Pedro Moacyr Campos - A Idade Média na obra de Hermann Hesse

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    A IDADE MDIA NA OBRA DEHERMANN HESSE.

    PEDRO MOACYR CAMPOSDo Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia,Letras e Cincias Humanas da Universidade de SoPaulo."Fragmentos de uma grande confisso", foi como Goethe certavez definiu sua obra . Tal definio cabe perfeitamente a HermannH esse . Ele mesmo m uitas e muitas vzes nos diz, em p assagens comoa seguinte, por exemplo:

    "Quase tdas as obras de fico em prosa que escrevi so bio-grafias da alma, nas quais se trata, no de enredos, tramas e tenses,mas em ltima anlise de monlogos, em que uma nica pes-soa (...) considerada em suas relaes com o mundo e com oprprio eu (1)".

    D e um a ou d e out ra form a, em m eio a idealizaes e fantasias, oautor legar-nos-ia, portanto, documentao essencialmente autobio-grfica. Considere-se, bem entendido, no apenas a biografia em seuaspecto accessvel ao m und o exterior, no campo das relaes humanase da vida ativa no p lano concreto, m as principalm ente no seu mun dontimo, abrangendo o campo das idias, a esfera espiritual. J no inciodo D e m i a n somos prevenidos de que"minha histria mais importante para mim do que a sua para

    qualquer poeta; pois ela a minha prpria, ela a histria de umhomem, no de uma pessoa inventada, possvel, ideal ou de qual-quer forma no existente, mas de uma pessoa real, viva e nica (2)".

    Partindo da, pensamos justificarem-se no ssas consideraes acr-ca do reflexo que o mundo medieval, mediante tradies e leituras, agin-do como estmulo para a imaginao, deixou na obra de Hermann(1) . Eine Arbeitsnacht, in "Gesammelte Schriften", 7, pg. 303.(2). Pgs. 9-10.

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    Hesse . Pois, se esta marcada por um carter autobiogrfico, entotambm o que nela encontrarmos referente Idade Mdia correspon-der ao resultado das cogitaes e reaes desencadeadas no espritodo autor pelo contacto com aquela fase da histria; esta assume, as-sim, relevante papel no mundo de suas idias e na sua prpria visoda vida . Indispensvel para a compreenso da obra, portanto, afigu-ra-se-nos o assunto que escolhemos .

    Referimo-nos acima a tradies e leituras. Mas podemos princi-,iar por algo bem mais prximo e concreto: o ambiente mesmo, aatmosfera em que se desenvolveram a infncia e juventude do poeta .Seu temperamento predispunha-o a deixar agirem sbre si a naturezae o quadro material em que se iniciava sua formao, como se inferede inmeras passagens, mas especialmente da seguinte:

    "meus sentidos eram espertos, delicados e finos, neles eu podiaconfiar e deles derivar muitos prazeres, e embora mais tarde eu tenhacedido irremedivelmente s tentaes da metafsica, chegando poralgum tempo a mortificar e negligenciar meus sentidos, no obstantea atmosfera de uma sensualidade finalmente desenvolvida, em espe-cial no concernente viso e ao ouvido, permaneceu-me sempre fiele desempenhou papel ntimo e vivo no mundo de minhas idias,mesmo quando estas parecem classificar-se como abstratas. Eu jadquirira, assim, um certo equipamento para a vida, como disse, muitoantes do como dos anos escolares. Movia-me vontade em nossacidade natal, nos galinheiros e florestas, nos pomares e oficinas dosartesos, conhecia as rvores, pssaros e borboletas, sabia cantarcanes tradicionais e assobiar entre os dentes e ainda muita coisaimportante para a vida (3)".

    O fragmento Kindheit des Zauberers, expressamente preferidopelo autor como documento autobiogrfico (4), sublinha ainda estaaptido, como se v:

    `Era eu um menino vivaz e feliz, brincando com o belo mundocolorido, em tda parte vontade, no menos entre os animais eplantas do que na floresta virgem de meus prprios sonhos e fanta-sias, satisfeito com minhas fras e capacidades, mais enlevado doque consumido pelos meus candentes desejos (5)".

    Obrigatriamente, portanto, se pretendermos chegar a alguma com-preenso do poeta, seremos levados a verificar qual ste "belo mundo K u r z g e f a s s t e r L e b e n s la u f , in T r a u m f a e h r t e , pgs. 95-96. Idem ., idem , pg. 93. In T ra u m f e h rt e , pg. 63.

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    359 colorido" em que passou seus primeiros anos de vida. De incio, apequena cidade alem: Calw, no ltimo quartel do sculo XIX, poisH esse nasceu em 1877.

    "Entre Bremen e Npoles, diria mais tarde o poeta entreViena e Singapura, vi muitas cidades bonitas, cidades a beira-mar ecidades nas montanhas e, como peregrino, abeberei-me em muitafonte para depois sentir o doce veneno da saudade. Mas a maisbela de tdas as cidades que conheo Calw no Nagold, uma peque-na, velha cidadezinha da Floresta Negra subica (6) 1 '.

    Fundada em data incerta, documentada pela primeira vez em1281, Calw, destruda e reconstruda mais de uma vez, manteve-sesempre prsa aos seus traos originais, comuns, alis, s cidades su-bicas fundadas na Idade Mdia: uma rua principal, ajustando-se to-pografia mo ntanhosa, liga uma a outra po rta (S c h e u f e l to r O b e r e T o r ,no nosso caso) e constitui-se num eixo loUgitudinal; nela, a praaprincipal ( M u r k t p . ' a t z ) , no cortada ao meio, mas como que suamargem. Ruelas, s vzes ngremes, o rio Nagold, a ponte de pedracom a capela de So N icolau.N o raro os p ersonagens de H esse passeiam p or esta cidade, co-mo se l, po r exemplo, no seguinte:

    "Lentamente atravessou le a praa principal, passou pela v e lh asde da Municipalidade, seguiu pela Viela do Mercado e, deixandoatrai de si a cutelaria, dirigiu-se velha ponte. L flanou um poucopara cima e para baixo, para finalmente sentar-se no largo parapeito.Durante semanas e meses passara por aqui dia a dia, bem umas qua-tro vzes, sem ter um olhar para a pequena capela gtica da ponte,ou para o rio... (7)".

    A capela particularmente d igna de no iva: rem on tando, em suasorigens, ao sculo XI, smente no sculo XV, entretanto, adquiriusua forma definida, cabendo-lhes proteger a passagem do rio; da serdedicada a So N icolau, o m ais antigo dentre os patro no s das guas edas pontes . Hesse, a respeito de seu intenso apgo a ste detalhe desua terra natal, no escond e sua emoo, com o se v:"Mas quando agora novamente fico sentado durante uns quinze

    minutos no parapeito da ponte, de onde, em tempos de menino, m ilvzes deixara pender o anzol, ento sinto, fundo e com maravilhosa

    (6) . Heimat (1918), in Bilderbuch, GS., 3, pg. 932.(7). Untcrm Rad, pg. 15.

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    360 comoo, como isto era belo e rememorvel: ter tido outrora umtorro natal! (8)".

    Ora, tudo, neste quadro, lembra a Idade Mdia, de modo a per-mitir d izer-se que a cidade"com a maior verossimilhana, permanece em seu plano geral

    tal como era ha 700 anos (9)". Ou seja: trata-se de "cidadezinhaacostada ao rio, aos ps das montanhas cobertas de florestas de pi-nheiros (10)", com "imutveis, pobres estreitas vielas (11)",

    que dr o envelhece nem se transforma, a despeito de novidades e modi-ficaes por tda parte (12) . Embora em conexo com outras lem-branas, ajustam-se aqui as palavras de Hesse, ainda extradas de seupequeno captulo H e i m a t :"Isto explica a notvel beleza da cidade de Calw. No h neces-

    sidade de descrev-la, pois ela se encontra em quase. todos os livrosque escrevi (13)".

