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PEER GYNT Texto de Henrik Ibsen Tradução de Léo Gilson Ribeiro

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PEER GYNT Texto de Henrik Ibsen

Tradução de Léo Gilson Ribeiro

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PERSONAGENS

AASE (Pronuncia-se OS), viúva de um lavrador / PEER

GYNT (Pronuncia-se GUNT), seu filho / DUAS VELHAS que

carregam sacos de trigo / ASLAK, ferreiro / CONVIDADOS

DO CASAMENTO / MESTRE-CUCA / MÚSICO AMBULANTE /

CASAL DE LAVRADORES IMIGRADOS / SOLVEIG, filha dos

lavradores imigrados / HELGA, irmã de Solveig /

LAVRADOR RICO de Haegstad / INGRID, sua filha / O

RECÉM-CASADO e SEUS PAIS / TRÊS MOÇAS FEITICEIRAS

/ UMA MULHER VESTIDA DE VERDE / O VELHO DE DOVRE

/ GNOMOS / FEITICEIROS / DUENDES / NINFAS / BRUXAS /

UM RAPAZ FEIO / UMA VOZ NAS TREVAS / GRITOS DE

PÁSSAROS / KARI, mulher de um agregado / MISTER

COTTON, viajante / MONSIEUR BALLON, viajante / HERR

EBERKOPF, viajante / HERR VON TROMPETERSTRAALE

(Pronuncia-se TROMPETERSTROLE), viajante / UM

LADRÃO / UM RECEPTADOR / ANITRA, filha de um chefe

beduíno / ÁRABES / ESCRAVAS / BAILARINAS / A

ESTÁTUA DE MEMNON / A ESFINGE DE GIZEH /

PROFESSOR BEGRINFFENFELD, doutor em filosofia e

diretor do hospício de Cairo / HUHU, reformador malabar /

HUSSEIN, Ministro de um potentado do oriente / UM

FELLAH, que carrega uma múmia real / LOUCOS e SEUS

GUARDAS / CAPITÃO DE NAVIO NORUEGUÊS /

MARINHEIROS / PASSAGEIRO / SACERDOTE / UM

CORTEJO FÚNEBRE / UM ALTO FUNCIONÁRIO / UM

FUNDIDOR DE BOTÕES / UM PERSONAGEM MAGRO.

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A ação começa nos primeiros anos do século XIX e termina

por volta de 1860. Desenrola-se no Vale de Gudbrande; nos

Fiordes vizinhos; na Costa de Marrocos; no deserto do

Saara; no Hospício do Cairo; no mar, etc.

PRIMEIRO ATO

Um arvoredo junto à cerca que delimita a casa de Aase. Um

regato corre ao fundo. Do outro lado, um velho moinho. É

um dia quente de verão. Peer Gynt, jovem de 20 anos,

robusto e bem feito, desce por uma vereda, seguido por sua

mãe Aase, miúda e delicada, que está ralhando com ele, e

parece estar furiosa.

AASE – Peer: você está é mentindo!

PEER (Sem parar) – Não estou nada!

AASE – Então jura que é verdade!

PEER – Pra que você quer que eu jure?

AASE – Ah: está vendo? Você não tem coragem. Vai embora,

seu desgraçado! Você só sabe mesmo é pregar mentira!

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PEER (Parando) – Não senhora: é tudo verdade, tintim por

tintim.

AASE (Colocando-se diante dele) – Menino: você não tem

vergonha de mentir pra sua mãe, não? Era só o que faltava!

Você sai para caçar renas nos fiordes, durante meses, sem se

preocupar nem um pouco com a colheita. Depois, com a maior

calma, volta sem o fuzil, sem caça, com o casaco de peles todo

rasgado e ainda quer que eu acredite nas suas lorotas de

caçadas! Conversas fiadas pra boi dormir! Então vamos ver:

esse cabrito montês onde foi que você pegou?

PEER – A oeste de Gendin.

AASE (Fingindo acreditar) – Ah é, é? E o que mais?

PEER – Bom: eu estava andando contra o vento, um vento

muito forte. Aí, atrás de um tronco caído, apareceu o cabrito

montês, que estava procurando plantinhas debaixo da neve.

AASE (Fingindo acreditar) – Ah, sei: e depois?

PEER – Eu estava à espreita, prendendo a respiração. Estava

ouvindo a camada de neve se quebrar debaixo dos cascos dele

e conseguia ver a ponta de um chifre... Aí, eu fui deslizando,

deslizando bem devagar... Me arrastei até pertinho dele... e

escondido no meio das pedras, fiquei espiando ele. Olha mãe:

não estou brincado! Você nunca viu um cabrito montês como

aquele – tão gordo, com o pelo brilhando, lindo!

AASE – Não vi, nem em sonhos!

PEER – Pum! Atirei, não é? O cabritinho cai ferido no chão.

Mais do que depressa, eu salto em cima dele, seguro na orelha

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esquerda, e já vou enfiar a faca nas costas dele, quando, de

repente, o bandido dá um rugido de assustar; fica em pé nas

quatro patas, jogando a cabeça pra trás uma porção de vezes, e

me faz cair a faca das mãos e começa a me apertar os rins com

os chifres, dando marradas como se estivesse preso numa roda,

e assim vai me levando pelo fiorde de Gendin!

AASE (Involuntariamente) – Jesus Santíssimo!

PEER – Você sabe aquele fiorde, que deve ter meia milha de

comprimento, cheio de arestas afiadas que nem uma foice, e

que termina numa ladeira abrupta, cheia de desmoronamentos e

de blocos de neve endurecida, chicoteado pelos ventos? Dos

dois lados, a rocha bruta despencando em linha reta até o fundo

do fiorde – um abismo preto, sinistro, vertiginoso, profundo – de

umas trezentas varas de fundo! Atirados do cume abaixo, o

bicho e eu atravessamos os ares! Nunca cavalguei montaria

igual! Parecia que nós estávamos galopando em direção ao sol!

Debaixo de nós, no despenhadeiro, águias de asas escuras

pareciam voar para trás, como palhas sopradas pelo vento. Lá

embaixo vi um bloco de gelo se espatifar de encontro à costa,

mas o barulho nem chegou até meus ouvidos! Só os diabos, os

demônios da vertigem cantando e dançando em torno eram os

donos de todos os olhos e de todos os ouvidos!

AASE (Assustada) – Jesus bendito: tende misericórdia!

PEER – De repente, de um ponto da rocha escarpada se

levantou um bando de perdizes escondidas numa toca e

assustadas pelas patas do cabrito. Ele, de supetão, dá uma

meia-volta brusca e se joga no abismo, com um salto mortal!

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(Aase vacila e busca apoio numa árvore. Peer continua, sem

parar) Atrás de nós, os penhascos sombrios; na nossa frente, o

abismo sem fundo! Primeiro furamos uma camada de névoa,

depois uma nuvem de gaivotas que levantaram vôo grasnando

gritos de espanto! Fomos caindo, rápidos que nem um raio! Lá

no fundo, eu percebia uma mancha brilhante, branca como o

ventre de uma rena! Mãe: era a nossa própria imagem refletida

no lago tranqüilo e que subia para a superfície da água com a

mesma velocidade estonteante que nós caíamos!

AASE – Peer: pelo amor de Deus! Acaba de uma vez!

PEER – Chifre contra chifre chocaram-se afinal os dois cabritos:

o do ar e o do lago! Esguichou para o alto uma onda espumante

bem no lugar onde eles se encontraram. E nós ficamos nos

debatendo na água, um tempão enorme, enorme! Fomos

nadando, sempre para adiante: o cabrito na frente me

rebocando, até chegar à margem norte do fiorde. Aí eu desci -

não é? - e vim andando de volta pra cá...

AASE – Sim, senhor! E o cabrito que fim levou?

PEER – O cabrito? Acho que ainda está correndo, até agora!

(Estala os dedos e faz uma pirueta.) Quem conseguir pegar

ele, é um sujeito muito esperto!

AASE – E você não quebrou o pescoço, meu filho? Nem as

pernas? Ou quem sabe a espinha? Oh, não - milhões de graças

a Deus quem me devolveu meu Peer são e salvo! Mas olhe: sua

calça está rasgada. Não tem importância! Não me queixo,

quando penso que podia acontecer coisa mil vezes pior!

(Levanta-se de repente, olha para Peer boquiaberta, fica um

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tempo longo sem achar palavras, até que berra, finalmente.)

Ah, seu bandido! Ah, seu mentiroso de uma figa! Tudo

inventado, petas do diabo! A história que você acabou de me

contar, é uma que já ouvia contarem desde que era menina de

colo! Foi um caso que se deu com Gudbrand Glese, e não com

você!

PEER – Se deu com nós dois! São casos fáceis de acontecer

mais de uma vez, não é?

AASE (Com raiva) – Ah são, sim senhor! São sim! É fácil pegar

uma mentira, alterá-la, embelezá-la com mil detalhes e prepará-

la tão bem que nem se reconhece o esqueleto por debaixo! E é

isso que você faz! Você inventa asas de águias e outros enfeites

maravilhosos ou apavorantes: e pronto - todo o mundo cai nessa

armadilha de episódios mirabolantes, que deixam a pessoa sem

respirar, sem poder falar! Nem se reconhece a história batida há

tanto tempo!

PEER – Mãe: se não fosse você a me dizer isso, eu matava o

atrevido de tanta pancada!

AASE (Chorando) – Meu Deus do céu! Quem me dera poder

morrer e descansar debaixo da terra! Ele não se comove com

nada: nem chorando nem implorando! Ah, Peer, Peer: você está

perdido, não tem mais quem salve você!

PEER – Está bem, mamãe. Você é uma santa e tem toda a

razão. Vamos: não fique zangada. Vamos: alegria, alegria!

AASE – Cala a boca! Que alegria que eu posso ter com um filho

porcaria como você? Não é um castigo para uma pobre viúva

ser humilhada assim, por essa vergonha? Esse é o pago que eu

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tenho! (Chora de novo.) O que é que restou da fortuna do teu

avô? Onde estão aqueles alqueires de prata do velho Rasmus

Gynt? Onde estão suas moedas de ouro? Seu pai botou todas

pra dançar! Semeou elas como se fossem areia, comprando

terras por toda a vizinhança, passeando como um grão-senhor

em carruagens douradas. E o dinheiro, todo, malbaratado

naquela festança grande de inverno, quando as garrafas voaram

em pedaços, quando todos os convidados atiraram as taças

contra a parede. Onde está; que fim levou aquela dinheirama

toda?

PEER – E as neves de outrora, onde estarão agora?

AASE – Respeito com a tua mãe! Olha a casa, olha o cercado!

Quase todas as vidraças foram substituídas por trapos velhos.

As sebes estão derrubadas, as cercas também. O gado não tem

mais lugar para se refugiar; os campos ninguém cultiva e cada

mês é uma penhora que aparece!...

PEER – Deixa de caduquice, mãe! A sorte muda quando menos

se espera!

AASE – A sorte? Há muito tempo que ela nem passa por aqui.

Ninguém diria que você é um homem, mas na verdade você é

mesmo um rapagão forte e sacudido, que o padre que veio de

Copenhague pra te batizar, ao perguntar teu nome, disse que

não havia em toda a Dinamarca um príncipe que tivesse uma

cara tão arrogante como a tua! Por causa disso, teu pai, mais do

que depressa, deu-lhe de presente um cavalo e ainda por cima

um trenó. Pois é: naqueles tempos, todos elogiavam tudo o que

viam em nossa casa. O Deão; o capitão, a turma toda não

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arredava o pé de nossa casa, com comes e bebes e farras até o

sol raiar. Mas é na desgraça que se conhecem as pessoas.

Desde o dia em que João Mascate foi-se embora, por esses

caminhos, com a trouxa nas costas, tudo ficou silencioso por

aqui. Não passou mais ninguém por essas paragens. (Enxuga

os olhos com o antebraço.) É meu filho: você é alto, é forte, e

devia ser como um guardião para sua velha e doente mãe.

Devia cuidar de nossas terras, defender os últimos restos do

nosso patrimônio, mas não, seu malandro! Deus é testemunha

de que você nunca se esforçou pra nada! Em casa só sabe

fazer estripulias e se espreguiçar diante da lareira, remexendo

as brasas. Quando é para sair, você quando vai a uma festa

afugenta logo as moças e caça briga com os nossos vizinhos da

vila. Por tua causa, todos riem de mim, às gargalhadas.

PEER (Afastando-se dela) – Ah, vê se me deixa em paz, vê!

AASE (Seguindo-o) – Você é capaz de negar que foi você que

armou aquele bruto escândalo em Lunde, rolando por terra

como cachorros raivosos? Não foi você que quebrou o braço de

Aslak, o ferreiro, ou pelo menos lhe fraturou um dedo?

PEER – Quem andou te enchendo a cabeça com essas lorotas?

AASE (Com raiva) – A mulher do agregado ouviu ele gemendo.

PEER (Esfregando o cotovelo) – Não foi nada ele: fui eu!

AASE – Você?

PEER – Eu, mamãe. Fui eu que levei a pior.

AASE – Como assim?

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PEER – Ele é um valentão, sabe?

AASE – Ele quem?

PEER – Aslak!

AASE – Qual: sai pra lá! O quê? Quer me contar que você

apanhou de um bêbado ordinário, um reles bebedor de

botequim, um farrista da laia dele? (Chora de novo.) Ah, já

passei muita vergonha e muita humilhação, mas esta é a pior de

todas. Um valentão, o Aslak? E, mesmo que seja, é razão pra

você deixar ele te bater?

PEER – Preso por ter cão e preso por não ter cão: com você

não tenho chance... (Rindo.) Fica descansada, mãe!

AASE – Já vem outra mentira?

PEER – Desta vez pode secar as lágrimas, minha velha.

(Fechando o punho esquerdo.) Olha só: com este braço fiz

uma bigorna e com o outro um martelo pra golpear o ferreiro!

AASE – Ah, seu brigão ordinário! Você ainda me mata com essa

conduta de louco!

PEER – Qual o quê, mamãezinha! Mãezinha malvada, tão boa

mãezinha: você merece muito mais! Confia em mim! Todo o

mundo, na vila, um dia vai se inclinar diante de você. Espera só,

até eu realizar uma ação formidável, uma coisa grandiosa

mesmo!

AASE (Irônica) – Você?

PEER – Ninguém sabe o que pode acontecer.

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AASE – Eu já me dava por satisfeita se você aprendesse a

remendar suas calças.

PEER (Enraivecido) – Pois eu vou ser Rei, Imperador!

AASE – Deus que me perdoe! O coitado perdeu o restinho de

juízo que lhe sobrava!

PEER – Vai ser como eu te digo. Só preciso de tempo.

AASE – Ah, claro, é como diz o outro: ‘dá-me tempo e serei

príncipe’.

PEER – Você vai ver só, mamãe. Você vai ver.

AASE – Será que já não chega de variar? Você está louco

varrido! Mas não posso negar que é verdade. Você podia ter

sido alguma coisa na vida se desde que amanhece até que

anoitece você não tivesse a cabeça cheia de embustes e

invencionices bobas. A filha de Haegstad te olhava de um jeito

todo especial. Ela podia ser tua, se você quisesse a sério.

PEER – Você acha?

AASE – O pai não tem forças para dizer ‘não’ à filha. É um velho

genioso, mas no fim, a Ingrid é que vence sempre.

Resmungando, ele acaba fazendo só o que ela quer. (Chora de

novo.) Ah, Peer, meu filho: uma moça como aquela, rica,

riquíssima, filha de um homem proprietário! E pensar que você,

se quisesse, podia agora ser o esposo feliz dela, em vez de

vagabundear por aqui, todo sujo e esfarrapado!

PEER (Com vivacidade) – Vem: vamos logo!

AASE – Vamos! Vamos onde?

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PEER – A Haegstad.

AASE – Coitado do meu filhinho! Eles iam bater com a porta na

nossa cara!

PEER – Por quê?

AASE – Ah, porque você deixou passar a oportunidade, só por

isso.

PEER – Desembucha o resto!

AASE (Soluçando) – Enquanto você cavalgava pelos ares teu

cabrito montês, Matz Moen pediu sua mão!

PEER – Quem? Aquele espantalho que dava medo nas moças?

O Matz Moen?

AASE – É esse mesmo com quem ela vai se casar.

PEER – Espera um minuto: vou atrelar os cavalos. (Começa a

afastar-se.).

AASE – Pode poupar esse trabalho: as bodas se celebram

amanhã.

PEER – Ótimo! Chego ainda hoje à noite!

AASE – Oh, Peer, desgraçado! Será que você quer aumentar

minha tristeza, servindo de saco de risadas para os outros?

PEER – Fique calma! Tudo vai dar certo! (Gritando e rindo.)

Alegria! Alegria! Vamos atrelar a carroça. Vou buscar o burro.

(Erguendo Aase nos braços.).

AASE – Me larga!

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PEER – Não! Vou te levar assim até o casamento! (Caminha

em direção à torrente.).

AASE – Socorro! Senhor tende piedade de nós! Peer: vamos

nos afogar, Peer!

PEER – Não seria uma morte digna de nós. Eu nasci para

destinos mais elevados.

AASE – Tem razão: da altura de uma forca. (Puxando-lhe os

cabelos.) Ah, seu patife!

PEER – Quieta! Quieta! Olha que o lugar aqui é escorregadio,

hein?

AASE – Seu burro!

PEER – Isso! Bate com a língua nos dentes! Não faz mal a

ninguém. E agora vamos subir de novo.

AASE – Não me larga!

PEER – Quer brincar de Peer e de cabrito montês? Upa!

(Galopando.) Eu sou o cabrito montês e você é o Peer!

AASE – Ui! Ai! Não sei mais onde estou!

PEER – Está vendo? Já passamos o vau. (Continuando por

terra firme.) Vamos: uma beijoca para o cabrito, por ter te

atravessado o rio!

AASE (Dando-lhe um bofetão) – Tá aí a tua paga!

PEER – Ai! Essa moeda não vale!...

AASE – Me larga!

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PEER – Só depois que a gente chegar na casa da noiva. Você

vai falar por mim. Você é inteligente. Faz esse velho louco voltar

atrás. Diz para ele que Matz Moen é um chato.

AASE – Me larga!

PEER – E diz para ele que Peer Gynt é um rapaz formidável!

AASE – Ah, sem dúvida que vou dizer! Vou fazer um retrato teu

que te reconhecerão de frente e de costas. Sem tirar nem pôr

nenhuma de tuas façanhas endiabradas. Um retrato de corpo

inteiro.

PEER – Está falando sério?

AASE (Sapateando de raiva) – Não fecharei a boca até o velho

mandar soltar os cachorros em cima de você, como se você

fosse um bandoleiro perigoso!

PEER – Uhm!... Então, prefiro ir sozinho.

AASE – Eu vou com você.

PEER – Não, mamãezinha querida, você está sem forças.

AASE – Eu, sem forças? Estou tão furiosa que era capaz de

quebrar pedra com os dentes, com os dedos. Me deixa!

PEER – Bem, se você prometer...

AASE – Que prometer, que nada! Vou atrás de você! Vou dizer

pra todo o mundo quem você é!

PEER – Não senhora: você vai ficar aqui mesmo.

AASE – Nunca! Quero ir com você!

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PEER – Pois não vai.

AASE – Como você vai me impedir?

PEER – Te largando em cima do moinho. (Ergue-a até o

telhado do moinho, apesar dos protestos de Aase, que grita

e se debate.).

AASE (No telhado do moinho) – Me desce daqui!

PEER – Desço, mas antes escuta o que vou te dizer.

AASE – Estou pouco ligando para o que você vai me dizer!

PEER – Mãezinha querida: eu te suplico!

AASE (Atirando-lhe uma pedra) – Me desça já, já!

PEER – Bem que eu queria, mas não tenho coragem!

(Aproxima-se dela.) Presta atenção e fica quieta! Se você se

mexer, se começar a atirar pedras, pode acabar mal: você pode

dar com a carcaça no chão!

AASE – Canalha!

PEER – Não se mexa tanto!

AASE – Tomara que você seja varrido do mundo como lixo

imundo que você é!

PEER – Puxa, mãe!

AASE – Te cuspo em cima!

PEER – Você devia era me dar a bênção! À bênção, mamãe!

Não quer?

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AASE – Eu queria te dar uma boa surra, com todo o teu

tamanho!

PEER – Está bem. Neste caso, então, mãezinha querida, adeus!

Tenha paciência! Volto logo, viu? (Afasta-se. Volta-se e com

um gesto de advertência acrescenta.) Cuidado, hein? Não fica

se mexendo muito! (Sai.).

AASE – Peer! Pelo amor de Deus, Peer! Pois o danado vai

embora de verdade! Ah, ginete de cabra, embusteiro sem-

vergonha, escuta! Não! Olha que ele vai mesmo! (Gritando.)

Socorro! Ai, que estou me sentindo mal, ai, meu Deus! (Duas

velhas, cada uma com um saco nas costas, descem

lateralmente, encaminhando-se em direção ao moinho.).

PRIMEIRA VELHA – Jesus! Quem está gritando desse jeito?

AASE – Sou eu!

SEGUNDA VELHA – Aase! Que é que você está fazendo

trepada no telhado?

AASE – Ah, ai, não vou agüentar muito tempo! Está soando

minha hora derradeira!

PRIMEIRA VELHA – Então, boa viagem!

AASE – Depressa, uma escada! Quero descer daqui! Esse Peer

maldito!

SEGUNDA VELHA – Quem: seu filho?

AASE – Agora vocês podem contar que já viram as artes que

ele faz!

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PRIMEIRA VELHA – Ah, isso é: somos testemunhas!

AASE – Mas primeiro vocês precisam me ajudar. Tenho que ir

correndo a Haegstad.

SEGUNDA VELHA – É pra lá que ele estava indo agora há

pouco?

PRIMEIRA VELHA – Nesse caso, você já está vingada. Lá ele

vai topar de cara com o ferreiro.

