PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

9
7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 1/9 ., M i c h e l P e c h e u x , o  D ISC U R SO Dados Intemactonats de Catalogacno na Pubucucao  (eIr) (Camara  8rasilcira  do  Livre,  sr,  Brasil) CDO-410 ESTR U TU R A O U A C O N T E C IM E N T O Pecheux, Michel. P}]S-I')I'C o discurso : csmuuru au acontccimento  i Michel Pccheux; traducao: Eni P. Orlandi - 5 ~ Ediyall, Campinas, ST' Pontes Editorcs.  20m!. Bibliografia. ISBN 978- 85-7113-04]-2 1. /\n,iJisc  do discursn 2.  r  .ingiiislica 3. Scrnanrica I. Titulo Tradw;iio: Eni Puccinelli Orlandi ')()-J fBI IndiclO '  panl l'ahilugo  sistematico: I. Analise do discurso:  Lingublica  410 ~. An~ilisc estrutural Lingtilsrica 41 () Analise semantica : Lmgllistica 4 10 4. Discurso: Analise : Linguistica 4 10 Pontes 2008

Transcript of PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

Page 1: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 1/9

.,

M i c h e l P e c h e u x,

o   D I S C U R S O

Dados Intemactonats de Catalogacno na Pubucucao   (eIr)

(Camara   8rasilcira   do   Livre,   sr,   Brasil)

CDO-410

E S TR U T U R A

O U A C O N T E C IM E N T O

Pecheux, Michel. P}]S-I')I'C

o discurso : csmuuru au acontccimento   i Michel Pccheux;

traducao: Eni P. Orlandi - 5 ~ Ediyall, Campinas, ST'

Pontes Editorcs.   20m!.

Bibliografia.

ISBN 978- 85-7113-04]-2

1. /\n,iJisc   do discursn 2.  r   .ingiiislica 3. Scrnanrica

I. Titulo

Tradw; i i o : En i Pucc ine l l i O r l and i')()-J fBI

Indi c lO '  panl l'ahilugo   s i s t emat i co:

I.Analise do discurso:   Lingublica   410

~. An~ilisc estrutural Lingtilsrica 41 ()

Analise semantica : Lmgllistica 410

4. Discurso: Analise : Linguistica 410 P o n t e s2008

Page 2: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 2/9

Marx a prop6sito da interpretacao de sua obra;   e   ainda

identificar-se ao gesto de Marx, no que ele tinba de mais

autoprotetor.

(

Vamos parar de proteger Marx e de nos proteger

nele. Vamos parar de supor que" as coisas-a-saber" que

concemem   0  real s6cio-hist6rico formam urn sistema

estrutural, analogo   a   coerencia conceptual-experimental

galileana   23.   E procuremos medir   0   que este fantasma

sistemico implica,   0 tipo de ligac;ao face aos "especia-

listas" de todas as especies e instituic;5es e aparelhos

de Estado que os empregam, nao para se colocar a si

mesmo fora do jogo ou fora do Estado(!), mas para

tentar pensar os problemas fora da negacao marxista

da interpretacao: isto   e ,   encarando   0   f at o d e qu e a

hist6ria   e   uma disciplina de interpretacao e nao uma

fisica de tipo novo.

4342

It

 Ill. LER, DESCREVER, INTERPRET AR

l l IK- ' " ' : "   e n ~ ~ " " ~   L';:;,-   r'  

~ )-~ c-)   I 4;.__ ' : '1   l     < - ~

~;j:. -;   ·~.·r .,.....-'

.; -t,   Interrogar-se sobre a existencia de urn real proprioas disciplinas de interpretacao exige que   0  nao-logica-

'-;nente-estavel nao seja considerado a   pr ior i   como urn

defeito, urn simples furo no real.

E supor que - entendendo-se   0   "real" em varies

sentidos - possa existir urn outro tipo de real diferente

dos que acabam de ser evocados, e tambem urn outro

tipo de saber, que   nao   se reduz   it   ordem das   "coisas-

a-saber" ou a urn tecido de tais coisas. Logo: urn real

r    constitutivamente estranho a univocidade logica, e urn

; ' I   saber que   nao   Be  transmite,   na D   se   aprende,   na o   se en-I .