    O que suficiente para comprovar at que ponto o cenrio davelha cidadezinh a repercutiu lia criao literria do po eta.O rio e a floresta: um quadro natural caracterstico e fazendotambm a ligao com o passado. A floresta, esta floresta qual se

    -dedica a ltima frase da encarnao indiana de Josef Kn echt, to p ro-funda de sentido e de poesia (14) e que encerra o G la s p e r le n s p i e l, um dos ambientes de maior destaque na obra de Hesse. Foi ela, ine-vitvelmente, parte integrante essencial do meio de sua fo rmao."A nossa volta" lemos nas suas recordaes de infncia "es-

    tava a cidadezinha, velha e encorcovada, e volta dela as monta-nhas cobertas de florestas, severas e um tanto escuras, e pelo meiocorria um belo rio, encurvado e hesitante, e eu amava tudo isto echamava-o torro natal, e na floresta e no rio conhecia direitinho as

    H e im a t , GS., 3, pg. 933. Rheinwald, E. e Rieg, G., C a lw -G e s c h ic h te u n d G e s c h ic h te n a u s 9 0 0

    J a h r e n , A. Oelschlaeger, Calw, 1952, pg. 181. Kleine W elt, pg. 176.

    (11)., I d e m , pg. 177. I d e m , pg. 1779. In GS., 3, pg. 933. "Mehr ist von Dasas Leben nicht zu erzaehlen, das uebrige vollzogsich jenseits der Bilder und Geschichten, Er hat den Wald nie mehr verlassen".

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    361 plantas e o solo, as pedras e as cavernas, as aves, o esquilo a raposae o peixe. Tudo isto me pertencia, era meu... (15)".

    So freqentes em suas obras as passagens em que a floresta sedescreve de modo a evocar todo o amor que inspirava ao menino eque foi mantido durante tda a existncia. Via de regra no so pas-sagens longas, mas, em compensao, repletas de uma poesia que sse explica pela lembrana do que de mais agradvel lhe ficara de suainfncia e adolescncia (16). E j que falamos em poesia, justamenteuma poesia que podemos invocar, entitulada Schwarzwald, confirmandoo que acabamos de dizer (17) . No esqueamos, alm do mais, afloresta como fundo de grande parte dos contos transmitidos pela Ida-de Mdia e retrabalhados pelo romantismo; desta forma agiram lessbre o esprito em desenvolvimento. E inegvel o tom romnticoexpresso em p alavras como estas, po r exemplo:

    "Nos verdes espaos encimados por abbadas, fluia uma suaveluz esverdeada, enquanto o solo da floresta se perdia distncia,num crepsculo pardacento cheio de pressentimentos. O que portraz disto se movia, rudo de flhas e batidas de azas, tudo vinhacomo se fsse de encantados fundos de contos, soava com estranhoe misterioso som e podia significar tanta coisa (18)".

    Quanto ao rio, bastar a meno de seu significado na infnciado po eta, vrias vzes reconh ecido expressamen te e refletido com in-tensidade n o Unterm Rad, para que nos dispensemos de maiores di-gresses (19) . In Traumfaehrte, pg. 71. Significativo exemplo de descrio dafloresta encontra-se em Eine Stunde hinter Mitternacht, in Fruehe Prosa, pgs.32-33. Tpica, a tal respeito, a passagem de Unterm Rad, pg. 59. Gedichte, pgs. 82-83. Veja-se a primeira estrofe:Seltsam schoene HuegelfluchtenDunkle Berge, helle Matten,Rote Felsen, braune Schluchten,Ueberflort von Tannenschatten! Aus Kinderzeiten, in Diesseits, pg. 66. O tema da gua seria talvez o que melhor permitisse abranger emsua totalidade o simbolismo da obra de Hesse. Lembremos apenas o papel do rioem Siddhartha, a morte de Klein e de Knecht, o fim de Giebenrath e do prprioGoldmund, sempre em relao com um lago, um rio, um riacho. Considerando-se afuno da gua como aspecto do reino mgico, seu simbolismo materno, sua repre-sentao do inconsciente e seu sentido de profundidade em que se ocultam os va-lores perseguidos pelo heri, veremos como iramos longe em nossas cogitaes (cf.Hedwig von Beit, Symbolik des Maerchens, Bern, Francke Verlag, 1952, 792 pgs.).

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    362 Pelo rio e pela floresta, num caminho em que se tem a impresso

    de penetrar no prprio mundo do conto, chega-se a Hirsau. As runasdo mosteiro, que caracterizou todo um ramo do estilo romnico naAlemanha (20), falam por si mesmas: impossvel a qualquer pessoadotada de alguma sensibilidade esquivar-se impresso causada pelocenrio . E nada mais medieval do que aquelas runas . A sensao deencanto que se experimenta diante da Eulenturm, para comear, j como que resultado da presena de outros tempos, da Idade Mdia, verdade, mas especialmente note-se da Idade Mdia j veiculadapelos romnticos alemes . Quando mais no fsse, bastaria a menode Uhland, com sua poesia Die Ulme zu H irsau, para documentar o quedizemos. E de Hesse, que, em Ueber H irsau (21), associa a paisa-gem aos seus sonhos de meninice (22) .

    Mas, incomparvelmente mais significativo,"a noroeste da regio, est, em meio a colinas cobertas de flo-

    restas e pequenos e calmos lagos, o grande mosteiro cisterciense deMaulbronn (22)".

    Trata-se de uma fundao do sculo XII, pela qual passaramarquitetos e escultores do romnico e do gtico, at fins do sculo XV(23) . A repercusso de Maulbronn no mundo visual de Hesse afi-gura-se-nos justificando um estudo parte, to profunda ela. Limi-

    Cf. Karl Greiner, Hirsau, Calw, Oelschlaeger, 1953, 54 pgs.: "Nosmente a reforma interna da Ordem Beneditina expandiu-se, assim, de Hirsau paralocais distantes, mas tambm traos tpicos da construo de igrejas dos mosteirosligados a Hirsau eram e so em parte, hoje ainda, reconhecveis como imitao deHirsau. Na histria da arte, em vista disto, desde muito originou-se o conceito, em-bora hoje um tanto vago, de "escola arquitetnica de Hirsau" (pg. 16). Cf. domesmo autor, Neue Studien zur Hirsauer Geschichte, Calw, Ernst Kirchherr, 1937,56 pgs.Gedichte, pg. 57:Rast haltend unter EdeltannenBesinn' ich mich der alten Zeit,Da in mero erstes KnabenleidDieselben Waldesduefte rannen.An diesem Ort ich lag im MooseUnd traeumte scheu und knabenwildEM blondes, schlankes Maedchenbild,In meinem Kranz die erste Rose.Etc.

    Unterm Rad, pg. 75. Cf. Klostcr Maulbronn, Bilder von Helga Glassner, Text von KarlHeinz Clasen, Langewiesche Buecherei, erlag Karl Robert Langewiesche, Koenigsteinim Taunus, s. d., 48 pgs.

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    363 tando-no s aos seus traos principais, comecemos invocando uma passa-gem de Eine Stunde hinter Mitternacht, como se v:

    "Por traz das colinas sabia eu estar o mosteiro, onde pela pri-meira vez aprendera a pensar sbre o hoje e o amanh, onde sentirapela primeira vez o acridoce sabor do conhecimento e os mais docespressentimentos da beleza oculta. L chegaram aos meus receptveisouvidos todos os grandes nomes, que bem alto e solenemente presi-diam minhas idias, os grandes nomes de Perides, Socrates e Fidias,e o maior ainda de Homero. Meu esprito via claramente suafrente as abbadas das salas e as janelas gticas do claustro e grandeera a tentao de avanar, de degustar a melanclica atmosfera doreencontro. Mas parei; temia destruir o quadro formado no meuntimo; temia deparar com outras pessoas andando, onde eu emsonhos era to familiar (24)".

