Pecas Breves No Teatro Escrito

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Palavras-chave: Natália Correia, Escrita de Teatro, Literatura Dramática Portuguesa do séc. XX, Poesia e Drama, Sátira política, Teatro, História e Mito. Keywords: Natália Correia, Playwriting, Dramatic Portuguese Literature of the twentieth century, Drama and Poetry, Political satyr-play, Theatre, History and Myth. Entre 1952 e 1989, Natália Correia (1923-1993) produz uma obra dramatúrgica que por certo lhe concede o título do mais original e audacioso dramaturgo português da segunda metade do século XX. Lugar de experimentação híbrida de formas, e não obstante o silenciamento cénico (e também editorial) de que é vítima durante o sala- zarismo (e não só), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma impressionante diversidade de registos genológicos e estéticos: da fábula surrealista, infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) ou adulta (Sucubina ou a Teoria do Chapéu, 1952), ao absurdismo em sátira política (O Homúnculo, 1965); do drama existencial pós-simbo- lista (D. João e Julieta, 1957-58) ao mitodrama filosófico ou auto-referencial (O Pro- gresso de Édipo, 1957, e Comunicação, 1959); do teatro épico-catártico pós-brechtiano e pós-artaudiano (A Pécora, 1967 e O Encoberto, 1969) ao teatro histórico-mítico, que colige o pathos romântico com o estranhamento da alegoria barroca (Erros Meus Má Fortuna, Amor Ardente, 1980); do libreto operático sociocrítico (Em Nome da Paz, 1973, com música de Álvaro Cassuto) ao drama antropológico e arquetípico (Auto do Solstício do Inverno, 1989); do texto para cantata cénica (O Romance de D. Garcia, 1969, com música de Joly Braga Santos), ao teatro versificado ou em prosa que revisita temas da tradição literária e do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai à Guerra, e D. Carlos de Além-Mar, três peças de datação incerta). Peças Breves no Teatro Escrito de Natália Correia Armando Nascimento Rosa Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

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  • Palavras-chave: Natlia Correia, Escrita de Teatro, Literatura Dramtica Portuguesa do

    sc. XX, Poesia e Drama, Stira poltica, Teatro, Histria e Mito.

    Keywords: Natlia Correia, Playwriting, Dramatic Portuguese Literature of the twentieth

    century, Drama and Poetry, Political satyr-play, Theatre, History and Myth.

    Entre 1952 e 1989, Natlia Correia (1923-1993) produz uma obra dramatrgica que por certo lhe concede o ttulo do mais original e audacioso dramaturgo portugus da segunda metade do sculo XX. Lugar de experimentao hbrida de formas, e no obstante o silenciamento cnico (e tambm editorial) de que vtima durante o sala-zarismo (e no s), o teatro escrito nataliano evolui e viaja por uma impressionante diversidade de registos genolgicos e estticos: da fbula surrealista, infanto-juvenil (Dois Reis e um Sono, 1958) ou adulta (Sucubina ou a Teoria do Chapu, 1952), ao absurdismo em stira poltica (O Homnculo, 1965); do drama existencial ps-simbo-lista (D. Joo e Julieta, 1957-58) ao mitodrama fi losfi co ou auto-referencial (O Pro-gresso de dipo, 1957, e Comunicao, 1959); do teatro pico-catrtico ps-brechtiano e ps-artaudiano (A Pcora, 1967 e O Encoberto, 1969) ao teatro histrico-mtico, que colige o pathos romntico com o estranhamento da alegoria barroca (Erros Meus M Fortuna, Amor Ardente, 1980); do libreto opertico sociocrtico (Em Nome da Paz, 1973, com msica de lvaro Cassuto) ao drama antropolgico e arquetpico (Auto do Solstcio do Inverno, 1989); do texto para cantata cnica (O Romance de D. Garcia, 1969, com msica de Joly Braga Santos), ao teatro versifi cado ou em prosa que revisita temas da tradio literria e do romanceiro (A Juventude de Cid, A Donzela que Vai Guerra, e D. Carlos de Alm-Mar, trs peas de datao incerta).

    Peas Breves no Teatro Escrito de Natlia Correia

    Armando Nascimento Rosa

    E s c o l a S u p e r i o r d e T e a t r o e C i n e m a d o I n s t i t u t o P o l i t c n i c o d e L i s b o a

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    As evases e invases de eros, os fascnios e as prises do tempo histrico, e as utopias do humano projectadas na cena, sero mapa motivante para um percurso pela dramaturgia nataliana dita e (at agora) indita, que no presente texto se circuns-creve a trs obras dramticas capazes de se reverem na designao de formas breves: O Progresso de dipo; Comunicao; e O Homnculo.