AASE (Torcendo as mãos) – Deus misericordioso! Vão acabar

matando o meu pobre rapaz!

PRIMEIRA VELHA – Meu Deus! Já que ele tem que morrer

cedo ou tarde, que importância tem um dia a mais ou um dia a

menos, se for esse o destino dele?

SEGUNDA VELHA – Ela desmaiou! (Gritando.) Ei: vocês aí!

Eyvind, Anders: venham aqui, depressa!

VOZ DE HOMEM (Fora de cena) – O que foi?

SEGUNDA VELHA – Foi o Peer Gynt que deixou a mãe dele

plantada no telhado do moinho!

Uma colina coberta de arbustos e de urzes. No fundo, uma

estrada rural, ladeada por uma sebe. Peer Gynt chega por

um atalho, dirige-se com passos rápidos ao caminho e

contempla a paisagem que se estende diante dele.

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PEER – É aquela lá embaixo, Haegstad. Não demoro a chegar.

(Vai atravessar a sebe, mas detém-se.) Quem sabe? Pode ser

que a Ingrid esteja sozinha em seu quarto. (Protegendo os

olhos, olha para longe.) Não. Os convidados são muitos, pela

estrada. Uhm... Talvez seja melhor eu voltar! (Retirando o pé

que colocara por cima da sebe.) Ainda estão lá, cochichando,

rindo nas minhas costas. Estou farto disso! (Dá alguns passos,

afastando-se da sebe e arranca – distraído - algumas

folhas.) Ah, se eu pudesse ao menos tomar alguma coisa ou

passar sem que me percebessem! Ou se eu não fosse

conhecido de todo o mundo! O melhor mesmo era ter um bom

copo de bebida! Uma coisa forte. Que me fortificasse contra as

risadas dos outros. (Olha em torno de si, assustado, e se

oculta entre os arbustos. Convidados a caminho do

casamento passam, levando víveres.).

UM CONVIDADO (Falando com os outros) – O pai era um

beberrão, a mãe é uma mexeriqueira e tanto.

UMA CONVIDADA – Com esses pais, é natural que o filho seja

um João Ninguém. (Passam. Pouco depois sai Peer Gynt,

corado de vergonha e os segue com a vista.).

PEER (Em voz baixa) – Era de mim que eles estavam falando?

(Fingindo indiferença.) Muito bem, e daí? Que me importa? Me

comer eles não podem! (Atira-se de novo entre os arbustos e

fica longo tempo deitado, de costas, contemplando o céu.)

Que nuvem mais esquisita! Parece um cavalo selado e preso

pelo freio... Tem um cavaleiro montado... E detrás... Vem uma

velha numa vassoura... (com um sorriso malicioso.) É mamãe.

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Está ralhando, gritando: ‘Peer: pára aí, sua besta!’ (Pouco a

pouco ele fecha os olhos.) Você vai ver só, sua velha!...

Quem cavalga tão galante ao sol do meio-dia?

É Peer Gynt, o valente, com toda a galhardia.

A fronte alta, as mãos em luvas bordadas,

Reluz uma espada de ouro em sua cintura

É o chefe de soldados equipados de ouro

Com selas de prata e rubis na armadura.

Com seu longo manto de seda, cruza montes e despenhadeiros,

O olhar benigno sobre a multidão imensa;

As mulheres lhe fazem solene reverência

E bem alto proclamam: ‘ele é o mais belo de todos os

cavaleiros!’

Por onde ele passa, chovem moedas de ouro

Todos se tornam senhores, da noite para o dia

Não há mais mendigos nem vagabundos com tanto tesouro.

E entre a turba maravilhada passa o Imperador Peer Gynt

Seguido dos mil escudeiros de sua grandiosa Infantaria!

Cavalgando sobre os mares ele chega à outra terra,

Além do Oceano recebe-o cordialmente o Rei da Inglaterra.

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As inglesas rivalizam em mostrar-lhe seus encantos

E para agradá-lo - os poderosos e os nobres

Para ele passar -, jogam ao chão seus ricos mantos.

O grande Imperador da Inglaterra, também, erguendo a mão

Sobre a digna fronte coroada, aproxima-se majestoso

E Sua Majestade Augusta solene exclama!...

Aslak, o ferreiro, passa pela estrada em companhia de

outros convidados.

ASLAK – Ué? É o Peer Gynt? Está bêbado esse porco!

PEER (Levantando-se bruscamente) – O quê? O

Imperador?...

ASLAK (Apoiando-se na sebe e fazendo pouco de Peer) –

Vamos: levanta daí, seu malandro!

PEER – Que diabo: o ferreiro! O que é que você quer?

ASLAK (Aos seus companheiros) – Está de ressaca desde a

última vez em que nós o encontramos.

PEER (Dando um salto) – Vai em frente, vai!

ASLAK – Eu vou, mas antes, meu caro, me diga o que você tem

feito nestas últimas seis semanas. Você sumiu rapaz! Por acaso

você foi visitar o velho da montanha, hein?

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PEER – Mestre Aslak: eu fiz coisas espantosas!

ASLAK (Piscando o olho para os companheiros) – Ah é?

Conta pra nós, Peer, conta!

PEER – São coisas que não são da conta de ninguém.

ASLAK (Depois de uma pausa curta) – Você, é claro, vai a

Haegstad, não é?

PEER – Não vou, não.

ASLAK – Antigamente diziam que a moça gostava de você...

PEER – Você quer calar essa boca azarenta?

ASLAK (Recuando um pouco) – Ora, não fique zangado, Peer.

Se Ingrid te deu o bolo, logo você vai achar outras. Imagina só!

O filho de Juan Gynt! Vem ao casamento: você vai encontrar

muita carne tenra, sem contar as viúvas...

PEER – Que o diabo te...

ASLAK – Você vai encontrar uma que te queira. Então, até logo!

Vou cumprimentar a noivinha, por você. (Afastam-se rindo e

conversando. Peer Gynt os segue com a vista algum tempo.

Dá de ombros e dá meia-volta.).

PEER – A filha de Haegstad que se case com quem ela bem

entender. Eu estou pouco ligando! (Examinando-se.) Minhas

calças estão que é um remendo só! (Dando pontapés no ar.)

Ah, a zombaria dessa corja! Se eu tivesse o prazer de arrancar-

lhe da barriga toda essa zombaria com uma faca de

açougueiro... (Olhando de repente para trás.) Quem está aí?

Alguém zombando de mim? Não, não tem ninguém aí. Vou

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voltar para a casa da minha mãe. (Encaminha-se rumo à

colina, mas pára e ouve com atenção os ruídos que vêm de

longe, de Haegstad.) Ah, quantas moças! Puxa! Umas sete ou

oito para cada homem! Ah, maldição, massacre e infortúnio! Eu

tenho que ir! Está certo... Mas e minha mãe, que deixei

pendurada em cima do telhado do moinho? (Contra a vontade,

olha novamente para Haegstad e começa a pular e a rir.)

Olha lá: estão começando a dançar a Halling (dança folclórica

norueguesa.). Como toca bem o violino esse Guttorm! Mexe

com a gente, ferve que nem uma correnteza! E que enxame de

moças lindas brilhando à luz do sol! Ah, maldição, massacre e

infortúnio dez vezes! Eu tenho que ir nessa festa! (Com um

único salto ele pula a cerca e corre naquela direção.).

A propriedade de Haegstad. Ao fundo, a fazenda. Grupos de

convidados. Baile animado sobre o gramado. Sentado em

cima de uma mesa, o violinista amador. No umbral da porta,

o Mestre-Cuca. Cozinheiras passam e repassam pelo

cenário. As pessoas de mais idade estão sentadas aqui e

ali, conversando.

UMA MULHER (Reunindo-se a um grupo sentando sobre

troncos de árvore) – A noiva? É verdade. Está chorando um

pouco. Mas isso é natural.

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MESTRE-CUCA (A outro grupo) – Então, amigos: vamos

esvaziar as jarras de vinho!

UM HOMEM – Muito obrigado! Não estou fazendo pouco, é que

você nem espera para encher de novo!

UM MENINOTE (Dando a mão a uma menina e passando

durante um passo de dança diante do violinista) – Vamos

Guttorm! Não poupa as cordas do teu violino!

A MENINA – Capricha na melodia, Guttorm!

GRUPO DE MENINAS (Em torno de um menino que está

dançando) – Que passo bonito!

UMA MENINA – Deram corda nas pernas dele!

O MENINO (Dançando) – Que gostoso é aqui! O teto é alto, a

sala é tão grande!

O NOIVO (Choramingando, aproxima-se de seu pai, que está

conversando com alguns convidados e puxa-o pela aba do

paletó) – Ela não quer nem por nada, pai! É tão teimosa!

PAI – Não quer o quê?

NOIVO – Fechou-se no quarto, à chave.

PAI – Pois então manda trazer a chave.

NOIVO – Não posso.

PAI – Que imbecil! (Dá-lhe as costas. O noivo se afasta e

atravessa o pátio.).

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UM MENINO (Que chega correndo, vindo de trás da fazenda)

– Ei, moças! Agora é que vamos nos divertir: Peer Gynt está

chegando!

ASLAK (Que acabou de chegar) – Quem o convidou?

MESTRE-CUCA – Ninguém. (Dirige-se para a casa.).

ASLAK (Para as moças) – Se ele falar com vocês, não dêem

atenção!

UMA MOÇA (Para as demais) – Isso mesmo. Vamos fingir que

nem o enxergamos.

PEER (Chega, sem fôlego, com os olhos brilhantes. Pára no

meio do grupo e bate palmas) – Qual é a mais linda de todas?

UMA MOÇA (Da qual ele se aproxima) – Eu não sou.

OUTRA (Idem) – Nem eu.

OUTRA MAIS (Idem) – Nem eu.

PEER (À outra) – Muito bem! Então venha você mesma, antes

que se apresente uma melhor!

A MOÇA (Dando-lhe as costas) – Não tenho tempo.

PEER (Dirigindo-se a uma quinta moça) – Então vai ser você!

A MOÇA (Afastando-se) – Vou me retirar.

PEER – Nesta noite? Onde você está com a cabeça?

ASLAK (Depois de uma curta pausa, à meia-voz) – Olha

Peer: é melhor você dançar com um velho.

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PEER (Voltando-se rapidamente para um velho que está

perto dele) – Você não conhece nenhuma que não esteja

comprometida?

O VELHO – Procure. (Afasta-se dele. Peer Gynt acalma-se

imediatamente e dirige a um grupo de convidados um olhar

tímido e indeciso. Todos olham para ele, mas ninguém fala

com ele. Tenta aproximar-se de outros grupos. Assim que

ele chega perto o grupo aproximado se cala. Quando ele se

afasta seguem-no com os olhos e com sorrisos de mossa.).

PEER (À parte) – Ah, esses olhares!... Esses sorrisos!... Esses

pensamentos venenosos! Me dão um arrepio de fazer bater os

dentes! (Passa deslizando, sorrateiramente, ao longo da

grade. Solveig de mãos dadas com Helga entra em cena,

acompanhada de seus pais.).

UM CONVIDADO (Para outro que está um pouco longe de

Peer) – Olhe só: os forasteiros.

O OUTRO – Os que se instalaram lá?

O PRIMEIRO – Sim, em Hedal.

O OUTRO – É mesmo. São eles.

PEER (Fechando o caminho aos recém-chegados, diz ao

pai, indicando Solveig) – Posso dançar com a tua filha?

O PAI (Cordialmente) – Com muito prazer. Mas primeiro

devemos cumprimentar os donos da casa!

MESTRE-CUCA (Para Peer Gynt, oferecendo-lhe bebida) –

Já que você veio, tem que beber um pouco.

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PEER (Que acompanha com os olhos os recém-chegados) –

Obrigado. Quero dançar. Não estou com sede. (O Mestre-Cuca

se afasta. Peer Gynt olha para o lado da casa e sorri.) Como

é loura! Nunca vi nada igual! Com os olhos baixos sobre a saia

branca e sobre os escarpins, ela andava segurando com uma

das mãos o avental da mãe e com a outra um missal envolto

num lenço! Não posso perder aquela moça de vista.

UM RAPAZ (Acompanhado por outros) – Você não dança

Peer?

PEER – Danço.

RAPAZ – Então você começou com o pé esquerdo. (Lhe

segura por um braço para obrigá-lo a dar meia-volta.).

PEER – Deixa eu passar!

RAPAZ – Você está com medo do ferreiro?

PEER – Com medo? Eu?

RAPAZ – Você já esqueceu o que aconteceu em Lunde? (Os

rapazes riem e se aproximam do baile.).

SOLVEIG (Da porta da casa) – Foi você quem me convidou

para dançar?

PEER – Eu mesmo. Não me reconhece? (Toma-a pela mão.)

Vem!

SOLVEIG – Por pouco tempo: mamãe não quer.

PEER – ‘Mamãe não quer’. ‘Mamãe não quer’. Será que você

nasceu ontem, por acaso?

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SOLVEIG – Está debochando de mim?

PEER – É verdade que você é quase uma menina. Que idade

você tem?

SOLVEIG – Fiz a primeira comunhão na primavera.

PEER – Como você se chama? Assim podemos falar melhor.

SOLVEIG – Eu me chamo Solveig. E você?

PEER – Peer Gynt.

SOLVEIG (Retirando a mão) – Ah!...

PEER – O que foi?

SOLVEIG – Minha liga desatou. Vou consertá-la. (Sai.).

NOIVO (Puxando sua mãe pela saia) – Mamãe: ela não quer

nem por nada!

MÃE – O quê? O que é que ela não quer?

NOIVO – Abrir.

PAI (Furioso, à meia-voz) – Você não devia sair nunca da

cachoeira!

MÃE – Não implique com ele. Coitadinho! Tudo vai dar certo,

meu caro! (Afastam-se para um lado.).

UM RAPAZ (Chegando da dança, com vários outros) – Quer

um pouco de aguardente, Peer?

PEER – Não.

RAPAZ – Um gole só!

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PEER (Olhando-o com olhar ameaçador) – Você tem pra me

dar?

RAPAZ – Talvez. (Tira um frasco pequeno do bolso, e bebe.)

Uhm!... É uma delícia! Então, não quer?

PEER – Deixa eu experimentar. (Bebe.).

OUTRO RAPAZ – Agora prova da minha.

PEER – Não.

OUTRO RAPAZ – Deixa disso! Se fazendo de rogado! Bebe

logo, Peer!

PEER – Me dá só uma gota, hein! (Bebe.).

UMA MOÇA (À meia-voz) – Vem, vamos embora.

PEER – Senhorita: por acaso está com medo de mim?

UM TERCEIRO RAPAZ – Quem não tem medo de você?

UM QUARTO RAPAZ – Nós vimos em Lunde do que você é

capaz!

PEER – Vocês ainda não viram nada. Quando eu pego fogo...

O PRIMEIRO RAPAZ (À meia-voz) – Já está pegando...

MUITOS RAPAZES (Circundando-o) – Conta! Conta! O que

você faz?

PEER – Esperem até amanhã.

OS RAPAZES – Você sabe fazer feitiçaria, é?

PEER – Sei invocar o Diabo.

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UM CONVIDADO – Minha avó também sabia antes de eu

nascer.

PEER – Mentira! Ninguém é capaz de igualar minhas façanhas!

Uma vez fiz o Diabo entrar dentro de uma avelã. Uma avelã

cheia de vermes; entenderam?

MUITOS – Claro! Claro: já sabíamos.

PEER – Ele ficou gritando, chorando, queria me tentar de mil

maneiras!

UM RAPAZ – Mas não adiantou nada...

PEER – Não mesmo! Tapei o buraco com um pedacinho de

madeira. Caramba! Como ele zumbia: preso na casca!

UMA MOÇA – Meu Deus do céu!

PEER – Parecia uma vespa enfurecida!

A MOÇA – E ainda está preso na avelã?

PEER – Não, já foi embora. Foi por causa dele que Aslak e eu

brigamos.

UM RAPAZ – É verdade?

PEER – Eu fui lá na forja, onde ele trabalha, para pedir pra ele

quebrar a casca de avelã. Ele prometeu que sim, e deixou ela lá

em cima de um banco. Mas, como vocês sabem, o Aslak tem a

mão pesada e usa o martelo a torto e a direito.

UM RAPAZ – E daí? Esmigalhou o Diabo?

PEER – Deu uma martelada desse tamanho! Mas o Diabo fugiu

e atravessou o teto como um raio... Zum!...

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MUITOS – E o ferreiro?

PEER – Não deu nem um pio. Ficou com as mãos queimadas. A

partir desse dia estamos brigados. (Riso generalizado.).

VÁRIOS – É bem boazinha essa história!

OUTROS – Acho que é a melhor que você já inventou!

PEER – Ah, vocês pensam que eu estou inventando, é?

UM CONVIDADO – Não, isso eu posso afirmar que não. Meu

avô já tinha me contado a maior parte das histórias que você

conta.

PEER – Mentira! Tudo isso aconteceu mesmo comigo!

UM CONVIDADO – Ah, é o que todos dizem!

PEER (Com élan) – Pelo santo nome de Deus! Eu sou capaz de

atravessar os ares montado num cavalo com ferraduras de

prata! E faço muitas outras coisas, se vocês querem saber.

(Novas gargalhadas gerais.).

UM RAPAZ – Então dá uma demonstração pra gente. Vamos,

Peer!

VÁRIOS – Isso mesmo, Peer! Por favor!

PEER – Não é preciso pedir tanto! Vou passar como um

furacão, por cima da cabeça de vocês, e a cidade inteira vai cair

de joelhos diante de mim!

UM HOMEM DE IDADE – É louco varrido!

OUTRO – Embusteiro!

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OUTRO – É só prosa!

OUTRO – Palhaço!

PEER (Com gestos de ameaça) – Pois esperem só! Vocês vão

ver!

UM CONVIDADE (Meio bêbedo) – Você sim que não perde por

esperar. Vão-te dar uma surra!

MUITOS – Você vai ver estrelas em pleno meio-dia!

(Dispersam-se. Os velhos, irritados; os jovens rindo e

fazendo troça.).

NOIVO (Aproximando-se dele) – Me diga uma coisa, Peer: é

verdade que você é capaz de cavalgar pelos ares?

PEER (Com energia) – É sim, Matz. Sou um homem

destemido!

NOIVO – Então quer dizer que você deve ter também a roupa

que torna as pessoas invisíveis?

PEER – O chapéu, você quer dizer. Tenho, tenho sim. (Volta-

se. Solveig, de mãos dadas com Helga, atravessa o pátio.

Peer, animando-se e caminhando rumo a ela.) Solveig! Que

bom que você veio! (Segura-a pelos pulsos.) Agora você vai

ver como vou fazer você dançar!

SOLVEIG – Me larga!

PEER – Por quê?

SOLVEIG – Você é um brutamonte!

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PEER – Sou rude como o cervo quando se aproxima o tempo

bom. Vamos, menina, não seja teimosa!

SOLVEIG (Retirando a mão) – Não me atrevo.

PEER – Por quê?

SOLVEIG – Porque você andou bebendo. (Afasta-se com

Helga.).

PEER – Ah, enfiar a faca na barriga de todos!

NOIVO (Dando uma cotovelada nas costelas de Peer) – Será

que você não arranjava um jeito de me fazer entrar onde está

minha noiva?

PEER – A noiva? Onde é que ela está?

NOIVO – No celeiro.

PEER – Ué: e daí?

NOIVO – Olha Peer, escuta: por favor, experimenta, eu te peço!

PEER – Eu não. Você que se arranje sozinho. (Mudando de

idéia, à meia-voz e com tom áspero.) Ingrid está no celeiro.

(Aproxima-se de Solveig.) Você já pensou nisso? (Solveig

quer afastar-se, mas ele lhe barra o caminho.) Você tem

vergonha de mim por que eu tenho aspecto de vagabundo, não

é?

SOLVEIG (Vivamente) – Não é verdade! Você não tem nem um

pouco aspecto de vagabundo!

PEER – E além do mais, estou meio bêbado! Mas é só por

despeito, porque você me magoou! Vem cá!

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SOLVEIG – Vontade não me falta, mas não tenho coragem.

PEER – De que é que você tem medo?

SOLVEIG – De meu pai, principalmente.

PEER – Do teu pai? Ah, é verdade. Ele tem cara de crente. E é

mesmo, por acaso, hein? Responde!

SOLVEIG – Que é que você quer que eu diga?

PEER – Se teu pai é rato de igreja. Quem sabe tua mãe também

é? E você, hein? Fala, fala!

SOLVEIG – Deixa eu passar!

PEER – Não. (À meia-voz e com tom rude e ameaçador.) Eu

sei me transformar em fantasma. À meia-noite vou aparecer à

beira da tua cama. Se você ouvir o barulho de alguém ofegando

e gemendo feito um gato, não pense que é o gatinho, não. Sou

eu! Está ouvindo? Vou chupar teu sangue e botar numa xícara.

E tua irmãzinha, sabe o que é que eu vou fazer com ela?

Comer. Porque de noite – está entendendo? – eu viro fantasma.

E vou te morder a barriga da perna. (Mudando de tom

imediatamente, e agora, com angústia.) Vem dançar comigo,

Solveig!

SOLVEIG (Olhando tristemente para ele) – Você foi malvado.

(Entra para dentro de casa.).

NOIVO (Voltando com passos arrastados) – Se você me

ajudar eu te dou uma vaca de presente!

PEER – Vem cá. (Desaparecem atrás da casa. Ao mesmo

tempo, um grupo de homens - na maioria bêbados - chega,

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vindo do salão de baile. Barulho. Tumulto. Solveig, Helga,

seus pais e algumas pessoas de idade saem da casa e

ficam paradas no umbral.).

MESTRE-CUCA (Para Aslak, que anda na frente do grupo) –

Calma! Calma!