    Em Maulbronn passa-se grande parte do drama do pobre Gie-benrath em Unterm Rad, e l, no seminrio pro testante, passou tambmHesse sua primeira grande crise . Repleta de lembranas do mosteiro tda a passagem referente a Blaubeuren em Die Nuernberger Reise(25), ensejando um a ob servao com o a seguinte:"Havia uma Idade Mdia que estava mais prxima de ns ecujos atrativos no eram menores; tratava-se de nossa mocidade, e

    agora considervamos as relquias daqules lendrios tempos...".Mariabronn, de onde Goldmund parte para sua peregrinao epara onde volta a fim de morrer, parece-nos ser uma verso deMaulbronn. E o prprio ambiente da Ordem em que se forma e de-senvolve Josef Kn echt, bem como Waldzell, onde p assa algum tem po ,continuam a lembrar-nos o mesmo antigo mosteiro.De princpio ao fim da obra de Hesse, portanto, o cenrio ve-

    tusto empresta um reflexo m edieval s suas no velas . Aind a em 1954,voltava o poeta a fazer uma ligeira descrio de Maulbronn num pe-queno trabalho entitulado Ein Maulbr'onner Seminarist (26), e noraro deparamos em seus escritos m enores com reminiscncias associadasao mosteiro (27) . Referncia especial merece o pequeno ensaioDer Brunnen im Ma ulbronner Kreuzgang, onde se confirma a profunda In Fruehe Prosa, pg. 34. Kurgast Die Nuernberger Reise, pgs. 219 ss.. In Beschwoerungen, pgs. 53 e ss.. Cf. Herbstliche Erlebnisse, in Beschwoerungen, pgs. 135, 139;

    Schulkamerad Martin, in Spaete Prosa, pg. 145.

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    364 impresso deixada pelo ambiente do seminrio no esprito de Hesse .Sirva de exemplo o seguinte:

    "Por tda parte a recordao viva, e por traz dela, como sefssem restos de antigos quadros surgindo por entre renovadas ca-madas de pintura, achavam-se, c e acol, traos que iluminavam re-cordaes ainda mais profundas, misteriosos fragmentos da incons-ciente vida do esprito de outrora, ecos recobertos e esquecidos, quaseno compreensveis, de vivncias mais fundas e mais solitrias dostempos de menino... (28)".

    In m eros traos m edievais, assim , partind o j do cenrio d e suaformao, pressionam o esprito do poeta . Mas no s no ambientematerial. Voltando-se a Eine Stunde hinter Mitternacht, chama-nos aateno uma passagem como esta:"Lembras-se ainda, disse-me ela, da histria de Blondel, dos

    teus tempos de criana? E' dado aos poetas lembrarem-se mais deseus primeiros tempos do que as outras pessoas. Se ainda o sabes,conta-nos algo a respeito. O fato, dos meus comeos de menini-ce, no qual eu no pensara durante anos, surgiu novamente comclareza, como se fsse uma tmida figura de criana. E eu contei:"Quando ainda era pequeno, sequer tendo chegado aos seis anos deidade, aconteceu-me nem sei onde e quando ouvir a histriado trovador Blondel. No a compreendi bem e logo a esqueci, maso delicado, amvel nome Blondel fixou-se em minha memria epareceu-me maravilhosamente fino e bem sonante, de tal modo que,volta e meia, eu o repetia baixinho (29)".

    Blon del de N esle, lendrio amigo de Ricardo -Corao-de-Leo ecorrespondendo a uma das mais antigas lembranas do poeta...Ao que parece, sua imaginao foi habitualmente nutrida portemas medievais, a julgar-se pela freqncia com que se manifestam,reminiscentes em sua ob ra. Autob iogrfica, certamente, uma ilustra-tiva passagem de Herrnann Lauscher, um de seus primeiros trabalho spublicados, em 1901; lemos o seguinte:

    "... sorvi profundamente da fonte dos contos. ChapusinhoVermelho, o fiel Johannes e Branca de Neve e os sete anes... (30)".

    In Am Weg, pg. 44. In Fruehe Prosa, pg. 37. Idem, pg. 139.

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    365 E medieval a atmosfera de tais bem como de outros diversoscontos transmitidos de gerao em gerao e sistemticamente coligidose publicados pelos romnticos alemes . Seriam, portanto, comuns infncia europia da segunda metade do sculo XIX . Nada demais,at a, que justifique a suposio de um reflexo especial na elaboraopotica de Hesse .Acontece que nosso autor foi bem alm, porquanto sua imagi-nao parece ter sido particularmente impressionada pelas narrativasinfantis, levando-o ao menos em parte prpria Idade Mdia.Assim que, em 1918, numa srie de pequenos volumes publicadospela Editra Buecherzentrale fuer deutsche Kriegsgefangene, o de n19 ent itulava-se Aus dem Mittelalter, e nle se continham, alm dequatro narrativas extradas de Das kleine alte Novellenbuch, de LeoGreiner (entre elas a histria de Helmbrecht), seis historietas dosGesta Romanorum, apresentadas por H ermann H esse. Em 1925, no-va edio de captulos medievais, agora abrangendo, alm dos ex-cerptos dos Gesta Romanorum, trechos do Dialogus Miraculorum, deCaesarius von Heisterbach. No prefcio, Hesse apresenta-se como oprprio tradutor de Caesarius, a quem considera uma importante fontepara a histria cultural da Alemanha do sculo XIII (Caesarius mor-

    reu aproximadamente em 1245) . Aps referir-se aos Gesta Romano-rum (cujo mais antigo manuscrito daata de 1342) e traduo deGraesse, da qual se utilisou, lamenta, em rpidas frases destinadas ajustificar a publicao, que a cultura medieval tenha sido durantetanto tem po negligenciada em favor d os estudo s de Antigidade cls-sica (31) . Se alguma dvida, portanto, pudesse subsistir quanto aointersse do po eta pela Idade Md ia, de m aneira especial, desfar-se-iaela diante da ed io dste vo lume.O m on ge de H eisterbach, alis, m encion ado com o leitura cor-rente de Hesse em 1904 (32), inegveis reflexos de suas narrativas,bem como dos Gesta Romanorum, perpassam pelo Fabulierbuch, e aperegrinao espiritual objeto de Morgenlandfahrt abrange expressa-mente a Idade Mdia, como se v:

    "Acampamos, depois de termos, em ousadas incurses, atraves-sado metade da Europa e uma parte da Idade Mdia... (33)".

    (31) . Geschichten aus dem Mittelalter, herausgegeben von Hermann Hesse,Karl Hoenn, Konstanz, Landschlacht, 188 pgs. Prefcio, pgs. 8-10. Parte dasedies 1 a 3 publicou-se tambm pela editra Muensterpresse, Horgen, Zueiich,Leipzig. Am Ende des Jahres, in GS, 7, pgs. 8-9. Pg. 41. Cf. pg. 30.