    Testemunha subversiva do meio sculo de ditadura em que Portugal viveu, Natlia dramaturga bem um caso exemplar dos efeitos castradores que a censura infl igiu numa arte pblica como a teatral, e que em Portugal carrega, alm do mais, o estigma histrico de trs sculos de Inquisio. Enquanto autora exilada do palco, a sua persistncia na forma dramtica resulta de uma vocao teatral inadivel que, por isso mesmo, no deixar de denunciar a asfi xia criativa a que estiveram votados os dra-maturgos portugueses mais representativos deste extenso perodo, de entre os quais se destaca Bernardo Santareno (1920-1980). No domnio conjectural, decerto teria Natlia escrito mais ainda para a cena, caso tivesse recebido a motivao de assistir s suas obras primeiras, para adultos, encenadas data de criao escrita. Uma hiptese que surge inevitvel, ao apreciarmos a diversidade genolgica das peas teatrais que Natlia vai compondo para o eco morto da gaveta ou, na melhor das hipteses, para a cumplici-dade conspiratria da leitura partilhada, nesse espao de tertlia cultural e resistncia poltica ao salazarismo em que se constitui a sua casa de Lisboa, nas dcadas de 50 e 60; lugar onde, por exemplo, se leva cena privada, pela primeira vez em Portugal, o Huis Clos de Sartre, sob a direco de Carlos Wallenstein, em cujo elenco se integra a escritora anfi tri, a par do amigo e dramaturgo Manuel de Lima (1918-1976), que com ela traduz a pea do fi lsofo francs (1950). Nome relevante da esttica surrealista no teatro portugus, Manuel de Lima ser ainda prefaciador da traduo portuguesa que Natlia far, juntamente com Rosrio Corte-Real, do libreto da pera de Alban Berg, Wozzeck, do texto de Bchner (publicado em 1959).

    O Progresso de dipo Poema Dramtico (1 edio: 1957)

    No ano anterior ao da surpreendente estreia cnica (no Teatro Munumental) de Dois Reis e um Sono (fbula poltica sob o disfarce de teatro para a infncia, escrito com a colaborao de Manuel de Lima), Natlia publica O Progresso de dipo, a sua primeira pea a solo, em edio de autor (Lisboa, 1957), com um desenho seu na capa, onde um ser hbrido de mulher inteira e esfi nge abraa, devoradora, um suposto dipo; um carvo a testemunhar-nos a faceta de pintora, que Natlia Correia cultivou de forma intermitente e catrtica. O Progresso de dipo, com o subttulo de Poema Dramtico, reescreve o mito grego transgredindo as suas coordenadas clssicas, boa maneira do individualismo romntico e da subjectividade surrealista (universos estticos nos

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    quais Natlia se rev). Literariamente soberbo, o texto desta pea mitocrtica, curta mas muito densa, ensaia um moderno mimetismo face ao estilo austero e conciso dos tragedigrafos, recheado com mximas refl exivas; logo prefi guradas no prembulo pea, escrito numa prosa oracular, plena de poesia e enigma.

    So quatro as personagens: Tirsias, dipo, Jocasta e a fi gura colectiva do Coro, que intervm com uma economia verbal assinalvel; numa distribuio de seis breves cenas cuja legenda de sentido indicada por epgrafe de Nietzsche, oriunda d O Nas-cimento da Tragdia, num passo em que o fi lsofo-poeta aborda a hybris fustica do incesto edipiano.

    No entanto, a pea contraria e/ou baralha as punies destinadas tradicionalmente aos protagonistas. dipo surge desde o incio com analogias condio de sbio, apto mesmo a rivalizar com o xam Tirsias.

    TIRSIAS: Difcil esgrimir contigo usando estas palavras que os mortais fabri-

    cam para comunicarem. Porque tu decifraste o enigma da esfi nge e por isso s conhe-

    cido como sbio. (...) (Correia, 1957: 13)

    Um dado fundamental que Natlia altera no mito, e que se mostra extremamente signifi cativo na sua reinterpretao de dipo, consiste na origem da cegueira deste. Aqui no a descoberta das npcias incestuosas que conduz dipo a cegar-se. A cegueira anterior e no auto-infl igida, resultando da luta corpo-a-corpo na qual dipo mata Laio e, mesmo que involuntariamente, abre o caminho para o trono de Tebas. Somos confrontados de novo com o preo faustiano e alienante a pagar pela aquisio do poder exterior sobre os outros: a perda da alma. o prprio dipo que o diz ao Coro.

    DIPO: (...) O caso que um trono no se obtm de graa. Para chegar a ele

    quase todos contraem a cegueira da alma. uma cegueira que eles provocam para que

    o corao no seja um hspede demasiado importuno no peito de um monarca. Mas

    eu no matei Laio para lhe usurpar o trono. Porm est escrito que aquele que mata

    herdeiro do homem que matou. (ibid.: 17)

    Esta cegueira antecipada modifi ca a relao entre Jocasta e dipo; ele j cego no momento de despos-la e da as dvidas que assaltam Jocasta por no saber que tipo de projeco amorosa o seu marido cego coloca nela. De facto, a pea nataliana pode ser vista como uma variao do mito edipiano que desenvolve fulcralmente o complexo de Jocasta. Todos os dias ela se desloca ao templo, para pedir aos deuses que restituam a viso a dipo, mas, como o diz Tirsias, no por amor dele que ela o faz, mas para se assegurar da solidez do lao que o une a Jocasta. A sua splica ser atendida; dipo recupera a vista, que o smbolo da sua conscincia individual. Na anagnrise da identidade de ambos, ele interroga-se, num distanciamento enuncia-

