- princípio da liberdade interpretativa: nenhuma interpretação pode ser imposta coativamente; todo “dirigismo interpretativo”, tal como foi imposto no Brasil com as súmulas vinculantes, tem raiz tendencialmente autoritária e contraria a liberdade de investigação científica.

Esquematicamente:

Formas  de  interpretação  da  lei  penal  Quanto  ao  sujeito  que  a  realiza   Autêntica,  doutrinária  e  judicial.    Quanto  aos  meios  ou  critérios  utilizados   Gramatical,  lógica,  teleológica,  sistemática  e  histórica.  Quanto  aos  resultados   Declarativa,  extensiva  e  restritiva.  

2.4.3. Interpretação progressiva

A lei deve ser interpretada de acordo com os progressos da cultura, da sociedade, dos recursos tecnológicos, das ciências, da medicina, da computação etc. (o fundamento da interpretação

39    ZAFFARONI,  Eugenio  Raúl;  PIERANGELI,  José  Henrique.  Manual  de  direito  penal  brasileiro:  parte  geral.  Vol.  1.  9.  ed.  rev.  e  atual.  São  Paulo:  RT,  2011,  p.  170.    

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progressiva ou evolutiva ou adaptativa, como se vê, é o princípio dinâmico). Também são levadas em conta as evoluções econômicas, fiscais, monetárias etc.

Ilustrando:  1)  Diz  o  art.  11  do  CP  que  não  são  computáveis  na  pena  as  frações  de  “cruzeiro”.  Em  razão  da  mudança  do  padrão  monetário  brasileiro,  hoje  devemos  interpretar  (progressivamente)  essa  locução  como  “frações  de  um  real”   (que  são  os  centavos);  2)    Recurso   interposto  por   fax:  hoje  há   lei  e  não  se  discute  que  é  possível  (Lei  9.800/99),  porém,  mesmo  antes  dessa  lei,  numa  interpretação  progressiva,  já  devia   ser   admitido;   3)     Petição   com   assinatura   digitalizada   em   recurso   ordinário   em   mandado   de  segurança:  não   foi  aceita   (STF,  MS  24.257-­‐DF,   rel.  Ellen  Gracie,   j.  13.08.2002,   Informativo  STF  277,  de  21.08.2002,  p.  2).  Numa  interpretação  progressiva  deveria  ter  sido.  

2.4.4. Interpretação analógica e analogia

A interpretação analógica ocorre quando o legislador emprega uma cláusula genérica após ter descrito fórmula(s) específica(s). Ex.: CP, art. 61, II, c (outro recurso análogo à traição, emboscada etc.); substâncias de efeitos análogos ao do álcool (CP, art. 28, II); outro recurso que impossibilitou a defesa da vítima (CP, art. 121, § 2.º, IV) etc.

Tanto na interpretação extensiva quanto na analógica, o caso examinado ingressa no âmbito dos limites do sentido literal possível. São casos previstos, então, pelo legislador. Diferente é o que se passa na analogia, que é forma de integração da lei (não de interpretação), conforme se verá a seguir.

Na interpretação analógica faz parte do sentido literal outra situação análoga à descrita na lei que se está interpretando. Assim, o significado que se busca é retirado do próprio dispositivo, que contém expressões genéricas.

Ilustrando:   No   art.   121   do   CP,   §   2º,   I,   o   legislador   faz   referência   à   expressão   “ou   por   outro  motivo  torpe”,   querendo   dizer   que,   além   dos   enumerados   (no   caso   paga   ou   promessa   de   recompensa),   o  intérprete  pode  incluir  outras  situações  (desde  que  configurem  um  motivo  torpe).  

Na analogia (ou integração analógica ou suplemento analógico ou aplicação analógica), o caso examinado não se enquadra no sentido literal possível e a ele se aplica, por analogia, outro dispositivo legal (em face da semelhança), ou seja, aplica-se uma lei prevista para o caso A a um caso B, semelhante.

Ilustrando:   A   isenção   de   pena   nos   crimes   patrimoniais   praticados   contra   o   cônjuge   é   aplicada,  analogicamente,  para  o  companheiro  (CP,  art.  181,  I).    

Onde há a mesma razão aplica-se o mesmo direito. A interpretação analógica é perfeitamente possível em direito penal. Já a analogia só se admite quando benéfica ao réu (in bonam partem). Por força da garantia da lex stricta é impossível analogia contra o réu (in malam partem) em direito penal.

Ilustrando:  O  art.  155  do  CP  não  prevê  o  delito  de  furto  de  uso.  Jamais  podemos  conceber  esse  delito,  aplicando-­‐se   por   analogia   o   artigo   mencionado.   Não   existe   analogia   contra   o   réu.   E   se   o   sujeito  encontrou  o  veículo  com  o  tanque  cheio  de  gasolina  e  o  restituiu  com  o  tanque  vazio?  Ainda  assim,  de  furto  do  veículo  não  se  pode  falar,  porque  não  houve  animus  de  apropriação  da  coisa.  Pode-­‐se  pensar  no  crime  de  dano   (CP,  art.  163),  não  no  de   furto   (e  mesmo  assim  se   se   trata  de  um  dano   relevante).  Enfocado   exclusivamente   o   delito   de   furto,   deve   ser   observado   que   causar   um   dano   é   diferente   de  causar   uma   lesão   ao   bem   jurídico   protegido.   No   furto   de   uso   há   um   dano   (há   um   prejuízo,   há   um  desgaste  da  coisa,  há  algo  para  ser   indenizado),  mas  não  há   lesão  ao  bem  jurídico  patrimônio,  porque  esta  exige  uma  especial  intenção  do  agente.  O  fato  só  é  reprovado  e  juridicamente  relevante  quando  o  agente  tem  a  posse  da  coisa  com  animus  de  tê-­‐la  para  si  ou  para  outrem.    

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Esquematicamente:

Analogia   Interpretação  analógica  É  forma  de  integração  do  direito.   É  forma  de  interpretação.  

Processo  de  integração  de  lacunas  do  sistema  legal.   Meio  para  esclarecer  o  conteúdo  da  lei.  

O  caso  examinado  não  se  enquadra  no  sentido  literal  possível  de  uma  norma.  

Fazem   parte   do   sentido   literal   outras   situações  análogas   às   descritas   na   lei   que   se   está  interpretando.  

Por  não  existir  norma  incidindo  sobre  o  caso,  aplica-­‐se  uma  lei  prevista  para  o  caso  

A  a  um  caso  B,  semelhante.  

A   lei   penal   traz   as   fórmulas   casuísticas   e  genéricas.  

Há  lacuna.   Não  há  lacuna.  Somente  pode  ser  aplicada  às  normas  

penais  quando  favorável  ao  réu.  Pode   ser   usada   para   interpretar   normas   penais  favoráveis  ou  não  ao  réu.  

Ex.:  a  isenção  de  pena  nos  crimes  patrimoniais  praticados  contra  o  cônjuge  é  

aplicada,  analogicamente,  para  o  companheiro  (CP,  art.  181,  I).  

Ex.:   a   expressão   “ou   por   outro   motivo   torpe”,  contida   no   art.   121,   §   2º,   I   do   CP,   pode   ser  interpretada   analogicamente,   para   incluir,   por  exemplo,   a   cobiça,   o   egoísmo   inconsiderado,   a  depravação  dos  instintos,  a  ambição,  etc.  

2.5. O diálogo das fontes e o princípio pro homine

Quando o direito interno conflita com o direito internacional, em inúmeras situações o exegeta depara-se com uma dificuldade de saber qual norma deve ser aplicada em dado contexto fático, por conta de existirem mais de uma a tratar do mesmo tema. A regra, nesse caso, é muito simples: quando se trata de normas que asseguram um direito, vale a que mais amplia esse direito (lei ordinária, Constituição ou Tratado, por exemplo); quando, ao contrário, estamos diante de restrições ao gozo de um direito, vale a norma que faz menos restrições (em outras palavras: a que assegura de maneira mais eficaz e mais ampla o exercício de um direito). Tal orientação decorre da aplicação do princípio interpretativo pro homine (sempre deve ser aplicada a norma mais ampliativa, a que mais otimiza o exercício do direito). Isso ocorreu na vedação da prisão civil do depositário infiel. A CF brasileira prevê essa prisão, as leis também. A Convenção Americana a proíbe. Diante desse conflito normativo o STF decidiu pela aplicação da norma mais favorável à liberdade (a proibição da prisão civil do depositário está contemplada hoje na Súmula Vinculante 25 do STF – veja RE 466.343-SP).  Em um Estado constitucional de Direito, que conta com boa inserção nas relações da comunidade internacional, não pode deixar de ser observada a regra interpretativa pro homine, ainda que, formalmente, o Direito Internacional de Direitos Humanos (DIDH) seja reconhecido com status apenas supralegal, mas inferior à Constituição. É que é a própria Constituição (e, portanto, a vontade do legislador constituinte) que manda observar "outros" direitos contemplados nos tratados internacionais (CF, art. 5º, § 2º). O que vale, então, não é a posição formal dos tratados, sim, o sentido material das normas sobre direitos humanos.

Tudo isso por conta do fato de que as fontes do direito se retroalimentam40, complementam-se (não são excludentes, sim, complementares). Ocorre entre elas um diálogo ("diálogo das fontes" - Erik Jayme). Como afirma o autor citado:

40  Cf.  BIDART  CAMPOS,  Germán  J.  La  interpretación  del  sistema  de  derechos  humanos.  Buenos  Aires:  Ediar,  1994,  p.  80.  

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Desde que evocamos a comunicação em direito internacional privado, o fenômeno mais importante é o fato que a solução dos conflitos de leis emerge como resultado de um diálogo entre as fontes mais heterogêneas. Os direitos do homem, as constituições, as convenções internacionais, os sistemas nacionais: todas essas fontes não se excluem mutuamente; elas 'falam' uma com a outra. Os juízes devem coordenar essas fontes escutando o que elas dizem. 41

O DIDH, a partir do momento em que é assumido por um Estado, infiltra-se no direito interno para contribuir para a mais completa otimização dos direitos. Nos termos do art. 29 da CADH, "nenhuma disposição sua pode ser interpretada no sentido de limitar o gozo ou o exercício de qualquer direito ou liberdade previsto no direito interno [...] suas normas não podem limitar outros direitos previstos em outros tratados ou convenções".

Conclusão: os tratados de direitos humanos, precisamente porque são celebrados não somente para estabelecer um equilíbrio de interesses entre os Estados, senão, sobretudo, para garantir o pleno gozo dos direitos e das liberdades do ser humano, devem ser interpretados restritivamente quando limitam os direitos do ser humano e, ao contrário, ampliativamente quando possibilita seu desfrute ou gozo. Nisso reside o já mencionado princípio pro homine. É a norma do direito interno, ainda que seja infraconstitucional, se contempla um determinado direito com maior amplitude que os tratados de direitos humanos, que vai reger o caso concreto.

Caso haja concurso simultâneo de normas (concorrência de normas ou conflito aparente de normas), sejam elas internacionais, sejam elas internacionais e internas (domésticas), observando-se que estas últimas podem ser constitucionais ou não, deve (sempre) ser eleita e aplicada a norma (internacional ou doméstica) (a) que garante mais amplamente o gozo do direito ou (b) que admita menos restrições ao seu exercício ou (c) que sujeite as restrições a um maior número de condições. Muitas vezes é a norma doméstica que prepondera sobre a internacional. Outras, ao contrário42.

Tudo o que acaba de ser exposto tem por fundamento as normas de reenvio, já citadas (art. 5º, § 2º, da CF; art. 29 da CADH; art. 5º do PIDCP), que estabelecem "vasos comunicantes" entre todas as normas sobre direitos humanos, devendo sempre preponderar a que mais amplia o exercício do direito, por força do princípio pro homine.

Diante de tudo quanto ficou exposto, não se pode deixar de esclarecer que o princípio pro homine possui um duplo significado: (a) diante de uma norma singular, ele orienta a uma interpretação extensiva dos direitos humanos e limitativa das suas restrições (cf. CIDH, Opinião Consultiva 05/1985; (b) diante de um concurso de normas (conflito aparente de normas), incide a que mais amplia o exercício do direito.43 Mesmo que se trate de duas normas internacionais, aplica-se a mais ampla (Opinião Consultiva da CIDH 05/1985)44.

Mas esse critério não é absoluto, porque em matéria de direitos humanos valem também outras regras, destacando-se a da vedação do retrocesso, ou seja, uma norma nova não pode retroceder ou diminuir direitos conquistados em norma anterior (fala-se aqui em efeito cliquet da lei 41  JAYME,  Erik.  Identité  culturelle  et  intégration:  le  droit  international  privé  postmoderne.  Recueil  des  Cours,  vol.  251,  1995,  p.  259.  Ainda  sobre  esse  diálogo  das  fontes  veja  MAZZUOLI,  Valerio.  Curso  de  direito  internacional  público,  3.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.,  São  Paulo:  RT,  2008,  p.  769.      42  GOMES,  Luiz  Flávio;  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Direito  supraconstitucional:  do  absolutismo  ao  Estado  constitucional  e  humanista  de  direito.  2.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2013,  p.  120-­‐121.  43  GOMES,  Luiz  Flávio;  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Direito  supraconstitucional:  do  absolutismo  ao  Estado  constitucional  e  humanista  de  direito.  2.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2013,  p.  105  e  ss.    44  GOMES,  Luiz  Flávio;  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  Direito  supraconstitucional:  do  absolutismo  ao  Estado  constitucional  e  humanista  de  direito.  2.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2013,  p.  121.  

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anterior mais protetiva). A hierarquia entre as normas de direitos humanos, pelo que se viu, não é inflexível (absoluta). Por quê? Porque, por força do princípio ou regra pro  homine, sempre será aplicável (no caso concreto) a que mais amplia o gozo de um direito ou de uma liberdade ou de uma garantia. Materialmente falando, portanto, não é o status ou posição hierárquica da norma que vale sempre, sim, o seu conteúdo (porque irá preponderar a que mais amplia o exercício do direito ou da garantia).

Conclusão: quando os tratados ampliam o exercício de um direito ou garantia, são eles que terão incidência (paralisando-se a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário). Não se trata de “revogação”, sim, de invalidade.

Ilustrando:   Todas   as   regras   no   Brasil   sobre   prisão   civil   do   depositário   infiel   são   inválidas,   porque  conflitantes   com  a  Convenção  Americana   sobre  Direitos  Humanos   (art.  7.º,  7)  e  o  Pacto   Internacional  dos  Direitos   Civis   e   Políticos   (art.   11).  O  Direito   Internacional   dos  Direitos  Humanos,   favorável   ao   ser  humano,  possui  eficácia  paralisante  (invalidante)  das  normas  internas  em  sentido  contrário  (sejam  legais  ou  constitucionais).    

De outro lado, quando o Direito Internacional dos Direitos Humanos conflita com a Constituição brasileira, restringindo o alcance de algum direito ou garantia, vale a Constituição. Prepondera, como se vê, sempre, o direito mais favorável (a norma mais favorável). Essa é a lógica (dialogal) do princípio pro homine. E trata-se de um “diálogo de transigência”, isto é, o direito internacional transige com a Constituição, quando esta é mais benéfica e vice-versa (esta transige diante do texto internacional mais favorável).

