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Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) PEDAGOGIA DO NEOLOGISMO A linguagem de Paulo Freire e a educação libertadora SÉRGIO LOURENÇO SIMÕES São Paulo 2013

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Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE)

PEDAGOGIA DO NEOLOGISMO

A linguagem de Paulo Freire e a educação libertadora

SÉRGIO LOURENÇO SIMÕES

São Paulo

2013

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SÉRGIO LOURENÇO SIMÕES

PEDAGOGIA DO NEOLOGISMO

A linguagem de Paulo Freire e a educação libertadora

Tese apresentada como requisito parcial para a

obtenção do Título de Doutor em Educação à Banca

Examinadora do Programa de Pós-Graduação em

Educação da Universidade Nove de Julho, sob a

orientação do Prof. Dr. José Eustáquio Romão e

coorientação do Prof. Dr. José Eduardo de Oliveira

Santos.

São Paulo

2013

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Autorizo a reprodução e divulgação parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou

eletrônico, apenas para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Cód.

SIMÕES, Sérgio Lourenço

Pedagogia do neologismo: a linguagem de Paulo Freire e a educação libertadora

Sérgio Lourenço Simões; Orientador José Eustáquio Romão e Coorientador

José Eduardo de Oliveira Santos. São Paulo, SP: s.n., 2013.

200 p.

Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação.) – Universidade

Nove de Julho.

Ficha Catalográfica elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação da Universidade

Nove de Julho.

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SIMÕES, Sérgio Lourenço. Pedagogia do neologismo: A linguagem de Paulo Freire e a

educação libertadora. São Paulo: UNINOVE, Tese de Doutorado em Educação, 2013.

Banca Examinadora:

1. Titulares:

_____________________________________________________________

Prof. Dr. José Eustáquio Romão – Orientador (UNINOVE)

_____________________________________________________________

Prof. Dr. José Eduardo de Oliveira Santos – Coorientador (UNINOVE)

______________________________________________________________

Prof. Dr. Edgar Pereira Coelho (UFV/MG)

______________________________________________________________

Prof. Dr. Maurício Pedro da Silva (UNINOVE)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto (UFPB/PB)

2. Suplentes:

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Jason Ferreira Mafra (UNINOVE)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. José Luís Vieira de Almeida (UNESP)

Conceito________________________

São Paulo, ___ de _____________________ de 2013.

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Dedicatória

A Maria, minha mãe, que me ensinou a caminhar pela vida;

A meu pai, José Messias Simões (in memoriam), que me incentivou a traçar a

trajetória de uma existência dedicada à educação libertadora para ajudar a construir um

mundo melhor;

A Sílvia, companheira incansável, que soube reconhecer a importância deste trabalho e

que dedicou boa parte de sua caminhada à concretização deste ideal de vida;

Aos meus queridos filhos de sangue, Leandro Leonardo, Rúbia e Bruna, amores que

dão continuidade a este ser, e a Thiago e Tadeu, filhos que aprendi a amar pela convivência e

pelo respeito;

As minhas noras e genros, por terem contribuído para a continuação desta história de

vida: as criaturinhas geradas;

E, por fim e princípio de todo meu esforço, a meus netos e netas, Kamilly, Mariana,

Rafaela, Henrique, Joaquim, Matheus, Manuela e Beatriz, que vieram a este mundo para

abençoar a vida deste educador, levando-o a acreditar ainda mais na maravilha que é o ser

humano.

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AGRADECIMENTOS

Ao Pai Maior e a todas as energias do universo, por esta vida saudável, produtiva e

vitoriosa.

Os agradecimentos, nos momentos que marcam a trajetória de realizações, levam ao

esquecimento de atores que contribuíram para nossa caminhada – a memória nos trai por

vezes, transformando-nos em mal-agradecidos. Por isso, se falhas houver, que não sejam

atribuídas à obra do descaso.

Reconheço a existência de muitos protagonistas em minha história de vida, entre os

quais Dorica Krajan, por seu apoio e pelas sugestões dadas durante a pesquisa.

No entanto, não poderia deixar de citar aqueles que diretamente contribuíram para este

momento, único e especial:

A meu orientador, Professor Doutor José Eustáquio Romão, pelas provocações e

desafios que me fizeram mergulhar neste projeto e pela paciência e rigor amorosos

demonstrados no questionamento de meu trabalho, orientando-me e contribuindo,

sobremaneira, para que esta pesquisa viesse à luz.

Ao Dr. José Eduardo de Oliveira Santos, pela paciência, determinação e competência

com que me auxiliou a conduzir o processo de construção desta tese e pelas observações

enriquecedoras que me ajudaram nesta árdua, mas prazerosa caminhada.

À plêiade deste Programa que, durante os momentos de reflexão, contribuiu para o

descortino de minha prática educacional, “jogando luzes” que me permitiram nortear esta

pesquisa e continuar...

Sem ser redundante, mas o fazendo, retomo e ressalto a figura de José Eustáquio

Romão e a de José Eduardo de Oliveira Santos e acrescento a de outros freirianos mais

próximos, num agradecimento especial, por terem acreditado em minha proposta.

Aos professores doutores Edgar Pereira Coelho, José Eustáquio Romão, José Eduardo

de Oliveira Santos, Maurício Pedro da Silva e Jason Ferreira Mafra, integrantes da banca de

qualificação, pelas valiosas contribuições para finalizar esta tese.

Aos doutores que integram a banca examinadora, pela disposição em avaliar meu

trabalho.

A todos, meu profundo e sincero agradecimento.

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“É preciso meditar em cada palavra que

se fala, em cada impulso, no resultado.

Num caso, é preciso ver logo a que

objetivo visa a ação; no outro, é preciso

cuidar do que se quer significar.”

Marco Aurélio

“Viver pelos outros, viver em todos e em

cada um, como sentimos cada um dos

nossos semelhantes viver em nós

mesmos, eis o verdadeiro destino do

homem.”

Benjamin Constant

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RESUMO

Nesta tese, examina-se a categoria neologismos como elemento fundamental para

compreender, em profundidade, a práxis de Paulo Freire, já que foram criados ao longo de sua

caminhada, em ato, comprometida com a luta pela libertação dos oprimidos. Discutem-se tais

construções com os seguintes objetivos: a) contribuir para deslindar a intenção do pensador da

educação em construir um discurso que desse conta de precisar seus ideais epistemológicos no

trato da educação, além de reforçar sua tese de que só é possível pensar em educação

emancipadora pela ressignificação da prática sociopedagógica em conexão com e no mundo;

b) demonstrar que os recursos por ele utilizados tinham o propósito de dar a sua mensagem

rigor e precisão indispensáveis para produzir sua denúncia-anúncio, utilizando-se da palavra

como instrumento de intervenção na realidade-mundo; c) apresentar uma nova leitura do

conjunto de reflexões freirianas, reinventando seu legado; d) corroborar a hipótese de que as

expressões foram criadas e postas estrategicamente no contexto para dar força expressiva e

consistência semântica à análise da realidade e deixar clara sua opção político-pedagógica pelo

oprimido. Nesta investigação, analisam-se os aspectos semânticos e morfossintático-

semânticos das construções freirianas para fundamentar sua importância no discurso. Este

estudo revelou que Freire pensava suas criações com rigor epistemológico, pois sua produção

discursiva demonstra um fazer científico sem precedentes. Todas as formas utilizadas

produzem efeito de sentido, decorrente de um processo de elaboração vocabular, que se

fundamenta na prática e no conhecimento linguístico de um grande artífice das palavras.

Procurou-se comprovar que todo o texto traz a marca de um pensador preocupado em afirmar

que a educação emancipadora só se consigna pela superação das contradições num processo

dialógico. Neste trabalho, está todo o esforço de análise que demonstrou ter Freire produzido

uma obra de valor sociolinguístico-epistemológico inquestionável, pois mais do que criar

palavras para dar conta de registrar, com precisão, sua fala, traduziu toda a angústia e

indignação das massas populares. E mais: ensinou-nos como é possível fazê-lo sem abandonar

o rigor científico que toda a pesquisa preocupada em deslindar e explicar os fatos exige.

Palavras-chave: Aspectos morfossintático-semânticos. Contribuição sociolinguística.

Educação emancipadora. Neologismos. Práxis freiriana. Rigor epistemológico.

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ABSTRACT

In this thesis is exanimate the neologisms category as a fundamental element to understand in

depth the Paulo Freire’s praxis as they were created along his journey in act, committed with

the struggle for liberation of the oppressed. These constructs are discussed with the following

objectives: a) to contribute clearing the intention of the education thinker in building a speech

that could be able to require his epistemological ideals in dealing with education, and

reinforcing his thesis that it is only possible to think about emancipator education by reframing

the social-pedagogical practice in connection with and in the world; b) demonstrate that the

resources by him used were intended to give his message rigor and essential precision to

produce his complaint-ad, using the word as an instrument of intervention in the world-reality;

c) present a new reading of the set of Freirian reflections reinventing his legacy; d) supporting

the hypothesis that the expressions were created and placed strategically in the context to give

expressive power and semantic consistency for the analysis of reality and clarify his political-

pedagogical option for the oppressed. In this research, we analyze the semantic aspects and the

morphological syntactic-semantic Freirian constructions to set up its importance in speech.

This study revealed that Freire thought his creations with epistemological rigour because its

discursive production demonstrates unprecedented scientific work. All forms used produce

meaning effect, resulting from a process of vocabulary development, which is based on

practice and linguistic knowledge of a great craftsman of words. We tried to prove that all the

text bears the mark of a thinker worried to say that emancipator education consigns only by

overcoming contradictions in a dialogical process. In this work all the effort of analysis

demonstrated that Freire has produced an unquestionable sociolinguistic and epistemological

work value because more than create words to account accurately his speech, he translated all

the angst and anger of the masses. Further taught us how it will be possible that you can do it

without abandoning the scientific rigour that all research concerned with unraveling and

explaining the facts require.

Keywords: Emancipator Education. Epistemological Rigor. Freirean Praxis.

Morphosyntactic and Semantic Aspects. Neologisms. Social Linguistics Contribution.

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RESUMEN

En esta tesis se analiza la categoría neologismos como un elemento clave para comprender, en

profundidad, la praxis de Paulo Freire, ya que se han creado a lo largo de su caminata, en el acto,

comprometida con la lucha por la liberación de los oprimidos. Discuten estas construcciones con

los siguientes objetivos: a) contribuir a desentrañar la intención del pensador de la educación en la

construcción de un discurso que este proyecto necesita de especificar los ideales epistemológicos

en el tratamiento de la enseñanza, además de reforzar su tesis de que sólo es posible pensar en

educación emancipadora al reformular la práctica socio-pedagógica en relación con y en el mundo;

b) demostrar que los recursos por él utilizados fueron pensados para dar su mensaje de rigor y

precisión necesaria indispensables para producir su denuncia-anuncio, usando la palabra como

instrumento de intervención en la realidad-mundo; c) presentar una nueva lectura de la serie de

reflexiones Freire, reinventando su legado; d) el apoyo a la hipótesis de que fueron creados y

colocados estratégicamente en el contexto de dar fuerza expresiva y la coherencia semántica con el

análisis de la realidad de las expresiones y aclarar su opción político-pedagógica para los

oprimidos. En esta investigación se analizan los aspectos semánticos y construcciones

morfosintácticas y semánticas de Freire para fundamentar su importancia en el discurso. Este

estudio reveló que Freire pensaba sus creaciones con rigor epistemológico ya que su producción

discursiva muestra el trabajo científico sin precedentes. Todas las formas utilizadas producen

efecto de sentido como resultado de un proceso de desarrollo del vocabulario que se basa en la

práctica y los conocimientos lingüísticos de un gran artesano de las palabras. Trató de demostrar

que todo el texto lleva la marca de un pensador que se preocupa de afirmar que la educación

emancipadora se consigna sólo mediante la superación de las contradicciones en un proceso

dialógico. En este trabajo está todo el esfuerzo de análisis que demostró que Freire ha producido

una obra de indiscutible valor sociolingüístico y epistemológico porque más que crear palabras

para dar cuenta de registro con precisión su discurso, tradució toda la angustia y la indignación de

las masas. Y más, nos enseñó cómo se puede hacerlo sin abandonar el rigor científico que toda la

investigación preocupada con el desentrañar y explicar los hechos requiere.

Palabras clave: Aspectos morfosintácticos y semánticos. Sociolingüística contribución.

Educación emancipadora. Neologismos. Freire praxis. Rigor epistemológico.

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SUMÁRIO

Apresentação ......................................................................................................... 13

Introdução ............................................................................................................. 20

Justificativa e relevância social ........................................................................ 24

Sobre o objeto de estudo e os objetivos do trabalho ........................................ 27

Capítulo I – Procedimentos metodológicos e referencial teórico ......................... 32

Capítulo II – Neologismos e expressões neológicas.............................................. 38

Definição e fundamentação .............................................................................. 38

Formação de palavras: composição e derivação .............................................. 39

Prefixos: origem e significação .................................................................... 45

Sufixos: significação .................................................................................... 51

A linguagem e sua função histórico-social ...................................................... 57

Capítulo III – A discussão semântico-política do discurso freiriano .................... 75

Capítulo IV – Análise morfossintático-semântica das construções freirianas ...... 114

A crítica às práticas ineficazes ......................................................................... 119

Últimas inspirações ............................................................................................... 138

Referências ............................................................................................................ 146

Anexo .................................................................................................................... 154

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APRESENTAÇÃO

Como professor da escola básica e do ensino universitário há muito tempo – profissão

que sempre me inquietou e motivou –, impus-me o desafio de formar cidadãos críticos e

conscientes, enfrentando sua situação de desesperança, ocasionada, geralmente, pelo fato de

não encontrarem, esses cidadãos em formação, objetivo definido na prática que desenvolviam

cotidianamente. Tratou-se, sempre, de apontar para a perspectiva de um viver solidário em

busca de um vir a ser no mundo. Essa desorganização generalizada tem incomodado minha

prática como educador e me instigado a mergulhar na realidade dos estudantes que chegam

aos bancos universitários.

Diuturnamente, tenho-me debruçado sobre os questionamentos desses jovens que

procuram auxílio para equacionar os dramas existenciais agravados, amiúde, por situações de

vida que os transformam em verdadeiras “colchas de retalhos” que não se podem alinhavar.

São pessoas da melhor qualidade, perdidas em um mundo de desacertos e exploração, à espera

de um momento mágico que os resgate de um vendaval de desilusões e lhes mostre o caminho

de um viver com dignidade.

Para esclarecer essa inquietação, retomo parte de minhas andanças por escolas públicas

e particulares, que me permitiram avaliar a prática educativa destinada a formar homens que

atendessem às necessidades de um poder domesticador. Estou no ocaso dos anos 60 do século

passado e limiar dos 70, por marcarem o início de minha trajetória como professor.

Prenunciava-se a busca de interação com o mundo e com o outro, como base de meu

crescimento interior, a possibilidade de construir o conhecimento solidariamente pelo sentir

plenamente, vivenciar, respeitar e respeitar-se.

Nesse diálogo com o outro, para entendimento de minha interação com o mundo, dei-

me conta de que havia necessidade de romper alguns “modelos” estabelecidos,

conscientizando-me de que o estar no mundo era um constante alterar, desconstruir e

construir, o que exigiria de mim um outro olhar sobre a realidade. E de que maneira isso seria

possível? Aceitando desafios, vencendo-os, comungando ideais, concretizando projetos com

meus alunos.

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Essas preocupações instigadoras me levaram a praticar “freirianamente” a educação.

Trabalhava com três realidades diferentes: a pública, na rede municipal de ensino de São

Paulo, a privada, no Colégio Claretiano de Guarulhos e na Escola Vocacional Luís Antônio

Machado, lecionando para os cursos Colegial e Normal (formação de professores), e a

universitária. Reunia-me com os alunos dos três segmentos para discutir a realidade. Em

nossas sessões de estudo orientadas, utilizávamos textos literários e de jornais como geradores

de discussões sobre os “desencontros” cotidianos que traduziam injustiças, discriminações e

diferentes formas de exploração do homem pela organização opressora, geradora e

mantenedora das desigualdades. Motivados pelo calor das discussões e pela forma de conduzir

os trabalhos práticos, os estudantes chegavam a propor ações de engajamento em favor da vida

pelos e para os espoliados do mundo pelo modo de produção capitalista, na perspectiva do

desenvolvimento de seu potencial. O material produzido era compilado, rediscutido com os

pares e, em seguida, sintetizado. Dessa síntese, pontuavam-se algumas ações de campo que

pudessem contribuir para uma nova ordem socioeducacional das comunidades.

Criaram-se, para isso, quatro grupos de trabalho, a saber: o primeiro, na escola

municipal, visitaria a comunidade do entorno para coletar dados, por meio de entrevistas

orientadas e questionários, com o fito de mapear a realidade socioeconômica da região, suas

mazelas e perspectivas. O segundo, com alunos do curso Normal, tinha como objetivo

entrevistar alguns pais, empresários, para avaliar a realidade socioeconômica de seus

funcionários. O terceiro, no Colégio particular de Guarulhos, visitou escolas públicas da

região e centros comunitários, colhendo amostras para dimensionar as carências dessas

comunidades, por meio de entrevistas com os atores dos segmentos visitados. Coletado, o

material era apresentado numa espécie de fórum de debates aos respectivos pares de cada uma

das instituições envolvidas. Reunidos na quadra das respectivas escolas, os estudantes

discutiam o assunto, analisando os problemas que lhes eram relatados. Muitos demonstravam

certa angústia e revolta decorrentes do que ouviam e vivenciavam diariamente. Esse misto de

revolta e interesse pela realidade gerava discussões, por vezes acaloradas, que traduziam a

vontade de mudar a situação de vida experienciada por aqueles jovens. Muitos traziam,

indignados, informações sobre a luta de seus pais para prover as necessidades diárias.

Narravam toda sorte de desacertos que “atrapalhavam” seu cotidiano escolar, o que não lhes

permitia desenvolver adequadamente seus estudos.

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Nessas sessões, um observador, escolhido pelos pares, anotava o resultado das

discussões. Em seguida, o material era analisado e organizado por uma comissão formada por

alunos e professores de cada uma das instituições. Terminada essa fase do processo, levei o

material para meus alunos dos cursos de Letras e de Pedagogia da Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras Farias Brito. Lá, o quarto e último grupo, coordenado por mim, iniciou o

trabalho de análise, discussão e tabulação dos dados para “construir” o quadro daquelas

realidades. O mapeamento feito nos permitiu traçar o panorama da situação dos atores:

autoestima baixa, fruto do ensino deficiente, e reforçada pela desagregação familiar, situações

desumanas, vivenciadas por eles em casa, agravadas pela revolta de seus pais, que, além de

explorados em seu trabalho diário (depoimento dos alunos), não conseguiam prover as

necessidades básicas dos seus. Tal labirinto existencial traduzia a falta de perspectiva daqueles

jovens. Muitos afirmavam não ver necessidade de permanecer na escola, pois não teriam

chance de “mudar de vida”; outros, no entanto, ainda acreditavam em uma “saída” para seu

drama cotidiano. Mas todos sonhavam.

Esse entrave momentâneo que mostrava a fragmentação daquele futuro, para mim,

promissor, pois bastaria auxiliá-los a encontrar o norte de sua caminhada, levou-me a repensar

a prática para encontrar um meio eficaz de reconstruir aquelas mentes em busca de alento e

compreensão, que só faziam esperar um “milagre” que, cada vez mais, parecia-lhes

impossível. Por isso, procuramos, alguns professores e eu, sistematizar os debates, tornando-os

permanentes, mobilizando a comunidade estudantil a participar ativamente do projeto “fazer-

construir para libertar”, “[...] dotando essas pessoas de recursos mínimos para a inserção no

mundo da cultura. Esse modus faciendi era partilhado pelos alunos que não mediam esforços

para operacionalizar esse projeto” (SIMÕES, 2006, p. 17).

Retomo, aqui, para ilustrar parte do trabalho desenvolvido à época, o relato posto em

minha dissertação de mestrado:

Na EMPG Comandante Garcia D’Ávila, com um grupo de professores, desenvolvia

projetos esportivo-culturais que buscavam envolver os estudantes em eventos

comunitários: campeonatos esportivos, desfiles e adaptações para teatro feitas pelos

próprios educandos que retratavam passagens da história do Brasil, como

Inconfidência Mineira, mesclando política e literatura, Independência,

Descobrimento e Proclamação da República. Além disso, havia a apresentação da

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fanfarra e sessões musicais que contemplavam textos do período de repressão,

suscitavam discussões calorosas e, consequentemente, o interesse dos alunos em

compreender o sentido sociopolítico que aquelas composições ensejavam, bem como

o compromisso libertário-transformador de suas mensagens. Com isso, provocava-os

a participar ativamente das atividades que poderiam levá-los à compreensão do

mundo, a fazer a leitura e a releitura do mundo [...] (id., ib., p. 17-18).

Essas provocações faziam-nos imergir na realidade histórico-social, vivenciando

situações que, transmudadas para a realidade deles, os ajudavam a compor o contexto de sua

existência e a compreender a complexidade do mundo. À medida que iam reconstruindo a

história de seu País, descobriam similitudes com a realidade-mundo de que participavam,

demonstrando até certo inconformismo com as injustiças de que eram vítimas.

Questionamentos eram postos pelos próprios alunos, a quem se dava voz, permitindo que se

posicionassem sobre as mudanças que ensejavam para resolver seus entraves existenciais. Nas

relações dialógicas entre os estudantes e entre eles e seus professores, observava-se a

importância daqueles momentos, pois a leitura e a releitura que faziam da realidade apontavam

para a necessidade de levar avante o projeto de educação participativa, desafiadora, de agentes

dispostos a transformar, avançando na busca do ser mais.

Na lição de Freire (1987, p. 41), isso é possível quando há consciência de que

O homem existe – existere – no tempo. Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora.

Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o

esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se.

Na medida, porém, em que faz esta emersão do tempo, libertando-se de sua

unidimensionalidade, discernindo-a, suas relações com o mundo se impregnam de

um sentido consequente. Na verdade, já é quase um lugar-comum afirmar-se que a

posição normal do homem no mundo, visto como não está apenas nele mas com ele,

não se esgota em mera passividade.

Paralelamente, na Escola Vocacional, desenvolvi, com meus alunos do Curso Normal,

“[...] projetos voltados para a formação integral da pessoa, participando de atividades de

renovação do ensino-aprendizagem” (SIMÕES, 2006, p. 18). No desenvolvimento desses

projetos, buscávamos – os alunos, eu e alguns professores – discutir e repensar a prática

educacional cotidiana, tendo agora como mote a obra de Freire. Nossas discussões

objetivavam a preparação dos jovens para a vida, para o trabalho de resgate e ressignificação

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de valores éticos e morais, combinando-os com atividades voltadas à prática social

(responsabilidade social). Além dessa prática enriquecedora, coordenava o curso técnico em

Agropecuária e o Supletivo, criado à época pelo diretor professor Aldo Perracini para atender

aos reclamos de um segmento carente.

Meu trabalho como gestor me permitiu ampliar minha leitura da realidade, pois convivi

com a diversidade econômico-cultural. Nesses cursos, desfilavam “ricos e pobres” – pessoas

em relação de opressão. Nossa preocupação maior – a da instituição como um todo – era

propiciar aos “excluídos”, econômica e socialmente, a oportunidade não só de concluírem seus

estudos, mas também a de fazê-lo por meio de boa formação. Os fundamentos teóricos, que

norteavam minha prática e a dos demais professores envolvidos, vinham dos ensinamentos de

Freire, em Pedagogia do oprimido e Educação como prática da liberdade. Acreditávamos que

só a educação, moldada nos ideais freirianos, poderia levar à formação de cidadãos

conscientes, críticos e criativos, que pudessem fazer “a diferença” como agentes

transformadores da realidade. Para tanto, a educação que se praticava em nossa instituição

amalgamava teoria e prática para o agir com autonomia.

Nesse processo, entendia que, só conjugando conteúdo e contexto vivencial,

conseguiria preparar os jovens para atuarem no e com o mundo, experienciando-o.

Durante minha trajetória profissional, passei por experiências enriquecedoras, que

muito me desafiaram e ainda desafiam, e mais: inquietam-me e me fazem sonhar e buscar

incansavelmente novas práticas esclarecedoras, que agreguem contribuições para um fazer

educacional transformador. Nessa busca está o inconformismo ad aeternum com a mesmice da

pseudoprática formadora de consciências, que em nada contribui para a formação do ser

humano, e sim para ludibriá-los, em sessões de ilusionismo mágico, com o fito de transformá-

los em títeres sociais.

Esse inconformismo levou-me à procura de novos horizontes. Aceitei o convite para

trabalhar nas Faculdades Integradas Nove de Julho – hoje Universidade Nove de Julho –, onde

tive a oportunidade de continuar minhas pesquisas e dar sequência às minhas atividades

docentes, pondo em prática a experiência acumulada em alguns lustros como educador.

Intensificava minhas leituras freirianas e concretizava meus ideais de formação como homem

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questionador, crítico, revisitando, constantemente, minha prática para um melhor fazer-

construir solidariamente. Desenvolvi diversas atividades, entre as quais a de revisor das

publicações acadêmico-científicas da Instituição, o que alargou, ainda mais, meu

conhecimento e análise da realidade.

O contato com nomes expressivos da educação, por meio da leitura de artigos,

entrevistas, ensaios e resenhas, contribuiu para aprofundar ainda mais minha análise do

modelo de educação brasileira. Experiência assaz enriquecedora foi a convivência com os

intelectuais do Programa de Mestrado em Educação da Uninove. Passei a participar de

algumas atividades do Programa e de discussões sobre os rumos da educação.

Como linguista e pedagogo, por vezes, era chamado a colaborar nos discursos e nos

textos analisados e produzidos. A todo o momento, novos desafios eram postos pelos

intelectuais, que me instigavam a pesquisar e a fundamentar o uso da linguagem em

determinados contextos, apontando sua relevância para o fazer educativo.

Em minhas andanças de pesquisa, fui generosamente desafiado pelo Professor Doutor

José Eustáquio Romão a deslindar a complexidade do discurso freiriano pela análise das

construções inusitadas (neologismos, metáforas e expressões neológicas). Aceitei o desafio

por entender que poderia contribuir, com minha pesquisa, para aclarar alguns aspectos

importantes da linguagem de Freire e corroborar sua intenção de anunciar, com rigor e

precisão epistemológicos, uma nova ordem educacional revolucionária capaz de transformar a

sociedade. Passei a revisitar as obras Educação como prática da liberdade e Pedagogia do

oprimido, discutindo as peculiaridades discursivas com os professores José Eustáquio Romão

e José Luís Vieira de Almeida. Essas discussões eram provocativas e me impeliam a analisar e

reanalisar o discurso freiriano para buscar as construções inusitadas do intelectual

pernambucano, utilizadas na construção do “eixo motor” da prática educativa libertadora para

edificação de uma sociedade plural, forte, solidária.

Esse trabalho motivou-me a aprofundar meus estudos, mas isso não bastava, pois a

inquietação se assenhoreava de mim e me angustiava. Tinha necessidade de fazer-me ouvir,

contribuir para desmistificar Paulo Freire. Para tanto, precisava do aval da comunidade

científica e fui... Por sugestão e incentivo desses professores, para dar seguimento a meu

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trabalho, iniciei o mestrado em Educação. Durante o curso, analisei Educação como prática

da liberdade (1987), Pedagogia do oprimido (1988), Pedagogia da autonomia (2002) e A

importância do ato de ler (1999) para identificar os neologismos freirianos e confirmar sua

pertinência no discurso para explicitar e explicar, com precisão e rigor científicos, a

complexidade do mundo em transformação.

Como a pesquisa no mestrado não foi suficiente para deslindar o universo freiriano, em

razão de sua complexidade, vi-me na obrigação de continuar meu trabalho investigativo no

doutorado com o fito de contribuir, com meus achados, para a luta por uma educação de

qualidade que possa, pela prática, revolucionar a sociedade.

O acreditar nessas sementes de um fazer comprometido com a construção de um

caminho educacional revolucionário para a educação brasileira justifica a necessidade desta

pesquisa de aprofundamento das ideias freirianas, pela análise semântico-linguística das

construções neológicas, como contribuição à prática educacional libertadora, reforçando o

propósito de Freire de utilizar os recursos da língua para conferir precisão a seu discurso e

sugerir as mudanças necessárias na Educação brasileira.

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INTRODUÇÃO

Em nossa leitura das obras de Freire, convencemo-nos da importância de analisar, com

a devida profundidade e acurácia, o teor semântico-gramatical de seu discurso, tomando a

cautela de não descaracterizar sua obra, e sim oferecer nossa colaboração para descortinar o

propósito do pensador pernambucano em dotar seus ensinamentos do rigor e precisão

necessários para efetivar as mudanças tão desejadas na educação nacional, tendo como foco a

relação de opressão que se estabelece no processo educacional e que entrava a prática

libertadora.

Ousamos escrever uma tese sobre os neologismos da verve de Freire com o fito de

demonstrar seu interesse por uma linguagem com força conotativa suficiente para fazer

emergir a palavra do oprimido do próprio contexto discursivo, tendo, nas construções

neológicas, a marca da subversão do academicismo tecnicista, árido, distanciado dos

“fazedores” da história. Com isso, busca aproximar o discurso-alerta1 dos únicos atores

capazes de transformar a realidade brasileira: os oprimidos.

Decidimos, para nosso intento, partir de Educação e atualidade brasileira (2001)2 –

visitando, em sequência, Extensão e comunicação? (1975), Ação cultural para a liberdade

(1976) e Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (2011) –, por ser o

embrião de todo o pensamento revolucionário freiriano, indispensável, portanto, para

fundamentar o objeto deste trabalho: A linguagem de Paulo Freire e sua relação com a

educação libertadora, revisitando, pontualmente, Pedagogia do oprimido (1988), Educação

como prática da liberdade (1987) e Pedagogia da autonomia (2002). A obra em pauta traz a

fundamentação da proposta de Freire de analisar a realidade nacional tendo como mote a

“dialogação” (criação freiriana para indicar a ação de dialogar) com o homem brasileiro, o

ator-foco de seu discurso – o operário, o camponês –, e sua palavra e cultura silenciadas, pois

1 Conceito, para nós, mais adequado à palavra de Freire no tratamento dado à sua produção de sentido na

abordagem das questões tratadas em suas obras. 2 Trata-se da tese de concurso para a cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de

Pernambuco, de 1959, primeira obra de Freire, organizada por José Eustáquio Romão e levada à publicação em

2001.

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[...] não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo

geral, imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mundo da

natureza de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da

concepção “bancária”, entregar-lhes “conhecimento” ou impor-lhes um modelo de

bom homem, contido num programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos

(FREIRE, 1988, p. 84).

Nessa perspectiva, é necessário reconhecer as relações educador-educando e educando-

educador como relações entre seres sempre em processo de desenvolvimento, num permanente

estar-sendo, num país em transformação. E essa complexidade humana dinâmica desperta, em

Freire, inquietação e desconforto, o que o leva a rebelar-se contra as instituições opressoras

que sempre prestaram um desserviço à sociedade.

Nessa esteira, observa-se o movimento ininterrupto registrado em seu discurso pelos

advérbios terminados em “mente”, tais como mecanicistamente, messianicamente,

sectariamente, transitivamente e indicotomizavelmente, usados em profusão para

contextualizar e capturar o dinamismo presente em todas as situações em análise, o que

reforça o processo de democratização permanente da sociedade, que não pode prescindir da

participação do homem como ser histórico, único capaz de efetivar as mudanças esperadas

para um conviver harmonioso. No discurso de Freire, notam-se as marcas de seu compromisso

existencial como pensador: melhorar o mundo, denunciando as mazelas sociais, dialogando

com as diferenças, ouvindo-as, respeitando-as pelo reconhecimento de suas potencialidades. É

preciso discutir, reinventar e mais: ressignificar a realidade educacional de nosso país. Mas

como fazê-lo?

Muitos pesquisadores têm-se debruçado sobre o legado de Paulo Freire, buscando

analisar-lhe a forma e, sobretudo, o conteúdo para “decifrar” a complexidade e abrangência de

seu discurso. Entre esses educadores está José Eustáquio Romão, cujo trabalho incansável vem

contribuindo para propagar os ensinamentos do pensador pernambucano por todas as áreas do

conhecimento humano. Para tanto, incentivou a criação do Grupo de Pesquisa Paradigmas do

Oprimido, em 2000, do qual participamos como educador e linguista, em cujas discussões

salientava-se que não se poderia conhecer o pensamento de Freire sem a análise, em

profundidade, de seu discurso, o que muitos freirianistas como Carlos Alberto Torres, Colin

Lankshear, Michele Knobel, Moacir Gadotti, Peter Leonard, Peter McLAren e Stanley

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Aronowitz já estavam e estão fazendo. No entanto, antes de “desbravar o universo” do

pensador pernambucano, é preciso estudar os aspectos linguísticos de que se valeu para

discutir os problemas de sua época. Essa preocupação está posta no preâmbulo que Romão (in

FREIRE, 2001, p. XV) escreveu para Educação e atualidade brasileira:

Nesta fase do processo de conhecimento, não buscamos referências fora do texto.

Não interessa, por enquanto, saber quem é o autor, seus condicionamentos, a classe

social a que ele pertence, sua visão de mundo, suas motivações para a elaboração do

texto em causa etc. Aqui, o importante é esgotar o entendimento de todas as

“dependências internas” do texto e respectivas relações, mútuas e com o todo. Como

a obra é isolada nesta fase da investigação e examinada na sua coerência interna –

enquanto não-contradição lógica – e na relação dos signos que a constituem entre si

(sintaxe) e deles com seus referentes (semântica), podemos denominar esta análise de

“compreensiva”, “imanente”, lógica” ou “sintático-semântica.”

Movidos por essas palavras instigadoras, queremos deixar nossa contribuição à

pedagogia freiriana. Analisamos o discurso de Freire – lembrando que o discurso é também o

que está fora do texto, a mensagem que se depreende do que está posto –, primeiro, em

decorrência de nossa inquietação ditada pelo paradoxo instituído no imaginário popular, que

traduz o reducionismo com que se trabalham, nos meios educacionais, as ideias freirianas: um

simples método ou técnica de alfabetização rápida criada por um pretenso pedagogo

(lembramos que a formação de base de Freire foi em Direito), o que, para nós, é visão

distorcida e leviana do senso comum, pois, de acordo com Giroux (apud MCLAREN;

LEONARD; GADOTTI, 1998, p. 191), Freire “[...] tem sido freqüentemente apropriado por

acadêmicos, educadores de adultos e por outros que habitam a ideologia do ocidente de formas

que, muitas vezes, reduzem este trabalho a uma técnica ou a um método pedagógico.”

Segundo, porque, apesar de as obras de Freire terem alcançado repercussão internacional e de

muito se ter escrito sobre ele, falta conhecê-lo pela leitura de alguns aspectos linguísticos

vitais para compreendê-lo no contexto histórico do pensamento educacional, dado que sua

investigação e prática não se resumem à alfabetização de adultos – vão muito além, atingindo

dimensões socioético-político-pedagógicas.

Esse reducionismo constata-se não só na educação básica, mas também, e

principalmente, nos bancos universitários, nos cursos de Pedagogia, em que só se menciona en

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passant o legado de Freire como um “fator” metodológico para alfabetização. Esquecem-se

alguns educadores da dimensão

[...] profunda e radical de sua teoria e prática como um discurso anticolonial e pós-

colonial [de resgate da valoração do homem como ser histórico e agente das

transformações sociais]. Mais especificamente, o trabalho de Freire é, muitas vezes,

apropriado e ensinado “sem nenhuma consideração do imperialismo e sua

representação cultural. Essa lacuna sugere a contínua dissimulação ideológica do

imperialismo hoje” [que condena ao mutismo os atores do processo de libertação –

os homens em relação de opressão]. Isso sugere que o trabalho de Freire tem sido

apropriado de formas que privam o trabalho de algumas de suas percepções políticas

mais importantes. Da mesma forma, isso testemunha como uma política de

localidade trabalha para o interesse do privilégio e do poder para atravessar fronteiras

culturais, políticas e textuais como também para renegar a especificidade do/ da

outro/ outra e impor o discurso da hegemonia colonial (GIROUX apud MCLAREN;

LEONARD; GADOTTI, 1998, p. 191-192).

Por isso, cabem aqui alguns questionamentos: Como transformar a realidade

educacional se, em geral, não existe preocupação em formar um educador que conheça a base

da educação? Se não se desperta no graduando o interesse pelas ideias do pensador

pernambucano? Tal “descaso”, que promove distorções, equívocos e críticas perfunctórias,

revela-nos o muito que falta percorrer para que se consiga deslindar a complexidade e a

riqueza do pensamento freiriano. Esse quadro, que há muito nos inquieta e provoca, é a razão

de o discurso de Freire constituir o foco de nossa pesquisa. Durante as conversas com nosso

orientador e com o coorientador, discutimos a importância de analisar as construções

freirianas não só do ponto de vista semântico-gramatical, mas também por sua dimensão

epistemológica, ético-social e político-educacional.

Nosso propósito é retomar a análise do discurso de Freire, considerando seu tempo

histórico, suas opções ideológicas e a maneira pela qual ele inseriu essas opções em seu

trabalho discursivo, relacionando teoria e prática linguísticas que, no decorrer de seu discurso,

evidenciam um ato pedagógico de fundamental importância para aclarar, ainda mais, a

compreensão da realidade educacional por ele denunciada. Isso pode contribuir para

aprofundar a reflexão não apenas sobre o tipo de conhecimento que se está produzindo, mas

também sobre o que fazer nesse processo de produção e como lidar com ele.

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Muito se tem escrito sobre as categorias do pensamento freiriano, entre as quais

dialogicidade, opressão, conscientização, alfabetização e educação libertadora3. Nossa

preocupação aqui é estudar a carga significativa dos neologismos no discurso de Paulo Freire

por considerá-los categorias que fundamentam sua obra. Basta lembrar alguns dos elementos

que sustentam seu pensamento: dialogação, existenciar, existenciação e incompletude, todos

criados por ele.

Justificativa e relevância social

Mais do que satisfazer as necessidades acadêmicas, uma pesquisa científica deve

pautar-se por sua contribuição social. Antes, ressalte-se, não se pode fazer ciência numa

dimensão reducionista, pautada em aspectos particulares de um discurso disciplinar; cabe, isto

sim, produzir conhecimentos orientados pela realidade social, a ela conectados, sobre ela

responsivos.

Em se tratando de um trabalho na área da Educação, e principalmente por ser o

discurso freiriano o objeto de estudo, é imperioso que se trate do assunto com rigor e esmero,

pois tudo o que já se escreveu e se escreve sobre Freire ganha, direta ou indiretamente,

contornos de relevância ético-social. Para não corrermos o risco de ver nossas afirmações

soarem arrogantes ou prepotentes, fundamentamo-las nas teorizações de alguns estudiosos de

expressão nacional e internacional que se têm debruçado sobre sua obra.

No Brasil, há, por exemplo, os escritos de Reinaldo Matias Fleuri, Educar para quê?

Contra o autoritarismo na relação pedagógica na escola (1986), que trazem os

questionamentos e reflexões sobre a prática cotidiana nas escolas, apontando as distorções

estruturais do ensino que “preconizam a fragmentação do saber”, e Consciência crítica e

Universidade, dissertação de mestrado em Educação apresentada na Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, em 1978, na qual o estudioso aponta que, para Freire, o diálogo e a

práxis são exigências pedagógicas para formação da consciência crítica do homem, isto é, que

“[...] o processo libertador é oriundo do diálogo centrado nos problemas que emergem da

3 Não nos cabe, aqui, retomar essas análises, muito menos enumerar os intelectuais da educação que cuidaram

desses assuntos, pois seria cansativo fazê-lo, uma vez que Gadotti (2001) e Mafra (2008) já trataram de levantar

os elementos necessários a tal propósito.

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práxis social e política” (GADOTTI, 2001, p. 340); de Carlos Rodrigues Brandão, O que é

método Paulo Freire (1988), que discute, detalhadamente, sua aplicação como sistema de

alfabetização mediatizado pela leitura de mundo; de João Batista Libâneo, Formação da

consciência crítica (1980), em que fundamenta, pela análise dos aspectos mágico, ingênuo e

crítico, a compreensão da realidade com base na pedagogia freiriana; da pena de José

Eustáquio Romão tem-se Dialética da diferença (2000), em que se defende a proposta de um

movimento de radicalização democrática para atingir um socialismo com liberdade, por meio

de uma educação que atenda às necessidades de todos, numa escola participativa e

revolucionária; Jason Ferreira Mafra (2007), em sua tese de doutorado A conectividade radical

como princípio e prática da educação em Paulo Freire, trabalha a conectividade como

elemento fundante do pensamento, da práxis e da axiologia do pensador pernambucano; Edgar

Pereira Coelho, em Cartas de Paulo Freire: o diálogo como caminho e pedagogia (2005),

estuda o gênero cartas, preferido de Freire, e argumenta que o pensador pernambucano se

utilizava desse recurso por ser o meio mais adequado de o oprimido interagir no e com o

mundo, pois é forma dialogal por excelência.

Pelo mundo, temos vários expoentes que confirmam a universalização do pensamento

freiriano. Sheryl L.Cohn, em Paulo Freire: the man and his educational theory (1988)4, trata

da pedagogia freiriana como força motriz subversiva na educação e como agente de

transformação na escola. Para o autor, a educação proposta por Freire leva à conscientização

profunda do educando, possibilitando-lhe o questionamento e o despertar para agir na

realidade.

Poderíamos ainda mencionar um sem-número de trabalhos5 de estudiosos (teses,

artigos, livros, entrevistas e diálogos registrados) que tratam do universo freiriano em sua

complexidade e, inspirados pelo legado de Freire, dão sua contribuição para revolucionar a

educação. No entanto, o foco de nossa pesquisa e seu diferencial é investigar os recursos

discursivos – estrutura e relação de sentido – que deram expressividade à sua obra, esperando

4 Citados em GADOTTI, 2001, p. 385. 5 Na obra Paulo Freire: uma biobibliografia, de 2001, organizada por Moacir Gadotti, registra-se um primeiro

levantamento de diversos trabalhos (sobretudo teses e dissertações) realizados sobre Freire ou fundamentados em

seus referenciais em diferentes lugares do mundo, até 1997. Jason Mafra, que coordenou a Unifreire, no Instituto

Paulo Freire, deu prosseguimento a esse levantamento, mostrando o crescimento exponencial dos estudos

freirianos no mundo (MAFRA, 2008, p. 9-40).

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contribuir para alargar a compreensão do pensamento freiriano. E é com esse espírito que

desenvolvemos nosso trabalho investigativo.

Na investigação das quatro obras mencionadas, de que fizemos uso na dissertação de

Mestrado, tratamos da análise dos neologismos para confirmar o rigor semântico-discursivo de

que se valeu o pensador pernambucano para examinar o sistema educacional brasileiro e

propor uma educação comprometida com a transformação da realidade nacional. Neste

trabalho, “mergulharemos” no universo freiriano para tecer considerações sobre a

complexidade de sua obra, analisando o propósito que gerou suas criações discursivas, além

de sua função e efeitos expressivos.

Como dito, a pesquisa se fará pela visita às obras Educação e atualidade brasileira

(1959), Extensão ou comunicação? (1970), Ação cultural para a liberdade e outros escritos

(1976) e Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (1977),

revisitando, pontualmente, Pedagogia do oprimido (1988), Educação como prática da

liberdade (1987) e Pedagogia da autonomia (2002) para complementar nossa investigação.

Em sua obra maior, Pedagogia do oprimido (1988), Paulo Freire deixa clara a

preocupação com as mazelas sociais que entravam o desenvolvimento do ser humano e sua

determinação em contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, em

que não se continue a constatar

A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada,

mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação

do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica (FREIRE,

1988, p. 30, grifos do autor).

Tal distorção impõe um sectarismo que não permite a busca do outro pela “co-

laboração”, pelo “existenciar” uma prática de construção de mundo. Há que se empunhar a

bandeira de luta por ideais libertadores, por meio de uma re-conscientização que se processe a

partir do reconhecimento da impotência cognitiva resultante da passividade promovida pelo

conforto existencial que impede a busca pelo “ser mais”.

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Por isso, analisar as obras de Freire em seu aspecto linguístico é contribuir para

reforçar sua tese de que só é possível revolucionar pela permanente ressignificação da prática

sociopedagógica em conexão com e no mundo. Essa inteireza existencial provocada pela

consciência da incompletude, inacabamento e inconclusão do indivíduo como observador-

agente do próprio fazer histórico-social é decorrente de sua conectividade, que no dizer de

Mafra (2007, p. 23) “[...] pode ser entendida como a capacidade do ser humano de, fazendo-se

sujeito consciente de sua inconclusão, unir-se às múltiplas dimensões da existência humana,

reinventando sua prática social.”

Portanto, é imprescindível investigar o propósito de Freire em demonstrar que a

revolução educacional só é possível pelo reconhecimento das alteridades e que a

transformação do pensamento sociopolítico-filosófico se efetiva pelo agir no e pelo mundo a

partir do olhar do oprimido. E nesse intento cabe analisar e discutir como o rigor semântico se

manifesta no discurso do pensador brasileiro “[...] com a intencionalidade de quem conhecia, e

muito, a essência simbólica de termos bem postos, em conexão-referência à mensagem

transformadora da consciência para efetivar as mudanças necessárias na educação.” (SIMÕES,

20106, s. p.).

Sobre o objeto de estudo e os objetivos do trabalho

O objeto de estudo desta tese é a estrutura morfossintático-semântica do discurso

freiriano, focalizando, com o devido aprofundamento, não só as estruturas neológicas de sua

verve, mas também, e principalmente, os jogos de palavras como construções inusitadas,

analisando-as no conjunto de seus textos. Intentamos demonstrar que a contribuição do

patrono da educação brasileira à língua portuguesa, com a criação de vocábulos, foi motivada,

em grande medida, por sua necessidade de exprimir, com precisão, determinadas ideias que

não poderiam ser expressas por meio de outros recursos já consagrados.

Nessa esteira, aspecto igualmente importante e merecedor de investigação é o

tratamento dado por Freire ao discurso, que, pretendemos demonstrar, tem o propósito de não

só incorporar o oprimido no discurso, mas também de “quebrar”, subliminarmente, o

6 Discurso freiriano: as construções inusitadas e sua relação com a educação libertadora. Trabalho apresentado

no “VII Colóquio de pesquisa sobre instituições escolares”, set. 2010. Uninove, São Paulo.

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academicismo linguístico árido, frio, intrincado que, além de não permitir a fluidez discursiva,

marginalizando, principalmente, os grupos mais oprimidos, distancia a análise do pesquisador

da realidade do objeto observado. Tal movimento inviabiliza o “mergulho” no contexto

daqueles que se encontram em relação de opressão, pois inibe a postura dialética que, por ser

dialógica, pode demonstrar, na prática, o tão decantado reconhecimento das alteridades. Serve-

nos de exemplo este trecho de seu diálogo com Ira Shor, em Medo e ousadia (1992, p. 176-

177):

Quando pensamos na linguagem como algo comprometido, também, com as classes

sociais, compreendemos o problema da sala de aula mais facilmente. Quando

comparamos nossa sintaxe com a sintaxe dos trabalhadores, por exemplo, sejam eles

norte-americanos ou brasileiros, podemos perceber como as condições de classe se

expressam através da linguagem. E podemos ver, facilmente, como os trabalhadores

têm uma linguagem muito direta, assim como uma vida que é muito direta. O

concreto de sua linguagem reflete o concreto de suas existências. Sua linguagem é

tão concreta quanto sua existência. Algumas vezes penso, também, simbolicamente,

que, por exemplo, quando digo “favela” ou “discriminação”, as palavras saem de

minha boca sem nenhuma espécie de peso, como se fossem palavras leves.

Quando eu as digo, é claro que sinto seu significado profundo, mas esse significado

me vem, sobretudo, intelectualmente, muito mais através da descrição da realidade e

de sua compreensão como um conceito que, devido a minha opção política na

sociedade, me leva, pelo menos, para perto do concreto, mas não para dentro dele

enquanto realidade. Mas quando essas palavras são pronunciadas pelas pessoas que

vivem nas favelas ou pessoas que são discriminadas, a linguagem tem peso. São

vinte quilos por palavra!

A consciência de Freire leva à constatação de que, por mais aproximação que se faça

da realidade do oprimido pelo comprometimento ideológico, falta imergir em seu mundo,

pensar como ele, “experienciar” a realidade circundante, senti-la, vivenciá-la. É a leitura de

mundo conotada pelas palavras, com seu peso morfossintático de repercussão semântica. Por

isso, para ele, mais do que pronunciá-las como expressão de mero espectador angustiado com

a situação do outro, é mister conscientizar-se de sua força simbólica na relação de opressão

por que passam esses atores. Aí, sim, teremos condições de promover as mudanças necessárias

na sociedade.

Nota-se, na leitura e na investigação do discurso freiriano, a preocupação que o

pensador demonstra com os oprimidos, independentemente da posição que ocupam e do papel

que desempenham na sociedade, sempre explicando a relação opressor-oprimido pelo binômio

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consciência-inconsciência, num processo de incompletude, de inacabamento do ser – daí a

permanente reação-revolução que se impõe ao opressor e que, por vezes, em razão do temor

de abandonar determinada “zona de conforto”, leva-o a tornar-se oprimido.

Nessa abordagem, demonstramos que Freire se utiliza da carga semântica de

expressões contextualizadas, aproveitando-se também dos aspectos fonético-psicológico7 e

morfológico-sintático8 para atingir seu propósito como pensador: a educação libertadora que

se dá pela incorporação da linguagem do educando pelo educador, numa solidariedade

linguístico-conceitual. Reforça nossa observação este trecho do diálogo de Freire com Shor

(1992, p. 177):

Então, Ira, a questão para mim não é abolir, de nossa linguagem de professor, de

nossa experiência de professor, palavras como “epistemologia”, “sujeito cognitivo”,

“práxis”, “manipulação”, “ideologia”, “classes sociais”, “mudança”, “regionalismo”,

“alienação”. Não: esses conceitos são absolutamente importantes para nós! Eles têm

sido moldados através da história do pensamento, têm um significado. A questão não

é aboli-los, ou renunciar a eles, renegá-los, mas, isto sim, como usá-los de modo que

se aproximem do concreto. Esta é a questão. Como diminuir a distância entre o

contexto acadêmico e a realidade de que vêm os alunos, realidade que devo conhecer

cada vez melhor, na medida em que estão de certa forma, comprometidos com um

processo para mudá-la.