ASLAK (Tirando o paletó) – Não! Quero liquidar este assunto

de uma vez! Peer Gynt ou eu! Um dos dois vai comer a poeira

do chão!

VÁRIOS – Isso mesmo! Os dois têm que brigar!

OUTROS – Não, brigar, não. Só ver quem diz mais besteira, dos

dois!

ASLAK – Palavra não resolve nada. O que interessa é a força

dos punhos!

PAI DE SOLVEIG – Calma rapaz!

HELGA – Mamãe: vão bater nele, é?

UM RAPAZ – É melhor a gente mandar ele contar mentiras pra

gente rir dele!

OUTRO – Vamos expulsá-lo daqui a pontapés!

OUTROS – Vamos cuspir na cara dele!

OUTRO (Para Aslak) – Você que vai começar?

ASLAK (Jogando o paletó para o chão) – Vamos tirar sangue

desse fanfarrão!

O FORASTEIRO (Para Solveig) – Viu como ninguém respeita

esse malandro?

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AASE (Chegando com um bastão ou vara nas mãos) – Meu

filho está por aqui? Vou dar uma sova nele que ele vai ver! Vai

me fazer um bem!

ASLAK (Dobrando as mangas da camisa) – Não é de vara

que esse gaiato está precisando, não!

VÁRIOS – O ferreiro vai acabar com a vida dele! Vou botar

asinhas no teu filho!

OUTROS – Vai quebrar as costelas do Peer!

AASE – Você? No meu filho? Experimenta só, pra ver a velha

Aase!

ASLAK (Cuspindo nas palmas das mãos e olhando para

Aase) – Ainda tem unhas e dentes! Onde é que ele está? Peer!

NOIVO (Chegando, correndo) – Ah, meu Deus! Meu Deus do

céu! Pai! Mãe! Venham todos!

PAI – O que foi? O que foi?

NOIVO – Peer Gynt...

AASE (Gritando) – Mataram ele?

NOIVO – Não, Peer Gynt... Olhem lá pra cima!

TODOS – Peer e a noiva!

AASE (Deixando cair a vara) – Ah, bandido!

ASLAK (Estupefato) – Senhor Todo-Poderoso! Olha como ele

escala o fiorde! Parece um cabrito montês!

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NOIVO (Chorando) – Mamãe: ele carrega ela nos braços como

se ela fosse uma ovelhinha!

AASE (Ameaçadora) – Quem dera que você despencasse lá do

alto e... (Com angústia.) Cuidado! Não vá resvalar!...

O PROPRIETÁRIO DE HAEGSTAD (Chegando, sem chapéu,

pálido de raiva) – Eu vou matar aquele descarado!

AASE – Ah, isso é que não! Primeiro você tem que passar por

cima do meu cadáver, por Deus do céu!

FIM DO PRIMEIRO ATO

SEGUNDO ATO

Uma estrada apertada, na montanha. Amanhece. Peer Gynt

anda, rapidamente, visivelmente contrariado. Ingrid, em

parte ainda vestida de noiva, procura detê-lo.

PEER – Me deixa: vai-te embora!

INGRID (Chorando) – Depois do que aconteceu? Vou pra

onde?

PEER – Pra onde você quiser! Estou pouco ligando.

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INGRID (Torcendo as mãos) – Ah, meu Deus do céu! Traidor!

Traidor!

PEER – Pra que perder tempo com bobagens? Cada um é livre

de seguir seu caminho.

INGRID – Não! Não! Estamos ligados por um crime!

PEER – O passado que vá para o diabo que o carregue! As

mulheres que vão para o diabo que as carregue. Menos uma!

INGRID – Quem?

PEER – Você não é.

INGRID – Então, quem é? Vamos, diz!

PEER – Ah, vai-te embora, vai! Volta pra casa de onde você

saiu! Anda logo! Volta pra casa do teu pai!

INGRID – Peer, meu amor!

PEER – Cala essa boca, viu?

INGRID – Você não pensa no que está dizendo.

PEER – Penso e quero.

INGRID – Então, primeiro você me seduz e depois me

abandona?

PEER – Por que não? O que é que você tem pra me oferecer?

INGRID – A propriedade de Haegstad e outros bens mais.

PEER – Você por acaso anda com um missal envolto no lenço e

uma trança dourada na nuca? Por acaso anda com os olhos

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baixos voltados para uma saia branca, segurando no avental da

tua mãe? Fala!

INGRID – Não, mas...

PEER – Ou será que você fez a primeira comunhão na

primavera?

INGRID – Não, mas Peer...

PEER – Ou quem sabe o teu olhar é tímido? Ou você é capaz

de dizer ‘não’ quando eu te implorar?

INGRID – Jesus: acho que ele ficou louco!

PEER – É uma festa para os olhos, olhar pra você? Responde,

vamos!

INGRID – Não, mas...

PEER – Então, que me importa o resto? (Quer afastar-se.).

INGRID (Impedindo-lhe a passagem) – Você sabe que é

infame me trair assim?

PEER – Ah é, é? E daí?

INGRID – Se você não me deixar, você vai ficar rico e

respeitado por todo o mundo...

PEER – Isso é impossível!

INGRID (Chorando) – Ah, você me seduziu!

PEER – Você nem resistiu.

INGRID – Eu estava tão infeliz...

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PEER – E eu estava bêbado.

INGRID (Com um gesto de ameaça) – Pois sim! Mas você me

paga!

PEER – O preço você é quem faz! Não vou regatear...

INGRID – É sua decisão final?

PEER – Sólida como uma rocha!

INGRID – Muito bem! Vamos ver quem chora por último! (Desce

pelo caminho.).

PEER (Fica um momento imóvel e depois grita) – O passado

que vá para o diabo que o carregue! As mulheres que vão para

o diabo que as carregue!

INGRID (Voltando a cabeça para ele, com sarcasmo) –

Menos uma!

PEER – Isso mesmo: menos uma! (Afastam-se em direções

opostas.).

Um lago de montanha de margens úmidas e pantanosas.

Está iminente uma tempestade. Aase olha para todos os

lados e grita angustiada. Solveig, ao seu lado, tem

dificuldade de segui-la. Pouco atrás, os pais de Solveig e

Helga.

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AASE (Gesticulando e arrancando os cabelos) – Estão todos

contra mim! Tudo me esmagando! O céu, a água e todos esses

fiordes malditos! O céu manda neblina para ele se perder nos

vales! A água traiçoeira se esconde para pegá-lo! Os fiordes

ameaçam com avalanches! E os homens? Os homens ficam

caçando ele, para matá-lo! Ah meu Deus Todo-Poderoso! E se

conseguirem? Coitadinho, que caiu na tentação do Diabo!

(Voltando-se para Solveig.) E então? É coisa de se acreditar?

Ele, que só sabia contar mentiras e inventar lorotas, que só era

forte de palavras e nunca fez nada que prestasse! Logo ele! Já

nem sei se é pra rir ou pra chorar! Ah, sempre estivemos unidos,

nos tempos bons e nos ruins! Porque você - fique sabendo que

o meu marido só sabia beber e bater perna pela aldeia! Em

loucuras, em besteiras, consumiu tudo o que nós tínhamos! E o

tempo todo eu, em casa, cuidando do meu menino Peer. A

gente – o único remédio que tinha – era procurar não se afanar,

porque nunca tive coragem de enfrentá-lo de peito aberto!

Nunca pude encarar a vida cara a cara! Era horrível demais!

Depois, é fácil deixar de lado a tristeza e não se preocupar com

nada. Tudo serve pra isso: uns agarram a garrafa de

aguardente, outros apelam pra imaginação. Pois é: foi assim

que nós apelávamos pras histórias da carochinha, os contos de

príncipes, de gnomos, de bichos encantados! E de noivas

raptadas diante da igreja! Ah, quem podia imaginar que todas

essas invencionices do Demônio iam acabar virando o juízo

dele? (Voltando a ficar angustiada.) Ah, que grito é esse? De

alguma assombração ou de um vampiro, por Deus do céu?

Peer! Peer! Ali! Ali! Lá no alto daquela colina! (Corre rumo a

uma pequena colina e olha para longe, além das águas do

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lago. Os pais de Solveig conseguem alcançá-la.) Não dá pra

ver nada!

PAI (Pensativo) – Azar o dele!

AASE (Chorando) – É, é. Ele está perdido!

PAI (Concordando, compadecido, com a cabeça) – Perdido.

É a palavra certa.

AASE – Nem diga isso! Ele é tão esperto! Não existe ninguém

mais sabido do que ele!

PAI – Você é uma malvada.

AASE – É verdade, eu não valho nada. Meu filho é que é um

tesouro!

PAI (Sempre no mesmo tom velado e com a mesma doçura

grave na voz e no olhar) – Ele tem um coração de pedra e

vendeu a alma ao Diabo.

AASE (Com angústias) – Não, não é possível! Nosso Senhor

não é sem misericórdia!

PAI – Você acha que seu filho é capaz de se arrepender?

AASE (Com vivacidade) – Ah, isso eu não garanto! O que eu

sei é que ele é capaz de voar montado num cabrito montês!

MÃE – Jesus Santíssimo! Você ficou louca?

PAI – O que é que você está dizendo?

AASE – Não existe o que ele não possa fazer! Vocês ainda hão

de ver, se Deus lhes der vida para tanto!

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PAI – É melhor desejar-lhe força!

AASE (Gritando) – Ai, meu Jesus misericordioso!

PAI – Pode ser que na mão do carrasco, o coração dele

amoleça e ele se arrependa!

AASE (Confusa e abatida) – Você ainda vai me fazer

desmaiar! Precisamos achá-lo de qualquer maneira!

PAI – Sim, para salvar sua alma.

AASE – E o corpo também! Se ele estiver atolado na lama, nós

vamos tirá-lo! Se o velho da montanha se apoderou dele,

subiremos até lá para libertá-lo!

PAI – Ah, por aqui há um caminho!

AASE – Deus te abençoe por me ajudar assim!

PAI – É dever de cristão.

AASE – Então os outros são todos pagãos, pois nenhum quis

me acompanhar.

PAI – Porque já o conhecem de sobra.

AASE – Vale mais que eles todos juntos! (Torce as mãos de

desespero.) Ah, quando eu penso que talvez nem o encontre

mais vivo!

PAI – Por aqui há uns rastros.

AASE – É por aqui que a gente tem que ir.

PAI – Mandaremos dar busca em torno da nossa casa. (Vai em

frente acompanhado da mulher.).

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SOLVEIG (Dirigindo-se a Aase) – Fale mais dele.

AASE (Enxugando as lágrimas) – Do meu filho?

SOLVEIG – É. Me conte tudo.

AASE (Sorrindo e empertigando-se de orgulho) – Tudo?

Teria muito que contar! Você ia perder a paciência de escutar.

SOLVEIG – É mais fácil a senhora se cansar de falar do que eu

de escutar.

Colinas vistas desde o sopé dos fiordes. Ao longo, picos

nevados. Alongam-se as sombras. Declina o dia.

PEER (Chegando esbaforido de correr e parando na colina)

– A aldeia toda está atrás de mim! Estão armados de bastões e

de fuzis! O primeiro da fila é o pai da noiva, gritando como um

possesso! Muito bem! Pelo menos já se fala agora de Peer

Gynt! É uma coisa séria, não é como uma briga banal com um

ferreiro! Ah, isso sim que é viver! Faz a gente se sentir feroz

como um urso, da cabeça aos pés! (Dá pulos e luta à direita e

à esquerda com inimigos imaginários.) É desafiar! Lutar!

Nadar contra a correnteza! Atacar! Derrotar! Arrancar as árvores

pela raiz! Isso é que se chama viver! Faz bem à alma e reanima

o coração! Para o inferno com as lorotas e coisas de criança!

(Vê-se três moças correr pela colina, gritando e cantando.).

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A PRIMEIRA – Trond!

A SEGUNDA – Kore!

A TERCEIRA – Bord!

AS TRÊS – Olha só pro diabinho! Dorme comigo bem

quentinho!

PEER – O que é que vocês querem suas tontas?

AS TRÊS – Para os gnomos nossas camas já estão mais do

que prontas!

A PRIMEIRA – Para Trond, o forte.

A SEGUNDA – E Kore, o brando.

A TERCEIRA – Pra dormirem conosco / É que estamos

chamando!

A PRIMEIRA – Força é brandura!

A SEGUNDA – Brandura é força!

A TERCEIRA – Quem não agarra um rapaz / Com um gnomo se

segura!

PEER – Pra onde foram seus rapazes?

AS TRÊS (Rindo ruidosamente) – Ha, ha, ha... Adeus! Foram-

se embora!

A PRIMEIRA – O meu, que me jurava um amor imortal, / Casou

com uma viúva, herdeira / De uma fortuna colossal!

A SEGUNDA – O meu se contentou / Com uma puta banal.

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A TERCEIRA – O meu afogou nosso filho natural / E foi logo

enforcado por ordem do Tribunal. (As três começam

novamente a chamar Trond, Kore, Bord, etc.).

PEER (Colocando-se de salto entre elas) – Três gnomos?

Mais valho eu, então!

AS TRÊS (Fazendo pouco caso) – Ha, ha, ha...

PEER – Pois provem e verão!

A PRIMEIRA – Você está falando sério?

A SEGUNDA – Você quer mesmo dormir conosco?

A TERCEIRA – Vou sem medo, então, machão! / Esquentar a

nossa cama / E arrebentar o colchão!

A PRIMEIRA – Bebemos muito em nossa casa.

A SEGUNDA (Abraçando-o) – Meninas, ele queima como

brasa!

A TERCEIRA (Idem) – Que homem ardente! / Que boca

deliciosa!

PEER (Dançando no meio delas) – Gnomo: tenho vigor para

valer, / Tenho três corpos para escolher / Por isso – mulheres -

vamos com calma! / Pois se meu corpo é todo alegria / É toda

tristeza a minha alma!

AS TRÊS (Com o polegar no nariz, num gesto de desprezo,

onde pondo a língua para fora, para o lado das colinas,

gritando e dançando) – Trond, Kore, Bord, boa noite, diabinho!

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/ Até de manhã dança e gira sozinho! (Dançando, arrastam

Peer para as montanhas.).

A Cordilheira do Ronden. Pôr-do-sol. Até o horizonte

seguem iluminados pelo crepúsculo.

PEER (Chega descabelado e confuso) – Detei-vos, castelos

de sonhos, / Palácios em chamas. Torres de luz! / Quero

guardar vossa imagem / Antes da noite apagar vossa luz! / Da

torre da igreja mais alta, / Vejo um galo bater asas e voar / Nas

trevas submerge o abismo, / Deixando-me triste a cismar! / Que

troncos, que raízes retorcidas / Brotam do coração da rocha fria,

/ Como pés de gigantes varridos / Por uma tristonha ventania! /

Ou é o arco-íris etéreo / Que se desfaz com brilho soturno /

Cegando-me a vista e morrendo / Tocados pelo ar noturno? /

Que dor de cabeça atroz! / Sinto na testa um anel de ferro me

apertando / Parece que a mão do Diabo / Nas profundezas do

inferno comigo está brincando! (Cai por terra.) O cabrito

montês? Que mentira enfadonha! / O roubo da noiva?

Lembrança tristonha, / Um capricho bobo, punido com a forca, /

Conclusão mais medonha! / É verdade, andei fazendo das

minhas... / Será que banquei lobisomem, / Com três feiticeiras

nuinhas? / Que coisas chatas que a gente sonha!... (Olhando

para cima, longe.) Lá, rumo ao céu, uma águia orgulhosa voa /

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O pato selvagem os montes mais altos sobrevoa, / Rumo ao sul!

/ Enquanto eu aqui embaixo perco o tempo, à toa...

(Levantando-se de um pulo.) Não, não, quero seguir seus

vôos distantes, / Quero, como as aves, fundir-me com o vento /

Iluminar-me de sol, cavalgar nuvens rutilantes! / Quero cruzar

mares e terras, / Para brindar à saúde de reis / E abraçar meu

amigo / O príncipe da Inglaterra! / Adeus, moças com quem

sonhei! / Vou para onde eu quero, / Como inconstante centelha /

E só volto a estas bandas / Se um dia me der na telha!... / Entre

as nuvens perdeu-se a águia triunfante / E os patos selvagens –

olha lá: são um ponto distante... / O que vejo agora? Uma casa

conhecida... / Que restauram com cuidado... / Pois não é que

essa ruína / Readquire nova vida? / Reconheço – Deus ouviu

minha voz! / Reconheço a casa de meus avós! / Han-han...

Cercas novas foram erguidas... / E nas janelas... Botaram

cortinas coloridas! / Viva! As vidraças estão brilhando, / É

casamento, festa boa! / Comes e bebes; música... / E o dinheiro

escorrendo à toa! / O pastor encerra a boda / Com um discurso

edificante, / O capitão se ergue, hesitante, / E rindo atira uma

taça no ar / Lá vai ela contra um espelho / Todinha se espatifar! /

‘Mamãe, não faça essa cara de enterro! / Hoje é dia de festa,

alegria, / Acabou nosso desterro! / Você não está vendo Jan

Gynt / Dar esta festa que entra hoje para a história? / E é uma

festa em nossa honra, / Que celebra nossa glória!’ / E aí o

capitão me diz, solene e majestoso! / ‘Menino Peer, meu filho,

rebento de linhagem sem jaça, / Amanhã provarás que vens da

mais ilustre das raças!’ (Lança-se correndo para diante, mas

tropeça de encontro a uma rocha, cai e fica estendido de

costas.).

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Um bosque de árvores frondosas, de folhas agitadas pelo

vento. Em meio à ramagem, vêem-se as estrelas cintilando.

Pássaros cantam nas copas das árvores. Uma mulher

vestida de verde atravessa o bosque. Peer Gynt segue-a

com gestos amorosos.

A MULHER DE VERDE (Parando e voltando-se) – É sério?

PEER (Com um gesto que indica juramento) – Tão certo

como eu me chamo Peer. Tão certo quanto você ser bela. Quer

ser minha? Você vai ver como sou gentil e delicado! Era uma

vez ter que dobrar lã, era uma vez ter que tecer panos: você não

vai ter mais nada pra fazer. Só comer, o dia inteiro. Nem será

nunca arrastada pelos cabelos.

A MULHER – E você não vai me bater nunca?

PEER – O que é que você está dizendo? Onde já se viu um filho

de rei bater numa mulher? Seria insólito!

A MULHER – Ah, você é filho de rei?

PEER – Sou sim.

A MULHER – E eu sou a filha do rei da Serra de Dovre. (É uma

personagem lendária dessa região montanhosa da

Noruega.).

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PEER – Ah é, é? Sim senhora, hein? Quem diria, hein? Pois

olha: eu acho isso formidável, sabe?

A MULHER – Meu pai tem um castelo em Ronden.

PEER – Ah, mas o da minha mãe é muito maior!

A MULHER – Você conhece o meu pai, o rei Brose?

PEER – Você conhece a minha mãe, a rainha Aase?

A MULHER – Quando meu pai se zanga, a montanha toda

treme.

PEER – Quando a minha mãe ralha, desmorona avalanches.

A MULHER – Não existe um arco que meu pai não possa

retesar.

PEER – Não existe um cavalo que minha mãe não possa

montar.

A MULHER – Você não tem outras roupas, além desses

farrapos?

PEER – Se você visse o meu traje de gala...

A MULHER – Eu vivo sempre no meio de ouro e de sedas.

PEER – Eu acho que é mais entre a relva e a estopa!

A MULHER – É uma aparência ilusória. Fique sabendo que

entre nós, tudo tem um aspecto duplo. Assim, por exemplo, se

você for visitar o castelo do meu pai, pode ser até que você, a

princípio, pense que está diante de um montão de pedras.

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PEER – É igualzinho como na nossa casa. Você vendo o nosso

ouro, vai pensar que é palha e barro, e nossas janelas, em vez

de vidraças, só vai ver pedaços de papelão.

A MULHER DE VERDE (Abraçando-o) – Peer! Já vi que fomos

feitos um para o outro!

PEER – Como um para de botas nos complementamos!

A MULHER (Chamando) – Ei! Meu corcel de festa! Vem cá,

vem! (Chega correndo um enorme porco ou javali. Em vez

de sela tem às costas um saco velho e em vez de rédeas um

pedaço de corda. Peer monta nele e acomoda a Mulher de

Verde sentada à sua frente.).

PEER – Upa, upa, meu valente corcel! Para o castelo dos

Ronden!

A MULHER (Com ternura) – E dizer que há pouco eu estava

tão triste! Ninguém sabe o que pode acontecer de um momento

para o outro!

PEER (Chicoteando o javali que o carrega para fora de cena)

– Altivo na montaria! É a marca do bom sangue!

No castelo do Velho de Dovre. A sala do trono. Reunião

geral dos Trolls ou duendes, gnomos e ninfas. O Velho de

Dovre está sentado no trono, com a coroa na cabeça e o

cetro real na mão. Dos dois lados do trono, seus filhos e

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sua família. Peer Gynt está de pé diante dele. Grande

agitação na sala.

OS DUENDES – Que morra! Um cristão seduziu a filha de

nosso rei, do Velho de Dovre!

UM GNOMO – Será que eu posso cortar um dedo dele?

OUTRO GNOMO – E eu puxar-lhe os cabelos?

UMA FILHA DE DUENDE – E eu dar-lhe uma mordidona na

perna? Tra, lalalá!

UMA BRUXA (Segurando uma colher de pau) – Devo

prepará-lo com sal e pimenta?

OUTRA BRUXA (Com um facão de cozinha) – Devo colocá-lo

na grelha para assar ou fervê-lo em fogo brando?

O VELHO DE DOVRE – Silêncio! Sangue frio! (Mandando

aproximar-se com um gesto, sua família e seus

confidentes.) Nada de palavras ocas! Já faz tempo que

estamos decadentes. Já não sabemos bem onde estamos e não

devemos recusar a aliança com os humanos, sem motivo. Além

disso, não se tem muito que criticar nesse jovem. Ele me parece

que tem bom físico. É verdade que só tem uma cabeça, mas

minha filha, que é minha filha, também só tem uma. Os duendes

de três cabeças já sumiram quase todos. Até os de duas vão

escasseando, isso sem falar na qualidade das cabeças.