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    tivo, sobre a sustentabilidade da unio anmala, agora que o desejo dilacerado pela evidncia do incesto:

    DIPO: (...) O mamilo rseo perder a cor na boca do amante. Porque este j no

    ignora que aquela fonte de volpia o mesmo seio que o amamentou. Poder dipo

    transformar as entranhas que o conceberam na terra mais apetecvel s violentas

    sementes do seu orgasmo? (ibid.: 32)

    O elemento trgico neste drama no est propriamente no reconhecimento do incesto (embora no o nomeie, Jocasta de resto j o sabia durante a cegueira de dipo), mas sim em saber como continuar a viver nele. Lido em literalidade, o desfecho ser uma surpresa de feminina crueldade possessiva. Jocasta fere de novo os olhos de dipo para que ele regresse noite da cegueira, bem como dependncia que esta impe, de modo a no perd-lo de si. O Progresso de dipo acaba por expor uma aporia ertica; se, como diz dipo, nenhuma viagem nos permite verdadeiro regresso (ibid.: 30), esta equvoca regresso me tambm a nostalgia pela perda da individuao, a anulao da identidade autnoma que os olhos cegos simbolizam. E um enigma se destaca do jogo dramtico: este o retrato apenas do fantasmtico incesto edipiano, ou antes de toda e qualquer queda amorosa, que atravs dele se perspectiva? O amor como priso cega e/ou como cegueira iluminante?

    Para a autora, existiu uma clara inteno alegrica a determinar a concepo desta obra que ela entender, retrospectivamente, no como pea teatral, mas sim como dilogo fi losfi co, um processo dialgico de expor uma tese (...) que retoma o mito matrista (Lello, 1988: 15) Em depoimento indito prestado a Jlia Lello, em torno do seu teatro, diz Natlia ainda:

    Sfocles s representa o tratamento do mito na ptica patriarcal. O meu dipo

    cega-se para o exterior, onde vigora a lei patriarcal, que castiga o seu incesto, para

    se refugiar no seu inconsciente individual, que guarda a lei arcaica de iniciao do

    fi lho na sabedoria materna, atravs de incesto que, neste caso, simblico. Retoma-se

    pois aqui o mito da Deusa-Me e do fi lho que na tragdia grega castigado pelo Deus

    introduzido pela cultura patriarcal indo-europeia. (...) Da eu chamar Progresso de

    dipo porque o dipo e a Jocasta assumem o incesto, ao contrrio do que se passa

    na tragdia grega. Pretendo repor ao mesmo tempo um estado pr-lgico, ou seja,

    pr-patriarcal. (Lello, 1988: 15)

    As aporias de eros, perante a formatao social e a aspirao utpica da von-tade individual, so questes que Natlia desenvolve teatralmente numa notvel pea extensa que constituiria de facto a sua primeira obra escrita a solo, de longo flego, para palco: D. Joo e Julieta. No entanto, a autora faria dela segredo e a pea s viria a ser conhecida e divulgada postumamente. Escrito em 1957, tal como O Pro-

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    gresso de dipo, revisto e ampliado por Natlia no ano seguinte (conforme o esplio o documenta), o texto de D. Joo e Julieta s seria editado e representado em 1999 (pela Comuna-Teatro de Pesquisa, numa co-produo com o Teatro da Trindade, onde o espectculo se apresentou, encenado por Joo Mota).

    Comunicao (Auto da Feiticeira Cotovia) (1 edio: 1959/ 1 representao: 1999)

    Depois de nos propor as suas verses pessoais de dipo e de D. Joo, Natlia escreve um texto bastante auto-referencial, que aprofunda uma ambivalncia entre poesia em sentido estrito e forma dramtica, destinada ao teatro, transmitida por isso numa polifonia lrica. Tanto assim que Comunicao (1959) somente pelo ttulo intratextual de Auto da Feiticeira Cotovia denuncia a sua pertena genolgica ao tea-tro escrito, sendo sucessivamente reeditado pela autora includo no conjunto da sua obra potica, tanto na antologia Poemas a Rebate (1975), como na recolha que far da sua poesia completa: O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1992). Comunicao um poemodrama em quadras de mtrica vria, com didasclias que se destinam mais visualizao mental do leitor, ou enunciao verbal pelos actores, do que a um objectivo pragmatismo cnico; semelhana do que acontecia por exemplo com O Jacto de Sangue (1925), um dos raros textos dramticos compostos por Antonin Artaud. Comunicao um texto onde encontramos, pela criatividade potica, a denncia feroz da ditadura fascista, que mergulha o pas numa treva onde os estranguladores das palavras constroem o silncio da sala de espelhos onde o tirano se masturba (Correia, 1999: 173). Silncio inquisitorial que a escritora sentiu bem, enquanto autora com livros sucessivamente apreendidos e censurados. Da que a feiticeira Cotovia, condenada fogueira, protagonista sacrifi cial do auto (que tambm auto-de-f), seja visivel-mente uma projeco autoral, uma mscara pela qual Natlia quis deixar o seu rosto de bardo teatralmente exposto; para tal criando uma fbula de irnica fi co arqueolgica, anunciada no prlogo da pea. O espao dramtico a cidade soterrada e inquisitorial de Lusitnia; metfora de um Portugal prisioneiro de fantasmas repressivos, que nunca o abandonaram desde h sculos:

    Recentes escavaes feitas no Sudoeste da Europa confi rmaram a existncia de

    uma cidade soterrada pelo prodgio dirio de um lento e assombroso cataclismo.