, sina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos., .

o   movimento intelectual que recebeu   0 nome de

"estruturalismo" (tal como se desenvolveu particular-

Page 3: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 3/9

mente na Franca dos anos 60, em torno da lingiiistica,

da antropologia, da filosofia, da politica e da psicana-

lise) pode ser considerado, desse ponto de vista, como

uma ~ent"tiya anti-positivista visando a levar em conta

este tipo de real, sobre  0

qual  0

pensamento vern dar,no entrecruzamento da linguagem e da hist6ria. -

Novas praticas de leitura (sintomaticas, arqueologi-

cas, etc ... ) aplicadas aos monumentos textuais, e de

inieio aos Grandes Textos (cf.   Ler   0  Capital),   surgiram

desse movimento:   0   prindpio dessas leituras consiste,

como se sabe, em muftiplicar as relacoes entre   0 que  edito aqui (em tal lugar), e dito assim e nao de outre

 jeito, com  0que   e   dito em outro lugar e de outro modo,

a fim de se colocar em posicao de "entender" a pre-

senca de nao-ditos no interior do que   e   dito, .

Colocando que "todo fato jli e   uma interpretacao"

(referencia antipositivista a Nietzsche), as abordagens

estruturalistas tomavam   0partido de descrever os arran-

 jos textuais discursivos na sua intrincacao material e,

paradoxalmente, colocavam assim em suspenso a produ-

< ;8 0   de interpretacoes (de representac;iies de conteiidos,

Vorstellungen) em proveito de uma pura descricao

(Darstellung) desses arranjos. As abordagens estrutura-

listas manifestavam assim sua recusa de se constituir

em "ciencia regia" da estrutura do real. No entanto,

veremos daqui a pouco como elas puderam ceder por

s ua v ez a es te   fantasma e   acabar   por   aparentar urnanova   IIciencia   regia" ...

Mas   e   preciso antes sublinhar que em nome de

Marx, de Freud, e de Saussure, uma base teorica nova,

44

politicamente muito heterogenea, tomava forma e de-

sembocava em uma construcao critics que abalava as

evidencias literarias   da autenticidade do   II  vivido",   assim

como as certezas "cientificas" do funcionalismo positi-

vista. Lembro como, no inlcio de   Ler  0

  Capital,   AI.thusser marca   0 encontro desses tres campos:

"Foi a partir de Freud que comecamos a suspeitar

do que escutar, logo do que falar (e calar) quer dizer:

que este "quer dizer" do falar e do escutar descobre,

sob a inocencia da fala e da escuta, a profundeza deter-

. minada de urn fundo duplo,   0  "quer dizer" do discurso

: 1 '   do inconseiente - este fundo duplo do qual a lingiiis-

I I   tic. moderna, nos mecanismos da linguagem, pensa os

lefeitos e condicoes formals" (p. 14-15).

o   efeito subversivo da trilogia Marx-Freud-Saus-sure foi urn desafio intelectual engajando a promessa

de uma revolucao cultural, que coloca em causa as evi-

dencias da ordem humana como estritamente blo-social.

Restituir algo do trabalho especffico da letra, do

simbolo, do vestigio, era comecar a abrir uma falha no

bloco compacto das pedagogias, das tecnologias (indus-

triais e bio-medicas), dos humanismos moralizantes ou

religiosos: era colocar em questao essa articulacao dual

do biologico com   0   social (excluindo   0   simb6lico e   0

significante). Era urn ataque dando urn golpe no narci-sismo (individual e coletivo) da consciencia human.   (cf.

Spinoza e seu tempo), urn ataque contra a eterna nego-

cia~iio de "si" (como mestre/escravo de seus gestos,

palavras e pensamentos) em sua rela~iio com   0 outro-si.

45

Page 4: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 4/9

I,   I,."

.'.",.,! .:..   itJi-,:   p _ , _ , : ' ~ , ( , ~ : . " , , : .