Nessa esteira, investigamos o ato pedagógico de criar expressões para verificar se a

maestria com que conduz seu discurso é suficientemente forte para romper com a linguagem

acadêmico-científica que, no seu entender, é elemento de opressão. Ao lançar mão de recursos

estilísticos que caracterizam romances e poesias, entre os quais as metáforas, Freire demonstra

sua preocupação com a práxis, pois adequar a linguagem aos propósitos de aproximação com

a realidade dos atores – os espoliados do mundo – é um ato político-pedagógico,

transformador, mas que não o distancia do rigor científico. Exemplo que nos instiga a tal

análise verifica-se no texto a seguir:

7 Segundo Silveira Bueno (1965, p. 29), “A fala é atividade de quem fala ou escreve que, no momento necessário

da expressão, procura, no tesouro geral da língua, o termo, o vocábulo, a palavra, a construção gramatical que

mais se adapta à idéia, à emoção, que ele deseja exteriorizar. É uma seleção tôda individual e psicológica [...]”. 8 Para Bueno (Ibid, p. 31), a “variação de referência, geralmente, depende das modificações fonéticas das

palavras, mas, também exsurge da frase, do contexto morfológico-sintático através do qual se expressa o

pensamento. Somente na fala é que encontramos estas variações, por vezes, excessivamente, sutis, que se

prendem ao contexto e não nos dicionários onde as palavras existem arrancadas de seu meio vivo [...]”.

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IRA. Você se lembra de alguma metáfora que seja um bom substituto de linguagem

acadêmica?

PAULO. Agora mesmo, eu poderia repetir uma metáfora em linguagem simbólica

muito interessante, que outro dia usei no curso, aqui na universidade. Uma vez, por

exemplo, um intelectual tentou começar a participar nas atividades de um grupo de

camponeses. Ele ia lá dia após dia, tentando tornar-se uma espécie de conselheiro.

No terceiro ou quarto dia, um camponês lhe disse: “Olha aqui, companheiro, se você

pensa que vem aqui ensinar como cortar uma árvore, não precisa, porque já sabemos

como fazer isso. O que precisamos é saber se você estará conosco quando a árvore

cair”. Olhe, essa é uma linguagem muito simbólica. É muito rica. É poética,

precisamente porque a linguagem metafórica é poética.

Por exemplo, quero que você releia alguns de meus textos, onde encontrará,

facilmente, a influência do povo brasileiro sobre mim. Esta é uma das razões por

que há quem diga, às vezes, que não tenho rigor: porque uso muitas metáforas na

análise que tento fazer da realidade. Claro que são metáforas muito sofisticadas.

Lembro-me de uma, agora, que usei na Pedagogia do Oprimido, “viabilidade

incomprovada”.

Isto é, a “viabilidade incomprovada” é o futuro que temos que criar pela

transformação do que existe hoje, da realidade de agora. É algo que está além da

“situação-limite”, que deve ser criada por nós além dos limites que enfrentamos

agora. E chamei a isso “viabilidade incomprovada” (FREIRE; SHOR, 1992, p. 182).

Freire, em seu trabalho de elaboração discursiva, sugere preocupação com o rigor

linguístico, com a precisão da linguagem. No entanto, as expressões neológicas de sua criação

demonstram o alargamento dessa rigorosidade, perpassando a prática, já que a língua, como

ferramenta, é transformadora. Nessa perspectiva, pretendemos demonstrar que sua

preocupação linguística corrobora o mais importante, o rigor praxiológico. E aí estará o que

fundamenta a educação libertadora: a prática educativo-política para a transformação.

Outra questão que discutimos e defendemos neste trabalho investigativo é se Freire

realmente se utilizou de “artifícios” linguísticos, entre os quais a hifenização de alguns

prefixos, para exprimir seu pensamento e sua prática sociopolítico-filosóficos. Some-se a isso

mais um questionamento que merece estudo acurado: Se o pensador pernambucano primava

pelo rigor, porque, em seu discurso, fez derivar de slogan o verbo sloganizar e o substantivo

sloganização, mantendo o radical em sua língua de origem? Da mesma forma, requer

investigação do porquê de ter criado a forma verbal “mediatizar”, pois utilizou em seu

discurso o particípio passado “mediatizados”, em vez de fazer uso da forma “mediados”, de

mediar, existente em língua portuguesa. Igualmente, coube investigar – em edições diferentes,

diga-se de passagem – os usos e desusos do verbo torcer em suas formas derivadas “distorcer”

e “destorcer”.

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Nossa tarefa requer humildade, pois temos consciência da complexidade do

pensamento freiriano, que não pode ser deslindado numa única investigação. E esta tese já é,

destaque-se, continuidade dos estudos sobre os neologismos utilizados pelo autor e que

receberam uma primeira abordagem científica em estudo de mestrado por nós realizado.

Portanto, o que desejamos é contribuir, com esta nova análise, para alargar a compreensão do

legado de Freire, instigando outros pesquisadores ao debate mais aprofundado sobre a

contribuição do pensador pernambucano para a Educação.

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CAPÍTULO I

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E REFERENCIAL TEÓRICO9

Paulo Freire, mais do que objetivar um “método” de alfabetização, e tendo em vista sua

teoria e prática pedagógicas, trouxe luzes às ciências sociais. Por isso, qualquer recorte que se

faça para estudar sua obra – exclusivamente pelo campo da educação, por exemplo – é limitar-

lhe a abrangência sociopolítico-filosófica, destituindo-a da contribuição a todas as áreas do

fazer humano. É possível dizer que Freire foi, além de educador – e talvez exatamente por isso

–, filósofo, epistemólogo, ontologista, sociólogo e antropólogo, não como condição

profissional, mas como pensador. Sua preocupação com a situação do homem como agente

transformador da sociedade, fazedor da história, levou-o a percorrer os diversos campos do

saber social, pela análise crítica e bem posta das mazelas que entravam o saber e pelos modos

de educar que ajudam a superá-las. Quis ele desconstruir a “pirâmide” de fragilidades que, por

séculos, ditou o rumo das ciências em prol da dominação alienante de um poder instituído e

despreocupado, de fato, com o descalabro existencial a que o homem sempre foi submetido.

Nessa linha de raciocínio, suas obras propõem a reinterpretação da realidade pela

conjunção de todos os saberes e fazeres humanos, pelo permanente diálogo, pela consciência

crítica de que o ser é, por natureza, dialógico e que, portanto, se realiza pelo “existenciar” no e

com o outro, na permanente tensão dialética que lhe permitirá avançar na busca do ser mais na

medida em que reconhece sua incompletude, inconclusão e inacabamento.

Movido por essa proposta instigadora e inquietante, entre 1999 e 2000, o Grupo

Paradigmas do Oprimido, já mencionado, reuniu profissionais de diversas áreas do

conhecimento para com eles discutir a relação de opressão que se estabelecia entre

subordinantes e subordinados na hierarquia de classes. Era uma tentativa de criar condições

para os profissionais das diferentes áreas dialogarem entre si, mesclando as correntes de

pensamento que pudessem contribuir solidariamente para um viver digno e salutar, sem

imposições de verdades unilaterais. As discussões iluminaram alguns especialistas (médicos,

psicoterapeutas, músicos e educadores), que propuseram projetos para a análise de situações

9 Importante ressaltar a título de esclarecimento que, em todas as citações, foi mantida a grafia original.

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que entravam o desenvolvimento harmonioso do homem. Como exemplo, citemos a relação

entre médicos, psicoterapeutas e pacientes, do maestro (professor de música) com seus

aprendizes. Mas voltemos a Paulo Freire, cuja obra interessa a nosso trabalho investigativo.

A hipótese freiriana de análise e compreensão de mundo por meio de um discurso

dotado de peculiaridades linguísticas, objeto deste trabalho, não pode ser vista, apenas, como

artifício sui generis ou “modernoso” de alguém preocupado em marcar seu nome na história,

mas como a possibilidade de romper os limites dicotômicos que se impõem, pelos

pesquisadores da educação, à prática acadêmica, mantendo-os dissociados da prática cotidiana

dos atores por eles analisados. É fato que alguns críticos, por vezes céticos, limitam-se à

análise superficial de Freire, reduzindo suas ponderações à descrição fragmentada de sua obra,

numa visão distorcida de suas ideias, com insinuações sobre a ingenuidade freiriana no trato

da educação. Chegam ao disparate de afirmar que tal postura é, no mínimo, um processo

distanciado da realidade. Em nosso entender, o pensador pernambucano, como educador e

pesquisador, criou uma obra de profundidade científica, alicerçada na realidade histórica

brasileira – esta é sua grande contribuição socioantropológico-filosófica. Dotada de rigor

epistemo-ontológico, traz à luz ideias e princípios calcados numa práxis ético-pedagógica e

numa prática político-discursiva.

Em nossa caminhada investigativa, examinaremos, prioritariamente, as seguintes

dimensões na obra de Freire: a) a linguagem inusitada, aqui explicada por meio dos

neologismos que criou; b) os recursos estilísticos (em especial as metáforas, mas somente na

medida em que atuem como recursos neológicos) utilizados por ele, e c) a ruptura com alguns

modelos de construção lexical vigentes.

A produção teórico-discursiva de Paulo Freire mesclou criações vocabulares, recursos

estilísticos pouco frequentes na linguagem acadêmica, e jogos de palavras para conseguir

efeito expressivo em sua fala. Sua criatividade, mais do que conferir a necessária precisão e

força comunicativa a seu discurso-alerta, demonstra que a revolução educacional só é possível

pelo reconhecimento das alteridades e que a transformação do pensamento sociopolítico-

filosófico se efetiva pelo agir no e pelo mundo a partir do olhar do oprimido, daí a necessidade

de aproximação das duas linguagens: a do crítico social, acadêmica, muitas vezes

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excessivamente teórica, e a dos espoliados, vivencial e prática, mas plena e prenhe de

significados práticos e existenciais.

O fazer-se ouvir só encontra sentido se objeto de compreensão daqueles que, em grau

de inconsciência ou ingenuidade relacional com seus opressores, encontram luz para operar

mudanças significativas em seu modo de agir. E essa motivação se dá pela consciência de que

podem romper os grilhões da inércia alienante em que estão imersos. Nessa direção,

comungamos o inconformismo e o desconforto instigante de Freire, que o levaram a agir como

porta-voz das classes oprimidas para discutir seus problemas com a intencionalidade de quem

conhecia, e muito, a essência simbólica de termos bem postos, em conexão-referência à

mensagem transformadora da consciência, buscando, dessa forma, efetivar as mudanças

necessárias na educação. E é esse rigor morfossintático no discurso do pensador

pernambucano, com suas correspondentes repercussões semânticas, que será discutido neste

trabalho.

Como fonte de nossa pesquisa de natureza teórica e bibliográfica, utilizamos os dados

colhidos nas obras freirianas, objeto de nossa investigação, e a pesquisa em teses,

dissertações10 e especialistas que tratam do assunto (neologismos, análise do discurso e

pensamento freiriano). Buscamos o diálogo crítico com tais autores, numa reflexão dialética

que nos permita defender nossa hipótese sobre o discurso de Freire e corroborar sua proposta

de contribuir, sobremaneira, para um fazer educativo (educação libertadora) que se propõe

ressignificar a educação brasileira que, ao lado das necessárias mudanças políticas e

econômicas, resgatem os valores de cidadania transformadores do contexto nacional,

principalmente a ética pública.

Por se tratar de uma análise morfossintático-semântica do discurso, os fundamentos

teóricos no campo da linguagem são elaborados de acordo com autores que tratam da análise

do discurso e das estruturas linguísticas.

Antes de passar para a explicação linguística dos neologismos à luz dos teóricos da

língua, é necessário fundamentar a nova construção como ato e fato social, porque a

10 Visitamos os bancos de tese e dissertações das seguintes instituições: USP, UNICAMP, PUCSP, UnB e sites de

busca. Nenhum trabalho sobre neologismos em Freire foi localizado.

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sociedade, sempre em evolução, está a exigir o que é novidadeiro, o que é capaz de

acompanhar as transformações rápidas, e, com a mídia, as mudanças que ocorrem, em tempo

real, nesse processo de globalização11. No dizer de Carvalho (1987, p. 7-8), “A língua, espelho

da cultura, reflete essa busca frenética de novidade, evoluindo rapidamente, introduzindo

novos termos, logo aceitos.” Embora alguns gramáticos tenham – e ainda têm – oferecido

resistência ao novo, ao que não encontra acolhida no Vocabulário ortográfico da Língua

Portuguesa (Volp), chamando a “isso” de aspecto vicioso da linguagem, há que se considerar

a língua como reflexo do dinamismo e das transformações socioculturais, do qual pode ser

prosaico exemplo a famosa frase “O salário do trabalhador é imexível”, de Antônio Rogério

Magri, que lhe rendeu toda sorte de ridicularização quando ministro do Trabalho do governo

Collor. No entanto, como a língua reflete as transformações socioculturais, a criação vocabular

é elemento que contribui para designar inovações em todos os campos do conhecimento

humano.

A necessidade de nomear situações, novas descobertas e tendências leva à criação de

palavras ou expressões que contribuem para o enriquecimento da linguagem, para registrar

todo o dinamismo, toda a evolução técnico-científica, social e política. Os neologismos

surgem também, no dizer de Carvalho (1987, p. 10), “[...] como resultado de uma necessidade

de expressão pessoal [...]. Expressam um modo de ver e sentir original, diferente e por vezes

crítico”. Esse modo de ver a realidade – essa criticidade de que se vale o “alfabetizando” para

pronunciar o mundo – está registrado em Paulo Freire (1988, p. 13 – grifo nosso):

O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a

capacidade de pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstrato;

simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciar

criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder

dizer a sua palavra.

O intelectual pernambucano, ao pensar o sistema educacional como processo de

libertação, dá-nos pistas sobre a necessidade de criar, de reinventar, o que é próprio do ser em

constante transformação. Isso corrobora a afirmação de Carvalho (1987, p. 12): “É sempre o

11 O Grupo Paradigmas do Oprimido tem buscado utilizar, para o propósito de construir um contradiscurso

ideológico ao universo de justificação neoliberal que demarca o termo “globalização”, o conceito de

planetarização, conforme definido em Manifesto da Planetarização (GADOTTI, M.; ROMÃO, J. E. et al. In

Educação e Linguagem, v. 13, p. 210-212, 2006).

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espírito humano na constante busca, processo de criação que, partindo do mundo

extralinguístico, atinge o linguístico e o modifica.”

Em todo o discurso freiriano, encontram-se exemplos de sua preocupação com o ser

humano como agente histórico, social, com suas necessidades que devem ser satisfeitas, com

seus valores éticos e morais, disposto a participar – em comunhão com o outro – das decisões,

das mudanças. Nessa busca incessante, nota-se o movimento ininterrupto, o dinamismo da

prática social. Esse aspecto traz a língua como fato social, que concretiza uma maneira

peculiar de cada comunidade ver o mundo. Nos termos de Carvalho (1987, p. 14), “As

necessidades coletivas, mutáveis e conflitivas moldam hoje a língua de amanhã, pois

frequentemente o que parece alteração na língua é resultado de alterações na sociedade,

passadas a seguir para o sistema linguístico.” No nosso entender, a construção de neologismos

e expressões neológicas não explica a leitura de mundo por Freire, e sim sua visão de mundo é

que determina as peculiaridades linguísticas encontradas em seu discurso. No diálogo, base

para a compreensão entre os pares de uma comunidade, está a função social da língua. Por

isso, não se pode compreender a realidade, interpretá-la, reinventá-la, sem fazer uso da

linguagem e conhecer seus aspectos normativos. Para Carvalho (id., ib., p. 20), “Conhecer o

peso e o valor real da palavra é ter em mãos a chave da compreensão de uma sociedade.” Dito

de outra forma, se a palavra mediatiza a relação do homem com o mundo, por meio dela

educando-se e elevando sua consciência, é porque a palavra nomeia o mundo de acordo com o

lastro cultural do pronunciante.

Nessa abordagem, para fundamentar ainda mais a discussão sobre a intencionalidade

ou não dos registros neológicos utilizados por Freire, convém ressaltar aqui comentários

especializados sobre formação de palavras, no que se refere à diferença entre a criação

espontânea (de um falante comum) e a planejada, que se processa, consciente ou

deliberadamente, para dar conta de um determinado conceito que exija precisão do falante-

criador, entendido aqui como o pesquisador e pensador da educação Paulo Freire. Por isso, são

bem-vindas, neste ponto, as palavras de Pilla (2002, p. 18):

Se, por outro lado, entendermos que a existência real e efetiva de um neologismo só

será assim considerada se ele for incorporado ao uso real e efetivo de uma vasta

comunidade lingüística e não se limitar a um pequeno grupo de usuários ou, mesmo,

a uma única ocorrência, para nós terão valor até mesmo as preciosidades ou

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curiosidades de apenas um usuário, quer venham elas a se estabelecer como palavras

incorporadas ao léxico da língua, quer se resumam a um simples hépax12.

No caso de Freire, essas criações refletem a importância de precisar e sintetizar

determinadas situações no plano contextual, além de dotar o discurso de força semântica

suficiente para provocar inquietação no leitor, levando-o a refletir sobre o mundo e,

principalmente, sobre si mesmo, chamado que é, por vezes, a questionar seu papel na

sociedade e repensar sua prática.

Com o propósito de reforçar nossas observações sobre o discurso freiriano, também

agregaremos, como elemento de grande valor, o aspecto interpretativo gerativista, com base

nos comentários de Pilla sobre a criação de palavras subsidiada pela prefixação, sufixação e

composição. Para a linguista, os processos tradicionais de composição e derivação devem ser

utilizados apenas como “auxiliares, e não como um fim em si mesmos” (2002, p. 20), pois é

importante que se considere, no discurso, o processo gerativo da construção frástica em

decorrência da intencionalidade do comunicador. Nesse processo de relativização discursiva,

“a morfologia da palavra resultante” do processo de formação só se justifica no momento em

que as ideias passam a “[...] significar um representante exato de um conceito ou de um objeto

em toda a extensão de seus atributos, evidenciando uma simbiose e não apenas uma

combinação, ou soma, de duas idéias.” (id., ib., p. 22). A palavra ou expressão, motivada por

esse critério transformacional, assume conotação semântica relevante apenas “no nível do

conteúdo” em que ela “[...] pode ser concebida como um tipo de condensação de uma

respectiva construção sintática.” (id., ib., p. 23).

12 Elemento cuja abonação é registrada uma única vez na língua, ou utilizado apenas uma vez.

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CAPÍTULO II

NEOLOGISMOS E EXPRESSÕES NEOLÓGICAS

Neologismo: definição e fundamentação

O neologismo – formado pelos elementos gregos neos (novo), logos (linguagem,

palavra) e ismo (sistema, tendência) – é fenômeno que ocorre não só no universo intralingual,

quando, segundo Pilla (op. cit., p. 11-12), “[...] um significante cujo significado já existente

em uma dada língua precisa ser traduzido para outra em que ele ainda não existe.”, mas

também no seio da própria língua, “quando é preciso prover um significante para um

significado engendrado na própria cultura e para o qual ainda não se dispõe de um nome.” Os

neologismos, portanto, como elementos renovadores do léxico, podem obedecer a critérios

morfológicos, semânticos e sintáticos. Trataremos, nas obras de Freire, da análise do conteúdo

e da forma dessas construções contextualizadas, que, à época de sua criação, não constavam

do Volp nem dos dicionários de Língua Portuguesa, pois, no dizer de Guilbert (1975 apud

Pilla, 2002, p. 15), “uma das maneiras de estudar a neologia13 consiste em coletar e descrever

um conjunto de neologismos surgidos em um determinado período da vida da língua de uma

dada comunidade e ainda não-dicionarizados.” Mais do que coletá-los e descrevê-los,

investigaremos sua relação interativo-discursiva.

Convém lembrar que a neologia é um processo dinâmico que traz em sua base uma

estrutura subjacente:

a) Existem, no sistema lingüístico, as unidades léxicas efetivas, disponíveis para

atualização pelo falante-ouvinte;

b) Depreendem-se das primeiras estruturas que permanecem como modelos e que

permitem ao sujeito lingüisticamente competente criar novas unidades;

c) Estabelecem-se relações entre neologismo e as funções da linguagem, ou, se

preferir, o neologismo tem de ser considerado não apenas no sistema, mas

também no enunciado e no ato da enunciação;

13 “A neologia constitui, ao mesmo tempo, uso e subversão do código, reconhecimento e transgressão da norma;

é, pois, criatividade governada por regras, é criatividade que muda as regras” (BASTUJI, 1974, p. 18, apud

BARBOSA, 1981, p. 79).

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d) Há que se considerar, finalmente, a neologia como processo dinâmico, que vai do

momento da criação do neologismo até a desneologicidade, e, desta, para nova

situação neológica (BARBOSA, ib., p. 79).

Na comunicação, para caracterizar formal e funcionalmente o neologismo, é

importante conhecer o tipo de discurso, a situação em que foi produzido e o contexto

linguístico. Essa caracterização, nas palavras de Barbosa (op. cit., p. 81), só pode ser feita “no

curso do processo discursivo, no circuito da comunicação que faz surgir simultaneamente a

presença de dois interlocutores e o papel ideológico da linguagem.” Nesse aspecto, é preciso

considerar, além das funções referencial e conativa, a situação em que foi produzido o

neologismo, “em que aparecem conjugados o contexto intra e extra-lingüístico.” (id., ib., p.

97).

Fundamentaremos nosso estudo sobre a linguagem freiriana nas orientações semântico-

gramaticais dos especialistas arrolados nas referências, utilizando-as como recursos auxiliares

para discutir o propósito de Paulo Freire de valer-se dos artifícios neológicos para dar precisão

e expressividade a sua fala. Como não é nossa proposta aprofundarmo-nos na teorização do

processo de formação de palavras, e sim analisar a forma e o conteúdo das expressões criadas

pelo intelectual pernambucano, trataremos aqui, num primeiro momento, de subsidiar nossa

abordagem com o que leciona Evanildo Bechara, em sua Moderna gramática portuguesa

(2001, p. 351), dando conta de que esse processo de criação nova ou de neologismos se dá

pela utilização de palavras, prefixos e sufixos “[...] já existentes no idioma, quer no significado

usual, quer por mudança de significado.” Quanto à estrutura, observa Alves (1990, p. 14) que

“[...] os neologismos sintáticos supõem a combinatória de elementos já existentes no sistema

lingüístico português.” E é esse conjunto de associações que permite a criação de palavras: são

os afixos – prefixos e sufixos – que se acrescentam às raízes ou radicais para formar palavras,

unidades sintagmáticas que, contextualizadas, cumprem a função de que seu criador necessita

para precisar determinados conceitos.

Formação de palavras: composição e derivação

Nesse caminho, estão a composição e a derivação que, segundo Jean Dubois et alii

(apud Cunha, 1985, p. 83), é “[...] o conjunto de processos morfossintáticos que permitem a

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criação de unidades novas com base em morfemas lexicais. Utilizam-se assim, para formar as

palavras, os afixos de derivação ou procedimentos de composição.” A composição é um

processo de junção sintático-semântica em que se agrupam dois ou mais elementos

constituídos de significação própria. Para Kehdi (1999, p. 35), na composição há necessidade

de dois radicais que, associados, perdem sua significação original “[...] em benefício de um

único conceito, novo, global.” Importante ressaltar, como aspecto esclarecedor, que nos

compostos, mesmo que haja “relação significativa entre os elementos componentes”, segue-se

certa convenção, pois “não se pode interpretar um composto, por exemplo, quebra-nozes,

como qualquer objeto (pedra ou martelo) com que se quebram nozes; sabemos que se trata de

um objeto com características específicas, conhecido por todos nós” (op. cit., p. 35-36). No

dizer de Bechara (2001, p. 353), nesse processo os compostos podem “[...] apresentar-se por

disjunção e por contraposição [...]”. Na disjunção, embora o primeiro termo seja o

denominador (enunciador), e o segundo, seu especificador, não se encontra relação de classe

gramatical entre eles. É o caso de “peixe-boi”, que, por suas características situacionais,

assemelha-se a um boi, e “reação pública”, em que se tem uma reação que é pública. Nesses

compostos, o primeiro elemento é a denominação, e o segundo, sua especificação. “A relação

se diz de disjunção porque, embora o segundo seja uma especificação do primeiro, [...]”

(Ibidem), boi não é subclasse de peixe nem público o é de reação.

No entanto, há entre eles uma relação de subordinação, pois, segundo Alves (1990, p.

41), “[...] o primeiro exerce o papel de determinado e o segundo, de determinante. Em outras

palavras, a base determinada constitui um elemento genérico, ao qual o determinante acresce

uma especificação, característica da classe adjetival.” É o caso de “operação desmonte” e

“educação bancária”, por exemplo. Nos compostos por contraposição, no caso de dois

substantivos, o segundo caracteriza o primeiro, indicando-lhe a finalidade – cirurgião-dentista;

navio-escola; pombo-correio. É nesse processo aglutinador que está a “força” semântica da

palavra. Pela composição, forma-se uma palavra nova dotada de sentido único (específico),

autônomo, mas nem sempre composta de elementos de sentidos associados entre si.

Nesse processo, estão substantivo+substantivo, em pai-joão, mãe-áfrica, situação-

limite, trem-bala; substantivo+preposição+substantivo, em copo-de-leite, dente-de-leão,

pau-de-sebo; substantivo+adjetivo, em obra-córnea, costa-marquense, belas-artes;

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substantivo+advérbio, em costa-abaixo, costa-acima, adjetivo+adjetivo, em franco-suíço,

surdo-mudo; numeral+substantivo, em terça-feira, sesquicentenário; verbo+advérbio, em

ganha-pouco; verbo+substantivo, em passatempo, porta-bandeira, ganha-dinheiro, guarda-

comida; verbo+verbo, em corre-corre, ganha-perde, vaivém; advérbio+verbo, em bem-estar,

bem-querer, bem-vindo; advérbio+substantivo, em bem-aventurança (note-se que aqui o

substantivo é derivado de um verbo – aventurar+ança; pronome+substantivo, em Nossa

Senhora, meu-consolo; advérbio (bem, mal)+adjetivo, substantivo ou verbo, em bem-

apessoado, bem-falante, bem-aventurar, mal-azado, mal-bruto, malcomido, malvisto,

malconfiar.

É de bom-tom observar que as palavras compostas se associam por aglutinação:

aguardente (água+ardente); embora (em+boa+hora); fidalgo (filho+de+algo), e por

justaposição: guarda-chuva; pé-de-boi; ferrovia.

Embora haja outras formas de composição, elas não serão abordadas nesta pesquisa,

pois não se prestam para fundamentar seu objeto.

Outro processo de formação é a derivação, que consiste no acréscimo de afixos

(prefixos e sufixos)14 que dão novo significado ao elemento primitivo. Importante ressaltar

que os afixos (morfemas derivacionais) são dotados de carga semântica subsidiária, não-

autônoma, ou seja, sua significação depende da natureza significativa que se quer emprestar à

palavra no discurso e a intencionalidade com que se pretende fazê-lo, sempre buscando a

precisão de sentido. Nesse processo de formação, é importante registrar a diferença entre

prefixos e sufixos. Os primeiros, dotados de força significativa, agregam um novo significado

às palavras primitivas, sem, contudo, desconsiderar-lhes o valor semântico original. Já os

segundos apresentam função morfológica, porque, destituídos de significação, quase sempre,

quando acrescentados ao radical, funcionam como meros elementos de alteração da classe

gramatical ou designativos de processos caracterizadores de um elemento-base, a partir de

alterações estruturais de amplitude semântica que promova, ou não, o “alargamento” do

universo de significação vocabular que se pretende seja suficiente para dimensionar a precisão

14 Quando acrescentados, simultaneamente, ao radical da palavra – na formação de elemento novo – para dotá-lo

de significação, tem-se a parassíntese: desproblematização. Note-se que não existem as formas problematização

e desproblematizar. O Vocabulário ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) registra apenas problematizar.

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discursiva na comunicação. Os sufixos, em geral, são utilizados para destacar as categorias

gramaticais, ligando-se a um radical na formação de substantivos e adjetivos em suas

diferentes modalidades. Contribuem, no discurso, assim como os prefixos, para dar amplitude

e referenciar aspectos significativos de palavras, de acordo com a intencionalidade do

contexto. Como referência, tomemos o que leciona Bechara (2001, p. 338):

O sufixo assume uma função morfológica, pois, em geral, altera a categoria

gramatical do radical de que sai o derivado (real adj. > realidade s., embora também

possa não alternar-lhe a categoria, como feio adj. > feioso adj.), e relaciona a palavra

a que se agrega aos nomes aumentativos ou diminutivos, aos nomes de agente, de

ação, de instrumento, aos coletivos, aos pátrios, etc.: casarão (aumento), livrinho

(diminuição), cantor, lavrador, sapateiro (nomes de agente ou ofício), punição,

casamento, aprendizagem (nomes de ação ou seu resultado), folhagem, lodaçal,

cardume, boiada (nomes coletivos) alemão, sergipano, cearense, português,

minhoto, brasileiro (nomes pátrios), fertilizar (ação), chuviscar (ação de pouca

intensidade), alvorecer (início de ação), mercadejar (repetição de ação), suavemente

(modo). Daí se distribuírem os sufixos em nominais (formadores de substantivos e

adjetivos), verbais (do verbo) e o único adverbial, que é -mente, que se prende a

adjetivos uniformes ou, quando biformes, à forma feminina: cômoda >

comodamente.

No entanto, para subsidiar a análise sobre a formação dos neologismos freirianos,

convém destacar as observações de Vasconcelos (1964, p. 53) sobre -mente:

Mente, do latim mens, mentis, era substantivo nessa língua e continua a sê-lo em

português, espanhol e italiano, sinônimo de entendimento, espírito, disposição

espiritual, intenção. A fórmula adverbial bona mente (ablativo15) significava entre os

romanos com boa intenção, de bom grado. Em Portugal ainda hoje se diz talqual de

boa mente e de má mente. Ligando-lhe a idéa geral deduzida de modo ou maneira, o

vulgo uniu mente a quantos adjectivos quis, criando assim o advérbio neo-latino. Em

francês, -ment já não tem outra função senão a adverbial.

Além desses matizes vocabulares, merecem relevância, em nosso estudo, outros

especiais que tratam de alguns aspectos verbais que conferem precisão e densidade semântico-

gramaticais à comunicação, tais como o frequentativo16 (folhear, gargarejar, dedilhar,

15 Do latim ablatīvus, é “caso da declinação latina e da de outras línguas, que indica as circunstâncias de

instrumento, afastamento, origem, matéria etc.” (FERREIRA, 1975, p. 8). 16 Do latim frequentatĭvus,a,um“ que expressa a repetição e a habitualidade de certo fato ou ação” (HOUAISS,

2001, p. 1390).

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escrevinhar, chuviscar, chupistar, saltitar) e o factitivo17 (absolutizar, clarificar, civilizar,

conscientizar, humanizar, sectarizar).

Para efeito da análise do discurso freiriano a envolver os neologismos, convém lembrar

que, por vezes, o processo de derivação se confunde com o de composição, porque entre os

dois, em alguns casos, existe diferença quase imperceptível, resultante da linha tênue que os

distingue na estrutura fraseológica, durante a construção do discurso, em que se configuram

indissociáveis os aspectos semânticos dos gramaticais. Essa impossibilidade de afirmar a

origem de determinadas e novas construções frásticas ou signos linguísticos encontra acolhida

em vários estudiosos da língua, entre os quais Said Ali (1964, p. 229): “[...] Mas os prefixos

são, na maior parte, preposições e advérbios, isto é, vocábulos de existência independente,

combináveis com outras palavras. Equivale isto a dizer que não está bem demarcada a

fronteira entre a derivação prefixal e a composição.”

Também os sufixos, quando se leva em conta o processo histórico-etimológico,

permitem aproximar a derivação da composição vocabular na formação de uma palavra, pois,

Mesmo na derivação sufixal nem sempre é fácil determinar a linha que a separa do

processo da composição, vê-se pelo histórico dos advérbios em –mente. Enquanto em

latim só se usaram dizeres como fera mente, bona mente (ou feramente, bonamente,

pois se pronunciariam ligando as palavras), em que se combinava o substantivo com

qualificativos adequados à sua significação, o processo em vigor era, quando muito,

a composição, formavam-se palavras compostas. Desde porém que com igual

facilidade puderam vigorar combinações como rapidamente, recentemente, que a

palavra mente tinha perdido a significação e valor de substantivo e, de termo

componente, passava a funcionar como sufixo criador de advérbios. Evolução

semelhante se observa nas línguas germânicas, em que bom número de sufixos de

derivação nominal procede de antigos substantivos e adjetivos. Basta lembrar o

sufixo ly, em inglês, o qual procede de like (op. cit., p. 230).

Ressaltamos também que a renovação do vocabulário, na qual se insere o neologismo,

não é idiotismo18 da língua portuguesa: ela se faz presente no processo de enriquecimento de

outras línguas. Como salienta Ali (op. cit., p. 230), “[...] as línguas enriquecem seu

17 Do latim factĭvō, ās, āvi, ātum, āre, indica “fazer muitas vezes, habitualmente; diz-se do verbo que envolve a

idéia de fazer ou causar.” (HOUAISS, 2001, p. 1298). 18 “Traço ou construção peculiar a uma determinada língua, que não se encontra na maioria dos outros idiomas

[...]” (id., ib., p. 1566).

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vocabulário, não sòmente combinando palavras entre si ou ajuntando-lhes prefixos e sufixos,

mas ainda dando a certos vocábulos sentido novo, fazendo-os servir em categoria diferente.”

Nessa esteira está Silveira Bueno (1965, p. 49), para quem a renovação como aparato

linguístico se assemelha ao processo de substituição dos indivíduos na sociedade: “assim

como o número de nascimentos é sempre superior ao de falecimentos, condição primeira da

vitalidade de um povo, também nos domínios vocabulares maior é o aparecimento de novos

termos que o desaparecimento de antigos.” Embora alguns tenham desaparecido ou se tornado

obsoletos pelos falantes de uma língua, daí os arcaísmos19, muito se encontra de seus vestígios

no falar atual, até por conta das mutações fonéticas próprias da necessidade social corroborada

pelo desenvolvimento técnico, científico e cultural dos diferentes grupos. Nesse aspecto,

nenhum idioma, por mais rico e complexo que seja, basta a si mesmo, com seu léxico, que

permita aos usuários o necessário “conforto” linguístico para fazer frente aos novos conceitos

no campo do fazer humano. Essa imperiosidade expressivo-comunicacional contribui

permanentemente para a criação lexical:

Ainda hoje, aqui e ali, vemos surgirem vocábulos assim feitos e, portanto, forjados

de um só jacto, inteiramente novos: zigue-zague, fonfon, reco-reco, codaque, zipe

etc. O número de tais forjaduras é, porém, limitado. Alguns neologismos, tão pouco

numerosos quanto as onomatopéias, surgem ainda, feitos inteiramente pelos autores,

v. g. gás. A grande maioria, entretanto, reponta dos velhos processos da composição

e da derivação, aplicando cada idioma o seu cunho próprio na formação de tais

palavras. Os empréstimos completam a renovação do léxico vivo das línguas

(ibidem).

Como a língua é dinâmica, a renovação lhe é inerente, “[...] porque a atividade

lingüística é falar e entender algo novo por meio de uma língua.” (CARVALHO, 1989, p. 27).

A modificação (empréstimo) se dá, principalmente, “[...] onde o sistema não corresponde às

necessidades expressivas e comunicativas dos falantes.” (ib., id., p. 27). Portanto, não se pode

descuidar do caráter histórico das inovações que se processam na língua, pois um dos

motivadores que determinam a apropriação de elementos linguísticos de uma língua por outra é

sua força semântica contextualizada para exprimir “conceitos” específicos. Nesse aspecto, tem-

19 “Palavra, expressão, construção sintática ou acepção que deixou de ser usada na norma atual de uma língua”

(HOUAISS, 2001, p. 278).

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se a convivência “salutar” interlinguística, em que há o predomínio da mais forte – os traços

linguístico-culturais dos imigrantes deixam sua contribuição no léxico da nova cultura –,

embora marcada por empréstimos da outra. A isso, dá-se o nome de substrato linguístico.

Em português, nota-se, com mais frequência, o empréstimo de substantivos e adjetivos.

Alguns são adaptados graficamente e incorporados ao léxico. Primeiro tem-se a adaptação

fonética pelo falante, sem a preocupação de se manter fiel à língua de origem. É o que ocorre

com estresse, que em sua forma original stress apresenta o “s” inicial e o final

desacompanhados de vogais que, justapostas a consoantes, caracterizam a formação de sílabas.

Como nesse “expediente” – consoantes iniciais e finais, desacompanhadas, “são estranhas ao

sistema, há o desenvolvimento de um e [em determinadas regiões, tem-se o som /i/] protélico20

ou paragógico21 perceptível, mesmo que nunca venha a ser adotado na grafia.” (id., ib., p. 45).

É o caso de smoking e slogan. Ressalte-se o que diz o mesmo autor sobre alguns empréstimos:

Em qualquer leitura há sempre uma reconstituição da massa fônica; quando a

adaptação gráfica vai desvirtuar a compreensão, e a identificação do termo não será

possível pela grande distância entre a grafia e a pronúncia, a forma original é

mantida: shopping center, pin-up, high-school, pool (CARVALHO, op. cit., p. 47).

Para dar sequência e ilustrar o trabalho de análise que ora propomos, passaremos a

tratar, em ordem alfabética, da origem, uso e sentido de alguns prefixos e sufixos que serão

estudados e utilizados, quando se fizerem necessários, para investigar a formação das criações

freirianas.

Prefixos: origem e significação

Ad-, de origem latina, indica aproximação, proximidade: advogado – aquele que é

chamado a acompanhar para defender ou representar; avizinhar (o d é assimilado pelo v), em

que o prefixo ad- acompanha vizinhar, que indica próximo ou contíguo, para reforçar-lhe o

sentido de aproximação; tendência, como em agravar (tem-se a assimilação do d pelo g), em

que o ad- reforça a situação de gravar, aqui significando onerar, prejudicar, oprimir. Em

aprender (houve assimilação do d pelo p), o prefixo ad- se acrescenta a prender, indicando

20 Fonema que se acrescenta ao início de uma palavra, dando-nos a impressão de prolongamento sonoro. 21 Que resulta de paragoge – fonema que se acrescenta no final de uma palavra.

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aquele que deixa a ignorância para assimilar o conhecimento. Neste exemplo, o sentido de ad-

é passar de um estado a outro. Na obra de Freire, encontra-se o prefixo ad- em ad-mirar, por

exemplo, seguido de hífen, para reforçar uma situação.

Ant(i)-, de origem grega, encerra oposição de ideias, crenças. Em anticristo, o prefixo

indica aquele que se opõe a Cristo – segundo a religião cristã, aquele que viria ao mundo para

combater os dogmas (ideais) do cristianismo. Em antidemocrático, tem-se aquele que se opõe

aos ideais de democracia; antirrevolucionário apresenta característica que se dá àquele que

combate quaisquer ideias da revolução. Antagonista, formado por ant-, posição contrária +

agon, “do grego agón, ônos – reunião, assembleia, local onde se realizam jogos, jogos sacros

ou de lutas, contenda.” (HOUAISS, 2001, p. 117) –, acrescido de -ista, que indica partidário,

significa adversário, aquele que se posiciona contra alguém ou ideia que não o satisfaz, ou

seja, com quem ou o que não concorda. Freire valeu-se deste prefixo na formação de alguns

termos, como antidiálogo e anticomunicação, para indicar estagnação de um processo.

Auto-, do grego autós – próprio –, acrescenta ao radical22 o valor de por ou de si

mesmo como em autobiografia, que significa relatos da vida de quem a escreve. Em algumas

obras freirianas, encontram-se alguns elementos que recebem este prefixo em sua formação,

tais como autogoverno e autorreconhecimento. Ressalte-se que o sentido é o mesmo do

exemplo usado como ilustração do prefixo.

Com- (con-, co-), de origem latina, indica reunião, companhia, concomitância:

coabitar, em que o prefixo adiciona ao radical habitar – que significa ocupar um lugar, morar

– o sentido de comum, em companhia de, partilhar habitação. Em colaborar, tem-se o prefixo

a indicar na ideia de laborar, que significa trabalhar, realizar ou fazer alguma coisa, o sentido

de em conjunto, ou seja, contribuir com alguém para uma determinada atividade, como uma

espécie de “força-tarefa”. Em coadministração, o prefixo acrescenta à palavra administração a

ideia de administrar em conjunto. No entanto, existe a possibilidade de usar o hífen com certa

intencionalidade reforçativa, como no caso de Paulo Freire em co-laboração e co-irmanadas.

22 Entende-se por radical, também chamado de morfema lexical, a parte estrutural de uma palavra que contém a

base de seu significado. Segundo Bechara (2001, p. 337), “radical é o núcleo onde (sic) repousa a significação

externa da palavra, isto é, relacionada com o mundo em que vivemos”.

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Des-, de origem latina, indica oposição, negação ou falta: em desamor e desproporção,

acrescenta às palavras amor e proporção o sentido de privação, negação ou falta de amor e de

proporção, respectivamente. Em descascar e desmascarar, tem-se a ideia de separar, afastar,

tirar a casca e a máscara. Em desferir, o prefixo reforça, ou seja, intensifica a carga semântica

de ferir. Já em desafastar, cujo sentido é o mesmo de afastar, indica distanciamento em

relação a algo ou alguém.

Já o prefixo DIS-, como elemento de origem latina, encerra a ideia de separação,

disjunção: em discernir, dis- acrescenta-se a cernir, do latim cerno, is, cernĕre, que significa

triar, separar, dando-lhe o sentido de estabelecer diferenças com clareza, perceber; em

dissolver, adiciona a solver, do latim solvere – resolver, solucionar –, o sentido de cisão,

dissolução ou cessação de algo. Em difundir, junta-se a fundir que, no caso, significa agregar

ou incorporar vários elementos num só, para atribuir-lhe o sentido de dispersão, espalhamento.

Já em discordar e dissociar, a negação e a oposição se fazem presentes, pois, na primeira, tem-

se a falta de concordância em relação a determinado assunto, ação ou postura de alguém,

divergência ou opinião contrária à de outra pessoa. Na segunda, o prefixo dis- indica

separação ou desunião de algo ou alguém. Pode-se aproveitar o significado de dissociar e

pedir que se dissocie (se afaste) do governo o mau político. Ainda para ilustrar o emprego do

verbo, podem-se usar as discussões dos políticos que, geralmente, não chegam a bom termo,

resultando na falta de consenso que dissocia (separa, desune) os integrantes da Câmara. Como

indicador de intensidade, aumento, reforço, o prefixo dis- liga-se, por exemplo, a solver, do

latim solvo,is,i,solūtum,solvĕre, cujos significados, entre outros, podem ser diluir, decompor,

fazer desaparecer e desunir, formando dissolver. Em dissimular, encontra-se simular, do latim

simŭlo,as,āvi,ātum,āre, que significa copiar, fingir, imitar, representar, reproduzir, ao qual se

liga o prefixo dis- que lhe reforça o sentido, atribuindo-lhe significado idêntico ao original, em

amplitude diferente. Portanto, ao dissimular, finge-se, busca-se ocultar ou disfarçar o que

realmente se quer ou se sente.

O prefixo dis- pode ainda indicar ordem, arranjo, seriação. Em dispor, acrescenta ao

verbo pôr, que tem como base significativa o sentido de colocar, depositar, a ideia de

ordenamento e organização. Já em distribuir, partindo-se do radical latino tribus,us, que

significa tribo, grupo étnico, do qual derivam tributarĭus,a,um, tribūnus,i e tribunālis, por

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exemplo, encontra-se o sentido de repartir, dividir ou doar parcela daquilo que se tem ou pela

qual é-se responsável em determinado tempo e espaço.

Nesta análise, ressalte-se ainda o emprego do mesmo prefixo em dirimir, em que se faz

presente a ideia de cessação, extinção ou desfazimento. O prefixo em questão, que também

pode originar-se do “grego dús- por contraposição a eû-” (HOUAISS, 2001, p. 1051) – bom

êxito: eufonia, eurritmia –, é largamente utilizado na terminologia científica. Em disenteria,

associa-se a enteria, do grego énteron, intestino, mais sufixo -ia, indicando dificuldade,

distúrbio; em dislexia23, o prefixo acrescenta a lexia24 a ideia de dificuldade de alguém em

relação ao léxico, ou seja, tem-na aquele que apresenta distúrbios de grafia e dificuldade de

reconhecer a diferença entre determinados símbolos gráficos e sua relação com os fonemas.

Na terminologia médica, encontra-se o dis- a indicar enfraquecimento em dismnésia, em que

mnésia, do grego mnêsis25 26, significa memória. Portanto, com a junção de prefixo e radical,

tem-se o enfraquecimento da memória. Já em disbulia, o prefixo agrega o sentido de falta,

privação a bulia, do grego boulē,ês, que indica vontade, desejo. Portanto, aquele que sofre de

disbulia é incapaz de realizar qualquer tipo de projeto ou de tomar decisões, por mais que as

deseje.

Em razão da complexidade, da variedade de sentido e da similaridade que há entre des-

e dis-, e para respaldar as observações feitas, convém registrar os comentários de Said Ali

(1964, p. 250-251) sobre o assunto em questão:

Des-, como prefixo usado no sentido negativo ou de contradição, é a romanização de

Dis-, forma esta que se manteve inalterada em certo número de vocábulos recebidos

da língua-mãe, mas cuja faculdade de criar novos termos dentro do domínio da

língua portuguesa se transferiria à forma DES-. A alteração fonética veio

acompanhada de sensível diferenciação semântica, desenvolvendo-se fortemente o

sentido negativo que se começava a observar no latim díspar, dissimilis e outros

vocábulos, apagando-se ao mesmo tempo o sentido de separação ou divisão do

próprio prefixo latino. Fenômeno 48deia48stico de outra ordem é o emprego de

DES- com sentido positivo, ou pleonástico, resultante não da fusão de elementos

23 Importante observar o que diz Nascentes (1932, p. 251): “do grego dys, mal, léxis, ação de falar e sufixo ia.

Mal formado, pois leitura em grego é anágnōsis. Houve possível influência do latim legere.” 24 Para Houaiss (2001, p.1750), vem do grego “lέksis,eōs, palavra, ação de falar, elocução, léxico + o suf. –ia

formador de subst. abstratos em comp. científicos do séc. XIX em diante [...] lexia s.f. LING 1 unidade do léxico

(palavras, expressões idiomáticas, locuções etc.). 25 Segundo Antenor Nascentes (1932, p. 251).

26 De acordo com Houaiss (op. cit., p. 1938), vem do grego mnēsía .

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latinos, mas da confusão de elementos já romanizados. É aliás extremamente

diminuto o número de vocábulos destroutra espécie; foram criados depois de

constituído o idioma, e usam-se, quase todos, como meras variantes de outras

formações: desinquieto e inquieto; desaliviar e aliviar; desfarelar e esfarelar;

descalvado e escalvado; descampado e escampado e alguns mais. Como sucessor do

latim DIS-, produz o prefixo DES- substantivos que denotam: a) cousa contrária ou

falta daquilo que é denotado pelo termo primitivo: desabrigo, desordem,

desconfiança, desconforto, desprimor, desamparo, desacordo, desarmonia,

desventura, desonra, desavença, desatenção, desrespeito, desequilíbrio,

desproporção, descaso; b) cessação de algum estado: desengano, desilusão,

desagravo, desuso; c) cousa mal feita: desserviço, desgoverno. Forma adjetivos em

que se nega a qualidade primitiva: descortês, desumano, desconexo, desconforme,

desleal, desnatural, desigual. Nos verbos denota: a) ato contrário ao ato expresso

pelo verbo primitivo: desenterrar, desfazer, desabotoar, desenrugar, desapertar,

desentupir, desobedecer, desembrulhar, desatar, descoser, desembainhar,

desembaraçar; b) cessação da situação primitiva: desempatar, desoprimir,

desmamar, desenganar, desimpedir; c) tirar ou separar alguma cousa de outra:

descascar, desmascarar, descaroçar, desbarbar, desbarrar, desfolhar, desbarretar.

Em desfigurar denota mudar de aspecto.

Na obra freiriana, encontramos, por exemplo, desumanismo, desalienação e

desproblematização, em que o prefixo des- denota negação ou reversão de um processo.

Embora, na correspondência entre grego e latim, os dois prefixos possam ser tomados um pelo

outro, para respaldar o uso de ambos por Freire, é oportuno recorrer a Eduardo Carlos Pereira

(1935, p. 225-232), que nos esclarece concisamente o sentido de cada um:

DIS- (latino, p. 225) encerra a idéia de apartamento, separação (discordar,

discriminação, dissolver, difundir); (grego, p. 229) indica dualidade (dissílabo,

dilema, dístico); (grego DYS-, p. 232) encerra a idéia de mau êxito (dyspepsia,

dysphonia, dyspnéa, dyscrasia, dyslexia, dysenteria, dysphagia) 2. DES- (latino, p.

231) encerra a idéia de privação ou negação (desfazer, desengano, desculpa, desviar,

desancar, desagradável, desunião, desmiolar, desordem).

IM- (IN-, I-), de origem latina, acrescenta ao radical a ideia de tendência, direção,

movimento para dentro, como em imigrar, implantar, inscrever e infiltrar. Como exemplo do

processo semântico, tem-se a palavra migrar, cuja acepção é movimento, deslocamento de

lugar, região ou país, a que o prefixo atribui o sentido de entrar e fixar-se em país estrangeiro,

ou em outra cidade, estado ou região do país de origem. Já em palavras como impenitente,

ilegítimo, incapacidade, inegável, injusto e inverossímil, indica privação, negação, ou sentido

contrário da ideia expressa pelo radical. Segundo Bechara (2001, p. 367), “às vezes o prefixo

parece atribuir ao derivado o mesmo valor semântico da forma de base: incremento,

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incrueldade. Algumas vezes indica no que alguma coisa se transforma: incinerar, incapacitar,

inflamável”. Apenas para ilustrar: existe correspondência semântica entre IN-, IM- e EM-,

EN- (latim IN-) enrijar, enraizar, enlamear, enlutar, enrugar, embainhar, emalar, empoçar,

empossar, emburrar, engarrafar. Em Freire, encontra-se o prefixo IM-, com suas variações

estruturais, a indicar tendência, negação e sentido contrário. É o caso dos neologismos

inacabamento, inconclusão e incompromisso.