As regras acima possuem incidência, como vimos, quando a discussão sobre as fontes envolve uma norma de direito internacional de direitos humanos. Nas situações em que isso não ocorre, como veremos a seguir, outras orientações aparecem para resolver a questão.

2.6. Conflito aparente de leis penais

O conflito aparente de leis penais (ou de normas penais) ocorre quando duas ou mais leis (ou seja, dois ou mais artigos de lei) vigentes são aparentemente aplicáveis à mesma infração penal. Por força do princípio do non bis in idem, somente uma dessas leis é que terá incidência concreta no caso, já que ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo fato.

Sendo um único fato, única também deve ser a norma penal a ter concreta incidência. Assim, se o agente, com uma bicicleta, em alta velocidade, atropela e mata um pedestre, a esse fato incide o Código Penal (art. 121, § 3.º) ou o Código de Trânsito (art. 302)? Aparentemente as duas leis são aplicáveis. Considerando-se que o Código de Trânsito só tem incidência quando se trata de veículo automotor, o conflito se resolve em favor do Código Penal, porque bicicleta não é veículo automotor (mesmo quando motorizada).

O conflito aparente de leis penais não se confunde com o concurso de crimes (quando, mediante uma ou mais ação ou omissão, o agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não – ver item 10.8.), pois este último requer uma pluralidade de infrações, sendo que todas as leis violadas são aplicáveis ao caso concreto. De forma esquemática, podemos ver as principais diferenciações:

  Concurso  aparente  de  leis   Concurso  de  crimes  Quanto  à  quantidade  de  infrações   Há  uma  única  infração.   Há  várias  infrações.  

Finalidade   Busca  identificar  a  lei  que  incidirá  no  caso  concreto.  

Busca  fixar  a  sanção  a  ser  aplicada    no  caso  concreto.  

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Regramento  legal  Não  possui;  a  criação  dos  princípios  incidentes  e  o  seu  desenvolvimento  é  fruto  da  dogmática  penal.  

CP,  arts.  69  a  72.  

Exemplo  

Acidente  causado  por  ciclista:  aplica-­‐se  o  CP  e  não  o  Código  de  Trânsito,  tendo  em  vista  não  se  tratar  de  veículo  automotor.  

Ciclista  atropela  e  mata  mais  de  uma  pessoa:  cada  morte  representa  um  crime.  

A discussão acerca da lei a incidir no caso concreto exige a correta interpretação da lei penal (gramatical, lógica, teleológica, histórica e sistemática), o que se faz com o auxílio dos princípios da especialidade, da subsidiariedade e da consunção (todos criados e desenvolvidos pela dogmática penal), a partir dos quais se busca manter a tão necessária coerência sistemática do ordenamento jurídico.

2.6.1. Princípios incidentes no conflito aparente de leis penais

Três são os princípios válidos para resolver o conflito aparente de leis penais: (a) especialidade; (b) subsidiariedade (expressa ou tácita); e (c) consunção ou absorção.

2.6.1.1. Princípio da especialidade

A lei especial derroga a lei geral (lex specialis derogat lex generali - CP, art. 12 – “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”). Uma lei é especial em relação a outra quando contém todos os requisitos descritivos típicos da lei geral e mais um ou alguns requisitos (chamados requisitos especializantes, que conduzem a uma distinção em abstrato dos injustos penais considerados).

Para que se possa aplicar o princípio da especialidade deve haver uma relação de gênero e espécie entre as figuras típicas consideradas. A descrição típica especial contém um plus, ou seja, descreve dados extras que não aparecem na configuração típica geral. Ex.: o art. 302 do Código de Trânsito brasileiro – Lei 9.503/97 (homicídio na direção de veículo automotor) –, é especial em relação ao art. 121, § 3.º, do CP (homicídio culposo geral).

Caso  concreto:  Importação  irregular  de  droga.  De  cloreto  de  etila  (lança-­‐perfume).  Delito  de  tráfico  de  entorpecentes  e  não  delito  de  contrabando  (TRF  4.ª  Reg.,  HC  2000.04.01.067526-­‐7/PR,  Turma  de  Férias,  rel.   Des.   Silvia   Goraieb,   j.   18.07.2000,   DJU   09.08.2000,   p.   262).   Do   voto   da   relatora   transcrevemos:  “Sobre   a   importação   de   lança-­‐perfume   divergiu   até   recentemente   a   jurisprudência   dos   Tribunais,   bi-­‐partindo-­‐se  em  duas  correntes  distintas:  uma  que  tipificava  a  conduta  como  contrabando  (art.  334  do  CP),  a  outra  que  considerava  tratar-­‐se  de  situação  de  tráfico  interno  de  tóxicos,  capitulado  no  art.  12  da  Lei  nº  6.368/76.  A  primeira  delas  corresponde  à  tese  invocada  no  presente  habeas  corpus  e  tem  como  fundamento  o  fato  de  que  o  cloreto  de  etila,  comercializado  livremente  na  Argentina,  não  se  encontrava  arrolado  entre  as  substâncias  constantes  da  lista  anexa  à  convenção  firmada  entre  o  Brasil  e  a  Argentina  para   a   repressão,   prevenção   e   combate   ao   tráfico.   Tal   orientação   jurisprudencial,   todavia,   não   mais  deve   persistir   ante   os   reiterados   julgamentos   do   STJ,   citados   no   parecer   da   Ilustre   Procuradora   da  República,  Dr.  (sic)  Heloísa  Pêgas  Morganti,  os  quais,  fundamentados  na  Portaria  nº  344,  de  19  de  maio  de   1998,   da   DIMED   –   que   arrola   o   cloreto   de   etila   entre   as   substâncias   tóxicas,   ao   lado   da   cocaína,  maconha   e   heroína   –   entenderam   que   a   introdução   daquela   substância   em   território   nacional   é  classificada  como  tráfico  de  entorpecentes.  [...]  Também  o  Supremo  Tribunal  Federal  decidiu  no  mesmo  sentido:  À  época  dos  fatos  vigorava  a  Portaria  nº  28,  de  13.11.86,  (publicada  no  Diário  Oficial  da  União,  Seção  I,  de  18.11.86),  da  Divisão  Nacional  de  Vigilância  Sanitária  de  Medicamentos  –  DIMED,  que  incluía  no  item  3  da  lista  de  substâncias  entorpecentes  e  psicotrópicos  de  uso  proscrito  no  Brasil,  o  cloreto  de  etila.   Alegação   de   se   tratar   de   crime   de   contrabando,   que   se   repele.   Ainda,   entretanto,   que   os   fatos  

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pudessem  subsumir-­‐se  a  ambos  os  dispositivos  penais  (art.  12  da  Lei  nº  6.368/76  e  art.  334  do  Código  Penal),  não  se  poderia  perder  de  vista  que  se  está  diante  de  mercadoria  proibida,  relacionada  entre  as  substâncias  entorpecentes  cuja  importação  configura  crime  especial.”  ‘Habeas  corpus  indeferido’.  (STF,  HC  nº  77.062-­‐1,  Rel.  Min.  Ilmar  Galvão,  DJ  de  11.9.98).            

E se o crime especial é punido com pena menor? Doutrina e jurisprudência divergem quanto ao tema, conforme se verá abaixo.

Questão   controvertida:   A   quantidade   de   pena   dos   crimes   previstos   nas   leis   que   aparentemente  encontram-­‐se  em  conflito   influencia  a  aplicação  da   regra  de  que  a   lei  especial  derroga  a   lei  geral?  Há  duas  correntes.  Uma  parte  da  doutrina  e  da  jurisprudência  faz  depender  a  aplicação  da  lei  à  verificação  da  quantidade  de  pena  previstas  para  os  crimes  que  estão  sendo  analisados,  prevalecendo,  sempre,  o  crime  que  tiver  a  maior  punição.    Para  outra  corrente,  “a  comparação  entre  as   leis  não  se  faz  da  mais  grave   para   a   menos   grave,   pois   a   lei   específica   pode   narrar   um   ilícito   penal   mais   rigoroso   ou   mais  brando.”45  No  mesmo  sentido:  Rogério  Sanches  da  Cunha46.  Nossa  posição:  Não  se  trata  de  uma  relação  gradativa   entre   os   injustos   penais,   senão   de   uma   relação   comparativo-­‐descritiva   in   abstrato.   São   os  requisitos  típicos  das  figuras  delitivas  consideradas  que  devem  servir  de  parâmetro;  não  a  pena.  Quando  se  compara  o  infanticídio  com  o  homicídio,  percebe-­‐se  que  aquele  é  especial  frente  a  esse;  percebe-­‐se,  também,   que   a   pena   daquele   é  maior   do   que   a   desse,   o   que   não   serve   para   ilidir   a   configuração   do  crime  de  infanticídio.  

2.6.1.2. Princípio da subsidiariedade

Na subsidiariedade tem-se um fato descrito numa lei que, por sua vez, encontra-se incluído na previsão de outra lei, menos grave e menos abrangente. A subsidiariedade nos conduz à ideia de que um crime secundário está vinculado com outro principal. Vigora a regra de que o subsidiário só tem incidência quando não está presente o principal.

Em ambas as hipóteses (subsidiariedade expressa ou tácita), ocorrendo o delito principal (o maior ou o crime-fim), afasta-se a aplicação da regra subsidiária (lex primaria derogat lex subsidiariae).

A subsidiariedade pode ser expressa (ou explícita) ou tácita (ou implícita): é expressa quando declarada formalmente na lei, ao usar, dentre outras, as expressões: “se as circunstâncias evidenciarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo.” (CP, art. 129, § 3º); “se o fato não constituir crime mais grave” (CP, art. 132).

A subsidiariedade tácita é deduzida, podendo se exteriorizar numa relação de “meio e fim”. É o que acontece em relação ao art. 15 do Estatuto do Desarmamento (disparo de arma de fogo), que só é punível se o disparo não foi efetuado para a prática de outro crime, ou seja, se não for meio para atingir outro fim (homicídio, p. e.).

E esse outro crime pode ser maior ou menor (mais grave ou não)? Aqui, identicamente  ao que ocorre em relação ao princípio da especialidade, não importa a quantidade de pena dos crimes aparentemente em conflito. É que, usando o exemplo antes mencionado, o tipo penal do art. 15 só tem incidência quando o disparo é a finalidade última do agente. Se o disparo é efetuado para o fim de se cometer um homicídio ou uma lesão corporal, não tem incidência o art. 15.

2.6.1.3. Princípio da consunção ou da absorção

45  MASSON,  Cleber.  Direito  penal  esquematizado:  parte  geral.  5.  ed.  São  Paulo:  GEN,  2011,  p.  127.  46  CUNHA,  Rogerio  Sanches.  Manual  de  direito  penal:  parte  geral.  Salvador:  JusPodivm,  2014,  p.  143.  

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Na consumação (ou absorção) o crime previsto por uma norma não passa de uma fase de realização de um crime previsto em outra norma ou representa uma forma de transição de um crime para outro (crime progressivo: quando o agente, para alcançar um resultado mais gravoso, passa necessariamente por um de menor entidade; ex: homicídio e lesão corporal).

Duas importantes regras gerais devem ser respeitadas: (a) o fato de maior entidade consome ou absorve o de menor graduação (roubo em relação ao furto); (b) o crime-fim absorve o crime-meio (estelionato e falsidade documental). Outras regras também aplicáveis: o fato posterior absorve o anterior (pós-fato não punível) ou o fato anterior absorve o posterior (antefato não punível).

Vejamos algumas situações em que se aplica o princípio da consunção:

1. O crime consumado absorve a tentativa: se o sujeito pela manhã tentou matar a vítima e não conseguiu, só alcançando seu objetivo no período da tarde, concluiu-se que o crime consumado elimina (absorve) a tentativa anterior (contra a mesma vítima). O ataque ao bem jurídico vida precedente (perigo concreto para a vida) fica absorvido pela ofensa maior (lesão). O maior absorve o menor. O agente responde só pelo delito consumado e fica eliminada a tentativa precedente.

2. A autoria (ou coautoria) absorve a participação precedente: quem no princípio apenas empresta o revólver para que terceiros pratiquem o roubo e, depois, vem a participar da execução com o grupo, responde como coautor, não como partícipe. O fato maior (coautoria) elimina o menor (participação). O sujeito responde só como coautor (ficando eliminada a participação precedente).

3. Crime progressivo: dá-se o crime progressivo quando o agente, para alcançar um resultado mais gravoso (uma ofensa maior ao bem jurídico), passa necessariamente por um de menor entidade. Ex.: homicídio (para se cometer o homicídio passa-se necessariamente pela lesão corporal); homicídio qualificado pela tortura (para se chegar ao homicídio qualificado pela tortura é preciso passar pelo delito de tortura). No crime progressivo o agente só responde por um crime: o maior (fica eliminado o menor, que é chamado de “crime de passagem”).

4. Crime complexo: o crime é complexo quando há fusão de dois ou mais crimes (fusão de duas ou mais figuras típicas que retratam uma pluralidade de ofensas a vários bens jurídicos). Ex.: roubo (que é a soma de um constrangimento ou de uma violência com o furto). Se o maior absorve o menor, o roubo faz desaparecer os crimes menores que dele fazem parte (furto, ameaça, lesão corporal, constrangimento etc.).

O princípio da consunção ainda é válido para resolver as seguintes situações:

1. Antefato impunível: ele também é resolvido pelo princípio da consunção. Ocorre quando o fato precedente (que não constitui meio necessário para a realização do delito maior, ou seja, que não constitui crime de passagem obrigatória) se coloca na linha de desdobramento da ofensa (principal) do bem jurídico. Esse fato precedente, praticado contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, fica absorvido (ou seja: o fato posterior absorve o anterior). Ex.: os toques corporais praticados na linha de desdobramento da execução do delito de estupro não configuram a contravenção (autônoma) de importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61), ao contrário, ficam absorvidos pelo estupro. São fatos precedentes que se colocam na linha de desdobramento da ofensa maior ao bem jurídico.

2. Pós-fato impunível: ocorre quando o mesmo agente (depois de já ter afetado o mesmo bem jurídico anteriormente) incrementa essa lesão precedente (a esse mesmo bem jurídico já lesado

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ou posto em perigo). Ex.: quem destrói a coisa subtraída por ele mesmo não responde por dois delitos (furto e crime de dano). Com a destruição do bem material (do objeto material) do crime não se causa uma nova lesão ao bem jurídico (patrimônio), senão tão-somente o seu incremento. Não se trata de uma nova ofensa, sim, de um continuum que agrava a ofensa precedente. O fato anterior, nesse caso, absorve o posterior. Cabe ao juiz levar em conta esse incremento lesivo do injusto penal no momento de fixar a pena (CP, art. 59). Mas dois crimes não existem.

Outro exemplo: quem falsifica um documento, e depois o utiliza, não responde por dois crimes (falsidade mais uso), senão tão-somente por falsidade (segundo jurisprudência majoritária, inclusive do STF, HC 84.533). O uso nesse caso é pós-fato impunível (porque não significa nova lesão ao bem jurídico tutelado – confiança nos documentos).

Todo resultado típico (previsto no tipo), porém não exigido para a consumação do crime, constitui exaurimento (ou esgotamento) do crime. Ex.: a obtenção da vantagem ilícita no crime de extorsão (CP, art. 158) configura exaurimento desse crime (porque está prevista no tipo, mas não é exigida para a consumação formal dele). Constitui, na verdade, um incremento da ofensa precedente (contra o mesmo bem jurídico).