(Dirigindo-se a Peer Gynt.) Então você me pede a mão de

minha filha?

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PEER – E teu reino como dote.

O VELHO – Eu te concedo a metade enquanto eu estiver vivo e

o resto depois de minha morte.

PEER – Pra mim chega.

O VELHO – Calma, meu rapaz! Primeiro temos algumas

condições a te impor. Se você falhar em qualquer delas, nosso

pacto se desfaz e ficaremos com a tua pele. A primeira é que

você nunca mais ponha os pés fora dos limites de Ronden.

Temerás a luz do sol e todos os atos que ela ilumina.

PEER – Que me importa, se eu sou rei!

O VELHO – Agora vou pôr à prova tua inteligência. (Levanta-se

do trono.).

O DUENDE-MOR DA CORTE (A Peer Gynt) – Vamos

experimentar teus dentes do siso. Queremos ver se eles

conseguem quebrar a avelã que o Velho de Dovre vai te dar.

O VELHO – Qual é a diferença que há entre um duende e um

homem?

PEER – Que eu saiba, nenhuma. Os duendes querem assar e

os duendinhos querem arranhar. É o que os homens também

fariam com seus semelhantes, se tivessem coragem.

O VELHO – Está certo. E há outras semelhanças. Mas o dia é o

dia, e a noite é a noite. Um homem, apesar das aparências, não

é idêntico a um duende. Vou te dizer em que mais eles diferem.

Lá, no mundo dos humanos, quando brilha a luz do dia,

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costumam dizer: ‘homem, sê tu mesmo’. Aqui, sob estas

abóbadas, dizemos: ‘duende, basta a ti mesmo!’

O DUENDE-MOR (Para Peer) – Você capta toda a profundidade

dessa comparação?

PEER – Me parece um tanto obscura.

O VELHO – ‘Bastar-se’ meu filho é uma palavra clara e forte,

que deve tornar-se teu lema.

PEER (Coçando a cabeça) – Hmmm!...

O VELHO – Sem isso, nunca poderás comandar.

PEER – Estou pouco ligando, pra mim tanto faz!

O VELHO – E tem mais: você precisa dar o devido valor à nossa

maneira de viver, singela e ordeira. (Faz um sinal e dois

duendes com cabeça de porco e gorro de dormir trazem

comida e bebida.) A vaca produz os doces e o boi o mel. O

gosto não tem importância. O importante – compreenda bem – é

que seja tudo produto caseiro.

PEER (Afastando o alimento e a bebida) – Maldita seja essa

horrenda bebida caseira de vocês! Nunca vou me acostumar a

ela!

O VELHO – Se você beber ganhará a taça, que é de ouro. E ser

dono dela é conquistar o coração de minha filha.

PEER (Refletindo) – Está escrito! Vencerás a natureza! Bah!

Com o tempo, a bebida vai me parecer menos acre. Então,

coragem. (Bebe.).

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O VELHO – Muito bem. Mas o que é isso: você está cuspindo?

PEER – É. Eu espero me acostumar um dia.

O VELHO – Agora você precisa tirar essas roupas de cristão,

porque, como te repito, para honra de Dovre, tudo aqui é de

fabricação caseira. Não recebemos nada do vale lá em baixo. A

não ser o laço de seda que enfeita nossa cauda.

PEER (Furioso) – Pois fique sabendo que eu não tenho cauda

nenhuma!

O VELHO – Não seja por isso. Nós te damos uma com o maior

prazer. Ó duende: vamos, prega-lhe um rabo de gala!

PEER – Ah, isso é que não! Onde é que nós estamos? Estão

zombando de mim, é?

O VELHO – Não se pode fazer a corte à minha filha assim, com

a bunda de fora, não é?

PEER – Transformar um homem numa besta?

O VELHO – Não é nada disso, meu filho. O que eu quero é

fazer de você um noivo apresentável. Vamos te ornar com a

insígnia laranja, que para nós é a mais alta condecoração que

existe.

PEER (Refletindo) – Ora, quer saber de uma coisa? O homem,

no fundo, é poeira vã... E depois, é preciso acatar os costumes

do país. Está bem: podem-me pôr o rabo!

O VELHO – Você é dócil, meu caro!

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O DUENDE-MOR – Agora, experimenta! Vamos ver se você

sabe usar o rabo com graça!

PEER (Grosseiro) – Que mais que vocês vão inventar, agora?

Será que terei que abjurar até minha fé de cristão?

O VELHO – Absolutamente. Pode conservá-la, se te faz gosto.

Para nós, a fé é uma mercadoria que admitimos sem cobrar

imposto de alfândega. É pelo aspecto e pelos trajes que se

reconhece um duende. Contanto que você se pareça conosco

nos trajes e nos modos, você é livre de acreditar no que bem

quiser.

PEER – Estou vendo que, apesar de todas as suas condições,

você é mais razoável do que eu esperava.

O VELHO – Meu filho: nós, duendes, valemos mais do que a

nossa fama. E é nesse ponto também que nos distinguimos dos

homens. Mas já acabamos com a parte séria da nossa sessão.

Agora, temos que alegrar nossos olhos e nossos ouvidos.

Adiante, Virgem da Harpa! Faz-nos ouvir teus acordes! Adiante,

Virgem da Dança! Surjam sob nossas abóbadas de Dovre!

(Música e dança.).

O PRIMEIRO DUENDE – Então: está gostando?

PEER – Gostando? Hmmm!...

O VELHO – Pode falar sem medo. O que é que você está vendo

à sua frente?

PEER – Estou vendo uma coisa horrorosa! Uma vaca

beliscando cordas de tripa e uma porca esperneando ao lado

dela.

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OS DUENDES – Pega ele! Vamos comer ele vivo!

O VELHO – Alto! Lembrem-se que ele vê tudo com os sentidos

de um homem!

AS FILHAS DOS DUENDES – Uh, uh! Vamos arrancar os olhos

e as orelhas dele!

A MULHER DE VERDE (Chorando) – Ah, ah! Olha o que se diz

da nossa dança e da nossa música, irmã!

PEER – Ué? Então era você? Ora, ora: em companhia tão

alegre, acho que se pode brincar um pouco, não?

A MULHER DE VERDE – Jura para mim que era brincadeira!

PEER – Quero que o Diabo me carregue se a dança e a música

de vocês não eram maravilhosas!

O VELHO – Ah, natureza humana: como resistes! Não adianta

feri-la a ferro e fogo. Só conseguimos feridas passageiras. Foi

por isso que meu genro parecia macio como uma luva. Não

recusou despojar-se de sua roupagem cristã, nem beber nosso

hidromel, nem pregar-lhe um rabo. Executava tão docilmente

tudo que nós mandávamos que por instantes pensamos que

tínhamos banido de seu corpo o velho Adão para sempre. Pois

sim! Ei-lo que surge de novo! É, meu filho, eu acho que você vai

precisar de uma operação séria para te livrar dessa maldita

natureza humana.

PEER – Operação? Que operação?

O VELHO – Vou te arranhar um pouco o olho esquerdo. Você

vai ficar um pouco vesgo - é verdade -, mas em compensação

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tudo que você enxergar será lindo e alegre. Depois então te

arranco o olho direito. Pronto!

PEER – Ei, você está bêbado, é? Que graça, a dele!

O VELHO (Colocando sobre a mesa alguns instrumentos

cortantes) – Está vendo isso aqui? São os meus instrumentos.

E como sou bom vidraceiro, vou te fazer um lindo olho de boi,

dos grandes, ou melhor: de touro. Aí sim que você vai achar a

noiva formosíssima. E nunca mais verá leitoas dançando ou

vacas tocando harpas e coisas desse tipo.

PEER – Mas isso é conversa de louco varrido!

O DUENDE-MOR – Cala o bico e deixa o Velho de Dovre falar!

Você é que é louco. Ele é o certo.

O VELHO – Pára um pouco para pensar! Imagina quantos

sofrimentos e desgostos você podia se poupar! Lembre-se que

os olhos são a fonte impura de onde brota a torrente amarga

das lágrimas.

PEER – Ah, isso é verdade. A Bíblia Sagrada chega até a dizer:

‘se teu olho te escandaliza, arranca-o fora!’ Mas me diz uma

coisa: quanto tempo demora para um olho operado voltar a ser

um olho humano igual aos outros?

O VELHO – Nunca mais, meu filho.

PEER – Ah, é? Então, meu caro, sabe o que te digo: ‘muito boa

noite e obrigado por tudo, hein!’

O VELHO – E aonde você pensa que vai?

PEER – Vou continuar meu caminho, igual como antes.

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O VELHO – Alto lá! É fácil entrar nos domínios do Velho de

Dovre, mas sair é impossível!

PEER – Por quê? Vai apelar para a violência?

O VELHO – Escute Príncipe Peer, e seja razoável! Você tem um

talento natural para bruxo, não é? Todos já te tomavam por um

duende, fácil, fácil, ou quase. E você agora quer desistir?

PEER – Quero sim. Quero! Para me casar com uma princesa e

ganhar um reino de verdade estou disposto a fazer alguns

sacrifícios pequenos. Mas tudo tem limites. Primeiro deixei que

me pusessem um rabo, mas sou livre para tirá-lo quando eu

bem entender. Depois abri mão das minhas roupas, que, aliás,

já estavam bem velhas e esfarrapadas. Mas posso trajá-las

quando me der na veneta. E digo mais: se eu sentir vontade,

sou bem capaz de mandar para os quintos dos infernos todos

esses costumes esquisitos de Dovre, compreendeu? Se vocês

fizerem questão, eu posso até jurar que uma vaca é uma

donzela linda, porque um juramento, pensando bem, se digere

com a maior facilidade. Mas daí a ceder minha liberdade,

renunciar a morrer como um cristão temente a Nosso Senhor e

condenar-me a ser duende para o resto da vida, nem voltar

atrás nunca, tudo isso parece uma coisinha de nada, é? Pois

fique sabendo que não consentirei, nem há força no mundo

capaz de me mudar de idéia!

O VELHO – Hmmm, hmmm!... Você vai acabar é me irritando de

verdade! Estou falando sério. Você, seu fedelho, começa

seduzindo minha filha...

PEER – Isso é uma grandessíssima calúnia!

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O VELHO – Agora tem que casar com ela.

PEER – Ah, então você quer insinuar que...

O VELHO – O quê? Você tem a audácia de negar que ela foi

objeto da tua cobiça e do teu desejo?

PEER (Assobiando) – E daí? Nunca ninguém foi enforcado por

uma coisa tão à toa...

O VELHO – Qual: esses homens! São sempre os mesmos!

Vocês só têm alma da boca para fora! Mas, na verdade, mesmo,

só existe para vocês o que é tangível, concreto. Quer dizer que

o desejo então é uma coisa à toa? Pois bem: daqui a pouco

você vai ver o que é o desejo.

PEER – Ah, ah! Qual o que! Esse anzol eu não engulo, tá?

A MULHER DE VERDE – Ah, meu amor adorado! Você vai ser

pai antes do fim do ano!

PEER – Abre a porta! Quero ir-me embora daqui!

O VELHO – Nós vamos te mandar o filho enrolado numa pele

de cabrito.

PEER (Enxugando a testa) – Isso tudo é um pesadelo! Ah, se

eu pudesse acordar logo!

O VELHO – A criança, nós mandamos aos cuidados do Castelo

Real?

PEER – Manda aos cuidados do hospício: é melhor!

O VELHO – Muito bem, Príncipe Peer. Você é quem resolve. O

que está feito, está feito, e o teu pimpolho vai crescer como um

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verdadeiro bastardo. E você sabe que os bastardos crescem

mais depressa!

PEER – Ô velhinho: vê se deixa de ser besta feito um asno! E a

senhorita, faça o favor de ser mais razoável, ouviu? Vamos

chegar a um acordo amigável. Primeiro: vocês fiquem sabendo

que eu não sou nem rico nem príncipe. Podem me pegar por

qualquer lado, que não valho muito mesmo. (A Mulher de

Verde desmaia e é carregada por filhas de duendes.).

O VELHO (Olhando-o com profundo desprezo) – Mãos à

obra, meus filhos! Podem jogá-lo contra os rochedos para

acabar com ele!

DUENDES PEQUENOS – Papai: deixa antes a gente brincar

com ele de lobo e cordeirinho, de gato e rato, de cegonha e

sapinho, deixa?

O VELHO – Está bem, mas andem logo! Já estou de mau

humor e com sono. Boa noite para todos! (Vai-se embora.).

PEER (Perseguido pelos duendinhos) – Me deixem em paz,

ninhada do Diabo! (Tenta fugir pela chaminé.).

OS DUENDINHOS – Gnomos! Ninfas! Mordam a bunda dele!

PEER – Ai! (Quer fugir pelo alçapão.).

OS DUENDINHOS – Fechem todas as saídas!

DUENDE-MOR – Como a criançada se diverte!

PEER (Lutando com um duendinho que lhe morde a orelha)

– Quer fazer o favor de me soltar, seu titiquinha de merda?

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DUENDE-MOR (Batendo-lhe nos dedos) – Mais respeito,

canalha, com um príncipe de sangue azul!

PEER – Um buraco de rato! (Corre em sua direção.).

OS DUENDINHOS – Ninfa! Ninfa! Fecha a entrada do buraco!

PEER – Que verminhos infames! Puxa: prefiro o velho, mil

vezes!

OS DUENDINHOS – Vamos picá-lo em pedacinhos! Em

pedacinhos bem pequenos!

PEER – Que inferno: aqui só cabe um ratinho dos pequenos!...

(Afasta-se correndo e corre depois em ziguezague.).

OS DUENDINHOS (Agrupando-se como formigas em torno a

ele) – Fecha a cerca! Fecha a cerca, pessoal!

PEER (Chorando) – Ah, meu Deus do céu! Quem me dera ser

um pobre mosquitinho! (Cai.).

OS DUENDINHOS – Boa! Boa! Vamos dançar em cima da

cabeça dele!

PEER (Soterrado debaixo de um montão de duendinhos) –

Socorro, mamãe! Estou morrendo, socorro! (Ao longe soam

sinos de igreja.).

OS DUENDINHOS – Barulho de sinos? Vamos fugir minha

gente! Lá vem o rebanho do homem de saia preta! (Gritos e

tumulto. Os duendes fogem. Tudo desaparece.).

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Escuridão completa. Ouve-se Peer Gynt fustigar-se com um

ramo de árvore.

PEER – Responde quem é você?

UMA VOZ – Eu sou eu.

PEER – Vade retro!

A VOZ – Dá a volta. A montanha é grande.

PEER (Tenta passar para o outro lado, mas encontra

resistência) – Quem é você?

A VOZ – Eu sou eu. Você pode dizer o mesmo a seu respeito?

PEER – Posso dizer o que eu bem quiser e sei manejar a

espada! Em guarda! Toma, apanha essa! Saul matou cem e

Peer Gynt, mil! (Golpeia com toda a força.) Quem é você?

Quem é você?

A VOZ – Eu sou eu.

PEER – Que resposta imbecil! Isso não quer dizer nada! Quem

é você?

A VOZ – A Grande Curva! (Personagem lendário, que Ibsen

utiliza para simbolizar a hipocrisia social e suas

conseqüências.).

PEER – Até que enfim! Passamos do preto para o branco. Para

trás, Curva!

A VOZ – Você vai dar a volta, Peer?

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PEER – Vou te atravessar com a espada de ponta a ponta!

(Investe com fúria.) Ah, caiu, finalmente! (Quer passar, mas

encontra resistência.) Ei, ei! Tem mais alguém aí?

A VOZ – A Curva, Peer Gynt. Sempre a mesma coisa. A Curva

ferida. A Curva morta. A Curva sempre viva.

PEER (Jogando longe o ramo de árvore) – Essa arma está

enfeitiçada! Não faz mal, meus braços são fortes! (Golpeia com

os braços, mas não consegue passar.).

A VOZ – Isso: confia nos teus braços! Confia na força bruta! Ah,

Peer Gynt: você vai longe! Ha, ha, ha...

PEER (Retrocedendo de novo) – Não consigo dar um passo

adiante! Para qualquer lado que eu vire, é a mesma coisa! Ele

me cerca daqui, dali, me cerca todo! Quando eu penso que

estou saindo do círculo, estou sempre no centro! Revela teu

nome! Deixa eu te ver! Quem é você, afinal?

A VOZ – A Curva.

PEER (Sentando-se) – Nem vivo nem morto. Névoa. Lodo.

Sem forma. Parece que estou no meio de ursos que dormem e

grunhem baixinho. (Rindo.) Quero ver você mesmo se ferir,

vamos!

A VOZ – A Curva é muito esperta!

PEER – Vamos, fere!

A VOZ – A Curva não fere nunca!

PEER – Luta! Eu quero que você lute!

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A VOZ – A Grande Curva vence sem lutar.

PEER – Ah, se eu tivesse ao menos uma ninfa para me beliscar,

um duendinho para lutar comigo, qualquer coisa! Que nada!

Bem, agora ele está roncando! Ei, Curva, escuta só!

A VOZ – O que você quer?

PEER – Vamos, um pouco de violência!

A VOZ – A Grande Curva vence pela doçura.

PEER (Mordendo-se os braços e as mãos) – Garras! Dentes

mordendo a carne! Uma gota de meu próprio sangue! (Ouve-se

o ruflar de asas de pássaros de grande porte.).

GRITO DE AVE – Ele vem vindo, Curva!

A VOZ – Sim, vem vindo devagar.

GRITO DE AVE – Onde estão minhas irmãs? Venham ter

comigo! Voem! Voem!

PEER – Donzela que queres me salvar, levanta-te, alça a vista e

ajuda-me logo! O livro dos Salmos, depressa, joga no olho dele!

GRITO DE AVE – Ele está se enfraquecendo.

A VOZ – Já está em nosso poder!

GRITO DE AVE – Venham perto de mim, irmãs, para perto de

mim!

PEER – É comprar a vida bastante caro, pagá-la com uma hora

como esta que estou passando! (Desiste de lutar e cai.).

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AS AVES – Curva: olha ele caindo ao chão! Pega! Pega! (Som

de badaladas e cantos litúrgicos, ao longe.).

A CURVA (Evaporando-se no ar) – Foi forte demais! Havia

mulheres dentro dele, apoiando-o...

Raiar do dia. Em primeiro plano, uma cabana na pradaria

montanhosa de Aase. A porta está fechada diante de um

local deserto e silencioso. Em frente à cabana, Peer,

deitado, dorme.

PEER (Acorda. Olha em torno com o olhar pesado de

cansaço e lentidão. Cospe) – Eu daria qualquer coisa por um

arenque defumado! (Cuspindo de novo. Depois vê Helga que

se aproxima, trazendo um cesto de víveres.) Ué? Você por

aqui, menininha? O que é que você está fazendo por estas

bandas?

HELGA – Foi a Solveig que...

PEER (Levantando-se de um salto) – Onde ela está?

HELGA – Atrás da cabana.

SOLVEIG (Escondida pela cabana) – Se você se aproximar de

mim, juro que eu fujo.

PEER (Parando) – Você está com medo que eu te rapte?

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SOLVEIG – Você não tem vergonha de falar desse jeito?

PEER – Sabe onde eu passei a noite? A filha do Velho de Dovre

estava juntinha de mim e não queria me largar.

SOLVEIG – Ainda bem que os sinos badalaram a noite toda!

PEER – Mas Peer Gynt não é presa fácil! O que é que você

acha?

HELGA (Chorando) – Olha ela correndo! (Correndo atrás

dela.) Ei, me espera um pouquinho, me espera!

PEER (Pegando-a pelo braço) – Olha o que eu tenho guardado

no bolso, olha só! Um botão de prata! Verdadeiro! Eu dou ele

para você se você falar com ela por mim!

HELGA – Me larga! Me solta, eu quero ir atrás dela!

PEER – Toma: fica com ele para você!

HELGA – Me larga! Eu quero pegar meu cesto!

PEER – Que Deus te pague se você...

HELGA – Eu tenho medo de você!

PEER (Com brandura, soltando o braço de Helga) – Não,

não. Diz para ela me esquecer. Diz!

FIM DO SEGUNDO ATO

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TERCEIRO ATO

Um denso bosque de pinheiros. Dia cinzento de outono.

Neva. Peer Gynt, em mangas de camisa, derruba uma árvore

de galhos retorcidos.

PEER – Eu sei, eu sei! Você resiste quando pode meu velho!

Não adianta: tuas horas estão contadas. (Dando novas

machadadas.) Já vi que você tem uma cota de malha rija! Mas

vou dar cabo dela, nem que ela fosse dez vezes mais dura! Isso:

agita quanto você quiser esses braços nodosos! Eu compreendo

que você está com raiva, mas não vai te salvar de jeito nenhum!

(Mudando repentinamente de tom.) Que nada! Não adianta

mentir: não estou lidando com um cavalheiro coberto de ferro. É

uma árvore velha, um tronco velho de pinheiro todo cheio de

ranhuras. Puxa: como é duro pôr abaixo madeira para

construção! Ufa! Pior é quando a gente se deixa levar pela

imaginação! Tenho que perder esse vício! Com essa mania de

estar sempre nas nuvens, sonhando acordado, você leva é a

breca, meu caro! Te largam aí para sempre no meio da floresta!

(Trabalha com afinco durante algum tempo.) É o que eu digo:

você fica largado! Nada de contar com a mãezinha para te trazer

de comer e te botar a comidinha na boca, não! Se você está

com fome, coitado, o jeito é caçar você mesmo o teu de comer,

pedir ajuda para o rio, e para a floresta, juntar lenha, fazer uma

fogueira e preparar uma comida. Se você está com frio, caça

uma rena, se não tem teto, parte um monte de pedras. Quem

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quer casa tem que derrubar árvores, carregar nas costas e levar

até o lugar escolhido. (Larga o machado e olha em torno.)