RE- agrega às palavras a ideia de movimento para trás, regredir; retorno à posição de

origem, rebater, recolher, reverter; afastamento, rebater, recolher, revelar; repetição,

reagravar, refundir, ressaltar, ressaudar; oposição, reagir; e reforço, reagravar, realçar.

Importante lembrar o que nos diz Ali (1964, p. 251) sobre o prefixo em questão:

Une-se com verbos e tem o valor adverbial de “outra vez”, “de nôvo”: reassumir,

reatar, recomeçar, refundir, retomar etc. O mesmo sentido tem o prefixo no

parassintético remoçar, “ficar outra vez môço”. A idéia que prevalece no espírito, ao

criarem-se tais verbos, é a de volta, com rigor novo, ao ponto inicial de ações que

com o tempo se enfraqueceram, alteraram ou desfizeram.

Para anunciar o uso deste prefixo na criação de alguns neologismos nas obras

freirianas, fazemos aqui algumas notações lexicais: embora, no processo de formação de

palavras, o prefixo RE- apareça ligado sem hífen ao radical, Freire o utilizou hifenizado,

como em re-admiram, re-faz e re-pensar. Analisar-se-ão essas construções no terceiro e

quarto capítulos para explicar o porquê de o pensador pernambucano ter-se valido desse

expediente.

SIM- (SIN-, SI-), de origem grega, associa-se ao radical, atribuindo-lhe o sentido de

ajuntamento, reunião, simultaneidade, como em síncrono. Neste exemplo, sin- liga-se a crono,

do grego khrónos – que significa tempo –, para indicar o que acontece ao mesmo tempo. Em

sinfonia, tem-se o prefixo a dar ao elemento fonia, do grego phōnē,ês – que indica som, voz –

+ o sufixo -ia, a ideia de conjunto.

Assim como ocorre com o re-, este prefixo não entra na composição de uma palavra

unido por hífen. No entanto, aparece hifenizado em Pedagogia do oprimido (1988), na

formação de determinados vocábulos, como sim-patia e sim-pático.

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Sufixos: significação

Passamos agora a discorrer sobre os seguintes sufixos para subsidiar a análise de

alguns neologismos formados por sufixação:

-ADO27 (-EDO, -IDO) acrescenta-se ao verbo para indicar particípio – forma nominal

que sugere ação acabada, mas que, dependendo do contexto, pode sugerir ação que permanece

em decorrência ou na dependência de outra que denota movimento. Em Freire, encontramos,

entre suas criações, gregarizados e mediatizados.

-AGEM, quando ligado a substantivos, como ramo+agem, pluma+agem e

roupa+agem, encerra a ideia de conjunto. Assim, tem-se conjunto de ramos, ramagem; de

plumas, plumagem; de roupa, roupagem. Ao associar-se a verbos ou a temas nominais, sugere

prática, processo ou resultado de ação que o tema propõe. Para aprendizagem, parte-se de

aprender (v.), que necessariamente precisa do aprendiz, que dele deriva e significa o que

aprende ou que se predispõe a receber ensinamento, e chega-se à aprendizagem, que

caracteriza o ato de aprender. Em lavagem, tem-se lavar (v.), a que se liga -agem para formar

o ato anunciado, ou seja, a lavagem. No exemplo vadiagem, o verbo vadiar desencadeia o

processo que é comandado pelo agente vadio, aquele que gosta da ociosidade, aqui tomado

pejorativamente, e, portanto, partidário da vadiagem. Observamos que, para formar os

substantivos que denotam, respectivamente, as ações de lavar e vadiar, antes de acrescentar-

lhes o sufixo -agem, suprimiu-se a desinência28 de infinitivo29. Freire utiliza-se desse prefixo

para criar andarilhagem.

-AL, importa aqui, para efeito de análise, a indicação do aspecto relacional que o

prefixo estabelece, ou seja, o que se pode fazer com o tema. Dito de outra forma, tem-se, por

exemplo, carnal, em que o sufixo se liga ao tema carne, estabelecendo relação com ela.

Portanto, o termo em questão significa o que se refere à carne; em conjugal, tem-se aquilo que

se refere ao cônjuge ou ao casal, o que é próprio dele. Além disso, o sufixo -al pode indicar

abundância ou coletivo. Em laranjal, a ideia é de um aglomerado de laranjeiras, o que ocorre

27 Atenho-me a comentar apenas a formação do particípio, que interessa à análise do objeto desta pesquisa. 28 Referimo-nos ao r, que determina o significado gramatical do termo em questão. 29 Forma nominal do verbo, da qual derivam o futuro do presente e o futuro do pretérito do modo indicativo, o

gerúndio e o particípio.

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também em relação a café, com cafezal. No texto freiriano, encontra-se epocal, cujo sentido é

aquilo que se refere à época.

-AR é utilizado para formar novos verbos a partir de substantivos e adjetivos. A vogal

a, seu elemento constitutivo, é chamada de vogal temática, ou seja, aquela que indica o tema

verbal30, e o r é a desinência de infinitivo. Observe-se, ainda, o que dizem Cunha; Cintra

(1985, p. 99): “a terminação -ar, já o sabemos, é constituída da vogal temática -a-,

característica dos verbos de 1a conjugação, e do sufixo -r, do infinitivo impessoal”. Em

nivelar, o sufixo associa-se ao substantivo nível para dar origem ao verbo que significa pôr no

nível, uniformizar alguns elementos, estabelecer o nível de alguma coisa. Em aportuguesar,

tem-se a ação de adaptar uma expressão estrangeira à língua portuguesa. Além de formar

verbos, -ar pode entrar na formação de substantivos e adjetivos como capilar, circular,

elementar e lunar, em que corresponde ao sufixo -al, cujo l, por dissimilação, é substituído por

r. Esse processo se dá porque o elemento primitivo já possui l em sua estrutura. Freire utiliza o

sufixo em questão para criar, por exemplo, a expressão existenciar.

-ÇÃO (-SÃO) entra na formação de substantivos, derivando-os de verbos, para indicar

ação ou resultado de ação expressa pelo termo que representa. Ascensão31, por exemplo,

expressa a ação de ascender; com a coroação, tem-se a representação do ato de coroar e, em

deglutição, o de deglutir. Nos textos freirianos, encontram-se alguns neologismos, como

dialogação e sectarização, a indicar o ato ou efeito representado pelo verbo. No primeiro, o de

dialogar e, no segundo, o de sectarizar.

-(I)DADE, do latim tatem, é muito utilizado na formação de grande número de

substantivos derivados de adjetivos32, indicando estado ou modo de ser, situação, quantidade,

qualidade. Como exemplos, citam-se, bondade, que significa qualidade de quem é bom, e

crueldade, que caracteriza ações ou métodos utilizados para fazer o mal, portanto cruéis. Além

disso, pode indicar a qualidade daquilo que pode causar pânico, aterrorizar. Em fugacidade, o

30 Formado de radical ou raiz da palavra + vogal temática: louv+a = louva. A vogal temática indica a conjugação

a que pertence o verbo: a, primeira; e, segunda; i, terceira. 31 Observe-se que, na formação deste substantivo, retira-se do verbo a terminação -der e acrescenta-se o sufixo -

são ao radical ascend, retirando-lhe o d final, o que, neste caso, justifica, pela regra, a grafia s do sufixo. 32 Para formar substantivos de adjetivos terminados em -vel, retoma-se a forma latina em -bil e acrescenta-lhe o

sufixo em questão: amável (amabilidade); falível (falibilidade); possível (possibilidade).

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sufixo liga-se ao adjetivo fugaz, que significa rápido, passageiro, efêmero, para formar o

substantivo que expressa característica ou qualidade do que é transitório, ou seja, do que tem

curta duração. Em pluralidade, o sentido que se estabelece com o sufixo associado ao adjetivo

plural é o de multiplicidade de algo, ou o que existe em grande quantidade. No terceito

capítulo, serão analisadas algumas criações da lavra de Freire, formadas com o acréscimo

desse sufixo, entre as quais criticidade e dialeticidade.

-ISMO, do grego -ismós,oû (incorporado ao léxico românico por influência do

Cristianismo), associa-se a substantivos e adjetivos para nomear doutrinas ou sistemas

religiosos, como budismo, cristianismo, espiritismo e luteranismo; filosóficos, como

marxismo, pluralismo e positivismo; artísticos, como futurismo, modernismo e tropicalismo, e

políticos, como fascismo, neoliberalismo e republicanismo. Indica também o modo de

proceder ou pensar de determinados indivíduos ou grupos: heroísmo, patriotismo, pedantismo,

servilismo. Além disso, pode expressar as particularidades linguísticas em relação a uma

determinada língua ou povo, como em americanismo, anglicismo, arcaísmo, galicismo e

neologismo. Em linguagem científica, designa fenômenos científicos: galvanismo,

magnetismo, psiquismo, reumatismo. Nos textos freirianos, estão contempladas com esse

prefixo algumas criações, entre as quais assistencialismo e desumanismo.

-ISTA, de origem grega -istēs, indica aquele que é partidário de doutrinas e sistemas

religiosos, como calvinista e budista; filosóficos, como materialista e positivista; artísticos,

como modernista, realista e simbolista, e políticos, como comunista, fascista e socialista.

Pode designar nome do agente do objeto a que se refere o termo derivante: em dentista,

caracteriza o profissional que cuida dos dentes; em jornalista, aquele que trabalha em

empresas jornalísticas ou assemelhadas, como redator, repórter, colunista ou responsável pela

direção. Acrescente-se a esses os órgãos estatais específicos e as mídias radiofônica e

televisiva. O sufixo pode também indicar nomes pátrios, isto é, adjetivos que designam a

origem de alguém ou de alguma coisa: nortista, paulista, sulista. Em Freire, encontram-se

palavras de sua lavra formadas com o auxílio deste sufixo, entre as quais assistencialista e

revolucionarista.

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O sufixo -IZAR, largamente utilizado no português moderno na formação de verbos,

tem, segundo Cunha; Cintra (1985, p.100), “sentido factitivo”33. Em anarquizar, a ideia é

‘quebrar’ qualquer sistema ordenado; promover a desordem, desorganizar. Em batizar, o

significado, entre outros, é o de, pelo batismo – rito sagrado que determina a união com Cristo

–, levar alguém à santificação, entendida aqui como o ato de elevar ao plano divino. Em

civilizar, o sentido que se tem é o de contribuir para que alguém se torne bem-educado, um

ser dotado de ética e moral ou que incorpore os padrões da civilização, ou seja, daqueles que

procuram ‘tirar’ do isolamento pessoas ou grupos, integrando-os na sociedade dominante. Em

nacionalizar, neutralizar e vulgarizar, o prefixo indica a ação (processo) de transformar algo,

ou seja, atribuir-lhe características diferentes das originais. Assim, por exemplo, com

nacionalizar, procura-se dar o caráter nacional àquilo que é importado ou pertence a outro

país. Já em neutralizar, o que se busca é garantir que o elemento não mais interfira em

determinados propósitos, fazendo-o perder o poder ou a força, tornando-o nulo ou

aniquilando-o. Freire faz uso desse prefixo para contextualizar algumas ações que reforçam

determinadas situações, entre as quais absolutizar, criticizar e sectarizar.

-MENTE, de origem latina, é o único sufixo com características adverbiais, em língua

portuguesa. Liga-se a adjetivos para formar advérbios que indicam modo, maneira: por

exemplo, o que se faz uniformemente é feito de maneira uniforme. Embora seja esse o sentido

básico dos advérbios em -mente, dependendo do sentido do adjetivo de que se originam,

podem expressar ideia de qualidade: aquele que age sinceramente o faz de modo sincero, pois

sinceridade é uma qualidade de quem procede dessa forma; de quantidade ou medida: o que é

feito copiosamente o é de maneira copiosa, ou seja, em abundância. Outra ideia que se tem é a

de relação de tempo e lugar entre dois elementos: num discurso, só é possível usar, por

exemplo, antigamente ou atualmente se houver referentes distintos, em tempos diferentes.

Quando se utiliza primeiramente, dá-se a entender que aquilo que se está a dizer é o ponto de

partida para uma sequência de elementos ou ideias no discurso. O sufixo -mente, que se

acrescenta aos adjetivos, atribuindo-lhes valor adverbial, tem função expressiva que não se

33 De acordo com Houaiss (2001, p.1299), “Ling 1 que expressa factitividade (interpretação semântica que dá

idéia de que a ação do verbo que a contém causa uma outra ação ou uma mudança de estado) cf verbo factitivo 2

diz-se do verbo que envolve a idéia de fazer ou causar; causativo cf verbo causativo (op. cit., p. 2845) ling verbo

que exprime a idéia de que o sujeito da ação causa a ocorrência da ação ou processo, mesmo quando ela é

efetuada por outrem”.

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encontra em adjetivos adverbializados nem em outros advérbios, pois, na lição de Lapa (1988,

p. 175), que nos brinda com a análise de “O carro anda devagar”; “O carro anda vagaroso”, e

“O carro anda vagarosamente”, na terceira frase, “[...] o advérbio exprime de modo perfeito a

natureza do ato, introduzindo agora não apenas uma noção de tempo, mas ainda de modo,

continuidade e movimentação.” Freire, em seu discurso, utiliza um sem-número de advérbios

em -mente, muitos de sua criação, como altamente, igualmente, infelizmente, marcadamente,

metodicamente, militarmente, preponderantemente, simultaneamente e sloganizadamente.

-NDO, de origem latina (gerúndio latino, como amandum, e no gerundivo ou

particípio do futuro da passiva amandus, –a, –um34), é utilizado em língua portuguesa como

formador de gerúndio, forma nominal de verbo, que indica circunstância ou processo. Freire

valeu-se deste prefixo para criar o substantivo alfabetizando, que indica um ser em processo

de alfabetização.

-NTE, de origem latina, este sufixo, que correspondia ao particípio presente latino,

extinto em português, passou a ser utilizado na formação de substantivos. Ligado a temas

verbais, indica o agente do fato verbal. Em depoente, o sufixo une-se ao verbo depor, que

neste caso significa testemunhar, acrescentando-lhe o sentido de aquele que presta

esclarecimentos; navegante, derivado de navegar, refere-se ao que se dedica à navegação; em

traficante, tem-se como sentido aquele que se dedica a atividades ilegais, e em vidente, o

prefixo se liga a ver em sua forma latina videre, denotando o que possui capacidade de ver o

passado e predizer o futuro, ou aquele que é clarividente.

Não raro, porém, ele pode ser encontrado como formador de adjetivos a indicar a

característica do agente do fato verbal que compõe o qualificativo. Assim, algo comovente é o

que comove ou provoca comoção; aquele que se mantém resistente, opõe-se ou resiste a

determinadas coisas ou opiniões, que demonstra firmeza em seus propósitos. Já o tolerante –

aqui usado com valor de substantivo – é o que tolera, permite ou aceita certos deslizes. Na

formação de algumas criações freirianas, encontra-se este sufixo com o sentido aqui

explicitado. Entre elas estão problematizante, imobilizante e criticizante.

34 Segundo Pereira (1935, p. 215).

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-OR (DOR, SOR, TOR) acrescenta-se a temas verbais para formar substantivos.

Indica o agente da ação expressa pelo verbo do qual deriva. Armador, por exemplo, significa

aquele que arma ou prepara armadilhas, ardiloso. Já o triturador pode representar aquele que

tritura ou o instrumento utilizado para triturar. Portanto o sufixo forma o agente ou o

instrumento, ou meio para praticar a ação expressa pelo verbo do qual o substantivo deriva.

Em Freire, encontram-se exemplos formados por esse prefixo, que são construções neológicas,

tais como humanizadora e problematizador(a).

-OSO liga-se a substantivos para formar adjetivos que indicam posse ou abundância de

uma ideia. Pontuam-se, como exemplos, arenoso, que designa o solo constituído de areia ou

no qual ela prevalece, e populoso que indica abundância de pessoas, o que é densamente

habitado. Esse tipo de formação pode, ainda, indicar qualidade, tendência ou característica de

um objeto ou pessoa. Amoroso significa o que tem amor ou está propenso a ele. Belicoso é

aquele que demonstra tendência para a batalha ou cujo comportamento é dotado de

agressividade. Já o cuidadoso age com cautela, cuidado; é minucioso. Para criar dois de seus

neologismos, Freire utiliza os adjetivos em -oso – esperançoso e rigoroso – acrescentando-lhes

o prefixo des-. Assim, forma desesperançoso e desrigoroso.

-(T)UDE35, de origem latina, acrescenta-se a adjetivos para formar substantivos que

indicam estado, propriedade ou qualidade. Com amplitude, ressalta-se a qualidade do que é

amplo, daquilo que possui grande extensão. Concretude sugere estado do que é concreto, real,

e plenitude significa totalidade, estado ou qualidade do elemento que é cheio, inteiro,

completo. Da lavra freiriana encontram-se as seguintes construções com este prefixo:

branquitude, concretude e incompletude.

O último sufixo que interessa à análise das criações de Paulo Freire é -VEL, do latim

-bil, que se agrega a temas verbais para formação de adjetivos, indicando a possibilidade de

realizar a ação sugerida por esses temas, seja ela de sentido passivo, o mais comum, como

aceitável, o que se pode aceitar, e discutível, o que é passível de discussão, seja de sentido

ativo, como durável, que significa o que pode durar, e volúvel, aquele ou aquilo que pode

35 Segundo Houaiss (2001, p. 2797), o sufixo -tude é “formador de substantivos abstratos femininos provindos de

adjetivos, em perfeito paralelismo com -dão; trata-se do mesmo sufixo -tudo,ǐnis” – amplitude, amplidão. O

prefixo -ude, na formação de substantivos, possui certa analogia com esses prefixos.

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mudar de sentido ou direção, aquele que não mantém determinada posição ou postura. Em

Pedagogia do oprimido (1988, p. 172), encontra-se não-dicotomizável, neologismo formado

do verbo dicotomizar. Neste exemplo, o que caracteriza a criação são dois elementos, o

prefixo não- e o sufixo -vel, pois o Volp36 não registra a forma não-dicotomizar nem

dicotomizável; em Pedagogia da autonomia (2002) aparece indicotomizáveis.

A linguagem e sua função histórico-social

Merece destaque, além da análise estrutural relacionada à formação dos neologismos e

sua carga semântica, a análise da dinâmica dessas construções no discurso freiriano, atividade

que terá como fundamentação teórica a análise do discurso.

Como “a visão de mundo freireana37, centrada na questão do processo pedagógico –

sem a ele se limitar – expande-se para o universo mais amplo da concepção da vida, do

homem e de sua ciência” (ROMÃO, 2002, p. 59), não se podem investigar as construções

neológicas do educador apenas discutindo sua estrutura; é necessário analisá-las no contexto

dos desafios histórico-sociais que lhes deu origem para compreender, em profundidade, o

discurso de Paulo Freire.

Como a língua é fato social, pois se funda nas necessidades comunicacionais, seus

elementos constitutivos devem ser analisados nas relações que estabelecem. Segundo Bakhtin

(2004, p. 123),

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de

formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato

psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,

realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui

assim a realidade fundamental da língua.

Nessa direção, tem-se a linguagem como elemento de mediação – o discurso –

imprescindível entre homem e realidade, que lhe permite significar-se e transformar-se, num

“mergulho” crítico para transformar a realidade em que vive. Por isso, a importância da

36 Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 37 Para indicar alguns derivados de antropônimos, usa-se o sufixo -ano, do latim anus,a,um, precedido de i a

substituir o e final do tema: Freire (i)ano = freiriano.

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Análise do Discurso, que trabalha “com a língua no mundo, com maneiras de significar, com

homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, [...]”

(ORLANDI, 2003, p. 16). Nesse processo está o homem como agente de sua prática

transformadora em relação com as condições e situações histórico-sociais em que se produz o

saber. E é nessa produção que se encontra o imperativo da linguagem, cujo sentido só pode ser

pensado na dimensão tempo e espaço, “[...] descentrando a noção de sujeito e relativizando a

autonomia do objeto da Lingüística” (ibidem), porque a língua, objeto do discurso, só encontra

sentido nas relações que se estabelecem no contexto.

Nessa relação, leva-se em conta o fator ideológico – elemento maior do discurso –

nesta proporção: a língua está para o discurso assim como o discurso está para a ideologia. Na

lição de Orlandi (op. cit., p. 17), como “[...] a materialidade específica da ideologia é o

discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, [a análise do discurso] trabalha a

relação língua-discurso-ideologia”; nas palavras de M. Pêcheux (1975, apud id., ib.), “não há

discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela

ideologia e é assim que a língua encontra sentido.”

A análise do discurso não busca responder à pergunta: — O que o texto diz? Ela vai

além. Preocupa-se com o como ele expressa, como ele significa, “porque o vê como tendo

uma materialidade simbólica própria e significativa, como tendo uma espessura semântica: ela

o concebe em sua discursividade” (id., ib., p. 18). Nesse tipo de análise, não se leva em conta

apenas a estrutura básica da comunicação – emissor, receptor, código, referente e mensagem,

em que o emissor refere algo, por meio de um código, transmitindo a mensagem ao receptor,

que a capta e decodifica, num mero processo de transmissão de informações, já que emissor e

receptor estão realizando, ao mesmo tempo, “[...] o processo de significação e não estão

separados de forma estanque.” (id., ib., p. 21). Há que se tomar como pressuposto que, na

linguagem, as relações se estabelecem entre os sujeitos, não dissociadas de seu aspecto

histórico, por isso contextualizadas, dotadas de sentido. Assim,

[...] temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de

sentidos [...].São processos de identificação do sujeito, de argumentação, de

subjetivação, de construção da realidade etc. [...]. A linguagem serve para comunicar

e para não comunicar. As relações de linguagem são relações de sujeitos e de

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sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o

discurso é efeito de sentidos entre locutores (id., ib.).

No processo gerativo de sentidos, é preciso levar em conta os elementos constitutivos

do discurso, partindo-se da análise do objeto sob diferentes perspectivas para chegar-se à

constatação do todo uniforme que traduz a objetividade da mensagem. Na lição de Fiorin

(2006, p. 21), “O percurso gerativo de sentido é uma sucessão de patamares, cada um dos

quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se

interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo.” Nessa

perspectiva, cada ato de enunciação deve respeitar a interação entre sujeitos, que se realiza

pelo aspecto dialógico em que, segundo Brandão (2002, p. 10), “o Outro [o interlocutor]

desempenha papel fundamental na constituição do significado, integra todo ato de enunciação

individual num contexto mais amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o

social.” Portanto, assevere-se que o simbólico da mensagem é imanente à constituição

ideológica do discurso, o que nos obriga à análise criteriosa do signo linguístico sempre em

relação com o objeto analisado em seu aspecto histórico-social.

Na Análise do Discurso, o exame de uma mensagem passa, no dizer de Romão (2000,

p. 37),

[...] pela análise lógica, compreensiva, imanente ou sintático-semântica – passo

necessário, porém insuficiente – mas só se conclui na análise sociológica,

explicativa, transcendente ou pragmática, isto é, na abordagem das condições reais de

produção, disseminação e recepção das mensagens.

Nessa visão, pode-se afirmar que o discurso é um ato político e, como tal, ideológico,

mas só encontra sentido pleno pelos determinantes histórico-sociais que o geraram, e não

apenas pela posição do ator que o produziu. As palavras de Orlandi (2003, p. 42) corroboram

esses aspectos:

Não é no dizer em si mesmo que o sentido é de esquerda ou de direita, nem

tampouco pelas intenções de quem diz. É preciso referi-lo às condições de produção,

estabelecer as relações que ele mantém com sua memória e também remetê-lo a uma

formação discursiva – e não outra – para compreendermos o processo discursivo [...]

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E é a compreensão desse processo que nos permitirá determinar a posição política de

seu autor. Por isso, segundo Fiorin (2006), na geração do discurso é preciso levar em conta os

níveis profundo, narrativo e discursivo em suas manifestações.

Importante aqui destacar a ambivalência como ponto de partida para compreensão

daquilo a que se propõe o autor do discurso no contexto histórico-sociológico-político.

Segundo Bauman (1999, p. 9), “a ambivalência [...] é uma desordem específica da linguagem,

uma falha da função nomeadora (segregadora) que a linguagem deve desempenhar.” Por isso,

necessário se faz avaliar as condições contextuais para “escolher” e compreender o porquê de

certas nomeações de sentido serem amalgamadas no conteúdo formal de uma palavra bem

posta na relação significante-significado no discurso. Essa compreensão deve focar o discurso

como especificador da noção dialógica entre autor e destinatário da mensagem para atingir os

propósitos culturais e políticos.

Nessa relação é que se procura nomear e classificar ações que, para Bauman (op. cit.),

compõem o “aspecto normal da prática linguística”. Esse processo, calcado na ambivalência,

permite ao autor utilizar a linguagem a serviço de uma ideologia e, em decorrência, traz perigo

a quem busca revolucionar, “quebrar” padrões estabelecidos que só fazem manter o status quo

pelo reacionarismo exclusivista, pois classificar é negar o dinamismo histórico ditado pelo

movimento ininterrupto, “[...] é dar ao mundo uma estrutura: manipular suas probabilidades,

tornar alguns eventos mais prováveis que outros, comportar-se como se os eventos não fossem

casuais ou limitar ou eliminar sua casualidade.” (ibidem – grifo do autor). Esse processo

inverte as relações contingenciais em que se determina ao mundo uma ordem, por meio da

qual

“a gente sabe como ir adiante” [...], um mundo no qual sabemos como descobrir –

com toda certeza – de que modo prosseguir, [...] calcular a probabilidade de um

evento e como aumentar ou diminuir tal probabilidade; um mundo no qual as

ligações entre certas situações e a eficiência de certas ações permanecem no geral

constantes, de forma que podemos nos basear em sucessos passados como guias para

outros futuros (id., ib., p. 10).

Reserva-se nesse caso a manutenção de um estado de conforto que evita confrontos,

pois, “[...] por causa de nossa capacidade de aprender/memorizar, temos um profundo

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interesse em manter a ordem do mundo.” (id., ib.). Tal ordem se mostra contraditória em si

mesma quando se busca a fundamentação de conceitos para o mundo real que, em constante

mudança, mostra-se imprevisível pela própria relação dialética que conforma as ações

transformadoras do homem. Dito de outra forma, instala-se nessa ordem um tipo de relação de

inclusão-exclusão em que há certa dose de coercibilidade, ato de violência perpetrado contra

os humanos que os mantém alienados de sua realidade como um caldo de ignorância a

justificar a impossibilidade de vir a ser, destituindo-os de sua vital tarefa de agentes

transformadores, produtores da própria história.

Nesse embate, o questionamento encetado no plano das relações de opressão discutidas

por Freire reforça o caráter ambivalente da linguagem, cujos instrumentos não dão conta de

expressar e definir, com clareza, seus pressupostos para uma educação que se quer libertadora.

Ressalte-se ainda a ponderação de Bauman (1999, p. 11) sobre o ato de classificar (nomear):

Cada ato nomeador divide o mundo em dois: entidades que respondem ao nome e

todo o resto que não. Certas entidades podem ser incluídas numa classe – tornar-se

classe – apenas na medida em que outras entidades são excluídas, deixadas de fora.

Invariavelmente, tal operação de inclusão/exclusão é um ato de violência perpetrado

contra o mundo e requer o suporte de uma certa dose de coerção.

E a coercitividade se mantém enquanto for adequada à manutenção de verdades

“imutáveis” que reforçam o poder instituído, o colonialismo imperialista histórico-político

avassalador tão combatido por Freire. Assim, evidencia-se a contradição pela insuficiência

coercitiva revelada pela indecisão própria do ato de classificar que produz dicotomias. Da

mesma forma que se busca definir com precisão, tem-se o impreciso ditado pelas

circunstâncias indefinidas do acaso que se apresenta como contraponto às teorias

dicotomizadas da prática. Por isso,

[...] a ambivalência só pode ser combatida com uma nomeação ainda mais exata e

classes definidas de modo mais preciso ainda: isto é, com operações tais que farão

demandas ainda mais exigentes (contrafactuais) à descontinuidade e transparência do

mundo e assim darão ainda mais lugar à ambiguidade (id., ib.).

Nessa perspectiva, tem-se o que a Modernidade traz como postulado à reflexão – caos

e ordem, em que se questiona tudo: “a ordem do mundo, do habitat humano, do eu humano e

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da conexão entre os três: um objeto de pensamento, de preocupação, de uma prática ciente de

si mesma, cônscia de ser uma prática consciente e preocupada com o vazio que deixaria se

parasse ou meramente relaxasse.” (BAUMAN, 1999, p. 12). E é esse objeto que instiga Freire

em sua busca incessante pela construção de uma sociedade justa e igualitária, e esta só pode

“vingar” numa produção solidária como lábaro de desconstrução das mazelas sociais. Para

isso, há que se pensar uma educação forte que liberte as mentes do utilitarismo, uma educação

dos e pelos silenciados. É preciso trazer ao debate as duas realidades-mundo, fazê-las dialogar,

conhecer-lhes as fragilidades, os temores pela ruptura, levá-los a “organizar” o caos que se

instala no inconsciente de si mesmos.

Nessa existência falaz, portanto destituída de ordem, impõe-se o medo relativo, o caos

que, para Bauman (id., ib., p. 14), “[...] é o miasma38 do indeterminado e do imprevisível.” É o

outro da ordem, “[...] a incerteza, essa fonte e arquétipo de todo medo.”

O conflito inevitável nessa relação entre o eu e o não-eu se destaca pela “[...]

indefinibilidade, incoerência, incongruência, ilogicidade, irracionalidade, ambiguidade,

confusão, incapacidade de decidir, ambivalência.” (id., ib.). Diríamos que, nesse ambiente de

pura negação, de ruptura ordenada, encontra-se o que Bauman (ib., p. 15) chama de “[...]

produto da autoconstituição da ordem, seu efeito colateral, seu resíduo e, no entanto, condição

sine qua non de sua possibilidade (reflexa).” É o equilíbrio das coisas, o negativo do positivo.

Em Freire, não se trata de negar o outro, lutar contra ele, e sim de reconhecê-lo para

buscar libertá-lo de sua sensação ou situação de opressão ditada pela posição de “dominador

(opressor) situacional” enclausurado pelo estado de coisas por ele mesmo criado: o de sentir-

se ameaçado por quem – o oprimido – sempre atemorizou com sua cultura de cerceamento de

consciências.

Nesse rol de relações ambivalentes, busca-se, muitas vezes, a imposição de uma ordem

que

[...] exige a negação dos direitos e das razões de tudo que não pode ser assimilado – a

deslegitimação do outro. Na medida em que a ânsia de pôr termo à ambivalência

38 Situação ou sensação de opressão.

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comanda a ação coletiva e individual, o que resultará é a intolerância – mesmo que se

esconda, com vergonha, sob a máscara da tolerância [...] (BAUMAN, 1999, p. 16)

O assistencialismo populista, tão presente na história política nacional39, reforça bem

essa tese, pois as ações que se põem como benefícios concedidos aos que se quer ver em

situação “privilegiada”, num contexto sociocultural, político e econômico, são na realidade

práticas de desvalorização do outro, formas sutis e ardilosas de subjugá-lo “docilmente”,

reafirmando sua inferioridade, num reconhecimento ilusório da disposição de eliminar as

diferenças. Esse sentido de humanização político-democrática nada mais é que um jogo

estratégico de manipulação.

Nesse aspecto, na relação oprimidos e opressores estão presentes a existência e a

cultura modernas, num conflito indissociável decorrente do dinamismo que se instala pela

relação de complementaridade entre os dois segmentos. E aí está a tensão entre cultura e

sociedade que fundamenta a história da modernidade, os embates que se travam pela

construção de um Estado moderno, em outras palavras, nacional. Esse processo de

inacabamento, incompletude e inconclusão, de aparente desarmonia é que impele a busca pela

harmonização de que tanto a modernidade existencial necessita. São as contradições geradoras

do inconformismo ditado pela situação de estagnação que se impõem ao indivíduo como

ferros a tirar-lhe a possibilidade de vir a ser no mundo.

Esse processo dialético constitui leitmotiv para construção de uma sociedade mais

justa, solidária e humana, pois, nas palavras de Bauman (op. cit., p. 17),

Como forma de vida, a modernidade torna-se possível assumindo uma tarefa

impossível. É precisamente a inconclusividade endêmica do esforço que torna

possível e inelutável a vida de contínua inquietação e efetivamente impossibilita que

o esforço venha jamais a cessar.

É uma tarefa sem fim, porque caminhada obsessiva pela concretização de um ideal. E

esse caminhar está a exigir sempre um eterno recomeço, uma constante revisita ao presente-

passado para retomada de posições, incorporação e refazimento do caminho. Essa construção-

39 Para o estudo do populismo na política brasileira, sugere-se a leitura de WEFFORT, F.C. O Populismo na

política brasileira. 5. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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realinhamento-reconstrução impõe-nos desafios e nos leva a embates necessários para

gestação de sentido da própria existência.

Nessa perspectiva humana, estão as ciências sociais a produzir conhecimento ilusório,

num jogo de falso-verdadeiro, em que se evidencia, na análise de Bauman (1999 ib., p. 244), a

produção de “[...] um produto nacional sob o falso pretexto de estarem suprindo algo

completamente diferente...”, concluindo que elas

[...] informaram da contingência [do eu moderno] acreditando descrever a

necessidade, expuseram a particularidade supondo falar da universalidade, deram

uma interpretação tradicional pretendendo uma verdade extraterritorial e

extratemporal, mostraram indecisão travestida de transparência, indicaram o

transitório na condição humana crendo-se portadoras da certeza do mundo, revelaram

ambivalência do projeto humano quando supunham descrever a ordem natural (id.,

ib., p. 244-245 – grifos do autor).

Essas contradições, falsas crenças, caracterizaram como modernas as ciências sociais.

A produção do conhecimento nessa perspectiva constitui um aparente conceito de crença

numa verdade construída que busca atestar seu fundamento. Para o sociólogo polonês,

Não se pode passar sem um “conceito bem fundamentado de verdade”: é quando se

diz a outros que eles estão em erro e portanto (1) devem ou têm que mudar de

opinião, assim (2) confirmando a superioridade (leia-se: o direito de comando) do

detentor da verdade (leia-se: o atribuidor de comando). A proclamação da verdade

como uma qualidade do conhecimento surge pois exclusivamente no contexto da

hegemonia e do proselitismo [...] (BAUMAN, op. cit., p. 245).

Nesse contexto, confirmam-se as contradições na “convivência” conflituosa de classes,

em que não se respeitam fronteiras, em que se nega a coexistência pacífica com o outro. Tem-

se aí a verdade como “[...] relação social (como poder, propriedade ou liberdade): aspecto de

uma hierarquia feita de unidades de superioridade e inferioridade; mais precisamente, um

aspecto da forma hegemônica de dominação ou de uma pretensão a dominar pela hegemonia”

(id., ib., p. 245-246 – grifos do autor).

Esse conceito traz como ponto de partida a pretensão de dissolver a alteridade,

conspurcando-a sob a bandeira da verdade, da “ordem racional”, calcada em evidências,

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situações incontestáveis. Essa certeza unilateral, opressora por sua natureza, institui uma

verdade universal como processo sacralizante. Assim,

Juntos, a ordem política e o conhecimento verdadeiro mesclavam-se num projeto de

certeza. O mundo racional e universal da ordem e da verdade não conheceria

contingência nem ambivalência. O alvo da certeza e da verdade absoluta era

indistinguível do espírito conquistador e do projeto de dominação (BAUMAN, 1999.

p. 246 – grifo do autor).

Nessa “miscelânea”, é possível romper os “ferros” da subserviência, que promove a

desesperança, nem sempre consciente, mas pela situação de opressão em que se encontram os

indivíduos condenados ao mutismo existencial – um simples viver sem perspectivas de

mudança –, desde que pela conscientização se busque a emancipação, o que requer luta

incessante contra o conformismo. Como menciona Bauman (ib., p. 248), ao citar Rorty40, “A

linguagem da contingência [...] cria uma chance ‘de ser gentil’, de evitar a humilhação dos

outros.” Portanto, há que se pensar que

[...] “ser gentil” não é também o final da história – a estação final no caminho da

emancipação. “Ser gentil” e a tolerância que isso representa como símbolo de

comportamento e linguagem podem muito bem significar a mera indiferença e a

despreocupação que resultam da resignação (isto é, da sina, não do destino) [...]

(BAUMAN, op. cit. – grifos do autor).

Assim, tem-se a preocupação assistencialista para confirmar interesses próprios por

meio de proselitismo “barato”: “gentileza gera gentileza”. Essa reciprocidade convém àqueles

que se propõem manter sua relativa posição de dominadores, resultado do medo de enfrentar

desafios postos que comunicam a inserção de uma nova ordem. Por isso, não basta “[...] evitar

a humilhação dos outros. É preciso também respeitá-los – e respeitá-los precisamente na sua

alteridade, nas suas preferências, no seu direito de ter preferências. É preciso honrar a

alteridade no outro, a estranheza no estranho [...]” (id., ib., p. 249). Mais do que isso, é

necessário assumirmo-nos como o outro, respeitando-nos e a ele, aceitando as diferenças que

nos fazem semelhantes, nunca em posição de neutralidade cínica, mas como pacto de

solidariedade em busca do ser mais.

40 In Contingency, Irony and Solidarity, p. 91. “A gentileza da atitude tolerante não exclui por si mesma o pior

que existe na humilhação: a suposição da inferioridade inerente do objeto tolerado. A tolerância pode muito bem,

por si mesma, ser apenas mais uma forma de reafirmar as virtudes do tolerante.”

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Nesse discurso, o perigo é a embriaguez que as frases de efeito provocam nos ingênuos

pelo falso comprometimento dos que se põem como arquétipos da salvação, com suas práticas

assistencialistas manipuladoras, que só fazem criar uma geração de conformados com o que a

realidade opressora lhes oferece, sem, contudo, lhes permitir questionamentos. Nas palavras

de Freire (1988, p. 149),

É que estas formas assistencialistas, como instrumento da manipulação, servem à

conquista. Funcionam como anestésico. Distraem as massas populares quanto às

causas verdadeiras de seus problemas, bem como quanto à solução concreta destes

problemas. Fracionam as massas populares em grupos de indivíduos com a esperança

de receber mais.

Por isso, não se deve levar em conta apenas os aspectos estruturais lógicos de uma

frase de efeito, é preciso conhecer-lhe antes o que há por trás dessa estrutura linear que se põe

como “armadilha” aos que dela fazem uso como simples enunciado posto para ser reproduzido

automaticamente e seguido, enquanto mensagem, pelos atores – educandos em relação aos

educadores:

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização

mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”,

em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os

recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se

deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão (id., ib., p. 58).

Podemos ilustrar tal processo de comunicação com uma situação em sala de aula, em

que essa disposição, que se quer seja para o aluno a base de estudo para ordenar o raciocínio,

constitui, segundo Ducrot (1970, p. 25), “[...] a oportunidade mais evidente de encontro com

uma estrutura, estrutura tão incontestável, e que oferece tão pouco azo para o espírito crítico,

que haverá tendência de fazer-se dela o protótipo de tôda organização e de projetá-la sôbre o

universo intelectual.”

Esse processo entrava o desenvolvimento intelectual imprescindível ao exame da

realidade, da visão de mundo transformadora. É preciso, pois, fazer da palavra objeto de

análise num contexto histórico-cultural, servindo esse recurso de registro discursivo do

anúncio do que se quer comunicar com precisão.

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Nesse universo está Paulo Freire ao utilizar-se dos mecanismos linguísticos para dotar

de precisão seu discurso-alerta. Utiliza ele sufixos e prefixos derivando palavras com

significados específicos ou pelo processo de composição, aglutinando elementos para

encontrar a forma exata, o conteúdo mais consistente que lhe permita empenhar sua palavra

numa construção significativa. Essa forma de expressão é sua principal característica

discursiva, quando por opção se vale dos neologismos ou construções neológicas que

garantem a unidade significativa de seu discurso, de sua mensagem. Esse propósito semântico-

linguístico encontra eco em Ducrot (1970, p. 72-73):

A unidade linguística é expansionista, e nada permite prever onde se deterá: sòmente

a resistência das outras a contém. Saussure fala, por tal razão, da “limitação

negativa” que os signos exercem uns sobre os outros: a “característica mais exata” de

um elemento linguístico “é ser o que os outros não são”.

Freire, por meio da linguagem, fala de “educação bancária”, que traduz o processo de

“castração de consciências”, contrapondo-o ao que fundamenta seu propósito pela inquietação

e inconformismo: a educação para a libertação ou “educação libertadora”. E aqui nos valemos

novamente das palavras de Ducrot (ib., p. 73-74), ao comentar sobre paradigma sintagmático,

lembrando que não há como dissociar campo semântico dos termos estruturantes da palavra:

Os vínculos que os unem não lhes são, pois, sobrepostos. Se se encontram, por

exemplo, aprendizagem e educação no paradigma de ensinamento, isso não se dá

porque se julgou cômodo ou satisfatório pô-los na mesma categoria e sim porque não

se pode estabelecer o sentido último sem referência aos primeiros.

A interligação semântica só encontra eco quando os termos são postos num contexto

ordenado para efetivar a comunicação entre os interlocutores com a intencionalidade de quem

produz o enunciado tendo, por fim, o objeto de sua mensagem: o enunciatário41. Nesse

movimento, o bom comunicador há que se preocupar com a relação dialógica que deve

decorrer de um processo instigador próprio de uma situação comunicativa eficaz. O ouvinte

deve ter a capacidade, e mais, o direito de decodificar o que lhe foi dado como “alerta” para

que possa posicionar-se como agente questionador da realidade. Para tanto, é vital que o

universo semântico-dialogal a ser explorado seja comum aos interlocutores.

41 Termo utilizado por nós para indicar o destinatário da mensagem.

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A língua deve ser instrumento de integração dos indivíduos, de autorreconhecimento,

de relação interpessoal. Portanto, as construções ou categorias linguísticas não podem nem

devem estar dissociadas das relações intersubjetivas. No entanto, é bom alertar sobre o perigo

da unilateralidade: se na relação comunicativa democrática, por meio da qual os papéis se

invertem e o questionamento se torna salutar para a construção do conhecimento, no processo

informativo condena-se o outro ao mutismo – um fala, faz desfilar seu saber, e o outro

funciona apenas como “abrigo” informativo, pois apenas será capaz de reproduzir, se é que

conseguirá fazê-lo, o que lhe foi comunicado. É o que Freire (1988, p. 71 – grifo nosso) chama

de “Educação Bancária”, que se contrapõe à prática problematizadora:

Enquanto, na concepção “bancária” – permita-se-nos a repetição insistente – o

educador vai “enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos

impostos, na prática problematizadora, vão os educandos desenvolvendo o seu

poder de captação.

Portanto, há que se fazer um esforço para que o discurso seja, de fato, um processo de

permanente questionamento de situações vividas e vivenciadas pelos atores, que se tornam,

solidariamente, falantes-ouvintes, sujeitos do processo existencial. E aqui é estratégico tratar

da etimologia da palavra discurso: composta do prefixo dis que sugere “ruptura da harmonia”

determinada pelo termo primitivo, movimento de alguma coisa que se desprende da sequência

natural, mais curso, do latim cursu(m), que significa direção, caminho, leito do rio, e provém

de currere, verbo correr. Com base nessas observações, o discurso pressupõe diálogo,

confronto de ideias, dialogação, entendimento entre as partes discursantes. Caso não o seja,

não se presta à construção de saberes que se registra por meio da linguagem. E neste ponto nos

valemos de Gadamer (1996, p. 347, apud BERTICELLI, 2004, p. 256), quando trata da

“autoridade educacional”: “A autoridade não se outorga mas se adquire e tem de ser adquirida

se se quiser apelar para ela. Repousa sobre o reconhecimento e, consequentemente, sobre uma

ação da razão mesma que, reconhecendo seus próprios limites, atribui ao outro uma

perspectiva mais acertada.” E aí está o conhecimento numa construção intersubjetiva. Nessa

esteira, toda “soberania” discursiva, relativa portanto, só é possível pela argumentação.

Segundo Berticelli (2004, p. 257), é fácil perceber e compreender

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[...] que, no contexto da Filosofia da Linguagem, a fundamentação do agir, seja sob a

ótica da eticidade, seja ele agir educacional, social, político, econômico, etc., só pode

se dar no próprio contexto da linguagem. E linguagem é essencialmente

comunicação. A pretensão de validar uma epistemologia da normatividade em

educação só pode alcançar êxito (ou não) no contexto da pragmática linguística.

Não se pode trabalhar uma forma de agir sem que se levem em conta as relações

circunstanciais entre os termos, as expressões e seus usuários; portanto, a intencionalidade

intersubjetiva inerente ao discurso num princípio de cooperação que deve existir entre os

interlocutores. Nessa perspectiva, a produção de sentido que se estabelece é dinâmica, na

medida da compreensão e interpretação do enunciado tanto pelo comunicador quanto pelo

ouvinte. A carga semântica deve ser posta solidariamente em análise, respeitando os limites de

cada um dos atores, e mais: sua liberdade de decidir sobre o rumo da conversa.

Para encerrar essa discussão, que nos permitirá analisar, no terceiro e quarto capítulos,

o objeto desta tese: os neologismos e as estruturas neológicas em Freire, avançaremos um

pouco mais no assunto “educar pela linguagem, pelo contexto”.

Quando se trata do processo do pensamento que é ato de desvelamento daquilo que não

se encontra explicitamente codificado, que já está posto, portanto, a educação não se deve

resumir à simples relação ensino e aprendizagem do que é determinado pela ciência,

direcionado pela linguagem, pelos textos ou por contextos preestabelecidos, ou seja, como

modelo acabado. Educar é ato calcado na linguagem – referencial –, numa renovação

permanente pelo falar e ouvir, ou seja, pela interpretação e compreensão, sendo, portanto, não

um “falar sobre”, e sim um processo discursivo dinâmico e aberto entre os atores, o que se

contrapõe ao tradicional informativo-repetitivo.

Educar é jogar solidariamente, é relação de respeito a saberes, é jogo aberto de

perguntas e respostas que exigem questionamentos, interargumentação com e entre atores que

compartilham experiências, realidades. Um texto ou um discurso deve ser objeto dinâmico da

interpretação de sujeitos. Quando uma pergunta é direcionada ao interlocutor, este a decodifica

de acordo com a situação em que foi produzida, o que permite múltiplos desdobramentos.

Nessa perspectiva, tem-se o aspecto dialogal dialético – jogo de esconde-esconde e de

permanente revelação interpretativa ditada pelo “instigamento” questionador. Essa é a

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característica do processo educacional, que deve promover o conhecimento, não como algo

dado, e sim como busca incessante, ponto de partida, e nunca de chegada. A educação deve ser

geradora de sentidos e de interpretação da realidade fundamentada na compreensão. E

compreender é ter a possibilidade de analisar o que está posto, é descobrir-lhe a

intencionalidade; por isso, assumir simplesmente o lugar do outro, reproduzindo suas

verdades, é manter-se num estado de estaticidade intelectual que não permite avançar.

No processo educacional, há que se levar em conta o que cada um dos atores traz de

suas vivências, comungando solidariamente experiências de sentido num fazer interpessoal

ditado pela consciência do inacabamento, pois, nas palavras de Freire (2002, p. 55), “[...] o

inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há

inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente [...]”;

por isso, a permanente construção. E aí está o conhecer, num vir a ser pela relação dialógica

entre as partes que compartilham interpretação e produção de sentidos, ação inerente do

aprender-ensinar-aprender. É a dodiscência, um dos neologismos mais importantes da verve

do pensador da educação para indicar que o ensinar exige o aprender, num ato solidário que

respeita e reconhece o outro como parceiro na busca do conhecimento.

Nessa perspectiva, não há lugar para imposições intolerantes, preconceituosas, de

discriminação, que preceituam verdades unilaterais. Por mais que se façam discursos e estes

estejam sempre intercalados de valores recheados de crenças, interesses políticos e de

determinadas convicções, não se pode perder de vista o processo da descoberta que só se dá na

relação dialógica, desde que os atores estejam em situação de dialogicidade.

Entre nós, mulheres e homens, a inconclusão se sabe como tal. Mais ainda, a

inconclusão que se reconhece a si mesma, implica necessariamente a inserção do

sujeito inacabado num permanente processo social de busca. Histórico-sócio-

culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade,

ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da

produção do conhecimento (FREIRE, 2002, p. 61).

Isso não invalida nem esvazia a orquestração do professor, mas exige postura ética que

deve não apenas reconhecer as diferenças, mas também, e principalmente, respeitá-las,

permitindo-lhes o questionamento. Para tanto, é mister assumir-se como ser inconcluso,

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incompleto e inacabado que anima relações existenciais desafiadoras, saindo da “situação de

conforto” pelas verdades bebidas da fonte dos deuses da “certeza inquestionável”. Só assim

haverá superação pela educação. Nesse processo, segundo Freire (1988, p. 68), “[...] a

educação problematizadora – situação gnosiológica – afirma a dialogicidade e se faz

dialógica.”

No entanto, há momentos em que o professor, na qualidade de mediador, deve mostrar

o caminho, fundamentá-lo, explicá-lo, direcionar o debate sobre o objeto em questão, mas

destituído de arbitrariedades e intolerância que descaracterizam o compromisso da educação: a

formação de sujeitos capazes de fazer a história, de transformar o mundo. Nessa relação, faz-

se presente, de um lado, a conscientização do educador de que, enquanto educa, é educado

pelo educando e, de outro, o educando que, ao aprender, também ensina o educador. Para

isso, “O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos

alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto

ouve.” (FREIRE, 2002, p. 96).

Não há como fazer educação libertadora, revolucionária sem questionamentos, sem dar

voz ao outro, ao não-eu, sem a descoberta solidária. E a boa educação não é relação entre

indivíduos em sala de aula, e sim a decorrente de compromisso (pacto) amoroso entre pessoas

que, num dado contexto histórico-social, se reconhecem, respeitam-se e se frequentam. Esse é

o processo dialético que deve nortear a relação teoria e prática para a libertação daqueles que

se pretendem sujeitos de sua história, únicos capazes de fazer a transformação sociopolítico-

educacional, porque isentos da marca do continuísmo.