    Dessa cidade a Lusitnia contam contos espantados que uma mulher a quem

    chamavam a Feiticeira Cotovia foi condenada s chamas por prticas de uma magia

    maior e estranha a que ela dava o nome de Poesia. (Correia, 1999: 173-174)

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    A pea consistir numa espcie de julgamento pblico da singular feiticeira, sub-versiva pelo poder mgico do seu verbo alqumico, tendo por personagens, para alm dela, o Pregoeiro que anuncia os factos, um Coro cmplice das razes da r, e os acu-sadores que so o Inquisidor, a Solteirona, os Sete Juzes, o Padre, e o Patriota. E assim como anteriormente, em O Progresso de dipo, se confrontara Natlia com um mito que se liga ao primeiro nascimento do teatro ocidental (na Grcia antiga), aqui, pelo subttulo de auto, demonstra a autora o seu estlistico e simblico gesto de revisitar o segundo nascimento dele (na Europa medieval) que assiste s origens da dramaturgia portuguesa, com Gil Vicente (cultor da forma de auto), para muitos o mais notvel dos dramaturgos europeus do fi nal da Idade Mdia. Comunicao um manifesto lrico-dramtico de grotesca beleza, que rene expressivamente o esprito escatolgico das medievais cantigas de escrnio com a imaginao iconoclasta de inspirao surrealista, que dispara, liberador, contra opresses mltiplas: existenciais, polticas, sexuais e religiosas. Num registo de literria rebelio, que mescla com destreza o popular e o erudito, este um pequeno auto que reclama para a poesia a morada ontolgico-pol-tica da liberdade maior do humano convico inabalvel de Natlia , como o afi rma o Pregoeiro, nico defensor individual das razes dessa iluminada feiticeira Que diz que a fria que se chama vida/ lutar, ferida da vida ser pouca/Com muitos milnios de alma decidida/Pela liberdade que a luz na boca (Correia, 1999: 175).

    A pea viria a conhecer uma primeira encenao por Joo Mota, em 1999, no Tea-tro da Trindade que a integrou num interldio de teatro dentro do teatro, como espec-tculo a que assistem as personagens de D. Joo e Julieta, no baile de mscaras que o protagonista nataliano promove em sua casa; a actriz Cristina Cavalinhos interpretou a Feiticeira Cotovia. J em 2007, Joo Brites elaborou uma verso cnica da pea, sob o nome A Cotovia, dirigindo-a numa realizao d O Bando, no seu espao em Vale de Barris, em Palmela, com elenco do colectivo teatral local As Avozinhas.

    No ttulo abstractizante de Comunicao (visto que para esta pea Natlia no optou apenas pelo nome de Auto da Feiticeira Cotovia), esconde-se um eco pessoals-simo da autora a uma outra comunicao potica endereada a Portugal e ao mundo: a Mensagem de Fernando Pessoa (o nico livro que o poeta publicaria em vida, em 1935), que por sua vez fora o reencontro possvel do poeta moderno com o Cames pico (esse mesmo Cames renascentista que a autora invocar para protagonizar uma das suas ltimas peas). Eco que Natlia prolongaria no seu volume seguinte de poesia, datado de 1961, Cntico do Pas Emerso, obra onde tal inteno intertextual se tornar inteiramente visvel; tanto no ttulo, de epopeia deceptiva tal qual o fora a Mensagem de Pessoa, como na epgrafe que o abre, da Ode Martima de lvaro de Campos, como ainda no contedo, onde se evoca como tutelar cais evanescente do pas emerso esse: Que foi apenas o escriturrio / A primeira ovelha exposta no calvrio / De um

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    povo agiota que faz p-de-meia / O manga-de-alpaca que os deuses mandaram / Fazer a escrita da nova Odisseia (Correia, 1999: 204-205).

    de sublinhar de resto a importncia exercida pela obra de Fernando Pessoa no processo de autodescoberta de uma identidade potico-dramtica em Natlia Correia, em analogia alis ao que sucede com diversos outros poetas maiores de lngua por-tuguesa no sc. XX. O prometeico titanismo do gnio pessoano, hoje universalmente reconhecido, comeou por ser, em Portugal, digerido criticamente de modos diversos, como costume acontecer com a recepo de novas vozes de fora excepcional e, por isso, heterofgicas. Natlia, em ensaio de 1958, Poesia de Arte e Realismo Potico, elegera j Pessoa como farol para a utopia dos poetas autnticos, precisamente graas a essa liberdade gnstica (Rosa, 2005: 27) que a autora v emanar do olhar metadra-mtico dele, incitador a que cada um descubra o seu caminho, e no se limite a ser epgono do mestre.