O pós-fato impunível, por sua vez, não está previsto no tipo (anterior). Ex.: o dano do objeto subtraído não está previsto no tipo de furto (CP, art. 155).

3. O crime-fim absorve o crime-meio: ainda que o crime-meio seja punido mais severamente, fica absorvido pelo crime-fim quando se coloca (no caso concreto) na linha de desdobramento da afetação do bem jurídico. Ex.: a falsidade documental fica absorvida pelo estelionato quando se apresenta como meio utilizado pelo agente para a afetação do bem jurídico patrimonial (Súmula 17 do STJ).

2.7. Eficácia temporal da lei penal

A lei penal deve ser estudada em relação ao tempo, ao espaço e às prerrogativas funcionais (e profissionais) conferidas a algumas pessoas. Fala-se assim em eficácia temporal, espacial e pessoal da lei penal, respectivamente. Os dois primeiros aspectos serão examinados em seguida (itens 2.7 e 2.9). Da eficácia pessoal da lei penal cuidaremos no item 2.10.

Quanto ao seu surgimento, a lei penal segue a mesma disciplina normativa de todas as demais leis. Ela deve ser proposta, discutida, votada e aprovada pelo Congresso Nacional.

Recordando:  Por  força  da  garantia  da   lex  populi  (estudada  no  item  1.8.4),  exclusivamente  o  Congresso  Nacional   é  que   tem  poderes  para  editar   lei   no  âmbito  do  direito  penal   incriminador   interno   (é  o  que  disciplina   o   delito   e   suas   sanções   no   âmbito   das   relações   do   indivíduo   com  o   ius   puniendi   do   Estado  soberano  brasileiro).  Depois   de   aprovada,   a   lei   deve   ser   promulgada   (promulgação  é  o   ato   legislativo  pelo  qual  se  atesta  a  existência  de  uma  lei),  sancionada  (ato  do  Presidente  da  República  que  aprova  a  lei)  e  publicada  (divulgação  pela  Imprensa  Oficial).    

A lei penal entra em vigor da mesma forma que as demais leis do País: na data da sua publicação ou no dia posterior à vacância – vacatio legis –, quando o legislador a estabelece. Se a lei nada diz sobre sua vigência, entra em vigor 45 dias após a publicação.

Uma vez publicada (e principalmente quando entra em vigor) deveria ser conhecida por todos. Tal cognição generalizada da lei, entretanto, não passa de uma mera ficção. Apesar de que a ninguém é dado alegar ignorância da lei (seu desconhecimento é inescusável - CP, art. 21), fato é que as pessoas não conhecem o teor dos textos legais.

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Toda lei penal vigora formalmente até que seja revogada (total ou parcialmente) por outra ou até que alcance o fim do seu prazo de vigência, quando se trata de lei excepcional ou temporária (CP, art. 3º).

A possibilidade de revogação da lei cria inúmeras situações acerca de qual deve ter incidência nos casos em que um fato criminoso aconteceu sob a égide de uma lei e a investigação, o processo, a sentença ou a execução ocorrem quando outra se encontra em vigor (mais favorável ou mais prejudicial ao réu). Assim, entre a data do fato e a data final do cumprimento da pena podem ter entrado em vigor uma ou mais leis. O tema é objeto do direito penal intertemporal e tem incidência sempre que tivermos uma sucessão de leis penais. Mas, antes de se entrar nessa questão, convém analisarmos acerca da vigência, validade, repristinação, revogação, invalidade e duração da lei penal.

2.7.1. Vigência, repristinação, duração e revogação da lei penal

A lei penal vigora (no plano formal), como dito, enquanto não for revogada (formalmente) por outra lei, ou seja, enquanto não cessar (finalizar) a sua vigência formal.

A revogação acontece por meio de outra lei e compreende tanto a ab-rogação (revogação total) como a derrogação (revogação parcial).

Exemplificando:   O   art.   309   do   Código   de   Trânsito   (direção   sem   habilitação),   p.   e.,   não   revogou  inteiramente   o   antigo   art.   32   da   Lei   das   Contravenções   penais.   Não   houve   ab-­‐rogação   (total),   sim,  derrogação   (parcial).   A   segunda   parte   do   art.   32   continua   vigente,   ou   seja,   a   parte   que   se   referia   à  “Dirigir,   sem  a  devida  habilitação,   veículo  na   via  pública,   ou  embarcação  a  motor  em  águas  públicas”  (art.  32  do  CTB).  É  o  que  diz  a  Súmula  720  do  STF:  “O  art.  309  do  Código  de  Trânsito  Brasileiro,  que  reclama  decorra   do   fato   perigo  de  dano,   derrogou  o   art.   32   da   Lei   das   Contravenções   Penais   no   tocante   à   direção   sem  habilitação  em  vias  terrestres.”    

Um tema interessante diz respeito aos costumes. Eles não revogam nem derrogam a lei. O desuso tampouco. No entanto, pode acontecer de, no momento da interpretação, ser utilizado o costume para afastar a aplicação da lei em um caso concreto. Uma lei também pode deixar de ser aplicada quando a conduta que ela descreve não mais atenta contra a moral vigente.

A revogação ou derrogação pode ser expressa ou tácita. É expressa quando a lei nova retira a força da lei precedente de modo categórico (esta lei revoga a lei número tal). É tácita quando a lei nova é incompatível com a literalidade da anterior. A lei pode perder eficácia também diante do advento de uma nova Constituição (ou de uma nova emenda constitucional).

Exemplificando:  O   art.   35   do   CPP   que   exigia   outorga   uxória   do   marido   para   que   a   esposa   pudesse  ingressar   com   queixa-­‐crime   já   tinha   perdido   eficácia   (revogação   tácita)   antes   da   nova   Constituição  (todavia,  com  ela,  ficou  claro  que  homem  e  mulher  devem  ter  tratamento  igualitário).  Fala-­‐se  aqui  em  não  recepção  da  lei  precedente  (não  se  trata  propriamente  de  revogação,  sim,  de  não  recepção).    

O sistema jurídico brasileiro não admite a repristinação automática de nenhuma lei, isto é, uma lei nova (lei C), quando revoga uma outra (lei B), não está repristinando (automaticamente) o conteúdo legislativo (da lei A) que havia sido revogada por essa última (lei B). Em outras palavras: a lei B revogou a lei A. Quando a lei C revoga a lei B, não está repristinando naturalmente o conteúdo original da lei A.

Pelo que se pode perceber, a repristinação é constituída de pelo menos três leis, lembrando que não se constitui repristinação o surgimento de uma nova lei com a mesma redação ou tratando de assunto semelhante à outra existente anteriormente.

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2.7.2. Vigência e validade da lei

Não se pode confundir a vigência (formal) de uma lei com sua validade substancial (esta última consiste na sua compatibilidade com a Constituição e com os tratados de direitos humanos). Uma lei para entrar em vigor (para ter vigência) basta ser aprovada pelo Parlamento, sancionada pelo Presidente e publicada no Diário Oficial. Uma vez publicada e passado o período de vacância, caso exista, inicia sua vigência. Não havendo nenhuma vacância (vacatio) a ser observada, a lei começa a ter vigência de forma imediata (assim que publicada). Vigência, como se vê, é um conceito que se desenvolve no plano formal.

Nem toda lei vigente é válida.47 O modelo do Estado de Direito constitucional e internacional, que é garantista, rompe com o velho esquema do positivismo clássico (Kelsen) e passa a distinguir a vigência da validade. Somente pode ser válida a lei (vigente) que conta com compatibilidade vertical com a Constituição (ou seja: a lei que atende às exigências formais e materiais decorrentes da Magna Carta) bem como com os tratados de direitos humanos (que gozam de status supralegal – cf. voto do Min. Gilmar Mendes, STF, no RE 466.343-SP).

O provecto positivismo clássico confundia os planos da vigência e da validade. Dizia-se que lei vigente é lei válida, desde que tenha seguido o procedimento formal da sua elaboração. Não se compreendia, nesse tempo, a complexidade do sistema constitucional e democrático de direito, que conta com uma pluralidade de fontes normativas hierarquicamente distintas (Constituição, tratados internacionais de direitos humanos e direito ordinário).

As normas que condicionam a produção do direito penal (e de todo o ordenamento jurídico) não são só formais (maneira de aprovação de uma lei, competência para editá-la etc.), senão também e, sobretudo, substanciais (princípio da igualdade, da intervenção mínima, da ofensividade, preponderância dos direitos fundamentais, respeito ao núcleo essencial de cada direito etc.).

As normas substanciais constituem limites que não podem ser ultrapassados pelo legislador derivado. A produção do Direito está agora condicionada tanto formalmente como pelos limites materiais (ou substanciais).

Exemplificando:  A  norma  que  proibia  a  progressão  de  regime  em  crimes  hediondos,  por  mais  que  fosse  inatacável  do  ponto  de  vista   formal   (vigência),  não  possuía  validade   (ou   seja:   compatibilidade  vertical  com  o  princípio  da  individualização  da  pena,  contemplado  na  CF,  art.  5.º,  XLVI).  Acabou  sendo  declarada  inconstitucional   pelo   STF   (HC   82.959).   As   normas   que   previam   a   prisão   civil   do   depositário   infiel   não  eram  válidas  porque  incompatíveis  com  o  art.  7º,  7  da  CADH  (e  art.  11  do  PIDCP)  –  cf.  STF  RE  466.343-­‐SP.

2.7.3. Revogação da lei e declaração de invalidade

A revogação de uma lei é instituto coligado com o plano da legalidade e da vigência. Ou seja: acontece no plano formal e ocorre quando uma nova lei afasta a aplicação da anterior, não podendo, portanto, ser revogada por decisão judicial. O que pode é a lei ser julgada inconstitucional ou inconvencional ou, mesmo, sofrer uma interpretação conforme a Constituição – ver item 2.7.

A revogação exige uma sucessão de leis (sendo certo que a posterior revoga a anterior expressamente ou quando com ela é incompatível).

47  Cf.  FERRAJOLI,  Luigi.  Direito  e  razão:  teoria  do  garantismo  penal.  Tradução  de  Ana  Paula  Zomer;  Fauzi  Hassan  Choukr;  Juarez  Tavares  e  Luiz  Flávio  Gomes.  4.  ed.  São  Paulo:  RT,  2014,  p.  239-­‐333.  

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A declaração de invalidade de uma lei, que não se confunde com sua revogação, é instituto vinculado com o plano da “constitucionalidade”, ou seja, deriva de uma relação (antinomia ou incoerência) entre a lei e a Constituição (inconstitucionalidade) ou entre a lei e os tratados internacionais (inconvencionalidade) e relaciona-se com o plano do conteúdo substancial desta lei. Perceba-se que além de compatíveis com a Constituição, as normas internas devem estar em conformidade com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e em vigor no País, condição a que se dá o nome de controle de convencionalidade.48

Lei penal e vacatio legis: as leis penais, quando se acham em período de vacância (vacatio legis), não possuem vigência. Logo, não podem ser aplicadas. E se a lei nova for favorável?

Questão   controvertida:   Sendo   favorável,   a   lei   penal   pode   ser   aplicada   durante   a   vacatio   legis?  Entendendo  que  não  pode  ser  aplicada:  Cleber  Masson:  “se  a  lei  no  período  de  vacância  não  pode  ser  utilizada  para  prejudicar  o  réu,  porque  ainda  não  está  apta  a  produzir  seus  regulares  efeitos,   também  não  pode  beneficiá-­‐lo.”49.  No  mesmo  sentido  é  a  lição  de  Guilherme  de  Souza  Nucci50:  “a  norma  penal,  quando   em   vacatio   legis,   encontra-­‐se   dormente,   aguardando   a   ciência   de   todos   em   relação   ao   que  encerra,  não  sendo  capaz  de  prejudicar,  mas   também   inexistindo  qualquer  viabilidade  para  beneficiar  quem  quer  que  seja.”  Em  sentido  contrário  leciona  Alberto  Silva  Franco51:  “o  período  da  vacatio  legis  se  revela   apenas   indispensável   em   relação   à   norma   penal   incriminadora,   preceptiva   ou   proibitiva   ou   à  norma   agravadora   da   sanção   punitiva,   não   podendo   ter   incidência   em   relação   às   normas   penais  permissivas  ou  beneficiadoras  (não  dependentes  de  regulamentação  ou  de  implementação  de  qualquer  ordem),   porque   têm   necessariamente,   por   inquestionável   força   constitucional,   vigência   e   eficácia   a  partir  da  publicação  da  lei  posterior.”  René  Ariel  Dotti52:  “a  lei  em  período  de  vacatio  não  deixa  de  ser  lei  posterior,  devendo  ser  aplicada  desde   logo,   se   for  mais   favorável  ao  réu”.  Nossa  posição:  Seguimos  a  segunda  corrente,  agregando  o  seguinte  argumento:  em  benefício  do  réu  podemos  aplicar  tudo  que  lhe  é   favorável,   incluindo  a  analogia   in  bonam  partem   e   até  mesmo  os   costumes,  que   são   “normas”  não  escritas.   Se   normas   não   escritas   podem   beneficiar   o   réu,   com  mais   razão   a   esse   resultado   se   chega  quando  estamos  diante  de  normas  escritas  (embora  pendentes  do  transcurso  do  tempo  da  vacatio).  A  finalidade  da  vacatio   é  permitir   que   todos  os   cidadãos   conheçam  as  normas  proibitivas.  A  partir   dela  ninguém  mais  pode  invocar  ignorância.  Presume-­‐se  que  todos  tenham  tomado  conhecimento  da  norma.  Essa   preocupação   se   volta   sempre   para   as   proibições,   para   o   direito   punitivo   (que   afeta   direitos  fundamentais).   Essa  mesma  preocupação  não  existe   em   relação  às  normas   favoráveis,   benéficas,   que  devem  ter  aplicação   imediata.  Ademais,  há  uma  questão  prática:  depois  que  entrar  em  vigor,  caso  ela  seja  benéfica,  vai  retroagir  para  alcançar  os  fatos  praticados  na  égide  da  anterior.  Por  fim,  o  argumento  de  que  ao  se  aplicar  uma  lei  que  ainda  não  está  em  vigor  corre-­‐se  o  risco  de  vê-­‐la  revogada,  apesar  de  importante,  não  tem  o  condão  de  afastar  a  aplicação  da  lei  cuja  vacatio  ainda  não  se  operou.  É  que  tal  situação  é  muito  excepcional,  tendo  ocorrido  na  história  do  direito  penal  brasileiro  principalmente  em  épocas  em  que  nosso  país  era  regido  por  Estado  de  exceção.  

Fato descrito em lei nova, mas ocorrido durante a vacatio não é crime (não é punível). Se a lei ainda não entrou em vigor, não pode alcançar fatos passados (princípio da irretroatividade da lei penal nova prejudicial, que se combina com o princípio da anterioridade da lei penal, ou seja,

48  A  teoria  geral  do  controle  de  convencionalidade  das  leis  no  Brasil  foi  ineditamente  versada  em  MAZZUOLI,  Valerio  de  Oliveira.  O  controle  jurisdicional  da  convencionalidade  das  leis.  São  Paulo:  RT,  2009.    49  MASSON,  Cleber.  Direito  penal  esquematizado:  parte  geral.  5.  ed.  São  Paulo:  GEN,  2011,  p.  115.    50  NUCCI,  Guilherme  de  Souza.  Princípios  constitucionais  penais  e  processuais  penais.  São  Paulo:  RT,  2010,  p.  130.      51  FRANCO,  Alberto  Silva;  STOCO,  Rui  (coords.).  Código  penal  e  sua  interpretação:  doutrina  e  jurisprudência.  8.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2007,  p.  67-­‐70.      52  DOTTI,  René  Ariel.  Curso  de  direito  penal:  parte  geral.  4.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2012,  p.  353.      