• . ,! -~.\

Seja   0  enunciado empirico PI (por exemplo:   "0

rosto do socialismo existente est" desfigurado ")

Em uma palavra: a revolucao cultural estruturalista

nao deixou de fazer pesar uma suspeita absolutamente

explicita sobre   0 registro do psicologico (e sobre as psi-

cologias do   1/ ego", da   "consclencia",   do   "comporta-

mente" ou do "sujeito episternico "). Esta suspeita nso

e, pois, engendrada pelo odio   a   humanidade que fre-

qiientemente se emprestou ao estruturalismo; eIa traduz

o reconhecimento de urn fato estrutural proprio a ordemhumana:   0da castracao   simbolica.

. . . . . ,

PI niio significa de fato outra coisa que. _.

46

o   paradoxo desse inicio dos anos 80,   e   que   0

deslizamento do estruturalismo politico frances, seu des-

moronamento enquanto • ciencia regia" (que no entanto

continua a produzir efeitos notadamente no espaco la-

tino-americano) coincide com urn crescimento da recep-

~ao dos trabalhos de Lacan, Barthes, Derrida e Fou-

cault no dominio anglo-saxao, tanto na Inglaterra quanto

na Alemanha, assim como nos EUA. Assim, por urn

estranho efeito de   oscilacao,   no   'memento   preciso em

que a America descobre   0  estruturalismo, a intelectua-

lidade francesa   IIvita a   pagina", desenvolvendo   urn res-

. . . e   0   mesmo em termos te6ricos que dizer

que ...

dito de outro modo ...

.-   ""   .Mas ao mesmo tempo, esse movimento anti-nar-

cisico (cujos efeitos politicos e culturais nao estao, vi-

sivelmente, esgotados) balancava em uma nova forma

de narcisismo   teorico,   Digarnos: em urn narcisismo da

estrutura.

. : . \ '   •quer dizer ...

!

I  

o enunciado teorico P2 (por exemplo "a ideo-

logia burguesa domina a teoria marxista").

E antes de tudo esta posicao de desvio te6rico,

seus ares de discurso sem sujeito, simulando os proces-

sos matematicos, que conferiu as abordagens estruturais

esta   aparencia   de nova  II

ciencia   regia",    negando comode habito sua pr6pria ..E.'s~~~()_~e interpretacao,

Esse narcisismo te6rico se marea, na   incllnacao es-

truturalista, pela reinscricao de suas "leituras" no espaco

unificado de urna I6gica conceptual. A suspensao da

interpretacao (associada aos gestos descritivos da lei-tura das montagens textuais) oscila assim em uma espe-

cie de sobre-interpretacao estrutural da montagem como

efeito de conjunto: esta sobre-interpretacao faz valer   0

"te6rico" como uma especie de meta1ingua, organizada

ao modo de urna rede   de   paradigmas. A sobre-interpre-

ta~iio estruturalista funciona a partir de entao como

urn dispositivo de traducao, transpondo "enunciados em-

piricos   vulgares" em   "enunclados   estruturais   concep-

tuais";   esse funcionamento das   analises   estruturais (e

em particular do que poderiamos chamar   0materialismo

estrutural ou   0 estruturalismo politico) permanece assim

secretamente regido pelo modele geral da equivalencia

interpretativa. Para esquematizar:

.~ 

47

Page 5: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 5/9

,.

sentimento   macico   face a teorias, suspeitas de terem

pretendido falar em nome   das   massas, produzindo urna

longa serie   de gestos simb6licos ineficazes e   performa-

tivos politicos infelizes.

C i >   Esse ressentimento   e   urn efeito de massa, vindo

"de baixo": uma   especie   de   contra-golpe   ideol6gico que

Iorca a refletir, e que nao poderia ser confundido com

o covarde alivio de numerosos intelectuais franceses

que reagem descobrindo, afinal, que a "Teoria" os ha-

via   "intirnidado"!

A grande Iorca dessa revisao critica,   e   colocar im-

piedosamente em causa as alturas te6ricas no nfvel das

quais   0   estruturalismo politico tinha pretendido cons-

truir sua relacao com   0 Estado (eventualmente sua iden-

tificacao ao Estado - e especialrnente com   0   Partido-Estado da revolucao), Este cheque em retorno, obriga

os olhares a se voltarem para   0  que se passa realmente

"em baixo", nos   espacos infraestatais   que constituem   0

ordinaria das massas, especialmente em periodo de crise.