Neste ponto, é de bom-tom discorrer sobre o conceito de metáfora para explicitar,

ainda mais, o teor neológico de algumas expressões, sua relação com o discurso freiriano e

com as condições em que foi produzido, sua função e seus efeitos de sentido. Por sua

complexidade, a metáfora exigiria um estudo de tamanha profundidade que não pode ser feito

nos limites desta tese, em razão de não ser esse o foco de nossa pesquisa. Por isso, limitaremos

nossas considerações a uma visão sucinta deste fenômeno semântico-discursivo que servirá de

orientação para discutir sua aplicação no universo do pensamento do intelectual

pernambucano.

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Iniciamos a abordagem com o que lecionam Greimas; Courtés (2008, p. 305): “[...] o

lexema metafórico se apresenta como uma virtualidade de leituras múltiplas, mas suspensas

pela disciplina discursiva, provocando, entretanto, um efeito de sentido de “riqueza” ou de

“espessura” semânticas”. A metáfora é um recurso que nos permite, por meio de sua essência

simbólica, uma gama de associações potenciais só definidas pela objetividade do discurso,

vale dizer, pelo contexto em que foi gerada. Sua força conotativa está no efeito semântico que

se quer produzir. Geralmente, o que se pretende com a metaforização é alargar o sentido que

se expressa no texto pela contradição que contêm os termos em relação. E é nessa relação que

se encontra a criação de sentido, não pela dessemelhança semântica entre os termos, mas pelo

encontro das características comuns que os lexemas trazem em sua origem designativa de

significado no universo conceitual. Com tal semelhança, produz-se um efeito de sentido que

vai além do texto. Tomemos os seguintes contextos em separado:

Manuela nasceu, em que o ato de nascer simplesmente nos oferece o significado

fraseológico de vir ao mundo.

A rosa desabrochou, que nos leva à compreensão de que a flor passou de seu estado

primeiro, o de botão, para o de abrirem-se as pétalas em harmonia, o que nos dá a visão do

todo esplendoroso a marcar a construção do sentido de inteireza do objeto analisado.

Num processo simbiótico, tem-se a aproximação do nascer com o desabrochar, cujas

características nos permitem combinar os dois seres em sua essência, tanto pelos atos que

representam sua constituição de entes vivos em sua plenitude – nasceu e desabrochou

(Manuela desabrochou) –, em que a criança deixa sua forma primeira, a de feto, portanto a de

botão, passando para o estágio de ser vivente pelo desabrochar, quanto pela relação dos dois

atores: Manuela e rosa, em Manuela é uma rosa, em que a conotação que se estabelece, além

da noção de viver, aguça-nos o aspecto sensorial, a percepção da beleza, da graciosidade, da

forma angelical, do aroma característico de uma criança no nascedouro; enfim, do mimo

pueril. E aí está a força semântica metafórica.

Na metáfora, tem-se, portanto, uma relação de semelhança que se mantém com as

características primitivas dos termos que se aproximam. Assim, em Manuela é uma rosa, o

desabrochar, a formosura da flor, seus aspectos que nos encantam, despertam nossa atenção e

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nos fascinam são transferidos por nosso imaginário para a menina. Nesse processo criativo, as

relações se estabelecem sempre que haja um propósito ideológico, independentemente das

razões que nos levem a fazê-lo.

E aqui está Freire com uma de suas belas construções de efeito de sentido: “concepção

bancária de educação”, em que faz uma crítica ácida àqueles que praticam a educação

tradicional, que aliena os homens, coisifica-os. E coisificados, transformam-se em meros

armazenadores de informações, em processo de inanição intelectual, pois não pensam, não

problematizam, alheios que estão de seu estar no e com o mundo como agentes da

transformação:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os

educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí

a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se

oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.

Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No

fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses)

equivocada concepção “bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca,

fora da práxis, os homens não podem ser (FREIRE, 1988, p. 58, grifos nossos).

Para melhor compreendermos o efeito de sentido dessa expressão, basta analisar os

termos que a compõem: a) concepção – ato de conceber, perceber algo; modo de sentir ou ver

uma determinada realidade ou situação; b) bancária – adjetivo relacionado à instituição

mercantil de crédito, que trata de negócios afins, como depósitos e aplicações. Nessa

“pseudosimbiose”, “concepção” é a denominação, e bancária, sua especificação. No entanto, a

relação é disjuntiva, pois os elementos que se relacionam pertencem a categorias semânticas

diferentes. O efeito está no sentido que “concepção bancária” empresta à educação, que, além

de indicar processo de educar(-se), sugere aplicação de métodos e técnicas peculiares para

assegurar determinado propósito: a formação e o desenvolvimento do homem.

A crítica freiriana está justamente aí: a aplicação enviesada desses métodos e técnicas é

que constitui o sistema operacional bancário da educação: o educador (agente mercantil)

aplica e o educando (cofre) vai guardando o que “não lhe pertence”. Esta é a contradição:

embora enchido, mantém-se vazio, pois o conhecimento armazenado é fugaz e não cria

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vínculos, não transforma. A isso podemos chamar de vacuidade cultural e educacional

geradora de “ocos” existenciais.

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CAPÍTULO III

A DISCUSSÃO SEMÂNTICO-POLÍTICA DO DISCURSO FREIRIANO

Neste capítulo, analisamos os neologismos, considerando estas criações, seu processo

de formação à luz do referencial teórico apresentado no primeiro capítulo e sua dimensão de

sentido. Para tanto, discutiremos sua recorrência em cada uma das obras citadas, tendo o

cuidado de analisar o porquê de Freire tê-los utilizado em seu discurso, sempre privilegiando o

diálogo com o todo de sua obra.

Iniciamos nosso trabalho com breve comentário sobre a obra de Paulo Freire Educação

e atualidade brasileira (1959), em que, mais do que trabalhar uma obra como processo de

elaboração intelectual, cuja preocupação reside na construção de relações morfossintático-

semânticas entre ideias, necessário se faz, para compreender o contexto, que se busquem os

propósitos do autor com base em sua vivência, pretexto motivador de seu discurso.

O fato de Freire mergulhar na análise do ser humano, no período histórico do nacional-

desenvolvimentismo, explica bem sua preocupação em extrair da realidade opressora o

leitmotiv de sua prática pedagógica para analisar e compreender a complexidade do mundo,

buscando, com isso, meios eficazes de intervenção na realidade. Por isso, segundo Romão, “A

compreensão é a dissecação da obra em partes, para a análise interna, ou seja, para verificação

das relações das partes entre si e de cada uma com o todo.” (FREIRE, 2001, p. XV). No

entanto, é preciso explicar-lhe a intenção num contexto externo, sem o qual a obra não teria

propósito, pois seria mero relato ficcional. Há que se buscar relações situacionais que a

fundamentem. E é nessa busca que se percebe a grandiosidade da contribuição de Freire para

os educadores nacionais e estrangeiros em sua luta pela libertação.

Sempre preocupado com as mazelas sociais decorrentes da tentativa policialesca de

coibir a produção cultural da massa trabalhadora, o pensador da educação acreditava na

possibilidade de mudança do estado de coisificação do homem “ditado” por determinadas

ações do poder instituído, que só fazia ludibriar os “descamisados do mundo” com a promessa

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de participação. Promessa que configurava uma implicação em um governo de matiz

assistencialista-populista (e não a participação com e em), em que as elites se distanciavam das

camadas populares, consideradas ignorantes e politicamente ingênuas, por encontrar nelas

apenas saberes de experiência feitos que não serviam aos propósitos de manutenção do status

quo, transformadores da realidade.

À época, no entanto, o discurso transformador da intelectualidade, ditado pela

influência questionadora dos jovens saídos das universidades, deitava luzes sobre a situação de

opressão que sempre esteve presente à mesa de negociações “escusas” de um poder

discriminador. Passa-se a contestar o conservadorismo e a buscar novos caminhos. Essa tensão

dialética se instaura no seio mesmo das instituições de ensino. De um lado, o poder de decisão

de uma elite cultural a sustentar um tipo de “oligarquia” do saber, pois,

No tocante à transmissão da cultura estabelecida, a Universidade do Recife dos anos

50 [do século passado] dirigia-se tão-somente às elites consolidadas ou em formação.

Seu público era constituído apenas de acadêmicos. Nada lembro de expressivo –

além dos ambulatórios médicos e dentários e, talvez, da assistência jurídica – que

representasse uma saída de seus muros, uma linguagem para o povo, para pessoas

não incluídas no restrito círculo dos acadêmicos (ROSAS in FREIRE, 2001, p. LVI).

Nada era posto sem o consentimento dos intelectuais em voga. Seus discípulos deviam

obediência a eles, aos ditames preestabelecidos que mantinham o controle dos saberes

científicos. A criação e o pensamento eram direcionados, o que pressupunha trabalho de títeres

a reproduzir um espetáculo de animação de uma plateia ensandecida. De outro lado, não se

dava voz ao povo. Quando chamado a participar, sua inserção no discurso e no fazer da

academia era desprezada. No dizer de Paulo Rosas (id., ib., p. LVII),

[...] se o povo não era pensado sequer como possível ouvinte, receptor passivo das

mensagens emitidas pela universidade, menos ainda caberia ouvir e levar a sério as

propostas do povo, de considerar como valiosa sua “experiência” ou, nas palavras de

Freire, sua “leitura de mundo”, mesmo quando as pessoas não incluídas no círculo

dos acadêmicos fossem objeto de seus estudos. Ainda que, sinceramente, fosse esse

povo pensado como beneficiário ou usuário dos resultados da pesquisa científica, ou

até das reformas sociais ou educacionais, planejadas tecnicamente em gabinete ou

laboratório.

À época, Freire observava a distância entre o que se propunha como modelo de

pesquisa, ensino e extensão e o que, de fato, se praticava no ambiente acadêmico. Na

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realidade, melhorar a vida dos menos favorecidos era, sim, o objetivo, desde que não se

alterasse a hierarquia política reinante. Contra esse estado de coisas insurge-se o pensador da

educação, participando ativamente de projetos sociopolítico-educacionais em sua Recife. Ali,

pode viver experiências únicas que dariam início ao processo de ruptura com o modelo

político-educacional conservador.

Em Educação e atualidade brasileira (2001), observa-se a defesa de que o homem é

inconcluso, inacabado e incompleto, pois, para Freire, segundo Romão (in FREIRE, 2001, p.

XXXIX), o ser humano, por natureza, é um ser transitivo, que só se completa na relação com o

outro, o que contraria a visão dos isebianos: “[...] ao contrário dos isebianos, Paulo não admite

o ser humano como ‘intransitivo’ absoluto, porque ele é um ser ontologicamente aberto,

relacional. Sua intransitividade, mesmo na mais abjeta submissão, é relativa.”

Por isso, há que se pensar na revisão do modelo educacional vigente para que se insira

a escola, como ambiente de discussão e de descoberta, no contexto histórico-cultural. Para

tanto, a educação precisa passar pelo processo descentralizador, comungando o saber fazer

com o contexto que necessita de mudança, o que lhe conferiria autenticidade:

Todo planejamento educacional, para qualquer sociedade, tem que responder às

marcas e aos valores dessa sociedade. Só assim é que pode funcionar o processo

educativo, ora como força estabilizadora, ora como fator de mudança. Às vezes,

preservando determinadas formas de cultura. Outras, interferindo no processo

histórico, instrumentalmente. De qualquer modo, para ser autêntico, é necessário ao

processo educativo que se ponha em relação de organicidade com a contextura da

sociedade a que se aplica (FREIRE, 2001, p. 10 – grifo nosso).

A educação deve ter, por fim, a formação crítica do homem, que lhe permita agir no e

com o mundo como sujeito de sua história. A escola deve atender às demandas da comunidade

num processo de interação, em que se conjuguem ações solidárias de participação

democrática, de comprometimento com a construção de uma sociedade mais justa. Nesse

processo, “É que a vinculação com a realidade circunstancial, que daria a nosso processo

educativo aquele sentido já referido [...] de organicidade, repousa, antes de tudo, numa

atitude: a democrática, permeável, crítica, plástica.” (id., ib., p. 12 – grifo nosso).

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Freire se utiliza do termo organicidade, formado de orgânico, que se refere ao

desenvolvimento natural dos seres, mais o sufixo (i)dade para indicar a circunstância, a

relação que deve ter o processo educacional com o contexto social. E é esse conceito que

perpassará o todo da obra em análise. O autor defende a necessidade de pensar a realidade

educacional em sua totalidade, que se tomem medidas de eficácia plena para que se faça a

transformação necessária da sociedade. Traz como alerta a falta de operosidade da educação

para o amplo contexto da sociedade, destacando seu distanciamento do processo de

transformação social. E aí faz uso de inorganicidade, termo derivado de orgânico, ao qual

acrescenta o sufixo (i)dade e o prefixo in-, que lhe nega o sentido original, para reforçar o

caráter de individualidade semântica do processo educacional (movimento ou tendência de sua

intransitividade hoje), que o distancia da realidade social:

O grande problema de nossa educação atual, o seu mais enfático problema, é o de sua

inadequacidade com o clima cultural que vem se alongando e tende a se alongar a

todo o país. É uma educação em grande parte, ou quase toda, fora do tempo e

superposta ao espaço ou aos espaços culturais do país. Daí a sua inorganicidade. A

sua ineficiência, contra que vem se levantando “criticamente” conscientes os Anísio

Teixeira, os Fernando de Azevedo, os Lourenço Filho, os Almeida Júnior, os Faria

Gois, os Artur Rios, os Roberto Moreira, para só citar estes (FREIRE, 2001, p. 79 –

grifo nosso).

Para Freire, o grande problema da educação é político-cultural, ranço de nossas raízes

colonialistas reforçado por programas assistencialistas que não promovem o desenvolvimento

do homem. Esse modelo ainda é pensado como algo acabado, dissociado da realidade a que se

destina como agente da transformação. E aí estão os professores que só fazem reproduzir o

que lhes é determinado, postura antidialógica e antidialética:

Este centralismo, que envolve todo o nosso agir educativo, é antes uma posição

política. É uma atitude enraizada em nossas matrizes culturais. É a ele que se deve,

em grande parte, a inorganicidade de nossa educação. E isto porque é do centro que

se ditam as normas, distanciadas assim das realidades locais e regionais a que devem

se aplicar. Daí a necessidade, enfatizada por Anísio Teixeira, de uma reforma antes

de tudo política, de que nascesse a organicidade de nossa educação (id., ib., p. 84 –

grifos nossos).

Em nossa incursão por Educação e atualidade brasileira (2001), encontramos a síntese

da trajetória de busca freiriana: a dialogação, categoria que perpassa toda a sua obra. Freire

demonstra sua preocupação com a realidade escolar, insistindo na urgência de dotar a escola

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de organicidade, em que se privilegie o diálogo entre os atores. Observe-se que, para uma

situação dialogal, há de haver relação de camaradagem solidária em que

Cada vez mais se amplia a “dialogação” entre esta unidade pedagógica e as famílias

de seus alunos, que, dia a dia, se sentem integradas na vida total da escola de seus

filhos. As informações, que dirigente e professoras desta unidade pedagógica nos dão

hoje, são de que seus padrões de disciplina, de aprendizagem, de vitalidade, de

ordem crescem sempre, à medida que a “dialogação” aumenta (id., ib., p. 23).

Diz nosso autor que é preciso que a escola dialogue com as experiências de vida, com

os diferentes saberes, respeitando-os, dando-lhes voz, sem clientelismos, pois só assim ela será

meio eficaz para o processo de mudança social. Nessa toada, não há espaço para praticar a

dominação pelo reconhecimento da ignorância do outro, pois educadores e educandos se

assumem como protagonistas do labor educativo, dialetizando, pelo diálogo, as posições de

educadores-educandos e educandos-educadores, numa dialogação em busca do saber mais e

no resgate da perspectiva ontológica do ser mais. E aqui destacamos uma das principais

categorias de Freire: a dialogação — formada de dialogar + ção (sufixo que nomina a ação

denotada pelo verbo) e que, contextualizada, fundamenta toda a prática freiriana.

Embora a gramática descritiva determine esse processo de formação como derivação

sufixal, nossa leitura e análise da obra freiriana permite-nos afirmar que o pensador da

educação, mais do que se valer de um padrão estrutural da linguagem, de terminologias, tenha

encontrado a forma mais eficaz para dar conta de precisar e dimensionar o conceito de

educação numa perspectiva de libertação, que se caracteriza pelo agir, pela práxis. Para tanto,

utiliza-se não do encontro de sufixo mais radical na criação de dialogação, e sim da

aglutinação de imagens (dialogar + ação)42 para dar a força semântica necessária ao seu

discurso. E, nesse processo, convém lembrar a “existenciação” em Pedagogia do oprimido,

que denota o prazer de fazer amorosamente, de solidarizar-se com o outro (o não-eu) em seus

dramas existenciais, de existenciar com, mas nunca por ele. É o que Freire (1988, p. 36)

sempre procurou fazer como educador e pensador da educação: “Só na plenitude deste ato de

amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que os

42 Em que a ação se sobrepõe ao próprio diálogo, que exprime apenas o que se supõe como tal, isto é, pela

própria constituição vocabular configura abstratamente uma situação presumida – a de dialogar –, sem

representar efetivamente o processo.

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homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta

afirmação se objetive, é uma farsa.”

Nessa esteira, tem-se a libertação como processo permanente, a de alguém em

processo, que vai avançando para compreender o mundo e a própria existência. E Freire, no

existenciar pelo amor, pelo respeito ao outro, reforça o conceito de que, mais do que viver, é

preciso agir no, com e pelo mundo, experienciando-o, o que só se concretiza pela

existenciação, palavra criada por ele como resultado da aglutinação de existência e ação,

numa indicação de que a plenitude do primeiro só encontra eco semântico se o segundo estiver

sobreposto a ele. E nessa prática tem-se o caminhar para a transformação da realidade.

Nessa perspectiva, para Freire, é preciso educação que se contraponha a esse

proselitismo elitista que só produz mais diferença, uma educação fortalecida pela produção

amorosa, tolerante, que “regue” o jardim da humildade de um educador comprometido com a

produção do conhecimento pelo verdadeiro construtor do conhecimento: o educando com seu

saber diferente, e não rotulado como um vazio que deve ser preenchido. Esse educador não

pode furtar-se a questionamentos nem temer situações que possam fragilizá-lo:

O meu respeito de professor à pessoa do educando, à sua curiosidade, à sua timidez,

que não devo agravar com procedimentos inibidores exige de mim o cultivo da

humildade e da tolerância. Como posso respeitar a curiosidade do educando se,

carente de humildade e da real compreensão do papel da ignorância na busca do

saber, temo revelar o meu desconhecimento? (FREIRE, 2002, p. 74-75).

Nota-se a preocupação do pensador da educação, em toda a obra em questão, com o

assistencialismo – em todos os níveis – que entrava a possibilidade de ser mais. E esse

assistencialismo, para ele, é prática hegemônica da dominação, uma espécie de fisiologismo

sob a bandeira da promoção social com características alienantes que distanciam o homem de

seu verdadeiro fazer, pois lhe rouba a possibilidade de vir-a-ser no mundo. Para evitá-lo, nas

palavras de Freire (2001, p. 16 – grifos nossos),

Teríamos, então, de nos servir de toda a força democratizadora do diálogo, com que

evitássemos e superássemos o perigo do alongamento da assistência prestada ao

operário pela instituição, em assistencialismo. Assistencialismo, que deforma o

homem. Que “domestica” o homem.

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Essa prática assistencial inibe as mudanças sociais, pois denota um dos sistemas mais

perversos de dominação e domesticação do homem: o assistencialismo (derivado do adjetivo

assistencial, a que se acrescenta o sufixo -ismo, que nomeia uma espécie de doutrina, sistema

ou maneira de pensar) exercido pelas forças oligárquicas. Aqui se põe como pretexto do

pensador da educação para enfatizar sua opção pelo combate às práticas de ludíbrio das

massas.

Esse processo, enfatiza ele, desestabiliza ainda mais a democracia que se pretende, pois

prescreve procedimentos que devem ser observados como os únicos capazes de resolver todos

os “dramas” vivenciados pelo homem e que o põem em seu labirinto existencial. Tal “força”

persuasiva de incautos, talvez pela ingenuidade democrática, é patrocinadora de um grande

espetáculo de títeres reprodutivos, moldados pelo sistema:

Cada vez mais compreendemos menos a hipertrofia dessas instituições assistenciais,

perigosamente alongadas em assistencialistas, levando-as a resolver os problemas de

seus clientes, de seus “assistidos”, digamos melhor, quando resolvem, sem sua

colaboração. Sem consultá-los. A escolher até suas distrações. A organizar suas

festas. A criar seus clubes e associações. A interferir constantemente na sua vida. A

alterar os estatutos de seus clubes, tudo isto de cima para baixo.

Antidemocraticamente (FREIRE, 2001, p. 19 – grifo nosso).

Tem-se nesse tipo de formação neológica – assistencialistas43 – a maestria de um

engenheiro das palavras, que sabe aglutinar elementos de harmonia significativa para dotar seu

discurso da precisão necessária que nos leve a refletir sobre o perigo da “ocupação” de mentes

desenfreada que produz acéfalos intelectuais condenados ao mutismo.

E a escola, como parte dessa verticalização, distanciada da realidade, corrobora,

sobremaneira, para a manutenção desse estado de coisas, mágico, envolvente, mas

antidemocrático, pois ela é, em todos os níveis, eivada de práticas-fruto de inexperiências

democráticas, decorrentes de uma cultura colonialista. Daí o aspecto inorgânico da educação

que não atende às demandas urgentes da sociedade em prol “[...] da democratização crescente

do país, com a promoção automática da consciência intransitiva para a transitivo-ingênua.”

(op. cit., p. 47-48). A escola e, portanto, a educação são desumanizantes, pois evidenciam um

43 Palavra formada por sufixação: acrescenta-se ao adjetivo assistencial o sufixo -ista, que nomina o seguidor ou

partidário do assistencialismo.

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processo pré-programado para produzir autômatos do conhecimento, numa linha de produção

formatada para dar conta das necessidades e interesses institucionais. Nessa prática, não há

democracia, não há avanços, não há transformação, não há desenvolvimento. Só encontramos

a dinâmica verborrágica, proselitista, cujo único resultado é reforçar a relação de opressão,

evidenciando o descompromisso com o homem. E aí se inicia o assistencialismo, que,

veladamente, institui como prática o “ajudar humanitariamente” o outro, o necessitado

ignorante, a deixar seu estado de “letargia intelectual”.

Freire experimentou o sabor amargo desse processo, vivenciando-o em suas práticas,

mas que o instigou, pelo inconformismo, a lutar contra essa pseudoevolução democratizante,

convocando a todos para o diálogo, para uma ação participativa pela arregimentação de

insatisfeitos com o processo de alienação a que estava submetida a maioria da população. Para

ele, não se pode produzir conhecimento coisificando o homem com gestos de benevolência

paternalista, como se fosse uma doação de privilegiados por dons divinos. É imperioso que se

trabalhe pelo e com o homem, em relação solidária, levando-o a compreender seu papel no

mundo como ser histórico-cultural, portanto, crítico de seu tempo. Por isso, a necessidade de

uma “educação pela participação, que desenvolva no homem brasileiro a sua criticidade.”

(FREIRE, 2001, p. 51), o que, de acordo com o educador pernambucano, não se faz, pois a

prática assistencializadora está impregnada em todos os ambientes: “[...] o que continuamos,

em regra, a fazer, é ‘assistencializar’ o homem nacional. ‘Assistencialização’ pela escola.

Pela família. Pelas instituições assistenciais. Pelas empresas. ‘Assistencialização’ particular e

pública” (id., ib., p. 51-52 – grifos nossos).

Interessante, para compreender o todo da obra de Freire, é observar a sequência das

construções neológicas em sua tese: inicia com a preocupação em analisar não só o processo

educacional, questionando a prática conservadora, mas também toda a realidade brasileira, que

o incomoda, deixa-o insatisfeito. E esse inconformismo leva-o a formatar o eixo central de sua

prática pedagógica.

Analisemos este trecho:

Centralismo, verbalismo, antidialogação, autoritarismo, “assistencialização” são

manifestações de nossa “inexperiência democrática”, conformada em atitudes ou

disposições mentais, constituindo, tudo isso, um dos dados da nossa atualidade. Dos

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mais fortes. Dos mais presentes. Dos mais perturbadores do ritmo de nossa

democratização, outro dado de nossa atualidade, situado mais no hoje desta

atualidade (FREIRE, 2001, p. 13).

Freire faz um jogo entre -ismos em “Centralismo, verbalismo”, para enfatizar uma

espécie de doutrina a ser seguida, ou que determina um padrão de conduta num determinado

processo, entremeando-o com “antidialogação”, de sua verve, formada de diálogo/dialogar, a

que se acrescentou o prefixo anti- para indicar contraposição ao ato de dialogar, e o sufixo -

ção, que nomina tal ato.

No entanto, cabe, aqui, uma ressalva importante: Se o pensador pernambucano

fundamenta sua obra no movimento, tendo como mote o aspecto dialogal que deve nortear

toda a prática humana em prol da construção de uma sociedade mais justa, em que se

respeitem e se reconheçam as diferenças e os diferentes saberes, mais do que nomear um ato

utilizando um simples processo de formação de palavras (a sufixação), quis ele aglutinar

elementos dotados de sentido. Nessa intenção está a força do termo -ação que se junta a

diálogo para indicar a necessidade do agir dialógica e dialeticamente.

Toda essa relação sequencial, dotada de sentido especial, é, para nós, uma articulação

pensada, pois constitui um processo contínuo de dominação agravado pela conotação

semântica de “autoritarismo”, camuflado pela assistencialização, neologismo formado de

assistencial pelo acréscimo do sufixo -izar, de sentido factitivo44, reforçado pelo sufixo -ção

(comentado no parágrafo anterior), que indica o resultado do verbo que representa.

Com base nessas observações, tem-se a estruturação de um poder funesto de

desagregação socioeconômico-político-cultural do Estado brasileiro. A centralização

verborreico-política aliena, muitas vezes pelo encantamento salvacionista, o homem, levando-

o à aceitação do estado de subalternidade, o que, para Freire, é atitude antidialógica e, como

tal, antidialética, que se reforça pelo autoritarismo seguido de programas assistencialistas.

Defendemos que, em Educação e realidade brasileira (2001), está demarcado todo o

roteiro da fundamentação teórico-prática da política educacional do pensador da educação,

44 Denota factitividade, interpretação semântica que dá ideia de que a ação do termo que a contém causa uma

outra ação.

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como combatente das políticas educacionais injustas, das práticas opressoras, o que se justifica

pela análise que faz da realidade observada e vivenciada por ele em todos os níveis, como

gestor e educador, à época da gestação e escritura de sua tese. Ressalte-se que, em seu trabalho

crítico, utiliza, algumas dezenas de vezes, o neologismo assistencialização e seus pares

assistencializar, assistencialista, assistencialismo, assitencializador, para denunciar as

relações de opressão, demonstrando que sua preocupação maior está em lutar pelo resgate da

dignidade dos descamisados do mundo, situação por ele experimentada ainda em tenra idade,

na sua Jaboatão.

Nas palavras de Coelho (2005, p. 67 – grifos nossos), Freire, “[...] no pré-exílio, a

partir da experiência pessoal, ainda na infância, vivenciou a fome, mas [...] não se sucumbiu

ao fatalismo, nem cultivou a mágoa provocada pelo sofrimento, [e sim a transformou] em

matéria-prima de sua leitura crítica de mundo”, o que o converteu em homem determinado a

lutar pela erradicação da miséria existencial do ser humano, com o firme propósito de fazer

dele, o oprimido, protagonista histórico.

O pensador da educação insurge-se contra a dominação assistencialista que sutilmente

exerciam os opressores, com seus atos de bondade a substituir a coerção, determinados que

estavam a manter privilégios e poder pelo ludíbrio dos oprimidos. Essa atitude combativa se

consolidará em sua Pedagogia do oprimido, da qual retiramos este trecho ilustrativo: “[...] o

mito de sua caridade, de sua generosidade, quando o fazem, enquanto classe, é

assistencialismo, que se desdobra no mito da falsa ajuda que, no plano das nações, mereceu

segura advertência de João XXIII.” (FREIRE, 1988, p. 137).

E aí temos a pseudodemocratização com toda sorte de contradições perigosas, que

põe, de um lado, o oprimido que, quando consciente de sua opressão, busca superar os

entraves de seu vir a ser no mundo, ou inconsciente, está a serviço do opressor, até porque

aquinhoado por alguns benefícios, e, de outro, o mantenedor da situação, que se vale das

carências populares, numa enviesada demonstração de solidariedade e respeito ao outro como

pessoa, para garantir o status quo.

Na educação, o trabalho deveria ser solidário, sem a relação de opressão ditada pelo

despejar de informações dos que pretensamente sabem sobre aqueles que devem saber. Para

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Freire, esse processo representa a falta de disposição para promover o resgate de valores pelo

ser oprimido, o que contradiz o verdadeiro papel do homem: o de sujeito da transformação.

Essa prática apenas reforça a passividade e tira do indivíduo a possibilidade de participar do

processo de mudança. O que falta é a efetiva participação dos alunos em discussões que

produzam efeitos sociais. Há que se chamar a escola a participar do processo de construção

nacional. Para isso, é necessário que se altere o formato academicista, livresco, conteudista,

verborrágico. Devemos buscar uma escola que participe do dia a dia da comunidade e a chame

a participar, que seja meio, e não fim, da produção do conhecimento; que acompanhe as

mudanças nacionais, o desenvolvimento cultural e se preocupe com a formação profissional

dos jovens para atender às demandas de uma sociedade em crescente desenvolvimento.

Enfim, precisamos de um espaço de efetiva interação dialógica, de formação crítica,

solidária, sem os ranços ditatoriais e policialescos de poucos intelectualoides a ditar os

caminhos que devem ser seguidos. Um espaço de reconhecimento dos diferentes saberes, de

debate dos problemas educacionais em todos os níveis, de formação de profissionais

engajados no processo de construção nacional, que se proponham a repensar o papel da escola

para que se afaste, definitivamente, do processo assistencializador tão criticado por Freire

(2001, p. 103 – grifo nosso):

Observe-se, mais uma vez, a conexão entre o procedimento “assistencializador” de

nossas escolas normais, fugindo ao máximo do preparo profissional de seu aluno e

deleitando-se com o verbalismo e o academicismo e a mentalidade inflexivelmente

antidemocrática.

Em Extensão ou comunicação? (1975), Freire trata das contradições do discurso

acadêmico em relação à prática, o saber de experiência feito. Inicia sua análise pelo termo

extensionista, derivado de extensão, substantivo que remete à ideia de dimensionamento de

um conceito-chave nas relações que se estabelecem entre um sujeito e o objeto, e ao qual

Freire acrescenta o sufixo -ista, que, originalmente, indica partidário de um sistema, para

indicar aquele procura estender sua atividade a outrem, exigindo que seja tributário de sua

contribuição. Por isso, para ele, não há como associar os conceitos extensão e extensionista –

ligados ao trabalho técnico como necessário ao agricultor para convencê-lo de que precisa

mudar – ao quefazer educativo, que é dinâmico, relacional e se constrói na prática para a

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libertação, para o reconhecimento do ser humano como agente de sua história, da

transformação.

Essa persuasão resvala na experiência dos que conhecem a realidade do campo, pois

“Persuadir implica, no fundo, num sujeito que persuade, desta ou daquela forma, e num objeto

sôbre o qual incide a ação de persuadir. Neste caso, o sujeito é o extensionista; o objeto, os

camponeses. Objetos de uma persuasão que os fará ainda mais objetos da propaganda”

(FREIRE, 1975, p. 24).

Relegar a segundo plano o que está posto na realidade vivenciada é o mesmo que

negar o próprio conhecimento que, em ato, só se consigna entre sujeitos em dialogação,

respeitando-se, desde que desafiados. E aí se instaura o processo de contra-aprendizagem,

pois não se dá ao outro instrumentos para análise crítica de sua prática que lhe permita

incorporar e avançar no sentido da transformação. O simples estender conteúdos é invasão de

domínio que pode provocar descrença e reação ao novo. O que decorre da extensão é

segregação da realidade, alienação. É necessário que o homem, em relação, aja sobre o

mundo, reflita sobre ele, sobre sua prática, pois a simples percepção das coisas e sua

incorporação não traduzem o ato de conhecer autenticamente.

O homem só chega a esse conhecimento se capaz de interagir criticamente com seu

espaço, com o que o compõe, mergulhando na realidade plena das coisas, relacionando-as

com sua prática:

Tal é o dilema do agrônomo extensionista, em face do qual precisa manter-se lúcido

e crítico. Se transforma os seus conhecimentos especializados, suas técnicas, em algo

estático, materializado e os estende mecanicamente aos camponeses, invadindo

indiscutìvelmente sua cultura, sua visão de mundo, concordará com o conceito de

extensão e estará negando o homem como um ser da decisão. Se, ao contrário,

afirma-o através de um trabalho dialógico, não invade, não manipula, não conquista;

nega, então, a compreensão do têrmo extensão (id., ib., p. 44 – grifo nosso).

Freire, ao comentar o objetivo do extensionista, alerta para o perigo de “abandonar” a

mediatização inerente ao homem em comunhão com o mundo – realidade por ele vivenciada.

Daí ser mister que o agrônomo instigue a problematização sobre as situações concretas para

que, criticamente, os atores assumam o papel de sujeitos. “Este, sim, é o trabalho autêntico do

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agrônomo como educador, do agrônomo como um especialista, que atua com outros homens

sôbre a realidade que os mediatiza.” (FREIRE, 1975, p. 24 – grifo nosso).

Freire se vale dos recursos que a língua lhe faculta para formar mediatizar, de mediar,

verbo a que acrescenta o sufixo -izar, para reforçar a ideia de que o sujeito da ação provoca o

processo que, por suas características, indica movimento, o que o verbo “mediar” não

promoveria, pois apenas indica a ação de ponderar sobre algo que se discute. Da mesma

forma, tem-se o particípio com o acréscimo de -ado, que, no contexto, sugere a ação que se

mantém como decorrência do movimento denotado pelo verbo mediatizar. Entende-se

mediação como captura da ideia de superação do conhecimento imediato pelo conhecimento

mediato, como ponte para manter a conversação. Nesse processo, para Freire (ib., p. 43 –

grifo nosso), “O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o

‘pronunciam’, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a humanização

de todos.”

O mundo é o contexto, o real, o objetivo, o concreto, ou seja, o que existe. É toda a

realidade que deve ser superada ou atualizada. Portanto, mediatizar é a ação que promove a

passagem do imediato (o aparente, o que se dá empiricamente) para o mediato (o que passou

pelo processo crítico, cognitivo), a realidade transformada pelo fazer humano. Freire nos

ensina que há ciência nesse processo, e não apenas senso comum, o que chamamos de saber

de experiência feito, que para a Academia deve ser desprezado. Se estamos num processo de

elaboração, em que o próprio conhecimento faz a mediação para a criação de outro

conhecimento, isto é científico e se dá pela tensão dialética, pela superação. Esse pensar se faz

dialogicamente e, por ser dialógico, é dialético. Nesse processo, não há espaço para os

tecnicistas que se valem de ações mecanicistas para anunciar a modernização reformista

necessária, desconsiderando o que está posto como conhecimento. Freire condena o

adestramento ingênuo que solapa a possibilidade de superação, de o homem avançar como

sujeito transformador da realidade:

Daí que se imponha a todos os que atuam no processo da reforma agrária, que levem

em conta os aspectos fundamentais que caracterizavam a existência camponesa na

realidade do latifúndio.

Sòmente a ingenuidade tecnicista ou mecanicista pode crer que, decretada a

reforma agrária e posta em prática, tudo o que antes foi já não será; que ela é um

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marco divisório e rígido entre a velha e a nova mentalidade (FREIRE, 1975, p. 61 –

grifos nossos).

Nosso autor deixa claro, ao optar por tecnicista e mecanicista, formados de técnico e

mecânico pelo acréscimo de -ista, seu propósito de “atacar” a reforma que se impõe de cima

para baixo, como uma espécie de sistema que deve ser apenas digerido ou seguido sem

questionamentos, o que impede qualquer tipo de reforma que de fato se queira fazer. Por isso,

nas palavras do pensador, “É urgente que nos defendamos da concepção mecanicista. Em sua

ingenuidade e estreiteza de visão, tende a desprezar a contribuição fundamental de outros

setores do saber. Tende a se tornar rígida e burocrática.” (id., ib., p. 58 – grifo nosso).

Esse processo tecnicista e mecanicista é que, segundo Freire, obstaculiza a

possibilidade de humanizar o homem, de instigá-lo a pronunciar o mundo, pois o que se tem é

apenas uma espécie de invasão cultural antidialógica que impõe a aculturação enviesada, ou

seja, a absorção da cultura da dominância sem a problematização da realidade, das situações

concretas, imprescindível à prática dialógica, dialética, pois “[...] a problematização45 é a

reflexão que alguém exerce sobre um conteúdo, fruto de um ato, ou sôbre o próprio ato, para

agir melhor, com os demais, na realidade” (id., ib., p. 82-83 – grifo nosso).

Essa relação prescritiva tira do homem o direito de questionar sua prática, de pôr em

discussão as causas e consequências de seu quefazer, que paciente dessa prescrição apenas

serve de recipiente em que se depositam informações procedimentais para substituir os

saberes de experiência feitos (conhecimentos empíricos). É condená-lo à ignorância de seu

próprio saber, fazê-lo negar-se como sujeito da transformação, acorrentando-o a um processo

injustificável de assistencialismo “barato”. Temos a perpetuação do colonialismo intelectual,

pois

Rejeitar, em qualquer nível, a problematização dialógica é insistir num

injustificável pessimismo em relação aos homens e à vida. É cair na prática

depositante de um falso saber que, anestesiando o espírito crítico, serve à

“domesticação” dos homens e instrumentaliza a invasão cultural (FREIRE, 1975, p.

55 – grifo nosso).

45 Formada de problematizar, verbo causativo, a que se acrescenta o sufixo -ção, para indicar a ação denotada

pelo verbo. Reiteramos, pelos estudos sobre a intencionalidade de Freire posta em suas criações neológicas, que,

aqui, ele tenha aglutinado ao verbo o substantivo ação para produzir o efeito de sentido desejado, uma vez que o

aspecto problematizante, processual, perpassa toda a sua obra.

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Talvez o enfrentamento gerado pela necessidade de acelerar o processo produtivo e a

morosidade com que as mudanças se efetivam, em decorrência da desconfiança provocada

pela nova cultura, justifiquem, como querem alguns, a tentativa de abandono do diálogo com o

outro. Daí a preferência pela antidialogicidade para conseguir os efeitos que pretendem:

“Dêste modo – afirmam enfàticamente – não se justifica esta perda de tempo. Entre a

dialogicidade e a antidialogicidade, fiquemos com esta última, já que é mais rápida” (id., ib.,

p. 45 – grifos nossos).

Aqui, como em boa parte da obra em discussão, Freire usa dialogicidade, formado de

dialógico46 + -(i)dade, para indicar a situação em que devem estar imersos os atores na

construção do conhecimento, e antidialogicidade, antepondo à situação primeira o prefixo

anti- para reforçar a predisposição daqueles que resistem ao fazer solidário, que combatem o

diálogo como forma de convencer o outro a aceitar a incorporação das “verdades” que trazem

de sua aprendizagem.

Para Freire, ou há equívoco ideológico, ou ações propositadas, pois, ao negarem o

protagonismo dos “oprimidos” em sua realidade, ao tirarem deles o poder de decidir, de

refletir sobre sua prática, querem exercer simplesmente a dominação, impondo a eles sua

assistência como única forma de “ajudá-los” em sua caminhada, o que é alienação perversa. É

um jeito de castrar a consciência humana pela força motriz do modelo imposto:

[...] No momento em que os “trabalhadores sociais” definam o seu quefazer como

assistencialista47 e, não obstante, digam que êste é um quefazer educativo, estará

(sic) cometendo na verdade um equívoco de conseqüências funestas, a não ser que

tenham optado pela "domesticação” dos homens, no que estarão sendo coerentes e

não equivocados (id., ib., p. 44 – bold nosso; itálico do autor).

Na realidade, esse é um processo educacional nefasto, pois não se dá conta do estrago

socioeconômico-político e principalmente cultural que proporciona. Ao envolverem

magicamente, com seus discursos intelectualizados, os educandos, os “educadores sociais”

distanciam-se daquela que deveria ser sua verdadeira vocação: a de agir intersubjetivamente,

46 Do grego dialogikós (FERREIRA, 1986), que, ao lado de um substantivo, pode significar ‘predisposto ao

diálogo’. 47 Formação neológica comentada por nós na página 81.

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transformando e sendo transformados, solidariamente, pela realidade, num processo dialético.

Nas palavras de Freire (1975, p. 44 – grifo nosso),

[...] um pensador [professor] que reduz tôda a objetividade ao homem e à sua

consciência, inclusive a existência dos demais homens, não pode, enquanto pensar

assim, falar da dialeticidade: subjetividade-objetividade. Não pode admitir a

existência de um mundo concreto, objetivo, com o qual o homem se acha em relação

permanente.

Aqui, o pensador da educação se vale da derivação sufixal para criar dialeticidade, de

dialética + -(i)dade, para indicar a situação de tensão entre os opostos, necessária à construção

do conhecimento. Esse movimento ditado pelas contradições é que promove a transformação.

Essa dialeticidade é inerente ao ser que se assume como dialético, em processo. Se consciente

desse movimento, sendo parte da realidade e vivendo com ela, assume-se naturalmente como

ser em transformação. E é exatamente o princípio do movimento – no sentido da

transformação – resultante da tensão entre os opostos que constitui o motor da dialética. Esse

aspecto justifica a educação como algo dinâmico, processual: “A dialetização referida –

permanência-mudança – que torna o processo educativo ‘durável’ é a que explica a educação

como um quefazer que está sendo e não que é. Daí seu condicionamento histórico-

sociológico.” (id., ib., p. 84 – bold nosso; itálico do autor).

Aqui, Freire nos apresenta a dialetização48, derivada de dialetar, a que acrescenta o

sufixo -izar, para indicar ação geradora de um processo, e, em seguida, -ção, que reforça o

movimento.

Nessa perspectiva, há um elo entre dialogicidade, dialeticidade e movimento em

tensão permanente, o que nos dá o exato sentido da dialogação como um processo entre dois

seres diferentes que, ao se reconhecerem em suas diferenças, buscam o ser mais, o sentido

para sua existência, por meio do diálogo do eu com o não-eu, isto é, do ser com o outro e o

mundo, num processo ad infinitum. Daí a importância de cognoscente, derivado de gnose, a

que se acrescenta o sufixo -nte (que indica agente, ou aquele que se predispõe a).

48 Como existe uma linha tênue que separa a composição da derivação, é possível que Freire tenha pensado em

aglutinar dialetizar e ação.

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Na obra em tela, é sujeito cognoscente aquele que pondera sobre o objeto cognoscível,

desde que se predisponha ao ato que o leva ao conhecer – ato cognoscente, portanto, que se

consigna não de forma solitária, e sim solidária entre o eu, o não-eu e o mundo – numa

interação reflexivo-dialógica, e por ser dialógica, dialética. Nesse agir estão os sujeitos

capazes de se apropriar desses saberes e de desvelar o mundo no e com o qual vivem e

experienciam. Para isso, é mister “que, na situação educativa, educador e educando assumam

o papel de sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível que buscam

conhecer.” (FREIRE, 1975, p. 28).

Essa relação horizontal é que determina a educação libertadora, em que educadores-

educandos e educandos-educadores problematizam situações, discutem-nas coletivamente e

vão promovendo a construção do conhecimento a partir de outro que está posto (conhecendo

juntos), pois, segundo Freire (1988, p. 69 – grifos nossos),

Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os

homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos

objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, são possuídos pelo educador que os

descreve ou os deposita nos educandos passivos.

Reforçamos essa prática transformacional-libertadora com estas palavras de Freire

(1975, p. 88 – grifo nosso):

Submetida aos camponeses sua própria temática para que exerçam sôbre ela um

diálogo com o educador (quer êste seja ou não agrônomo) no ato cognoscente, esta

mesma temática, tão logo seja apreendida em suas relações como “afins”,

necessàriamente “gerará” outros temas, com a transformação sofrida pela percepção

da realidade.

Nela, não há lugar para o bancarismo, em que o professor, “dono do conhecimento”,

vai depositando seu saber nos alunos, “vazios que devem ser preenchidos”, que deverão

reproduzi-lo sem questionamentos, passivamente.

Pela análise que aqui fizemos, asseveramos que, em Freire, todo o processo de

elaboração discursiva é tomado com o cuidado de um artífice das palavras. Com maestria, são

criadas e postas estrategicamente no contexto para dar não só precisão à mensagem, mas

também, e principalmente, para dar força expressiva e consistência semântica à análise da

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realidade, de mundo, deixando clara sua opção político-pedagógica pelo oprimido, ao fazer

seu discurso-alerta contra as práticas perversas (em todos os níveis) que tiram do homem a

possibilidade de vir a ser no mundo.

É necessário pensar uma educação problematizadora, pautada em relações dialógicas,

que não oponha educadores e educandos, e sim relativize as situações hierárquicas entre esses

atores para que possam, igualmente, agir como construtores do conhecimento. Essa relação

dialógica só se faz com humildade, esperança e “sim-patia” pelo outro, o não-eu, que habita os

espíritos solidários. No dizer de Freire (1988, p. 64 – grifos nossos), em sua Pedagogia do

oprimido,

Entre permanecer porque desaparece, numa espécie de morrer para viver, e

desaparecer pela e na imposição de sua presença, o educador “bancário” escolhe a

segunda hipótese. Não pode entender que permanecer é buscar ser, com os outros. É

con-viver, sim-patizar. Nunca sobrepor-se, nem sequer justapor-se aos educandos,

des-sim-patizar. Não há permanência na hipertrofia.

Nesse processo dialético, Freire faz desfilar con-viver (em que se utiliza da

hifenização do prefixo con- para conotar a convivência “no sentido pleno da existência”), que

traduz o compromisso com o não-eu e consigo mesmo em todos os momentos da prática

transformadora, assim caracterizando o sentido do educar para a liberdade. Nesse convívio,

destaca sim-patizar para enfatizar dois dos principais aspectos da prática libertadora: a

preocupação com os dramas existenciais do oprimido e a indignação decorrente da relação de

opressão a que ele (o oprimido) está sendo submetido. “[...] É sofrer junto, participar

colaborativamente, solidarizar-se, pôr-se na posição do outro; abraçar a causa alheia como se

fosse sua, aceitando, de maneira incondicional, o não-eu” (SIMÕES, 2006, p. 93).

Na educação tradicional, não há esse espírito do educar para libertar e libertar-se, pois

o “educador bancário”, metáfora freiriana que conota a “síndrome do deus do conhecimento”,

que despeja informações como se fosse única fonte do saber, só produz o des-sim-patizar.

Aqui, Freire se vale da hifenização do prefixo des- para mostrar o aspecto nocivo desse agir:

negar-se peremptoriamente à prática comunicativa, ou distanciar-se do “risco” de descer do

pedestal como senhor do conhecimento.

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Por isso, segundo ele, se se pretende pensar educação como ação para a liberdade, há

que se mudar a estrutura verticalizante do processo pela conscientização destes protagonistas

histórico-culturais: educadores e educandos. Os primeiros precisam aprender a desconstruir as

verdades bebidas e pensadas em seu tempo; os segundos devem aprender a ter voz, a

pronunciar a palavra, o mundo. Para tanto, ambos devem respeitar-se e reconhecer-se como

seres de ação (o que lhes é inerente), com disposição para transformar a realidade. É preciso

que se conscientizem de seu estar no mundo e com ele, e aí, sim, estarão prontos para operar

as mudanças. Segundo Freire (1975, p. 31 – bold nosso; aspasdo autor),

[...] a posição normal do homem no mundo, como um ser da ação e da reflexão, é a

de “ad-mirador” do mundo. Como um ser da atividade que é capaz de refletir sôbre

si e sôbre a própria atividade que dêle se desliga, o homem é capaz de “afastar-se” do

mundo para ficar nêle e com êle. Sòmente o homem é capaz de realizar esta

operação, de que resulta sua inserção crítica na realidade.' “Ad-mirar” a realidade

significa objetivá-la, apreendê-la como campo de sua ação a reflexão. Significa

penetrá-la, cada vez mais 1ucida-mente, para descobrir as inter-relações verdadeiras

dos fatos percebidos.

Para o autor, é imprescindível que o educador se distancie dos fatos, da situação por ele

mirada (objeto de sua análise) para que, pelo distanciamento, sua visão ganhe amplitude. Com

isso, passa a ser um ad-mirador dessa realidade, aquele que intenciona analisar junto, em

conjunto com o outro – nesta obra, os camponeses. E o prefixo ad-, hifenizado (também em

ad-mirar) nos sugere a conotação que ele quer dar às palavras para indicar a prática norteadora

das ações humanas na reconstrução da realidade das quais os atores participam: a de olhar

criticamente os fatos, descobrindo em que medida se encontram inter-relacionados com a

totalidade. Esse processo permite a (re)imersão do educador social, agora crítica, na realidade

para, com os camponeses, descodificá-la, o que se dá dialeticamente.

Aí se evidencia o rigor freiriano, não apenas o morfossintático, mas também o de

sentido da leitura adequada da realidade, de mundo, que, por ser processo, deve ser lido como

tal, acompanhado de perto. Portanto, a palavra criada resgata a vitalidade da linguagem

processual e traduz o espírito de mudança que deve permear toda a discussão da realidade

transformada e em permanente transformação. Por isso, a representação que ele faz do

processo de descodificação dos fatos no qual, pela comunicação, todos participam com suas

“verdades”, ensinado e aprendendo: “Esta é a razão pela qual o educador continua

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aprendendo, e, quanto mais humilde seja na ‘re-ad-miração’ que faça através da ‘ad-miração’

dos educandos, mais aprenderá” (FREIRE, 1975, p. 82 – bold nosso).