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    No decorrer do volume, encontramos Alberto Magno como umdos chefes, mencion am-se os Staufer e a conquista da Siclia, bem co-mo as lendrias elevaes de Kyffhaeuser (34) .A quase obsesso p ela magia, bvio, orienta-no s tamb m p araa atmosfera medieval, e no p or acaso que um dos p ersonagens favo-ritos de H esse tenha o no me de K lingsor, o m esmo n om e do m gicodo Parzivcd, de Wolfram vo n E schenbach (entre 1170 e 1220, aproxi-madamente) (35) .E ' certo, tambm , terem co laborado outro s elemento s, de diver-

    sas fontes orientais, para alimentar a fantasia de Hesse, no concer-nente aos temas relacionados com a magia e o conto mgico . Ineg-velmente fort e, po rm, o pso da tradio vinda atravs do s sculosmedievais (embora sua origem possa ser oriental, muitas vzes), pes-quisada, coligida e organizada pelos romnticos . Acrescentemos umoutro veculo de ao dste material, alm da tradio oral e das lei-turas: foi le o insp irador de um sem-nm ero d e ilustraes pepu'ares,cultivadas inclusive por artistas de gabarito, como Moritz von Schwinde Ludwig Richter . E obvio ter H esse entrado em contacto com taisilustraes, para as quais certamente sua sensibilidade se abriria, poisdedicou-se tambm pintura, alm da literatura (36) .Em mais de uma ocasio Hesse tratou expressamente de suas pre-ferncias literrias, proporcionando-nos dados concernentes s suasfontes. O maior trabalho desta categoria, verdade, apresenta valorum tanto limitado, para o nosso caso, considerando-se o o bjetivo paraque foi composto . Trata-se de Eine Bibliothek der Wekliteratur, orien-tao geral para a constituio de uma moderada biblioteca de litera-tura universal pelo cidado mdio de lngua alem. Certamente, noiramos encontrar a referncias a monges medievais ou a autores doconhecimento de iniciados . Mas, bem no incio, ao lado das Mil e

    Uma Noites, l esto os contos dos irmos Grimm . As Confisses de(34) .Pgs. 10, 57, 21, 47. Note-se que tambm nas poesias sentem-se osreflexos de Idade Mdia. Veja-se, por exemplo, Nach dcm Lesen in der Summa contra

    Gentiles, in Gedichte, pgs. 389-390. Lembremos a novela Klingsors Letzter Sommer; as poesias Klingsoran Edith, Klingsor zccht im herbstlirhen Waltie, Klingsor an den "Schatten", Ge-denken an den Sommer Klingsors (Gedichte, pgs. 292, 285, 308 e 352). Veja-seainda Die Morgenlandfahrt, pg. 27 e o conto Vogel, in Maerchen, pgs. 225-226.Gachmuret e Herzeloyde, pai e me de Parzival, bem como outros nomes do mesmopoema, surgem no conto Chagrin d'Amour, in Fabulierbuch, pgs. 101-110.

    Foi aquarelista e ilustrou alguns de seus prprios trabalhos: PiktorsVerwandlungen, Suhrkamp, Berlin u. Frankfurt a. M., 1954; Gedichte des Malers,Kirchhoff, Freiburg i. Br., 1953-54 (3a. edio); Wanderung, Suhrkamp, 1949(edio 14 a 23).

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    Santo Agostinho incluem-se como abrindo a tensa atmosfera da IdadeMdia nascente, seguindo-se o reconhecimento das dificuldades deacesso literatura medieval, como se v:"O mundo espiritual da Idade Mdia, at h pouco entre ns

    geralmente chamado de "obscuro", foi bastante negligenciado pelosnossos pais e avs, resultando da possuirmos poucas edies moder-nas e tradues da literatura latina daqueles sculos; honrosa exce-o a excelente obra de Paul von Winterfeld, Deutsche Dichter deslateinischen Mittelalters, que me parece muito benvinda em nossabiblioteca (37)".

    D ante e Bo ccaccio, claro, so obrigatrios, e voltamo s logo aonosso assunto:"Entre o que de mais belo a Idade Mdia produziu, esto as

    lendas hericas crists francesas, inglsas e alems, antes de tdas asdo rei Artur e da Tvola Redonda. Parte destas lendas, difundidaspor tda a Europa, encontram-se nos Deutschen Volksbuechern, aosquais pertence um lugar de destaque em nossa coleo (38)".

    Po esias dos trovado res, as sagas escand inavas, os grandes po etasalemes (Wolfram von Eschenbach, Walther von der Vogelweide eGottfried von Strassburg) mencionam-se expresamente, confirmandoo intersse do autor pelo perodo . E isto afigura-se-nos de relevo, prin-cipalmente no que se refere literatura popular alem ( D e u t s c h eV o lk s b u e c h e r ) e nfase com q ue so recom endado s.E m ltima anlise, entretanto, b vio q ue a Idade Mdia deveriaestar condignamente representada numa biblioteca de literatura uni-versal. Seria contestvel pretend er-se inferir da relaes especiais como m undo imaginrio e a obra do poeta, mesmo po rque, apesar de suasinegveis afinidades com o perodo, no tem le a primazia em suapreferncia, uma vez que, segundo seu testemunho,

    "o domnio da literatura universal que principalmente freqenteiem minha vida e que tambm melhor aprendi a conhecer, correspondequela Alemanha hoje dando a impresso de se ter distanciado infi-nitamente, Alemanha transformada em lenda do sculo entre 1750 e1850, aquela Alemanha cujo ponto mdio e cujo cume Goethe(39)".

    Pg. 27. Pgs. 29, 39. Lieblingslektuere, in Bibliothek der Weltliteratur, pg. 90. Cf. Die

    Nuernberger Reise, pg. 225.

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    368 E a, nesta fase, incluem-se os romnticos, Novalis, Brentano, vonArnim, Hauff e outros . Todos les destacam-se na B i b lio t h e k d e rW e i t lit e r a t u r . Todos les, tambm, eram impregnados de Idade M-dia. E , segundo n os p arece, atravs dles que m i - mente adquire suacolorao a Idade Mdia vista por Hesse, tal como a encontramos re-fletida em sua obra . Bem estendido, o parentesco de Hesse com osromnticos prticamente um logar-comum em estudos relativos sua obra, e o prprio ttulo d as primeiras po esias por le publicadasR o m a n t is c h e L ie d e r, em 1899 autoriza, sem som bra de dvida, talassero. Sua obra est repleta de trechos que a confirmam, a tal

    po nto que, abrindo-se ao acaso, deRaramo s nada meno s do que como seguinte:"Li ento outros po etas (...) encon trei (...) nossos grandes

    autores, que ningum mais conhece, encontrei (... ) Novalis (...) eo fogso jovem Goethe, e o velho Goethe com o sorriso misterioso,achei (Kleist (... ), Brentano (... ), Hoffmann (...), Moeri-ke (, Stifter e todos, todos os Excelsos: Jean Paul! Arnim!Buechner ! Eichendorff ! Heine! Neles baseei-me, minha aspiraopassou a ser tornar-me seu irmo mais nvo (40)".

    Alm de tem peramento , disposio n atural e do amb iente que olevariam naturalmente literatura romntica, no faltaram tambmcrises pessoais ensejando um do s traos indispensveis para a caracte-rizao de um d esajuste com o m undo e de fuga para um a esfera ima-ginria: ou seja, para um dos motores do processo romntico. O pri-meiro grande momento, nste caso, foi o choque com a escola . Tofreqentes e to en fticas so as passagens em que se do cumenta steconflito, que suficiente a referncia a um a ou ou tra den tre elas . To-mem os, assim, o K u r z g e f a s s t e r L e b e n s l a u f (41), o snho descrito emN a e c h t lic h e S p i e le (42) e, acima de tudo, a novela Unterm Rad .Nesta ltima descreve-se todo um conjunto de presses sbre um me-nino , Hans G iebenrath, exigind o esforos maiores e cada vez maioresem seu rendimento escolar . Sua vida sacrificada escola, e suasade que acaba por ceder, levando-o ao esgotamento e ao malgroem que termina sua existncia . No seminrio de Maulbronn, colegade Giebenrath, est Hermann Heilner, o estudante que se rebela, opo eta que se afirm a mediante a fuga da escola, desaparecend o da no-vela. Ora, em 1953, assim se expressava Hesse acrca de U n t e r mR a d :

    . Traumfaehrte, pg. 47-48.