    A linha fecunda que parte dos poetas libertadores no nmero dos quais Fernando Pessoa se inclui o convite negao da sua obra na medida em que ela j um valor conquistado. A nica possvel fi liao que o poeta oferece aos continuadores do seu esprito o incitamento experincia concreta de cada um (Correia, 1958: 22-23).

    O Homnculo Tragdia Jocosa (1 edio: 1965)

    E uma das vias pessoais trilhadas por Natlia, para alm de um eros fl amejante que lhe congnito, essa sua predileco pelo riso catrtico, liberador do indivduo face aos condicionalismos polticos de um meio cultural asfi xiante e mesquinho: se algum me quiser encontrar, procure-me entre o riso e a paixo (Correia, 2001: 8); escrever ela mais tarde, em 1983, num prlogo, em jeito de ultimato anarquista, ao volume de contos A Ilha de Circe. Da que o sucedneo dramatrgico da feiticeira Cotovia seja de facto uma pea que acentua o registo do escrnio atravs de uma forma dramtica breve; uma stira poltica, no dizer da autora (Lello, 1988: 23), que apresenta estra-tgias de delrio surreal e absurdista para retratar Salazar e seus aclitos no pequeno palco das misrias lusitanas. O Homnculo Tragdia Jocosa, assim se chama a pea com a qual Natlia afi rmaria ter comeado a escrever deliberadamente para a cena (Lello, 1988: 23), talvez porque neste texto a conscincia dramatrgica dos processos cnicos suplante os expedientes verbais da poetisa virtuosa. Publicado em 1965, pelo temer-rio editor e escritor Luiz Pacheco (n. 1925), com quatro ilustraes da autora (numa tcnica mista de pintura e colagem, em sugestivas imagens de um grotesco surreal), o livro imediatamente apreendido pela PIDE, tornando-se um texto clandestino que passa secretamente de mo em mo como senha conspiratria. Pea breve em cinco quadros, O Homnculo uma das raras obras mestras (conjuntamente com O Clube dos

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    Antropfagos, de Manuel de Lima, escrita em 1957, enquanto o autor era hspede da casa de Natlia, em Lisboa) que no teatro portugus consegue operar o cruzamento entre a esttica surrealista, o teatro do absurdo, e a stira poltica.

    Decorrendo a aco no palcio de el-rei Salarim, senhor absolutssimo da Morto-clia (Correia, 1965: 11), os jogos onomsticos e semnticos so provocatoriamente transparentes: se o nome Salarim remete para o ditador, j o lugar morturio da fbula, Mortoclia, o epnimo fabulstico que designa o Portugal da ditadura, que sacrifi ca a sua juventude numa guerra colonial em frica, iniciada em 1961, quatro anos antes da publicao do texto. Reino de thanatos ainda, porque repressor do princpio de eros; no qual o sdico Salarim probe o acto de urinar, metfora explcita do sexo: orde-nando que se obstruissem os orifcios por onde machos e fmeas (...) se obstinavam em praticar essa antiga necessidade (Correia, 1965: 21) A didasclia longa com que a pea abre convida mesmo a que seja lida em cena por um ou vrios actores, dada a informao cenolgica que disponibiliza, com uma vivacidade de escrita corrosiva. Veja-se a descrio trgico-pardica do protagonista:

    Salarim tem nariz (ou bico) arqueado e dois olhos de fogo muito juntos, situados

    quase no alto da cabea. Da sua idade s se pode dizer que por meios naturais era

    de esperar que j tivesse morrido h muito tempo, mas que por outros meios, talvez

    sobrenaturais (h quem diga que usando em proveito prprio o tempo que roubou aos

    sbditos), conseguiu suster a foice, sempre que a morte julgou chegada a altura de

    ceifar os seus muito esticados anos. (Correia, 1965: 11)

    As fi guras dramticas d O Homnculo situam-se, como vemos por este exem-plo descritivo, na categoria ubuesca de tteres caricaturais, nos quais um recorte de surrealismo expressionista exibe, de forma bem legvel, a correspondente tipifi cao alegrica. Assim, para alm de Salarim, que parodia Salazar, temos, logo na contracena do primeiro quadro, a presena do Bispo; jogando na cena essa cumplicidade perversa entre o poder poltico e o eclesistico, que caracterizou o fascismo lusitano; nomea-damente numa submisso equvoca da Igreja catlica face ao status quo ideolgico do Estado Novo. Equivocidade que a pea desenvolve, j que a mscara de servido do Bispo (onde inevitvel vermos satirizado o cardeal Cerejeira, aliado eclesial de Sala-zar) serve para que este consiga controlar a seu favor o megalmano e solitrio Salarim. Uma fala desconcertada do ditador, dirigida ao Bispo, demonstra-o:

    SALARIM: J ests a falar demais. Quando te comprei tinhas um silncio ver-

    dadeiramente colaborador. A tua tagarelice perturba-me. (Leva as mos cabea.)