Em historia, em sociologia e mesmo nos estudos

literarios, aparece cada vez mais explicitamente a preo-

cupacao de se colocar em posicao de entender esse

discurso, a maior parte das vezes silencioso, da urgencia

as   voltas   com os   mecanismos   da   sobrevivencia;   trata-se, 

para alem da leitura dos Grandes Textos (da Ciencia,do Direito, do Estado), de se por na escuta das circula-

90eS cotidianas, tomadas no ordinario do sentido (cf.,

por exemplo, De Certeau,   A Invenfiio do Cotidiano,

1980).

48

Simultaneamente,   0   risco que comporta esse mes-

mo movimento   e   bastante evidente:   e   0   que   consiste

em seguir a   linha   de maior   inclinacao ideologica   e se

conceber esse registro do ordinario do sentido como urn

fato de natureza   psico-biologica,   inscrito em   uma   dis-cursividade logicamente estabilizada. Logo,   0   risco de

urn retorno   fantastico   para os positivismos e filosofias

da consciencia,

Uma reuniao   como   esta   poderia ser a   ocasiao   para

desmanchar alguns desses riscos, situando os modos e

os pontos de encontro maiores. De meu lado, (mas

exprimo af urn ponto de vista que nao me e pessoaI:

e   uma posicao de trabalho que se desenvolve na Franca

atualmente   24)   eu sublinharia   0   extreme interesse de

uma aproximacao, te6rica e de procedimentos, entreas praticas da "analise da Hnguagem ordinaria" (na

perspectiva anti-positivista que se pode tirar da obra

de Wittgenstein) e as praticas de "leitura" de arranjos

discursivo-textuais (oriundas de abordagens estruturais),

Encarada seriamente (isto   t o ,   de outro modo que

apenas uma simples "troca cultural") essa aproximacao

engaja concretamente maneiras de trabalhar sobre as

materialidades discursivas, implicadas em rituais ideo-

16gicos, nos discursos filos6ficos, em enunciados   poli-

ticos, nas formas culturais e esteticas, atraves de suas

relacoes com   0 cotidiano, com   0 ordinario do sentido.Esse projeto s6 pode tomar consistencia se ele perma-

necer prudentemente distanciado de qualquer ciencia

regia presente ou futura (que se trate de positivismos

ou de ontologias marxistas).

49

Page 6: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 6/9

Esta maneira de trabalhar   impoe   urn certo   mimero

de   exigencias   que   e   preciso explicitar em detaibe, e

que   nao   posso evocar aqui   senao rapidamente,   para

acabar:

I.   A primeira   exigencia   consiste em dar  0primado

aos gestos de   descricao   das materialidades discursivas.

Uma descricao, nesta perspectiva, nao " uma apreensao

fenomenologica ou hermeneutica na qual   descrever   se

torna indiscernfvel de   interpretar:   esse concepcao da

descricao supoe ao contrario   0 reconhecimento de urn

real especffico sobre   0  qual ela se instala:   0 real da

Iingua (cf.   J.   Milner, especialmente em   L'Amour de la

 Langue).   Eu disse bern: a lingua. Isto e ,   nem linguagem,

nem   fala,   nem   discurso,   nem   texto,   nem   interacao   con-

versacional, mas aquilo que  e   colocado pelos lingi.iistas

como a condicao de exlstencia (de principio), sob a for-

ma da existencia do simbolico, no sentido de   J akobson

e de Lacan.

Certas tendencias recentes da lingiiistica sao bas-

tante encorajadoras desse ponto de vista. Aparecem

tentativas, alem do distribucionalismo harrisiano e do

gerativismo chomskiano para recolocar em causa   0  pri-

mado da proposicao 16gica e os limites impostos   It   ana-

lise como analise da sentenca (frase). A pesquisa lin-

gi.iistica comecaria assim a se descolar da obsessao da

ambigiiidade (entendida como 16gica do "ou ... ou")para abordar   0 proprio da lingua atraves do papel do

equivoco, da elipse, da falta, etc. .. Esse jogo de di-

Ierencas, alteracoes, contradicoes nao pode ser conce-

50

bido como   0  amolecimento de urn ruicleo duro 16gico:

a   equivocidade,   a "heterogeneidade constitutive" (A

expressao   e   de  J .   Authier) da lingua corresponde a esses

"artigos de Ie" enunciados por   J.   Milner em "A Roman

Iakobson ou Ie Bonheur par la Symetrie" (in   Ordre et 

 Raisons de Langue.   Seuil, Paris, 1982, p. 336):