    . Idem, pg. 94 e ss..

    . In Beschwoerungen, pg. 88 e ss..

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    369 "na histria e na imagem de Hans Giebenrath, ao qual se asso..cia como colaborador e contraposio seu amigo Heilner, pretendia

    eu representar a crise daqueles anos de desenvolvimento e libertar-mede sua lembrana; para, nesta tentativa, disfarar o que me faltavaem ponderao e maturidade, agi um tanto como acusador e crticodas fras sob as quais sucumbe Giebenrath e s quais eu prprioquase fui sacrificado: as fras da escola, da teologia, da tradioe da autoridade... Mas, tendo ou no minha tentativa resultado emxito, o fato que o livro contm um pedao de vida realmente vi-vido e sofrido (43)".

    Isto porque, aos quinze anos de idade, H esse G iebenrath-H eil-ner na no vela realmente fugiu do sem inrio e durante mais de qua-tro anos viveu trabalhando em diferentes atividades, enquanto pros-seguia a luta p ara con tinuar seus estudo s. Mais um a vez, le prp rioque nos relata os fatos (44) . Por fim, tudo entrou nos eixos,"tudo parecia estar em ordem. A chegou o vero de 1914 e,

    subitamente, por dentro e por fora, tudo se transformou. Eviden-ciou-se que nosso bem-estar de at ento repousara em solo inseguroe teve incio o mal-estar, a grande educao (45)".

    E com a guerra e suas decorrncias chega para Hesse a segundagrande crise."O que me diferenciava dos outros diz-nos le era somente

    que a mim faltava aqule grande conslo, do qual dispunham tantosoutros: o entusiasmo. Por causa disto voltei-me de nvo para mimmesmo e para o conflito com o mundo ambiente, novamente fui le-vado para a escola, novamente fui forado a desaprender a satis-fao comigo mesmo e com o mundo e apenas com esta vivnciaultrapassei a soleira da iniciao na vida (46)".

    E bastar a lemb rana s con sideraes reunidas noun d Fried en (47) para nos convencermos da extensodidade do abalo pelo qual passou o poeta .

    Ora, a fuga concretizra-se nas duas ocasies: daabandonara o seminrio; agora, conforme nos diz, na

    vo!ume Kriege da profun-primeira vez,primavera d e

    Begegnungen mit Vergangenem, in Beschwoerungen, pgs. 191-192. Cf. Traumfaehrte, pgs. 99-100; Die Nuernbergcr Reise, pg. 219. Traumfaehrte, pg. 10. Idem, pgs. 103-104. Fretz & Wasmuth Verlag AG, Zuerich, 1946, 266 pgs.

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    1919, retirou-se para um afastado recanto da Suia e tornou-se ere-mita (48) . Mas esta mesma fuga apresenta aspectos muito mais va-riados e profundos no plano da imaginao . Levar-nos-ia ela, maisuma vez, ao conjunto de sua obra, pois a busca da realizao indivi-dual em planos estritamente pessoais e desligados do mundo concreto um trao que, de uma ou outra forma, est sempre presente em seustrabalhos (49) . No j tantas vzes citado K u r z g e fa s s t e r L e b e n s la u flemos nada menos do que o seguinte:"Acho que a realidade aquilo a cujo respeito a gente menos

    tem com que se preocupar, porque suficientemente importuna est sempre presente, enquanto coisas mais belas e mais necessriasexigem nossa ateno e nosso cuidado.. A realidade aquilo comque a gente no pode estar satisfeita em qualquer circunstncia, aqui-lo que de maneira alguma se pode adorar ou venerar, pois ela oacaso, o detrito da vida. E ela, esta mesquinha, permanentementedecepcionante e vazia realidade, smente pode ser transformada namedida em que a negamos, na medida em que nos mostramos maisfortes do que ela (50)".

    No se trata, a, de uma afirmativa de momento, ou concernente adeterminadas condies . Trata-se, possivelmente, da principal caracte-rstica do poeta, sintetizada em 1917, no incio de uma pequena pu-blicao sob o pseudnimo de Emil Sinclair, como se v:

    "Desde minha juventude tenho o hbito de desaparecer, de tem-pos em tempos, mergulhando em outros mundos para desafgo; cos-

    T r a u m f a e h r t e , pgs. 113-114. No jornal O Estad o de S o Pau lo de 4-V-1958 e no Su plemen to Lite-rr io do mesmo jornal, em 21-VI-1958 publicamos dois artigos crca do individua-lismo de Hesse. Talvez no seja demais insistir-se, aqui, na averso do autor aqualquer espcie de submisso ou exerccio de chefia, de enquadramento, especial-mente qualquer filiao poltica determinada a partidos ou grupos, sejam quaisforem suas dimenses ou objetivos. As Bri fe so instrutivas nste tocante; lem-brem-se as passagens s pgs. 50, 59, 65, 85, 87, 94, 111, 123, 155, 176, 192, 219,337, 354 e 400. A extrma direita sobejamente verberada a, pois Hesse foi convictoanti-nazista. Acrca da extrma esquerda, veja-se a elucidativa carta em que se fazreferncia a Andr Gide ( B r i e f e , pg. 178) . Quanto ao coletivismo, em geral, bastante til uma cal ta em resposta a um "homem simples do povo trabalhador",que lhe escreveu pedindo apio para a campanha contra a bomba atmica; desta-que-se apenas o seguinte: "De acrdo com minha experincia o pior inimigo ecorruptor do homem o impulso que repousa sbre a preguia de pensar e a neces-sidade de sossgo e que conduz ao coletivo, a comunidades com dogmtica absoluta-mente determinada, seja ela religiosa, ou poltica". Esta carta foi publicada noN a t i o n a l . Z e i t u n g , n 9 218, 13-14 de maio de 1950 e, como separata, remetida a ami-gos e correspondentes. In T ra u m f a e h r te , pgs. 116-117. Cf. o conto Der Dichter, in Maer-c h e n , pgs. 51-63; Herrliche Welt, in G e d i c h t e , pg. 265, etc..

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    371 tumavam procurar-me, ento, para declarar-me desaparecido apsalgum tempo de busca; quando finalmente eu retornava, era sempreum prazer ouvir as opinies da chamada cincia crca de mim ede meus estados crepusculares ou "de ausncia". Enquanto eu nadamais fazia do que algo evidente minha natureza e que, mais cdoou mais tarde, os homens em sua maioria podero fazer, era tido porstes estranhos homens como uma espcie de fenmeno, visto poralguns como um possesso, e por outros como algum agraciado porfras miraculosas (51)".

    D ificilm ente po deria existir um a co nfisso m ais incisiva da nsiade fuga, e a esta nsia julgamo s po der associar dois temas am plamen -te utilizados pelo poeta: o do vagante e o do mstico. Ou seja: a fugano campo concreto e a fuga no plano espiritual. Mais uma vez, vol-tamos a Eine Stunde hinter Mitternacht: o personagem vaga, numbarco, em busca de u ma ilha en cantada . Ao en con tr-la, assim explica rainh a os motivos de sua jorn ada:"Impeliu-me o asco da vida, impeliu-me a emanao das cidades

    e o barulhento prazer de seus templos... (52)".