    Sinto-me tonto, confuso... Desconheo-me... (ibid.: 16)

    Por sua vez, o bobo Mnemsicus denuncia o seu alegorismo cido no fi gurino que enverga, uma vez que vem vestido de catedrtico (Correia, 1965: 16); stira acres-

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    cida, portanto. O poder cultural legitimado, que a instituio universitria representa, surge na pea sob a identidade do bobo de Salarim, de quem este depende a ponto de cham-lo, sintomaticamente: Mnemsicus, minha alma!, ou sol do meu esprito (ibid.: 16). Temos pois nestas duas duplas que Salarim constitui, ora com o Bispo, ora com o Bobo, dois ecos dramatrgicos pardicos bem distintos: no primeiro caso, as sado-burlescas parelhas beckettianas (Hamm e Clov, de Fim de Partida, por exemplo); no segundo caso, a referncia ao par shakespeariano do rei louco Lear e do seu sbio Bobo ( por isso de sublinhar o facto de o discurso de Salarim conhecer um arrebata-mento monologante no momento de entrada em cena de Mnemsicus, o seu intelectual conselheiro). Ante a inveja do Bispo, Salarim prostra-se e humilha-se chegada desse seu Bobo acadmico, um duplo que lhe insufl a sopro anmico; e estabelece com ele uma dependncia erodramtica que a retrica infl amada de Salarim verbalizara: Sem ti anoiteo. Extingue-se a minha condio reinante e revela-se a minha propenso para verme (ibid.: 16).

    O poder militar comparece tambm, inevitavelmente, a abrir o segundo quadro, atravs da fi gura pattica do General, que se entusiasma mais com a agricultura do seu quintal domstico, do que com as lides da guerra; caricatura de um Portugal ensi-mesmado e eminentemente rural, reduzido condio de curiosidade turstica, que de sbito atirado para uma guerra africana com a qual pouco se identifi ca. A obsesso genocida de Salarim, para com o povo de Mortoclia, fl agrante na sua perverso de misgino em que os vcios solitrios so as sentinelas da abstinncia, tendo por amante perptua (...) uma hidra com dez milhes de cabeas, que podiam ser ainda mais no fossem a avitaminose, a mortalidade infantil e a emigrao (ibid.: 18). Ao seu Bobo confessor, Salarim revela a obsesso regressiva de sadismo necrfi lo com que conduz os destinos de uma Mortoclia, submissa do poderio norte-americano, face ao qual no aspira a ser nada mais do que estncia turstica:

    SALARIM: (...) Mas o prato substancial do turista americano a arquitectura

    local: os jazigos. No se trata precisamente de dar sepultura aos mortos. Urge acabar

    de uma vez para sempre com essa superstio que nos legaram os gregos. Somos um

    povo progressivo. To progressivo que atingimos a transcendncia de uma preocupao

    oposta: dar mortos s sepulturas. O ritmo de construo alucinante. No minto se

    disser que mandei edifi car alguns milhes de sepulturas. Tantas sepulturas quantas

    cabeas tem a minha hidra. (ibid.: 21)

    O curioso ver que nesta farsa de fantoches humanos ser o Bispo a incitar o General para que este se rebele em armas (mas de uma forma no sangrenta, conforme hipocrisia dos catlicos costumes), contra o despotismo demente de um Salarim dominado pela ascendncia do Bobo acadmico. Para convencer o militar campnio, o Bispo tem de disfarar-se de demnio chifrudo de modo a assustar o General, por forma

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    a que este julgue que arder nas chamas infernais caso no se revolte contra o poder do ditador. Porm, o General entusiasma-se no seu ardor de insurrecto e j pensa em assassinar Salarim, para espanto do manhoso Bispo, que vai sempre lanando apartes de comentrio teatral em voz alta.

    BISPO (aparte): Tomou-me o freio nos dentes! Tenho que segur-lo antes que

    ultrapasse os dois mil anos da nossa santa sabedoria! (Alto) Cuidado, meu fi lho! No

    te deixes tentar. Salarim rei. Foi sagrado. No pequemos. A Igreja contra o regi-

    cdio. (ibid.: 25)

    O objectivo do Bispo (alegoria da Igreja) manipular o General (personifi cao do poder militar) para aniquilar o Bobo Mnemsicus (o poder intelectual), eliminando assim a infl uncia deste junto do ditador Salarim, para que s o Bispo ocupe esse lugar. Os intentos do prelado intriguista sero conseguidos. Depois de dominar os impulsos do General, o Bispo ilude o Bobo, fi rmando com este um falso pacto revolucionrio. Ele sabe como lidar com Mnemsicus, segundo afi rma ao General: [O Bobo] um intelectual. A maneira de os vencer deix-los falar (Esfrega as mos.) Mais tarde ou mais cedo caem na ratoeira dos prprios sons (ibid.: 27). E uma ratoeira que o Bispo arma ao Bobo; antes de este surgir em cena no 3 quadro, o Bispo avisa Salarim de que o seu fi el Bobo deixou de o ser e vem munido de uma pistola. O dilogo-chave entre o Bobo e Salarim (que anatomiza a natureza teatral, ilusionista, da imagem do poder que o ditador constri de si mesmo), convencer este de que o Bispo papagaio (ibid.: 29) dizia a verdade. Salarim comea por perguntar a Mnemsicus se este lhe vem dar uma lio de Histria (ibid.: 30):

    BOBO: (...) A Histria a raiva dos que no participam dela e com estes que

    preciso contar. Sobretudo fazer o possvel para no excitar essa raiva. Concorda que

    tens feito muito pouco nesse sentido.