Que mansão imponente! Na parte mais alta vou erguer uma

torre e uma ventoinha. Depois vou esculpir na empena uma

sereia de cauda bem comprida. Mando fazer portas e

fechaduras banhadas em cobre. Preciso mandar colocar

também vidraças bem bonitas, dessas que de longe a gente já

vê brilhando. (Rindo com zombaria.) Outra peta inventada pelo

Diabo! É o que eu te digo, meu caro: você está largado do

mundo! (Batendo a árvore com fúria.) Ah, estou pouco ligando!

Uma choupana coberta de palha já serve para proteger da

chuva e da neve, sabe? (Erguendo os olhos e contemplando

a árvore.) Ah, começou a cambalear, hein? Agora outra

machadada... e, pronto! Já caiu por terra, viu só? Ih, como estão

tremendo os brotinhos em volta dela! (Começa a podar a

árvore e, de repente, pára, com o machado levantado.) Epa:

tô sentindo alguém atrás de mim! Ah, olha: o homem de

Haegstad! Quer me pegar na traição, é? (Esconde-se atrás da

árvore e espia.) Ué, não é ele, não! É um menino! Tá com baita

dum medo, olhando para os lados, disfarçado. Que é que ele

está escondendo na malha? Uma foice! Agora parou. Tá

olhando de novo... botou a mão num toro. Por quê? O que é que

ele vai fazer? Ah!... Não é que se cortou no dedo? Cortou o

dedo todinho, rapaz! Tá vertendo sangue que nem boi! E agora

deu no pé, com a mão enrolada num pano velho! (Erguendo-se

novamente.) Que exagerado! Um dedo da mão, um dedo

inteirinho, ‘seu’! De propósito: TAC! Ah, já sei pra que é: é o

único jeito de escapar do serviço do rei! Ele tinha que servir de

soldado e não queria nem ouvir falar! Compreendo. Bem, mas

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daí a... cortar assim para sempre... A gente pode pensar numa

coisa dessas, querer mesmo, mas fazer? Ah, isso não, não

compreendo de forma alguma! (Sacode várias vezes a cabeça

e volta a trabalhar.).

Um quarto na casa de Aase, em completa desordem: baús

abertos, roupas espalhadas por todos os cantos. Um gato

escarrapachou-se em cima da cama. Aase e Kari, mulher de

um agregado, estão ocupadíssimas, fazendo malas,

encaixotando coisas e pondo tudo em ordem.

AASE (Correndo de um lado para o outro) – Ei, Kari: escuta!

KARI – O que é?

AASE (Correndo de um lado para o outro) – Kari: escuta!...

Onde é que está?... Onde foi mesmo que eu guardei?... Vamos,

responde logo, mulher!... Cadê?... O que é mesmo que eu estou

procurando? Nem sei onde estou com a cabeça! Onde está a

chave do baú?

KARI – Na fechadura.

AASE – Que barulho é esse? Parece que eu tô ouvindo passar

um carro!

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KARI – São coisas que estão levando para Haegstad. As

últimas coisas.

AASE (Chorando) – Ah, quem me dera que fosse a mim que

estivessem levando para o cemitério! Eu ficaria tão satisfeita!

Quanto a gente tem que penar neste mundo! Nosso Senhor que

tenha pena de mim! Olha a casa como já está vazia! O que o

fazendeiro de Haegstad me deixou, o juiz carregou! Me levaram

tudo, até deixar a gente pelada! Vergonha: é isso mesmo. Que

vergonha para quem lavrou essa sentença! (Sentando-se na

beira da cama.) Casa, terreno, me tiraram tudo! Pronto: nossa

família não tem mais nem um vintém! Se o velho foi de ferro, o

Tribunal foi de pedra! Não teve clemência nem perdão! O Peer

estava longe, eu não tinha ninguém para me ajudar...

KARI – Mas te deixaram ficar aqui até morrer.

AASE – Ah, isso deixaram! Como quem joga uma migalha de

esmola para mim e para o gato!

KARI – Por Deus do céu: como teu filho te saiu caro, hein,

Aase?

AASE – Quem, o Peer? E essa agora! Eu acho que você tá

ficando louca! Por acaso a Ingrid não voltou pra casa sã e salva,

não? Tinham que culpar é o Demo! Era o justo no caso! Foi ele,

só ele, o Demônio, que tentou o coitado do meu filho!

KARI – Você não acha melhor eu chamar o pastor? Talvez as

coisas estejam mais mal paradas do que a gente pensa!

AASE – O pastor? É: quem sabe? (Levantando-se.) Não, nada

disso! Não posso! Pois se eu sou a mãe dele, ué! Quando todos

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o abandonam, aí é que ele precisa mais ainda de mim! Não sou

eu que vou faltar com a minha obrigação de mãe! Deixaram

para ele esta jaqueta. Vou remendá-la. Quem dera, eu tivesse

ficado com o casaco dele também! E as calças, onde estão?

KARI – Ali naquela pilha.

AASE (Remexendo e procurando) – O que é que é isso que

eu estou pegando aqui, Kari? Uma forma velha que ele usava

pra brincar de fundidor! Derretia estanho, prensava, moldava.

Um dia, era festa em casa, o gurizinho pediu estanho para o pai.

‘Que estanho?’ Disse o Jan: ‘te dou é prata! Toma: uma moeda

com a efígie do Rei Christian! É para todo o mundo saber logo

que você é o filho de Jan Gynt!’ Que Deus perdoe o meu pobre

falecido! Estava numa bebedeira que para ele, naquela hora,

tanto fazia estanho como ouro! Era tudo a mesma coisa! Ah,

olha aqui a calça! Tá que é um buraco só! Temos que remendar

isso, Kari!

KARI – Tá precisando mesmo.

AASE – Depois vou me deitar. Tô me sentindo toda dolorida,

toda doente! (Alegre.) Olha aqui, Kari: duas camisas de flanela

que eles esqueceram!

KARI – Ih, é mesmo!

AASE – Acho ótimo. Você esconde uma. Pensando bem, é

melhor a gente ficar com as duas, sabe? A que ele está usando

já está toda puída!

KARI – Credo, mãe Aase, e não é pecado?

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AASE – É. É. Mas quantas vezes você já ouviu o padre dizer

que há muitos pecados que Deus perdoa?

No bosque, diante de uma cabana recém-construída.

Cornos de renas na soleira da porta. Cai uma neve espessa.

Crepúsculo. Diante da porta, Peer Gynt está pregando uma

enorme fechadura de madeira.

PEER (Rindo enquanto trabalha) – Quero uma fechadura

secreta e bem forte / Para não deixar entrar os diabinhos que só

trazem má sorte! / Minha linda fechadura, de fecho secreto! /

Com ela eu desafio o duende mais indiscreto! / Parece que

estou vendo, quando chega a noite / Eles gritando aflitos: ‘abre,

Peer, se não quiser que eu te açoite!’ / Abre para o diabinho,

fino e sorrateiro como o pensamento, / Abre logo para a turma

que veio montada no vento! / Num abrir e fechar de olhos a

multidão pela casa se derrama / E começa a tormenta, que

inferno! Arranham até debaixo da cama! / ‘Ha, ha, ha, Peer, não

te livras de nós nem por momentos, / Ninguém pode resistir à

força dos seus maus pensamentos!’ (Solveig, com um lenço

amarrado na cabeça, um embrulho na mão, de esquis nos

pés, surge, deslizando sobre a neve.).

SOLVEIG – Que Deus abençoe o teu trabalho! Não me manda

embora! Eu vim porque você me chamou.

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PEER – Solveig! É você? Você mesma? Não, não é possível! E

você não tem medo de chegar perto de mim?

SOLVEIG – Minha irmãzinha Helga me transmitiu seu recado. O

vento e o silêncio me trouxeram outros. E tua mãe também,

quando me falava de você, e os meus sonhos, e minhas noites

tão longas, meus dias solitários – tudo me dizia para vir aqui. Lá

onde eu estava minha vida se extinguia pouco a pouco. Eu não

podia mais nem rir nem chorar quando tinha vontade. Eu vim

porque era a única coisa que eu podia fazer.

PEER – Mas o que é que o teu pai vai dizer?

SOLVEIG – Por toda essa terra imensa, debaixo desse céu de

Deus, não existem mais pra mim nem pai nem mãe. Não existe

mais ninguém.

PEER – Solveig, meu amor! Você deixou tudo pra ficar comigo?

SOLVEIG – Deixei. Você será tudo para mim. Meu amigo e meu

consolo. (Chorando.) E como eu sofri ao deixar minha

irmãzinha, e meu pai, e mamãe que me criou! Isso é que foi o

mais difícil, Peer! Não, meu Deus, o mais difícil mesmo foi todos

de uma vez!

PEER – Você está a par da sentença pronunciada contra mim

na primavera? Sabe que me despojaram de tudo o que era

meu? Agora não tenho nem casa nem mais nada.

SOLVEIG – E foi por causa dos teus bens que eu deixei quem

eu mais adoro no mundo?

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PEER – E você por acaso sabe em que condições eu vivo aqui?

Se eu sair deste bosque, o primeiro que aparecer pode me

denunciar!

SOLVEIG – Vindo para cá me encontrar com você, cada vez

que perguntavam no caminho para onde eu estava indo, eu

respondia: ‘vou para a minha casa’.

PEER – Ah, não preciso mais de portas nem de fechaduras!

Não tenho mais medo dos diabos nem dos maus pensamentos!

A bênção de Deus toca esta choupana onde você vai morar com

seu pobre caçador! Solveig: deixa eu olhar para você! Sem me

aproximar de você, só te olhar, olhar! Como você é loura e pura!

Deixa eu te erguer nos meus braços! Como você é fina e leve!

Posso te carregar sem cansar, sempre, sempre, Solveig! Para

não te manchar, vou esticar meus braços para meu corpo não

tocar o teu, tão morno, tão macio! Ah, parece mentira! Quem ia

acreditar que eu pudesse falar assim um dia? Ah, quanto eu

passei, lânguido, sem sono, pensando só em você, dia e noite,

Solveig! Quero te mostrar o que eu construí! Vou derrubar tudo,

sabe? É pequeno demais, é feio demais!

SOLVEIG – Seja como for, eu gosto. Agora, sim, posso respirar

livremente, com o rosto bem de frente para o vento! Onde eu

estava era tudo tão estreito, tão sufocante! Foi uma razão a

mais para eu fugir. Aqui, no meio dos pinheiros que sussurram,

ouço música e silêncio, e me sinto em casa, finalmente.

PEER – Tem razão! Você está em casa mesmo! Para sempre,

não é?

SOLVEIG – Não se volta atrás nunca, pelo caminho que vim.

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PEER – Até que enfim te possuo! Vamos entrar! Quero te ver na

minha casa! Entra: vou buscar lenha e vamos acender uma

fogueira grande, para nos dar luz e calor e para você poder

descansar bem gostoso, sem sentir nem um arrepio de frio.

(Pega o machado e se dirige rumo ao bosque. Nesse

momento sai da mata uma velha maltrapilha, usando um

vestido verde em farrapos. Um menino de mau aspecto,

com uma bilha na mão, segue-a, coxeando, agarrado à sua

saia.).

A MULHER – Boa tarde, Peer do pé ligeiro!

PEER – Quem é você? O que é que você quer de mim?

A MULHER – Ora, se somos velhos amigos, Peer. Minha

cabana é perto daqui. Somos vizinhos.

PEER – Ah é? Pois para ser franco, eu nem desconfiava nessa

vizinhança.

A MULHER – Enquanto você construía sua cabana, surgia

outra, perto daqui: a minha.

PEER (Preparando-se para ir embora) – Estou com pressa.

A MULHER – Você sempre está com pressa, meu caro. Mas

manquejando daqui, me arrastando dali, consegui te alcançar.

PEER – Minha excelente criatura: você está enganada.

A MULHER – Qual o quê! Só me enganei daquela vez em que

acreditei nas tuas promessas...

PEER – Minhas promessas? Essa é boa! Que diabo de

invenção é essa?

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A MULHER – Ah, então você já se esqueceu da noite em que

fez um brinde em casa de meu pai? Esqueceu?

PEER – O que? Nunca houve nada disso, dona! Que conversa

fiada é essa, afinal? Quando eu te vi mais gorda?

A MULHER – Só nos encontramos uma vez. A primeira e última.

(Para o menino.) Dá de beber ao teu pai, menino. Acho que ele

está com sede.

PEER – Eu, pai dele? Acho que você está é bêbada, sabe?

A MULHER – No entanto, pelo fruto você devia reconhecer a

árvore. Você não está vendo que ele é manco das pernas, como

você é manco da cabeça?

PEER – Então você quer me fazer acreditar que...

A MULHER – Ah, você já quer escapar de novo, hein?

PEER – Mas como? Esse menino todo desengonçado?...

A MULHER – Ah, ele cresceu depressa, isso é verdade!

PEER – Ah, então, ‘sua’ carcaça carcomida: você quer se

passar por...

A MULHER – Escuta aqui, Peer Gynt! Você está estúpido como

um cavalo! (Chorando.) Eu tenho culpa se hoje não sou mais

tão bonita quanto naquele dia em que você me atraiu até a

floresta? Quando dei à luz, no outono, o Diabo foi minha

parteira. Não acho nada espantoso eu ficar assim feia, depois.

Mas está ao teu alcance voltar a me ver mais linda do que

nunca. Expulsa essa moça da tua casa, bota ela pela porta

afora. Se você banir ela da tua presença e dos teus

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pensamentos, você verá - meu querido - como eu deixo na hora,

de ser uma carcaça carcomida!

PEER – Vai embora você: sua bruxa amaldiçoada!

A MULHER – Espera sentado!

PEER – Vou te quebrar a fuça já, já!

A MULHER – Experimenta só pra ver! Peer Gynt: não sou fácil

de vencer! Vou voltar aqui todos os dias. Vou me plantar nesta

porta para espiar vocês dois. Quando vocês estiverem sentados

juntinhos e você começar a ficar todo terno, querendo acariciar

tua amada, eu me enfio entre vocês e quero meu quinhão de

festa. Ela e eu, nós duas vamos ter o mesmo amante. Você vai

ter que repartir teu amor com nós duas. Adeus, meu adorado,

por mim você pode se casar até amanhã mesmo, se quiser.

PEER – Ah, boca de Satanás!

A MULHER – Ah, eu ia me esquecendo: você vai ter que manter

seu filhinho, seu menininho tão engraçadinho! Ei diabinho: vai

com papai, vai, filhinho!

O MENINO (Cuspindo em Peer) – Fora, canalha! Onde está o

machado para eu te partir ao meio? Espera só, você vai ver!

A MULHER (Beijando o menino) – Menino endiabrado!

Quando você crescer vai ser o retrato escarrado de teu pai!

PEER (Batendo os pés com impaciência) – Eu queria que

vocês fossem...

A MULHER – Para bem longe, não é mesmo?

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PEER (Fechando os punhos, com raiva) – E tudo isso por...

A MULHER – Por causa de um pensamento! Por um simples

desejo! É horrível! Coitado do Peerzinho!...

PEER – Mas não sou só eu que estou envolvido! Solveig, meu

tesouro, doce, puro!

A MULHER – É isso, é isso... O inocente é o que paga sempre

pela louça quebrada, dizia o Diabo, enquanto a mãe dele dava

uma surra nele para castigar as farras do papai. (Ela entra de

novo no mato, arrastando o menino que joga o cântaro no

chão.).

PEER (Depois de uma longa pausa) – Dá meia-volta, me dizia

a Curva. É assim que se faz. Agora, meu belo palácio

desmoronou, só ficaram as ruínas. Agora, um muro me separa

de minha amada. De repente não me agrada mais este lugar, e

minha alegria evaporou. Então, meu caro, dá meia-volta, vamos!

De você até ela, acabou-se o caminho em linha reta. Caminho?

Quem sabe? Deve existir um caminho, deve, deve... Será o do

arrependimento? Falam disso, não me lembro onde. Mas onde

foi que eu li isso? Não tenho livros aqui. Não, não tenho nada

que possa me guiar neste bosque selvagem em que moro.

Depois, o caminho do arrependimento... Sei lá! Vai ver que

precisa percorrê-lo muitos anos... Uma vida não bastaria.

Quebrar tudo que existe de gracioso, de puro e de belo para

depois colar de novo os cacos? Não, há coisas que não se

consertam mais. Pode-se colar um violino, mas quem vai colar

um sino partido? Quem cultiva a relva não pisa nela com ódio.

Mas ela mentiu: aquela bruxa imunda! Não quero mais saber de

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todas essas nojeiras! Não quero! Mas será que elas se

apagaram completamente da minha alma? Não! Nunca vou

conseguir me libertar dos maus pensamentos. Elas sempre

acharão um jeito de entrar na minha mente: Ingrid... e as três

moças que corriam pelas montanhas... Pode ser que todas

venham se intrometer também entre nós... pedindo, com

risinhos e zombarias para eu apertá-las contra o peito e carregá-

las com carinho, com os braços estendidos, longe do corpo... Dá

meia-volta meu caro! Nem que eu tivesse os braços compridos

como os pinheiros das montanhas, nunca conseguiria mantê-la

tão longe de mim que ela pudesse continuar branca e

imaculada! Mas eu tenho que me safar desta, de cabeça

erguida, sem ganhar nem perder... Deve haver uma maneira de

sacudir tudo isso para longe e esquecer tudo para sempre!

(Caminha alguns passos em direção à cabana e pára.) Ficar

junto dela depois do que aconteceu? Coberto de lama e de

vergonha? Entrar perseguido por um enxame de diabos? Falar

sem dizer tudo? Contar uma parte, sem confessar a história

toda? (Jogando o machado.) Hoje é véspera de festa. Eu ia

cometer um pecado indo encontrá-la manchado como estou

agora.

SOLVEIG (Aparecendo no umbral) – Você não vai entrar?

PEER (À meia-voz) – É dar a meia-volta!

SOLVEIG – O que?

PEER – Espera por mim. Já está escuro e tenho que carregar

um fardo pesado.

SOLVEIG – Eu vou te ajudar: vem, vamos trazê-lo juntos.

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PEER – Não, é impossível. Fica aí mesmo.

SOLVEIG – Você vai demorar muito?

PEER – Não sei. Paciência, minha filha. De qualquer modo,

você me espera.

SOLVEIG (Confirmando com a cabeça) – Eu espero, sim.

(Peer Gynt segue pelo caminho que atravessa o bosque.

Solveig fica de pé, no umbral da porta.).

Em casa de Aase. É noite. Ardem toros de lenha na lareira,

iluminando o quarto. O gato está enrodilhado em cima de

uma cadeira, ao pé da cama. Aase, deitada, passa as mãos

crispadas de ansiedade pela colcha.

AASE – Ai, meu Deus, e ele que não vem? Como é ruim

esperar, esperar! Tenho tantas coisas para dizer para ele e não

tenho ninguém para mandar chamá-lo! O tempo está passando!

Ah, como estou aflita! Quem podia prever uma coisa dessas?

Aase, se você soubesse, garanto que você ia ser menos severa

com seu filho!

PEER (Entrando) – Boa noite!

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AASE – Deus seja louvado! Finalmente você chegou: meu filho

adorado! Mas, como foi que você teve coragem de vir? Tua vida

corre perigo aqui, Peer!

PEER – Bah! E o que importa a minha vida? Eu precisava voltar

e voltei: pronto.

AASE – Ah, a Kari já fez a parte dela e eu poderei partir em paz

agora.

PEER – Partir? De que é que você está falando? Partir para

onde?

AASE – Ah, Peer, se você soubesse! Meu fim está próximo.

Não vou mais viver por muito tempo, não.

PEER (Inquieto, anda de cima para baixo, no quarto) – Muito

bem! Eu tinha me livrado de um fardo e queria descansar um

pouco... E agora, essa! Você está sentindo frio nos pés e nas

mãos?

AASE – Estou Peer. Logo tudo vai acabar para mim. Quando

você perceber que os meus olhos já estão sem brilho, aí você

fecha eles bem devagarzinho. Depois, vai providenciar o

caixão... de boa qualidade, hein? Ah, meu Deus, não é que eu ia

me esquecendo? É impossível!

PEER – Mãe: você quer calar essa boca? Ainda temos muito

tempo para pensar nisso, ora!

AASE – Tem razão, meu filho, tem razão. (Olhando com

angústia pelo quarto.) Você está vendo o que aqueles

malvados deixaram para nós.

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PEER (Fazendo uma careta amarga) – É. E tudo por minha

culpa. Eu sei: não precisa me jogar isso na cara.

AASE – Tua culpa? E quem falou nisso? Não senhor! A culpa

foi da maldita bebida, isso sim! Coitado de você, meu filhinho,

você estava de ‘fogo’! Nem sabia o que estava fazendo! E antes

disso, aquela tua luta com o cabrito selvagem já tinha te deixado

de cabeça virada!

PEER – Tá bem, mãe. Não fala mais nessa história nem nas

outras. Deixa para falar mais tarde dessas coisas tristes.

(Sentando-se à beira da cama.) Agora, mamãe, vamos falar de

qualquer coisa, qualquer coisa. Mas sem agitação, sem brigar.

Olha: o nosso velho gatão! Sempre no mesmo lugar!

AASE – Ih, ele saracoteia tanto de noite! Você sabe o que isso

quer dizer, não é?

PEER (Mudando de assunto) – O que há de novo aqui na vila,

mãe?

AASE (Sorrindo) – Falam tanto de uma moça que vive

suspirando na montanha.

PEER (Interrompendo) – E Mades Moem? Ficou mais calmo?

AASE (Continuando) – Os pais dela podem chorar à vontade:

ela nem liga. Escuta aqui, Peer: acho que você deve saber de

um remédio para curar essa infeliz.