Freire, nesta citação, hifeniza o prefixo re- para reforçar a ideia de retomada da análise

crítica do objeto já analisado pelo outro do qual ele é observador atento. Isso sugere refletir

sobre a realidade já pensada pelo outro como um processo de ressignificação do interesse que

a própria prática lhe despertou pela relação horizontal – de igualdade – entre os seres agentes

histórico-culturais, aqui destacada por ad-mirar (criação neológica de Freire, caracterizada

pelo destaque do prefixo ad- – que significa junto, em um agir criticamente sobre o objeto

analisado). É estar ‘junto com’ o interlocutor, o não-eu, na reconstrução da caminhada como

seres dialógicos, dialéticos.

E aí estão o educador-educando e o educando-educador, em simbiose, analisando a

própria prática, mediatizada pelo objeto mirado, o que só se consigna pela relação dialógica e

como tal, dialética entre os sujeitos cognoscentes. “Nesta co-intencionalidade ao objeto, os

sujeitos cognoscentes vão penetrando nêle, em busca de sua “razão”. Assim como o objeto,

desvelando-se aos sujeitos, se lhes presentifica num sistema estrutural no qual se encontra em

relação direta ou indireta com outro” (id., ib., p. 85 – grifo nosso).

Freire acrescenta o prefixo co- à intencionalidade, que, em relação ao objeto mirado,

sugere conteúdo de consciência em correspondência com a ação consciente de análise, para

reforçar o sentido que ele quer emprestar ao contexto da expressão: os sujeitos que buscam

conhecer solidariamente vão imergindo na realidade num trabalho colaborativo-crítico,

desvelando-a. E é esse processo dialético que deve pautar as ações entre educadores e

educandos.

A docência se põe aqui como trabalho de co-participação – não de, mas em – crítica na

prática questionadora, desde que educador e educando sejam autênticos em sua prática co-

laborativa. É o que leciona Freire (1988, p. 64) em Pedagogia do oprimido: “[...] o pensar do

educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos,

mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação”. Este é o equilíbrio

tensional necessário à prática da construção do conhecimento.

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Esse processo nos remete a outro texto freiriano: Ação cultural para a liberdade e

outros escritos (1976), que procura elucidar ou complementar alguns “ingredientes”

instigadores da reflexão, postos por Freire em Educação como prática da liberdade (1987) e

Pedagogia do Oprimido (1988). Como cultura é produto e vetor do quefazer humano, o

pensador da educação parte da análise do referencial que deve despertar no homem a vontade

de conhecer e de mudar a realidade dos fatos: o texto.

O próprio Freire demonstra sua intenção questionadora: como desafiar, no sentido da

mudança, aqueles que bebem de “verdades” preestabelecidas e se põem a transmiti-las sem

“lógica aparente” que desperte no leitor o desejo de transformar a realidade? Primeiro, é

preciso problematizar, “rigorizar” a prática, desafiando(-se) pela própria situação

comunicativa que só será autêntica se fizer imergir no texto sujeitos, e não “fiéis depositários”

que se pretende “adestrar” como guardadores de saber de outrem para reproduzir ou devolver

quando lhes for determinado, o que nos parece ser ideologia da dominação, pois segundo

Freire (2002, p. 36), “Subestimar a capacidade criadora e recriadora dos camponeses,

desprezar seus conhecimentos, não importa o nível em que se achem, tentar ‘enchê-los’ com o

que aos técnicos, lhes parece certo, são expressões, em última análise, da ideologia

dominante.”

Segundo, é necessário que o texto sirva de pretexto para leitura de mundo, que

possibilite pensar e repensar a prática, criar e recriar situações desafiadoras de confronto entre

realidades que se reconheçam complementares porque inconclusas, incompletas e inacabadas,

ou seja, em processo não finalizável. Nesse desafio, está a relação dialógica e dialética do

leitor com o texto, que requer humildade para reconhecer a necessidade de buscar

instrumentos para decodificá-lo, pois,

Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude

crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, às vezes grandes, para

penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto,

na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de

resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor (id., ib., p. 12).

Daí a necessidade de o educador social funcionar como animador do processo de

aprendizagem, orientando a nova prática e despertando a curiosidade do leitor de elucidar o

que está posto no texto como questionamento para que avance em seu trabalho:

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Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se

para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um

livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe, pelo contrário, a insistência na

busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de

presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado (FREIRE,

2002, p. 13).

Para tanto, deve-se retomar, permanentemente, os escritos e “exigir” que os desafiados

por eles o façam re-criticando-os na relação dinâmica com a realidade em construção. Se os

questionamentos sobre dada realidade podem – e devem – ser apropriados em outros contextos

histórico-sociais, a partir do permanente desenvolvimento da situação-mundo, tais

questionamentos trazem como fundamento o conhecimento empírico.

Nessa esteira de entendimento, Freire condena a alfabetização como processo redentor

que permite aos “ignorantes” a descoberta do mundo dos intelectuais superiores e lhes tira a

possibilidade de conectar-se com o mundo e de reconhecer as relações dos objetos nomeados

com sua realidade:

O analfabeto é um “homem perdido”. É preciso, então, “salvá-lo” e sua “salvação”

está em que consinta em ir sendo "enchido” por estas palavras, meros sons

milagrosos, que lhe são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador que, às vezes, é

um agente inconsciente dos responsáveis pela política da campanha (id., ib., p. 16).

Essa prática, condenada por Freire, está presente nos manuais de alfabetização que não

respeitam a experiência de vida dos alfabetizandos, pois trazem apenas experiências do

alfabetizador ou daqueles que produziram esse material. Essas “cartilhas” só fazem criar seres

passivos, desinteressados, meros repetidores e reprodutores de realidades alienantes. Não lhes

inspira a criatividade nem lhes permite o mais importante: o poder de expressão. Segundo o

pensador pernambucano (id., ib.), esse processo mecanicista funciona como “[...] uma espécie

de ‘transfusão’ na qual a palavra do educador é o ‘sangue salvador’ do ‘analfabeto enfermo’.”

Nessa crítica ao processo de alfabetização distanciado da realidade, Freire põe em

xeque a prática mágico-assistencialista que produz a cultura do mutismo, insistindo na

necessidade de criar instrumentos eficazes de superação, pois, “Reforçando o ‘silêncio’ em

que se acham as massas populares dominadas pela prescrição de uma palavra veiculadora de

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uma ideologia da acomodação, não pode jamais um tal trabalho constituir-se como um

instrumento auxiliar da transformação da realidade” (FREIRE, 2002, p. 17).

A alfabetização deve desafiar os educandos, estabelecer com eles as relações com sua

realidade, levando-os a pronunciá-la para que percebam “[...] a significação profunda da

linguagem e da palavra” (id., ib., p. 18), o que, para Freire, “[...] na situação concreta em que

se encontram, lhes está sendo negada. No fundo, negar a palavra implica em algo mais.

Implica em negar o direito de ‘pronunciar o mundo’” (id., ib.).

Por isso, é mister que se desenvolva um trabalho crítico e criticizante, sem

“blablablás”, refletindo sobre a teoria e a prática. Freire nos dá exemplo desse procedimento

com o que sempre norteou seu trabalho como educador e pensador da educação: “A

fundamentação teórica da minha prática, por exemplo, se explica ao mesmo tempo nela, não

como algo acabado, mas como um movimento dinâmico em que ambas, prática e teoria, se

fazem e se re-fazem” (FREIRE, 197649, p. 17 – grifo nosso).

Note-se que Freire, ao hifenizar o prefixo re-, reforça a necessidade de retomar

consciente e criticamente o que está posto, desde que não dissociado da realidade

sociopolítico-econômica, portanto histórica, para avançar na caminhada. E é esse constante

superar(-se) que deve percorrer a prática educativa como instrumento para a libertação dos

homens. Essa busca exige o agir transformacional de uma realidade pelos próprios atores,

pois, “[...] como não há autêntica reflexão sem ação e vice-versa, ambas, em última análise,

indicotomizavelmente, constituem a real práxis dos homens sobre o mundo, sem a qual é

impossível a libertação” (FREIRE, 2002, p. 118 – grifo nosso).

E aqui está Freire a fazer desfilar outro neologismo – indicotomizavelmente –, formado

de dicotomizar, que significa partir em partes, dissociar, ou opor elementos por suas

características. O autor vale-se dos recursos que a língua lhe faculta, retoma indicotomizável,

criação de sua verve50. Pelo processo de derivação parassintética51, ao verbo citado acrescenta

49 Primeira edição de Ação cultural para a liberdade. Recorremos a esta edição porque, na de 2002, constatamos

alteração da grafia de alguns termos originalmente utilizados por Freire, o que prejudica e distorce a análise

semântica de seu texto. 50 Expediente já utilizado em obras como Educação como prática da liberdade, Pedagogia do oprimido e

Extensão ou comunicação? para indicar ações e situações indissociáveis.

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in- (que nega a ação ou indica-lhe movimento para dentro) e -vel, do latim -bil, formador de

adjetivo, que indica a possibilidade de realizar a ação sugerida pelo tema verbal dicotomiza, e

lhe acrescenta o sufixo -mente, que, além de indicar a maneira precisa de consignar o ato,

introduz, no contexto, o sentido de continuidade e movimento. Esse artifício marca como a

prática e a teoria devem ser conduzidas na construção do conhecimento.

Portanto, prática e teoria não se reproduzem, dialetizam-se num processo de criação e

recriação contextual como uma unidade. Mas Freire (2002, p. 20) alerta que, por serem

unidades da práxis educacional que se quer transformadora,

[...] a compreensão da unidade da prática e da teoria, no domínio da educação,

demanda a compreensão, também, da unidade entre a teoria e a prática social que se

dá numa sociedade. Assim, a teoria que deve informar a prática geral das classes

dominantes, de que a educativa é uma dimensão, não pode ser a mesma que deve dar

suporte às reivindicações das classes dominadas, na sua prática.

Por isso é que, no processo de alfabetização, não se pode deixar de lado a análise do

momento e de sua relação com as práticas ideológicas alienantes que, com sua “imposição” de

saberes, vão alimentando com pseudomovimentos humanitário-assistencialistas os “iletrados

do mundo”. Nessa perspectiva,

[...] é evidente que os alfabetizandos sejam vistos como puros objetos do processo

de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como seus sujeitos. Enquanto objetos,

sua tarefa é “estudar”, quer dizer, memorizar as assim chamadas lições de leitura, de

caráter alienante, com pouquíssimo que ver, quando têm, com a sua realidade

sociocultural (FREIRE, 1976, p. 45 – grifo nosso).

Esse esvaziar de mentes caminha na contramão da política educacional libertadora,

pois contribui para a coisificação do homem. E coisificar é transformar o dinâmico em

estático, o que, para Freire, é contrassenso, é contradição histórica. Daí se justifique o uso de

alfabetizando, forma nominal do verbo alfabetizar, a que se acrescenta o sufixo -ndo, para

indicar ser em processo, em relação dinâmica com a realidade. E como tal não pode ser

formatado, padronizado, nele não há ponto de partida nem de chegada, pois é um “sendo” e,

como tal, em permanente, construção e reconstrução.

51 Acréscimo, simultâneo, de prefixo e sufixo para formar elemento dotado de significação.

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Nessa perspectiva, há que se lutar por um processo de construção cultural que ponha

no palco sujeitos da práxis transformadora, conscientes de seu estar no e com o mundo, em

que opostos, em diálogo, desafiam(-se), mediatizados pela realidade mesma, reconhecendo-se

como sujeitos do conhecimento a serviço da transformação, e não numa relação verticalizada

por meio da qual se absolutiza a ignorância, pois, no dizer do pensador da educação (FREIRE,

2002, p. 24, grifo nosso), “[...] entre os seres humanos não há absolutização da ignorância

nem do saber. Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo.” Esse processo democrático de

comunicação, enfatize-se, promove a educação como um agir para a liberdade, pois respeita a

cultura como decorrente da práxis humana em permanente dialogação:

A possibilidade que têm os seres humanos de atuar sobre a realidade objetiva e de

saber que atuam, de que resulta que a tornam como objeto de sua curiosidade, a sua

comunicação mediatizada pela realidade, por meio de sua linguagem criadora, a

pluralidade de respostas a um desafio singular, testemunham a criticidade que há nas

relações entre eles e o mundo. Sua consciência, que não é a fazedora arbitrária da

objetividade, com a qual constitui uma unidade dialética, não é, também, por isso

mesmo, uma pura cópia, um simples reflexo daquela. Daí que esta nota de

criticidade não possa ser compreendida nem, de um lado, por quem absolutiza a

objetividade, nem, de outro, por quem absolutiza a consciência (id., ib., p. 78-79 –

grifos nossos).

Importante comentar aqui absolutização e absolutiza: Freire toma o adjetivo absoluto

(cuja carga semântica “anuncia” a completude, o acabamento, portanto algo incontestável,

concluso, que se basta por si mesmo), que contradiz sua tese de que tudo é relativo, processual

e, por isso, inconcluso, incompleto e inacabado – daí sua opção pelo ser em processo

(ontologia do “sendo”) –, e lhe acrescenta o sufixo -izar para denunciar, enfaticamente, os

radicalismos condicionantes que promovem o imobilismo, segregando consciências pela

estagnação, o que vai na contramão da prática transformadora da realidade. É a educação

bancária, cuja “[...] tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o

espírito investigador, a criatividade” (id., ib., p. 10). Note-se, ainda, que o pensador da

educação nomina o ato de absolutizar, acrescentando ao verbo o sufixo -ção (sufixo que

nomina a ação denotada pelo verbo) e que, contextualizada, fundamenta uma das práticas que

o indignam.

Ressalte-se, no entanto, que o mote freiriano é a dialogação, a dialetização, e que, no

nosso entender, foram formadas pela aglutinação de dialogar e dialetizar com o termo ação,

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que permeia toda a sua obra. Por isso, para nós, ele se utilizou do mesmo processo para

enfatizar semanticamente o ato de absolutizar com o neologismo absolutização52, que, no

contexto citado, ressalta a construção do conhecimento como decorrente de diferentes saberes

partilhados por ambos os atores. Dito de outra forma, o agir educativo deve partir do universo

experiencial dos homens, levando-os a “[...] ‘escrever’ sua vida, a [...] ‘ler’ a sua realidade, o

que não será possível se não tomam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e

refeitos.” (FREIRE, 2002, p. 19). Educador e educando precisam percorrer-se num processo

dinâmico do verdadeiro conhecer.

O educador deve imergir na realidade do educando (alfabetizando), caminhar com ele,

dando-lhe voz, instigando-o a re-pensar sua prática pelo processo de análise e re-análise das

situações em que está imerso. Precisa, antes de tudo, pôr-se em lugar do outro para entender-

lhe a angústia em que vive, determinada pela relação de opressão. Para isso, o mecanicismo

deve dar lugar à criticidade, formada do adjetivo crítico mais o sufixo -(i)dade, para

demarcar a situação única capaz de levar o homem à prática libertadora, que não pode existir

se, numa das “pontas” do processo, imperar a prática populista-domesticadora ensimesmada53,

não revolucionária, preocupada em “mitificar” a realidade, em vez de problematizá-la, e cuja

“[...] tendência é inclinar-se a soluções de caráter assistencialista54.” (FREIRE, 1976, p. 39 –

grifo nosso), não vislumbrando a possibilidade de produzir política e socialmente o

descondicionamento de uma visão estrábica da realidade que emperra o despertar para o novo

conhecimento, negando, por isso mesmo, a prática dialógica.

Se a consciência de educador e educando é condicionada pela realidade, a

conscientização desse processo permite, pela dialogicidade, a percepção desse

condicionamento e leva a sua superação. Por isso é que, no ato de conhecer, não existe o eu, e

sim o nós que determina a reflexão do eu sobre as relações que concretamente se estabelecem

in loco, e aí se faz a mediação. Nas palavras de Freire (2002, p. 101 – grifo nosso), “Na

52 Como os gramáticos não precisam, no processo de formação de palavras, este tipo de composição, julgamos de

bom-tom chamá-la de neologismo sequencial, porque criado de um outro: absolutizar (criação pelo acréscimo de

-izar ao adjetivo absoluto). 53 Voltada para si mesma, preocupada em garantir interesses próprios. 54 Novamente, Freire pontua a prática abominável que condena os homens à “aceitação” dos abusos do poder

populista desumanizante que só promove a cultura do silêncio: “É que as massas populares ‘emergem’ no

processo histórico intensamente condicionadas por toda a sua experiência na cultura do silêncio” (FREIRE, 1976,

p. 121).

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situação gnosiológica, o objeto de conhecimento não é o termo do conhecimento dos sujeitos

cognoscentes, mas a sua mediação.” E aqui está cognoscentes, formado de gnose, do grego

gnôsis – conhecimento, sabedoria, por extensão, igual ao ato de conhecer –, que recebe -nte

(sufixo que indica o agente do próprio ato). Confirma-se toda a teoria de Freire de que o

conhecer, o transformar, o superar e o construir a história só se concretizam pelo ato solidário,

e não solitário, que se verifica pelo prefixo co-, que empresta sentido de partilhar, realizar em

conjunto.

Nesse partilhar situações gnosiológicas, merece análise este trecho da obra freiriana:

“Ad-mirar” e “ad-miração” não têm aqui sua significação usual. Ad-mirar é

objetivar um “não-eu”. É uma operação que, caracterizando os seres humanos como

tais, os distingue do outro animal. Está diretamente ligada à sua prática consciente e

ao caráter criador de sua linguagem. Ad-mirar implica pôr-se em face do “não-eu”,

curiosamente, para compreendê-lo. Por isto, não há ato de conhecimento sem ad-

miração do objeto a ser conhecido. Mas se o ato de conhecer é um processo – não há

conhecimento acabado – ao buscar conhecer ad-miramos não apenas o objeto, mas

também a nossa ad-miração anterior do mesmo objeto. Quando ad-miramos nossa

anterior ad-miração (sempre uma ad-miração de) estamos simultaneamente

admirando o ato de ad-mirar e o objeto ad-mirado, de tal modo que podemos

superar erros ou equívocos possivelmente cometidos na ad-miração passada. Esta

re-ad-miração nos leva à percepção da percepção anterior. Talvez não seja

demasiado insistir em que este esforço, desenvolvido no contexto teórico, se esvazia,

se se rompe a unidade dialética entre este contexto e o contexto concreto. Em outras

palavras, se se rompe a unidade dialética entre prática e teoria (FREIRE, 1976, p. 53

– grifos nossos).

Nas palavras de Freire, toda criação e recriação humana, todo fazer transformador do

homem só encontra eco em sua prática criticizante que começa com o nós em permanente

revisita à própria prática, refazendo-a e refazendo-se, dialeticamente, sempre cuidando de não

repeti-la nem repetir-se em ato, o que seria manutenção do que está posto. Para tanto, hifeniza

o prefixo ad-, que significa junto, contíguo, para conotar o sentido crítico que deve nortear o

agir do educador, e, porque não, a prática pedagógica. Mirar pressupõe um objeto mirado (o

não-eu); a imersão nesse objeto reduz o ângulo de observação, e mais: a impossibilidade de

estabelecer relações adequadas com o contexto, diminuindo a compreensão dinâmica da

realidade. Por isso a necessidade de distanciamento para que a visão ganhe amplitude, e a

análise, profundidade.

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Essa abordagem, em alguns momentos do discurso de Freire, reforça, como

contraponto, a prática pedagógica defendida por ele: a dialético-dialógica.

Tomando-se como mote a prática pedagógica problematizadora freiriana, chegamos a

Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo (2011). Importante traçar

aqui um paralelo entre Freire e Marx. Percebe-se certa transição político-cultural intelectual de

Freire, um pensador que, embora parecesse não se comprometer com o jargão marxiano,

apropriou-se de alguns vieses do pensador alemão – salvaguardados os devidos contextos –

para desenvolver seu trabalho junto às comunidades guineense e cabo-verdiana, pois a luta

desse povo pela implantação do Estado nacional era calcada na ideologia revolucionária de

Marx.

Freire, ao trabalhar com e pelos descamisados do mundo, qualificando-os como

aqueles que não têm “voz” – poder de ingerência sobre a realidade histórica de que são porta-

vozes –, busca reabilitá-los por meio de um dos mecanismos fundamentais de libertação: a

palavra, que os tirará da condição de oprimidos e lhes permitirá ser compreendidos em seus

próprios termos, ou seja, decidir sobre a forma de agir para transformar a realidade. Essa é

uma perspectiva antropológica freiriana, pois busca, em Guiné-Bissau, resgatar as

peculiaridades do vivenciado concretamente, existenciado.

Vê-se, em Freire, um pensador que, assim como Marx, assumiu a defesa de um

segmento. Dialeticamente, tem clareza de que o mundo, a realidade e o pensamento estão em

permanente movimento, movimento de opostos que dialogam entre si, de superação

permanente, assim como a vida e a natureza. É a análise do concreto em sua relação histórico-

social.

O pensador da educação não utilizou as denominações marxistas, não porque quisesse

ser original, marcar o nome na história como referência exclusiva, alguém que buscasse os

holofotes da fama, até porque era avesso a “fulgurocidades”, e sim porque precisava atualizar

a concepção marxista à luz das condições concretas que estava vivendo, experimentando.

Ressalte-se que Marx escreve no século XIX sobre a realidade da época e da região em que

viveu, num contexto político-ideológico bem diferente do freiriano.

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Na Europa de Marx, século XIX, em plena vigência da assim chamada segunda

revolução industrial, exportava-se o modo de produção capitalista que punha em confronto

duas realidades de classe: a burguesa e a proletária. E esse embate se dava na materialidade da

produção econômica. Nesse ambiente, o desafio posto para Marx era desmontar o capitalismo

que, entendia, tinha o poder de instauração de uma sociedade de classes com sua lógica de

acumulação, de concentração que só fazia “repartir” a miséria para gerar riqueza. Para ele, o

trabalho gerador de riqueza era mal remunerado e a ele, como agravante, agregava-se a mais-

valia: tudo que, numa visão coletiva de trabalho, criava-se (produzia-se) de valor, era

apropriado individualmente, ou seja, pela classe dominadora. É esse sistema que Marx

combate.

Nessa insurgência, o pensador alemão toma o proletário como agente da revolução,

sintetizando, em sua figura de classe social, todo o processo de exploração capitalista do modo

de produção. Passado mais de um século, em outro lugar, no Brasil, era difícil pôr em

discussão esse modelo de exploração da mão de obra, pois conquistar a massa despojada de

sua real importância como classe transformadora e fazedora da história se tornaria tarefa

hercúlea, já que a cultura de dominação havia sedimentado sua hegemonia assistencialista

geradora de acefalia intelectual, promovendo discursos populistas de ludíbrio mágico, eivado

de promoções consagradas à desagregação de qualquer tipo de poder que se pusesse como

ameaça à manutenção do status quo.

Nesse contexto, não havia como conseguir o apoio de elites que detinham posições

radicais, avessas a mudanças que representassem a ruptura com o poder vigente. Era quase

nula a possibilidade de insurgência contra o sistema in totum. No entanto, o que movia Freire a

determinar-se na direção da desmontagem desse poder usurpador de consciências era a clareza

da relação de opressão institucionalizada e a constatação de um poder injusto, que estava a

espoliar seus irmãos nordestinos de seu bem maior desde o nascedouro: o de serem agentes da

própria vida, de sua história.

Essa clareza se consignou pela imersão de Freire nesse processo de espoliação. Sentira

ele na “própria carne” o que é ser destituído de dignidade como ser humano, de perder sua

identidade com o que ajudara a construir, de ver sucumbir a perspectiva de vida, de existência

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plena como se fosse um ator a representar um drama ficcional determinado por um faz de

conta orquestrado por uma direção alheia aos problemas da realidade. Isso conhecera muito

bem, pois sua família, bem posicionada que fora em Recife, sua cidade natal, de repente se viu

às voltas com a dura realidade.

Sem condições de sobreviver, Paulo (ainda na tenra idade) e família mudaram-se para

Jaboatão, onde passaram por momentos difíceis. É provável que as agruras experimentadas

tenham desencadeado o esperançar freiriano que, pela solidariedade dos que lhe eram caros, o

instigou na caminhada pela busca do ser mais no e com o mundo, um sendo ad infinitum.

A atualização de Marx por Freire se dá por opção política. Em vez de falar do operário

industrial, do proletário, ele trata do oprimido em todos os segmentos sociais, daquele que se

encontra em situação de opressão, independentemente da classe social a que pertence. É

evidente que, numa relação de oprimidos, a presença dos operários, dos camponeses é mais

recorrente, pois constituem a base da pirâmide social. Daí que só podem efetivar mudanças na

sociedade aqueles que, em relação de opressão, consigam se libertar e, em se libertando,

libertem também seu opressor. Portanto, a síntese da repressão e da dominação no sistema

capitalista é o oprimido que, na sua libertação, promoverá a do opressor: o burguês.

Estratégica a posição de Freire à época, ao usar oprimidos, e não operários, por

exemplo, pois, para levar avante seu projeto, não poderia comprometer-se com a ideologia

dominante, mas não lhe cabia propagar a revolução tal e qual proposta por Marx e Engels em

sua época. Caso o fizesse, correria o risco de ter seu discurso compreendido como porta-voz

daqueles que se desejava “exterminar”: os comunistas. Além disso, se fosse tomado como tal,

haveria aí contradição com sua formação cristã – nunca negou ser um existencialista cristão.

Quando sai exilado do Brasil, depois de muitas andanças, vai sentar praça em Guiné-

Bissau, entre os revolucionários, que haviam sido liderados por Amilcar Cabral. Não se pode

aqui omitir sua atividade como consultor do Departamento de Educação no Conselho Mundial

de Igrejas, anterior a sua ida para a região, convidado que fora a assessorar projetos nacionais

de educação de adultos.

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Em Guiné-Bissau, país que se havia livrado do domínio colonialista português, Freire

dá início a seu trabalho de leitura de mundo. Identifica-se com a causa guineense e cabo-

verdiana e com a proposta de reafricanização da terra. Vê, nessa luta, similitudes com o Brasil

– o resgate do que é nacional e que foi apropriado pelo colonizador, pela cultura importada.

Freire passa, como observador atento, a analisar a luta de um povo pelo

restabelecimento da dignidade e da identidade que, solidariamente, empenhava-se em buscar a

igualdade, desestimulando a exploração dos menos favorecidos. E, partindo dessa análise, vê-

se diante de uma comunidade que lhe pode proporcionar a realização de seu projeto

pedagógico, gestado e iniciado em sua terra natal, que, em decorrência de seu banimento, não

seguiu o curso que desejara. Passaria ali a trabalhar a alfabetização de adultos, utilizando os

conteúdos culturais próprios daquela gente para não violentá-los, e sim levá-los a repensar a

realidade que estavam vivenciando, tendo como mote a necessidade de transformar o contexto

sociopolítico-cultural para construir um novo país e um novo Estado.

O pensador pernambucano ganhou novo fôlego nessa empreitada, pois, para alguém

que deixara sua terra, desencantado, desalentado por não ter conseguido dar voz a sua gente

para que pudesse lutar pela reconstrução nacional, era alvissareiro o fato de ver oportunizado o

desenvolvimento do programa de alfabetização. Para ele, sedimentar-se-ia uma revolução

cultural que poderia pôr fim aos descalabros político-ideológicos impostos pelo poder

imperialista nefando, que por séculos destruiu sonhos e coisificou homens. Primeiro, porque

experienciar tal realidade possibilitou-lhe revisitar, emocionadamente, sua querida Recife, sua

terra natal. Tomemos este depoimento de Freire (2011, p. 13-14):

Na verdade, na medida em que [...] atravessava a cidade, ela ia se desdobrando ante

mim como algo que eu revia e em que me reencontrava. Daquele momento em

diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de

mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o

perfume de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem amada

banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o

gingar do corpo das gentes andando nas ruas, seu sorriso disponível à vida; os

tambores soando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-lo, “desenhando

o mundo”, a presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os

colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo,

tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais africano do que pensava.

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Segundo, porque a simbiose terra natal e terra de acolhimento, mais do que trazer à

lembrança os prazeres cá vivenciados por Freire à época de seu encanto pueril, fê-lo

mergulhar na realidade daquele povo sofrido, mas ainda esperançoso, dilatando seu desejo de

fazer muito por aquela gente em situação de penúria similar à que tão bem conhecera em sua

Pernambuco.

Para ele, as impressões que despertava aquela terra e o aprendizado experimentado

eram riquezas que mereciam registro, principalmente no campo da educação de adultos, que

tanto o motivara no Brasil. Sabia ele da necessidade de inserir-se no contexto, vivenciando

aquela realidade, para, em conjunto com seu povo, transformá-la, pois “A ajuda autêntica, não

é demais insistir, é aquela em cuja prática os que nela se envolvem se ajudam mutuamente,

crescendo juntos no esforço comum de conhecer a realidade que buscam transformar.”

(FREIRE, 2011, p. 17).

Daí que a defesa de uma causa só é justa quando não há neutralidade nem imposição de

“verdades” pensadas por estranhos ao processo. E disso Freire (ib.) mostrava clara

consciência:

Por isso é que, só enquanto militantes, jamais como especialistas “neutros”, membros

de uma missão estrangeira de assistência técnica, poderíamos, na verdade, prestar

nossa colaboração, por mínima que fosse. A nossa opção política e a nossa prática

em coerência com ela nos proibiam de pensar, sequer, que poderíamos elaborar, em

Genebra, um projeto de alfabetização de adultos, elegantemente redigido, com seus

1¹,1²,2¹,2² a ser levado por nós à Guiné-Bissau, como uma dádiva generosa.

Para o pensador da educação, toda prática, para ser transformadora, deve nascer na

realidade dos atores, pensada por eles, aprendida e ensinada solidariamente. Nessa esteira de

desenvolvimento intelectual pela leitura de mundo, o autor leciona que não é possível ensinar

àqueles que estão no processo de aprendizagem – educadores e educandos – “sem com eles

aprender”. E nesse processo, o ato de ensinar e o de aprender são indissociáveis, pois aquele

que “[...] é chamado a ensinar algo deve aprender primeiro para, em seguida, começando a

ensinar, continuar a aprender” (id., ib., p. 18). E continua com seu ensinamento, citando a

experiência que tivera no Chile com os trabalhadores, para que reflitamos sobre a prática

docente: “Foi aprendendo com eles, com os trabalhadores dos campos e das fábricas, que nos

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foi possível ensinar também” (id., ib., p. 19). E abrimos parênteses para afirmar que a

“dodiscência”, consignada em Pedagogia da autonomia (2002, p. 31 – grifo nosso),

continuava em construção: “A ‘dodiscência’ – docência-discência – e a pesquisa,

indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico.”

As experiências acumuladas, decorrentes de realidades distintas, devem ser pensadas e

repensadas antes de pôr em prática o conhecimento em dado contexto, pois elas “[...] não se

transplantam, se reinventam” (FREIRE, 2011, p. 19). Daí que se pensasse criticamente toda a

ideologia político-cultural da alfabetização de adultos, objetivando o projeto global da

sociedade guineense. Dessa discussão epistemológica, adviriam ações eficazes para

transformação da realidade de Guiné-Bissau. Registradas na obra em análise, transformam-na,

nas palavras de Coelho (2005, p. 79), em

[...] um minucioso relatório, lugar de desenvolvimento das principais idéias

freirianas, em uma linguagem simples, desvelando, já de início, o seu propósito de

não levar nada pronto aos guineenses. Numa proposta de ajuda verdadeira, os

envolvidos são estimulados a se ajudarem mutuamente, em um esforço comum,

desvelando a realidade opressora, para melhor transformá-la. Não se tratava, por isso,

de transposições de experiências anteriores.

Em sua incursão pelo mundo guineense, Freire constata as contradições entre os

iletrados e os que dominavam as letras. Os primeiros, embora não soubessem ler nem

escrever, tinham consciência política, que faltava aos segundos. Portanto, não havia como

pensar em alfabetização dissociada da realidade dos alfabetizandos. Era preciso trabalhar com

o educando, tendo-o como sujeito do processo. Ao educador cabe “[...] a procura dos melhores

caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao alfabetizando exercer o papel de sujeito

de conhecimento no processo de sua alfabetização” (FREIRE, 2011, p. 20 – grifo nosso). Daí

que, nesse processo cultural – citem-se aqui os Círculos de Cultura, espalhados por diversas

regiões do país –, o educador deve ser criativo, buscando elementos da prática cotidiana dos

aprendentes para iniciar a alfabetização, levando-os a encontrar sentido na aprendizagem da

palavra a partir da leitura de mundo.

Nessa perspectiva de alfabetização, os modelos devem ser “esquecidos”, pois, segundo

Freire (id., ib., p. 22 – grifo nosso), “[...] em lugar de estimular, nos alfabetizandos, a

curiosidade, as cartilhas reforçam neles a atitude passiva, receptiva, o que contradiz o caráter

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criador do ato de conhecer.” E aí está a importância do trabalho conjunto que se vinha

desenvolvendo em prol da educação, em que

[...] a alfabetização era tomada como um ato político, em cujo processo os

alfabetizandos se engajam com a ajuda dos animadores – alfabetizadores – enquanto

militantes uns e outros, no aprendizado crítico da leitura e da escrita e não na

memorização mecânica e alienante de sílabas, palavras e frases que lhes fossem

doadas (FREIRE, 2011, p. 37 – grifo nosso).

Essa postura rechaça qualquer possibilidade de fazer revolução sem a participação

efetiva daqueles que passaram pela dominação secular de um colonialismo espúrio. Daí que

todo o processo de leitura de mundo passe pelo educador-animador, que só deve prover os

educandos do indispensável para darem seguimento à análise dos fatos, e não enchê-los de

teorias alienantes, “[...] pois que conhecer não é adivinhar, a informação deve ser precedida de

certa problematização. Sem esta, a informação deixa de ser um momento fundamental do ato

de conhecimento para ser a transferência que dele faz o educador aos educandos” (id., ib., p.

21 – grifo nosso).

Nessas reflexões sobre a realidade, educador revolucionário, portanto engajado, e

educandos trabalham como parceiros na recriação do contexto, que medeia todo o processo:

“Na verdade, nas relações entre o educador e os educandos, mediatizados pelo objeto a ser

desvelado, o importante é o exercício da atitude crítica em face do objeto e não o discurso do

educador em torno do objeto” (id., ib., p. 21 – grifo nosso).

A educação revolucionária se faz quando os atores se assumem como sujeitos de sua

história, engajados numa luta que só tem sentido se aprendem “juntos” a ler o mundo para

transformá-lo à sua maneira. Para isso é mister que re-pensem a realidade, instigados pela

problematização (derivada de problematizar, verbo causativo, a que se acrescenta o sufixo -

ção, para nominar a ação provocada pelo verbo, que traduz aspecto processual da prática

reflexiva) dos fatos geradores do contexto analisado.

Essa relação dialética deve construir-se a partir da visão de mundo do alfabetizando

(resultado do acréscimo de -ndo, sufixo formador de gerúndio, forma nominal que indica

movimento, tomado aqui como substantivo para indicar ser em processo), porque seus valores

e representações só encontram corpo em sua cultura, em sua experiência de vida, que se traduz

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em saber de experiência feito. Portanto, a construção do conhecimento só encontra eco se a

cultura local e a do educando forem ponto de partida para (re) aprender a própria caminhada.

Nessa perspectiva, o professor problematiza, desafia esse sujeito que conhece a questionar o

saber de experiência feito para ajudá-lo e ajudar-se a ir desvelando e desnudando as

contradições históricas que marcaram o período em que esteve alijado de sua história. É aí que

entra o trabalho nos Círculos de Cultura, em que se dá voz aos alfabetizandos para que se

ponham como sujeitos do conhecimento. As informações que são colhidas transformam-se em

palavras geradoras que levam à produção de textos ou discursos pelos próprios educandos

sobre a nova experiência. E educador-educando e educando-educador se põem nesse processo,

num trabalho crítico co-laborativo, mediatizados (formado de mediar + izar + ado) pela

realidade. Essa é a ação para a liberdade que “[...] deve pautar-se pela revelação crítica do

trabalho docente como co-partícipe na prática questionadora, desde que educador e educando

sejam autênticos em sua prática co-laborativa [...]” (SIMÕES, 2006, p. 87). Esse é o equilíbrio

tensional necessário à construção do conhecimento.

Por isso que, em conversa com Mário Cabral, Freire (2011, p. 146-155) relata sua

preocupação em refletir, com isenção, sobre a realidade mesma de Guiné-Bissau, para efetivar

a alfabetização de adultos como ação cultural de suma importância na reconstrução do Estado

e da nação. Nessa análise, busca o distanciamento necessário para pôr-se a analisar as

experiências vividas em outros contextos e compará-las com a realidade – registrada,

principalmente, por Amilcar Cabral –, sempre movido pela curiosidade crítica e pela

aprendizagem do novo que o desafiava.

Essa busca incessante para compreender leva-o a conscientizar-se da necessidade de

retomar o caminho, repensá-lo, ressignificá-lo, para avançar e propor ações culturais que

subsidiem os diferentes momentos desse contexto:

Quanto mais re-estudamos a obra teórica de Amílcar Cabral, expressão de sua

prática na prática de seu povo, tanto mais nos convencemos de que a ela teremos

sempre de voltar. Suas análises do papel da cultura na luta pela libertação não se

reduzem ao momento histórico da guerra (id., ib., p. 148 – grifo nosso).

A hifenização do prefixo re- reforça o que Freire sempre defendeu em sua prática: não

há possibilidade de transformar a realidade se não voltarmos, insistentemente, ao ponto de

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partida, com olhos críticos, para lá encontrarmos a chave que nos possibilite repensar e

reformular nossa visão de mundo.

Em várias situações de desenvolvimento da alfabetização de adultos, vê-se a

preocupação de Freire em orientar a prática sempre partindo da realidade dos oprimidos da

terra, de sua determinação

[...] de concretizarem o sonho possível que perseguem desde o começo da luta – o de

re-inventarem [a hifenização do re- reforça a observação da prática do povo: a de, pela

análise crítica da realidade que os coisificara, encontrar meios eficazes para porem a

termo seus ideais de libertação] sua sociedade, banindo a exploração de uns por outros

e superando as injustiças (FREIRE, 2011, p. 54 – grifos nossos).

Para desenvolver seu trabalho em comunhão com aqueles que estavam determinados a

lutar pela reconstrução da nova ordem social, entre os quais o “camarada Cabral”, Freire ia-se

nutrindo de seus ensinamentos, sempre em permanente diálogo. Percebia ele a consciência

política que tinham e que norteava as ações dos militantes no combate às forças opressoras do

colonizador. Quando aprisionavam os inimigos, levavam-nos a julgamento pelos crimes que

haviam cometido contra o povo e o país. Se condenados, eram punidos com severidade, mas

sem que fossem desrespeitados como humanos, pois, nas palavras de seu líder, “[...] A

revolução pune, mas não tortura. O camarada Cabral falava sempre do respeito que se devia

ter ao inimigo. Era uma palavra de ordem do nosso Partido, do PAIGC” (id., ib., p. 53).

E aí está o grande ensinamento daqueles que, em sofrendo com a violência que havia

transformado em ruínas seu país e dizimado parcela significativa de seu povo, mantiveram a

dignidade, e mais: adquiriram consciência “transitivo-crítica” para fazer a verdadeira

revolução, iniciada pela conscientização de que não se pode fazê-la apenas combatendo com o

mesmo tipo de violência a violência que se vivenciou:

Aí está uma diferença radical entre a violência dos opressores e a violência dos

oprimidos. A daqueles é exercida para preservar a violência, implícita na exploração,

na dominação. A dos últimos, para suprimir a violência, através da transformação

revolucionária da realidade que a possibilita (id., ib., p. 53).

Nessa toada, ratifica-se o ensinamento de Freire sobre o dever educativo que, como

processo permanente, não se pode dar apenas (e integralmente) na escola, com seus currículos

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modulares recheados de teorias alienantes, porque destituídas da prática que “vai ensinando”.

Vejamos um trecho em que Freire (2011, p. 54 – grifos nossos) nos assevera que a consciência

do homem de seu papel como agente da história leva-o a transformar, solidariamente, a

realidade:

[...] absolutamente consciente do papel histórico de seu povo, é que aquele jovem

militante falou a Elza e a mim da prática em que se re-fez e da em que continuava a

re-fazer-se, junto com seus camaradas; da alegria de haver participado da dureza da

luta, da alegria de estar participando da reconstrução de seu país.

Aqui, a hifenização do re- em re-fez e re-fazer-se reforça a consciência do homem de

que é um ser em processo e, como tal, só se complementa e avança como agente histórico-

social na práxis, numa ressignificação permanente e com o outro.

Não há, pois, como dissociar teoria e prática como querem os avessos às perspectivas

de uma educação libertadora. É preciso ir a campo, falar na língua do povo, ouvi-lo, conviver

com ele, imergir em sua realidade, para, com ele, aprender e poder ensinar. Só assim se faz

história, cultura, a educação para a liberdade, para construção e reconstrução de uma

sociedade justa. Este trecho exemplifica o que aqui se observou:

Ao falar aquela linguagem, em uma relação horizontal com os camponeses, Cabral

começava o enraizamento, no meio do povo, do PAIGC em formação, ao mesmo

tempo em que se intensificava o aprendizado de sua "re-africanização”, associada ao

“suicídio de classe” que se impunha aos intelectuais revolucionários africanos para

“não trair os ideais da revolução” e sobre que falou tão claramente em seus textos

(id., ib., p. 93-94 – grifo nosso).

E o re-, associado por hífen ao substantivo africanização – ato ou efeito de africanizar

–, indica a retomada do caminho, de (re-)leitura de mundo como processo, tomando-se o

devido distanciamento para analisar os fatos em relação com a totalidade (realidade em

movimento), e ir-se nela reimergindo como agente da transformação.

Afeito a todas essas nuanças experienciais, Freire vai consignando a prática com a

alfabetização de adultos como única forma de mudar o mundo imerso no próprio mundo, com

o ensinamento que lhe proporciona cada revisita (com olhos críticos de observador-

participante) que lhe é feita: “[...] há um tempo reservado para novos encontros ou novas

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visitas (ao lado dos re-encontros e das re-visitas) com os quais vamos mais e mais nos

tornando ‘íntimos’ da realidade.” (FREIRE, 2011, p. 96). E o re- hifenizado bem o demonstra.

Outra passagem reforça a necessidade imperiosa de retomar a análise do contexto –

novamente o re- hifenizado para indicar o exercício de aprofundamento na prática reflexiva –

para ressignificar os fatos e avançar na busca da reconstrução da realidade:

Daí, por isso mesmo, que sempre tenha tomado a alfabetização de adultos como ação

cultural,

o que significa, nesta visão ampla de sua compreensão, que ela deve ser,

sobretudo, um esforço de "leitura” e de "re-leitura” da realidade, no processo de sua

transformação (id., ib., p. 112-113 – grifo nosso).

E aqui Freire leciona que, na alfabetização, há necessidade de trabalhar a linguagem

codificada pelos signos linguísticos com base na experiência do alfabetizando, pois, “[...]

mesmo pela criança que se alfabetiza, [o processo] pressupõe uma experiência social que o

precede – a da ‘leitura’ do mundo” (id., ib., p. 113 – grifos nossos).

Novamente, a importância dos Círculos de Cultura no desenvolvimento da

alfabetização, amalgamando o aprendizado da língua com “[...] o aprofundamento da ‘leitura’

e ‘re-leitura’ da realidade.” (id., ib., p. 114 – grifo nosso). Note-se que, além de recorrer ao

recurso da hifenização, Freire põe em destaque, entre aspas, “leitura” e “re-leitura”, o que

reforça a análise crítica, primeira, do objeto em desvelamento que deve pressupor a

aprendizagem da palavra.

Nesse processo, a dinâmica da alfabetização requer trabalho, atento e criativo, de

orientação dos animadores (assim chamados os educadores nos Círculos de Cultura), para

desenvolverem dinamicamente suas atividades com os alfabetizandos. Os momentos de

geração de palavras e representações tinham como protagonistas os educandos que,

“provocados” nas situações criadas, punham-se a discutir os fatos e a relacioná-los com

situações vivenciadas.

Toda essa farta construção do conhecimento gerava produções orais e escritas,

coletadas pelos organizadores e organizadas de forma que se transformassem em material de

orientação (manuais) e criação de situações que, confrontadas com outros momentos do

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processo, viriam a produzir novas situações desafiadoras. Para isso, os “manuais” eram

levados aos agentes de sua produção (os alfabetizandos), que os re-analisavam, confrontando-

os com a nova situação existencial. Era feita a interpretação da interpretação, ou seja, a “re-

interpretação” do objeto interpretado, para, em reinterpretando, “re-interpretar” a realidade.

Daí a necessidade de permanente “re-escritura” oral da realidade pelos educandos, em seu

espontaneísmo, para, depois, fazer-se a codificação pela escrita e sua respectiva

descodificação em permanente diálogo com a realidade dos atores.

Salvaguardadas as devidas proporções, o fazer educativo deve responder ao que é vital

para transformar a realidade. Dito de outra forma, deve acompanhar, e mais: motivar seus

agentes – os oprimidos – a fazê-lo. Esta é uma ação revolucionária que exige militância

permanente, pois é capaz de “gerar” agentes de uma nova prática social e “[...] demanda a

unidade dialética entre a prática e a teoria, a ação e a reflexão, a que nos estimula a

criatividade, contra os perigos da burocratização e da rotina.” (op. cit., p. 248), porque exige

nossa imersão na realidade e nos põe distanciados dela para transformá-la em permanentes

desafios a serem superados.

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CAPÍTULO IV

ANÁLISE MORFOSSINTÁTICO-SEMÂNTICA DAS

CONSTRUÇÕES FREIRIANAS

Neste capítulo, para fazermos avançar nossa investigação sobre o trabalho de criação

do pensador pernambucano, abordaremos algumas de suas construções, analisando o exercício

de elaboração vocabular desse artesão da língua para demonstrar que ele soube trabalhar,

como poucos o fizeram, os aspectos da linguagem derivados da semiologia. Para situar o

leitor na análise que propomos, fundamentamos, a seguir, o processo analítico – as categorias

linguísticas – que direcionará nosso exame do material anunciado: os neologismos e as

construções neológicas utilizadas por Freire em seu discurso:

Morfologia: trabalha com a forma da palavra, com os processos de formação que lhe

dão origem, avaliando seus componentes estruturais;

Sintaxe: entre suas funções está a de estudar os termos de uma estrutura frásica em sua

íntima relação com os demais componentes para formação do todo fraseológico;

Semântica: entre outras atribuições está a de estudar a relação de sentido das palavras

num dado enunciado, ou seja, a relação dos signos com seus referentes.

Anunciada a base de análise que propõe deslindar o universo discursivo do pensador

da educação, trataremos, agora, da defesa de nossa hipótese:

Em sua obra, Freire preocupa-se, e muito, com o conteúdo significativo de suas

mensagens. Embora sua preocupação seja encontrar a forma perfeita para registrar com

precisão sua práxis, comprovando que teoria e prática são indicotomizáveis e, por isso mesmo,

complementares, ao valer-se do aparato linguístico para criar formas de comunicar, procura

dar a elas o efeito de sentido, fortalecendo-o, sintetizando os conteúdos de sua mensagem. E

como o discurso freiriano está sempre relacionado com o contexto histórico-social em que foi

produzido e, no nosso entendimento, reveste-se de rigorosidade na investigação desse

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contexto, isso é fazer ciência. A respaldar tal afirmação estão as palavras de Verón (1970, p.

169 – grifo do autor):

Entendo aqui por ciência um sistema empírico de atividade social. O conceito de

ciência abrange então, não somente as características de certo tipo de “discurso” que

é a linguagem científica, que o diferencia de outros tipos de discursos, mas também

as condições concretas de sua elaboração, difusão e desenvolvimento acumulativo.

Sua necessidade de nomear novas situações, registrá-las pela palavra para difundir o

que acredita ser a verdadeira educação libertadora, fá-lo amalgamar elementos linguísticos

para definir, e mais, construir um discurso que dê conta de fundamentar sua prática engajada

solidariamente na luta por um viver melhor, sem exploração – um espaço de participação, de

decisão conjunta, sem a espoliação do homem, e sim de respeito e reconhecimento das

diferenças, somando esforços para mitigar as mazelas de uma sociedade injusta.

Tal propósito só se consigna com um discurso forte, persuasivo e de convencimento,

que seja capaz de produzir inconformismo e indignação nas classes menos favorecidas e que

leve o desconforto ao seio das classes dominantes. Nesse passo, arregimenta intelectuais

dispostos a romper os laços com o discurso acadêmico-proselitista da cultura hegemônica que,

distanciado dos ideais de transformação social, condena ao ostracismo político-existencial

toda uma classe capaz de efetivar as mudanças necessárias à reconstrução de uma sociedade,

pautada nas ações de valoração do humano.

Nesse contexto, observamos que Freire vai tecendo seu discurso-alerta, utilizando

algumas construções neológicas que demonstram ser ele um artesão das palavras que conhece,

e bem, seu instrumento de trabalho – a língua em suas dimensões morfossintático-semânticas.

Para fundamentar nossa hipótese sobre a intenção discursiva freiriana de utilizar os

signos linguísticos para sugerir o sentido além do literal que denotam e, assim, conseguir o

efeito desejado a sua mensagem, convém mencionar alguns conceitos derivados da semiologia

no que se refere ao sistema de signos, o que fazemos no uso de Verón (ib., p. 169-170):

[...] podemos distinguir: (a) o estudo das relações dos signos entre si (a sintática); (b)

o estudo das relações dos signos com aquilo a que se referem ou que “representam”

(a semântica) e (c) o estudo das relações dos signos com os usuários, ou seja, com

aqueles que os emitem ou recebem em determinada situação (a pragmática).

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Freire toma o verbo “alfabetizar”, acrescentando-lhe -ndo, formador do gerúndio em

português, “[...] que corresponde ao ablativo do gerúndio latino” (MACAMBIRA, 1974, p.

126), criando “alfabetizando” numa operação de sentido que repercute semanticamente no

contexto em que é empregado. Ressalte-se que o pensador pernambucano, mais do que

trabalhar a palavra como nominadora de um ser em processo – o aluno –, portanto em

permanente movimento por sua incompletude e inacabamento, ao fazer uso da derivação

sufixal, quis deixar claro seu propósito de conferir ao termo maior amplitude significativa, já

que o gerúndio é uma forma nominal do verbo que lhe acrescenta características adverbiais e

lhe dá o sentido de continuidade.