    SALARIM: Sou uma personagem. No preciso deles.

    BOBO: As personagens s existem na imaginao dos cronistas. No tens feito

    nada para conquistar a simpatia deles. Isso pe em risco a tua realidade. (ibid.: 30)

    Na sequncia de uma ardilosa esgrima dialogal, o Bobo persuade Salarim de que uma revoluo de rebeldes, que j saquearam o palcio e esvaziaram os cofres (ibid.: 30), se prepara para o destronar e de que a nica forma de ele sair com dig-nidade suicidar-se. O Bobo coloca-lhe nas mos o revlver para esse efeito, mas Salarim, em vez disso, matar a tiro o Bobo Mnemsicus (sua alma danada, ou seja, sua entelquia), sendo atacado de seguida por amnsia identitria, que, se o isenta teatralmente de responsabilidades por ter morto este desconhecido (ibid.: 31), tem como reverso a perda de si mesmo. Ao matar o Bobo, Salarim matou o que restava da sua conscincia; nesta tragdia jocosa, ele torna-se um autmato ontolgico-poltico:

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    Estou vazio, vazio. Apenas sobrevivo como um saco que se esvaziou. Oh! Oh! Quem sou eu? Quem sou eu? (ibid.: 31).

    Contm esta peripcia, ao mesmo tempo, a parbola do que sucede ao intelec-tual que se alia ao poder ditatorial, para usufruir dos privilgios deste; neste negcio faustiano, a sua voz acaba por ser silenciada pela conspirao dos poderes (eclesial e militar) que lhe disputam a infl uncia e o controlo do dspota.

    Na pea, o triunfo pertence ao Bispo, com o seu evangelho equvoco que prega sentenas deste gnero: A guerra precisa para trazer a paz; O descontentamento e a subalimentao so o que resta de espiritual no horizonte humano; A agricultura garante-nos um certo estado de indigncia necessrio vida do esprito. E sob o signo agrcola, no quarto quadro que descem do cu trs anjos barrocos com trom-betas que fi cam suspensos no ar, e cantam uma hossana sociocrtica, nada anglica, representando os poderes da alta fi nana, ou seja, os cofres celestiais (ibid.: 35). Salarim imbecilizado agora, como o diz o Bispo, no mais do que uma sombra, uma aparncia, uma alma perdida, vagabunda. A pedido mais uma vez do Bispo, o General dita a Salarim aquilo que ele deve ser: um patriota, que poder mostrar-se til s searas contra o ataque de aves ruins (ibid.: 36). Salarim ser pois nada mais que um espan-talho reinante, numa representao, do poder agnico, anloga ao fi nal daquela que a mais impressionante fbula poltica do teatro portugus da primeira metade do sculo XX: O Fim (1909), de Antnio Patrcio (1878-1930); pea em vrios aspectos precursora da tragicidade absurda de Beckett e da crueldade psicotrpica de Artaud, em cujo decadentismo expressionista se efabulava premonitoriamente a queda da monar-quia portuguesa, pela transfi gurao potico-trgica da leariana Rainha-av Maria Pia, que enlouquecera na sequncia do regicdio de 1908. E se no fi nal da pea de Patrcio se chamavam os corvos para cumprir a funo de aves necrfagas, no quinto quadro d O Homnculo, a condio de espantalho encarnada verbalmente por um Salarim manifestamente demente, numa fala longa, que descreve os estragos orgnicos que as diferentes espcies de aves fazem, devorando o seu corpo. Na irriso cnica que a pea prope, com ntidos contornos absurdistas, o drama prometeico aqui reduzido ao esventrar de um espantalho, ao qual j no se apropria sequer a designao inumana, mas alqumica, de homnculo com que o ttulo nomeia o protagonista.

    Ao coro de anjos celestes opem-se, em terreno contraponto, quatro ceifeiras que trazem as duas metades de um pano toscamente pintado representando uma seara (ibid.: 36). Podemos classifi car o bizarro confronto coral com que a pea termina, entre anjos e ceifeiras, como uma pardia negra (ou tragdia jocosa, segundo o sub-ttulo nataliano) que joga surrealmente com tpicos correntes, poca, da literatura marxista do neo-realismo, nomeadamente no que respeita ao confl ito de classes, entre dominadores e dominados, exploradores e explorados; confl ito com que em riso amargo

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    se retrata o pas de ento, preso ao triplo subdesenvolvimento rural, cultural, e espi-ritual:

    ANJOS: Mas s no Dia do Juzo

    se distribuem as riquezas.