PEER – E o ferreiro? Que é que ele tem feito?

AASE – Deixa para lá esse ferreiro sem-vergonha! Eu preferia

que você me perguntasse o nome da moça...

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PEER – Não, não... Vamos conversar fiado assim, sem

agitação, sem brigar. Você está com sede? Puxa: como é

pequena essa tua cama, hein, mãe? Deixa eu ver bem. Ué: não

é a minha cama de criança? Você se lembra quantas vezes

você vinha de noite sentar na minha cabeceira? Você me

enrolava bem nos cobertores; e depois cantava baixinho uma

porção de cantigas bem antigas.

AASE – Ah, você ainda se lembra, é? E quando o teu pai

viajava, ficava tanto tempo fora. De noite, nós brincávamos de

trenó, a colcha era a capota, o chão era o fiorde coberto de

neve.

PEER – E a atrelagem, mãe? Era o mais bonito de tudo!

AASE – E você pensa que eu me esqueci? Kari emprestava o

gato dela para a gente, e nós botávamos ele em cima de um

tamborete.

PEER – E depois partíamos para o castelo dos sonhos, entre as

nuvens, a oeste da lua e à leste do sol. Nosso caminho passava

por montes e vales. E nosso chicote era a bengala que você

guardava no armário.

AASE – Eu ia na boléia, ali, na ponta da cama.

PEER – É. É sim! De vez em quando você afrouxava as rédeas

e virava a cabeça para perguntar se eu estava com frio. Que

Deus te conserve sempre, velha ranzinza! Apesar de tudo, você

me adorava. Por que você está gemendo assim? O que é?

AASE – Estou com dor nas costas de tanto dormir no chão puro.

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PEER – Espera um pouco! Pronto: agora! Se estica bem, mãe!

Assim: tá bom agora?

AASE (Inquieta) – Não, Peer: quero ir-me embora!

PEER – Ir embora?

AASE – É: ir embora! Partir, partir.

PEER – Deixa disso! Te agasalha bem! Eu que vou sentar na

boléia, na beira da cama. E vamos voltar aos contos de fadas,

que fazem passar o tempo!

AASE – Não Peer: é melhor você ir pegar no armário o Livro

dos Salmos. Estou tão nervosa!

PEER – No castelo dos sonhos, por cima da terra e do mar, o rei

nos convidou para uma festa sem par. Sobe logo no trenó, que

já vamos partir! Está pronta, mãezinha? Cuidado para não cair!

AASE – Mas Peer, você tem certeza que o rei me convidou

também?

PEER – Absoluta! Mandou convite para mim e para você.

(Passa uma corda no respaldo da cadeira onde o gato está

enrodilhado e se senta na beira da cama.) Você não está com

frio, mamãe?

AASE – Escuta Peer: acho que estão batendo na porta!

PEER – São os guizos do trenó!

AASE – Que som oco que eles têm!

PEER – Já chegamos ao fiorde!

AASE – Estou com medo! Parece o vento ameaçando!

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PEER – São os pinheiros do vale. Não tem medo, não, mamãe!

AASE – E lá longe, o que é aquilo que brilha tanto? De onde

vem essa luz?

PEER – São as vidraças do castelo. Hoje é noite de baile. Está

ouvindo a música?

AASE – Estou sim.

PEER – Estou vendo São Pedro, na porta, convidando as

pessoas a entrar.

AASE – Ele está convidando?

PEER – Está: e tão amável! Para cada um que passa, ele

oferece um cálice de vinho mais doce que tem na adega.

AASE – Vinho? Com bolo?

PEER – Claro! Ele está com a bandeja na mão. Parece uma

delícia! E a falecida mulher do pastor é que está preparando o

café e a sobremesa.

AASE – Meu Deus, meu Deus! Então ela e eu vamos nos

encontrar de novo?

PEER – Vão, e vão poder tagarelar até cansar!

AASE – Ah, Peer, que casamento é esse que você me traz? Eu

assim, já tão velha, meu filho!

PEER (Dando uma chicotada imaginária) – Vamos logo, meu

cavalinho alazão!

AASE – Peer, meu querido! Será que você não errou de

caminho?

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PEER (Nova chicotada imaginária) – Estamos no caminho

certo.

AASE – Ah, como estou cansada, como estou moída!

PEER – Olha o castelo, altivo diante de nós. Logo, logo estamos

chegando.

AASE – Está bem. Vou fechar os olhos e confio em você, meu

filho!

PEER – Alto lá! Pára aqui, meu valente alazão! / Todos param,

boca aberta, cheios de admiração, / Vendo chegar o Peer Gynt

de braço com sua velhinha! / São Pedro me responda: vai proibir

a entrada / Da minha mãe Aase no céu? Pois nesta celeste

morada / Eu duvido que alguém valha mais do que ela sozinha! /

Por Deus que não tem não! / É claro que não estou falando de

mim: sou um pobre pecador! / Mas ficaria agradecido se me

fizesse esse favor! / Senão, já sabe: chicote no animal e vamos

para longe! / É verdade, fui moleque muito arteiro, / Atormentava

a coitada o dia inteiro, / Chamava ela de ‘Coruja Pavorosa’: mea

culpa, reconheço! / Mas meu Santo, agora por ela, não por mim,

que não mereço, / Deixa ela entrar sossegadinha, para o meio

dessa gente boa! / Olhe, as pessoas lá da Terra são feitas assim

mesmo, sabe? / Lhe asseguro que minha mãe aqui dentro não

destoa! / Ih, olha só Deus, Nosso Pai, vem chegando apressado!

/ Você, São Pedro, vai levar um pito de teimoso e malcriado! /

(Engrossando a voz.) Não banca o porteiro, São Pedro

quadrado! / Deixa entrar a Aase, o assunto está encerrado! / (Ri

alto e dirige-se à mãe.) Viu só? O problema acabou na hora! /

(Angustiado.) Por que é que você está me olhando assim,

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como se tuas pupilas fossem arrebentar? Mamãe! Você não

está me ouvindo? (Aproxima-se da cabeceira.) Não fica

olhando fixo assim pra mim, não. Mãe! Sou eu, teu filho! (Toca

cuidadosamente a fronte e as mãos de Aase.) Ah, então é

isso. Pronto, alazão: pode descansar agora. Já chegamos meu

cavalinho! (Fecha os olhos da morta e se inclina sobre ela.)

Obrigado por tudo o que você fez, pelos tapas e pelos carinhos!

E agora, me agradece também (coloca sua testa contra os

lábios da mãe.) por ter te acompanhado até o fim.

KARI (Entrando) – O que? É Peer? Ah, então tudo vai mudar

de agora em diante! Meu Deus! Que sono tão pesado! Parece

até que...

PEER – Psiu!... Ela morreu. (Kari chora, ao lado do cadáver

de Aase. Peer Gynt anda de lá para cá no quarto, até que

pára perto da cama.) Cuida bem do enterro dela, Kari. Quero

que seja uma coisa decente. Eu vou tentar escapulir antes que

me vejam.

KARI – Você vai para muito longe?

PEER – Vou até o mar.

KARI – Tão longe assim?

PEER – E até mais longe ainda. (Sai.).

FIM DO TERCEIRO ATO

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QUARTO ATO

Costa sudoeste do Marrocos. Um bosque de palmeiras,

tendas, esteiras, mesa posta. Mas longe, no bosque, redes

para dormir. Perto da praia, um iate a vapor com bandeiras

da Noruega e dos Estados Unidos. Uma iole (espécie de

canoa estreita e rápida, de uso muito difundido nos países

escandinavos.) amarrado a terra. Sol poente. Peer Gynt, um

homem de belo aspecto, de meia-idade, elegantemente

vestido de turista, com um lorgnon (óculos sem haste.) de

ouro pendurado no pescoço, preside a mesa e homenageia

Mister Cotton, Monsieur Ballon, Herr Von Eberkopf e Herr

Trompeterstrahle. Estão terminando de jantar.

PEER – Bebam meus senhores! O homem foi feito para o

prazer. Gozemos! O que passou, passou! O tempo perdido não

volta mais. Que vinho os senhores preferem?

TROMPETERSTRAHLE – Caro irmão Gynt: o senhor é um

anfitrião sem igual!

PEER – Metade do mérito recai sobre meu Mestre-Cuca, meu

Maître do hotel e a meu erário.

COTTON – Very well! Bebo à saúde dos quarto!

BALLON – O senhor, monsieur Gynt, tem um bom gosto, um

tom, que só se encontra, raramente, num cavalheiro de vida

independente como a sua. O senhor tem um não sei quê...

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EBERKOPF – Um sopro, uma eloqüência, que se faz de sua

alma liberta uma cosmopolita cidadã do mundo; um olhar que,

sobrepondo-se à visão estreita e mesquinha, atravessa as

nuvens e vai ao NEC PLUS ULTRA: a marca da revelação

impressa numa primordialidade natural, enriquecida pela

experiência adquirida e elevando-se com ela até os píncaros

augustos da trilogia. Não era isto exatamente, monsieur, que o

senhor queria dizer?

BALLON – É possível. Mas em francês, a idéia não adquire

tanto realce.

EBERKOPF – Ya, ya! Seu idioma carece de flexibilidade. Seja

como for, se quisermos pesquisar as origens do fenômeno...

PEER – Já foram encontradas. Tudo está ligado à minha

condição de solteiro. Sim, senhores: é muito simples. Qual é o

primeiro dever do homem? Ser ele mesmo. Conhecer-se a si

mesmo, encontrar-se a si mesmo. Ele e tudo o que se refira a

ele: essa é a sua preocupação natural. Então? Eu lhes pergunto,

portanto: como poderia cumprir esse primeiro dever se me

deixasse sobrecarregar como um camelo das ditas e desditas

alheias?

EBERKOPF – Eu seria capaz de jurar que essa fuga para

dentro de si mesmo, essa concentração de seu ego não foi

obtida sem lutas.

PEER – É verdade. Tive, há tempos, combates ferrenhos,

difíceis. Mas minha vitória é honrosa. Uma vez, porém, escapei

por um triz. Eu era um rapaz esperto, de aspecto agradável.

Apaixonei-me por uma dama de sangue azul.

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BALLON – De sangue azul!

PEER (Com desdém) – Exato: era essa espécie de...

TROMPETERSTRAHLE (Dando um soco na mesa) – De

infames aristocratas!

PEER (Dando de ombros) – De grandezas decaídas, cujo

orgulho é podar sua árvore genealógica de qualquer rebento

plebeu...

COTTON – Uma relação frustrada?

BALLON – A família negou o consentimento?

PEER – Ao contrário.

BALLON – Ahn?

PEER (Discretamente) – Os cavalheiros compreenderão que

havia razões para apressar o casamento. Mas, para ser franco,

era um assunto que sempre me inspirara certa repugnância.

Sou, por temperamento, independente, e, além disso, me enfaro

logo. De modo que quando o pai veio, todo empertigado, exigir

que eu mudasse de nome e de condição social, e comparasse

títulos de nobreza, sem falar de outras ignorâncias

desagradáveis, para não dizer inaceitáveis, recuei dignamente,

rejeitei o ultimato e renunciei à jovem. (Tamborilando na mesa

e com um aspecto de recolhimento interior.) É isso: pode-se

confiar no destino. Ah, que pensamento confortador!

BALLON – E tudo ficou por isso mesmo?

PEER – Ah, não! Tive ainda muito trabalho com esse caso.

Levantou-se uma gritaria indignada, na qual sobressaíam os

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membros mais moços da família. Tive que enfrentar sete deles.

Foi um duro, que não esquecerei nunca, embora eu tenha saído

são e salvo. Correu sangue, mas esse sangue serviu para

amadurecer minha personalidade e reafirmar minha fé no

destino.

EBERKOPF – Seu conceito de vida o eleva à categoria dos

pensadores. Enquanto o medíocre só veria fatos isolados, entre

os quais tateia e se perde, o senhor apreende uma visão global.

O senhor detém uma norma certa, que aplica a todos os

fenômenos. Seus juízos argutos, penetrantes, parecem raios

emanando da mesma fonte de luz. E o senhor nunca estudou?

PEER – Já lhes disse: sou apenas um autodidata. Nunca

aprendi nada sistematicamente. Mas refleti, especulei e li um

pouco de tudo. Como comecei tarde, não tive tempo para

aprofundar-me. Por isso fui obrigado a estudar a história de

modo fragmentário. E como, nos tempos que correm,

precisamos de algumas certezas, acrescentei um pouco de

religião, sempre em doses pequenas: torna-se mais fácil de

assimilar assim. Depois, o importante não é acumular um monte

de doutrinas, mas escolher as que nos possam ser úteis.

COTTON – Isso é o que se chama de espírito prático.

PEER (Acendendo um cigarro) – Aliás, meus amigos, basta

que se recordem de minha carreira. O que é que eu era quando

vim para o oeste? Um pobre diabo sem eira nem beira, que

suava penosamente para ganhar um pedaço de pão. Foi duro,

podem crer. Mas, apesar de tudo, ama-se a vida e a morte é

sempre amarga. Resisti porque tenho a pele dura, como vêem

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meus amigos, a fortuna me foi propícia, o destino me sorriu. Dez

anos mais tarde me chamavam de Creso dos armadores de

Charleston e meu nome corria de porto em porto. Eu tinha a

bordo, a sorte. A sorte viajava em meus navios.

COTTON – Qual era seu ramo de negócios?

PEER – Sobretudo o transporte de negros para a Carolina e a

exportação de ídolos para a China.

BALLON – Safa!

TROMPETERSTRAHLE – Maldito seja nosso amigo Gynt!

PEER – Por acaso acham uma empresa de moral duvidosa?

Pois foi a mesma reação que eu tive. Era um negócio que eu

considerava execrável. Mas, como os senhores sabem, depois

de dado o primeiro passo é difícil voltar atrás. Como interromper

assim, ZAC-ZAC, um investimento que envolve milhares de

outros interesses? Em geral, é uma coisa que repugna deixar as

coisas pelo meio. Mas confesso que nunca fui indiferente ao que

se chama de conseqüências finais. Cada vez que ultrapassava

os limites do que é lícito, sentia um vago mal-estar. Além disso,

eu estava começando a envelhecer: estava roçando os

cinqüenta, pouco a pouco via meus cabelos branquear. Embora

gozasse de perfeita saúde, de vez em quando uma idéia penosa

me rondava: ‘sabe-se lá’ – eu me interrogava – ‘quando soar a

hora do grande julgamento quem separará os bodes dos

carneiros?’ Que fazer? Não podia interromper meu comércio

com a China. Querendo contornar essa dificuldade, estabeleci,

com aquele país, relações de outro tipo. Na primavera,

continuava exportando ídolos, mas no outono mandava para as

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costas chinesas uma carga completa de padres munidos de

todo o seu equipamento: roupas, Bíblias, arroz e garrafas de

rum.

COTTON – O senhor tinha lucros com esse comércio?

PEER – Como não? A combinação deu certo. Os padres

cumpriram seu dever maravilhosamente bem. Para cada ídolo

vendido era mais um Coolie (Nome pejorativo dado aos

trabalhadores asiáticos, taxando-os de incompetentes.)

batizado, de modo que as duas nações se anulavam

mutuamente. A missão foi incansável: os deuses vendidos eram

logo abolidos pelos missionários.

COTTON – Sim, senhor!... E a mercadoria africana?

PEER – Foi outro setor em que triunfou minha moral.

Compreendi que um negócio desse tipo não era aconselhável

para pessoas da minha idade. Ninguém sabe a hora da sua

morte, sem contar as armadilhas que nos armam nos filantropos

e os perigos de naufrágios e avarias. Tudo bem pesado, disse

só para mim: ‘Peer: chegou a hora de amainar velas e de corrigir

os erros.’ Então, comprei uma propriedade na América do Sul e

reservei para mim mesmo o último carregamento de carne

humana, que aliás resultou ser de excelente qualidade.

Afeiçoaram-se a me servir, ficaram gordos, grandes, de modo

que tanto eles quanto eu, ficamos satisfeitos. Afinal, podia me

vangloriar de tê-los tratados como irmãos. O que, além do mais,

me trouxe lucros morais. Mandei construir escolas para elevá-

los a um certo nível de virtude e para velar escrupulosamente

pelos que estavam sob minha tutela. Depois, acabei me

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retirando completamente do ramo. Vendi a plantação – bens

animados e inanimados. No dia da despedida, mandei distribuir

bebidas grátis entre todos os meus negros, do mais velho ao

menor. Aos mais velhos, não deixei faltar rapé. No fim estavam

todos, tanto os homens quanto as mulheres, completamente

bêbados. Portanto, se é verdade que quem não faz o mal faz o

bem, posso considerar canceladas todas as faltas que cometi no

passado e meus pecados compensados pelas minhas virtudes.

EBERKOPF (Brindando com ele) – Que espetáculo

reconfortante testemunhar um princípio vital emergindo assim,

das trevas das teorias, para concretizar-se, firme e

inquebrantável, desafiando todas as contingências exteriores!

PEER (Que durante todo o seu monólogo bebeu sem parar)

– Nós, gente do norte da Europa, sabemos guiar nosso barco.

Em suma: a arte de viver consiste em não dar ouvidos às

insinuações de reptilzinho à toa.

COTTON – Que reptilzinho é esse, meu caro amigo?

PEER – Um animal feio, pequenininho, mas muito perigoso, pois

é capaz de nos arrastar para o irreversível. (Bebe mais.) No

entanto, a arte de ousar e o segredo da coragem cabem

inteirinhos nos seguintes preceitos: nunca dar um passo

decisivo; avançar com prudência entre as mil ciladas da vida,

lembrando-se de que ela não se limita ao combate travado neste

momento, e manter detrás de si um espaço suficiente para bater

em retirada, sem susto. Essa teoria que me deu sempre um

apoio incalculável e deu à minha carreira sua marca

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inconfundível, essa teoria é herança de minha raça e de minha

família.

BALLON – O senhor é norueguês, não é?

PEER – De nascimento sou, mas, por temperamento, sou

cosmopolita. Devo minha riqueza à América; minha biblioteca às

modernas escolas alemãs; à França, meus trajes, minhas

maneiras e o requinte de minha cultura; à Inglaterra, mãos aptas

para o trabalho e o instinto do lucro pessoal. Os judeus me

ensinaram a paciência; da Itália eu trouxe uma leve inclinação

para o DOLCE FAR NIENTE; e um dia, o aço sueco acelerou

minha vitória.

TROMPETERSTRAHLE (Erguendo sua taça) – Viva o aço

sueco!

EBERKOPF – Glória a quem sabe manejá-lo! (Bebem com

Peer Gynt, cuja cabeça começa a esquentar.).

COTTON – Tudo isso está muito bem. Mas se quisera saber de

sua fortuna, Sir, o que o senhor pensa fazer de todo o seu ouro?

PEER – Ah, ah: o que eu penso?...

OS QUATRO – É, é! Conte para nós! Conte!

PEER – Ora, antes de mais nada, planejo viajar. Em Gibraltar os

convidei a bordo para me fazerem companhia. Era meu sonho

ter um grupo de amigos dançando em torno de meu bezerro de

ouro.

EBERKOPF – Com que espírito diz as coisas!

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COTTON – Bem, mas ninguém oferece nada sem esperar

alguma recompensa! Qual é seu objetivo?

PEER – Eu quero ser imperador.

OS QUATRO – O que foi? Quer ser o quê? (Balançando a

cabeça.).

PEER – Imperador!

OS QUATRO – De quê?

PEER – Do mundo.

BALLON – Que história é essa, caro amigo?

PEER – Graças ao ouro todo-poderoso! Não é de hoje que

tenho essa idéia! Foi ela que me apoiou em tudo o que

empreendi. Criança, eu era arrebatado pelos sonhos até as

nuvens, flutuando por sobre os mares. Incapaz de ficar de pé

sozinho, eu já sonhava com cetros e mantos reais. Eu podia

tropeçar, mas minha idéia continuava de pé. Não está escrito

não sei onde ‘se conquistares o mundo inteiro, mas perderes a ti

mesmo, teu triunfo será o de uma coroa adornando um crânio

vazio’? É mais ou menos isto: e não são palavras sem sentido.

EBERKOPF – Mas, afinal, em que consiste esse si mesmo

Gyntiano?

PEER – É o mundo que eu levo debaixo do crânio e que não me

deixa ser outro, assim como Deus não é o Diabo.

TROMPETERSTRAHLE – Ah, já entendo o que o senhor quer

dizer!

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BALLON – Que pensador sublime!

EBERKOPF – E que grande poeta!

PEER (Entusiasmando-se) – O si-mesmo, o ego Gyntiano é a

massa armada de cobiças, desejos, paixões. O si-mesmo

Gyntiano é a soma das fantasias, das exigências, dos direitos. É

tudo que agita meu coração e me faz viver como eu vivo. E

assim como Deus precisou do barro para tornar-se Senhor do

mundo, eu preciso de ouro para me tornar imperador.

BALLON – Precisa de ouro? Mas se o senhor tem tanto ouro?

PEER – Não me basta. O que eu tenho não chegaria nem para

ser rei de uma miserável aldeia, como Lippe-Detmold. Não, o

que eu quero é ser eu mesmo em toda a acepção do termo, ser

Gynt para o universo inteiro, Sir Peer Gynt dos pés à cabeça!

BALLON (Entusiasmado) – Possuir todas as belezas do

mundo!

EBERKOPF – Beber vinhos centenários!

TROMPETERSTRAHLE – Ter todo o arsenal do Rei Carlos XII!

COTTON – Tudo é questão de achar a ocasião propícia.

PEER – Já foi achada. E é rumo a elas que nos dirigimos. Esta

noite, singramos para o norte. Os jornais me deram uma grande

notícia. (Levanta-se, com a taça na mão.) A fortuna protege os

audaciosos!

OS QUATRO – Ora, diga logo! O que foi? O que foi que

aconteceu?

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PEER – A Grécia se rebela.