    O incon formado, o vagante, o peregrino , portanto . Q uer-nos pa-recer, todavia, que o primeiro personagem tipicamente caracterizadocomo tal Knulp, o vagabundo sem objetivo definido, ao qual Deusassim se dirige, no momento da morte:"Afinal, no s ainda capaz de perceber que tudo aconteceu certo

    e bem, e que nada poderia ter sido de outra maneira? Ou gostariasde ser agora um senhor ou um mestre de algum ofcio, ter espsa efilhos e noite ler o jornal vespertino? No fugirias novamentede tudo isto, para dormir na floresta junto s raposas, preparar ar-madilhas para os pssaros e domesticar lagartos... ? V, eu no po-deria dar-te outra utilidade alm daquilo que s. Em meu nome pe-

    . Wenn der Krieg noch zwei Jahre dauert, in GS., 7, pg. 83. Dei-xando-se de lado qualquer discusso a respeito da palavra"realidade" (Wirklichkeit), bom notar-se que Hesse, mais tarde, sentiu a necessidade de harmonia com omundo, o que o levou a todo um processo de compreenso da histria. Cf. a cartade Jos Knecht ao abandonar Castlia. Tratamos do assunto num trabalho pub'i-cado na Revista de Histria, n 9 36, 1958, sob o ttulo Hermann Hesse e a Histria.

    . In Fruehe- Prosa, pg. 24. E' curioso notar-se como neste trabalho,em que a imaturidade salta aos olhos, parece estar contida, em grrmem, tda aobra de Hesse. No foi por acaso que le mesmo assim se expressou: "Hoje pa-rece-me Eine Stunde hinter Mitternacht, para o leitor interessado em conhecermeus caminhos, ao menos to importante como Lauscher e Camenzind" (FrueheProsa, pg. 14).

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    372 regrinaste e repetidamente levaste gente sedentria um pouco denostalgia pela liberdade... (53)".

    N o m esmo ano da pub licao de Knulp, 1915, editou H esse umvolumesinho sob o sugestivo ttulo de No caminho (Am Weg), noqual se destaca um co nto (54) em que o tema do vagante no vamentese afirma, lembrando , ora Kn ulp, ora o prp rio ep isdio do snho dailha acima referido. Suas primeiras linhas, entretanto, evocam-nos juma outra lembrana: sentimo s como que um co do Aus dem Lebeneines Taugenichts, de E ichendorff, e recamos nos romnticos. Mas,alm disto, pde haver tema mais reminiscente da Idade Mdia doque o do vagante? O prprio vocbulo lemb ra-nos a Ordo Vagorume mais ainda: o ambiente artesanal, com os profissionais circulandode cidade em cidade, atravs da floresta, dos campos e dos rios . Ovagante, assim, associa o quadro natural ao quadro da pequena cidademedieval, mantendo-se, com esta, em seus traos fundamentais at osculo XI X (55) . Tudo muito a gsto dos rom nticos. E ste mesm otema um dos preferenciais de Hesse, encontrando sua maior expres-so no Goldmund, de que logo trataremos .Quanto ao mstico, na pssoa de So Francisco de Assis, manifes-ta-se j atraindo as simpatias de Peter Camenzind, que assim se ex-pressa:

    "Segui os caminhos de So Francisco, e muitas vezes senti-o ca-minhar ao meu lado, o esprito cheio de insondvel amor, saudandocom alegria e gratido cada pssaro e cada arbusto de rosa nas cr-cas... Sempre parecem-me aqules oito dias de caminhada na mbriao coroamento e o belo crepsculo de minha mocidade (56)".

    N o m esmo ano de 1904 publica Hesse uma pequen a coleo demo no grafias sbre So F rancisco, e o p ersonagem continuou a preo- Knulp, pg. 152-153. Este trabalho foi republicado em 1946 pela editra Werner Classen,de Zucrich. Esta foi a edio de que nos servimos.. Cf. um fragmento em que Hesse descreve as andanas de um seleiropela Suia e adjacncias: Auf der Walze, in Bilderbuch, GS., 3, pg. 900 ss... Peter Camenzind, pgs. 104-105. Relativamente mstica, se:iamcabveis referncias ao papel do Oriente na formao de Hesse, restringindo-se,nste ponto, sua ligao com os movimentos msticos ocidentais. Muito poderiaser dito, nste assunto, transbordando do nosso tema. Mencionemos, todavia, umapassagem que nos parece muito significativa, escrita a propsito de sua estada noCeilo, em 1913: "Buda, abandonando a casa paterna, Buda debaixo da rvore Bo,Buda com os discpulos Ananda e Kaundinya. Involuntriamente lembrei-me de

    Assis, onde na grande, vazia igreja supe.ior de So Francesco as paredes esto co-bertas com as lendas de Francisco de Giotto" (Spaziergang in Kandi, in Bildcrbuch,GS., 3, pg. 888).

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    cup-lo, como nos revela, em 1920, uma delicada narrativa tratandoda infncia do santo (57) . No seria difcil, por outro lado, encon-trarmos reflexos desta preferncia em vrias poesias; mencionemosum a, entretanto , cujo t tulo j suficiente para corroborar o que afir-mamos: trata-se de Bruder Tod (58) . Cabe, ainda a tal respeito, re-memorarmos a tendncia de Hesse em estabelecer uma relao ime-diata do indivduo com o absoluto, relao esta tipicamente mstica,tal com o a vemos, po r exemp lo, num conto de inspirao franciscana medieval, portanto e que Der Tod des Bruders Antonio, tam-bm de 1904 (59) .Ora, esta reao pode encontrar-se tambm no vagante, levan-do-no s conjuno d os do is grandes tem as num nico personagem : afuga espiritual corroborada, agora, pela fuga material. Com uma par-ticularidade, po rm: o m stico po de realizar-se na m edida em que cria,originando, assim, o artista . Do contrrio, definir-se-ia le como "oartista frustrado", conforme opinio de Hesse, incluindo-se entre :es os

    "poetas sem versos, pintores sem pincel, msicos sem melodias.H no seu meio esprito nobres e altamente dotados, mas, sem exce-o, trata-se de homens infelizes (60)".

    Hesse seguiu o caminho da criao, era artista. E o mesmo en-contramos na base de sua novela Narziss und Goldmund. A ao,agora, passa-se na Idade Mdia . Uma Idade Mdia, bem entendido,em que p rimeira vista se denun cia o reflexo do ambiente de formaodo prprio autor: logo no comeo, o mosteiro de Mariabronn, ao qualantes nos referimos, ao tratarmo s de Maulbro nn ; a cada mo mento, sur-gem as colinas marcantes da paisagem de infncia; e o rio o localpreferido para os devaneios de Goldmund, rio ste que nos traz lembrana o Nagold . Um ambiente familiar, servindo de cenrio reconstituio de uma Idade Mdia bastante vaga e inspirada, semqualquer dvida, pela atmosfera do conto . H pasagens da obra, alis,que do idia de fragmentos de contos inseridos no contexto: certosmomentos do idlio. de Goldmund, o vagabundo-artista, com Lydia, a

    In Fabuierbuch, pgs. 65-78. At mesmo em algumas aqarelas deHesse somos tentados embora falte-nos base para tanto a desconfiar de algumcontacto com outra personalidade de grande relvo na mstica medieval. E' o casodas ilustraes do conto Piktors Verwandlungen (edio facsmile de 1954, SuhrkampVerlag), que singularmente parecem aparentadas s do Scivias de Hildegard vonBingen (cf. edio segundo o texto original, com as iluminuras do RupertsbergerKodex, Otto Mueller Verlag, Salzburg, 1954, 414 pgs.). Gedichte, pg. 279. In Fabulierbuch, pgs. 79-90.Narziss und Goldmund, pg. 349.