Acreditamos que aí esteja uma das grandes contribuições de Freire: a forma como

utiliza “alfabetizando” no discurso. Para ele, o substantivo não apenas traduz aquele que se vai

alfabetizar ou que está sendo alfabetizado, mas também o ser dialógico que participa como

agente do e em processo de alfabetização, alguém que faz escolhas e é capaz de interagir

solidariamente na construção do conhecimento.

Freire nos dá pistas de que, mais do que criar uma palavra, é preciso pensá-la em suas

relações específicas, garantindo ao discurso o efeito desejado, pois a palavra é a forma, por

excelência, de compreensão, explicação e, sobretudo, de intervenção no mundo. Esta, aqui

posta como elemento de arregimentação de adeptos, dispostos a “cerrar fileiras” para efetivar

as mudanças necessárias à construção de uma ágora em que se discutam, efetivamente, os

entraves políticos de repercussão social, que acentuam o distanciamento de classes,

contribuindo para o agravamento do quadro de enfermidade existencial do ser humano.

Quer Freire que sua obra seja marco de agregação ético-social pela discussão de

valores esquecidos, que tenham, em seu epicentro, a comunhão de esforços para revolucionar

a educação. Daí que se produzam ações de resgate moral das políticas públicas saudáveis

como luzes sobre um oceano de práticas obscurantistas eivadas de assistencialismos “baratos”

que só fazem perpetuar os problemas sociais.

Esse embate por uma educação libertadora leva o patrono da educação brasileira a

eleger o oprimido, em todas as dimensões – oprimido por sua posição no modo de produção,

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oprimido pelo cerceamento de sua palavra, pelo acesso desigual aos bens culturais/

educacionais, oprimido de consciência –, personagem-símbolo de sua prática epistemológica,

por acreditar ser o único capaz de produzir o verdadeiro saber e de revolucionar a sociedade.

Em sua andarilhagem pelo mundo, experimentou, ora como espectador atento da realidade,

ora como participante de projetos sociais, as vicissitudes de uma dominação perversa. Por isso,

fez de sua prática, registrada por um discurso de combate a todo tipo de submissão humana,

ponto de partida epistemológico e de chegada político, tendo, no diálogo, o princípio, meio e

fim de toda a prática pedagógica.

Nessa toada, a criação de neologismos e de expressões neológicas trazem como marca

fundante a razão epistemológica, o que nos obriga, para complementar a compreensão do

propósito de Freire na construção de sua denúncia-anúncio, a ir além em nossa análise de tais

criações.

Selecionamos, neste ponto, algumas construções que impactam política e

epistemologicamente o discurso freiriano para corroborar nossa análise: visão “bancária”,

concepção “bancária” e prática “bancária” da educação.

Nessas expressões metafóricas, Freire se utiliza do adjetivo “bancária” para demarcar a

intromissão de uma visão, de uma concepção e de uma prática de educação de teor

mercantilista. Essa caracterização, destacada pelas aspas, reforça o caráter reducionista da

educação, limitando-lhe a abrangência. E Freire, com a maestria de grande artesão das

palavras, toma os substantivos visão, concepção e prática, caracterizados pela locução

adjetiva da educação, e lhes acrescenta o adjetivo “bancária”, num jogo morfossintático-

semântico que visa atingir o efeito discursivo desejado. Tem-se, pois, o aspecto disjuntivo

desse conjunto de relações linguísticas a caracterizar a força de seu discurso-denúncia, cujo

objetivo é combater a prática devastadora do poder opressor que aliena as consciências.

É a visão utilitária da educação tão combatida pelo pensador pernambucano: “Na

medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o minimiza,

estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores [...]”

(FREIRE, 1988, p. 60 – grifos nossos).

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Nas palavras de Freire, esse tipo de saber que se quer seja incutido nos educandos é

“[...] o que Sartre, em El hombre y las Cosas, chamaria de ‘concepção ‘digestiva’ ou

‘alimentícia’ do saber” (FREIRE, 1988, p. 63). Observe-se que para tornar ainda mais

contundente suas críticas ao que se pratica na esfera educacional – o fato de os educadores

nutrirem de informações o educando, cuja única função é absorver o alimento cultural que o

fará deixar a fase da ignorância – o pensador da educação põe entre aspas os adjetivos

“digestiva” e “alimentícia”.

O patrono da educação vai construindo sua crítica com mais alguns elementos

constitutivos desse utilitarismo educacional, atribuindo à educação a característica “bancária”

própria de sua visão, concepção e prática mercantilistas. Nomeia esse tipo de educação e o

agente responsável por fazê-la com o adjetivo mercadológico “bancário” – aspeado – para

reforçar ainda mais o perigo de um fazer educativo nos moldes tradicionais, prática de

educação tradicional que, segundo ele, provoca toda sorte de prejuízos: a educação “bancária”

e o educador “bancário” contribuem para a domesticação do homem por meio de uma simples

transfusão de conhecimentos. Mais do que caracterizar enfaticamente o substantivo, Freire

(id., ib., p. 83 – grifos nossos) usa, em dado momento de sua narrativa, o recurso da

hifenização para criar o substantivo composto “educador-bancário”:

Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não

é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do

programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele

mesmo, organizando seu programa.

Essa criação corrobora nossa hipótese de que tudo em seu discurso é pensado e

repensado para produzir determinado efeito de sentido que não permita análises perfunctórias

de sua mensagem, levando à distorção de suas palavras.

Na formação de “educador-bancário”, encontramos o trabalho de um profundo

conhecedor de morfologia, sintaxe e semântica, pois toma o substantivo “educador”,

responsável pela formação e o desenvolvimento intelectual do homem, e lhe acrescenta o

adjetivo “bancário” como caracterizador, cujo significado se contrapõe ao do elemento

caracterizado, dando-lhe a força expressiva de que Freire necessita para dar precisão a sua

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mensagem. Além disso, põe o substantivo entre aspas, o que denota sua intenção de levar o

leitor a refletir sobre o termo e sua relação com o contexto.

A crítica às práticas ineficazes

Em Ação cultural para a liberdade (2002), retoma “concepção digestiva”, com o

adjetivo aspeado, para reforçar ainda mais o caráter nocivo da prática educacional. Nesse

movimento, põe em xeque a prática cartilhesca usada na alfabetização: “Esta concepção

‘digestiva’ do conhecimento, tão comum na prática educacional corrente, se encontra

claramente nas cartilhas” (FREIRE, 2002, p. 53).

Essa tessitura ganha corpo com outras construções que corroboram as práticas

perniciosas do fazer educativo: assistencializar, assistencialização, assistencialismo e

assistencialista.

O pensador da educação toma o substantivo “assistência”, do qual se deriva o adjetivo

“assistencial”, que serve de referência para formação do verbo de sentido factitivo

“assistencializar”, formado pelo acréscimo do sufixo -izar. Tem-se, aí, o processo de

camuflagem da manutenção de situações que secundarizam o homem e o impedem de ser

mais. Esse processo, segundo Freire, reforça a dura realidade reducionista do fazer humano

que se consigna pela incapacidade de agir no e com o mundo como senhor da própria história.

Leciona o pensador pernambucano que esse quadro tem seu nascedouro nas primeiras

letras, quando os professores desenvolvem práticas de “absolutização da ignorância”:

Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios

aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações

instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que

constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se

encontra sempre no outro (FREIRE, 1988, p. 58 – grifos nossos).

Nesse ambiente não se permite que as primeiras experiências dialógicas se efetivem no

processo de alfabetização, pois os educandos são tratados como elementos que precisam

passar por uma linha de produção em série para receber conteúdos informativos que lhes darão

inteireza e os afastarão de seu estágio de ignorância intelectual. Sob tal expediente, conforma-

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se uma prática antidemocrática que atende apenas aos interesses daqueles que se auguram o

direito e o dever de edificar a pirâmide do conhecimento, valendo-se de expedientes

salvacionistas com discursos verborrágicos que alardeiam um futuro de inclusão social

promissor.

Essa contradição, para Freire, só acentua o distanciamento da realidade, pois produz

autômatos, meros repetidores de informações, oprimidos alienados de sua realidade, uma vez

que não se consideram os saberes de experiência feitos nem se permite que digam sua palavra.

O pensador pernambucano vai nominando essas práticas num trabalho de construção

discursiva, em que se utiliza de alguns processos linguísticos de natureza morfossintático-

semântica. Retoma o adjetivo “assistencial” e lhe acrescenta o sufixo -ista para formar outro

adjetivo – assistencialista, que dá à prática educativa a especificidade de que precisa para

reforçar o caráter verticalizante da educação tradicional que condena ao mutismo os seres em

formação. Daí a necessidade de repensar o modelo educacional:

Desta forma, necessitamos, no momento, não apenas de uma revisão de todo nosso

processo educativo, verbosamente assistencialista e por isso mesmo

antidemocrático, com que substituamos a “atitude” atual de nossa escola diante de

sua contextura, mas, também, de planejamento que vise a situar todas essas agências

sociais, assim como empresas, que agregam homens em torno de trabalho ou de

assistência, em uma linha diferente. Em diferente “atitude” (FREIRE, 2001, p. 81 –

grifos nossos).

Para analisar a realidade, Freire trabalha como um verdadeiro cirurgião plástico:

interfere morfologicamente na palavra para, em seguida, relacioná-la com o advérbio

“verbosamente” (aspecto sintático), reforçando o caráter verborreico da educação tradicional,

que em nada contribui para a prática existencial do educando – e aqui se constata a

repercussão semântica de todo o processo linguístico do termo em pauta. Esse é o efeito de

sentido pretendido pelo pensador da educação em seu discurso-denúncia.

Freire segue nessa caminhada, mostrando a ingerência nociva dessas práticas, que vão

acentuando o caráter verticalizante do “agir educacional”. Novamente, trabalha a palavra nos

três níveis – morfológico, sintático e semântico – para dar precisão e expressividade à sua

denúncia: do verbo “assistencializar” faz derivar, pelo acréscimo do sufixo -dor, o substantivo

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assistencializador, que, no contexto, cumpre o papel de adjetivo, pois caracteriza

enfaticamente (notem-se as aspas, que destacam o termo em questão) o substantivo “ação” em

“Acreditamos mesmo que parte desta ação ‘assistencializadora’, a comprometer a marcha de

nossa democratização, resulte de uma distorcida visão da problemática nacional. Não só por

parte das instituições mas dos seus próprios clientes” (FREIRE, 2001, p. 19 – grifo nosso).

Para o educador, essa prática impede o homem de ser mais, enraizada que está na

cultura protecionista das instituições, numa espécie de apadrinhamento de seres oprimidos que

comungam o discurso do opressor para manter os benefícios “conquistados”. Esse é o perigo

do discurso mágico-sedutor da dominação.

Em outro ponto do texto freiriano, encontramos aspeados “assistencializar” e

“assistencialização”, o que reforça o aspecto desestruturante do pensar e do fazer humanos

pelas instituições que se valem de práticas paternalistas: “[...] Ao invés disso, porém, o que

continuamos, em regra, a fazer, é ‘assistencializar’ o homem nacional. ‘Assistencialização’

pela escola. Pela família. Pelas instituições assistenciais. Pelas empresas. ‘Assistencialização’

particular e pública” (id., ib., p. 51-52 – grifos nossos).

Note-se a maestria de Freire nas criações destacadas: toma o adjetivo assistencial,

acrescenta-lhe o sufixo -izar, formador do verbo de sentido causativo assistencializar, para

reforçar a dominação sobre o homem; em seguida, agrega o sufixo -ção, formando o

substantivo assistencialização, que conota a ideia de um processo protecionista que encapsula

o homem, condenando-o à subalternidade existencial. Essa criação freiriana produz um efeito

semântico que alerta para o perigo de se promover a simples “desconstrução” dialética.

Se tomarmos o mote de toda a obra freiriana, a dialogação, concluímos que o pensador

pernambucano tencionou provar a antidialogicidade do processo de cerceamento das

atividades intelectuais do homem pelo poder de dominação de todos os segmentos da pirâmide

social. E aí está o jogo morfossintático-semântico encetado com a construção do verbo

assistencializar, derivado do adjetivo “assistencial”, desaguando na assistencialização, que

traz em si não apenas a junção de um sufixo, mas a aglutinação do substantivo “ação” ao

verbo em pauta para reforçar ainda mais a força geradora do processo castrador de

consciências.

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Nesta análise das construções que dão expressividade ao discurso freiriano e

consignam seu propósito de conscientizar o indivíduo de que há necessidade de ressignificar a

realidade por meio da ação-reflexão sobre ela e a partir do olhar dialético do espectador atento

ao que ocorre no entorno, acrescentamos “sloganizar” e “sloganização”, de slogan, frase ou

palavra de efeito utilizada em propaganda para incutir no leitor mensagens específicas que

provoquem reações predeterminadas e o façam adquirir produtos ou serviços. Esse é um dos

expedientes utilizados no processo de manipulação das massas.

Com essas criações Freire “vai mais fundo” em suas críticas à educação tradicional,

reforçando, assim, sua contraposição ao “bancarismo” educacional que o indigna:

Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a

vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentos implícitos na visão

“bancária” criticada, é que não podemos aceitar, também, que a ação libertadora se

sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos slogans, dos

“depósitos” (FREIRE, 1988, p. 67 – bold nosso; itálico do autor).

O pensador da educação alerta para o perigo da manutenção de verdades, para o

sectarismo que não considera o diálogo como forma de crescimento político-social, que impõe

modelos “sedutores” de homens: “Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é ação sem

vigilância da reflexão. Daí o seu gosto pela sloganização, que dificilmente ultrapassa a esfera

dos mitos [...] (FREIRE, 1987, p. 51 – grifo nosso), pervertendo os ideais de uma educação

libertadora, e que transforma os oprimidos em massa de manobra pelo processo de

domesticação da consciência. Substituir o diálogo “[...] pelo antidiálogo, pela sloganização,

pela verticalidade, pelos comunicados é pretender a libertação dos oprimidos com

instrumentos da ‘domesticação’” (FREIRE, 1988, p. 52 – grifo nosso). É ludibriá-los

cinicamente fazendo-os acreditar que estão saindo de um estado de letargia educacional, e

mais: político-existencial, para um estado de fecundidade intelectual como agentes de sua

história: “É fazê-los cair no engodo populista e transformá-los em massa de manobra” (id., ib.,

p. 52).

Nosso autor defende que se pratique o diálogo contra o processo de domesticação, que

educadores e educandos ajam solidariamente no ciclo gnosiológico como sujeitos

cognoscentes fazedores de cultura. Aí, sim, haverá produção do conhecimento e, na educação,

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se consignará a ação para a libertação do homem, para sua autonomia: “Enquanto a ação

cultural para a libertação se caracteriza pelo diálogo, ‘como selo’ do ato de conhecimento, a

ação cultural para a domesticação procura embotar as consciências. A primeira problematiza;

a segunda ‘sloganiza’” (FREIRE, 2002, p. 95 – grifo nosso).

O pensador da educação, utilizando-se dos recursos linguísticos, cria o verbo

“sloganizar”: toma o substantivo slogan, atribui-lhe a função de radical (elemento de

composição) e lhe acrescenta o sufixo -izar, de sentido factitivo55 para enfatizar o movimento

determinante de dada situação. Valendo-se de sua criação, forma o substantivo sloganização,

pelo acréscimo de -ção56 ao tema verbal “sloganiza”, para nominar tal ação.

Interessante observar que, na formação desses neologismos, Freire manteve o radical

slogan em sua formatação original (inglês), o que, para nós, corrobora o cuidado de trabalhar

os aspectos gerativos da linguagem na criação de vocábulos para dar ao discurso o efeito

pretendido, pois o sentido que tais formas produzem demonstra a genialidade desse artesão das

palavras.

Como Freire conhecia muito bem a língua e a dominava, o uso de slogan foi

intencional para indicar o processo de descaracterização cultural a que o povo estava sendo

submetido pelo dominador, como um tipo de colonização intelectual que procura domesticar o

homem, manipulá-lo para manter o status quo.

Para reforçar essa prática nociva colonizante, ranço do passado com feição nova, o

patrono da educação promove o jogo morfossintático-semântico ao analisar situações que

envolvem a domesticação do homem pelo poder imperialista e lhe negam voz, impedindo-o de

ser mais: “O importante, porém, do ponto de vista do imperialismo e de seus aliados nacionais,

era que tal processo reformista, chamado sloganizadamente de desenvolvimento, não afetasse

os pontos centrais das relações entre a sociedade matriz e as sociedades dependentes” (id., ib.,

p. 139).

55 Denota factitividade, interpretação semântica que dá ideia de que a ação do termo que a contém causa uma

outra ação. 56 Embora seja este sufixo um dos que, segundo a gramática, formam substantivos derivados, defendemos que

Freire, mais do que utilizar esse simples expediente formal, agregou ao verbo a palavra ação, por ser elemento

fundante de toda a discussão freiriana.

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Portanto, defendemos a intenção de Freire em caracterizar, com precisão e força

semântica significativa, essa ingerência da cultura “externa”, reforçando-a com

“sloganizadamente”, para cuja formação observa o teor morfológico do substantivo slogan,

acrescentando-lhe o sufixo -izar, formador do verbo de sentido causativo para pô-lo no

particípio (forma nominal adjetiva) e criar, por meio do sufixo -mente, a forma adverbial

modal em destaque e conformar semanticamente o tipo de desenvolvimento que era preciso

manter para garantir o êxito do processo de dominação do poder instituído sobre os demais

grupos.

Importante sublinhar que a gramática não contempla com nominações esse tipo de

formação que, para nós, além de sufixal (acréscimo de sufixo ao radical), é sequencial:

slogan+izar = sloganizar; sloganizar+ção (ou “ação”) = sloganização; sloganizada+mente =

sloganizadamente. Neologismo formado de outra formação neológica. Daí o chamarmos de

neologismo sequencial.

Essa abordagem, em alguns momentos do discurso freiriano, reforça, como

contraponto, a prática pedagógica por ele defendida: a dialético-dialógica.

Em sua prática discursiva, acreditando na construção de uma sociedade mais justa,

Freire leciona que só é possível operar mudanças sociopolítico-educacionais concretas se

dermos voz aos oprimidos, vivenciando solidariamente sua realidade num processo dialógico,

sem a imposição da cultura da dominação que tende a transformá-los em títeres reprodutores

de verdades neles depositadas. “Significa renunciar a todos os mitos de que se nutre a ação

invasora e existenciar uma ação dialógica. Significa, por isto mesmo, deixar de estar sobre ou

‘dentro’, como ‘estrangeiras’, para estar com, como companheiros” (FREIRE, 1988, p. 154),

secundarizando saberes academicamente instituídos para com eles problematizar a realidade a

partir de saberes de experiência feitos. É permitir que os educandos repensem a própria prática

e superem as contradições do cotidiano na qualidade de sujeitos conscientes de seu fazer

histórico.

No trecho em questão, o verbo “existenciar”, criado por Freire, reporta ao ato de

transcender a própria materialidade observada. Toma o substantivo “existência”, que sugere

personalidade presente em dado momento em algum espaço, e a ele acrescenta a desinência

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verbal de infinitivo -r para indicar a prática que deve nortear a análise sobre determinado

objeto, no caso “a ação dialógica”, ou seja, a dialogação. Essa prática, pois, envolve o

desenvolvimento da capacidade potencial do homem de pensar, de estabelecer relações com o

outro, o não-eu. Daí a imperiosa necessidade de o professor desvestir-se de ações

assistencialistas, abandonando o cunho reprodutor de sua prática que impõe o mutismo aos

educandos e os condena a uma existência falaz com a promessa de levá-los à formação plena

da consciência crítica.

Nesse processo, alerta Freire, urge reinventar a educação como um todo, num fazer

dialético em que se produzam, solidariamente, situações de questionamento da práxis por seus

agentes, educadores-educandos, pois “Só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação,

na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira” (FREIRE, 1988, p. 36 – grifo nosso).

Esta é a noção de existência plena, comprometida amorosamente com o fazer

intersubjetivo, a que o patrono da educação chama de “existenciação”, aglutinando os

substantivos existência (como modo de ser próprio do homem) e ação (como prática,

movimento) para indicar como o homem deve intervir na realidade: existenciando-a, sem

submeter-se a quaisquer situações de compulsão ou coerção. Note-se nessa composição

“sígnica” o processo de elaboração morfossintático-semântico para dotar a mensagem de

significado específico para atingir o efeito desejado.

Nessa toada linguístico-discursiva em defesa de uma educação libertadora que deve

contrapor-se à bancária, Freire vai seguindo com suas construções neológicas, entre as quais

“educação problematizadora” e “educador problematizador”. Parte do verbo “problematizar” –

pôr em dúvida – e a ele acrescenta o sufixo -dor (formador de substantivo), nominando, assim,

o agente da ação expressa pelo verbo, ou seja, aquele que problematiza ou suscita a

problematização, o questionamento. E é esse o sentido específico que o pensador da educação

quer dar à educação e a seu agente, o educador.

Esta forma designativa criada – o substantivo “problematizador” – assume, pela

relação que Freire estabelece com os substantivos educação e educador, a função de um

adjetivo, pois atribui ao primeiro natureza própria de agente, que lhe estende o significado, e

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ao segundo, força significativa expressiva e precisa, uma vez que ambos os substantivos,

caracterizador e caracterizado, nomeiam os agentes dos verbos de que derivam.

No contexto de Pedagogia do Oprimido (1988, p. 68 – grifos nossos), encontra-se a

raiz desse embate-compromisso com a educação libertadora:

Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de

depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores

aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação “bancária”, mas um ato

cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível, em lugar de

ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos

cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação

problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da contradição

educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação dialógica, indispensável à

cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível.

Nesse trecho, Freire vai desenvolvendo um jogo linguístico – educação libertadora,

problematizadora versus educação “bancária” – para rechaçar a prática tradicional da

educação, asseverando que a verdadeira educação apenas se consigna como ato

“cognoscente”, de conhecer (do latim cognescere), aqui em analogia com gnose (do grego

gnôsis57), que significa conhecimento, pois acredita ser possível conhecer, de fato, em

comunhão por indivíduos que se respeitam e se reconhecem na alteridade como seres em

busca do ser mais. Por ser processo, entendemos que, para Freire, o que existe é a “ontologia

do sendo”.

O termo “cognoscente” reforça tal afirmação na medida em que toma do verbo latino

cognescere, a que se acrescenta o sufixo do particípio presente -ente para nominar o agente do

fato verbal, ou seja, aquele que conhece ou está envolvido com o conhecimento. Daí seu uso

na caracterização de alguns substantivos, entre os quais ato e sujeito: “ato cognoscente” e

“sujeitos cognoscentes”, em que o termo em pauta guarda seu valor de adjetivo para marcar

processo não finalizável.

Nesse processo dialético entre educadores-educandos para superar as contradições está

“[...] o educador problematizador [que] re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na

57 “Fil. Conhecimento esotérico e perfeito da divindade, e que se transmite por tradição e mediante ritos de

iniciação” (FERREIRA, 1975, p. 690); “Conhecimento esotérico da verdade espiritual, combinando mística,

sincretismo religioso e especulação filosófica, que diversas seitas dos primeiros séculos da era cristã,

consideradas heréticas pela Igreja, acreditavam ser essencial à salvação da alma” (HOUAISS, 2009, p. 975).

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cognoscibilidade dos educandos.” (FREIRE, 1988, p. 69 – grifos nossos), que, dialogando

com o educador, assumem-se como agentes do processo reflexivo, questionando a realidade-

mundo.

Freire, no trecho citado, toma o verbo “refazer”, que indica fazer de novo, alterando-o

pela hifenização do prefixo re-, em “re-faz”, para estabelecer a relação com os demais

elementos da frase e fazê-lo produzir com tais componentes fraseológicos o efeito de sentido

específico na mensagem: o fato de o educador reorganizar seu agir, não unilateralmente, mas

pela situação desafiadora de momento.

A hifenização tem caráter enfático, marca a necessidade de o educador ressignificar os

próprios saberes para avançar com os educandos na análise crítica da realidade. Esse avanço

constitui a mola propulsora de uma educação libertadora, pois se não faz desaparecer o

verticalismo da educação tradicional, pelo menos mitiga seus efeitos de percurso.

Nesse processo investigativo do cotidiano pela imersão de educador e educandos na

realidade-mundo, não há espectadores isentos, e sim sujeitos solidários em ato gnosiológico.

Sob tal perspectiva, “Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de

sua ‘ad-miração’, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, ‘re-ad-mira’ a ‘ad-

miração’ que antes fez, na ‘ad-miração’ que fazem os educandos” (FREIRE, 1988, p. 69 –

grifos nossos).

No dizer de Freire, criação e recriação humanas, todo agir do homem só é capaz de

transformar por meio de práticas criticizantes, num processo simbiótico de fazeres entre atores

que se inicia com o (re-)fazimento do caminho, desconstruindo-construindo-reconstruindo

permanente e dialeticamente, com o cuidado de não repeti-lo nem repetir-se para evitar

reacionarismos.

Para tanto, há que buscar, solidariamente, a análise da realidade, tendo como ponto de

partida o mesmo alvo, o objeto a ser investigado, para efetivar as mudanças necessárias à

construção de uma sociedade justa, como resultado da experiência de seus protagonistas. Dito

de outra forma, é preciso que se construa um discurso decorrente dos questionamentos do eu e,

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principalmente, do não-eu, o outro. Evidencia essa prática o trabalho de elaboração discursiva

freiriano.

O pensador pernambucano toma o verbo “admirar” – que denota o ato de contemplar

algo ou alguém prazerosamente, ou ter em conta o que lhe é de interesse, causa impacto ou

surpreende – e, trabalhando a palavra, vai esculpindo a forma adequada para conseguir o efeito

de sentido necessário à prática solidário-libertadora, que só se consigna pela superação das

contradições, mediatizada pelo objeto analisado. Permitimo-nos, aqui, a redundância,

chamando tal prática de solidário-dialética.

Freire inicia um jogo morfossintático-semântico com “admirar”, partindo da análise

estrutural dos elementos que o compõem (prefixo e radical), em seu significado original, ou

melhor, dos elementos que provocam a admiração (o êxtase decorrente de determinado feito).

Toma a raiz da palavra – mirar –, que pressupõe um objeto mirado (o não-eu em sua prática

reflexiva), observado atentamente, e lhe acrescenta o prefixo ad-, que significa junto,

contíguo, para conotar o sentido crítico que deve nortear o agir do educador e, porque não, a

prática pedagógica.

Convém ressaltar em nossa análise do termo “admirar” que seu substantivo

“admiração”, termo comum que nomeia a ação denotada pelo verbo por meio do acréscimo do

sufixo -ção, adquire, no processo de elaboração freiriano, teor neológico quando se trata da

produção primeira da forma de sentido causativo miração, que nos parece mais coerente com

o discurso de Freire de cunho ideal-epistemológico, que traz o movimento permanente como

leitmotiv de toda prática pedagógica.

Nessa perspectiva, acreditamos que o patrono da educação tenha pensado na forma

“mirar”, aglutinando a ela o substantivo “ação” para enfatizar tal prática, que é processual,

pois parte, no trecho citado, da “ad-miração”58 do educador, que traduz seu agir reflexivo

sobre o objeto de estudo, passa pelo estágio de “re-ad-mirar”, agora acrescentando ao verbo

ad-mirar o prefixo re-, hifenizado, o que pressupõe sua retomada consciente da análise crítica

de uma realidade feita em ato – a “‘ad-miração’ que antes fez”, – para conotar a ideia de

58 As aspas foram utilizadas por Freire para reforçar ainda mais a carga significativa do termo.

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respeito e reconhecimento do educador pelos saberes do outro – “na ‘ad-miração’ que fazem

os educandos” –, comungando com ele os desafios postos e buscando sua superação.

Nesse processo de reavaliação permanente de determinada realidade-mundo estão

educador e educandos como sujeitos críticos em permanente diálogo, o que caracteriza uma

situação gnosiológica em que “[...] o papel do educador problematizador é proporcionar, com

os educandos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da doxa pelo

verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do logos” (FREIRE, 1988, p. 69-70).

Como a simples imersão no objeto reduz o ângulo de observação, e mais: a

impossibilidade de estabelecer relações adequadas com o contexto mundo, diminuindo a

compreensão dinâmica da realidade, ao hifenizar os prefixos, Freire deixa clara sua intenção

de demonstrar a necessidade de observação dos fatos a distância para ampliar a visão e

aprofundar a análise desse contexto. Essa prática leva não só a conhecer, de fato, o objeto, mas

também, e principalmente, a reconhecer o caráter dinâmico do conhecimento pela percepção

de sua incompletude, de seu inacabamento como processo. Esse reconhecimento se dá pelo

pensar, (re-)pensar o agir e o objeto (re-)conhecido bem como leva educador e educandos a

agirem, solidariamente, sobre e com ele em sua relação com a totalidade. E aqui, ressaltamos,

está o eixo norteador que deve perpassar as ações socioculturais transformadoras do contexto

mundo: o olhar criticamente os fatos, descobrindo em que medida se encontram inter-

relacionados com a totalidade.

O discurso de Freire se destaca não só por sua relevância epistemológica, mas também

pela contribuição à Língua Portuguesa no que se refere à semiologia, pois as criações

linguísticas do pensador da educação são, indiscutivelmente, um glossário de signos bem

elaborados morfossintaticamente para a compreensão do processo enunciativo. Daí que

contribuem, sobremaneira, como rico aparato lexical para a investigação de especialistas no

estudo da linguagem e de seu funcionamento. Em nosso entendimento, para compreender

adequadamente a obra de Freire, é mister, antes de tudo, descobrir-lhe as sutilezas vocabulares

de efeito de sentido no contexto histórico-social em que foram produzidas para intentar

alcançar a complexidade de sua mensagem, ou seja, levando-se em consideração o momento

em que o discurso foi feito, as causas que o determinaram e o objetivo a ser atingido.

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Todo o conteúdo da construção discursiva freiriana requer, para ser deslindado, que se

faça paralelamente a leitura adequada da realidade-mundo por ele registrada, pois a leitura da

palavra e da realidade são indissociáveis e estão em processo. Portanto, a palavra criada

resgata a vitalidade da linguagem processual e traduz o espírito de mudança que deve permear

toda a discussão da realidade transformada e em permanente transformação.

Como defendia o repensar a educação e, consequentemente, a escola como ambiente de

interação, de discussão e rediscussão da realidade e, sobretudo, de formação de sujeitos

conscientes e capazes de redefinir o rumo socioeconômico-político do Estado e de seus

nacionais, viu-se obrigado a produzir um discurso que desse conta de questionar as práticas

opressoras, cujos representantes se prestavam apenas a defender a ideologia da dominação.

Nesse seu intento, impulsionado pelo inconformismo e pela indignação, desafiou-nos a

levar avante, sem repeti-lo, o projeto de reinvenção da escola, de ressignificação da prática

educativa, alertando-nos reiteradas vezes para o perigo de práticas reacionárias de manutenção

do status quo e promotoras da letargia das massas.

Como um de seus ensinamentos está a necessidade de conjugar saberes pela

problematização de todas as relações entre homem e mundo, em seu estar nele e com ele. Com

um discurso político-epistemológico, Freire (1975, p. 83 – grifos nossos) assevera sua posição

de partidário defensor da educação libertadora:

Dêste modo, a concepção educativa que defendemos e que estamos sumàriamente

colocando como um conteúdo problemático aos possíveis leitores dêste estudo, gira

em tôrno da problematização do homem-mundo. Não em tôrno da

problematização do homem isolado do mundo nem da dêste sem êle, mas de

relações indicotomizáveis que se estabelecem entre ambos.

Para iniciar a conclusão de nossa investigação das construções freirianas à luz dos

conceitos morfossintático-semânticos, analisamos, a seguir, os termos em destaque no trecho

acima:

Em “problematização”, trabalha com o verbo problematizar, cujo significado é

questionar o que está posto, o que se concebeu como axioma, acrescentando a ele não o

simples sufixo -ção formador de substantivo, e sim um termo que traz em si a substância

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nominadora do agir – a ação – que, aglutinada ao tema verbal, produz problematização para

conotá-lo com o sentido dialético na relação com o contexto.

Esse jogo morfossintático-semântico objetiva propor ao homem refletir sobre sua teoria

e sua prática, dissociando-as do que a ele foi preestabelecido como verdade, incitando-o a

impor-se desafios e a aceitá-los como forma de transformar a realidade-mundo.

Quanto ao adjetivo “indicotomizáveis”, sua criação corrobora a necessidade de

fundamentar as relações que não podem bipartir-se num e de um contexto como se dele

estivessem dissociadas ou dissociadas entre si, e sim que conotam um processo de contradição

entre dois polos de uma mesma realidade. Daí se justifica o termo criado por Freire pelo

acréscimo do prefixo in-, aqui emprestando ao adjetivo “dicotomizável” – de dicotomizar mais

-vel, também freiriano, que significa passível de separar, como se fossem dois contrários

incomunicáveis – o sentido de interioridade, de movimento para dentro, para indicar relações

dialógicas, portanto dialéticas, que indicam o confronto de dois pontos de vista sobre o mesmo

objeto.

Essa força semântica emprestada por Freire ao adjetivo “indicotomizável” pelo

trabalho de intervenção morfossintática no verbo dicotomizar, para conferir precisão, rigor e

coerência a sua mensagem, encontra eco nesta passagem de Pedagogia da autonomia

(FREIRE, 2002, p. 31 – grifos nossos):

Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que

estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar,

aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em

que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a

produção do conhecimento ainda não existente. A “dodiscência” – docência-

discência – e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes

momentos do ciclo gnosiológico.

Não há, pois, como dissociar teoria e prática, docência e discência, dois polos de um

processo, de uma realidade educacional que, dialeticamente, envolve o debate entre

interlocutores, agentes comprometidos com a busca do trabalhar o conhecimento pela práxis

reflexiva. Essa orquestração dá o tom da educação libertadora, pois agrega sujeitos que

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procuram compreender e superar, solidariamente, os desafios que lhes são postos pela

realidade vivenciada.

Freire se vale da composição por aglutinação para formá-la, enfatizando o que

acreditava ser o processo de ensino e aprendizagem: o ato de aprender na ação de ensinar, isto

é, a docência precedida pela discência, pois, se os homens ensinam e aprendem em comunhão,

primeiro aprendem a aprender para, em seguida, ensinar. Como as ações se interpenetram num

movimento ininterrupto, aprendem ensinando. Daí ser a “dodiscência” um fenômeno

gnosiológico de produção do conhecimento, em que educador e educandos, mediados pelo

desvelamento de uma realidade em transformação, trazem para o espaço educacional seus

saberes, sua experiência, amalgamando teoria e prática num processo dialético que lhes

permitirá superar as contradições e avançar na construção da pirâmide educacional libertadora.

Nessa perspectiva, por que Freire não registrou “disdocência”, uma vez que o ato de

aprender precede o de ensinar? Por opção política, pois, à época, muitos críticos céticos que se

opunham à ideologia freiriana diziam que Freire era partidário do fim da escola e, portanto, da

docência.

Na criação de “dodiscência”, num jogo morfossintático-semântico, trabalha o aspecto

morfológico da palavra, ou seja, sua forma. Preocupou-se, aqui, com a construção dos termos

que lhe dessem o todo estrutural (aspecto sintático) para estabelecer a relação de sentido

necessária ao atingimento de seu propósito: anunciar o como fazer a boa educação,

denunciando subliminarmente, nesse neologismo, as contradições da educação tradicional. Tal

construção ganharia corpo de natureza semântica no contexto e, segundo ele, evitaria

polêmica, já que o prefixo de- foi posto em destaque na junção dos dois termos que compõem

o neologismo. No entanto, sua preocupação era fazer da escola um espaço de mediação, em

que os atores – educadores e educandos –, em relação, praticassem a verdadeira educação.

Nesta análise, ressalte-se também que o prefixo dis-, em primeiro plano, poderia

representar a distorção da docência, o que, para nós, seria mais apropriado, em razão da

proposta de Freire, pois o verdadeiro mestre é aquele que “de repente” aprende e tem

consciência de sua aprendizagem no ato de ensinar. Por isso, não há nada de equivocado no

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que leciona o pensador da educação: não se trata de negar a escola, e sim de dotá-la de seu

verdadeiro significado.

Esse é o aspecto contraditório do homem que o faz refletir sobre o objeto com o qual se

relaciona e pelo qual é mediatizado, levando-o a superar as contradições do mesmo objeto em

permanente diálogo do eu com o não-eu.

Nessa caminhada dialética, é mister retomar Educação e atualidade brasileira, em que

Freire articula seu discurso de denúncia-anúncio para fundamentar o processo educativo que

pretende seja reformulado para levar à construção do Estado democrático nacional e mesmo

da democracia como valor social e político. Conclama a necessidade de tratar o outro como

sujeito de seu tempo, fazê-lo participar nas discussões, como crítico, imergindo nas questões

nacionais como agente produtivo, consciente de seu fazer história: “O de que precisamos, na

verdade, cada vez mais, é acreditar no povo e ajudá-lo a crescer na linha incoercível de nossa

democratização, ligada a uma série de fatos novos, entre os quais a transitivação de sua

consciência” (FREIRE, 2001, p. 19).

E continua, lecionando que toda sorte de assistencialismos promovidos pelas

instituições busca ignorar a situação socioeconômico-política com expedientes não

recomendáveis que aliciam a massa trabalhadora pela distribuição de benefícios que traduzem

a ideologia da dominação: “Acreditamos mesmo que parte desta ação ‘assistencializadora’, a

comprometer a marcha de nossa democratização, resulte de uma destorcida59 visão da

problemática nacional” (op. cit. – grifo nosso). “Destorcida”, aqui, parece-nos, não se trata de

um simples jogo de palavras de sentido associado com “distorcida” como se fossem

sinônimos, e sim de um trabalho bem elaborado do pensador pernambucano para denunciar “o

mascaramento” da real situação socioeconômico-político-educacional do País.

O poder, com suas ações assistencializadoras, anestesia a massa, utilizando-se do

mágico, do encantamento sedutor de alguns projetos que camuflam a desestruturação da

sociedade brasileira, ou seja, depois da “torcedura”, num processo de falso desfazimento da

59 Embora em Educação e atualidade brasileira, publicada em 2001, encontremos “distorcida”, nos originais de

Paulo Freire o termo aparece grafado com e, o que nos parece ser a grafia mais adequada para a análise que

entendemos seja a pretendida pelo autor.

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situação caótica – a “oferta” de leis que pretendem promover a igualdade dos diferentes sem

alterar as causas dessas diferenças, a política assistencialista que estabelece relação de

dependência das ações governamentais, a criação de uma imagem de educação universal e

igualitária que estabelece, na prática, uma escola “suficiente” para os pobres, audiências

públicas que congregam técnicos e políticos, mas não ouvem de fato o povo... –, “destorcem-

na”, o que significa fazê-la voltar ao que era para manter o equilíbrio político-ideológico.

Para este trabalho investigativo do discurso freiriano, recorremos ao depoimento de

Romão sobre seu trabalho de acompanhamento e análise das obras e atividades educacionais

do pensador da educação, registrado na tese de Mafra (2007, p. 86), e que aqui reproduzimos:

Se há pessoas que ficaram espreitando, vigiando Paulo Freire, para pegá-lo numa

contradição entre o que falava e escrevia e o que fazia, entre elas, eu fui um dos mais

acirrados. Não sei por que razão, mas eu ficava como um adolescente, querendo

surpreender o Mestre em alguma contradição, ou melhor, em alguma incoerência,

porque julgava seus princípios tão dificilmente exeqüíveis, que eu ficava

imaginando:

– Não é possível, uma hora, ele acaba caindo em contradição.

[...] Raciocine e diga-me se é fácil alguém defender a dialética, dizer que está

convencido que o mundo e o próprio universo é organizado dialeticamente e, por

isso, deve aplicar a dialética em sua própria existência. Pois bem, nem aí, consegui

pegar Paulo Freire em incoerência. Imagine que, no auge do desespero (por ter

perdido a esposa Elza), alguém ainda pudesse escrever uma obra como Pedagogia da

esperança. Por outro lado, doente como estava, dependendo física e afetivamente de

outrem, como poderia alguém nessas condições, sem autonomia, produzir uma obra

como Pedagogia da autonomia? Finalmente, certamente porque a dialética, para ele,

não era a contradição entre duas coisas – como os dialéticos mais superficiais dizem

–, mas o choque dos contrários dentro da mesma coisa, seu esforço em Educação

como prática da liberdade em contrapor “distorção” e “destorção” (uma oposição

que é fundamental para se compreender a tese central da obra), e, não opor, de modo

mais fácil e do senso comum, “torção” e “distorção”, não seria porque ele estava

atrás de dois cognatos perfeitos (até mesmo confundíveis na pronúncia), para

demonstrar ao leitor a dialética entre a distorção que os opressores fazem na

consciência e na humanidade dos oprimidos e que ela só pode ser destorcida pela

educação emancipadora? (ROMÃO, 2006, grifos do autor).

Temos a convicção de que não só em Educação como prática da liberdade, mas

também, e principalmente, na obra em questão Freire tenha utilizado “destorcer” em sentido

diverso de “distorcer” com o propósito de demonstrar a clara manipulação dos trabalhadores

pelas instituições para transformá-los em massa de manobra que se dispõe a cerrar fileiras em

defesa das práticas institucionalizadas, transformadas em “falsas conquistas” porque, à época,

parecia-lhes ser uma forma de fazer-se ouvir como se estivessem a participar da organização

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social. O trecho seguinte de Educação e realidade brasileira (FREIRE, 2001, p. 19 – grifo

nosso) corrobora nossas observações:

Parece ter se situado nesta destorcida60 visão de nossa problemática, a reação, às

vezes até obstinada, de servidores, de industriais e mesmo de operários, contra

tentativa nossa de substituir o “papainoelismo” da instituição, de que derivava a

gratuidade da assistência prestada, por cobrança de taxas que fosse cada vez mais

ligando o operário à instituição. Mais ainda, e ao lado disto – por cobrança de taxas

que, arbitradas em estudos conjuntos, dos clubes operários ligados ao SESI e do

próprio SESI, fosse dando àqueles margem para ampliar sua “dialogação” ou a sua

“parlamentarização”. E isto porque, parte da arrecadação da cobrança deveria ficar

com os clubes, que a movimentariam em projetos com que exercitassem o

autogoverno.

Nessa toada, não resta dúvida do jogo propositado de Freire, pois em outro trecho

retoma “destorcer” para perscrutar o ludíbrio da consciência que condena o homem ao

mutismo e lhe tira a possibilidade de avançar:

Merecem, na verdade, meditação de nossa parte, que estamos participando de uma

fase sui generis da vida nacional, já lucidamente anotada pelo sociólogo brasileiro

Guerreiro Ramos (1957: 22), as relações entre massificação e a consciência

transitivo-ingênua que, se destorcida61 do sentido de sua promoção à consciência

transitivo-crítica, resvala para posições mais perigosamente mágicas e míticas do que

o revestimento mágico, característico da consciência intransitiva (FREIRE, 2001, p.

37 – grifo nosso).

A torcedura da consciência transitivo-ingênua como elemento de transformação da

forma de pensar e agir leva à busca de nova situação pelo aspecto transitivo do próprio

homem, que poderá desaguar no desenvolvimento crítico do indivíduo como ser de ação. No

entanto, alerta Freire que, no desfazimento desse processo, ou seja, na volta ao estado original

da consciência, o transitivo-ingênuo, tem-se o acomodamento.

Para Freire, o grande perigo está em manter-se a atual estrutura socioeconômico-

político-educacional, que não permite a ingerência dos únicos capazes de produzir as

demandas – os oprimidos – que levem à reformulação da sociedade. No pensar do patrono da

educação, enquanto houver políticas domesticadoras de consciências e a manipulação do

homem em prol da manutenção dessas políticas assistencialistas, teremos distorções que

60 Esta é a grafia encontrada no original de Paulo Freire. 61 Esta é a grafia encontrada no original de Paulo Freire.

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poderão condenar o homem a mero elemento utilitário em uma linha de produção, tirando dele

a possibilidade de ser mais.

Esse incompromisso com a existência humana abala as raízes democráticas. Nesse

sentido, as palavras de Freire (2001, p. 37-38 – grifos nossos) nos levam à reflexão: “A

consciência transitivo-ingênua tanto pode evoluir para a transitivo-crítica, característica da

mentalidade mais legitimamente democrática, quanto pode distorcer para uma forma

rebaixativa, ostensivamente desumanizada, característica da massificação.” E aqui está

“distorcer” em seu sentido literal. Portanto, podemos afirmar e talvez responder à indagação

deixada no depoimento de Romão sobre o desfazimento dessa distorção pelos opressores na

consciência e na humanidade dos oprimidos, asseverando que só se produzirá a verdadeira

revolução democrática com a educação emancipadora que proporcione aos atores a

“destorção” dessa distorção promovida pelas instituições brasileiras em todos os níveis.

Essas observações freirianas sobre “destorcer” encontram eco em trecho de Educação

como prática da liberdade (1987, p. 62 – grifos nossos), por sua vez retomado de Educação e

realidade brasileira62 (2001, p. 37), agora como revisita crítica a seus escritos. Ela vem

pontuada pelo verbo “merecer” no pretérito e pela substituição de sui generis, em “[...] uma

fase sui generis da vida nacional [...]”, por “intensamente problemática”, o que corrobora

nossa hipótese de que ele utilizou o termo distorção para demonstrar que as contradições estão

entre dois polos de uma mesma realidade:

Merecia, na verdade, meditação de nossa parte, que estávamos participando de uma

fase intensamente problemática da vida brasileira, as relações entre a massificação e

a consciência transitivo-ingênua que, se destorcida no sentido de sua promoção à

consciência transitivo-crítica resvalaria para posições mais perigosamente míticas do

que o teor mágico, característico da consciência intransitiva. Neste sentido, a

distorção que conduz à massificação implica num incompromisso maior ainda com a

existência do que o observado na intransitividade.

Com a análise do jogo semântico que Freire faz com “destorcer” e “distorcer”, numa

articulação morfossintática, em que utiliza os prefixos des- e dis- como aportes significativos

62 Importante esclarecer que a obra em questão é a tese de Freire, apresentada, em 1959, como condição para

concorrer à cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco. Organizada por

José Eustáquio Romão, foi levada à publicação em 2001.

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de duas situações dialéticas de dada realidade para conformar duas visões que se confrontam

ideologicamente, com o fito de demarcar interesses distintos sobre o objeto analisado,

esperamos ter contribuído no aclaramento da intenção do pensador pernambucano em deixar

para nós, educadores, o legado de uma educação emancipadora. Seu objetivo é fazer-nos

refletir e ressignificar permanentemente os ideais epistemológicos de reconstrução social que

respeita e reconhece os diferentes e as diferenças como alicerce de transformação da

realidade-mundo.

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ÚLTIMAS INSPIRAÇÕES

A conclusão desta tese traduz todo o esforço em torno de uma jornada instigante que

começou com meu trabalho como educador nos anos setenta do século passado. À época,

submetia-me aos ditames de uma escola tradicional que me incomodava e angustiava, o que

me fazia repensar a prática educacional.

O formato da relação professor e aluno no modelo de ensino-aprendizagem que se

impunha na escola levava-me à insatisfação e à necessidade de buscar alternativas que

respondessem a meus questionamentos e aos dos alunos: Por que depositar neles teorias que

deveriam ser digeridas e devolvidas em forma de respostas a questionamentos impostos e

dirigidos de acordo com os programas, disciplinas e critérios de avaliação que meus superiores

julgavam satisfatórios à formação daqueles espectadores? Por que deveria vê-los como

pessoas à espera de um processo “mágico” que os levasse a superar a barreira da “ignorância

intelectual”? Só evasivas durante as reuniões pedagógicas preenchiam os espaços de

discussão: nossos alunos, diziam, teriam de receber conteúdos que alargassem o conhecimento

do básico para que pudessem seguir em frente.

No meu entender, durante as aulas, essa prática opressora só fazia criar o

descontentamento entre os alunos que, verdade seja dita, correspondiam ao que lhes era

proposto, pois apresentavam resultados satisfatórios na maior parte das disciplinas. No

entanto, algo me incomodava: o medo que traziam estampado no rosto, em razão das “práticas

pedagógicas” coercitivas usadas para punir os que não seguiam as determinações escolares. O

que muitos alunos não entendiam era por que tudo aquilo deveria fazer parte da aprendizagem,

já que muitos dos conteúdos não se relacionavam com sua realidade de vida. Só sabiam que

deveriam obedecer sem questionar, e que se não o fizessem seriam afastados dos grupos até

pelos colegas que, “bem orientados”, serviam de porta-vozes de um poder opressor,

comungando com ele uma política de seleção de jovens “capazes” de atestar o cumprimento

de metas educacionais.

Nessa jornada de desconforto, experienciada por mim, buscava alternativas que

pudessem ajudar a transformar a realidade. Procurava dialogar com meus alunos e incitá-los

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ao questionamento, trazendo para a sala de aula situações concretas vivenciadas por eles.

Instigado por alguns textos de Freire e pelos livros Deixem-me ser eu (1968), de José

Hamilton Ribeiro, e A escola renovada (1972), do prof. Aldo Perracini – diretor da Escola

Vocacional Luís Antônio Machado63 –, que tivera a oportunidade de conhecer Freire e com ele

discutir educação, descobri que muito poderia ser feito por uma educação emancipadora.

Nestas observações finais, não pretendo com estas notações preliminares

descaracterizar o formato conclusivo que compõe todo trabalho acadêmico, mas iniciar as

conclusões pelo acreditar no ideal epistemológico freiriano de fazer uma educação

emancipadora, tendo nas criações linguísticas utilizadas em seu discurso a força necessária

para direcionar o caminho da transformação.

Como docente que trabalha as questões linguísticas e que encontra um pensador

revolucionário em suas propostas educacionais, passível de bom encaminhamento de minhas

angústias, e que ainda se vale da palavra para precisar criativamente suas propostas, pareceu-

me irrecusável o convite que a vida apresentava: mergulhar na apropriação dos significados e

dos significantes de Paulo Freire.