"   nada da poesia   e   estranho   it   lingua

nenhuma   lingua pode ser pensada   completa-

mente, se af nao se integra a possibilidade de sua

poesia" .

Isto obriga a pesquisa lingiiistica • se construir

procedimentos (modos de interrogacao de dados e for-

mas de raciodnio) capazes de abordar explicitamente

o fato linguistico do equivoco como fato estrutural im-

plicado pela ordem do simbolico. Isto e, a necessidadede trabalhar no ponto em que cessa a consistencia da

representacao logica inscrita no espaco dos "mundos

normais". E tambem   0   argumento que desenvolvemos,

F. Gadet e eu, no texto   La Langue Introuvable   (Mas-

pero, Paris, 1981).

o   objeto da linguistica   (0propria da lingua) apa-

rece   assim   atravessado   por   urna   divisao   discursiva entre

dois espacos:   0  da manipulacao de significacoes estabi-

lizadas, normatizadas por uma higiene pedagdgica do

pensamento, e   0   de   tran5forma~5es--do--s(mtido,--esca-

pando·"tq~alquer norma estabelecida a priori, de urn

trabalho do sentido sobre   0   sentido, tornados no relan-

car indefinido das interpretacoes,

51

Page 7: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 7/9

. . . . " .

Esta   i't'OP[I ..iru   entre us dois e spac os c t anto mai s

dift\:=il de determinar   TlH   rnc di da e m que e xi st e t oda

uma  ~'11~  illTe't'!pi~a~-_Je__pi 'Q_~e~,i~9.~_-_41~c~!'-§lYQ}(deri-

cando do -j~~rtdico,do administrative e das convencoes

da vida cotidiana) que oscilarn em torno dela. hi ncsta

rcgiao discursiva intermediaria, as propriedades 16gicas

dos objeros deixam de funcionar: as objetos   tern   c nao

[em   esra   ou   aquela propriedade ,   os   acontecimcntos terne nao tern lugar. segundo as construcoes discursivas

nas quais se encontram inscritos os enunciados que sus-

tenram   esses   objetos e acontccimcntos   2;'.

Estc ceratcr oscilante e paradoxal do registro do

ordinaria do scntido parece tel' escapado completamente

a   intuicao do movirnento estruturalista: este nfvel fai

objeto de urna avers1io teorica, que   0 fechou totalmente

no inferno da ideologia dorninante e do empirismo pra-

rico, considerados como ponto-cego, lugar de pura re-

producao do senti do  ,G .

De passagem, os estruturalistas acreditavam assim

na i de ia de que   0   processo de transforrnacao interior

aos espacos do simb6lico e do ideol6gico   t o   urn processo

EXCEPCIONAL:   0   momenta heroico solitario do teo-

rico e do poetico (Marx/Mallarme), como trabalho ex-

traordinario do significante.

Esta concepcao aristocratica, se atribuindo   de facto 

o monopolio do segundo espaco   (0  das discursividades

nao-estabilizadas logicamente) permanecia presa, mesmo

atraves   de   sua   inversao   Ifproletaria ",   a   velha certeza

elitista que pretende que as classes dominadas nito in-

ventam jarnais nada, porque elas estao muita absorvidas

pelas logicas do cotidiano: no limite, as  prolctarios,   as

massas.   0  povo ... teriarn tal necessidade vital de uni-

versos logicamente estabilizados que os jogos de ordem

simb6lica njio as concerniriam! Neste ponto precise. a

posicao te6rico poetica do movimento estruturalista   einsuportavel   27.   Par nao ter discernido em   que   0   humor

e   0 trace poetico nao sao   0 "domingo do pcnsamento",

mas pertencem aos meios fundamentais de que dispoe

a inteligencia politica e te6rica, cia tinha cedido, ante-

cipadamente, diante do argumento populist a de urgen-

cia,   ja   que ela partilhava com ele implicitamentc   0

pressuposto essencial: os proletarios   nao   tern   (0   tempo

de se pagar urn luxe de) urn inconsciente:

2 . A co ns eq uen ci a d o q ue p rece de ~ qu e t od a

descric ao - que r se trat e da descric ao de obj et os ou

de acontecimentos ou de urn arranjo discursive-textual

nao muda nada, a partir do momenta em que nos pren-

demos firmemente   80   fato   de   que   "nfio ha: metalingua-

gem   II -   esta intrinsecarnente exposta ao equivoco da

lingua: todo enunciado   e   intrinsecamente suscetlvel de '\ 

tomar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar diS-!

cursivamente de seu sentido para derivar para um outro

(a nao ser que a proibicao da interpretacao propria ao

logicamente estavel se exerca sobre ele explicitamente).

Todo enunciado, toda sequencia de enunciados   e ,   pais, (

linguisticamente descritivel como uma serie (lexico-sin- \ 

taticamente dcterrninada) de pontes de deriva possiveis,

oferecendo lugar a interpretacao, E nesse espaco que

pretende trabalhar a analise de discurso. ~   I

" I I II

Page 8: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 8/9

discurso relatado ... )   0   discurso-outro como espaco vir-

tual de leitura desse enunciado ou dessa sequencia.E   e   neste ponte que se encontra a questao   das dis-

ciplinas de interpretacao:   e   porque ha   0 outro   nas socie·

dades e na historia, correspondente a esse  Dutro proprio

ao linguajeiro discursivo, que ai pode haver   ligacao,

identificacao ou transferencia, isto e, existencia de uma

relacao   abrindo a possibilidade de interpretar.   E   e   POT'

que   ha essa ligacao   que as   filiacoes   hist6ricas   podem-se

organizer em memories, e as relacoes socials em redes

de   significantes.

Esse discurso-outro, enquanto presenca virtual na

materialidade descritivel da sequencia, marca, do inte-

rior desta materialidade, a   insistencia   do   outre   como

lei do espaco social e da mem6ria hist6rica, logo como

o proprio   princfpio   do   real   s6cio-hist6rico. E   e   nisto

que se   justifica   0   termo de disciplina de   interpretacao,

empregado aqui a proposito das disciplinas que traba-

Iham neste registro. "   ,« ~ ~ (,~.. ; ..,' .• "F '\ ~ . " "    v. ,:i.t", .   c -,   -"'r',. ..

';' ,. - " "! .-

o   ponto crucial e que, nos espacos transferenciais

da identiflcacao, constituindo uma pluralidade contra-

dltoria de filiac;6es hist6ricas (atraves das palavras, das

imagens, das narrativas,   dos   discursos,   dos textos,etc ... ), as   Ifcoisas-a-saber" coexistem assim com obje-

los a prop6sito dos quais   ninguem   pode estar seguro

de "saber do que se fala", porque esses objetos estao

inscritos em uma filia9ao e nao sao   0produto de urna

aprendizagem: isto acontece tanto nos segredos da   es-

fera familiar "privada" quanto no nfvel "publico" das

instituic;6es e dos aparelhos de Estado.  .9 fantasma da

ciencia regia e justamente   0que vern, em todos os

IiIveis, negar esse equivoco,- dando   itiIU~~!l!E!:_e

s£_pede saber da...<jU<>~ala,.   j~to   ii,  se me compreen-

~. b~~_gando   Q..alQ  .de intl:r!ttll!a~iio.1\Q..l1fl)prio

~e~!1l_q1J.e. .ele~,!!e.I:I:.