OS QUATRO (Levantando-se) – Como, os gregos?...

PEER – Estão em franca sublevação.

OS QUATRO – Viva! Hurra!

PEER – E os turcos estão em maus lençóis. (Esvazia sua

taça.).

BALLON – À Grécia! A glória nos estende os braços! Trago-lhe

o apoio das armas francesas!

EBERKOPF – E eu aplaudirei à distância.

COTTON – Eu lhes darei suprimentos!

TROMPETERSTRAHLE – Em marcha! Irei a Bender buscar as

esporas de Carlos XII!

BALLON (Abraçando Peer) – Peço perdão, nobre amigo, por

julgá-lo precipitadamente!

EBERKOPF (Apertando-lhe a mão) – Como sou idiota! Quase

o tomei por um canalha!

COTTON – Não, um canalha, não! No máximo por um farsante.

TROMPETERSTRAHLE (Querendo abraçá-lo também) – E

eu, meu caro, por um exemplar do rebotalho ianque! Perdoe-me,

por favor!

EBERKOPF – Nós todos nos enganamos!

PEER – Como assim? Do que estão falando?

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EBERKOPF – Aqui está, em todo o seu esplendor, a massa

Gyntiana de cobiças, desejos, paixões!

BALLON (Com admiração) – Eis aqui, Monsieur Gynt, o que o

senhor chama de SER!

EBERKOPF (Com admiração) – Ser um Gynt e honrar seu

nome!

PEER – Como? Explique-se melhor!

BALLON – Explicar-nos? Então o senhor não compreende?

PEER – Quero que me enforquem se entendi o que os senhores

disseram!

BALLON – Ora, vamos! Então o senhor não acorre, com armas

e bagagens, a prestar auxílio aos gregos?

PEER (Assobiando incredulamente) – Eu? Ora, já se viu?

Que bobagem! Eu estou sempre do lado dos fortes. E aos turcos

que emprestarei meu dinheiro!

BALLON – Impossível!

EBEKOPF – Que brincadeira divertida!

PEER (Fica calado um momento, apóia-se a uma cadeira e

toma um ar importante) – Prestem atenção, senhores: é

melhor que nós nos separemos antes que os últimos restos de

nossa amizade se desfaçam como o fumo. Quem nada tem

nada teme. A melhor bucha para canhão são aquelas que só

têm de seu, o barro que se prende à sola de seus sapatos. Mas

quem já chegou com a nave em bom porto, como eu; não

arrisca assim sua fortuna. Vão à Grécia, se é isso que querem.

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Posso armá-los de graça e mandá-los a terra. Quanto mais os

senhores atiçarem o fogo, mais eu poderei retesar meu arco.

Lutem! Lutem destemidamente pela liberdade e pelos direitos

humanos! Façam chover sobre os turcos todas as chamas do

inferno e morram de uma morte honrosa na ponta de uma lança

janízara! Mas dai-me licença de não acompanhá-los. (Pondo a

mão no bolso.) Tenho dinheiro e sou mesmo Sir Peer Gynt.

(Abre seu guarda-sol e entra no bosque, no qual se vêem

redes dependuradas.).

TROMPETERSTRAHLE – Porco imundo!

BALLON – É preciso não ter um pingo de honra para...

COTTON – A honra é o de menos. Mas pensem só no que nós

lucraríamos se o país se tornasse independente!

BALLON – Já estava me vendo coroado de louros por lindas

gregas!

TROMPETERSTRAHLE – Eu já estava me vendo, com minhas

mãos suecas, segurando as esporas gloriosas do herói!

EBERKOPF – Eu já me via reinando em terras e mares

distantes à cultura de minha pátria grandiosa!

COTTON – E o lucro concreto? Aí é que está a maior das

perdas! Goddam! Me dá até vontade de chorar! Eu já me

imaginava dono do Olimpo, cujos flancos, segundo reza a

tradição, cobrem vastas minas de cobre. Podíamos recomeçar a

exploração. E a famosa Fonte de Castália, berço das Musas!

Contando todas as cascatas pode-se calcular, por baixo, um

total de mil kilowatts!

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TROMPETERSTRAHLE – Irei de qualquer forma. Meu aço

sueco vale tanto quanto o ouro dos ianques.

COTTON – Não duvido. Mas separados, seremos confundidos

com a massa, desapareceremos no meio da massa. E que

vantagem tiramos disso?

BALLON – Caramba! Naufragar quando o porto já está à vista!

COTTON (Com o punho cerrado faz um gesto ameaçador

em direção ao iate) – E pensar que naquela noz maldita está

guardado todo o ouro que esse nababo arrancou do suor de

seus negros!

EBERKOPF – Grande idéia! Vamos partir! Rumo ao mar!

Terminou seu império! Viva!

BALLON – O que o senhor planeja fazer?

EBERKOPF – Tomar o poder! A tripulação é fácil de subornar!

Vamos adiante! Eu me aproprio do iate!

COTTON – Como? O senhor?...

EBERKOPF – Vou saquear tudo! (Anda em direção ao iate.).

COTTON – Meu interesse ordena tirar meu quinhão. (Segue-o.).

TROMPETERSTRAHLE – Ah, canalha miserável!

BALLON – Canalha, mesmo! Mas, afinal... (Segue os dois.).

TROMPETERSTRAHLE – Não posso deixar de segui-lo. Mas

antes protesto perante o mundo inteiro! (Segue-os.).

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Outra parte da costa. Noite enluarada. Nuvens cruzam o

céu. Ao longe, o iate singra a todo vapor. Peer Gynt

percorre a costa correndo. Faz gestos de desespero e de

auto-acusação, enquanto contempla o mar e o horizonte.

PEER – Estou sonhando! É um pesadelo! Já vou acordar! Corre

como uma flecha para o mar alto! Mas não é possível, eu estou

sonhando! Estou dormindo, estou bêbado! (Torcendo as

mãos.) Não é possível eu morrer desse jeito! (Arrancando os

cabelos.) É um sonho! Eu quero que seja um sonho! Ah, mas é

monstruoso! Aaaah! E, no entanto, é verdade. Amigos falsos!

Escuta-me, meu Deus! Tu que és a própria sabedoria! A própria

justiça! Dirijo-te minha súplica! (Erguendo os braços ao céu.)

Sou eu, Peer Gynt! Olha para mim, Senhor! Oh, Pai, toma-me

debaixo da tua asa ou eu morro! Faz estourar o motor! Faz

afundar o iate! Pára aqueles larápios! Confunde os aparelhos de

navegação! Ouve-me! Deixa de lado um momento todo o resto

que o Senhor estiver fazendo! O mundo vai adiante um minuto

só sem ti, meu Deus! Ué? Ele não me ouve!... Está surdo, como

sempre!... Parece incrível, não é? Um Deus desligado!

(Fazendo um sinal para o céu.) Psiu! Olha, escuta: eu deixei a

fazenda! E o tráfico de negros! Mandei até missionários para a

China, sabe? Uma mão lava a outra, não é? Agora é a tua vez

de me ajudar, não acha? (Uma labareda imensa sai de

repente da chaminé do iate, logo envolto numa espessa

fumarada; ouve-se uma surda detonação. Peer Gynt dá um

grito e se prostra sobre a areia. Daí a instantes, a fumaça se

dissipa. O iate desapareceu. Peer Gynt, pálido, em voz

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baixa.) É castigo! Afundou tudo! Não ficou nem um parafuso!

Bendito seja este golpe de sorte! (Comovido.) Sorte? Não, foi

muito mais. Eles morreram e eu fiquei salvo. Dou-te graças por

ter me protegido, por ter me ajudado, apesar de todos os meus

malfeitos! (Respira, aliviado.) Ah, como isso faz bem e que

consolo o da gente, se sentir seguro, distinguido por uma

proteção toda especial! Mas, estou no meio do deserto! Onde

vou encontrar comida e bebida? Qual: acabo achando alguma

coisa, não tem perigo! Ele deve estar pensando nisso! (Em voz

alta e com tom insinuante.) Ele não vai querer a morte de um

pardalzinho à toa, como eu! Vamos ser humildes e dar-lhe

tempo. Entreguemo-nos nas mãos do Senhor sem esmorecer.

(Dá um pulo, aterrorizado.) O que foi esse rugido no meio dos

caniços? Será... um leão? (Batendo os dedos de medo.) Não,

não é um leão, não. (Acalmando-se.) É, sim, é um leão. Essas

feras esperam para dar o bote. É que não se atrevem a atacar

seu legítimo senhor e mestre! Esses bichos têm instinto e

sabem muito bem que é perigoso brincar com o fogo... Não tem

importância. Vou procurar uma árvore. Estou vendo palmeiras,

acácias, por ali... Se eu subir numa delas, estou salvo. Se ao

menos eu soubesse alguns Salmos! (Trepa numa árvore.) “A

noite não se parece com a manhã!” Já se pensou muito sobre

esta sentença profunda. (Ficando à vontade.) Ah, como a

gente se sente bem assim, com a alma elevada! Um

pensamento nobre vale mais do que todas as riquezas do

mundo. Confiemos n’Ele. Se Ele me dá o cálice amargo, se Ele

nos dá o cálice amargo para beber é porque Ele sabe o que eu

sou capaz de agüentar e não exigirá demais de mim. Para mim,

Ele tem um coração de pai! (Em voz baixa, suspirando e com

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um olhar para o mar.) Que pena que Ele esbanja tanta coisa!

(É noite. Um campo marroquino nos confins do deserto.

Guerreiros estendidos em torno de uma fogueira de

bivaque.).

UM ESCRAVO (Chega, arrancando os próprios cabelos) –

Sumiu o cavalo branco do Imperador!

OUTRO ESCRAVO (Chega rasgando a própria roupa) –

Roubaram o traje sagrado do Imperador!

UM GUARDIÃO (Chegando) – Cem pauladas nas plantas dos

pés de cada um de vocês se o ladrão fugir! (Os guerreiros

montam a cavalo e partem à galope em todas as direções.).

Amanhece. Bosques de acácias e de palmeiras. Peer Gynt,

trepado numa árvore, serve-se de um ramo dela, que

arrancou para defender-se de um grupo de macacos.

PEER – Deus do céu! Que noite, puxa! (Golpeando com o

ramo.) Você ainda está aí, desgraçado? Maldito de uma figa!

Olha eles me atirando casca de coco! Não, pois não é que eles

estão jogando é outra coisa? Que bicho mais asqueroso é o

macaco, êta! Está escrito: ‘atreve-te e combate!’ Mas eu estou

que não posso mais! Estou morto de cansaço! (Sacudindo-se

com impaciência.) Mas preciso dar um fim nisto! Vou pegar um

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destes gaiatos, enforcá-lo e depois tirar a pele dele para eu

usar. Aí, os outros vão pensar que eu sou um deles. Afinal, um

homem, tudo somado, é pouca coisa e é preciso pegar a onda

conforme a maré. Puxa: outro monte de macacada! Como tem,

nossa! Oh, ralé: passa fora, vamos! Uh, uh! Parece que

enlouqueceram de vez! Ah, se eu tivesse à mão ao menos um

rabinho ou sei lá o que pra me dar um aspecto assim, de animal!

Ah, agora sim: o que é isso se mexendo aí em cima da minha

cabeça? (Olhando.) Ah, é esse velho com as patas sujas de

titica! (Ele se embola, com ansiedade, e fica imóvel durante

um instante. O macaco faz um movimento. Peer começa a

lisonjeá-lo como se fosse um cachorro.) Ah, é você,

auauzinho? Que gracinha: ele todo com a barriguinha cheia! Ele

só quer é carinho, não é lulu lindo do papai? Não vai me jogar

tudo isso em cima, vai? Oi, oi, oi! Sou eu, meu luluzinho, eu!

Nós somos ótimos amigos, rá, rá, rá, viu só? Eu sei falar tua

língua! Você e eu somos primos. É: primos, viu? E amanhã vou

te dar um montão assim de açúcar, não... Ah, filho da!... Me

mandou um pacote inteiro! Ih, que nojo! Ou quem sabe era até

comida, hein? Tinha um gosto tão indefinido... Aliás, gosto é

questão de hábito. Não me lembro qual foi o sábio que disse: ‘o

homem come, cospe e se habitua’. Ih, olha lá a gurizada

voltando, gente! (Defende-se.) Mas temos que reconhecer que

é humilhante para o homem, o Rei da criação! Socorro! Socorro!

O velho era horroroso, mas os menores são piores!

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Hora bem matinal. Uma planície rochosa da qual se vê o

deserto. De um lado, uma fenda profunda conduz a uma

caverna. Um ladrão e um receptador estão à entrada da

fenda, com o cavalo e o traje sagrado do Imperador. O

cavalo, ricamente arreado, está preso a uma rocha. Ao

longe, distinguem-se cavaleiros.

LADRÃO – Lanças, fuzis! / Para onde vamos fugir?

RECEPTADOR – Estão atrás de nós / Vão nos enforcar, para

nos punir!

LADRÃO (Cruzando os braços) – De semente de ladrão / Só

sai mesmo é ladrão!

RECEPTADOR – Filho de quem não vale nada / Aceita o

destino que nem manada!

LADRÃO – Seguirá teu caminho, diz o Alcorão, / Serás tu

mesmo, ó ladrão!

RECEPTADOR – Vamos salvar o pescoço / Lá vem gente, dá

no pé, seu moço!

LADRÃO – Vamos fugir até melhorar a maré / E viva o nome

sagrado do Profeta Maomé! (Desaparecem pela caverna

adentro, deixando os despojos. Os cavaleiros perdem-se de

vista.).

PEER (Chega, cortando um caniço para fazer uma flauta) –

Oh, que amanhecer radioso! O escaravelho rola seu ovo e o

caracol tira fora os chifres. Chega a manhã trazendo esperanças

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douradas. Que força maravilhosa a natureza deu aos raios do

sol nascente! A gente, logo, logo se sente seguro, cheio de

coragem, capaz até de desafiar um touro bravo! Ué, que silêncio

que está aqui, que paz! Ah, como é que eu pude passar tanto

tempo sem essas alegrias do campo? Ficar fechado numa

cidade grande, recebendo empurrões de gentinha! Aqui, não,

aqui os lagartos têm tempo de desenhar esses caprichados à

luz do sol, gozando de um delicioso FAR NIENTE... É a

inocência reinando em tudo, até na vida dos animaizinhos.

Todos seguem as leis do Criador e conservam o selo que Ele

imprimiu neles. Todos conservam Sua personalidade na luta, no

descanso, igualzinho como no primeiro dia da criação.

(Pegando o binóculo.) Um sapo. Parece que está enfiado na

parede, com só um buraquinho para a cabeça ficar de fora. Por

esta janela ele olha para o mundo e se basta a si mesmo.

(Refletindo.) Basta-se a si mesmo? Onde foi que eu li isso?

Acho que foi quando eu era criança, num livro velho de mágica.

Era o ‘Livro da Família’ ou ‘A Clavícula de Salomão’? Que

humilhação! À medida que eu envelheço vou perdendo aos

poucos a memória. Não me lembro mais direito nem dos lugares

nem das datas. (Sentando-se à sombra.) Ah, aqui sim é que

está fresco. Posso descansar. Ah, essas plantas são de raízes

comestíveis. (Provando uma.) Uh, isso está bom é para os

bichos! Mas não está escrito: ‘dominarás tua natureza’? E

depois: ‘quem se eleva será rebaixado e quem se rebaixa será

elevado’? (Inquieto.) Elevado? É isso que me espera, mesmo.

Não pode ser de outro jeito. O destino vai me ajudar a sair daqui

e encontrar de novo o meu caminho. Estou passando por uma

prova. Depois vem a salvação, se para tanto o Senhor me der

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forças. (Tenta pensar em outras coisas, acende um cigarro,

estende-se no chão e contempla o deserto.) Que solidão

imensa, sem fim! O que será que Deus queria quando criou este

espaço vazio e sem vida? Só estou vendo uma avestruz, lá

longe, mais nada. Esta extensão sem limites, sem nenhuma

fonte de vida, com tudo abrasado, árido, inútil, este pedaço de

terra sem cultivo, eternamente este cadáver, que desde que o

mundo é mundo, nunca rendeu nada para o Criador, nem

mesmo um ‘obrigado!’. Não lhe disse? Por que será assim? A

natureza é perdulária! E aquela superfície brilhando lá longe

será o mar? Qual o quê! Deve ser uma miragem. O mar está

aqui, do lado oeste, onde as ondas batem contra um dique de

colinas que as separam do deserto. (Surpreendido por uma

idéia repentina.) Um dique? Então quer dizer... que eu podia,

talvez... É uma cadeia estreita. Um dique! Basta então cortá-lo

por meio de um canal para inundar o deserto com uma maré de

vida. E logo esta baía incandescente vai ser só um mar vasto de

onde emergirão os oásis transformados em ilhas fecundas! Ao

norte, a Serra Atlas verdejante se erguerá como penhascos e ao

sul, por onde passam hoje as caravanas, embarcações de velas

enfunadas traçarão sulcos na água. Uma brisa vivificante

expulsará os miasmas tórridos, uma chuva fresca cairá das

nuvens e as palmeiras se agitarão ao vento em torno de cidades

populosas. Mas longe, ao sul do Saara, se estenderão as

cidades à beira-mar, o berço de uma nova cultura. O vapor dará

vida às fábricas de Tombuctu. Da noite para o dia Burnu será

colonizada, sem risco nenhum. O explorador só tem que subir

no vagão do trem e viajar até o Alto Nilo, passando pelo país de

Gabés. Num oásis rico, no meio do meu oceano, introduzirei a

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raça norueguesa. O povo de Hallingdal é quase de sangue azul,

com um pouco de cruzamento árabe tudo está feito. Num

anfiteatro, sobre a baía, mandarei construir Peerópolis, minha

capital. O mundo antigo chegou ao fim: começa uma nova era. A

era Gyntiana, da minha terra recém-criada. (Levantando-se

com um pulo.) Um pouco de capital, e pronto, estou com tudo!

Só preciso de uma chave de outro para abrir as eclusas! Guerra

sem quartel à morte! Vamos forçar os infames, unhas de fome, a

soltar o ouro escondido! Um sopro de liberdade bafeja todos os

povos. Como o asno na Arca de Noé, vou zurrar tão alto que o

mundo inteiro me ouvirá. E trarei o batismo de liberdade para

estas costas soberbas arrancando-as do nada em que estão

presas até hoje! Avante! Quero os capitais do Oriente e do

Ocidente! Meu reino, ou melhor, a metade de meu reino por um

cavalo! (O cavalo relincha.) Um cavalo! Roupas! Armas! Jóias!

(Aproximando-se.) É impossível! E não é que é verdade? Não,

não pode ser! Eu li não sei onde que a fé remove montanhas,

mas será que transporta cavalos também? Como sou bobo!

Está aqui, mesmo, um cavalo! É um fato palpável! AD ESSE AD

POSSE, ET CAETERA. (Veste a roupa por cima da sua e

contempla-se.) Sir Peer e ainda por cima turco! Realmente,

nunca se pode prever o que vai acontecer. Coragem! Meu belo

alazão! (Monta-o.) Estribos de ouro para apoiar meus pés!

Firme na sela: é o que distingue a gente de boa raça!

(Desaparece a galope para o lado do deserto.).

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Um oásis. Debaixo de uma tenda de Sheik árabe, Peer Gynt,

com roupas orientais, estendido num mole divã, toma café

fumando chibuque. Diante dele, dançam e cantam Anitra e

um coro de moças.

CORO – Glória, glória ao Profeta / Senhor do tempo e do futuro,

/ Que atravessando o mar de areia / Veio até o nosso recanto

obscuro / Glória ao Profeta, Senhor infalível! / Trazido pelo céu e

pela brisa loura / Por cima de um mar de areias quentes /

Chegou à nossa sombra acolhedora. / Flautas, cantai nossa

imensa alegria / Em honra do Profeta e da sua sabedoria!

ANITRA – Ele surge montado / Em sua égua cor de leite / Baixai

vossa fronte sem véu / Seu olhar tem a doçura do mel. /

Nenhum mortal jamais suportou / Seus raios inflamados. / Pelos

desertos sem vida / Ele vem e tudo reluz / Ao toque de sua

roupa de ouro e de luz. / Quando parte / Ele leva consigo o dia /

Chega a noite ameaçadora / Com o simum e sua sombra

destruidora / Erguida sobre o deserto de luz consumida / Pela

chama embriagadora. / A Kaaba fica vazia / Tudo fica sem

alegria / Quando ele se vai levando o dia.

CORO – Flautas: cantai nossa imensa alegria / Em honra do

Profeta e da sua sabedoria! (As moças dançam ao som de

uma melodia tocada em surdina.).

PEER – Está escrito: ‘ninguém é profeta em sua terra’, e é

verdade. Estou muito mais à vontade aqui do que no meio dos

armadores de Charleston! Não sei o que era lá, que eu achava

falso, qualquer coisa que não ia com a minha natureza, não sei

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bem o que era. Sempre me senti estrangeiro lá, fora da minha

profissão, um peixe fora d’água. O que é que eu fui fazer lá,

naquela prisão? Por que eu me meti naquele formigueiro?

Quando penso nisso, agora, nem entendo. Foi um acaso, quem

sabe? Querer ser alguém pela força do dinheiro é como

construir uma casa na areia. O homem comum se arrasta e

abana o rabo diante do relógio e dos anéis de ouro, tira o

chapéu, respeitoso, se você tem um alfinete de gravata. Mas o

alfinete, o relógio e os anéis não fazem ninguém profeta! Isso,

pelo menos, é claro. Já é pelo menos uma posição diante da

vida! A gente sabe onde pisa. Quando a gente é bem recebida,

é por nós mesmos, não pelos cifrões que a gente tem! Cada um

é o que é: nada mais. Não se deve nada à sorte nem ao acaso,

nem se perde tempo com concessões e patentes industriais!