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deve antes entrar em vigor e só vale para fatos futuros).

2.7.4. Conflito de leis penais no tempo (direito penal intertemporal): princípios incidentes

A lei penal rege os fatos ocorridos durante o tempo de sua vigência (tempus regit actum). Crime ocorrido sob o império da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais), p. e., é regido por essa lei, tal como ela existia na data do crime.

Sucede que, depois de ocorrido o fato (que foi cometido sob a regência de uma determinada lei – lei A), pode ser que o legislador modifique seu conteúdo (por meio da lei B). Quando isso ocorre, instaura-se um conflito de leis penais no tempo, cuja característica essencial, portanto, é a sucessão de leis penais. Para se verificar a lei penal no tempo, há que se saber quando o crime foi praticado. Apesar de uma análise (a da lei penal no tempo) pressupor necessariamente a outra (tempo do crime), os princípios incidentes em cada uma delas são diversos.

Explicando:   Não   se   deve   confundir   as   regras   incidentes   para   se   verificar   o   tempo   do   crime   (ou   seja,  quando  se  considera  que  o  crime   foi  praticado)  com  a  sucessão  de   leis  no   tempo.  Em  termos   lógicos,  primeiro  se  define  quando  o  crime  foi  praticado,  depois,  a  lei  incidente  ao  tempo  do  crime.  O  art.  4º  do  CP  define  o  tempo  do  crime  (“considera-­‐se  praticado  o  crime  no  momento  da  ação  ou  da  omissão,  ainda  que  outro  seja  o  momento  do  resultado”  –  teoria  da  atividade).  Assim,  se  uma  pessoa  tinha  menos  de  18  anos  quando  praticou  a  ação,  ainda  que  o  resultado  tenha  ocorrido  quando  ela  já  tinha  adquirido  a  maioridade  penal,  incide  sobre  ela  as  regras  do  ECA  e  não  as  do  Código  Penal  –  ver  item  2.7.  O  tempo  do  crime,  portanto,  estabelece  o  marco  inicial  para  se  identificar  qual  lei  incidirá  no  caso  concreto.  Sem  ele,  não  se  pode  prosseguir  na  especulação  acerca  da  lei  que  terá  aplicação.    

Quando há uma efetiva sucessão de leis penais (no tempo do crime vigorava a lei A e no tempo da investigação, do processo, da sentença ou da execução passa a vigorar a lei B, regente da mesma situação fática) então, sim, pode-se falar em conflito de leis penais no tempo (ou sucessão de leis penais).

Qual delas deve ter incidência no caso concreto: a lei do tempo do crime (lei A) ou a lei do tempo da investigação, do processo, da sentença ou da execução (lei B)? Tal questão é respondida por meio da utilização dos princípios regentes (conjunto de regras e princípios) do direito penal intertemporal. Para resolver esse assunto foram desenvolvidos dois princípios básicos e outros correlatos:

Princípios básicos

1. Irretroatividade da lei penal nova mais severa: nossa Constituição Federal é expressa: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5.º, XL). É irretroativa a lei penal mais severa quanto aos crimes (JCAT 73, p. 530), às penas (RT 512/376), ao regime de cumprimento da pena (RT 722/416), à prescrição (RT 516/292) etc. Assim, qualquer que seja o aspecto disciplinado do direito penal incriminador (que cuida do âmbito do proibido e do castigo), sendo a lei nova prejudicial ao agente, não haverá retroatividade.

Ilustrando:  A  Lei  8.072/90  –  Lei  dos  Crimes  Hediondos  –  constitui  um  paradigmático  exemplo  de  lei  nova  mais  severa.  Muitos  delitos  (a  partir  dela)  passaram  a  ser  punidos  mais  gravemente;  a  execução  da  pena  tornou-­‐se  mais  severa  etc.  Essa  Lei,  por  isso  mesmo,  naquilo  em  que  era  mais  prejudicial  ao  agente,  foi  e  é  irretroativa.    

A irretroatividade da lei penal prejudicial ao réu decorre de uma orientação político-criminal, já que não é razoável, contrariando inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana, que a alguém seja atribuída uma consequência penal por conta de um fato que não mais é considerado

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ilícito penalmente, ou que seja atribuída uma sanção maior quando, agora, prevê-se para o mesmo fato uma pena mais leve etc.

2. Ultra-atividade da lei penal anterior mais benéfica: quando o assunto disciplinado na lei nova (mais severa) já fazia parte de outra norma anterior (mais benéfica), aplica-se o princípio da irretroatividade da lei penal nova mais severa (lei nova que aumenta pena, que endurece o regime do seu cumprimento, estabelece novas causas agravantes, aumenta prescrição etc.). A lei que terá incidência, nesse caso, é a antiga (que vai continuar regendo os fatos ocorridos em seu tempo).

Pelo princípio da ultra-atividade da lei penal anterior mais benéfica, embora já tenha perdido sua vigência, diante da lei nova, continua válida e aplicável para os fatos ocorridos durante o seu tempo; se a lei nova é prejudicial, ela não retroage, não alcança os fatos passados; desse modo, eles continuam sendo regidos pela lei anterior, mesmo tendo essa lei anterior já perdido sua vigência; aliás, justamente porque já não está vigente é que se fala em ultra-atividade, ou seja, a lei acaba tendo atividade mesmo depois de “morta” (quando revogada ou quando tenha cessado seus efeitos). Daí o nome “ultra”-atividade.

Ilustrando:  O  casamento  do  agente  com  a  ofendida  era  causa  extintiva  da  punibilidade  de  acordo  com  o  Código   Penal,   art.   107,   incisos   VII   e   VIII.   Com   a   Lei   11.106/2005   esses   incisos   foram   revogados.   O  casamento   já   não   possui   efeito   extintivo   da   punibilidade.   Tratando-­‐se,   entretanto,   de   casamento   (do  agente  com  a  vítima)  ocorrido  antes  do  advento  da  Lei  11.106/2005,  ainda  é  aplicável  o  art.  107,  VII  ou  VIII,   porque   esse   diploma   legal   (a   Lei   11.106/2005)   retrata   uma   situação   de  novatio   legis   in   pejus.   O  novo  texto  legislativo  (sendo   lex  gravior)  não  pode  ter  eficácia  retroativa,  ao  contrário,  é  a   lei  anterior  que  tem  efeito  ultra-­‐ativo  (porque  se  trata  de  lex  mitior).  A  norma  penal  benéfica,  nesse  caso,  é  a  antiga  (não  a  nova).    

Princípios correlatos

3. Retroatividade da lei penal nova mais benéfica: a regra da retroatividade da lei penal nova mais benéfica tem fundamento constitucional: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (art. 5.º, XL). Ex.: Lei 9.714/98: ampliou o rol das penas substitutivas no nosso país: cuida-se, portanto, de lei nova (em regra) mais benéfica. Logo, retroativa (CF, art. 5.º, XL). A retroatividade não é facultativa, sim, obrigatória.

A lei nova mais favorável deve ser aplicada tanto em favor do acusado (quando o processo ainda está em andamento) como do condenado definitivo (CP, art. 2.o, parágrafo único). Ou seja: mesmo após a sentença final (com trânsito em julgado), incide no caso concreto a lei penal nova mais favorável.

Leis novas benéficas: toda lei penal nova que favorece o agente é retroativa. É o que prevê o art. 2º do Código Penal:

Art. 2º - Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Parágrafo único - A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.

As leis benéficas podem ser:

(a) lei que traz algum benefício – lex mitior ou novatio legis in mellius (lei que diminui pena, que atenua a forma de execução, que permite transação penal – RJDTACRIM 30, p. 241 –, que passa a exigir representação – RT 735/539 etc.). A lei nova que diminuiu o tempo da prisão favorece o

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réu que está preso e, portanto, retroage. Porém, não lhe permite indenização civil (porque não estava preso ilegalmente);

Caso  concreto:  A  Lei  de  tortura  (Lei  9.455/97)  possibilitou  a  progressão  de  regime  no  crime  de  tortura.  A  jurisprudência  (quase)  pacífica  não  a  estendia  a  outros  delitos  hediondos  ou  equiparados.  Hoje  já  não  se  discute   o   cabimento   da   progressão   de   regime   em   todos   os   delitos   hediondos   (depois   da   Lei  11.464/2007).    

(b) lei penal nova que descriminaliza fato anteriormente definido como infração penal – abolitio criminis (ou descriminalização substancial). Foi o que aconteceu com o adultério, que deixou de ser considerado crime pela Lei 11.106/2005.

Nos casos de condenação penal, sobrevindo a abolitio criminis, são anulados todos os efeitos penais (cumprimento da pena, caso já tenha se iniciado, a condenação não mais serve como pressuposto para a reincidência, nem configura maus antecedentes etc.), mantendo-se, entretanto, os de outra natureza (extrapenais – ex. CP, arts. 91 e 92). Todos os efeitos que não tenham caráter penal são mantidos pelo fato de que a retirada da conduta do mundo penal não significa a legitimação de tal comportamento. Apenas por motivo de política criminal entende-se que ele não se amolda às exigências do direito penal (princípio da intervenção mínima, ofensividade, adequação social etc.). Foi o que aconteceu com o adultério, que, embora descriminalizado, manteve os seus efeitos na esfera do direito civil, mais especificamente, do direito de família, configurando justa causa para o divórcio (Código Civil, Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum. [...] Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos: I – adultério) A abolitio criminis não se confunde com o princípio da continuidade normativo-típica. Enquanto aquela exprime o desejo do legislador de não mais criminalizar determinada conduta (como aconteceu com o adultério), nessa o caráter criminoso do fato é mantido, mas apenas em outro dispositivo penal (foi o que se deu com o atentado violento ao pudor, que estava previsto no art. 214 do Código Penal e que foi deslocado para o artigo anterior, o qual prevê o estupro). Ocorre, aqui, uma simples alteração topográfica do delito.

4. Não ultra-atividade da lei penal anterior mais severa: ao princípio da retroatividade da lei penal nova mais benéfica correlaciona-se o da não ultra-atividade da lei penal anterior maléfica para o réu (se a lei nova é benéfica, é ela que terá incidência, ela retroage). A lei anterior, caso existente, não é ultra-ativa, ou seja, ela não terá aplicação.

Se a lei nova diminuir a pena de um determinado crime, é ela que será aplicada, inclusive para os casos passados. Nessa situação, a lei anterior é mais severa, logo, não conta com ultra-atividade.

5. Extra-atividade da lei penal: quando uma lei for ultra-ativa (lei anterior benéfica aplicada a um caso concreto mesmo depois de ter sido revogada) ou retroativa (lei nova benéfica que é aplicada a um caso concreto ocorrido antes da sua vigência) fala-se que ela possui extra-atividade, isto é, ela passa a regular fatos posteriores (à sua “morte”) ou anteriores (à sua vigência). Isso significa uma incidência (atividade) extra da lei benéfica (atividade fora do seu tempo), e tudo acontece por força do princípio constitucional da lei mais benéfica (CF, art. 5.º, XL).

A lei penal que disciplinava o latrocínio (CP, art. 157, § 3o) antes do advento da Lei dos crimes hediondos continua (mesmo depois de revogada) regendo os fatos ocorridos em seu tempo (tem ultra-atividade), porque a lei nova (Lei dos crimes hediondos) é mais severa e, portanto, irretroativa.

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Uma lei penal nova benéfica, por exemplo, a Lei 9.714/98, que ampliou as penas substitutivas, rege fatos inclusive anteriores ao seu nascimento (porque a lei anterior é mais severa e, portanto, nesse caso, não tem ultra-atividade).

Todos os princípios que regem a lei penal no tempo valem para o crime, para a pena, assim como para a medida de segurança.

No que diz respeito ao direito penal incriminador (o que cuida dos crimes e das penas) a lei nova só pode retroagir quando favorável.

Esquematicamente:

Lei  em  vigor  (lei  nova)  benéfica  ao  réu  –  retroage  Torna  o  fato  atípico  -­‐  abolitio  criminis.  

Retroage  para  alcançar  o  fato  que  era  crime  quando  praticado.  Ex.:  adultério  foi  descriminalizado  pela  Lei  11.106/2005.  

Mantém  o  fato  típico,  porém  de  algum  modo  favorece  o  réu  -­‐  novatio  legis  in  mellius.  

Retroage  para  alcançar  o  fato  que  era  crime  quando  praticado.    Exemplo  dado  por  Rogério  Greco53:  Se  surgir  uma  lei  nova  reduzindo  a  pena  mínima  de  determinada  infração  penal,  deve  aquela  que  foi  aplicada  ao  agente  ser  reduzida  a  fim  de  atender  aos  novos  limites,54  mesmo  que  a  sentença  que  o  condenou  já  tenha  transitado  em  julgado.  Só  não  terá  aplicação  a  lei  nova,  no  exemplo  fornecido,  se  o  agente  já  tiver  cumprido  a  pena  que  lhe  fora  imposta.    

Lei  em  vigor  (lei  nova)  prejudicial  ao  réu  –  não  retroage  

Torna  o  fato  típico  -­‐  lei  incriminadora.  

Não  retroage  para  alcançar  o  fato  que  não  era  crime  quando  praticado  –  CP,  art.  1º.  Ex.:  assédio  sexual  só  é  punido  depois  da  entrada  em  vigor  da  Lei  10.224,  de  15/05/2001.    

Sem  criar  o  fato  típico,  de  algum  modo  prejudica  o  réu  –  novatio  legis  in  pejus.  

Não  retroage  para  alcançar  a  circunstância  que  era  mais  favorável  quando  o  crime  foi  praticado  –  CP,  art.  1º.  Ex.:  Lei  12.650/2012  (Lei  Joanna  Maranhão)  

Conteúdo  típico  migra  para  outro  tipo  penal  -­‐  princípio  da  continuidade  normativa  típica.  

Ex.:  atentado  violento  ao  pudor  e  estupro:  antes  cada  tipo  penal  compunha  um  artigo  específico  do  CP;  agora,  o  primeiro  migrou  para  dentro  do  artigo  que  trata  do  segundo.  

2.7.5. Eficácia temporal das leis processuais

Quanto à lei processual penal é preciso distinguir:

- lei genuinamente processual tem aplicação imediata (CPP, art. 2o); - lei processual com conteúdo ou reflexos penais imediatos é regida pelos princípios que regem a lei penal no tempo (se a lei nova for mais benéfica retroage, do contrário não).

Uma lei nova que venha a proibir fiança, por exemplo, é uma lei processual, mas tem reflexos diretos no ius libertatis. Logo, é regida pelos princípios aplicados à lei penal no tempo. Sendo uma lei nova prejudicial, não retroage. Ou seja: os crimes cometidos antes dela admitem fiança (a lei antiga, nesse caso, tem ultra-atividade). Ocorre, assim, a irretroatividade da lei processual 53  GRECO,  Rogério.  Código  penal  comentado.  5.  ed.  rev.,  ampl.  e  atual.  Rio  de  Janeiro:  Impetus,  2011,  p.  9.  54  Estamos  partindo  do  princípio  de  que  ao  agente  foi  aplicada  a  pena  mínima  relativa  àquela  infração  penal  que  teve  sua  pena  diminuída.      