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    374 jovem artistocrata; vrias descries de floresta (61); o encntro deGolmund com Franziska, etc., etc. . O quadro medieval, mas deuma Idade Mdia que nada tem de uma reconstituio histrica.Tudo vago, no h datas ou no m es de logar, ao m enos no que con-cerne ao pricipal. Mariabronn, tanto quanto saibamos, apenasum nome, que se ajusta s lembranas de Maulbronn. O carinho, orespeito que o mo steiro infunde a G oldmund , so os mesmos que Maul-bronn desperta em Hesse; a emoo do artista ao voltar abadia, nofinal de sua carreira (62), evoca-nos o escrito de Hesse acrca dafonte, quando de sua visita ao seminrio, em 1914. A esclha de outronome, a mudana de uns tantos traos na descrio arquitetnica, in-dicariam a inteno de no se prender ao mundo concreto, de nocom prometer a fantasia com qualquer espcie de docum entao. Alis,por duas vzes, ao menos, tratou le expressamente da elaborao danovela: durante o prprio trabalho, em 2 de dezembro de 1928 (63),e em 1953, numa longa epstola aos seus amigos, publicada sob o t-tulo de Engadiner Erlebnisse . O ra, inutilmen te procuraremo s, nestasduas ocasies, qualquer referncia a alguma leitura de base, a algummedievalista em cuja ob ra se buscasse apio para um a reconstituio.Nada. Mas, por outro lado, deparamos com o seguinte:

    "Eu sabia tambm que, no tocante ao valor dos meus empenhos"romnticos", no eram importantes as fundamentaes histricas eintelectuais, mas que eu faria o meu jgo e modelaria minhas perso-nagens, mesmo quando tda a razo, sabedoria e moral falassemcontra elas (64)".

    Sequer existe no G oldmun d um a data fixa, e apenas uma refern-cia batalha de Pavia (1525) (65) permite-nos localizar a ao naprimeira metade do sculo XVI, mas ainda em plena Idade Mdia,po is nenhum spro d os no vos tempo s pode ser identificado. O cartervago afirma-se tambm quanto ao local, geografia da ao . Nenhumnome de lugar . A cidade on de G oldmund encont ra o mestre N iklau epara a qual retorna aps a peste, designada como die Bischofsstadt a cidade episcopal. Sua descrio ajustar-se-ia a qualquer cidademedieval de porte mdio: as portas da muralha, as belas fontes, avelha e massia trre da catedral, a esguia nova trre da igreja, a gran-de praa do mercado, o rio, a ponte. A vida urbana tambm dada

    Por exemplo, pg. 110, com expressa aluso lenda de SantaGenoveva. Pgs. 345-346. Eine Arbcitsnacht, in GS., 7, pgs. 302-307. Idem, pg. 307. Narziss und Goldmund, pg. 165.

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    375 em traos gerais, com o sistema das corporaes de ofcios. os cavalei-ros, todo o barulho das crianas, das mulheres discutindo, dos ferreirosem seu trabalho, etc., etc .. Numa das ocasies. a aluso figura deum Landsknecht confirma a poca, j meio balisada pela batalha dePavia . D e qualquer m aneira, parece-no s muito difcil chegar-se ex-clusivamente atravs dos d ados d a no vela identificao da cidadeepiscopal. Uma referncia igreja de So Loureno (66) e a insis-tncia na beleza das fontes po deriam levar-nos a p ensar em N uernberg.Mas Nuernberg era cidade imperial, confirmada em seu carter ime-diato po r um Privilgio d e Frederico I I em 1219; e, no caso, repetida-men te fala-se em cidade episcopal, quand o N uernb erg no era bispadona poca em qu esto.

    O episdio da peste nada tem d e original, lemb rando -nos outrase outras descries semelhantes, correspon dentes a pocas bem poste-riores ao sculo XVI. E m Engadiner Eriebnisse o auto r refere-se a estapassagem de sua obra como "minhas narrativas da Peste N egra" (meineGeschichten von Schwarzen Tod) . A Peste Negra, especificamente fa-lando, foi o grande surto epidmico de m eados do sculo X IV, o qu eno s poria em d esacrdo co m o s pon tos de apio crono lgicos acimavistos. N um sentido amplo, po rm, pode abranger outros do s freqen-tes morticnios causados pela doena naqueles sculos. A representa-o da dansa da morte, mencionada uma vez num mo tseiro no identi-ficado, corresponde aos sculos XV-XVI (67) .

    Continuamos no aspecto vago da caracterizao da poca . Fa-la-se em imperador, mas no se diz qual imperador (68) . O enviadoimperial o "conde Henrique", ou seja, nome e ttulo to habituais,que correspondem prticamente ao anonimato. A descrio do burgoem que Goldmund encontra Lydia e Julie no proporciona qualquerelemento para atribu-lo a tal ou tal poca . As cidades s quais se fazreferncia so cinco, lemb radas semp re ocasion almen te, de modo quesua omisso em nada prejudicaria a novela. So elas Roma e Constan-tinopla (69), Colnia, Paris e Leyden (70) . Nenhuma das menesperm ite a fixao d e um a data ou o estabelecimento de qualquer rela-o com algum fato preciso . Se exceptuarmos a fugaz lembrana dabatalha de Pavia, nada h, na novela, a permitir uma orientao cro-no lgica determinada. E ' tudo vago, genrico, difuso quanto ao fund ohistrico, dando at mesmo a impresso de con fuso intencional. E ' o

    Pg. 286. Pg. 276. Por exemplo, pgs. 132, 294. Pgs. 129, 243, 244. Pgs. 163-164.

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    376 --caso, po r exemp !o, da referncia a Leyden, onde o vagabundo Viktor,em seu latim de vagante, afirma ter defendido tese. Ora, a Universi-dade de Leyden foi fundada apenas em 1575, e tal data no se harmo -nisa com a da batalha de Pavia, cuja lembrana, segundo o testemunhodo pr prio Viktor, seria aind a fresca na po ca (71) .

    Em compensao, h clareza de sobra quanto ao personagemcentral: Goldmund um artista vagante, tipo bastante comum IdadeMdia, sempre evocando traos de Franois Villon (72) . A incapaci-dade de fixar-se corresponde a uma nsia ininterrupta, a uma buscaconstante. No aceita o m und o tal como (73) e vive sonh ando (74),cismando beira do rio, fugindo, portanto, de um mundo ao qualno se ajusta . Tem-se a impresso de que seu grande elemento afloresta, onde se sente livre e para onde sempre volta, aps intervalos devida sedentria . E a floresta no tem 'determinao cronolgica dotipo histrico, o tempo, para ela, no o mesmo que para uma cida-de ou um mosteiro . Se a floresta o grande cenrio, com preend e-se ano preocupao com detalhes h istricos, justificando-se a indetermi-na o desta Idade Mdia. N ela o personagem m ove-se vontade, detal modo que somos tentados a associ-la ao teatro mgico do S t e p -p e n w o lf , ao tempo diludo de D ie M o rg e n la n d f a h r t e ao futuro doG l a s p e r : e n s p i e l . Um futuro , seja dito de passagem, ao qual no faltamtraos m edievais, a principiar pelo latim e p elo tom da crn ica de Al-bertus Secundus.

    Trata-se, em tdas as ocasies, de um ajuste do temp o ao p erso-nagem, da idealizao de uma poca na qual ste se move . Lembremosque, no caso do S t e p p e n w o lf , em que claramente a fase tratada acontempornea do autor, surge o teatro mgico, permitindo jogar-secom o tempo, segundo as exigncias da nsia de fuga. Para Goldmun d,o artista, sempre propenso a sonhos e devaneios, para sua peregrina-o repleta de vivncia e de m om entos lricos, nada melhor do que um aIdade Mdia indefinida, gerando um a atmo sfera tpica de grande p artedos contos postos em voga pelo romantismo . Jamais caberia a umarecon stituio com pretenses fidelidade h istrica, po is isto co rres-po nderia a prender o p ersonagem a um a determinada fase no tem po ,quand o o ob jetivo do autor con siste justamente em fazer com q ue le

    Se levarmos em conta o rigor, o cuidado que Hesse parece exigir dotrabalho literrio, concluiremos certamente pela intencionalidade do aspecto vago(cf. B e im L e s 'e n e in e s R o m a n s , in GS., 7, pgs. 402-408). Villon expressamente mencionado numa das cartas: "Esta nossacomunidade dos santos, a ela pertencem o pobre Villon e o pobre Verlaine...( B r i e f e , pg. 130). Pg. 223, por exemplo.