De onde   0   fato que   IIas coisas-a-saber" que ques-

tionarnos mats acima nfio sao jamais visiveis em desvio,

como transccndentais historicos   all epistemes no sentido

de Foucault. mas sempre tomadas em redes de memoria

) dando lugar a filiacoes identificadoras e nao a aprcn-

dizagens por interacao: a rransferencia nao   e   uma "in-

I teracao", e as Iiliacoes hist6ricas nas quais se inscre-

 \~'em as individuos nao sao "rnaquinas de aprender". .~ Desse   ponto   de   vista,   0   problema principal   e   de-   'r

terminal' nas praticas de analise de discurso o lugar e

o momento da interpretacao, em relacao aos da descri-   <: 

faa: dizcr que nao se trata de duas lases sucessivas,   rmas de uma alternancia   all   de urn batimento,   DaD   im-

plica que a descricao e a interpretacao sejam conde-   ,;J

nadas a se entremisturar no indiscemivel. -, ,(

Por Dutro lado, dizer que toda descricao abre sobre

a interprctacao nao   c   necessariamente supor que ela

abre sobre "nao importa  0

 que II:

  a descricao de urnenunciado au de uma sequencia coloca necessariamente

em jogo (atraves da deteccao   de   lugares vazios, de clip-

ses, de ncgacoes c interrogac;6es, rmiltiplas formas de

3. Elte ponto desemboca sobre a questao final da

dlscurslvldade como estrutura ou como acontecimento.

5554

Page 9: PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

7/23/2019 PÊCHEUX, M. Ler, escrever, interpretar

http://slidepdf.com/reader/full/pecheux-m-ler-escrever-interpretar 9/9

A partir do que precede, diremos que   0  gesto que

consiste em inscrever tal discurso dado em tal serie, a

incorpora-lo   a urn "corpus", corre sempre   0 risco de

absorver °   acontecimento desse discurso na estrutura da

serie na medida em que esta tende a funcionar como

transcendental historico, grade de leitura ou mem6ria

antecipadora do discurso em questiio. A noc;iio de "for-mayao discursiva" emprestada a Foucault pela analise

de discurso derivou muitas vezes para a ideia de uma

maquina discursiva de assujeitamento dotada de uma

estrutura semi6tica interna e por isso mesmo voltada

a   repeticao: no limite, esta concepcao estrutural da

discursividade desembocaria em urn apagamento do

acontecimento, atraves de sua absorcao em uma sobre-

interpretacao antecipadora.

Nao se trata de pretender aqui que todo discurso

seria como urn aer6lito miraculoso, independente das

redes de mem6ria e dos trajetos sociais nos quais ele

irrompe, mas de sublinhar que, s6 por sua existencia,

todo discurso marca a possibilidade de uma desestru-

turacao-reestruturaeac dessas redes e trajetos: todo dis-

curso   e   0 Indice potencial de urna agitac;iio nas filia-

goes s6cio-hist6ricas de identificacao, na medida em

que ele constitui ao mesmo tempo urn efeito dessas

filiacoes e urn trabalho (mais ou menos consciente, de-

liberado, construido ou   niio,   mas de todo modo atra-

vessado pelas determinaeoes inconscientes) de desloca-

mento no seu espaco: nao ha identificayiio plenamente

bern sucedida, isto   e ,   ligagao s6cio-hist6rica que nao

seja afetada, de uma maneira ou de outra, por uma

"infelicidade" no sentido performativo do termo -

56

isto   e~ no caso, por urn   "erro   de   pessoa",   isto   e,   sobre

o   Dutro,   objeto da identificacao.

E mesmo talvez uma das raz5es que fazem que

exista algo como sociedades e hist6ria, e nao apenas

uma justaposigiio ca6tica (ou uma integracao supra-or.

ganica perfeita) de animals humanos em interacao ...

A pOSiy80de trabalho que aqui evoco em refersn-

cia   a   analise de discurso niio supoe de forma alguma

a possibilidade de algum cruculo dos deslocamentos de

filia~iio e das condicoes de felicidade au de infelicidade

evenemenciais. Ela sup5e somente que, atraves das des-

cricoes regulares de montagens discursivas, se possa

detectar os momentos de interpretay6es enquanto atos

que surgem como tomadas de posi~iio, reconbecidas

como tais, isto   e ,   como efeltos de identificacao assumi-dos e nao negados,

Face as interpret.<;:5es sem margens nBS quais   0

interprete se coloca como urn ponto absoluto, sem outro

nem real, trata-se af, para mim, de uma questao de

etica e politica: uma questao de responsabilidade.

57