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nova mais severa e a ultra-atividade da lei processual anterior benéfica.

A lei processual, às vezes, tem o mesmo tratamento da lei penal no que tange à sua aplicação no tempo. Tudo depende, como dito anteriormente, do seu conteúdo (genuinamente penal ou com conteúdo ou reflexos penais imediatos).

2.7.6. Leis mistas ou híbridas: penal e processuais penal

Quando se trata de lei nova que conta com aspectos penais e processuais penais ao mesmo tempo, o preponderante é o primeiro (o aspecto penal). Resta saber se ele é favorável ou desfavorável ao agente do fato. Quando favorável, a lei nova retroage. Se desfavorável, a lei nova não retroage.

Caso  concreto:  Em  relação  ao  art.  366  do  CPP  (que  prevê  a  suspensão  do  processo  quando  o  acusado  for  citado  por  edital  e  não  comparecer  nem  constituir  advogado),  firmou-­‐se  jurisprudência  no  sentido  da  sua   irretroatividade   (porque,   na   parte   penal,   cuida-­‐se   de   lei   nova   desfavorável,   na   medida   em   que  suspende  a   contagem  do  prazo  prescricional).   Consultar,   dentre  outros:   STJ,  HC  115.131-­‐RJ,   Rel.  Min.  Arnaldo   Esteves   Lima   e   RHC   15.526/CE,   Rel.   Min.   Laurita   Vaz,   Quinta   Turma,   DJ   de   14/3/05.   O   STF  reconheceu  repercussão  geral   sobre  a  aplicação  do  art.  366  em   junho  de  2011   (Repercussão  Geral  no  Recurso  Extraordinário  600.851  DF,  Rel.  Min.  Ricardo  Lewandowski).  

2.7.7. Critério do caso concreto

Para se saber se uma lei nova é ou não mais favorável ao agente é preciso examinar detalhadamente o caso concreto (critério do caso concreto), isto é, as vantagens e desvantagens de cada uma das leis incidentes. Em caso de dúvida fundada, nada impede que se ouça o interessado (JUTACRIM-SP 87/188).

Gera incerteza, com frequência, a lei nova aparentemente mais favorável, porém, que cuida de “penas heterogêneas”, isto é, distintas (Ex.: crime sancionado com pena restritiva de direitos e, de repente, vem lei nova mandando aplicar somente multa). O que é melhor: a restritiva ou a multa? Depende de cada caso concreto e, como dito, o acusado pode pronunciar-se sobre o tema.

2.7.8. Aspectos destacados

Alguns temas merecem ser abordados, por conta da recorrência e importância deles:

1. Sucessão de várias leis penais: no tempo do crime vigorava a lei A, no tempo do processo a lei B e no tempo da sentença a lei C. Qual dessas leis deve o juiz aplicar? Aplica-se sempre a mais favorável, que pode ser a lei intermediária, ou a primeira ou a última. A lei mais benéfica é que conta com prioridade.

2. Combinação dos aspectos favoráveis de duas ou mais leis penais: pode o magistrado conjugar aspectos benéficos da lei anterior com outros previstos na lei posterior? Doutrina e jurisprudência divergem sobre o tema.

Questão  controvertida:  A  conjugação  de  leis  favoráveis  é  admitida?  Para  Nelson  Hungria  (1949,  p.  110  apud  RS  108)  o  magistrado  não  pode  conjugar  critérios  de  uma  e  outra  lei,  a  fim  de  criar  uma  terceira  lei.  Ao  agir  assim,  o  Poder  Judiciário  estaria  violando  o  princípio  da  separação  dos  poderes.  Em  sentido  contrário:   Basileu  Garcia,   Celso  Delmanto.   Rogério  Greco   entende  que   a   combinação  de   leis   levada   a  efeito  pelo  julgador,  ao  contrário  de  criar  um  terceiro  gênero,  atende  aos  princípios  constitucionais  da  

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ultra-­‐atividade   e   da   retroatividade   benéficas"55.     No   mesmo   sentido   é   a   lição   de   Julio   Fabbrini  Mirabete56:  “A  conjugação  pode  ser  efetuada  não  só  com  a  inclusão  de  um  dispositivo  da  outra  lei,  como  também  com  a  combinação  de  partes  de  dispositivos  das  leis  anterior  e  posterior.  Apesar  das  críticas  de  que  não  é   permitido   ao   julgador   a   aplicação  de  uma   “terceira   lei”   (formada  por   parte  de  duas),   essa  orientação  afigura-­‐se  mais  aceitável,  considerando-­‐se  que  o  sentido  da  Constituição  é  de  que  se  aplique  sempre  a  norma  mais   favorável.  Se   lhe  está  afeto  escolher  o  “todo”  para  que  o  réu  tenha  tratamento  penal  mais   favorável  e  benigno,  nada  há  que   lhe  obste  selecionar  parte  de  um  todo  e  parte  de  outro,  para  cumprir  uma  regra  constitucional  que  deve  sobrepairar  a  pruridos  de  Lógica  Formal.”57  Para  René  Ariel  Dotti58,  “nos  dias  correntes  e  diante  da  clareza  da  CF  e  do  CP,  que  tornam  obrigatória  a  aplicação  retroativa  da  lei  mais  benéfica  –  e,  por  via  de  consequência,  inaplicável  a  lex  gravior  aos  fatos  praticados  antes  de  sua  vigência  –  não  mais  se  questiona  a  possibilidade  do  juiz  fazer  a  integração  entre  a  lei  velha  e  a  lei  nova.  Não  há  mais  clima  propício  para  se  resistir  ao  imperativo  da  fusão  das  normas  penais  que  sejam  mais  benignas  ao  réu.  Contra  a  antiga  superstição  e  a  preconceituosa  exegese  opõe-­‐se  o  princípio  de  garantia  individual  da  retroatividade  da  lei  mais  favorável  (CF,  art.  5º,  XL),  que  não  se  detém  mesmo  diante   da   res   judicata   (CP,   art.   2º,   parágrafo   único).   E   para   tanto,   o  magistrado   nada  mais   faz   senão  aplicar  o  direito  positivo  ao  fato  submetido  à  sua  jurisdição.  Não  está,  com  isso,  “criando”  uma  nova  lei.”       Caso  concreto:  Não  obstante  os  bem  lançados  argumentos  em  prol  da  combinação  de  leis,  a  matéria  foi  sumulada  pelo  STJ,  no  que  tange  ao  conflito  de  leis  que  tratam  de  drogas,  da  seguinte  forma:  “É  cabível  a  aplicação  retroativa  da  Lei  n.  11.343/2006,  desde  que  o  resultado  da  incidência  das  suas  disposições,  na  íntegra,  seja  mais  favorável  ao  réu  do  que  o  advindo  da  aplicação  da  Lei  n.  6.368/1976,  sendo  vedada  a  combinação  de  leis.”  A  antiga  lei  de  drogas  (6.538/76)  estabelecia  para  o  crime  de  tráfico  uma  pena  de  3  a  15  anos  de  prisão,  sem  previsão  de  diminuição  da  pena.    A  lei  editada  em  2006  (Lei  11.343)  também  tratou  da  matéria,  porém  ,  ao  mesmo  tempo  em  que  fixou  pena  maior  (5  a  15  anos  de  prisão),  previu  uma  causa  de  diminuição   de   um   sexto   a   dois   terços   se   o   réu   for   primário,   tiver   bons   antecedentes,   não   se   dedicar   a  atividades  criminosas  e  não  integrar  organização  criminosa.  Como  a  lei  nova  foi  mais  grave  em  relação  à  pena  (prejudicial  ao  réu  portanto)  mas  mais  benéfica  no  que  tange  à  causa  especial  de  diminuição  de  pena   logo  surgiu  a  duvida  a  cerca  de  qual  das  duas  normas  deveria  ser  aplicada  aos  fatos  ocorridos  durante  a  vigência  da  lei  anterior  (Lei  6.368/76).  Ou,  ainda,  poderia  o  julgador  se  valer  da  combinação  das  duas  leis?  De  acordo  com  a  súmula  antes  transcrita  a  lei  pode  retroagir,  mas  apenas  se  for  aplicada  na  íntegra59.  Nossa  posição:  nada  impede   que   ocorra   a   combinação   dos   aspectos   favoráveis   de   várias   leis   penais,   aproveitando-­‐se   em  favor  do  réu  os   textos  mais  benéficos.  Ex.:  a  pena  de  prisão  antiga  com  a  pena  de  multa  nova  menos  gravosa  -­‐  RT  710/330.  Note-­‐se  que  na  combinação  de  leis  penais  o  juiz  não  está  criando  uma  nova  lei:  apenas  aplica  as  partes  benéficas  devidamente  aprovadas  pelo  Parlamento.  O  juiz  não  cria  nenhuma  lei.  Combinar  aspectos  favoráveis  de  duas  leis  não  significa  criar  uma  terceira.  Esse  ato  (a  criação  de  lei)  é  de  atribuição  exclusiva  do  Legislativo.  Para  o  STJ,  no  entanto,  a  combinação  de  leis  é  impossível  no  caso  da  nova  lei  de  drogas  (veja  Súmula  501).  

3. Crimes permanentes e continuados e sucessão de leis penais: se o sujeito inicia um crime de sequestro – CP, art. 148 (que é crime permanente, porque sua consumação se prolonga no tempo:

55  GRECO,  Rogério.  Código  penal  comentado.  5.  ed.  rev.,  ampl.  e  atual.  Rio  de  Janeiro:  Impetus,  2011,  p.  12-­‐14.  56  MIRABETE,  Julio  Fabbrini.  Manual  de  direito  penal:  parte  geral.  23.  ed.  rev.  e  atual.  São  Paulo:  Atlas,  2006,  p.  50-­‐51.    57  MARQUES,  José  Frederico.  Tratado  de  direito  penal.  Vol.  III.  Campinas:  Millennium,  1999,  p.  192.  Na  jurisprudência,  admitiu-­‐se  a  tese  para  a  aplicação  ao  autor  de  crime  de  posse  de  entorpecentes  da  pena  privativa  de  liberdade  da  lei  anterior  (Lei  nº  5.726,  de  1971)  e  da  pena  pecuniária  da  lei  posterior  (Lei  6.368,  de  1976):  JTACrSP  50/392,  52/226,  58/313.      58  DOTTI,  René  Ariel.  Curso  de  direito  penal:  parte  geral.  4.  ed.  rev.,  atual.  e  ampl.  São  Paulo:  RT,  2012,  p.  356-­‐362.      59  Cf.:  <http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2013/11/18/sumula-­‐501-­‐proibe-­‐combinacao-­‐de-­‐leis-­‐em-­‐crimes-­‐de-­‐trafico-­‐de-­‐drogas/>.    Acesso  em:  23  out.  2014.  

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durante todo o tempo em que a vítima fica em poder do criminoso, o crime está sendo praticado) na vigência da lei A e termina sob a regência da lei B, sempre será aplicada a lei nova (não importa se mais favorável ou não). Sendo a lei nova mais benéfica, não há dúvida que é ela que terá incidência. Mas mesmo que a lei nova seja mais gravosa (houve aumento de pena, por exemplo), ainda assim, aplica-se a lei nova porque o delito continuou mesmo diante da nova lei nova (cf. Súmula 711 do STF – ver abaixo). Tratando-se de situação invertida, o resultado não se altera (aplica-se sempre a última lei).

A mesma solução é encontrada para o crime continuado (ficção jurídica por meio da qual, por questões de política criminal, dois ou mais crimes da mesma espécie, praticados nas mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução, devem ser tratados, para fins de pena, como se único fossem, aplicando-se uma majoração da reprimenda – CP, art. 71). Assim, suponham-se três delitos de furto em continuação, sendo que dois furtos tenham sido cometidos sob a égide da lei A mais favorável e o terceiro sob a regência da lei B mais gravosa (aumentou-se a pena, v.g.). A jurisprudência vem reconhecendo que nesse caso sempre se aplica (para o crime continuado) a lei nova, ainda que mais gravosa, porque um dos crimes foi cometido sob sua vigência (STF, HC 77.437-RS, Informativo STF 122/1). Neste sentido: STJ, HC 165.186/SP, 6ª Turma, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 03.11.2011, DJe 28.11.2011, RSTJ, vol. 225, p. 836).

O tema tanto para o crime continuado quanto para o permanente encontra-se sumulado. Diz a súmula 711 do STF: “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”. A Súmula refere-se que “lei penal mais grave”, dando a entender (literalmente) que esta lei (a mais grave) sempre seria a aplicável. Mas essa interpretação literal da Súmula é inconsistente. Se a lei anterior (que regia parte dos crimes) era mais grave e surgiu lei nova menos grave, não há dúvida que se aplica a lei nova (mais favorável). Sobre isso não há dúvida nenhuma. Controvérsia existe quando a lei nova é mais grave. Faltou na Súmula 711 ser dito: “a lei penal nova mais grave...”

5. Crime habitual e sucessão de leis penais: no crime habitual (que é aquele que exige a reiteração da conduta), caso algumas condutas sejam praticadas sob a vigência da lei A e outras sob a da lei B, sempre vai incidir a última (maléfica ou benéfica). Ainda que mais severa, cabe considerar que algumas condutas foram praticas sob a regência da lei nova. Por isso é que essa lei nova é que tem incidência (sempre).

6. Retroatividade e jurisprudência: havendo alteração jurisprudencial acerca de determinado assunto, a nova orientação pode retroagir para atingir fatos ocorridos ao tempo do entendimento anterior? Doutrina e jurisprudência divergem.

Questão   controvertida:   A   jurisprudência   retroage   para   alcançar   fatos   ocorridos   quando   vigorava  entendimento  anterior?  No  sentido  positivo,  temos  o  posicionamento  de  Rogério  Greco,  para  quem  “se  houver  modificação  para  pior,   a   situação  anteriormente  definida   com  base  na  posição  mais   benéfica,  agora  modificada,  deverá  ser  mantida.  Por  outro  lado,  se  houver  modificação  benéfica,  isto  é,  quando  o  Tribunal   se   posicionava   de   determinada   forma   e,   agora,   afastando-­‐se   do   pensamento   anterior,   o  modifica   em   benefício   do   agente,   tal   pensamento   deverá   retroagir,   aplicando-­‐se   aos   casos  anteriormente  julgados”.  60                    

Quando se trata de criação ou cancelamento de súmula também o tema não se encontra pacificado.

60  GRECO,  Rogério.  Código  penal  comentado.  5.  ed.  rev.,  ampl.  e  atual.  Rio  de  Janeiro:  Impetus,  2011,  p.  14-­‐15.  