    Pgs. 22, 74-75, 77, etc. ,

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    377 escape a qualquer lao desta natureza. A esclha de uma poca lon-gnqa no passado , ou n o futuro, conform e se trate de G oldmun d oude Josef Kn echt, prop orcion a claramente m aior liberdade, tanto parao autor com o para o person agem, na medida em que se diluem o s com-promissos com detalhes peculiares a um dado momento. Hesse vaiaind a alm: quer-n os p arecer que a esclha de um a fase de ind eciso,entre um e o utro grande perodo da histria, num tempo que podemoscham ar de crep uscular, enseja aind a maior liberd ade, da a Idad e M-dia adentrando pelo sculo XVI, no Goldmund, da, tambm, os s-culos intermedirios entre o paganismo e o Cristianismo, como se vnuma das encarnaes de Josef Knecht (75) . Tais fases, mais do quequaisquer outras, correspondem a um afrouxamento das estruturas,permitindo o florescimento individual. Note-se a data de publicaodo Goldmund: 1930, trs anos aps ser editado o Steppenwolf . Lem-bremos o Harry Haller, sufocado pela tcnica e sofrendo tdas aspresses do mundo ocidental de aps guerra de 1914. Confrontmo-locom Goldmund, deslocado para uma Idade Mdia vaga e idealisada;comp reenderemo s ento, melho r do que nun ca, a fuga para uma outrapoca, em que o person agem se realiza inteiram ente co m o indivduo ,liberto de qualquer constrangimento social, despreocup ado em relaoa qualquer estrutura absorvente que lhe tolha os passos . Significativa a m aneira pela qual G oldmun d se recusa a perman ecer na cidade, co-mo escultor, junto ao mestre Niklaus, integrado na sua correspondenteguilda . Afirma-se a a repulsa ao enquadramento scio-profissional,repulsa caracterstica tambm de Harry Haller ! mas que, transferida pa-ra sculos antes teria resultados b em menos decisivos para o person a-gem.

    Procuremos, agora, ligar todos os elementos tratados acima.Na paisagem de sua terra natal Hesse contara j com um ponto departida para sua afinidade com os sculos medievos . Os romnticosalemes, por sua vez, colaboraram intensamente para que esta incli-nao adquirisse traos mais definidos, tanto atravs do conto porles divulgado, como pela obra literria de um Brentano, Hoelderlin,Hauff e, especialmente para o nosso caso, Friedrich Leopold vonHardenberg, mais conhecido como Novalis . Klingsor, a que antesnos referimos como sendo um dos heris preferenciais de Hesse, che-ga a ser mais do que isso: uma das encarnaes atravs das quais o

    (75) . Cf., tambm, o Fabulierbuch, com as trs lendas da Tebaida (pgs.7-40) .

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    378 poeta se apresenta em sua obra (76), mas tambm personagem doH e i n r i c h v o n O f t e r d i n g e n , de Novalis . Esta novela, de seu lado, estmen cionada em conexo co m a gnese do G o ' d m u n d (77) e mereceser lembrada para expressar um juzo no de todo irrelevante para ono sso caso: considera-a o po eta mu ito m ais rica em en sinam entos d oque qualquer histria universal (78) . Em outra ocasio, o mesmopo nto de vista enfticamente con firm ado, com o se v:

    "Nunca aprendi muito de Histria, mas hauri todo meu conhe-cimento nos poetas, e assim como, atravs de Moerike, sabia maisacrca dos segredos de Blaubeuren do que os prprios professresde l, assim tambm estava bem preparado para visitar Augsburgopelas lembranas dos Kronenwaechter de Arnim, e Nuernberg pelasde Wackenroder e E. T. A. Hoffmann (79)".

    O que no s levaria certeza de terem seus conhecim entos do pe-rodo medieval derivado mais da literatura romntica do que de his-toriadores prpriamente ditos (80) .Sem esquecerm os, verdade, o con tacto direto co m as obras deautores medievais, pois stes no deixaram de constituir-se num deseus setores favoritos . Assim que lemos, no final de E i n e B i b l i o t h e k

    d e r W e l t lit e r a t u r, a seguinte passagem, que, de propsito, deixamostambm para o final de nosso ensaio:"Acrescente-se ainda uma s j mencionadas preferncias: a

    busca da vida oculta da Idade Mdia crist. Sua histria poltica,em suas particularidades, era-me indiferente; importante, para mim,era apenas a tenso entre as duas grandes fras: Igreja e Imprio.E atrao particular exercia sbre mim a vida monstica, no porcausa de seu lado asctico, mas porque eu encontrava maravilhosostesouros na arte e na literatura monstica, e porque as Ordens emosteiros pareciam-me invejveis, como asilos de uma vida piedo-

    Se a prpria novela Klingsors letzter Sommer no fsse tida comofornecendo base suficiente para esta afirmativa (e forhece, bem entendido), teramoso conto Vogel, antes citado, e uma clara confisso em Erinnerung an KlingsorsSommer, escrito em 1938 (cf. GS., 7, pgs. 409-412).

    Eine Arbeitsnacht, in GS., 7, pg. 303. Kurzgefasster Lebenslauf, in Traumfaehrte, pg. 120. Die Nernberger Reise, pgs. 244-245. Os historiadores no pertencem aos que merecem a simpatia de Hesse.A grande exceo Jacob Burckhardt, o Pater Jakobus do Glasperlenspiel (cf.Briefe, pgs. 226, 314; Krieg und Frieden, pg. 16).

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    379 sa-contemplativa, dando a impresso de altamente modelares centrosde formao e cultura (81)".

    D esta admirao resultaram as edies e tradues de passagensdos Gesta Romanorum e de Caesarius de H eisterbach. E, certamen te,constituiu-se ela no elemento decisivo que, associado e transmudadopor todos os fatres de que tratamos, deu origem Idade Mdia deG oldmund, campo atk ;rto ao sonho e fantasia, campo de liberdade,em que a expanso do indivduo no encontra limites para sua efeti-vaao

    Foram as seguintes as edies das obras utilisadas para stetrabalho:a) . Fretz & Wasmuth Verlag AG. Zuerich:

    Maerchen, Diesseits, Knulp, Kleine Welt, Klingsors letzterSommer, Fabulierbuch, Fruehe Prosa, Kurgast-Die Nuern-berger Reise (num s volume), Traumfaehrte, Die Gedichte,Das Glasperlenspiel (2 vols. ), Die Morgenlandfahrt, PiktorsVerwandlungen (1954).

    Com raras excees, no se indica data de publicao nasedies acima.

    b).uhrkamp Verlag, Berlin und Frankfurt a/ M. :Briefe (1951), Peter Camenzind (1950), Beschwoerungen

    (1955), Gedenkblaetter (1950), Spaete Prosa (1951), UntermRad (1951), Wanderung (1949) .

    Ainda desta editra utilisaram-se os vols. 3 e 7 das ObrasCompletas, das quais seis volumes publicaram-se em 1952 e ostimo em 1957. Bilderbuch faz parte do 3 9 vol., e diversaspublicaes menores do 7 9 . Indicados no trabalho como GS.

    . Buechergilde Gutenberg, Zuerich:Steppenwolf e Narziss und Golmund.

    . Werner Classen Verlag, Zuerich:Am Weg e Eine Biblithek der Weltliteratur, ambos em

    1946.. S. Fischer Verlag, Berlin:

    Demian (19209 , sob o pseudnimo de Emil Sinclair.

    (81). Pg. 64.