As experiências em sala de aula, os desafios que me foram feitos por meu orientador

para explicar o porquê de o pensador pernambucano ter feito a opção pelo uso de expressões

“inusuais” no discurso acadêmico e os estudos no mestrado incitaram ainda mais minha

curiosidade e prazer a um novo caminhar: o aprofundamento da pesquisa sobre o discurso

freiriano, pontuando as relações de sentido que se estabelecem entre suas criações – os

neologismos – e que demarcam a intenção do patrono da educação em produzir o efeito

desejado no contexto para o qual foram pensados.

Nessa perspectiva, os comentários postos como preâmbulo destas considerações

procuram demonstrar a importância das motivações deste estudo e que me levaram a continuar

a investigação.

63 Escola em que tive oportunidade de trabalhar e desenvolver projetos de renovação educacional nos moldes

freirianos.

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A categoria “Neologismo” é fundamental para compreender, em profundidade, a

intenção de Paulo Freire de perscrutar a relação de opressão que perpassa toda a existência

humana e entrava a possibilidade de transformar os educandos, e assim mudar o mundo. Tais

construções, para mim, nada mais são que as categorias praxiológicas de Freire, pois foram

criadas ao longo de sua caminhada, em ato, comprometida com a luta pela libertação dos

oprimidos.

Desde o início, vê-se um pensador preocupado, política e ideologicamente, em

desconstruir a pirâmide das injustiças sociais que só faz negar ao homem o direito de construir

sua história. Para isso, com a maestria de um artífice das palavras, foi elaborando seu discurso-

alerta com acurácia e rigor próprios de quem sabia aonde deveria chegar. Penso ter

confirmado, nesta tese, que esse expediente usado por Freire tinha endereço certo: inibir

ilações de leitores e pesquisadores que levassem a confundir ou deturpar a entendimento da

intenção do autor. Mais do que ser original, pois não lhe importava o novidadeiro, e sim o

fazer-se ouvir como baluarte de uma causa que poderia transformar a sociedade, instigou-nos a

repensar o modelo de (des)educação que, por décadas, contribuiu para a involução do ser

humano, tirando dele a possibilidade de agir como sujeito no e com o mundo.

Em Educação e atualidade brasileira (2001), Freire deixou clara sua disposição de

revolucionar a educação, imergindo, com sua teoria e prática, na realidade dos verdadeiros

atores sociais – os oprimidos –, fazendo deles o leitmotiv de sua obra de abrangência

sociopolítico-pedagógica.

Como queria ele que não o repetíssemos, e sim tomássemos por base seus

ensinamentos para reinventá-lo, dediquei-me, nesta tese, ao trabalho de análise das

construções neológicas, por julgar tais categorias imprescindíveis para compreender, em

profundidade, seu discurso e o porquê de sua necessidade em criar um sem-número64 de

conceitos-chave65 para dar concretude a sua mensagem. Há, assim, a esperança de

corresponder às aspirações freirianas e também, no bojo da prática educacional, de contribuir

64 Mantive o hífen por julgar despropositada a alteração (que determinou fosse ele omitido do termo em questão)

promovida pela reforma ortográfica de 2008. 65 Optei por essa forma, por serem os neologismos dotados de força semântica significativa para deslindar a

intenção do discurso freiriano.

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para os estudos de outros pesquisadores sobre o descortino da complexidade do discurso de

Freire. Nessa perspectiva, muito se poderá fazer para aclarar seus conceitos que favoreçam o

processo de emancipação do homem.

Mais do que pensar em marcar seu nome na história pela originalidade discursiva,

constatei que o patrono da educação precisava de termos bem postos para conseguir o efeito

desejado. Prova disso é “dialogação”, categoria primeira de sua lavra, para exprimir o

conceito-base de sua obra: a práxis dialética, única forma capaz de iniciar as tratativas com os

agentes da transformação educacional, num momento em que se pregava às “subclasses

humanas”66 o “evangelho” da salvação pautado em discursos populistas de alheamento

político-existencial.

Constatei que a determinação de Freire em elaborar um discurso de repercussão tinha

por foco densificar o conteúdo significativo de suas mensagens. Apesar de sempre direcionar

sua atenção para encontrar a forma perfeita de dizer o que pensava e registrar, com precisão,

sua práxis, valeu-se dos artifícios linguísticos para produzir o efeito de sentido intencionado e

garantir força suficiente a sua mensagem de anúncio-denúncia das políticas enviesadas de um

poder avassalador, maquilado pelos benefícios assistencializadores. E, dessa forma, buscava

comprovar que teoria e prática não podem ser vistas como elementos equidistantes de uma

realidade, pilastras de sustentação de pontos de vista individualizados.

Em sua obra, vai tecendo o discurso para registrar novas situações que envolvem as

práticas opressoras e promovem a desfaçatez com que se trata a massa trabalhadora. Verifiquei

que, pela palavra bem posta, Freire traduz o ludíbrio ideológico das instituições para alienar o

homem e fazer dele copartícipe da manutenção do poder. A reforçar seu propósito político-

ideológico de denúncia contra o sistema imperialista de dominação, cujo objetivo era

descaracterizar qualquer movimento de ameaça ao poder instituído, estão algumas de suas

criações mais consistentes: assistencialismo, assistencialistas, assistencializar,

assistencialização e assistencializador, que traduzem, em grande medida, a intenção das

“castas” de tecnocratas de manter o desserviço prestado à sociedade como um todo, com ações

dotadas de parternalismo “barato”.

66 Assim eram vistos os que serviam de massa de manobra ao poder avassalador.

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Em seu discurso, utiliza-se de algumas construções geradoras de sentido, entre as quais

“concepção bancária”, “visão bancária”, “educação bancária” e “educador bancário”. Quis ele

reforçar o aspecto espúrio de uma prática educacional de castração de consciências que desde

sempre condenou ao mutismo os atores sociais, por só atender aos propósitos escusos de um

poder opressor, para o qual o outro era um ser que deveria ser curado de uma “enfermidade”

para reintegrar-se à sociedade.

Nas palavras do pensador da educação, o que faziam os atores era coisificar o homem,

absolutizando sua ignorância pela alienação, apesar de promoverem “espetáculos” mágicos de

dissimulação do processo de opressão. Tais artifícios, para ele, nada mais eram que ações

vilipendiadoras das massas, pois se travestiam de ideais humanitários, e não humanizantes,

que acentuavam ainda mais as mazelas sociais.

Freire, nesse registro dos fatos vivenciados por ele como ator engajado nas causas dos

oprimidos, vai formatando sua mensagem com rigor expressivo de conotação político-

ideológica, utilizando expressões linguísticas bem elaboradas como elementos fundantes de

sua práxis. Tentei demonstrar nesta pesquisa que Freire produziu com maestria, como

contraponto às práticas que tanto combateu, um sem-número de termos que deram vigor

epistemológico a seu discurso.

Penso ter comprovado que todo o texto traz a marca de um pensador preocupado em

afirmar que a educação emancipadora só se consigna pela superação das contradições num

processo dialógico, desde que consigamos problematizar o que trazemos como verdade para

confirmá-la ou refutá-la. Em meu entendimento, este é um ideal calcado nas práticas dialéticas

que Freire deixa como ensinamento a todos nós, educadores e pesquisadores, que acreditamos

ser possível fazer da educação a revolução necessária – embora não suficiente – à

transformação da sociedade.

Sabia ele que só se consignaria tal propósito com um discurso forte, persuasivo e de

convencimento, que fosse capaz de produzir nas classes menos favorecidas inconformismo e

indignação ante os desmandos do poder que só fazia atender aos interesses daqueles que

pretendiam manter-se em situação privilegiada na pirâmide social. Buscava, nessa produção

intelectual, provocar a esfera da dominação e levá-la a repensar as práticas, além de reunir

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intelectuais que se dispusessem a ressignificar o discurso acadêmico-proselitista, pois, no seu

entendimento, apesar de afirmarem a opção por reflexões sobre as classes menos favorecidas,

delas se distanciavam com uma verborragia que em nada contribuía para concretizar os ideais

de transformação social. Nesse discurso não se levavam em consideração ações de valorização

dos saberes de experiência feitos, apenas os que se julgava importantes do ponto de vista do

discurso competente – seja o da academia, seja o do poder – para dar conta de resolver as

questões pontuadas pelos especialistas em educação.

Convenci-me, com este trabalho de investigação, de que Freire nos legou uma obra de

valor sociolinguístico-epistemológico inquestionável, pois mais do que criar palavras para dar

conta de registrar, com precisão, sua fala, traduziu toda a angústia e indignação das massas

populares. Buscava, desse modo, demonstrar como é possível fazê-lo sem abandonar o rigor

científico que toda pesquisa preocupada em deslindar e explicar os fatos exige.

Principalmente no terceiro e quarto capítulos desta tese, não medi esforços para

demonstrar que os neologismos e expressões neológicas por ele criados foram pensados

“milimetricamente” para conformar seu discurso-alerta. Melhor, sua denúncia-anúncio

buscava provocar discussões como verdadeiro desafio ao conhecimento teórico instituído nos

bancos acadêmicos, pondo em xeque os saberes livrescos, transformados em manuais de

orientação improdutivos. Prova desse trabalho freiriano de elaboração discursiva está no

aprofundamento de minha análise sobre suas construções, estudando morfossintática e

semanticamente suas criações no contexto em que foram produzidas. Em consequência,

defendo que Freire produziu uma nova pedagogia: a do neologismo, como um projeto de

escrita que pretendia situar sua prática engajada com o resgate do oprimido.

Todo esse complexo narrativo de Freire, em análise, fez-me compreender a dimensão

de seu pensamento e contribuiu, sobremaneira, para validar minhas hipóteses. Imergir no

universo freiriano levou-me a constatar que a palavra, na voz do pensador pernambucano, é

um instrumento de intervenção na realidade-mundo bem como sua explicação. Portanto, é um

ato político-ideológico que deve ser observado como força-motriz do pensamento

transformador.

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O desafio que me impus durante a pesquisa contribuiu, e muito, para desmistificar

algumas críticas que havia lido e ouvido sobre a obra freiriana. E mais, para confirmar não só

a visão estrábica de muitos no trato das teorias freirianas, mas também o descuido dos

revisores que se propuseram ao reexame das obras de Freire para atender às exigências dos

editores.

Quero alertar nestes acordes finais que, durante a pesquisa, depois de visitar as

primeiras edições das obras analisadas e alguns dos originais de Freire e compará-los com as

publicações atuais, encontrei distorções decorrentes da revisão feita pelas editoras, que

comprometem o trabalho de elaboração discursiva de nosso filósofo da educação, pois

desconstroem a essência simbólica de seu discurso, tirando-lhe o que de mais importante há:

todo o processo de construção-desconstrução-reconstrução da realidade pela revisita crítica à

prática cotidiana. É o que ocorre, por exemplo, na 10ª edição de Ação cultural para a

liberdade e outros escritos (2002), em que se omitiu a hifenização de “refaz”, nas páginas 20,

113 e 117, e de “admiração”, nas páginas 63, 65 e 78. Na 14ª edição, de 2011, além das

distorções mencionadas pela “hipercorreção” feita, encontrei “read-mirar” em lugar de “re-ad-

mirar”. Ressalte-se aqui que, para fundamentar estas considerações, consultei a primeira

edição (1976) da obra em questão e a 5ª (1981).

Em Educação como prática da liberdade, em sua 14ª edição, de 2011, tem-se outro

problema: o conceito de “destorcer” e “distorcer”, num jogo de palavras morfossintático-

semântico utilizado por Freire para fundamentar a prática dialética, foi desconstruído pela

hipercorreção, pois, com a revisão, o primeiro termo foi substituído pelo segundo, o que

descaracteriza o teor do discurso freiriano. Esse descuido também se constatou em Educação e

realidade brasileira (2001). Tais “descuidos” demonstram a relevância epistemológica e

pedagógica deste trabalho, dado que, como avaliei ao longo do texto, Freire era rigoroso na

teorização e na prática, e sua palavra, vale dizer, suas construções linguísticas tinham

exatamente esse objetivo.

Minhas inspirações não têm a pretensão de finalizar as discussões sobre a obra

freiriana, pois, por mais que se procure aprofundar a investigação sobre o pensamento de

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nosso filósofo da educação, mais imperioso se fará “re-fazer” a caminhada em busca da

compreensão de um pensador de tal magnitude.

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ANEXO

AS CONSTRUÇÕES FREIRIANAS

1. Neologismos em Educação e atualidade brasileira

Em Educação e atualidade brasileira (200167), encontramos:

1) Em realidade, não nos será possível nenhum verdadeiro equacionamento de nossos

problemas, com vistas a soluções imediatas ou a longo prazo, sem nos pormos em

relação de organicidade com nossa contextura histórico-cultural. Relação de

organicidade que nos ponha imersos na nossa realidade e de que emerjamos

criticamente conscientes (2001, p. 9).

2) A relação de organicidade a que nos referimos implica a posição cada vez mais

conscientemente crítica do homem diante de seu contexto para que nele possa

interferir. Não há organicidade na superposição, em que existe a possibilidade de

ação instrumental (2001, p. 11).

3) Vale reafirmar o sentido da organicidade da educação como algo indispensável à sua

validade. A sua instrumentalidade (2001, p. 47).

4) A inorganicidade de nossa escola e de nossa educação, em geral, vem se fazendo

antes de tudo, por não atenderem às exigências gritantes de dois ângulos de nossa

atualidade: o da democratização crescente do país, com a promoção automática da

consciência intransitiva para a transitivo-ingênua (2001, p. 47-48).

5) No campo educativo, este centralismo vem tendo conseqüências desastrosas. A mais

funesta, a que nos referiremos em capítulo adequado, é a que procede a enfatização

da inorganicidade de nosso processo educativo, que o vem fazendo retórico e

inadequado às linhas centrais da nova cultura que estamos vivendo no país (2001, p.

55).

67 Ano de publicação da obra, que foi escrita em 1959.

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6) O grande problema de nossa educação atual, o seu mais enfático problema, é o de sua

inadequacidade com o clima cultural que vem se alongando e tende a se alongar a

todo o país. É uma educação em grande parte, ou quase toda, fora do tempo e

superposta ao espaço ou aos espaços culturais do país. Daí a sua inorganicidade. A

sua ineficiência, contra que vem se levantando “criticamente” conscientes os Anísio

Teixeira, os Fernando de Azevedo, os Lourenço Filho, os Almeida Júnior, os Faria

Gois, os Artur Rios, os Roberto Moreira, para só citar estes (2001, p. 79).

7) Este centralismo, que envolve todo o nosso agir educativo, é antes uma posição

política. É uma atitude enraizada em nossas matrizes culturais. É a ele que se deve,

em grande parte, a inorganicidade de nossa educação. E isto porque é do centro que

se ditam as normas, distanciadas assim das realidades locais e regionais a que devem

se aplicar. Daí a necessidade, enfatizada por Anísio Teixeira, de uma reforma antes

de tudo política, de que nascesse a organicidade de nossa educação (2001, p. 84).

8) Diálogo da instituição com o operário, seu cliente, através de seus clubes recreativos e

educacionais. Dialogação que representava uma cada vez maior participação do

operário na vida da instituição a que se ligava e com que sobretudo aprenderia a ver a

coisa pública através de outras perspectivas (2001, p. 16).

9) Cada vez mais se amplia a “dialogação” entre esta unidade pedagógica e as famílias

de seus alunos, que, dia a dia, se sentem integradas na vida total da escola de seus

filhos. As informações, que dirigente e professoras desta unidade pedagógica nos dão

hoje, são de que seus padrões de disciplina, de aprendizagem, de vitalidade, de ordem

crescem sempre, à medida que a “dialogação” aumenta (2001, p. 23).

10) Na medida em que o homem amplia o seu poder de captação e de resposta às

sugestões e às questões que partem de sua circunstância e aumenta o seu poder de

“dialogação” não só com o outro homem, mas com o seu mundo, se transitiva. Seus

interesses e preocupações se alongam a esferas mais amplas do que à simples esfera

biologicamente vital (2001, p. 35).

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11) Por isso mesmo é que existir é um conceito dinâmico. Implica numa dialogação

eterna do homem com o homem, do homem com a circunstância. Do homem com o

seu Criador. Não há como se admitir o homem fora do diálogo. E não há diálogo

autêntico sem um mínimo de consciência transitiva. É essa dialogação do homem em

torno das sugestões e até com as sugestões que o faz histórico. [...] Ampliam-se os

horizontes. Responde-se mais abertamente aos estímulos. Mas se envolvem as

respostas de teor quase sempre mágico ou mítico. É a consciência do quase homem

massa, em quem a dialogação mais amplamente iniciada do que na fase anterior da

consciência intransitiva se deturpa e se transforma ou se distorce. [...] A dialogação

mais ampla do homem com o homem e do homem com a sua circunstância (2001, p.

35-36).

12) Quer dizer, não pode o povo passar da “assistencialização” – máximo de apatia, de

braços cruzados, com relação a vida pública – à “dialogação” ou à

“parlamentarização” – máximo de participação no processo – como se passa de uma

rua para a outra, às vezes, despreocupadamente, até. Já chamamos a atenção, na

discussão dos elementos de que vem se nutrindo nossa atualidade, para este aspecto –

o descompasso entre as nossas disposições mentais impermeavelmente

antidemocráticas, corporificadas na longa experiência “assitencializadora” em que

surgimos e crescemos e a cada vez maior necessidade que estamos tendo de interferir

no ritmo de nosso desenvolvimento. [...] Necessidade de participar, quer dizer, de

“dialogar”, de “parlamentarizar”, comprometida, porém, não é demais repetirmos, por

toda essa experiência de passividade, de “assistencialização”, que nos marca

profundamente (2001, p. 72).

13) Daí, para nós, o nosso grande problema estar em sabermos dar um passo. Dar o passo

da “assistencialização” para a “dialogação” (2001, p. 78).

14) Como as primárias, bacharelescas, verbosas, autoritárias, no sentido de que sua

posição é muito mais na linha da “assistencialização” de seus alunos-mestres, que na

da dialogação com eles (2001, p. 99).

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15) Educação democrática que fosse, portanto, um trabalho do homem com o homem e

nunca um trabalho verticalmente do homem sobre o homem ou assistencialistamente

do homem para o homem, sem ele (2001, p. 14).

16) Teríamos, então, de nos servir de toda a força democratizadora do diálogo, com que

evitássemos e superássemos o perigo do alongamento da assistência prestada ao

operário pela instituição, em assistencialismo. Assistencialismo, que deforma o

homem. Que “domestica” o homem (2001, p. 16).

17) Daí as relações do assistencialismo com a massificação, de que é a tempo efeito e

causa (2001, p. 16).

18) No assistencialismo não há responsabilidade. Não há decisão. Só há gestos que

revelam passividade e “domesticação” do homem. Gestos e atitudes (2001, p. 17).

19) Soluções assistencialistas que satisfazem tanto às tendências verticais daqueles que

“se proclamam democratas de uma estranha democracia sem povo que a atrapalhe e

perturbe (MENEZES, 1956: 126, apud FREIRE, 2001, p. 17).

20) Cada vez mais compreendemos menos a hipertrofia dessas instituições assistenciais,

perigosamente alongadas em assistencialistas, levando-as a resolver os problemas de

seus clientes, de seus “assistidos”, digamos melhor, quando resolvem, sem sua

colaboração (2001, p. 19).

21) Desta forma, necessitamos, no momento, não apenas de uma revisão de todo nosso

processo educativo, verbosamente assistencialista e por isso mesmo antidemocrático,

[...] (2001, p. 81).

22) Instituições envolvidas num doloroso paradoxo – o de “assistencializarem” os seus

clientes, esperando que fiquem de maior para que então, e só então, sejam eles

lançados em experiências democráticas (2001, p. 19).

23) Por outro lado, a superposição do processo educativo, a que igualmente nos

referiremos mais a vagar e que vem caracterizando o nosso agir educacional e

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fazendo-o verbalista, nocional, implica também numa atitude: a rigidamente

autoritária, perigosamente acrítica, vertical, “assistencializadora” (2001, p. 12).

24) Acreditamos mesmo que parte desta ação “assistencializadora”, a comprometer a

marcha de nossa democratização, resulte de uma destorcida visão da problemática

nacional. Não só por parte das instituições mas dos seus próprios clientes (2001, p.

19).

25) Uma educação pela participação, que desenvolva no homem brasileiro a sua

criticidade.

Ao invés disso, porém, o que continuamos, em regra, a fazer, é “assistencializar” o

homem nacional. “Assistencialização” pela escola. Pela família. Pelas instituições

assistenciais. Pelas empresas. “Assistencialização” particular e pública (2001, p. 51-

52).

26) Na verdade, o clima em que crescemos foi o oposto. Foi o da “assistencialização”

(2001, p. 28).

27) É precisamente isto, que é fundamental aos povos modernos, mas, sobretudo, àqueles

a que faltam, como ao nosso, experiências democráticas, ou complexos culturais

democráticos, que a “assistencialização” não faz (2001, p. 52).

28) Entre nós, tem acontecido exatamente o contrário. O alheamento do povo. O seu

quietismo. A sua “assistencialização”. De algum tempo para cá, na verdade, sendo

substituídos por anseios e ímpetos de participação (2001, p. 77).

29) Bacharelismo estimulante da palavra “fácil”. Do discurso verboso. Da

“assistencialização” educativa que, não há dúvida, é eminentemente antidemocrática.

(2001, p. 86).

30) A subestimação nacional e a alienação cultural. O nacionalismo e a auto-apropriação

nacional – autenticidade. Massificação. Assistencialização. Dialogação (2001, p.

100).

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31) Observe-se, mais uma vez, a conexão entre o procedimento “assistencializador” de

nossas escolas normais, fugindo ao máximo do preparo profissional de seu aluno e

deleitando-se com o verbalismo e o academicismo e a mentalidade inflexivelmente

antidemocrática (2001, p. 103).

32) Centralismo, verbalismo, antidialogação, autoritarismo, “assistencialização” são

manifestações de nossa “inexperiência democrática”, conformada em atitudes ou

disposições mentais, constituindo, tudo isso, um dos dados da nossa atualidade. Dos

mais fortes (2001, p. 13).

33) O seu grande perigo está na violência do seu antidiálogo que, impondo ao homem

mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento

ou a abertura de sua consciência que, nas democracias, há de ser cada vez mais crítica

(2001, p. 16).

34) Foi o da “assistencialização”. Foi da passividade do homem. Foi o do antidiálogo.

Foi o do mutismo. E, em clima como este, as disposições mentais que se formaram e

se consubstanciaram em verdadeiros complexos culturais teriam de ser as rigidamente

antidemocráticas (2001, p. 28).

2. Neologismos em Extensão ou comunicação?

Em Extensão ou comunicação?, desfilam:

1) Mais do que uma análise do trabalho como educador, do agrônomo equìvocamente

chamado “extensionista", o presente ensaio nos parece uma síntese muito profunda

do papel que Paulo Freire assinala à educação compreendida em sua perspectiva

verdadeira, que não é outra senão a de humanizar o homem na ação consciente que

êste deve fazer para transformar o mundo (1975, p. 11-12).

2) O autor pretende com êste estudo tentar uma análise global do trabalho do agrônomo,

chamado errôneamente "extensionista”, [...] (1975, p. 15).

3) Sua ação é, portanto, a do extensionista; a de quem estende algo até alguém. No caso

do extensionista agrícola, jamais se poderia pensar que a extensão que executa, que

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seu ato de estender, poderia ter o sentido que, nesta afirmação, tem o mesmo verbo:

Carlos estendeu suas mãos ao ar (1975, p. 20).

4) Pelo contrário, o que busca o extensionista não é estender suas mãos, mas seus

conhecimentos e suas técnicas. Em uma zona de reforma agrária, por exemplo, que

esteja sofrendo o fenômeno da erosão, que obstaculiza sua produtividade, a ação

extensionista se dirige diretamente até a área desgastando-se ou até os camponeses

que se encontram mediatizados pela realidade de sua região, na qual se verifica o

fenômeno da erosão (1975, p. 20).

5) Se sua ação extensionista se desse diretamente sôbre o fenômeno ou sôbre o desafio,

neste caso, da erosão, sem considerar sempre a presença humana dos camponeses, o

conceito de extensão, aplicado a sua ação, não teria sentido (1975, p. 20).

6) Poder-se-ia dizer, também, que isto é um purismo linguístico, incapaz de afetar a

essência mesma do que fazer extensionista (1975, p. 23).

7) Por mais que possamos acreditar nas intenções educativas do professor citado – e a

leitura do seu texto nos ajuda a crê-lo – não é possível, contudo, negar que ele

apresenta como uma tarefa fundamental do extensionista, “persuadir as populações

rurais a aceitar nossa propaganda” (1975, p. 23).

8) Talvez se diga que o trabalho do agrônomo educador, chamado extensionista, com o

trabalho do agrônomo em qualquer outro campo, escapa ao tipo de considerações e

análises que estamos fazendo neste estudo (1975, p. 26).

9) Este, sim, é o trabalho autêntico do agrônomo como educador, do agrônomo como

um especialista, que atua com outros homens sôbre a realidade que os mediatiza

(1975, p. 24).

10) Para isto, é necessário que, na situação educativa, educador e educando assumam o

papel de sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível que buscam

conhecer. A nada disto nos leva a pensar o conceito de extensão (1975, p. 28).

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11) O diálogo é o encontro amoroso dos homens que, mediatizados pelo mundo, o

“pronunciam”, isto é, o transformam, e, transformando-o, o humanizam para a

humanizaçâo de todos (1975, p. 43).

12) Todo ato de pensar exige um sujeito que pensa, um objeto pensado, que mediatiza o

primeiro sujeito do segundo, e a comunicação entre ambos, que se dá através de

signos linguísticos (1975, p. 66).

13) Esta co-participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação. O objeto,

por isto mesmo, não é a incidência terminativa do pensamento de um sujeito, mas o

mediatizador da comunicação (1975, p. 66).

14) Neste, a comunicação se verifica entre sujeitos sôbre algo que os mediatiza e que se

“oferece” a êles como um fato cognoscível (1975, p. 69).

15) Este algo, que mediatiza os sujeitos interlocutores, pode ser tanto um fato concreto (a

semeadura e suas técnicas, por exemplo), como um teorema matemático. Em ambos

os casos, a comunicação verdadeira não nos parece estar na exclusiva transferência ou

transmissão do conhecimento de um sujeito a outro, mas em sua co-participação no

ato de compreender a significação do significado. Esta é uma comunicação que se faz

crìticamente (1975, p. 69-70).

16) Educador-educando e educando-educador, no processo educativo libertador, são

ambos sujeitos cognoscentes diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam.

Poder-se-á dizer, e não têm sido poucas as vêzes que temos escutado: “Como é

possível pôr o educador e o educando num mesmo nível de busca do conhecimento,

se o primeiro já sabe? Como admitir no educando uma atitude cognoscente, se seu

papel é o de quem aprende do educador? (1975, p. 78).

17) Pois bem, se a educação é esta relação entre sujeitos cognoscentes, mediatizados

pelo objeto cognoscível, na qual o educador reconstrói, permanentemente, seu ato de

conhecer ela é necessariamente, em conseqüência, um quefazer problematizador

(1975, p. 81).

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18) A tarefa do educador, então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os

mediatiza, e não a de dissertar sôbre êle, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como

se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado (1975, p. 81).

19) Na medida em que, no têrmo extensão, está implícita a ação de levar, de transferir, de

entregar, de depositar algo em alguém, ressalta, nêle, uma conotação

indiscutívelmente mecanicista (1975, p. 26).

20) A resposta não pode estar na extensão mecanicista dos procedimentos técnicos dos

agrônomos até êles (1975, p. 31).

21) O pensamento mágico não é ilógico nem é pré-lógico. Tem sua estrutura lógica

interna e reage, até onde pode, ao ser substituído mecanicistamente por outro. Este

modo de pensar, como qualquer outro, está indiscutivelmente ligado a uma

linguagem e a uma estrutura como a uma forma de atuar (1975, p. 31).

22) A filosofia da ciência, como a da técnica, não é um divertimento dos que não atuam;

não é uma perda de tempo, como pode parecer aos tecnicistas – mas não aos técnicos

(1975, p. 40).

23) Como também possam inclinar-se pelas soluções tecnicistas ou mecanicistas que,

aplicadas ao domínio do humano, como, indubitàvelmente, o é o domínio em que se

verifica a reforma agrária, significam fracassos objetivos ou êxitos aparentes (1975,

p. 56).

24) Ao tradicionalismo, que pretende manter o “status quo", o messianismo tecnicista, de

caráter burguês, opte a modernização das estruturas, à qual se chegará

mecânicamente. Segundo esta concepção, a passagem da estrutura arcaica à nova,

modernizada, se dá do mesmo modo como quando alguém transporta uma cadeira de

um lugar para outro (1975, p. 57).

25) Na modernização, de caráter puramente mecânico, tecnicista, manipulador, o centro

de decisão da mudança não se acha na área em transformação, mas fora dela. A

estrutura que se transforma não é sujeito de sua transformação (1975, p. 57).

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26) Numa concepção não mecanicista, o nôvo nasce do velho através da transformação

criadora que se verifica entre a tecnologia avançada e as técnicas empíricas dos

camponeses (1975, p. 57).

27) É urgente que nos defendamos da concepção mecanicista. Em sua ingenuidade e

estreiteza de visão, tende a desprezar a contribuição fundamental de outros setores do

saber. Tende a se tornar rígida e burocrática (1975, p. 58).

28) Falar a um tecnicista da necessidade de sociólogos, de antropólogos, de psicólogos

sociais, de pedagogos, no processo de reforma agrária, é algo que já provoca um

olhar de desconfiança (1975, p. 58).

29) Não poderia compreender a “permanência”, na estrutura transformada, dos “aspectos

míticos” que se formaram na velha estrutura. Para êle, como ortodoxo tecnicista e

mecanicista, basta transformar a estrutura para que tudo o que se formou na estrutura

anterior seja eliminado (1975, p. 59).

30) Sòmente a ingenuidade tecnicista ou mecanicista pode crer que, decretada a reforma

agrária e posta em prática, tudo o que antes foi já não será; que ela é um marco

divisório e rígido entre a velha e a nova mentalidade (1975, p. 61).

31) Esta é a razão pela qual, se alguém, juntamente com outros, busca realmente

conhecer, o que significa sua inserção nesta dialogicidade dos sujeitos em tôrno do

objeto cognoscível, não faz extensão, [...] (1975, p. 28).

32) São considerações a propósito da antidialogicidade como fonte de uma teoria da

ação que se opõe antagônicamente à teoria da ação que tem como matriz a

dialogicidade (1975, p. 39).

33) A antidialogicidade e a dialogicidade se encarnam em maneiras de atuar

contraditórias, que, por sua vez, implicam em teorias igualmente inconciliáveis

(1975, p. 41).

34) Daí que, para êste humanismo [verdadeiro], não haja outro caminho senão a

dialogicidade. Para ser autêntico só pode ser dialógico (1975, p. 43).

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35) Para grande parte, senão a maior parte dos agrônomos, com quem temos participado

em seminários em tôrno dos pontos de vista que estamos desenvolvendo neste estudo,

“a dialogicidade é inviável” (1975, p. 45).

36) Dêste modo – afirmam enfàticamente – não se justifica esta perda de tempo. Entre a

dialogicidade e a antidialogicidade, fiquemos com esta última, já que é mais rápida

(1975, p. 45).

37) São estas dificuldades, cujas razões (ou algumas delas) analisamos sumàriamente,

que levam os agrônomos – e não sòmente êles – a falar de tempo perdido ou de perda

de tempo na dialogicidade (1975, p. 50).

38) Ainda quando, para nós, o trabalho do agrônomo-educador se restringisse apenas à

esfera do aprendizado de técnicas novas, não haveria como comparar a dialogicidade

com a antidialogicidade (1975, p. 51).

39) Tôda demora na primeira, demora simplesmente ilusória, significa um tempo que se

ganha em solidez, em segurança, em autoconfiança e interconfiança que a

antidialogicidade não oferece (1975, p. 51).

40) Se a dialogicidade coloca as dificuldades que analisamos, de ordem estrutural, a

antidialogicidade se torna ainda mais difícil. A primeira pode superar as dificuldades

assinaladas problematizando-as; a segunda, cuja natureza é em si

antiproblematizadora, tem que vencer um obstáculo imenso: substituir os

procedimentos empíricos dos camponeses pelas técnicas de seus agentes. E como esta

substituição exige um ato critico de decisão (que a antidialogicidade não produz),

ela tem como resultado a mera superposição das técnicas elaboradas aos

procedimentos empíricos dos camponeses (1975, p. 51).

41) O diálogo e a problematização não adormecem a ninguém. Conscientizam. Na

dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão

ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este

conjunto de saber se encontra em interação. Saber que reflete o mundo e os homens,

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no mundo e com êle, explicando o mundo, mas sobretudo, tendo de justificar-se na

sua transformação (1975, p. 55).

42) Esta inteligência dos signos vai-se dando na dialogicidade que, desta forma,

possibilita a compreensão exata dos têrmos, através dos quais os sujeitos vão

expressando a análise crítica do problema em que se acham empenhados (1975, p.

82).

43) Em qualquer das hipóteses, se se considera a dialogicidade da educação, seu caráter

gnosiológico, não é possível prescindir de um prévio conhecimento a propósito das

aspirações, dos níveis de percepção, da visão do mundo que tenham os educandos –

em nosso caso, os camponeses (1975, p. 87).

44) Do mesmo modo, um pensador que reduz tôda a objetividade ao homem e à sua

consciência, inclusive a existência dos demais homens, não pode, enquanto pensar

assim, falar da dialeticidade: subjetividade-objetividade. Não pode admitir a

existência de um mundo concreto, objetivo, com o qual o homem se acha em relação

permanente (1975, p. 44).

45) Os “círculos de pesquisa” se alongam em “círculos de cultura”; êstes, por sua vez,

exigem conteúdos educativos novos, de níveis diferentes, que demandam novas

pesquisas temáticas. Esta dialeticidade gera uma dinâmica que supera o estático da

concepção ingênua da educação, como pura transmissão de “conhecimentos” (1975,

p. 88).

46) E ser dialógico, para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente

dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não

sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade

(1975, p. 43).

47) Por isto mesmo é que as explicações unilateralmente subjetivista e objetivista, que

rompem esta dialetização, dicotomizando o indicotomizável, não são capazes de

compreendê-lo. Ambas carecem de sentido teleológico (1975, p. 74-75).

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48) A dialetização referida – permanência-mudança – que torna o processo educativo

“durável” é a que explica a educação como um quefazer que está sendo e não que é.

Daí seu condicionamente histórico-sociológico (1975, p. 84).

49) “A educação, porque se realiza no jôgo dêstes contrários que se dialetizam, é

“duração” (1975, p. 84).

50) Estamos convencidos de que, qualquer esforço de educação popular, esteja ou não

associado a uma capacitação profissional, seja no campo agrícola ou no industrial

urbano, deve ter, pelas razões até agora analisadas, um objetivo fundamental: através

da problematização do homem-mundo ou do homem em suas relações com o mundo

e com os homens, possibilitar que êstes aprofundem sua tomada de consciência da

realidade na qual e com a qual estão (1975, p. 33).

51) Repetimos que o conhecimento não se estende do que se julga sabedor até aquêles

que se julga não saberem; o conhecimento se constitui nas relações homem-mundo,

relações de transformação, e se aperfeiçoa na problematização crítica destas relações

(1975, p. 36).

52) O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese (seja em torno de um

conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento “experiencial”), é a

problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a

realidade concreta na qual se gera e sôbre a qual incide, para melhor compreendê-la,

explicá-la, transformá-la (1975, p. 52).

53) Ainda quando um cientista, ao fazer uma investigação em busca de algo, encontra o

que não buscava (e isto sempre ocorre), seu descobrimento partiu de uma

problematização (1975, p. 54).

54) O que defendemos é precisamente isto: se o conhecimento científico e a elaboração

de um pensamento rigoroso não podem prescindir de sua matriz problematizadora, a

apreensão dêste conhecimento científico e do rigor dêste pensamento filosófico não

pode prescindir igualmente da problematização que deve ser feita em tôrno do

próprio saber que o educando deve incorporar (1975, p. 54).

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55) Em verdade, não querem correr o risco da aventura dialógica, o risco da

problematização, e se refugiam em suas aulas discursivas, retóricas, que funcionam

como se fôssem “canções de ninar” (1975, p. 55).

56) O diálogo e a problematização não adormecem a ninguém. Conscientizam. Na

dialogicidade, na problematização, educador-educando e educando-educador vão

ambos desenvolvendo uma postura crítica da qual resulta a percepção de que este

conjunto de saber se encontra em interação (1975, p. 55).

57) Rejeitar, em qualquer nível, a problematização dialógica é insistir num injustificável

pessimismo em relação aos homens e à vida. É cair na prática depositante de um falso

saber que, anestesiando o espírito crítico, serve à “domesticação” dos homens e

instrumentaliza a invasão cultural (1975, p. 55).

58) A problematização é a tal ponto dialética, que seria impossível alguém estabelecê-la

sem comprometer-se com seu processo (1975, p. 82).

59) Ninguém, na verdade, problematiza algo a alguém e permanece, ao mesmo tempo,

como mero espectador da problematização (1975, p. 82).

60) Inseparável do ato cognoscente, a problematização se acha, como êste, inseparável

das situações concretas (1975, p. 82).

61) Esta é a razão pela qual, partindo destas última s, cuja análise leva os sujeitos a

reverem-se em sua confrontação com elas, a refazer esta confrontação, a

problematização implica num retôrno crítico à ação. Parte dela e a ela volta (1975,

p. 82).

62) Dêste modo, a concepção educativa que defendemos e que estamos sumàriamente

colocando como um conteúdo problemático aos possíveis leitores dêste estudo, gira

em tôrno da problematização do homem-mundo. Não em tôrno da problematização

do homem isolado do mundo nem da dêste sem êle, mas de relações indicotomizáveis

que se estabelecem entre ambos (1975, p. 83).

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63) Que será, realmente, a problematização do homem-mundo? Que será a

problematização das relações indicotomizáveis que se estabelecem entre ambos?

(1975, p. 83).

64) Dissemos que a educação, como situação gnosiológica, significa a problematização

do conteúdo sôbre o qual se co-intencionam educador e educando, como sujeitos

cognoscentes (1975, p. 85).

65) Ao fazê-lo, o que antes talvez não se apresentasse a nós como teoria de nossa ação, se

nos revela como tal. E, se a teoria e a prática são algo indicotomizável, a reflexão

sobre a ação ressalta a teoria, sem a qual a ação (ou a prática) não é verdadeira (1975,

p. 40).

66) Que será, realmente, a problematização do homem-mundo? Que será a

problematização das relações indicotomizáveis que se estabelecem entre ambos?

(1975, p. 83).

67) Insistimos em afirmar que esta não é uma discussão bizantina. No momento em que

os “trabalhadores sociais” definam o seu quefazer como assistencialista e, não

obstante, digam que êste é um quefazer educativo, estará cometendo na verdade um

equívoco de conseqüências funestas, a não ser que tenham optado pela

"domesticação” dos homens, no que estarão sendo coerentes e não equivocados

(1975, p. 44).

68) As relações entre o educador verbalista, dissertador de um “conhecimento”

memorizado e não buscado ou trabalhado duramente, e seus educandos, constitui uma

espécie de assistencialismo educativo. Assistencialismo em que as palavras ôcas são

como as “dádivas”, características das formas assistencialistas no domínio do social

(1975, p. 80).

69) Ambas estas formas assistencialistas que no fundo se implicam, – a material como a

intelectual – impedem que os “assistidos” sejam, clara e crìticamente, a realidade

(1975, p. 80).

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70) O fato de que o assistencialismo, em qualquer de suas formas, contenha este

impedimento, não significa, na verdade, que os assistidos não possam, mais cedo ou

mais tarde, emergir da própria condição de assistidos na qual se encontram, para

afirmar-se, na ação, como sêres da decisão (1975, p. 80).

71) Não tememos afirmar, a êste respeito, que os movimentos de rebelião que se

generalizam hoje em dia têm muito da emersão da juventude (e, em certas áreas, do

povo) que rompe com um mundo “assistencializado” e “assistencializador” (1975,

p. 80-81).

72) Nêles se observa que os “emresos” põem em questão a validade dos “comunicados”

feitos “assistencialisticamente" em tôrno da existência humana. Suas preocupações

não se limitam ao domínio instrumental do como, mas vão do quê ao porquê e ao

para quê das coisas, da ação e da existência (1975, p. 81).

73) Enquanto que a concepção “assistencialista” da educação “anestesia” os educandos e

os deixa, por isto mesmo, a-críticos e ingênuos diante do mundo, a concepção da

educação que se reconhece (e vive êste reconhecimento) como uma situação

gnosiológica, desafia-os a pensar corretamente e não a memorizar (1975, p. 81).

74) Eis aí a razão por que a autenticidade da assistência técnica estará em tornar-se uma

ação de caráter educativo (no sentido aqui defendido) com a superação de

procedimentos de pura “assistencialização” técnica (1975, p. 86).

75) Daí que a função gnosiológica não possa ficar reduzida à simples relação do sujeito

cognoscente com o objeto cognoscível. Sem a relação comunicativa entre sujeitos

cognoscentes em tôrno do objeto cognoscível desapareceria o ato cognoscitivo

(1975, p. 65).

76) Vê-se assim que a busca do conhecimento que se reduz à pura relação sujeito

cognoscente-objeto cognoscível, rompendo a “estrutura dialógica” do conhecimento,

está equivocada, por maior que seja sua tradição (1975, p. 68).

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77) Por isto é que a tarefa do educador não é a de quem se põe como sujeito cognoscente

diante de um objeto cognoscível para, depois de conhecê-lo, falar dêle

discursivamente a seus educandos, cujo papel seria o de arquivadores de seus

comunicados (1975, p. 68-69).

78) Para nós, a “educação como prática da liberdade” é, sobretudo e antes de tudo, uma

situação verdadeiramente gnosiológica. Aquela em que o ato cognoscente não

termina no objeto cognoscível, visto que se comunica a outros sujeitos, igualmente

cognoscentes (1975, p. 78).

79) Na verdade, muitos entre os que rejeitam a comunicação, que fogem da verdadeira

cognoscibilidade, que é co-participada, o fazem precisamente porque, diante de

objetos cognoscíveis, não são capazes de assumir a postura cognoscente.

Permanecem no domínio da “doxa”, fora do qual são meros repetidores de textos

lidos e não sabidos ou mal sabidos (1975, p. 79).

80) Daí a necessidade que tem de ampliar o diálogo – como uma fundamental estrutura

do conhecimento – a outros sujeitos cognoscentes (1975, p. 79).

81) Como estamos vendo, a educação, enquanto uma situação gnosiológica que solidariza

educador e educando como sujeitos cognoscentes, abre a êstes múltiplos e

indispensáveis caminhos à sua afirmação como sêres da práxis (1975, p. 85).

82) Nesta co-intencionalidade ao objeto, os sujeitos cognoscentes vão penetrando nêle,

em busca de sua “razão”. Assim como o objeto, desvelando-se aos sujeitos, se lhes

presentifica num sistema estrutural no qual se encontra em relação direta ou indireta

com outro (1975, p. 85).

83) Dêste modo, o objeto (que pode ser uma situação-problema), inicialmente “ad-

mirado” como se fôsse um todo isolado, vai-se “entregando” aos sujeitos

cognocentes como um subtodo que, por sua vez, é parte de uma totalidade maior

(1975, p. 85).

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84) Será a partir dêste conhecimento que se poderá organizar o conteúdo programático da

educação que encerrará um conjunto de temas sôbre os quais educador e educando,

como sujeitos cognoscentes, exercerão a cognoscibilidade (1975, p. 87).

85) Esta é a razão pela qual ao perceber um fato concreto da realidade sem que o “ad-

mire”, em têrmos críticos, para poder “mirá-lo” de dentro, perplexo frente a

aparência do mistério, inseguro de si, o homem se torna mágico (1975, p. 29).

86) Expliquemo-nos: a posição normal do homem no mundo, como um ser da ação e da

reflexão, é a de “ad-mirador” do mundo. Como um ser da atividade que é capaz de

refletir sôbre si e sôbre a própria atividade que dêle se desliga, o homem é capaz de

“afastar-se” do mundo para ficar nêle e com êle. Sòmente o homem é capaz de

realizar esta operação, de que resulta sua inserção crítica na realidade.' “Ad-mirar” a

realidade significa objetivá-la, apreendê-la como campo de sua ação e reflexão (1975,

p. 31).

87) Esta proximidade na qual se confundem com o mundo natural lhes dificulta a

opeação de “ad-mirá-lo”, na medida em que a proximidade não lhes permite ver o

“ad-mirado” em perspectiva (1975, p. 32).

88) Esta é a razão pela qual, o tempo da estrutura anterior, de certo modo, e em muitos

aspectos, “co-existe” com êste. Assim c que os camponeses, no tempo nôvo, revelam,

em seus modos de comportar-se, de maneira geral, a mesma dualidade básica que

tinham na estrutura latifundista (1975, p. 59).

89) A conscientização, da qual falaremos na última parte do trabalho, é inter-

conscientização (1975, p. 61).

90) Desta forma, na comunicação, não há sujeitos passivos. Os sujeitos co-intencionados

ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo (1975, p. 67).

91) Se a educação, como situação gnosiológica, tem, na relação dialógica, sua essência,

visto que, sem ela, desapareceria a co-intencionalidade dos sujeitos ao objeto

cognoscível, quando começa esta relação? (1975, p. 86).

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92) Isso é tão certo que, em qualquer ocasião em que um educando lhe faz uma pergunta,

êle re-faz, na explicação, todo o esfôrço cognoscitivo anteriormente realizado (1975,

p. 79).

93) Re-fazer êste esfôrço não significa, contudo, repeti-lo tal qual, mas fazê-lo de nôvo,

numa situação nova, em que novos ângulos, antes não aclarados, se lhe podem

apresentar claramente; ou se lhe abrem caminhos novos de acesso ao objeto (1975, p.

79).

94) O educador, problematizado só em problematizar, “re-ad-mira” o objeto

problemático através da “ad-miração” dos educandos (1975, p. 82).

95) Esta é a razão pela qual o educador continua aprendendo, e, quanto mais humilde seja

na “re-ad-miração” que faça através da “ad-miração” dos educandos, mais

aprenderá (1975, p. 82).

96) Colocar êste mundo humano como problema para os homens significa propor-lhes

que “ad-mirem”, crìticamente, numa operação totalizada, sua ação e a de outros

sôbre o mundo.” (1975, p. 83).

97) Significa “re-ad-mirá-la”, através da “ad-miração” da “ad-miração” anterior, que

pode ter sido feita ou realizada de forma ingênua, não totalizada (1975, p. 83).

98) Desta maneira, na “ad-miração” do mundo “admirado”, os homens tornam

conhecimento da forma como estavam conhecendo, e assim reconhecem a

necessidade de conhecer melhor (1975, p. 84).

99) Se a codificação representa uma situação existencial, uma situação, por isto mesmo,

vivida pelos camponeses que, enquanto a viviam, ou não a “ad-miravam” ou, se a

“ad-miravam”, o faziam através de um mero dar-se conta da situação, a

descodificação, como um ato cognoscitivo, lhes possibilita “ad-mirar” sua não “ad-

miração” ou sua “ad-miração” anterior (1975, p. 90).

100) A descodificação é, assim, um momento dialético, em que as consciências, co-

intencionadas à codificação desafiadora, re-fazem seu poder reflexivo, na “ad-

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miração” da “ad-miração” e vai-se tornando uma forma de “re-ad-miração”.

Através desta, os camponeses vão-se reconhecendo como sêres transformadores do

mundo (1975, p. 90).

101) A “ad-miração” se faz, portanto, neste momento, em que a consciência (ou o corpo

consciente) se relaciona com o objeto da sua “intencionalidade” (1975, p. 91).

102) A etapa descritiva é já o segundo mo mento: o da cisão da totalidade “ad-mirada”

(1975, p. 91).

103) No terceiro momento, o sujeito, com outros sujeitos, volta à "ad-miração” anterior,

em que abarca a situação codificada em sua totalidade (1975, p. 91).

3. Neologismos em Ação cultural para a liberdade

Em Ação cultural para a liberdade, temos:

1) Se me ponho numa posição idealista dicotomizando consciência e realidade,

submeto esta àquela, como se a realidade fosse constituída pela consciência. Assim, a

transformação da realidade se dá pela transformação da consciência. Se me ponho

numa posição mecanicista, dicotomizando igualmente consciência e realidade, tomo

a consciência como um espelho que apenas reflete a realidade. Em ambos os casos,

nego a conscientização que só existe quando não apenas reconheço mas experimento

a dialeticidade entre objetividade e subjetividade, realidade e consciência, prática e

teoria (2002, p. 171).

2) O meu equívoco consistiu em não ter tomado estes pólos – conhecimento da

realidade e transformação da realidade – em sua dialeticidade. Era como se desvelar

a realidade já significasse a sua transformação. Diga-se de passagem que, em

Pedagogia do Oprimido e em Cultural Action for Freedom já não é esta a posição

que tomo em face do problema da conscientização (1976, p. 145-146).

3) Sabem muito bem o que fazem e onde querem ir, quando, em campanhas de

alfabetização, “alimentam” os alfabetizandos de “slogans” alienadores, em nome,

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ainda, da neutralidade da educação. Objetivamente, porém, se identificam ambos –

ingênuos e astutos (2002, p. 15 – nota).

4) A alfabetização, assim, se reduz ao ato mecânico de “depositar” palavras, sílabas e

letras nos alfabetizandos. Este “depósito” é suficiente para que os alfabetizandos

comecem a “afirmar-se”, uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sentido

mágico (2002, p. 15).

5) Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabetização se transforme em

um ato pelo qual o chamado alfabetizador vai “enchendo” o alfabetizando com suas

palavras. A significação mágica emprestada à palavra se alonga noutra ingenuidade: a

do messianismo (2002, p. 16).

6) As cartilhas, por boas que sejam, do ponto de vista metodológico ou sociológico, não

podem escapar, porém, a uma espécie de "pecado original”, enquanto são o

instrumento através do qual se vão “depositando” as palavras do educador, como

também seus textos, nos alfabetizandos. E por limitar-lhes o poder de expressão, de

criatividade, são instrumentos domesticadores (2002, p. 16).