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Caso  concreto:  Em  outubro  de  2001   foi  cancelada  a  Súmula  174  do  STJ  que  autorizava  o  aumento  de  pena   mesmo   quando   o   roubo   tivesse   sido   cometido   com   emprego   de   arma   de   brinquedo.   Tal  cancelamento   retroage   para   alcançar   condenações   ocorridas   antes   dele?   No   sentido   positivo:   Paulo  Queiroz61.   Rogério  Greco,   ao   citar  o   cancelamento  da   Súmula  174,   concluiu  que   “nos   termos  da  nova  interpretação,   deverá   o   agente   ingressar   com   a   necessária   revisão   criminal   a   fim   de   ver   afastada   a  mencionada  causa  especial  de  aumento  de  pena”.62      7.   Retroatividade   e   norma   penal   em   branco:   a   lei   penal   em   branco   (aquela   cujo   preceito   primário  necessita   de   complementação).   Quando   se   trata   de   estabelecer   seus   efeitos   no   tempo,   o   tema   é  bastante   controvertido,   acarretando   o   surgimento   de   quatro   correntes   sobre   a   questão:   (a)   retroage  sempre   que   mais   benéfica;   (b)   não   retroage   em   nenhuma   situação;   (c)   somente   retroage   quando  provoca  uma  real  modificação  do  tipo  penal;  (d)  só  retroage  quando  homogênea  (que  é  aquela  ....  Ex.:  contrair  casamento  sabendo  da  existência  de  nulidade  absoluta  –  CP,  art.  237).  

2.8. Lei penal excepcional e lei penal temporária

Consoante o disposto no art. 3º do CP, “a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante a sua vigência”.

Excepcional é a lei elaborada para reger fatos que ocorrem em tempo anormal (calamidade pública, inundação, guerra etc.). Dura até que cessem as circunstâncias que a determinaram.

A lei temporária é a que conta com período certo de duração, ou seja, com data previamente fixada para a cessação da sua vigência (já se sabe quando vai desaparecer).

Ilustrando:  A  Lei  Geral  da  Copa  -­‐  Lei  12.663/2012,  que  “dispõe  sobre  as  medidas  relativas  à  Copa  das  Confederações  FIFA  2013,  à  Copa  do  Mundo  FIFA  2014  e  à  Jornada  Mundial  da  Juventude  -­‐  2013,  que  serão  realizadas  no  Brasil”,  dentre  outras  atribuições,  prevê  que  os  crimes  previstos  em  seu  capítulo  VIII  terão  vigência  até  o  dia  31  de  dezembro  de  2014  (art.  36).  

A regra regente no que concerne à lei temporária ou excepcional também é a do tempus regit actum, ou seja: crime ocorrido durante lei temporária ou excepcional é regido por essa lei, mesmo após o seu desaparecimento; é a lei do tempo do crime que rege esse crime; mesmo depois de revogada é ela que rege todos os fatos ocorridos durante a sua vigência. A lei, mesmo depois de revogada, continua produzindo efeitos. Isso é o que se chama de ultra-atividade da lei anterior.

As leis excepcionais ou temporárias, de qualquer modo, não se aplicam a fatos ocorridos antes delas, mesmo que ocorram em tempo anormal. Assim, mesmo que em relação ao tempo em que já havia a inundação, antes da lei nova os fatos ocorridos são regidos pela lei anterior.

A lei nova, como dito, não revoga a anterior (não há uma verdadeira sucessão de leis penais) porque não trata exatamente da mesma matéria, do mesmo fato típico (ou seja: é a anterior que deixa de ter vigência, em razão da sua excepcionalidade). Não há, portanto, um conflito de leis penais no tempo (na medida em que a lei posterior não cuida do mesmo crime definido na 61  Apud  CUNHA,  Rogério  Sanches.  Manual  de  direito  penal:  parte  geral.  Salvador:  JusPodivm,  2014,    p.  112.  62 GRECO, Rogério. Código penal comentado. 5. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2011, p. 15.

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anterior). Por isso é que não há nenhuma inconstitucionalidade no art. 3º do CP. A questão é de tipicidade, não de inconstitucionalidade.

Duas, portanto, são as características básicas das leis temporárias e excepcionais:

Autorrevogabilidade: consideram-se revogadas assim que encerrado o prazo (nas temporárias) ou a cessada a condição (nas excepcionais);

Utra-atividade: alcançam todos os fatos praticados na sua vigência, ainda que não mais subsista (seja pelo decurso de tempo de vigência, seja por não mais existirem as circunstancias que justificaram a sua criação). Se assim não fossem, exatamente por serem normalmente de curta duração, perderiam o caráter intimidatório, característica especial das leis penais incriminadoras – ver item 2.1.1.

Havendo, entretanto, norma específica disciplinando os efeitos da lei temporária ou excepcional, é ela que será aplicada aos casos concretos.

2.9. Eficácia espacial da lei penal (lei penal no espaço)

O estudo da lei penal no espaço tem por objeto descobrir qual é o âmbito territorial (o espaço) de aplicação da lei penal brasileira, bem como de que forma o Brasil se relaciona com outros países em matéria penal (tema que se coliga com a questão da soberania). Portanto, duas são as suas dimensões:

- âmbito de abrangência no espaço interno: crimes de competência da Justiça brasileira; - âmbito de abrangência no espaço internacional: regulado pelo direito penal internacional (conjunto de regras que disciplina o ius puniendi de um determinado Estado em suas relações com outros Estados - CP, arts. 5º a 9º).

O direito penal internacional faz parte do Direito público interno (está regulado pelo nosso CP e é aplicado pela Justiça brasileira) e não se confunde com o Direito internacional penal, que integra o Direito internacional e é voltado para a disciplina do ius puniendi aplicado por órgãos internacionais. Naquele são estabelecidas as regras acerca da lei a incidir nos casos de a conduta criminosa violar o ordenamento jurídico de mais de um país.

Aprofundando:  O  Tribunal  Penal  Internacional  é  o  órgão  jurisdicional  supranacional  máximo  do  Direito  internacional  penal.  Está  regido  pelo  Estatuto  de  Roma,  que  o  criou.  O  TPI  integra  o  Direito  internacional  penal.  Já  a  regra  do  art.  7.º  do  CP  que  manda  aplicar  a  lei  penal  brasileira  para  crimes  ocorridos  fora  do  Brasil  é  uma  regra  de  Direito  penal  internacional.  

Se se trata de contravenção penal ocorrida fora do Brasil (assim entendida, seja de acordo com nosso ordenamento jurídico, seja consoante o ordenamento jurídico estrangeiro) jamais terá incidência a lei brasileira (art. 2.º da LCP – Dec.-lei 3.688/41). O direito penal brasileiro não se interessa pelas contravenções penais ocorridas fora do Brasil.

A aplicação da lei penal no espaço não se confunde com o lugar do crime.

Explicando:   O   lugar   do   crime   encontra-­‐se   definido   no   art.   6º   do   CP,   que   prevê   que   “considera-­‐se  praticado  o  crime  no  lugar  em  que  ocorreu  a  ação  ou  omissão,  no  todo  ou  em  parte,  bem  como  onde  se  produziu   ou   deveria   produzir-­‐se   o   resultado”.   Nosso   Código   optou   pela   teoria   da   ubiquidade,   cujos  detalhamentos  serão  realizados  mais  adiante.  Definido  o  lugar  do  crime,  passa-­‐se  a  verificar  a  lei  penal  que  deve  ter  incidência.  

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2.9.1. Princípios que disciplinam a lei penal no espaço

A lei penal no espaço é regida por três princípios: (a) territorialidade relativa, (b) passagem inocente e (c) intraterritorialidade. Vejamos cada um deles:

2.9.1.1. Princípio da territorialidade relativa (ou derivada ou temperada)

De conformidade com o art. 5º, caput, do CP, “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”.

Todo crime ocorrido no Brasil, portanto, deve ser processado e punido no Brasil, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima ou do bem jurídico afetado. Tal regra, entretanto, como o próprio artigo antes transcrito menciona, admite exceção (“sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional”) É por conta de tais ressalvas que nossa legislação adotou o princípio da territorialidade relativa. Foram ressalvadas (pelo art. 5.º) as convenções, tratados e regras de Direito internacional. Como exceções (que derivam dos tratados e regras de Direito internacional) podem ser referidas as imunidades diplomáticas e o Tribunal Penal Internacional (TPI).

2.9.1.2. Princípio da passagem inocente

Uma outra exceção reside no princípio da passagem inocente: um navio estrangeiro está passando pelas águas brasileiras quando ocorre, dentro dele, um delito. É certo que o crime foi realizado em território nacional. Mas se não existe nenhum interesse brasileiro em jogo (se não foi morto um brasileiro, se não afetou nenhum bem jurídico brasileiro etc.) respeita-se o princípio da passagem inocente. Conclusão: aplica-se no caso a lei do país em que está registrado o navio – princípio da bandeira ou do pavilhão (não a lei brasileira).

2.9.1.3. Princípio da intraterritorialidade

Há crimes que ocorrem no Brasil e a eles não podemos (ou não iremos) aplicar a lei penal brasileira. Incide, nesse caso, ou o Direito de um país estrangeiro (é o caso dos embaixadores, v.g., ou do crime ocorrido dentro de embarcação ou aeronave pública estrangeira) ou o Direito internacional penal (TPI). Quando tem incidência o princípio da passagem inocente vale o direito penal do país de registro do navio ou avião. A isso se dá o nome de intraterritorialidade, que significa que a um crime ocorrido no Brasil vai ter incidência um direito penal que não é nosso, que será aplicado por juiz estrangeiro de acordo com o devido processo do respectivo país.

2.9.2. Território nacional

Do ponto de vista jurídico o conceito de território nacional compreende o solo, as águas interiores, o mar e o espaço aéreo correspondente sobre o qual o Brasil exerce sua soberania. Nosso mar territorial alcança 12 milhas (Lei 8.617/93). O território nacional, portanto, envolve o solo, as águas interiores, 12 milhas de mar e o espaço aéreo respectivo (leia-se: a camada atmosférica respectiva – cf. Lei 7.565/86).

Alguns conceitos importantes que possuem relação com o de território nacional:

Zona contígua: corresponde às outras 12 milhas posteriores às que integram o território nacional. A zona contígua já é alto-mar (já não é território brasileiro). Coluna atmosférica: é o espaço aéreo sobre o qual o Brasil exerce sua soberania.

Espaço cósmico: é o espaço sobre o qual nenhum país exerce soberania. É de uso comum de

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todos os países (cf. Tratado do Espaço Cósmico, da ONU; aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo 41, de 02.10.1968, e promulgado pelo Decreto 64.362, de 17.04.1969). Crime cometido por brasileiro nesse espaço é regido pela lei brasileira.

Quatro são as regras fundamentais sobre a extensão do território brasileiro - CP, art. 5.º, §§ 1.º e 2.º:

Embarcações e aeronaves públicas brasileiras (leia-se: embarcações ou aeronaves que se acham em missão oficial; missão oficial significa missão realizada em função do interesse público brasileiro): são consideradas território brasileiro, onde quer que se encontrem (segue-se aqui o princípio do pavilhão ou da bandeira).

Embarcações e aeronaves privadas brasileiras: são ditas como território brasileiro se se encontram no nosso território ou em alto-mar (observa-se aqui o princípio do pavilhão ou da bandeira). Embarcações e aeronaves privadas estrangeiras: são território brasileiro se se encontram dentro do território nacional (logo, enquanto se acham em alto-mar, não estão sujeitas às leis brasileiras; sujeitam-se ao país da sua bandeira. O chamado navio “pirata”, juridicamente, não existe: todo navio tem um registro, tem um país ao qual está vinculado; estando o navio em alto-mar, esse país é o competente para julgar qualquer crime que se comete dentro dele; e se o fato cometido não constitui crime, nenhuma lei penal terá incidência). Exemplificando:   O   denominado   “barco   ou   navio   do   aborto”,   que   pertence   a   uma   organização   não  governamental  holandesa  (Women  on  Waves),  continua  navegando  pelo  mundo  todo.  Em  29  de  agosto  de  2004  foi   impedido  de  se  aproximar  de  Portugal.  Cuidando-­‐se  de  embarcação  privada  e  estando  em  alto-­‐mar   (fora  das  12  milhas  marítimas  que   integram  o   território  dos  países),   todo  aborto  que  nele  é  realizado  deveria  ser  punido,  por  força  do  princípio  da  bandeira  ou  do  pavilhão,  pelo  país  da  bandeira  do  barco   (Holanda,  no   caso).  Ocorre  que  a  Holanda  não  pune  o  aborto  em  várias   situações  e   a   gestante  conta,  naquele  país,  com  grande  liberdade  de  atuação  (no  sentido  de  se  praticar  o  aborto).  Conclusão:  em  nenhum  país  pode-­‐se  punir  o  aborto  feito  no  interior  desse  navio,  quando  ele  se  encontra  em  alto-­‐mar   (ou   seja,   além   das   12   milhas).   Isso   é   o   que   decorre   das   normas   do   chamado   Direito   penal  internacional   (que  é  o  conjunto  de   regras  que  disciplinam  o  direito  de  punir  de  um  Estado   frente  aos  outros  Estados).  Também  não  é  o  caso  de  incidência  do  Direito  Internacional  Penal  (porque  a  situação  foge  da  competência  do  TPI.).    

Embarcações e aeronaves públicas estrangeiras: não fazem parte do território brasileiro (não se aplica a lei brasileira, mesmo que a embarcação ou aeronave esteja dentro do território nacional; aliás, nesse caso, estamos diante de mais uma hipótese de intraterritorialidade, isto é, o crime é cometido dentro do Brasil, mas a ele se aplica o Direito estrangeiro, por juiz estrangeiro e de acordo com o devido processo estrangeiro).

Hipótese excepcional: crime cometido a bordo de embarcações ou aeronaves privadas brasileiras, quando em território estrangeiro: em princípio, não se aplica a lei brasileira, salvo se o crime não for julgado no país em que foi concretizado (CP, art. 7.º, II, c). O fato é previsto como crime no país em que ocorreu, mas a Justiça local não agiu. Nesse caso, o Brasil representa o país onde se deu o crime. Aplica-se o princípio da representação. Em outras palavras, é uma hipótese de extraterritorialidade da lei penal brasileira (condicionada), fundada no princípio da representação.

Se o fato não é definido como crime no país em que ocorreu, sempre aplica a lei mais favorável (não há que se falar em punição no Brasil). Situação inversa é a que ocorre quando o crime é cometido em território nacional, mas dentro de um navio ou avião privado estrangeiro que apenas está passando pelo espaço brasileiro. Nesse caso tem incidência o princípio da passagem inocente, ou seja, aplica-se a lei do país onde registrado o navio ou avião (não a lei brasileira). É

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caso de intraterritorialidade (não incidência da lei brasileira, apesar de o crime ter sido cometido aqui).

Embaixadas estrangeiras: se situadas no Brasil são também território brasileiro (para fins penais). Logo, a qualquer crime ocorrido dentro de uma embaixada aplica-se a lei penal brasileira, salvo se o autor do crime goza de imunidade diplomática.

Os atos processuais que devam ser praticados dentro da embaixada dependem de prévia autorização do embaixador. Como se trata de embaixada estrangeira, pode ser que a lei desse país também tenha incidência (extraterritorialidade). E nesse caso o agente pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime (tudo dependendo da legislação e do interesse do país titular da embaixada), respeitando-se o direito de compensação (do art. 8.º do CP).

Crime ocorrido em embaixada brasileira: embaixada brasileira situada no estrangeiro é território estrangeiro (para fins penais). Mas pode também ter incidência a lei penal brasileira, de acordo com o princípio da extraterritorialidade condicionada. Crime ocorrido dentro dela está sujeito à incidência da lei penal brasileira (Extradição 579-1, rel. Min. Celso de Mello, DJU 09.06.1993, p. 11.448, e RT 539/399), pouco importando o país onde esteja tal embaixada localizada e pouco importando a nacionalidade do autor do crime (salvo se ele for estrangeiro e goza de imunidade diplomática). É hipótese de extraterritorialidade condicionada. Nesse caso, tanto pode incidir a lei brasileira como a estrangeira ou ambas (eventual dupla condenação é atenuada com a regra do art. 8.º do CP).