    CEIFEIRAS: As nossas almas engordemos

    morrendo pelos donos destes campos.

    ANJOS: Por entre as nuvens vos aparecemos...

    CEIFEIRAS: Bendita a fome que faz ver anjos! (ibid.: 38)

    O Homnculo (1965) surge-nos como a primeira obra de um conjunto de trs peas para as quais propomos a designao de trilogia de mitos lusitanos, fundada em afi nidades que nos parecem irman-las, j que, sublinhe-se, nunca esta nomencla-tura e este agrupamento textual fossem sugeridos pela autora. A Pcora (com edio boicotada em 1967) e O Encoberto (1969) so as outras duas obras que integraro tal trilogia. Para alm de serem textos que Natlia compor em sequncia e proximidade cronolgicas, a similaridade na concepo estilstica dos ttulos indicia logo partida um parentesco que os temas desenvolvidos, por cada um dos dramas, confi rmaro. A designao nominal, comum a cada uma destas peas (constituda, repare-se, por um substantivo singular, com artigo defi nido), visa colocar no palco, com intentos fabu-lsticos, imaginativos e provocatrios, mitos especfi cos da realidade histrico-poltica e/ou psico-religiosa portuguesa; da, por isso, esta opo pela denominao, objectiva e irnica, de trilogia de mitos lusitano. Assim, enquanto O Homnculo se ocupou com o automitifi cado ditador Salazar, j A Pcora esconde uma virulenta parbola motivada livre e libertinamente pelo fenmeno controverso das aparies marianas de Ftima, em 1917; se bem que os dados dramatrgicos utilizados se mostrem antes bastante mais prximos dos que envolveram as fraudulentas aparies de La Salette, em Frana, ocorridas em 1846, data prxima desse fi nal do sc. XIX que vem a ser o tempo his-trico-dramtico da pea. Por sua vez, O Encoberto ser a criao teatral nataliana a dar voz a um mito messinico persistente no imaginrio lusada: o do rei D. Sebastio, morto jovem no norte de frica, na batalha de Alccer Quibir, em 1578 (data que assinala o ocaso da aventura expansionista martima portuguesa), em torno do qual se gerou a lenda de que ele haveria de regressar vivo e salvfi co numa manh de nevoeiro, como se de um herico Godot se tratasse. de assinalar que o mito sebstico, para o qual Almeida Garrett desafi ara em 1837 os dramaturgos vindouros, haveria de dar origem, sob distintas interpretaes pessoais, a outras duas obras representativas do teatro escrito portugus do sculo XX: O Indesejado (1945), de Jorge de Sena, e El-Rei Sebastio (1949), de Jos Rgio; bem como ainda ao drama inacabado O Rei de Sempre, de Antnio Patrcio (de que restam cenas fragmentrias datadas de 1914).

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    Bibliografi a

    CORREIA, Natlia (2001 [1983]). A Ilha de Circe. Lisboa: Editorial Notcias.

    (1965). O Homnculo. Tragdia jocosa. Lisboa: Contraponto.

    (1957). O Progresso de dipo. Poema Dramtico. Lisboa: edio de autor.

    (1999 [1993]). Poesia Completa. O Sol nas Noites e o Luar nos Dias. Lisboa: Dom Quixote.

    (1958). Poesia de Arte e Realismo Potico. Lisboa: edio de autor.

    LELLO, Jlia (1988). Esboo para uma Dramaturgia sobre Seis peas de Natlia Correia, ou Uma

    Epopeia Crtica da Mtria. Dissertao fi nal na disciplina de Histria da Literatura Dram-

    tica. Lisboa: Conservatrio Nacional/Escola Superior de Teatro e Cinema.

    ROSA, Armando Nascimento (2005). Pessoa e a Viso Gnstica do Tempo. In ROSA, Armando

    Nascimento, DUGOS, Carlos, e PEIRIO, Nuno Marques. Gnose e Alquimia. Lisboa: Apenas

    Livros, 3-46.

    Resumo: Da produo dramatrgica de Natlia Correia (1923-1993), composta por quinze

    ttulos, destacamos trs que se integram no que podemos designar por forma breve em

    teatro escrito: O Progresso de dipo Poema dramtico (1957); Comunicao Auto

    da feiticeira Cotovia (1959); e O Homnculo Tragdia jocosa (1965). A leitura crtica

    destes trs textos dramticos proporciona ao mesmo tempo uma perspectiva ampla e

    diversa acerca da versatilidade de Natlia dramaturga, num cruzamento entre palavra

    potica e linguagens cnicas.

    Abstract: The complete dramatic works by Natlia Correia (1923-1993) include fi fteen diffe-

    rent titles. Three of them could receive the label of brief forms as playscripts: O Progresso

    de dipo Poema dramtico (1957); Comunicao Auto da feiticeira Cotovia (1959); e

    O Homnculo Tragdia jocosa (1965). A critical approach of these three dramatic texts

    can simultaneously provide a broad view of how versatile Natlia is as playwright, in an

    interchange between the poetic word and the theatrical languages.