7) De modo geral, elaboradas de acordo com a concepção mecanicista e mágico

messiânica da “palavra-depósito”, da “palavra-som”, seu objetivo máximo é

realmente fazer uma espécie de “transfusão” na qual a palavra do educador é o

“sangue salvador” do “analfabeto enfermo". E ainda quando as palavras das cartilhas,

os textos com elas elaborados – e isto raras vezes ocorre – coincidem com a realidade

existencial dos alfabetizandos, de qualquer maneira, são palavras e textos

presenteados, como clichês, e não criados por aqueles que deveriam fazê-lo (2002, p.

16).

8) Pequenos textos de leitura podem e devem ser elaborados pelos educadores, desde

que I) correspondam à realidade concreta dos alfabetizandos; II) sejam usados não

na forma tradicional das chamadas "classes de leitura", mas em verdadeiros

seminários de textos; III) funcionem como elementos motivadores aos

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alfabetizandos para que comecem eles mesmos a redigir também seus textos (2002,

p. 16 – nota).

9) Como seres passivos e dóceis, pois que assim são vistos e assim são tratados, os

alfabetizandos devem ir recebendo aquela “transfusão” alienante da qual, por isto

mesmo, não pode resultar nenhuma contribuição ao processo de transformação da

realidade (2002, p. 17).

10) O aprendizado da leitura e da escrita não pode ser feito como algo paralelo ou quase

paralelo à realidade concreta dos alfabetizandos. Aquele aprendizado, por isto

mesmo, demanda a compreensão da significação profunda da palavra, a que antes

fizemos referência (2002, p. 18).

11) Mais que escrever e ler que a “asa é da ave”, os alfabetizandos necessitam perceber a

necessidade de um outro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “ler” a sua

realidade, o que não será possível se não tornam a história nas mãos para, fazendo-a,

por ela serem feitos e refeitos (2002, p. 19).

12) A primeira exigência prática que a concepção crítica da alfabetização se impõe é que

as palavras geradoras, com as quais os alfabetizandos começam sua alfabetização

como sujeitos do processo, sejam buscadas em seu “universo vocabular mínimo”, que

envolve sua temática significativa (1976, p. 18).

13) Somente a partir da investigação deste universo vocabular mínimo é que o educador

pode organizar o programa que, desta forma, vem dos alfabetizandos para a eles

voltar, não como dissertação mas como problematização (1976, p. 18).

14) Na medida em que os alfabetizandos vão organizando uma forma cada vez mais

justa de pensar, através da problematização de seu mundo, da análise crítica de sua

prática, irão podendo atuar cada vez mais seguramente no mundo (1976, p. 20).

15) A alfabetização se faz, então, um quefazer global, que envolve os alfabetizandos em

suas relações com o mundo e com os outros. Mas, ao fazer-se este quefazer global,

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fundado na prática social dos alfabetizandos, contribui para que estes se assumam

como seres do quefazer – da práxis (1976, p. 20-21).

16) Há algo finalmente que gostaria de considerar. É que todas estas reações orais que se

vão dando durante as discussões nos Círculos de Cultura, devem ser transformadas

em textos que, entregues aos alfabetizandos, passam a ser por eles discutidos (1976,

p. 23).

17) Isto não tem nada que ver, realmente, com a prática criticada, em que os

alfabetizandos repetem duas, três vezes, para memorizar, que a “asa é da ave” (1976,

p. 23).

18) Um empenho como este ajudaria a alfabetizandos e alfabetizadores a ir superando o

que costumo chamar de visão focalista da realidade e ir ganhando a compreensão da

totalidade (1976, p. 28).

19) Desta forma, esvaziada de seu caráter de signo lingüístico, constitutivo do

pensamento-linguagem dos seres humanos, a palavra é transformada em mero

“depósito vocabular” – o “pão do espírito”, que os alfabetizandos devem comer e

digerir (1976, p. 44).

20) Numa tal concepção é evidente que os alfabetizandos sejam vistos como puros

objetos do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como seus sujeitos.

Enquanto objetos, sua tarefa é “estudar”, quer dizer, memorizar as assim chamadas

lições de leitura, de caráter alienante, com pouquíssimo que ver, quando têm, com a

sua realidade sócio-cultural (1976, p. 45).

21) Repetem com os textos o que fazem com as palavras, depositando-os na consciência

dos alfabetizandos, como se esta fosse um espaço vazio. Uma vez mais, a concepção

nutricionista do conhecimento (1976, p. 46).

22) Para ser um ato de conhecimento o processo de alfabetização de adultos demanda,

entre educadores e educandos, uma relação de autêntico diálogo. Aquela em que os

sujeitos do ato de conhecer (educador-educando; educando-educador) se encontram

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mediatizados pelo objeto a ser conhecido. Nesta perspectiva, portanto, os

alfabetizandos assumem, desde o começo mesmo da ação, o papel de sujeitos

criadores. Aprender a ler e escrever já não é, pois, memorizar sílabas, palavras ou

frases, mas refletir criticamente sobre o próprio pro cesso de ler e escrever e sobre o

profundo significado da linguagem (1976, p. 49).

23) Uma pedagogia utópica da denúncia e do anúncio tem de ser um ato de conhecimento

da realidade denunciada, ao nível da alfabetização ou da post-alfabetização, enquanto

ação cultural para a libertação. Daí a ênfase que damos à constante problematização

da realidade concreta dos alfabetizandos, representada em situações codificadas.

Quanto mais a problematização avança e os sujeitos descodificadores se adentram

na “intimidade” do objeto problematizado, tanto mais se vão tornando capazes de

desvelá-lo (1976, p. 60).

24) Naturalmente, porém, numa alfabetização do ponto de vista das classes dominantes, o

que se tem de oferecer aos alfabetizandos para ler é mesmo que “Eva viu a uva”

(1976, p. 64).

25) Na nossa posição, o que defendemos e propomos é que os textos de leitura dos

alfabetizandos venham preponderantemente deles próprios e a eles voltem para a sua

análise (1976, p. 64).

26) Desta forma, o processo de alfabetização de adultos, visto de um ponto de vista

libertador, é um ato de conhecimento, um ato criador, em que os alfabetizandos

exercem o papel de sujeitos cognoscentes, tanto quanto os educadores. Obviamente,

então, os alfabetizandos não são vistos como “vasilhas vazias”, meros recipientes

das palavras do educador (1976, p. 90).

27) Deste ponto de vista, ainda, os alfabetizandos não são seres marginais que

necessitem ser recuperados ou resgatados (1976, p. 90).

28) Neste sentido, em lugar de ser um instrumento de fiscalização, a avaliação é a

problematização da própria ação (1976, p. 26).

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29) Esta mudança de percepção, que se dá na problematização de uma realidade

conflitiva, implica num novo enfrentamento dos indivíduos com sua realidade.

Implica numa “apropriação” do contexto, numa inserção nele, num já não ficar

“aderido” a ele; num já não estar quase sob o tempo, mas nele (1976, p. 40).

30) As codificações, através de que se faz a problematização da realidade, trazem em si

a palavra geradora a elas referida ou a algum de seus aspectos (1976, p. 56).

31) A codificação, pelo contrário, é um objeto de conhecimento que, mediatizando

educador e educandos, se dá a seu desvelamento (1976, p. 27).

32) A codificação, de um lado, faz a mediação entre o contexto concreto e o teórico; de

outro, como objeto de conhecimento, mediatiza os sujeitos cognoscentes que

buscam, em diálogo, desvelá-la. Por isto é que, sendo o selo do ato cognoscente, o

diálogo não tem nada que ver, de um lado, com o monólogo do educador

“bancário”; de outro, com o silêncio espontaneista de certo tipo de educador liberal.

O diálogo engaja ativamente a ambos os sujeitos do ato de conhecer educador-

educando e educando-educador (2002, p. 61).

33) A possibilidade que têm os seres humanos de atuar sobre à realidade objetiva e de

saber que atuam, de que resulta que a tornam como objeto de sua curiosidade, a sua

comunicação mediatizada pela realidade, por meio de sua linguagem criadora, a

pluralidade de respostas a um desafio singular, testemunham a criticidade que há

nas relações entre eles e o mundo. Sua consciência, que não é a fazedora arbitrária da

objetividade, com a qual constitui uma unidade dialética, não é, também, por isso

mesmo, uma pura cópia, um simples reflexo daquela. Daí que esta nota de

criticidade não possa ser compreendida nem, de um lado, por quem absolutiza a

objetividade, nem, de outro, por quem absolutiza a consciência. [...] Do ponto de

vista do objetivismo mecanicista, porque, mera réplica da realidade, a consciência

seria puro objeto da realidade que, então, se transformaria a si mesma (2002, p. 78-

79).

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34) Desta forma, escrever sobre um tema, como o entendemos, não é um mero ato

narrativo. Ao apreendê-lo, como fenômeno dando-se na realidade concreta, que

mediatiza os homens, quem escreve tem de assumir frente a ele uma atitude

gnosiológica (1976, p. 96).

35) Naturalmente, não posso negar a singularidade de minha existência, mas isto não

significa que minha existência pessoal tenha uma significação absoluta em si mesma,

isolada de outras existências. Pelo contrário, é na intersubjetividade, mediatizada

pela objetividade, que minha existência ganha sentido (1976, p. 114-115).

36) Desta forma, a capacitação técnica dos camponeses jamais se reduziria à transferência

de receitas tecnicistas e se faria uma atividade realmente criadora (1976, p. 39-40).

37) Em uma perspectiva menos rigorosa, simplista, menos crítica, tecnicista, se diria que

é uma perda de tempo refletir sobre estes pontos e se acrescentaria que a discussão

em torno do conceito de marginalidade é um exercício acadêmico desnecessário

(1976, p. 57).

38) Imobilizar os camponeses exercendo ainda sobre eles uma prática assistencialista,

não pode constituir-se no caminho para tal superação (1976, p. 35).

39) Enquanto a forma de ação assistencialista, vertical, manipuladora, envolve,

necessariamente, a “invasão cultural”, a que defendemos propõe a “síntese cultural”

(1976, p. 35).

40) Em lugar de ter nesta uma situação problemática que o desafia e aos homens com

quem deveria estar em comunicação, sua tendência é inclinar-se a soluções de caráter

assistencialista (1976, p. 39).

41) Uma tal ilusão, que satisfaz os interesses de todos quantos têm condições favoráveis

de vida, revela facilmente a ideologia que se concretiza em formas assistencialistas

de ação em que os proibidos de ser são convidados a esperar com paciência por dias

melhores que, mesmo tardando, não faltarão (1976, p. 98).

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42) Na medida em que seu novo aprendizado os vai levando a uma cada vez mais clara

inteligência da dramática realidade do povo, associada a novas formas de ação já

menos assistencialistas, passam a ser vistos como figuras “diabólicas”, a serviço da

demonização internacional. Demonização que ameaça a “civilização ocidental e

cristã”, que de cristã pouca coisa realmente tem (1976, p. 111).

43) Através de seu novo aprendizado perceberam finalmente que é pouco dizer que

homens e mulheres são pessoas humanas mas nada fazer, objetivamente, para que

existenciem sua condição de pessoa. Aprenderam que não é com obras

assistencialistas ou, como prefere Niebuhr, “humanitárias”, que as classes oprimidas

podem realmente autenticar-se como pessoas (1976, p. 113).

44) Por outro lado, no quadro histórico em que o populismo se constitui, sua tendência é

a de se caracterizar como um tipo de ação “assistencialista”, de que decorre o seu

caráter manipulador. É que as massas populares “emergem” no processo histórico

intensamente condicionadas por toda a sua experiência na cultura do silêncio (1976,

p. 121).

45) Por isto mesmo é que, quanto mais sejam os homens “anestesiados” no seu poder

reflexivo, que ao ser adquirido, no processo de sua evolução, os distingue

fundamentalmente dos animais, tanto mais se encontram obstaculizados de libertar-

se verdadeiramente (2002, p. 118).

46) Mas, como não há autêntica reflexão sem ação e vice-versa, ambas, em última

análise, indicotomizavelmente, constituem a real práxis dos homens sobre o mundo,

sem a qual é impossível a libertação (2002, p. 118 – nota).

47) A práxis teórica não é outra coisa senão a que realizamos, desde o contexto teórico,

ao tomar distância da práxis realizada ou realizando-se no contexto concreto [...] Daí

que sejam ambas essas formas de práxis momentos indicotomizáveis de um mesmo

processo pelo qual conhecemos em termos críticos. Isto significa, em outras palavras,

que a reflexão só é verdadeira quando nos remete, como salienta Sartre, ao concreto

sobre o qual a exercemos (2002, p. 128).

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48) Isto é, precisamente, o que a “educação bancária” não estimula. Pelo contrário, sua

tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito

investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em

face do texto, não para a indispensável criticidade (2002, p. 10).

49) A criticidade e as finalidades que se acham nas relações entre os seres humanos e o

mundo implicam em que estas relações se dão com um espaço que não é apenas

físico, mas histórico e cultural (2002, p. 81).

50) O exercício desta criticidade não se esgota, por outro lado, quando o anúncio se faz

concretude. Ele se torna, ao contrário, absolutamente indispensável à difícil tarefa de

construção da sociedade socialista (2002, p. 96).

51) Há duas direções possíveis que se oferecem à consciência ingênua. A primeira é a de

alcançar o nível de criticidade, ou o que Goldman chama de “máximo de consciência

possível”, a segunda é a sua distorção numa forma “irracional” ou “fanática” (2002,

p. 97)

52) A transformação de uma sociedade será, por isto mesmo, tão mais radical quanto seja

um processo intra-estrutural que toma, assim, a estrutura como a dialetização entre a

infra e a supra-estrutura (2002, p. 37).

53) Na estrutura social, enquanto dialetização entre a infra e a supraestrutura, não há

permanência da permanência nem mudança da mudança, mas o empenho de sua

preservação em contradição com o esforço por sua transformação (2002, p. 45).

54) Utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serviço da libertação das classes

oprimidas, se faz e se refaz na prática social, no concreto, e implica na dialetização

da denúncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente, o seu

momento máximo (2002, p. 70).

55) Ao nos propormos uma análise dos níveis de consciência, gostaríamos de sublinhar,

desde o começo, que, se, de um lado, não estaremos absolutizando a consciência e,

de mo do geral, a supra-estrutura, de outro, não estaremos tampouco absolutizando a

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infra-estrutura. [...] Temos insistido, neste como em outros . trabalhos, em que a

estrutura social, como um todo, é, em última análise, não a soma (nem também a

justaposição) da infra-estrutura com a supra-estrutura, mas a dialetização entre as

duas (2002, p. 82).

56) Desta forma, estimulam o “analfabetismo” político, através de uma educação que, em

contradição com os reais objetivos socialistas, desdialetiza o pensamento (2002, p.

109).

57) Reagindo ao subjetivismo alienante que explica aquela distorção, os referidos grupos

terminam por negar o papel da consciência na transformaçâo da realidade, negando,

desta forma, a dialetização consciência-realidade. Já não percebem a diferença entre

consciência das necessidades de classe e consciência de classe. Entre ambas há uma

espécie de hiato dialético a ser resolvido. O subjetivismo tanto quanto o objetivismo

mecanicista são incapazes de fazê-la (2002, p. 127).

58) Limitada na compreensão do problema, cuja complexidade não capta ou esconde,

suas respostas a ele são de caráter mecanicista (2002, p. 15).

59) Poderá dizer-se que a mudança da percepção não é possível antes da mudança da

estrutura, na razão mesma do seu condicionamento por esta. Tal afirmação, se tomada

de um ponto de vista extremado, pode., nos conduzir a interpretações mecanicistas

das relações percepção-realidade (2002, p. 46).

60) Do ponto de vista do objetivismo mecanicista, porque, mera réplica da realidade, a

consciência seria puro objeto da realidade que, então, se transformaria a si mesma

(2002, p. 79).

61) Neste sentido, é um processo tão permanente quanto a revolução, que só para

mentalidades mecanicistas cessa com a chegada ao poder. E é precisamente neste

momento que muitos de seus mais sérios problemas começam e que algumas ameaças

a espreitam, entre elas, a da bucrocracia esclerosante (2002, p. 100).

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62) Sua concepção da história é mecanicista e fatalista. A história é o que foi e não o que

está sendo e em que se gesta o que está por vir. O presente é algo que deve ser

normalizado e o futuro, a repetição do presente, o que significa a manutenção do

“status quo” (2002, p. 106).

63) É que a passagem que faz a sociedade de uma etapa à outra não se dá

automaticamente, como pensam os mecanicistas. Não há fronteiras geograficamente

rígidas entre tais fases, daí que coexistam dimensões de ambas na Transição (2002, p.

140).

64) [...] muitas destas críticas revelam a posição objetivista mecanicista, por isto mesmo

antidialética, de quem as faz. Enquanto mecanicistas, negando a realidade mesma da

consciência, recusam conseqüentemente a conscientização (2002, p. 154-155).

65) [...] é impossível a práxis verdadeira no vazio antidialético ao qual leva toda

dicotomia sujeito-objeto. Esta é a razão pela qual o subjetivismo e o objetivismo

mecanicista são sempre obstáculos ao verdadeiro processo revolucionário, não

importam os caminhos que, na prática, tornem eles. [...] É exatamente este

objetivismo mecanicista o que descobre “idealismo” ou “reformismo” em toda

referência ao papel da subjetividade no processo revolucionário. No fundo, são todas

estas expressões, ainda que diferentes, de uma mesma fonte ideológica – a pequeno-

burguesa (2002, p. 157).

66) O objetivismo mecanicista é uma distorção grosseira da posição marxista quanto à

questão fundamental das relações sujeito-objeto. Para Marx estas relações são

contraditórias e dinâmicas. Sujeito e objeto não se encontram dicotomizados nem

tampouco constituem uma identidade mas uma unidade dialética. A mesma unidade

dialética em que se encontram teoria e prática (2002, p. 157).

67) Este é, em última análise, o movimento dialético, impossível de ser compreendido do

ângulo do subjetivismo como do ponto de vista do objetivismo mecanicista, que se

põe como exigência fundamental a quem pretende conhecer a realidade (2002, p.

159).

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68) Insistamos em que este é um quefazer fundamental da liderança revolucionária, desde

que não se deixe cair na tentação pequeno-burguesado objetivismo mecanicista. É

que, para os mecanicistas, as classes dominadas estão aí, como objetos, para ser

libertadas por eles enquanto sujeitos da agido revolucionária (2002, p. 163).

69) Enquanto a ação cultural para a libertação se caracteriza pelo diálogo, “como selo” do ato de

conhecimento, a ação cultural para a domesticação procura embotar as consciências. A

primeira problematiza; a segunda “sloganiza”. Desta forma, o fundamental na primeira

modalidade de ação cultural, no próprio processo de organização das classes dominadas, é

possibilitar a estas a compreensão crítica da verdade de sua realidade (2002, p. 95).

70) O importante, porém, do ponto de vista do imperialismo e de seus aliados nacionais, era que

tal processo reformista, chamado sloganizadamente de desenvolvimento, não afetasse os

pontos centrais das relações entre a sociedade matriz e as sociedades dependentes. No fundo,

“desenvolvimento” na dependência. Desta forma, obviamente, o ponto de decisão política,

econômica, cultural da transformação da sociedade dependente deveria permanecer na

sociedade matriz, a não ser em certos aspectos que, delegados a ela, não alterariam em

essência seu estado de sociedade subordinada (2002, p. 139-140).

71) [...] finalmente, entre os seres humanos não há absolutização da ignorância nem do

saber. Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo (2002, p. 24).

72) Desta forma, ao procurar discernir, em termos relativos, as características

fundamentais da configuração histórico-cultural a que esses níveis correspondem,

esperamos não ser entendidos como se estivéssemos caindo numa das absolutizações

referidas acima (2002, p. 82).

73) No fundo, contudo, a experiência me vem ensinando quão difícil é fazer a travessia

pelo domínio da subjetividade e da objetividade, em última análise, estar no mundo e

com o mundo, sem cair na tentação de absolutizar uma ou outra. Quão difícil é,

realmente, apreendê-las em sua elasticidade (2002, p. 174).

74) Desta forma, em lugar de ingenuamente absolutizar os métodos, os entendo a serviço

de finalidades, na busca de cuja realização eles se fazem e se refazem (2002, p. 175).

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75) No segundo caso, pelo contrário, o processo de alfabetização, como ação cultural para

a libertação, é um ato de conhecimento em que os educandos assumem o papel de

sujeitos cognoscentes em diálogo com o educador, sujeito cognoscente também. Por

isto, é uma tentativa corajosa de desmitologização da realidade, um esforço através

do qual, num permanente tomar distância da realidade em que se encontram mais ou

menos imersos, os alfabetizandos dela emergem para nela inserirem-se criticamente

(2002, p. 58).

76) Neste esforço, os educandos, como sujeitos cognoscentes, percebem relações entre os

fatos sobre que discutem que antes não percebiam (2002, p. 62-63).

77) Para que o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro conhecimento é preciso que os

sujeitos cognoscentes tentem apreender a realidade cientificamente no sentido de

descobrir a razão de ser da mesma – o que a faz ser como está sendo. Assim,

conhecer não é relembrar algo previamente conhecido e agora esquecido. Nem a

“doxa” pode ser superada pelo “logos” fora da prática consciente dos seres humanos

sobre a realidade (2002, p. 66).

78) Estas codificações, sublinhemos uma vez mais, são objetos de conhecimento que, nos

Círculos de Cultura – contextos teóricos – se dão ao desvelamento dos sujeitos

cognoscentes – educador-educando, educando-educador (2002, p. 67).

79) É que minha atitude crítica em face do tema me engaja num ato de conhecimento e

este exige, não só o objeto cognoscível, mas também outro sujeito cognoscente,

como eu (2002, p. 101).

80) Na situação gnosiológica, o objeto de conhecimento não é o termo do conhecimento

dos sujeitos cognoscentes, mas a sua mediação (2002, p. 101).

81) Em ambas estas fases do ciclo gnosiológico se impõe uma postura crítica, curiosa,

aos sujeitos cognoscentes, em face do objeto de seu conhecimento (2002, p. 170).

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82) Desafiada por sua própria situação existencial, representada na codificação, a mulher

foi capaz, numa espécie de “emersão” de sua forma de existir, de “ad-mirá-la” e

percebê-la como até então não o fizera (1976, p. 21).

83) Para o ponto de vista crítico que aqui defendemos, a operação de mirar implica noutra

– a de ad-mirar. Ad-miramos e ao adentrar-nos no ad-mirado o miramos de dentro

e desde dentro, o que nos faz ver (1976, p. 37)

84) Na ingenuidade, que é uma forma “desarmada” de enfrentamento com a realidade,

miramos apenas e, porque não ad-miramos, não podemos mirar o mirado em sua

intimidade, o que não nos leva a ver o que foi puramente mirado (1976, p. 37).

85) Por isto, é necessário que ad-miremos a frase proposta para, mirando-a de dentro,

reconhecer que não deve ser tomada como um mero clichê. A frase em discussão não

é um rótulo. Ela é, em si, um problema, um desafio (1976, p. 38).

86) Ad-mirar, mirar desde dentro, cindir para voltar a mirar o todo ad-mirado, que são

um ir até o todo e um voltar dele até suas partes, são operações que só se dividem

pela necessidade que tem o espírito de abstrair para alcançar o concreto. No fundo,

são operações que se implicam mutuamente (1976, p. 38).

87) Ao ad-mirar a frase que envolve um tema desafiador, ao cindi-la em seus elementos,

constatamos que o termo papel se acha modificado por uma expressão restritiva, que

delimita sua “extensão”: do trabalhador social (1976, p. 38).

88) Assim, se no primeiro momento, o que se faz é preponderantemente mirar a

codificação, no segundo, ela é “ad-mirada” (1976, p. 52).

89) Do ponto de vista da teoria do conhecimento que aqui defendemos, isto significa que

o dinamismo entre a codificação de situações existenciais e sua descodificação

compromete os educandos num permanente processo de ad-mirar sua anterior ad-

miração da realidade (1976, p. 53).

90) Ad-mirar” e “ad-miração” não têm aqui sua significação usual. Ad-mirar é

objetivar um “não-eu”. É uma operação que, caracterizando os seres humanos como

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tais, os distingue do outro animal. Está diretamente ligada à sua prática consciente e

ao caráter criador de sua linguagem. Ad-mirar implica pôr-se em face do “não-eu”,

curiosamente, para compreendê-lo. Por isto, não há ato de conhecimento sem ad-

miração do objeto a ser conhecido. Mas se o ato de conhecer é um processo – não há

conhecimento acabado – ao buscar conhecer ad-miramos não apenas o objeto, mas

também a nossa ad-miração anterior do mesmo objeto. Quando ad-miramos nossa

anterior ad-miração (sempre uma ad-miração de) estamos simultaneamente

admirando o ato de ad-mirar e o objeto ad-mirado, de tal modo que podemos

superar erros ou equívocos possivelmente cometidos na ad-miração passada. Esta

re-ad-miração nos leva à percepção da percepção anterior (1976, p. 53).

91) Os educandos necessitam descobrir o que há por trás de muitas de suas atitudes em

face da realidade cultural para assim enfrentá-la de forma diferente. A ad-miração de

sua anterior admiração da realidade é necessária para que isto se faça (1976, p. 54).

92) Se não tivessem sido capazes de romper com a aderência ao mundo, emergindo dele,

como consciência que se constituiu na “ad-miração” do mundo como seu objeto,

seriam seres meramente determinados e não seria possível então pensar em termos de

sua libertação (1976, p. 66).

93) Os que lêem, por sua vez, assumindo a mesma atitude, têm de re-fazer o esforço

gnosiológico anteriormente feita por quem escreveu (1976, p. 96).

4. Neologismos em Cartas à Guiné-Bissau

Em Cartas à Guinè-Bissau: registros de uma experiência em processo, encontramos:

1) O educador deve ser um inventor e um reinventor constante desses meios e desses

caminhos com os quais facilite mais e mais a problematização do objeto a ser

desvelado e finalmente apreendido pelos educandos. [...] E mesmo quando, nestas

relações, em que educador e educandos, curiosos, se acercam ao objeto de sua

análise, os segundos necessitam de alguma informação, indispensável ao

prosseguimento da análise, pois que conhecer não é adivinhar, a informação deve ser

precedida de certa problematização. Sem esta, a informação deixa de ser um

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momento fundamental do ato de conhecimento para ser a transferência que dele faz o

educador aos educandos (2011, p. 20-21).

2) A tarefa avaliadora aqui referida é um esforço formador e, como tal,

indispensavelmente ligada à investigação de novas formas de ação. Enquanto

problematização da prática, esta forma de avaliação é o seu momento crítico.

Momento em que os sujeitos da prática se voltam sobre ela para confirmá-la ou

retificá-la, neste ou naquele aspecto, enriquecendo a subsequente prática e nela

enriquecendo-se (2011, p. 177-178).

3) Neste sentido, se a opção do educador é revolucionária e se sua prática é coerente

com sua opção, à alfabetização de adultos, como ato de conhecimento, tem, no

alfabetizando, um dos sujeitos deste ato. Desta forma, o que se coloca a tal educador

é a procura dos melhores caminhos, das melhores ajudas que possibilitem ao

alfabetizando exercer o papel de sujeito de conhecimento no processo de sua

alfabetização (2011, p. 20).

4) As cartilhas enfatizem-se, e não outros materiais que pudessem ajudar os

alfabetizandos no exercício de fixação e de aprofundamento de seus achados (2011,

p. 21).

5) Isto não é, infelizmente, o que ocorre com as cartilhas, mesmo com aquelas cujos

autores, esforçando-se ao máximo em ir mais além do caráter doador que têm as

mesmas, oferecem aos alfabetizandos algumas oportunidades para que eles também

criem palavras e pequenos textos (2011, p. 21).

6) Na verdade, grande parte do esforço a ser realizado pelos alfabetizandos, sobretudo

no momento de criação de suas palavras, se encontra feito, nas cartilhas, pelo seu

autor ou por sua autora. Neste sentido, em lugar de estimular, nos alfabetizandos, a

curiosidade, as cartilhas reforçam neles a atitude passiva, receptiva, o que contradiz o

caráter criador do ato de conhecer (2011, p. 22).

7) É interessante salientar que, quer do ponto de vista das FARP, quer do Comissariado

de Educação, a alfabetização era tomada como um ato político, em cujo processo os

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alfabetizandos se engajam com a ajuda dos animadores – alfabetizadores – enquanto

militantes uns e outros, no aprendizado crítico da leitura e da escrita e não na

memorização mecânica e alienante de sílabas, palavras e frases que lhes fossem

doadas (2011, p. 37).

8) Numa perspectiva revolucionária, pelo contrário, impõe-se que os alfabetizandos

percebam ou aprofundem a percepção de que o fundamental mesmo é fazer história e

por ela serem feitos e refeitos e não ler estórias alienantes (2011, p. 37-38).

9) O conhecimento do conhecimento anterior, a que os alfabetizandos chegam ao

analisar a sua prática no contexto social, lhes abre a possibilidade a um novo

conhecimento: conhecimento novo, que indo mais além dos limites do anterior,

desvela a razão de ser dos fatos, desmistificando assim, as falsas interpretações dos

mesmos (2011, p. 38-39).

10) Obviamente, era necessário que os cinco componentes da equipe nos dividíssemos e,

assim, visitássemos alguns, pelo menos, dos Círculos de Cultura em funcionamento.

Era indispensável, no instante em que nos achávamos, o de ver e ouvir, indagar e

discutir, que observássemos como se "moviam”, nos Círculos, os seus participantes,

de um lado, os alfabetizandos, de outro, os animadores. [...] Até que ponto estariam

os alfabetizandos apropriando-se de sua palavra, exercitando a sua expressividade,

conscientemente envolvidos num ato político ou se, pelo contrário, estariam

simplesmente “aprendendo a ler e a escrever” (2011, p. 43).

11) O que a observação da prática nos Círculos de Cultura revelou é que, apesar dos

desacertos, os seus participantes, alfabetizandos e animadores, se achavam

engajados num trabalho preponderantemente criador. Em algo mais que

simplesmente aprender e ensinar a ler e a escrever (2011, p. 43-44).

12) Simultaneamente com o aprendizado da escrita e da leitura, os alfabetizandos

deveriam ser convidados a pensar sua prática e as finalidades que a motivam no

combate, por exemplo, [...] (2011, p. 49).

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13) Daí que a organização dos Círculos de Cultura, em que seus participantes começaram

o aprendizado da leitura e da escrita, associado à "leitura” e à "re-leitura” de sua

realidade, tenha sido assumida não só pelos alfabetizandos mas pela comunidade

mesma. [...] Jovens camponeses, com terceira e quarta classes primárias, nascidos e

crescidos no "mundo” de Sedengal e envolvidos, agora, com seus camaradas mais

velhos, na "re-leitura” e na "re-escritura” de seu mundo e não apenas na leitura e na

escrita de palavras (2011, p. 116-117).

14) É importante sublinhar a participação que tiveram os alfabetizandos na organização

deste manual. A grande maioria dos textos resultou de gravações dos debates

realizados nos Círculos de Cultura, durante a descodificação de situações a que se

referiam as palavras geradoras. O trabalho da equipe responsável foi o de editar, o de

organizar, o de sistematizar, numa linguagem que não se distanciasse demasiado da

dos alfabetizandos, o material recolhido. Desta maneira, se tentava, com o manual,

devolver aos educandos, de forma organizada, as suas análises anteriores, em forma

de textos, verdadeiras codificações; acrescidas de novos elementos (2011, p. 121).

15) O da preparação, não propriamente de uma cartilha, que sempre recusei e a que

dediquei, na Introdução mesma deste livro, umas páginas criticas, mas de um caderno

do alfabetizando, que, por sugestão do Comissário Mario Cabral, se chama Nô

Pintcha – Primeiro Caderno de Educação Popular (2011, p. 124).

16) Oferecer aos alfabetizandos uma ajuda, um suporte que lhes dê maior segurança no

processo de sua aprendizagem, estimulando-lhes, ao mesmo tempo, a criatividade

(2011, p. 125).

17) Analisemos, um a um, os dois momentos do Caderno. O primeiro deles é o em que os

alfabetizandos começam as suas primeiras experiências na aprendizagem da leitura e

da escrita dos signos linguísticos, associada à "leitura” e à "re-leitura” de aspectos da

realidade, representados nas codificações. É um momento em que se deve dar a maior

ênfase possível, na descodificação da codificação, a que se refere a palavra geradora,

à expressão oral dos alfabetizandos, ao lado da análise critica da situação codificada

(2011, p. 125).

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18) Estas folhas são um convite à criatividade dos alfabetizandos, que nelas irão

escrevendo, a princípio, as palavras que eles mesmos vão criando, através das

combinações silábicas; depois, a pouco e pouco, frases e sentenças. Seus pequenos

textos (2011, p. 125-126).

19) Até então, terão feito os alfabetizandos, preponderantemente, a "leitura” da realidade

através da descodificação de fotos e desenhos. Agora, serão chamados a fazer a

“leitura” da realidade através da leitura de um texto. Daí a necessidade de uma séria

atenção a ser dada à interpretação do mesmo, que deve ser "re-escrito”, oralmente,

pelos alfabetizandos (2011, p. 127).

20) Entre a décima quarta e a décima quinta palavra geradora, o segundo texto, um pouco

maior e menos simples que o primeiro, a merecer a mesma leitura crítica, a ser objeto

igualmente de interpretação e a ser, tanto quanto o primeiro, "re-escrito”, oralmente,

pelos alfabetizandos (2011, p. 127).

21) Com o domínio, agora, de 14 palavras e a experiência, mesmo ainda em seus

começos, da leitura feita dos dois textos, uma série de exercícios criadores, a serem

inventados e re-inventados, constantemente, e em função da realidade em que se

ache o Círculo, podem ser introduzidos. Um deles, por exemplo, a que

alfabetizandos de Bissau ou de outro centro urbano poderiam dedicar-se, seria o de

transcrever, em seu Caderno, as palavras de ordem do Partido, registradas em

cartazes ou simplesmente escritas nos muros da cidade, a que se juntaria, também, a

transcrição de trechos do jornal No Pintcha. Este material, recolhido pelos

alfabetizandos e pelo animador, após lido, seria objeto, na reunião do Círculo, da

análise de todos (2011, p. 127-128).

22) A existência, no jornal, de uma página, a serviço dos Círculos de Cultura, à

disposição de seus participantes, alfabetizandos e animadores ou animadoras, teria

um enorme papel a jogar. Página em que se noticiasse o que vem ocorrendo nos

Círculos, os avanços, as dificuldades dos alfabetizandos, as soluções encontradas

para algumas delas; em que se publicassem pequenos textos escritos pelos

alfabetizandos bem como sínteses das discussões em torno de certos temas de

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interesse nacional. Uma tal página daria um duplo suporte aos alfabetizandos no

exercício de leitura que seu caderno lhes oferecia. De um lado, algo mais para ler; de

outro, algo que não apenas falaria deles, mas através de que eles falariam (2011, p.

128).

23) Alfabetização de adultos que, numa perspectiva libertadora, enquanto um ato criador,

jamais pode reduzir-se a um quefazer mecânico, no qual o chamado alfabetizador vai

depositando sua palavra nos alfabetizandos, como se seu corpo consciente fosse um

depósito vazio a ser enchido por aquela palavra. Quefazer mecânico e memorizador,

no qual os alfabetizandos são levados a repetir, de olhos fechados, vezes inúmeras,

sincronizadamente: la, le, li, lo, lu; ba, be, bi, bo, bu; ta, te, ti, to, tu, ladainha

monótona que implica sobretudo numa falsa concepção do ato de conhecer. “Repete,

repete, que tu aprendes” é um dos princípios desta falsa concepção do ato de conhecer

(2011, p. 140).

24) Quando esses quinze estivessem no meio de sua capacitação, instalaríamos quinze

“Círculos de cultura” com vinte alfabetizandos em cada um. Por outro lado,

impunha-se um debate claro com os trezentos alfabetizandos desses quinze círculos

de cultura sobre a importância de sua contribuição. [...] Desta forma, desde o começo,

os alfabetizandos seriam chamados a assumir o papel de sujeitos no processo de sua

aprendizagem em que eles, igualmente, ensinavam algo. Ao mesmo tempo este

contacto direto dos alfabetizadores com os alfabetizandos no curso de sua

capacitação constituía a matéria-prima de uma reflexão crítica sobre sua experiência

imediata, alcançando-se assim a unidade entre teoria e prática (2011, p. 153).

25) Sabíamos que estávamos num Círculo de Cultura das FARP em Bissau, mas, em

certo sentido, era como se estivéssemos no Brasil de anos passados, aprendendo de e

com os alfabetizandos e não apenas a eles ensinando (2011, p. 158-159).

26) No Brasil esta discussão precedia a alfabetização e continuava com ela. No Chile,

sobretudo devido à reação dos alfabetizandos que exigiam começar imediatamente a

aprendizagem da escrita e da leitura, este debate era feito durante a alfabetização.

Importante é que se faça esta análise (2011, p. 173).

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27) Talvez fosse interessante testar algumas destas codificações brasileiras – as que

melhor se adaptem à realidade local – com alguns grupos de alfabetizandos, e

estudar sua reação (2011, p. 173).

28) Estes seminários de avaliação poderiam contar, também, com a presença de grupos de

alfabetizandos. Sua presença neles se justifica por duas razões básicas (2011, p.

177).

29) Não poderia estar em nossa cogitação relacionar a alfabetização de adultos à

produção no sentido de uma capacitação técnica dos alfabetizandos, por motivos

óbvios (2011, p. 197).

30) Em ambos os casos, na experiência chilena a alfabetização esteve associada à

produção, do ponto de vista da capacitação técnica dos alfabetizandos, com visões

políticas necessariamente opostas (2011, p. 197).

31) A “formação” intelectual pequeno-burguesa, que reforça a posição de classe dos

indivíduos, tende a levá-los à absolutização da validade de sua atividade,

considerada como superior à daqueles que não a têm (2011, p. 186).

32) Na verdade, nos achávamos envolvidos, com as equipes nacionais, num ato de

conhecimento, no qual, tanto quanto elas, devíamos assumir o papel de sujeitos

cognoscentes (2011, p. 59).

33) Sublinho este ponto, não apenas como algo que deveria ser referido na seqüência

desta introdução, mas também para, uma vez mais, aclarar a minha posição, nem

sempre bem compreendida, em face dele, isto é, do diálogo como selo do ato de

conhecimento, bem como do papel dos sujeitos cognoscentes neste ato (2011, p. 59).

34) Na verdade, nas relações entre o educador e os educandos, mediatizados pelo objeto

a ser desvelado, o importante é o exercício da atitude crítica em face do objeto e não

o discurso do educador em torno do objeto (2011, p. 21).

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35) [...] O da capacitação dos educadores militantes é um deles. Educadores que se

encontrarão em diálogo com os educandos militantes, mediatizados pela realidade

que juntos devem transformar e conhecer (2011, p. 208-209).

36) Parece-me que este é um dos problemas que uma sociedade revolucionária deve se

pôr no campo da educação enquanto ato de conhecimento. O do papel criador e

recriador, o da re-invenção que o ato de conhecer demanda de seus sujeitos. O da

curiosidade diante do objeto, qualquer que seja o momento do ciclo gnosiológico em

que estejam, o em que se busca conhecer o conhecimento existente ou o em que se

procura criar o novo conhecimento. Momentos, de resto, indicotomizáveis. A

separação entre esses momentos reduz, de modo geral, o ato de conhecer o

conhecimento existente à sua pura transferência “burocrática” (2011, p. 22).

37) Correndo o risco de ser exageradamente reiterante, diria que, tão cedo quanto

realisticamente possível, deve ser abolida a escola dicotomizante, onde quer que

exista, e jamais permitida a sua presença em áreas ainda virgens ao contacto de sua

força alienante (2011, p. 238).

38) Se o educador, pelo contrário, não é levado a "burocratizar-se” neste processo, mas a

manter viva a sua curiosidade, re-desvela o objeto no desvelamento que dele vão

fazendo os educandos e, assim, não raro, percebe nele dimensões até então

despercebidas (2011, p. 22).

39) Neste campo ainda, o da transformação do sistema educacional herdado do

colonizador, uma das tarefas a ser levada a cabo será a da capacitação dos novos

quadros do ensino e a da re-capacitação dos velhos (2011, p. 27).

40) O conhecimento é algo que deve ser “comido” e não feito e re-feito. O analfabetismo

é visto ora como uma erva daninha, ora como uma enfermidade, dai que se fale tanto

de sua "erradicação” ou dele como uma "chaga” (2011, p. 37-38).

41) [...] Por isso é que, envolta nelas, o que se percebe é a firme decisão do povo e de sua

vanguarda, o PAIGC, no sentido de concretizarem o sonho possível que perseguem

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desde o começo da luta – o de re-inventarem saia sociedade, banindo a exploração

de uns por outros e superando as injustiças (2011, p. 54).

42) Discretamente, com pudor revolucionário e, em coerência com este pudor,

absolutamente consciente do papel histórico de seu povo, é que aquele jovem

militante falou a Elza e a mim da prática em que se re-fez e da em que continuava a

re-fazer-se, junto com seus camaradas; da alegria de haver participado da dureza da

luta, da alegria de estar participando da reconstrução de seu país (2011, p. 54).

43) Ao falar aquela linguagem, em uma relação horizontal com os camponeses, Cabral

começava o enraizamento, no meio do povo, do PAIGC em formação, ao mesmo

tempo em que se intensificava o aprendizado de sua "re-africanização”, associada ao

“suicídio de classe” que se impunha aos intelectuais revolucionários africanos para

“não trair os ideais da revolução” e sobre que falou tão claramente em seus textos

(2011, p. 93-94).

44) Sempre que vamos à Guiné-Bissau, há um tempo reservado para novos encontros ou

novas visitas (ao lado dos re-encontros e das re-visitas) com os quais vamos mais e

mais nos tornando “íntimos” da realidade (2011, p. 96).

45) Seria, no caso, a prática da “re-leitura” critica de sua realidade, associada a uma

forma de ação sobre ela, a que poderia despertar a comunidade para o aprendizado da

leitura e da escrita dos signos linguísticos. O oposto, numa perspectiva

revolucionária, é que seria inviável, isto é, o aprendizado da língua sem o

aprofundamento da "leitura” e da "re-leitura” da realidade (2011, p. 113-114).

46) [...] Daí que a organização dos Círculos de Cultura, em que seus participantes

começaram o aprendizado da leitura e da escrita, associado à "leitura” e à "re-

leitura” de sua realidade, tenha sido assumida não só pelos alfabetizandos mas pela

comunidade mesma. [...] Jovens camponeses, com terceira e quarta classes primárias,

nascidos e crescidos no "mundo” de Sedengal e envolvidos, agora, com seus

camaradas mais velhos, na "re-leitura” e na "re-escritura” de seu mundo e não

apenas na leitura e na escrita de palavras (2011, p. 116-117).

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47) Juntaram esforços para a obtenção de instrumentos de trabalho; discutiram sobre o

que produzir e iniciaram o tratamento da terra para a semeadura. Começaram assim a

"re-escrever” sua realidade. Passaram do trabalho individual ao trabalho coletivo

(2011, p. 118).

48) A experiência de Sedengal simplesmente se afirmará noutro sentido, já evidente hoje:

no da "leitura” e no da "re-escritura” da realidade, sem o aprendizado da escrita e da

leitura dos signos linguísticos (2011, p. 120).

49) Daí a necessidade de uma séria atenção a ser dada à interpretação do mesmo, que

deve ser “re-escrito”, oralmente, pelos alfabetizandos (2011, p. 127).

50) [...] uma série de exercícios criadores, a serem inventados e re-inventados,

constantemente, e em função da realidade em que se ache o Círculo, podem ser

introduzidos (2011, p. 127).

51) Na minha primeira carta já lhe havia expressado o desejo de todos nós de trabalhar

com vocês, de dar a nossa contribuição, por mínima que seja, à busca em que

necessariamente se encontram de uma nova prática como de uma visão da educação,

que responda aos objetivos que a Guiné-Bissau, em processo de re-criação, exige

(2011, p. 142).

52) Quanto mais re-estudamos a obra teórica de Amílcar Cabral, expressão de sua

prática na prática de seu povo, tanto mais nos convencemos de que a ela teremos

sempre de voltar. Suas análises do papel da cultura na luta pela libertação não se

reduzem ao momento histórico da guerra (2011, p. 148).

53) A “re-africanização” desses intelectuais, sobre que tanto insistiu também Amílcar,

estava implícita nesta “morte” e neste “renascimento” (2011, p. 186).

54) Em última análise, estou convencido de que é mais fácil criar um novo tipo de

intelectual – o que se forja na unidade da prática e da teoria, do trabalho manual e do

trabalho intelectual – do que re-educar o intelectual elitista. Quando digo que é mais

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fácil, não excluo a possibilidade de uma tal re-educação, quando for este o caso

(2011, p. 187).

55) A delimitação do que conhecer, ao nível mesmo da alfabetização de adultos, quer

dizer, a constituição de seu conteúdo programático, não pode ser pensada fora dos

marcos da re-orientação do sistema educacional global que, por sua vez, tem de estar

em correspondência com o projeto da nova sociedade (2011, p. 187-188).

56) No ato de revê-los, de re-examiná-los, re-vejo e re-examino, também, a percepção

que deles tive na minha passada reflexão sobre eles. Mais ainda, e sobretudo, re-vejo

e re-examino a prática que tive, a prática que estou tendo e a prática dos outros, que

tomo como objeto de minha análise critica – a prática na qual os temas se configuram

como problemas (2011, p. 248-249).

57) De fato, o problema da língua não pode deixar de ser uma das preocupações centrais

de uma sociedade que, libertando-se do colonialismo e recusando o neo-colonialismo,

se dá ao esforço de sua re-criação. E neste esforço de re-criação da sociedade a

reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado fundamental (2011, p. 261-262).

Para complementar a relação das criações de Paulo Freire analisadas nesta tese, temos as

derivadas de slogan em:

Educação como prática da liberdade (1987)

1) O sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros. Pretende a todos

impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao ativismo,

que é ação sem vigilância da reflexão. Daí o seu gosto pela sloganização, que

dificilmente ultrapassa a esfera dos mitos e, por isso mesmo, morrendo nas meias

verdades, nutre-se do puramente “relativo a que atribui valor absoluto” (FREIRE,

1987, p. 51)

2) Por outro lado, preparando-se para depois discutir e perceber os mesmos engodos na

propaganda ideológica ou política. Na sloganização. Iriam armando-se criticamente

para a "dissociação de idéias" de Huxley (1987, p. 121).

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Pedagogia do oprimido (1988)

1) O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de

percepção da realidade que tenham os oprimidos, é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo

pelo antidiálogo, pela sloganização, pela verticalidade, pelos comunicados é pretender

a libertação dos oprimidos com instrumentos da “domesticação”. Pretender a libertação

deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é transformá-los em objeto que se

devesse salvar de um incêndio. É faze-los cair no engodo populista e transformá-los

em massa de manobra (1988, p. 52).

2) Daí que não sejam possíveis a manipulação, a sloganização, o “depósito”, a condução,

a prescrição, como constituintes da práxis revolucionária. Precisamente porque o são

da dominadora (1988, p. 123).

3) Por isto mesmo é que não pode sloganizar as massas, mas dialogar com elas para que

o seu conhecimento experiencial em torno da realidade, fecundado pelo conhecimento

crítico da liderança, se vá transformando em razão da realidade (1988, p. 131-132).

4) O diálogo com as massas não é concessão, nem presente, nem muito menos uma tática

a ser usada, como a sloganização o é, para dominar. O diálogo, como encontro dos

homens para a “pronúncia” do mundo, é uma condição fundamental para a sua real

humanização (1988, p. 134).

O diálogo não impõe, não maneja, não domestica, não sloganiza (1988, p. 166).

5) Problematizar, porém, não é sloganizar, é exercer uma análise crítica sobre a

realidade problema (1988, p. 167).

6) Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos não pode ser um trabalho de pura

“sloganização” ideológica. É que este, distorcendo a relação autêntica entre o sujeito

e a realidade objetiva, divide também o cognoscitivo do afetivo e do ativo que, no

fundo, são uma totalidade não-dicotomizável (1988, p. 172).

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Pedagogia da esperança (2003)

1) A falta total de sentido estaria se, após o silêncio que bruscamente interrompeu o nosso

diálogo, eu tivesse feito um discurso tradicional, “sloganizador", vazio, intolerante

(2003, p. 50).

2) Se às grandes maiorias populares lhes falta uma compreensão mais cm oca em torno

de como a sociedade funciona, não porque sejam, digo eu naturalmente. incapazes

mas por causa das condições precárias em que vivem e sobrevivem, porque vem sendo

proibidas de saber, a saída é a propaganda ideológica, a “sloganização” política e não

o esforço crítico através do qual homens e mulheres se vão assumindo como sujeitos

curiosos, indagadores, como sujeitos em processo permanente de busca, de

desvelamento de raison d’être das coisas e dos fatos. Daí que, no horizonte da

alfabetização de adultos, por exemplo, eu me ache, desde faz muito tempo, insistindo

no que venho chamando “leitura do mundo e leitura da palavra”. Nem a leitura apenas

da palavra, nem a leitura somente do mundo, mas as duas dialeticamente solidárias

(2003, p. 106).

A importância do ato de ler (1999)

1) O Segundo Caderno de Cultura Popular, com o qual se inicia ou se pretende iniciar a

pós-alfabetização, é um livro de textos, escritos em linguagem simples, jamais

simplista, que uma temática ampla e variada, ligada, toda ela, ao momento atual do

país. O que se pretende com estes textos - entre os quais serão alguns transcritos na

Segunda Parte deste trabalho - é que eles se entreguem à curiosidade crítica dos

educandos e não que sejam lidos mecanicamente. A linguagem dos textos é

desafiadora e não sloganizadora. O que se quer é a participação efetiva do povo

enquanto sujeito, na reconstrução do país, a serviço de que a alfabetização e a pós-

alfabetização se acham (1999, p. 39).

2) A mobilização e a organização popular, em termos realmente participatórios, que são

em si, já, tarefas eminentemente político-pedagógicas, às quais a alfabetização e a pós-

alfabetização não poderiam estar alheias, são meios de resposta àquele desafio. Como

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meio de resposta a ele, é a informação formadora e não sloganizante, domesticadora,

em torno dos mais mínimos problemas que tenham que ver com o destino do país

(1999, p. 41).