Justiça federal: Os crimes cometidos a bordo (no interior) de navios ou aviões que se encontram dentro da extensão territorial brasileira são da competência da Justiça Federal. Mais precisamente do juízo (territorialmente falando) em que “tocou” o navio ou avião após o delito ou de onde ele partiu (quando teve como destino um país estrangeiro). Não importa se o avião encontra-se ou não no solo, desde que o delito tenha sido praticado a bordo dele (dentro dele), a competência é da Justiça Federal, de acordo com a Primeira Turma do STF (RHC 86.998-SP, rel. Min. Cármen Lúcia, j. 13.02.2007).

[...]

2.10. Lei penal em relação às pessoas (eficácia pessoal da lei penal) - CP, art. 10

Por força do princípio da generalidade, a lei penal vale para todas as pessoas. A norma penal primária (a que estabelece os comandos normativos) se dirige a todos (imputáveis ou inimputáveis, maiores ou menores etc.). Mas, em virtude da relevância das funções ou das atividades que exercem, algumas delas gozam de prerrogativas funcionais (ou profissionais).

Embora muito questionadas no Estado republicano, continuam vigentes no nosso país inúmeras prerrogativas funcionais (ou profissionais) (que são tradição das aristocracias). Tais prerrogativas não se confundem com privilégios pessoais. Aquelas são conferidas não à pessoa, sim, à função ou atividade que exercem. Tanto isso é verdadeiro que elas não podem abrir mão da prerrogativa.

O privilégio pessoal é conferido, em regra, nos regimes monárquicos: os reis e rainhas (bem como suas famílias) desfrutam de privilégios e imunidades que são pessoais (Espanha e Inglaterra, v.g.), como, p.e., de não serem processados criminalmente. E se cometerem algum crime fora do seu país? Como gozam de imunidade diplomática, devem responder por ele no seu país de origem (onde receberão o tratamento previsto na Constituição: imunidade total ou parcial, conforme o caso).

As imunidades e prerrogativas podem ser: (a) diplomática; (b) do Presidente da República; (c)

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dos Governadores; (d) dos Prefeitos; (e) dos advogados; (f) dos parlamentares e (g) dos vereadores.

2.10.1. Imunidade diplomática

A imunidade diplomática consiste na prerrogativa funcional de responder no seu país de origem pelo delito praticado no Brasil.

Todos os delitos, não importando a sua natureza, acham-se abrangidos pela imunidade diplomática (nos termos estabelecidos em cada tratado). Também não importa a natureza da pena que o país de origem aplicará (prisão, prisão perpétua etc.).

Quando o agente vai responder no seu país de origem, o Brasil não o está extraditando nem entregando. O agente diplomático naturalmente está sujeito à jurisdição do seu país. A isso se dá o nome de intraterritorialidade (crime ocorrido no Brasil, mas que é processado e punido em outro país, pela Justiça do outro país e de acordo com sua legislação).

Caso o fato cometido no Brasil não encontre tipicidade nesse país, por nada responderá o agente (visto que sua punibilidade é regida pela legislação do seu país de origem). Ex.: embaixador da Holanda é surpreendido em posse de droga para consumo pessoal. Deveria ser processado no seu país de origem. Considerando-se que na Holanda essa posse não é incriminada, por nada responde. Não pode, nesse caso, o Brasil substituir a Holanda. Aqui não vale o princípio da representação. A solução é a impunidade (respeitando-se integralmente a imunidade diplomática).

A base internacional da imunidade diplomática reside fundamentalmente na Convenção de Viena, aprovada pelo Decreto legislativo 103/64. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas entrou em vigor em 24 de abril de 1964(art.51.º). No Brasil ela ganhou valor jurídico por força do Decreto 56.435/65.

Usufrui da imunidade diplomática (1) chefe de governo ou de Estado estrangeiro, sua família e membros de sua comitiva (quanto ao grau de parentesco que é beneficiado com a imunidade depende de cada tratado); (2) embaixador e sua família; (3) funcionários estrangeiros do corpo diplomático e sua família; (4) funcionários das organizações internacionais (ONU, OEA etc.) quando em serviço.

E o cônsul? Depende do teor de cada Tratado (se houver previsão expressa sim, do contrário não). De qualquer maneira, o cônsul só desfruta de imunidade (quando prevista no tratado) em relação aos crimes funcionais. Como se vê, sua imunidade não é tão ampla quanto a dos embaixadores (etc.), que contam com imunidade total (ou seja, qualquer que seja o delito cometido no Brasil, irão por ele responder no seu país de origem; não importa se o crime é culposo ou doloso).

A doutrina clássica costuma falar que a imunidade diplomática é causa pessoal de isenção de pena. No entanto, mais tecnicamente, ela é causa impeditiva da punibilidade (do ius puniendi, isto é, não nasce para o país em que o delito foi cometido o direito concreto de punir o seu autor, que só será responsabilizado no seu país de origem). A topografia correta desse assunto dentro do Direito penal, portanto, é a da punibilidade abstrata (ou seja: é uma questão relacionada com a ameaça de pena).

O fato praticado sob imunidade diplomática (tipificado no Brasil como delito) simplesmente aqui não é punível, mesmo que se trate de ataque contra o Presidente da República do Brasil. É um fato não ameaçado com pena no Brasil (ou seja: não é punível no nosso país; será punido, se o

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caso, no país de origem do agente que desfruta de imunidade diplomática).

Ao crime cometido na sede da embaixada estrangeira no Brasil aplica-se a lei penal brasileira, salvo se o autor do crime goza de imunidade diplomática. A sede da embaixada estrangeira é território brasileiro para fins penais, todavia, lhe é reconhecida certa inviolabilidade nas relações com autoridades brasileiras (não pode ser objeto de busca, requisição etc. sem autorização do embaixador ou de quem de direito).

Quem tem direito à imunidade diplomática está excluído da jurisdição penal do país em que se deu o delito (responde por ele no seu país de origem). E não pode da imunidade renunciar porque não se trata de privilégio pessoal, sim, de prerrogativa funcional.

O fato de o crime cometido pelo embaixador (ou qualquer outra pessoa que desfrute da imunidade diplomática) não ser punível no Brasil não significa que, surpreendido no momento do delito, nada possa ser feito contra ele. Se um embaixador é visto disparando arma de fogo contra alguém se pode capturá-lo.

Aprofundando:   A   prisão   em   flagrante   possui   quatro   momentos:   captura,   condução   coercitiva   à  presença  da  autoridade,  lavratura  do  auto  de  prisão  em  flagrante  e  recolhimento  ao  cárcere.  A  captura  (momentânea,  estritamente  necessária  para   impedir  o  prosseguimento  do  delito)  não  está  vedada  em  relação  ao  agente  diplomático.  Mas  contra  ele  não  se  lavra  auto  de  prisão  em  flagrante  e  tampouco  ele  será  conduzido  à  presença  da  autoridade  policial.  

Impõe-se evitar que ele prossiga no seu ato criminoso. Só não se lavra o auto de prisão em flagrante nem será efetuado qualquer tipo de recolhimento prisional. Mas tudo é registrado para o efeito de se enviar provas ao seu país de origem.

[...]

2.10.7. Renúncia à inviolabilidade penal ou a qualquer outra imunidade

A renúncia à inviolabilidade penal ou a qualquer outra imunidade é absolutamente impossível. Não se trata de privilégio pessoal, sim, de prerrogativa funcional e institucional. (STF, RDA 203, p. 221; STF, Pleno, Inq. 510-DF, Celso de Mello, DJU 19.04.1991, p. 4.581).

As imunidades dos parlamentares nacionais valem automaticamente para os deputados estaduais (logo, já não se exige licença da Assembleia Legislativa para se processar deputado estadual). Essa licença, aliás, só existe em relação ao Governador.

A fim de assegurar o pleno funcionamento (livre) do Parlamento, em regra as imunidades (leia-se: inviolabilidade penal, imunidades processual e prisional e prerrogativas) dos parlamentares subsistem mesmo durante o estado de sítio, salvo se suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso (CF, art. 53, § 8.º).

[...]

2.10.12. Consequências jurídicas da inviolabilidade do deputado e senador e a do vereador

Uma vez configurada a inviolabilidade penal do deputado ou senador ou a do vereador (leia-se: se o fato está legitimamente nela amparado), não há que se falar em tipicidade penal. Por consequência, não é possível a instauração de qualquer investigação (parlamentar ou penal), não se mostra pertinente o indiciamento, nem a prisão, muito menos se admite qualquer processo

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criminal. Em outras palavras: presentes todos os requisitos da inviolabilidade e não constatado nenhum desvio ou abuso, contra o deputado ou senador ou contra o vereador nenhuma atividade inerente à persecutio criminis está autorizada (em relação ao vereador cf. STF, HC 74.201-7-MG, 1.ª T., rel. Celso de Mello, j. 12.11.1996, v.u., DJU 13.01.1996, p. 50.164).

A jurisprudência do STF (enfocando a inviolabilidade parlamentar) é indiscutível nesse sentido: Ap 292-DF (RTJ 135/489), Inq. (QO) 396-DF (RTJ 131/1.039), Inq. 390-RO (RTJ 129/970), Inq. 779-RJ (RTJ 167/29), Inq. 1.328 (RTJ 166/133), Inq. (QO) 1.486-BA, Plenário, rel. Octavio Gallotti, j. 02.02.2000, Informativo 176.

Cabe inclusive habeas corpus para trancar (por falta de justa causa) qualquer iniciativa acusatória que envolva ato protegido pela inviolabilidade penal (STJ, HC 8518-SP, Vicente Leal, DJU 20.09.1999, p. 87).

Caso  concreto:  Consta  no  HC  22555/SP,  de  2004,  Rel.  Min.  JOSÉ  ARNALDO  DA  FONSECA:  “Manifestou  o  paciente  opinião  em  razão  de  exercício  de  mandato  de  deputado  estadual,  estando  sob  o  respaldo  da  inviolabilidade  prevista  no  art.  53,  da  Constituição  Federal.  Tal  conduta,  constitucionalmente  permitida,  produz   resultado   atípico.   Deste   modo,   o   curso   de   ação   penal   privada   intentada   contra   o   paciente  importa   constrangimento   ilegal   que   pode   ser   obstado   pela   concessão   de   habeas   corpus.   Ordem  concedida  para  trancar  a  ação  penal.”  

Constatada essa inviolabilidade, impõe-se a rejeição de qualquer peça acusatória (STF, Inq. 810-DF, Pleno, Néri da Silveira, DJU 06.05.1994, p. 10.484), já que a conduta é atípica.

Nem durante o exercício do mandato nem depois de cessado esse exercício pode derivar qualquer consequência penal ao parlamentar ou ao vereador. Leia-se: a inviolabilidade penal não tem limite temporal. Mesmo após o término da legislatura continuam seus efeitos inibitórios de qualquer ato persecutório contra o deputado ou senador ou, acrescente-se, vereador.

Fato acobertado pela inviolabilidade penal e divulgado pela imprensa não configura, por isso mesmo, ilícito punível: STF, Inq. 1.201-7, DJU 11.09.1996, p. 32.791.

2.11. Tempo do crime e lugar do crime

No momento de se identificar qual a lei penal aplicável ao caso concreto, há que se estabelecer, anteriormente, qual o tempo do crime e o seu lugar de ocorrência. Assim, por exemplo, se o agente iniciou o crime um dia antes de completar 18 anos, mas a sua consumação se deu no dia seguinte, incidirão as normas penais? Se o crime teve início no território brasileiro e o seu resultado foi alcançado fora do nosso país, qual norma terá aplicação, a brasileira ou a estrangeira?

Para solucionar essas e outras questões da mesma natureza, foram criadas normas específicas, previstas no Código Penal, conforme veremos na sequência, a começar pelas que regulam o tempo do crime.

2.11.1. Tempo do crime

a) teorias sobre o tempo do crime

Existem três teorias acerca do tempo (ou momento) do crime:

- teoria da atividade: para ela o momento do crime é o da ação ou omissão – ou seja: momento da conduta;

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- teoria do resultado: o momento do crime é o do resultado naturalístico;

- teoria mista ou da ubiquidade: momento do crime é o da ação ou omissão ou – indistintamente – o do resultado.

Nosso Código Penal adota a teoria da atividade (art. 4º: “Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”). Assim, para o efeito da responsabilização penal, o que importa é o momento da conduta (da ação ou da omissão), não o do resultado.

b) menoridade e tempo do crime

Quem pratica a conduta (comissiva ou omissiva) com menos de 18 anos (ou seja, quando era inimputável), só pode ser responsabilizado pelas medidas do ECA – Lei 8.069/90. Portanto, agente com 17 anos que dispara contra a vítima, que vem a morrer mais de um ano depois, só responde pelo ECA. O que importa, para fins de responsabilização penal, é a data do fato (da conduta), não a do resultado (morte) (CP, art. 4º).

Na hipótese de crime cometido no dia do 18.º aniversário, o agente responde criminalmente, pois só são inimputáveis (em razão da idade) os menores de 18 anos, ou seja, quem tem menos de 18 anos (na data da conduta). Logo, a partir do primeiro segundo do dia do 18.º aniversário, já é penalmente imputável, não importando o horário exato do nascimento do agente.

c) fuso horário ou horário de verão

Considera-se para fins penais o horário oficial do momento e do local da infração.

Logo após a meia noite (tendo em conta o horário do local dos fatos) do dia em que o agente faz dezoito anos já é penalmente imputável (independentemente de ser ou não horário de verão ou local onde haja fuso horário).

Crime cometido no momento em que os relógios estão sendo adiantados ou atrasados no horário de verão: o que importa é o exato momento do crime (deve-se levar em conta a hora oficial do local do fato nesse momento).

d) Crime permanente e tempo do crime

Quem inicia um crime permanente (que é aquele cuja consumação se prolonga no tempo. Ex.: sequestro, art. 148, CP) quando tem dezessete anos e só cessa a ação delituosa quando já completou a maioridade, responde criminalmente. Por quê? Porque quando fez dezoito anos continuou praticando o delito, isto é, manteve a situação de (permanente) ofensa ao bem jurídico, inclusive no tempo em que conquistou a maioridade penal. No exemplo do sequestro, enquanto a liberdade da vítima for restringida, o crime está em plena consumação, visto que não há interrupção da conduta.

e) Crime habitual e tempo do crime

Em se tratando de crime habitual (que é aquele que demanda reiteração da conduta para que haja lesão ao bem jurídico penalmente tutelado, ou seja, apenas com várias condutas o crime será cometido. Ex.: exercício ilegal da medicina, CP, art. 282) tendo alguns fatos sido cometidos quando menor e outros quando maior, o agente responde normalmente pelo crime praticado, desde que tenha havido reiteração da conduta quanto o agente já era maior, desconsiderando-se, para efeitos penais, os fatos que tenham sido cometidos quando ainda não tinha alcançado 18 anos, respondendo apenas pelo ECA.

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f) Crime continuado e tempo do crime

No crime continuado há o cometimento de dois ou mais crimes da mesma espécie, através de várias condutas. Os crimes cometidos devem estar ligados pelas seguintes condições: tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, conforme determina o artigo 71, do CP. Em outras palavras, os crimes praticados posteriormente ao primeiro crime, são considerados subsequentes, em razão das peculiaridades apresentadas.

Assim, se dentro do contexto de crime continuado o sujeito pratica dois furtos quando menor (com 17 anos, 11 meses e 15 dias) e um terceiro quando maior (com 18 anos e 1 dia), responderá pelos três delitos? A solução penal é a seguinte: os dois primeiros furtos são regidos pelo ECA, enquanto ao terceiro incide o CP. Há uma cisão da unidade ficta (que é respeitada para o fim da fixação da pena) que constitui o crime continuado.

Logo, desfaz-se o crime continuado. O sujeito responde penalmente só por um fato (cometido quando maior). Uma vez cumprida a pena do furto, ainda poderá eventualmente responder pelos atos infracionais cometidos quando menor, desde que não tenha ultrapassado a idade de vinte e um anos.

Aprofundando:  O  art.  2º  do  ECA  considera  criança,  para  os  efeitos  desta  Lei,  a  pessoa  até  doze  anos  de  idade   incompletos,  e  adolescente  aquela  entre  doze  e  dezoito  anos  de   idade.  Em  seu  parágrafo  único  prevê   que   “nos   casos   expressos   em   lei,   aplica-­‐se   excepcionalmente   este   Estatuto   às   pessoas   entre  dezoito  e  vinte  e  um  anos  de  idade”.

g) Crime cometido pela rede de internet

Sendo crime permanente, em qualquer momento o delito está “sendo” realizado. Se ele perdura quando o agente alcança os dezoito anos, responde pelo CP. E se o crime for instantâneo? Vale a hora e o local da infração. E se o agente envia um e-mail “criminoso”? Vale a hora e o local da publicidade do seu conteúdo (ou seja: vale o momento em que alguém dele tomou conhecimento, porque é nesse momento que é afetado o bem jurídico).

2.11.2. Lugar do crime

a) Teorias sobre o lugar do crime

Três são as teorias acerca do lugar do crime:

- da atividade: considera-se praticado o crime no lugar em que o agente realizou a conduta, ou seja, praticou a ação ou omissão;

- do resultado: considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu o resultado naturalístico, isto é, no lugar em que se deu a consumação do crime;

- da ubiquidade: considera praticado o crime tanto no lugar da conduta quanto do resultado. Sendo assim, o lugar do crime será o lugar em se deu a conduta ou o lugar em que ocorreu o resultado.

Essa última (ubiquidade) é a teoria adotada pelo CP (art. 6.º: “Considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”.)

Se o crime “tocar” o território nacional, incide a lei penal brasileira. Mas esse “tocar” não significa toque físico com o solo. O delito pode “tocar” o solo brasileiro ou suas águas internas

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ou seu mar (doze milhas) ou seu espaço aéreo. Qualquer contato do delito com o território brasileiro (juridicamente considerado) já permite a incidência da lei penal brasileira.

Exemplificando:  Crime  cometido  dentro  do  território  nacional,  a  bordo  de  avião,  que  apenas  sobrevoou  o  país,   sem  pousar:   aplica-­‐se,   em   tese,   a   lei  penal  brasileira   (RJTFR   51/46),  porque  o   crime  “tocou”  o  território  nacional.

O “tocar” o território nacional, de outro lado, exige ato de execução ou consumação no Brasil. Se o crime deveria produzir seu resultado no território brasileiro também incide a lei brasileira, porque isso também “toca” nossa soberania (“toca” no sentido jurídico, não físico – o sujeito inicia o crime na Argentina, mas não alcança a consumação que deveria ocorrer no Brasil). A prática de atos preparatórios ou mesmo ulteriores à consumação (exaurimento) não define a aplicação da lei penal brasileira.

b) Algumas importantes distinções

Crime a distância x crimes plurilocal: chama-se crime a distância (ou de espaço máximo) o que envolve dois países (iniciado em um e consumado em outro, v.g.). O crime a distância distingue-se do crime plurilocal, o qual envolve duas ou mais comarcas dentro do nosso país (disparo ocorrido em Piracicaba e morte em Araraquara, v.g.).

Crime em trânsito x crime de trânsito: no crime em trânsito dois países estão envolvidos (exemplo: a cocaína sai da Colômbia, passa por Mato Grosso ou Mato Grosso do Sul e termina em Miami). Crime em trânsito não se confunde com crime de trânsito (ou de circulação ou automobilístico), que é o crime cometido em via pública, envolvendo veículo automotor e ao qual se aplica o Código de Trânsito Brasileiro (CTB – Lei. 9.503/97). Crime de trânsito x crime no trânsito: morte causada por um acidente de bicicleta é um crime “no” trânsito, mas não um crime “de” trânsito, aplicando-se nesse caso não o CTB, mas sim o CP; crime cometido com dolo eventual mediante uso de veículo automotor: é crime “no” trânsito, não “de” trânsito – aplica-se o CP, não o CTB). Se a bicicleta tem motor e sua circulação é regida pelo CTB, aplica-se, evidentemente, o CTB. Carro que foi deixado numa descida e desgovernado vem a atingir alguma pessoa: é crime “no” trânsito, não “de” trânsito (porque não foi cometido na direção de veículo automotor).

2.12. Disposições finais sobre a aplicação da lei penal

2.12.1. Contagem de prazo (art. 10 do CP)

Os prazos, no âmbito criminal, são penais ou processuais.

O prazo de cumprimento de uma pena, v.g., pertence ao direito penal. Aliás, os prazos previstos no Código penal são, em regra, prazos penais.

O prazo recursal faz parte do Direito processual. Todos os prazos relacionados diretamente com a prática de atos processuais, em regra, são prazos processuais (prazo para denúncia, prazo para alegações finais, prazo para defesa preliminar, prazo para a resposta da defesa etc.).

2.12.2. Contagem do prazo penal e contagem do prazo processual

No prazo penal computa-se o dia do começo (CP, art. 10), pouco importando a hora do início.

No prazo processual não se computa o dia do início, e sim o do vencimento (CPP, art. 798, § 1º).

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O prazo penal é improrrogável. Mesmo que vença num sábado, domingo ou feriado, não há possibilidade de prorrogação.

O prazo processual, em regra, é prorrogável (prazo recursal, v.g.). Há exceções. Ex.: o prazo decadencial não é prorrogável, conforme se verá a seguir.

2.12.3. Prazo decadencial e prazo prescricional

O prazo decadencial, na medida em que afeta o ius puniendi, é um prazo processual com reflexos penais. É processual porque está previsto no CPP e, ademais, porque diz respeito à prática de um ato processual. Mas conta com reflexos penais porque é causa extintiva da punibilidade. Logo, tem o mesmo tratamento do prazo penal, ou seja, conta-se o dia do início.

O prazo prescricional é indiscutivelmente um prazo penal. A diferença que existe entre prazo decadencial (para a propositura de uma queixa, v.g., que é de seis meses, contados do dia em que se sabe quem foi o autor da infração) e o prazo prescricional, é que aquele (o decadencial) não se suspende, não se interrompe e não se prorroga. Este, ao contrário, pode ser suspenso ou interrompido.

O direito de representação, por exemplo, ou de queixa, pode ser exercido, em regra, no prazo de seis meses, contados do dia em que se sabe quem foi o autor da infração.

Conceituando:  1)  Direito  de  representação  é  aquele  conferido  ao  ofendido  ou  ao  representante  legal  do  ofendido   para   que   autorize   o   titular   da   ação   penal   pública   condicionada   (o   Ministério   Público)   a  promover   a   ação   penal   em   face   do   sujeito   ativo   do   delito.   Trata-­‐se   de   verdadeira   condição   de  procedibilidade,  que  expressa  a  vontade  do  ofendido  ou  do  representante  legal  daquele  em  autorizar  o  titular  da  ação  penal  a  promovê-­‐la  em   face  do  agente.  2)  Queixa  é  o  modo  pelo  qual   se   inicia  a  ação  penal  privada.  A  queixa   conterá,  nos   termos  do  art.   41,  do  CPP,   “a  exposição  do   fato   criminoso,   com  todas   as   suas   circunstâncias,   a   qualificação   do   acusado   ou   esclarecimentos   pelos   quais   se   possa  identificá-­‐lo,  a  classificação  do  crime  e,  quando  necessário,  o  rol  das  testemunhas.”  Em  síntese,  trata-­‐se  da  peça  inicial  acusatória  da  ação  penal  privada.  

Se o fato se deu, por exemplo, no dia 5 de abril, computa-se o dia do início. Logo, o prazo decadencial acontecerá no dia 4 de outubro, às 24 horas. Mesmo que se trate de um sábado ou domingo ou feriado, o prazo decadencial não se prorroga. Tanto a representação quanto a queixa devem ser oferecidas dentro do prazo (não há prorrogação). Se se trata de um domingo, por exemplo, deve-se fazer a representação junto à autoridade policial e, se se trata de queixa, deve-se procurar o plantão judicial ou o juiz da comarca ou o escrivão e fazer com que a inicial tenha chegado ao conhecimento de uma autoridade ou seu agente (do contrário, perde-se o prazo). A não prorrogação do prazo decorre do mesmo motivo mencionado acerca do prazo prescricional, mencionado acima. Há aqui (como também lá) um instituto processual penal, mas com reflexos penais (interferindo direta ou indiretamente no direito à liberdade).

2.12.4. Regras sobre a contagem do prazo penal:

Ha três regras fundamentais sobre a contagem do prazo penal devem ser observadas, além daquela que determina que se computado o dia do início. São elas:

- o prazo penal sempre vence às 24 horas;

- os dias, os meses e os anos são contados pelo calendário comum, que é o gregoriano (CP, art. 10);

- a pena fixada em meses ou em anos não pode ser estabelecida em dias corridos (30 dias ou 365

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dias, por exemplo). Para fins penais nem sempre o mês tem 30 dias ou o ano tem 365 dias (RT 504/358).

O prazo de um dia vence às 24 horas (ou seja, o dia compreende o período que vai da meia-noite até à meia-noite seguinte). Prazo de cinco dias: computa-se o dia do início e termina no quinto dia, à meia noite. Prazo que começa dia 10 termina no dia 14, à meia-noite. Não importa a hora em que começou a contagem.

Quem se apresenta à prisão às 23h30 ganha um dia de prisão, ou seja, se o sujeito se apresentou ao cárcere às 23h30 do dia 10, computa-se tal dia normalmente. Já é um dia de cumprimento de pena de prisão.

O prazo de um mês vence às 24 horas do dia precedente ao do início, no mês seguinte (em regra), pouco importando se o mês tem 28, 29, 30 ou 31 dias. Exemplos: prisão iniciada em 23 de dezembro termina no dia 22 de janeiro, às 24 horas; prisão de um mês iniciada dia 6 de maio termina no dia 5 de junho, à meia noite. Mas cuidado: prisão iniciada em 1.o de fevereiro termina dia 28 ou 29 de fevereiro, às 24 horas (conforme a quantidade de dias que o mês de fevereiro terá no ano da prisão). A essa mesma conclusão se chega quando a pena de um mês inicia-se no dia 31 de janeiro, que vence no dia 29 ou 28 de fevereiro (conforme o ano). O agente cumpre inclusive o último dia do mês. De qualquer modo, fevereiro é o mês mais favorável ao réu para o cumprimento da pena de um mês. Note-se que no exemplo dado o prazo de um mês de prisão terminou no próprio mês de início (porque começou dia primeiro).

O prazo de um ano vence às 24 horas do dia precedente ao do início, no ano seguinte, em regra: pena de um ano iniciada dia 15 de maio termina dia 14 de maio do ano seguinte, à meia noite. Mas cuidado: um ano de prisão iniciada em 1.o de janeiro termina no dia 31 de dezembro do mesmo ano; se iniciada no dia 31 de dezembro, termina no dia 30 de dezembro do ano seguinte.

2.12.5. Frações não computáveis na pena (art. 11 do CP)

Por força do art. 11 do CP, “desprezam-se, nas penas privativas de liberdade e nas restritivas de direitos, as frações de dia, e, na pena de multa, as frações de cruzeiro”.

As frações de dia são as horas. O Código não estabelece pena em horas. Cinco dias mais metade daria (pela matemática) sete dias e meio (leia-se: sete dias e doze horas). O Código manda, entretanto, desprezar as horas. Logo, a pena final será de sete dias.

As frações de cruzeiro, leia-se (numa interpretação progressiva), de real, são os centavos. O Código não quer pena em centavos, que devem ser eliminados. Uma pena de R$ 100,55, no final, depois de desprezados os centavos, resulta em R$ 100,00.

Relembrando:  Interpretação  progressiva  é  a  que  se  utiliza  dos  progressos  da  cultura,  da  sociedade,  dos  recursos   tecnológicos,   das   ciências,   da  medicina,  da   computação  etc.  O   fundamento  da   interpretação  progressiva  ou  evolutiva  ou  adaptativa  é  o  princípio  dinâmico,  ancorado  na  necessidade  de  que  a  lei  seja  devidamente  interpretada  e  aplicada.

A jurisprudência criou, ainda, uma terceira regra: devem ser desprezadas as frações de um dia-multa. Ex.: dez dias-multa mais um terço: pela matemática daria 13,333333... Desprezando-se a fração, resultam 13 dias. As frações de um dia-multa são sempre desprezadas, ainda que passem da metade da fração de um dia. Ex.: imagine-se uma fração de 17,88888888. Mesmo assim, arredonda-se para 17, não para o mais (18).

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2.12.6. Aplicação das regras gerais do CP (art. 12 do CP)

Consoante o disposto no art. 12 do CP, “As regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”.

Em virtude do princípio da especialidade, se a lei especial dispõe de modo diverso, vale a lei especial.

Exemplificando:  O  CP  pune  a  tentativa  de  crime  (CP,  art.  14,  II  e  seu  parágrafo  único),  mas  semelhante  regra   foi   vetada   pelo   art.   4.º   da   Lei   das   Contravenções   Penais   (Dec.-­‐lei   3.688/41).   Logo,   nas  contravenções,  vale  a  regra  especial.    

Não se pode olvidar que as regras gerais do CP não são somente as que se encontram do art. 1.º ao art. 120 (parte geral). Há regras gerais sobre determinados assuntos também na parte especial. Ex.: possibilidade de perdão judicial nos crimes de lesão corporal e de homicídio culposos (arts. 129, § 8º e 121, § 5º, do CP); conceito de funcionário público (art. 327 do CP).

A aplicação do princípio da especialidade pressupõe que as duas normas (tanto a geral como a especial) estejam em vigor. Se a norma posterior revoga a anterior, o princípio incidente não é o da especialidade, sim, o da posterioridade.

Exemplificando:  Foi  o  que  ocorreu,  segundo  nosso  ponto  de  vista,  com  a  Lei  11.464/2007,  que  derrogou  o  art.  2.º,  II,  da  Lei  8.072/1990,  para  permitir  liberdade  provisória  nos  crimes  hediondos,  incluindo-­‐se  o  tráfico   ilícito   de   entorpecentes.   Conclusão:   por   força   do   princípio   da   posterioridade   cabe   liberdade  provisória  também  nesse  delito,  tendo  sido  derrogado  o  art.  44  da  Lei  11.343/2006,  no  ponto  em  que  proibia  liberdade  provisória.