Profeta: por Deus, é uma coisa que eu gosto! E isso me veio

assim tão de improviso, bastou eu atravessar o deserto. Tinham

roubado o cavalo e as roupas do Imperador de Marrocos. Os

ladrões, quando se viram perseguidos, largaram tudo. Eu peguei

as roupas, montei no cavalo e aqui estou, com essa fantasia

toda, no meio destes filhos inocentes da natureza. ‘É o Profeta!’

Para eles, não há dúvidas. Não tenho intenção de enganá-los.

Mentir e profetizar são coisas diferentes. Além do que, posso

sempre sumir a tempo. Não tem perigo. Não estou preso a

nada. É um assunto, digamos assim, particular. Posso ir do

mesmo jeito que vim. Meu cavalo está selado. Em resumo: sou

dono da situação.

ANITRA (Aproximando-se) – Amo o profeta!

PEER – O que quer a minha escrava?

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ANITRA – Chegaram filhos do deserto. Estão diante da tenda e

pedem para contemplar a tua face.

PEER – Alto lá! Diz para eles ficarem à distância! Só quero

preces rezadas bem de longe! Diz para eles que não tolero

homens em minha tenda! Os homens, minha filha, são uma

espécie miserável, rebotalho do mundo! Ó, Anitra! Você nem

imagina quanto eles roubaram! Hmmm... quero dizer: pecaram,

pecaram, minha filha! Agora chega! Dancem mulheres! O

Profeta quer afastar as lembranças desagradáveis!

CORO (Dançando) – O bom Profeta chora e se desespera /

Pelos pecados cometidos pelos filhos da Terra. / O meigo

Profeta dará nova vida e calor / Aos corações empedernidos

sem amor / Lá no Paraíso eterno onde não existe a dor.

PEER (Acompanhando com os olhos, Anitra, que está

dançando) – Ela mexe as pernas como varas tocando tambor!

Ela é deliciosa, essa mocinha! Tem proporções meio esquisitas,

não muito de acordo com as regras da beleza. Mas o que é a

beleza afinal? Uma convenção, uma moeda válida só em certas

épocas e certos lugares. Quem está farto das regras, precisa de

extravagâncias. Os pés não estão lá muito limpos, nem os

braços. Mas a rigor, não é um defeito, faz parte do tipo. Ei,

Anitra, escuta!

ANITRA (Aproximando-se) – Tua escrava te escuta!

PEER – Você é sedutora, minha filha. O Profeta está comovido.

Quer uma prova? Vou-te fazer uma huri no meu Paraíso!

ANITRA – Ah, isso é impossível, ó Mestre!

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PEER – Ué, e essa agora? Então você acha que eu estou

mentindo, é? Juro sobre minha cabeça que estou falando sério.

ANITRA – Como, se eu não tenho alma?

PEER – Vai ter uma.

ANITRA – Como, senhor?

PEER – Deixa isso comigo: vou te educar. Não tem alma? Bem,

você é o que se chama de um animalzinho. Isso, eu percebi com

dor no coração, sabe? Mas, caramba: sempre tem um

lugarzinho para se encaixar uma alma. Vem aqui, quero medir

teu crânio. Ah, viu só? Tem lugar de sobra! Eu sabia, eu sabia.

Você não vai muito longe, não. Não posso te prometer uma

alma – digamos - muito profunda. Mas que importa isso?

Sempre chega para os teus gastos pessoais.

ANITRA – O Profeta é tão bom!

PEER – O que é? Está com medo? Fala!

ANITRA – É que eu preferia...

PEER – Fala, não tenha medo, fala!

ANITRA – Não me importo muito com essa história de alma,

não. Preferia ter...

PEER – O que?

ANITRA (Indicando o turbante dele) – Esse opala lindo!

PEER (Dando-lhe a jóia com entusiasmo) – Anitra: filha

verdadeira de Eva! Sinto o poder magnético do teu encanto.

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Porque, sobretudo, eu sou homem e, como diz o autor

respeitável: ‘sinto-me atraído pelo eterno feminino’.

Lua cheia. Palmeira diante da tenda de Anitra. Peer Gynt

está sentado debaixo de uma árvore, com um alaúde árabe.

Cortou o cabelo e a barba, e parece consideravelmente mais

jovem.

PEER (Tocando e cantando) – Quando deixei meu templo

sossegado / E com alma sedenta de aventura / Parti trancando a

porta atrás de mim / Eu buscava um amor novo e cheio de

ternura / E mil belezas choravam dias sem fim / Suas noites

perdidas com tanta amargura. / Eu fui-me embora com a vela

enfunada / Enfrentando os mares e a distância / Cheguei às

terras das areias inconstantes, / Da miragem, ilusão triste do

nada / Das palmeiras como a sorte inconstantes. / Quando enfim

desembarquei no porto, / Queimei meu barco companheiro / E

me joguei intrépido aventureiro / Sobre um cavalo fogoso / De

rédeas soltas e galope garboso. / Anitra: afinal te encontrei /

Com teu corpo doce, teus pés alados, / Prato delicioso, bebida

divina, / Melhor que o vinho e água destilados / Da palmeira

esguia, de palma tão fina! (Pondo o alaúde a tiracolo e

andando alguns passos.) Que silêncio! Será que a minha linda

fica quieta, para ouvir minha canção? Quem sabe se sem véu e

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sem adornos, ela me olha escondida atrás de uma cortina? Psiu!

Estou ouvindo um barulho parecido com o de uma garrafa sendo

aberta, a rolha que salta! De novo! De novo! Será um suspiro de

amor? Ou será uma voz cantando? Não, é um ruído muito típico!

É uma música para os meus ouvidos: Anitra está dormindo. Ah,

rouxinol, pára com teus trinados! Teu canto pode te custar

caro... Mas não, canta, canta como manda o poeta. O rouxinol é

cantor por sua própria natureza. Eu também não sou assim? Eu

e ele, com o ímã de nossos sons harmoniosos, nos apoderamos

dos coraçõezinhos femininos, delicados e sensíveis. A noite

serena foi feita para o canto. O canto é que nos une. Para Peer

Gynt, como para o rouxinol, cantar é ser. Que ela durma: a

criatura adorável. Não é o cúmulo da felicidade para um

apaixonado como eu? Não é a suprema ventura ansiarem os

lábios sem tocar o cálice? Ah, mas ei-la que surge! Bem, é

melhor assim: gosto mais dela acordada!

ANITRA (Saindo da tenda) – Tu me chamas na noite, oh,

senhor?

PEER – Sim, o Profeta te chama. Não sei que barulho do inferno

me despertou sobressaltado. Pareciam trompas de caça, a não

ser que fosse um concerto noturno de gatos.

ANITRA – Não, meu senhor. Não eram as trompas de caça. Era

coisa muito diferente.

PEER – O que era?

ANITRA – Poupa-me essa vergonha, eu te suplico!

PEER – Fala!

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ANITRA – Não me faça corar, Profeta!

PEER (Aproximando-se dela) – Era talvez a emoção que me

arrebatou na hora em que te dei a opala?

ANITRA – Ora senhor: como se pode comparar a ti, ó luz do

mundo, a um gato horroroso, a um animal repugnante!

PEER – Ah, minha filha, em matéria de amor, um gato pode

valer tanto quanto um profeta.

ANITRA – O mel de um gracejo suave escorre de teus lábios,

senhor.

PEER – Amiguinha: você é como todas as mulheres, sempre

pronta a julgar os grandes homens pelo aspecto. Sou

brincalhão, no fundo, principalmente, na intimidade. Minha

posição me impõe uma máscara, sofro a inibição de meus

deveres profissionais. Como profeta, às vezes sou brusco, mas

só em palavras. Chega de comédia! Num aparte te repito que

sou Peer, aquele que é. Azar do profeta: receba este eu que eu

te ofereço. (Senta-se debaixo de uma árvore e a faz sentar-se

em seu colo.) Vem, Anitra: descansemos debaixo do leque

destas palmeiras verdejantes. Você sorrirá com as palavras que

sussurrarei em teus ouvidos. Depois mudaremos de papéis e

serei eu a sorrir, enquanto teus lábios vermelhos me sussurram

juras de amor.

ANITRA (Estendendo-se a seus pés) – Cada palavra tua é

doce como um canto que não compreendo bem. Dize-me,

senhor, é te ouvindo que ganharei uma alma?

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PEER – A alma, sopro e luz do verbo, você terá mais tarde,

minha filha. Quando, em letras de ouro sobre fundo rosado do

Oriente, aparecer estas palavras: CHEGOU O DIA, começarão

as lições. Não tenha medo: você será instruída. Mas eu tinha

que ser muito burro, para, numa noite calma e cálida como esta,

me enfeitar com uns farrapos de sabedoria e te tratar como

professor de escola. Afinal, pensando bem, o principal não é a

alma: é o coração!

ANITRA – Fala senhor: quando tu falas, parece que eu vejo

resplandecer a opala.

PEER – A razão levada ao extremo é burrice. A covardia vira

crueldade. Exagerar a verdade é o contrário da sabedoria. É

isso, minha filha, o Diabo me carregue se não existem aí, pelo

mundo, pessoas abarrotadas de alma e embotadas de

compreensão. Conheci um tipo assim, era uma pérola, mas que

perdeu o que queria e ficou sem rumo. Você está vendo este

deserto que cerca o oásis? Eu, agitando o turbante, consigo

inundá-lo inteiro com as ondas do oceano. Mas eu ia bancar o

idiota criando novos continentes e novos mares. Você lá sabe o

que é viver?

ANITRA – Ensina-me, ó Profeta.

PEER – É planar acima do tempo que corre; descer a corrente

sem olhar os pés e nunca perder nada da sua personalidade.

Mas para ser o que se é - minha amiga - é preciso a força dos

anos! Uma águia velha perde as plumas; um cavalo velho, a

ligeireza; e uma comadre velha fica sem dentes. A pele se

enche de rugas e a alma também. Mocidade! Mocidade! Contigo

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quero reinar não sobre as palmeiras e os vinhedos de um país

Gyntiano qualquer, mas no pensamento virgem de uma mulher,

cujo sultão ardente e fogoso quero ser. Mocinha: te concedi a

graça de seduzir-te, de escolher teu coração para nele fundar

um califado novo. Quero ser o dono dos teus suspiros. No meu

reino, introduzirei o regime absoluto. Nossa separação será

punida com a morte... para você, naturalmente. Não haverá uma

fibra, uma partícula de você que não seja minha. Você não

conhecerá nem sim nem não, só a minha vontade será a tua.

Tua cabeleira negra como a noite e tudo que é teu e doce de

enumerar se inclinará diante do meu poder soberano. Teu corpo

será o meu Jardim da Babilônia. Por isso não me zango de você

não ter nada no lugar do cérebro. Quem tem alma e inteligência

logo começa a raciocinar. Aliás, de propósito, se você quiser,

consinto em pôr uma corrente em teu tornozelo. Será melhor

para nós dois. Eu substituo para você a alma. E tudo fica na

mesma, não é? (Anitra ronca.) O quê? Está dormindo? Minhas

palavras deslizaram sobre ela sem tocá-la? Não! Minha

declaração de amor é tão eloqüente que como um rio impetuoso

a levou para longe, para o país dos sonhos. (Levanta-se e

cobre de jóias o seio de Anitra adormecida.) Para você:

colares. Mais ainda! Dorme Anitra, e pensa em Peer! Dormindo

conquistaste uma coroa imperial. Esta noite, Peer Gynt triunfou

graças à sua própria personalidade.

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Rota das caravanas. O oásis se perde no horizonte. Peer

Gynt galopa num cavalo branco, com Anitra na garupa.

ANITRA – Me deixa ou eu te mordo!

PEER – Louquinha!

ANITRA – O que você quer, afinal?

PEER – O que eu quero? Brincar de águia e pombinha! Te

raptar! Fazer loucuras!

ANITRA – Não tem vergonha, não? Um velho profeta!...

PEER – Qual o quê: o Profeta não é nada velho e você é uma

bobinha. Isso é sinal de velhice?

ANITRA – Me larga: quero voltar!

PEER – Coquete! Quer voltar, é? Quer mesmo? Para a casa do

papai? Os pássaros livres como nós, que fugiram da gaiola, não

voltam nunca. E depois, não se pode ficar eternamente num

lugar só, sabe? A gente acaba perdendo em estima o que ganha

em relações, sobretudo, para quem se apresenta como Profeta.

Já era tempo de acabar mesmo. Esses filhos do deserto têm

almas valentes. Já começavam a escassear o incenso e as

rezas.

ANITRA – É, mas é verdade mesmo, que você é profeta?

PEER – Eu sou o teu Imperador! (Tenta beijá-la.) Olha só

como ela fica toda empertigada: essa rolinha braba!

ANITRA – Me dá esse anel que está no teu dedo.

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PEER – Toma essas bagatelas todas, minha querida!

ANITRA – Tuas palavras são cantos de alegria.

PEER – Ah, que maravilha ser tão amado assim! Quero

desmontar! Quero levar, como um escravo, as rédeas do cavalo

que você cavalga! (Entrega-lhe o látego e apeia-se do

cavalo.) Está vendo só, minha rosa, minha flor encantada: ando

na areia, no pó, até um raio de sol me jogar estendido aos teus

pés! Sou jovem, Anitra, compreendeu bem? Não dê muita

importância aos meus feitos nem aos meus gestos, viu? E se o

teu entendimento fosse um pouco menos espesso, ó minha

glória rosada, eu te diria que teu amante é moço porque faz

loucuras.

ANITRA – É verdade: você é moço. Tem mais anéis?

PEER – Não sou mesmo? Está vendo? Olha: eu pulo como um

cabrito! Se tivesse folhas de videira teceria uma coroa para mim!

Caramba: se sou jovem! Upa, upa! Quero dançar! (Dança e

canta.) Franguinha vaidosa / Que me faz tão feliz, / Teu galo

amoroso / Te pede uma bicada gostosa!

ANITRA – Está todo suado, meu Profeta. Tenho medo que você

derreta. Me dá que eu levo esse embrulho pesado preso à

cintura.

PEER – Como ela pensa em mim! Que carinhosa! No futuro,

você é que vai carregar minha bagagem, sabe? Os corações

apaixonados não precisam de ouro para ser felizes! (Recomeça

a dançar e a cantar.) Peer Gynt, cabeça de vento, / Não tem

miolo na cachola, / Olha só este pulo, / E olha esta cabriola!

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ANITRA – Ah, que prazer ver o Profeta dançar!

PEER – Ah, chega dessa história de Profeta! Vamos mudar de

roupa, anda, tira teu vestido!

ANITRA – Teu caftan é muito comprido; a cintura é muito larga

e as meias, apertadas.

PEER – Está bem! (Ajoelha-se.) Então faz uma coisa aí para

me dar uma baita tristeza. Vamos: doce é sofrer quando se ama.

Presta atenção: quando estiveres no meu castelo...

ANITRA – No teu Paraíso!... Está longe ainda?

PEER – Umas mil milhas, mais ou menos...

ANITRA – Ih, é muito!

PEER – Escuta uma coisa: eu vou dar a alma que te prometi.

ANITRA – Obrigada: vivo muito bem sem alma. Mas você não

estava me pedindo para te dar tristeza bem grande?

PEER (Levantando-se) – Ah, sim, morte da minha alma! Um

pesar violento, mas curto. Que dure uns dois ou três dias, no

máximo!

ANITRA – Então Anitra obedece às ordens do Profeta! Até! (Dá

uma chicotada forte nos dedos de Peer, arrebata-lhe as

rédeas e parte a galope.).

PEER (Imóvel por uns instantes, como que fulminado por

um raio) – O quê? Por todos os...

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O mesmo cenário. Uma hora mais tarde. Peer Gynt, com

movimentos calmos e refletidos, despoja-se, peça a peça,

de seus trajes orientais. Em seguida, tira do bolso um gorro

de viagem, que coloca na cabeça, e usa de novo roupas

européias.

PEER (Jogando longe o turbante que acabou de tirar da

cabeça) – Fica o turco para lá e eu para cá. Essa história de

paganismo não me serviu de nada. Felizmente não chegou,

como se diz, a fazer parte do meu sangue. O que é que eu ia

achar naquela prisão? Como se não fosse melhor viver como

cristão, desprezar as plumas de pavão, não perder nunca de

vista a lei e a moral, ser quem se é, enfim, o merecer, depois de

morto, uma oração fúnebre e coroas sobre a sepultura.

(Andando.) A safadinha: por pouco não me deixa de cabeça

virada! Macacos me mordam se eu souber o que me atraiu nela!

Ainda bem que acabou a farsa. Um pouco mais e eu caía no

ridículo. Errei, é verdade, mas o que me consola é que era um

erro de situação, que não me atingia pessoalmente. Era o

resultado da vida do profeta, uma vida nauseabunda, sem ação,

sem sal e sem graça. Eta vida besta essa de profeta! Estou

roubando, infelizmente. Mas ainda tenho umas poupanças, um

dinheirinho para gasto, depósitos nos Estados Unidos. Pelo

menos não estou pedindo esmolas. E sabe lá se esta

mediocridade não é o que existe de melhor no momento. Não

sou mais escravo de um Avlo ou de um cocheiro. Não estou

carregado de bagagens. Resumindo: estou, como se diz

vulgarmente, dono da situação. Que caminho tomarei? São

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tantos na minha frente. E o que diferencia os sábios dos imbecis

é a escolha do caminho. Já sei o que vou fazer: vou procurar um

guia de viagens para uma viagem cronológica. Reconheço que

minha instrução peca pela base, e depois, o mecanismo da

história é coisa muito complicada. E daí? Quem parte ao acaso

é que chega aos resultados mais originais. Além do que, nada

eleva a alma como traçar uma meta e ir rumo a ela, com uma

vontade de aço! (Com emoção.) Romper todos os laços,

abandonar sua terra natal, deixar os amigos, jogar tesouros pela

janela, despedir-se da doçura do amor, tudo isso, para chegar

aos arcanos da verdade. (Enxugando uma lágrima.) Por essa

prova se reconhece os eleitos! Ah, estou mais feliz do que posso

dizer, pois acabei de resolver o enigma do meu destino!

Abandono as veredas da vida e mergulho no passado. Que

venham a mim os feitos e heróis antigos! O presente não vale

um caracol! Os homens, hoje, não têm tutano nem fé. Agem

mole-mole, bajulando a torto e a direito. E as mulheres então,

(dando de ombros.) são um produto inferior. (Vai-se embora.).

Dia de verão no extremo norte. Uma cabana na floresta. A

porta, aberta, tem uma fechadura enorme e, sobre ela,

chifres de cervo. Cabras pastam à sombra da casinha.

Diante desta, uma mulher, já madura, loura e bonita, fia,

sentada ao sol.

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A MULHER (Dá uma olhada para o caminho e canta) – Um

outono ainda e um inverno também / Um verão inteiro e mais

uma primavera / Eu vou te esperar / Pois virás - um dia – sem

avisar ninguém / Eu manterei a minha promessa / De sempre,

sempre te esperar / (Recolhe as cabras, volta à roça e canta.)

Deus te guarde por todos os caminhos onde fores andar / Dirija

teus passos, bendiga tua mão / Se vieres aqui, te esperarei sem

me queixar / Se me esperares lá em cima irei a ti mais tarde me

juntar.

No Egito. Amanhece. A estátua de Memnon sobre a areia.

Peer Gynt chega caminhando, tranquilamente, e olha um

momento a seu redor.

PEER – Posso muito bem começar por aqui. Eis-me, então,

transformado em egípcio para mudar um pouco, mas sem deixar

minha personalidade Gyntiana. Depois irei a Assíria. Se eu

fosse até a origem da criação, ia me perder no labirinto. Aliás,

quero ficar por fora da história bíblica, sem perder sua pista

positiva. Examinar tudo, tintim por tintim, como se costuma

dizer, não está no meu programa. (Senta-se numa pedra.) Vou

descansar aqui, esperando, calmamente, o canto matinal do

colosso. Depois do desjejum vou subir na pirâmide e se me

sobrar tempo, vou estudar o interior dela também. Depois vou

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andar a pé em torno do Mar Vermelho. Quem sabe encontro à

beira-mar o túmulo do Rei Putifar? E pronto, já virei um filho da

Ásia. Na Babilônia vou procurar vestígios dos jardins suspensos

e das prostitutas, testemunhos gloriosos de sua velha cultura.

Depois, de um salto, chego aos muros de Tróia. De Tróia, uma

linha marítima vai direta à antiga e esplêndida Atenas. Lá

visitarei, atentamente, o desfiladeiro defendido por Leônidas e

me iniciarei nas grandes escolas filosóficas. Acharei a prisão

onde morreu Sócrates, a nobre vítima... Mas o que estou

dizendo? A Grécia está pegando fogo! Está em guerra. Bom,

então deixo a filosofia para mais tarde. O helenismo que espere.

(Olhando o relógio.) O sol está demorando, o tempo voa. Vou

voltar para Tróia. Era onde eu tinha parado... (Ergue-se e

escuta.) Que barulho esquisito é esse? (O sol se levanta. A

estátua de Memnon canta.).

A ESTÁTUA DE MEMNON – Das cinzas dos deuses nasceram

com o tempo / Passarinhos cantores / Amon, o autocrata, / Quer

que se combata / Para achar o mistério oculto / O espírito que

seu canto encerra / O erro é mortal e a vida encerra.

PEER – Falando sério: acho que a estátua emitiu uns sons. É a

música do passado. Captei as ondulações e vou anotar esse

fato para os sábios refletirem a respeito. (Anota no caderno) ‘A

estátua cantou. Ouvi muitíssimo bem a música, mas não entendi

a letra. Tudo, aliás, não passou de uma alucinação, é claro. Fora

isso nada tem de importante para anotar hoje’. (Continua seu

caminho.)

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Nos arredores de Gizeh. Vê-se a grande esfinge talhada na

pedra. Longe, no horizonte, as agulhas torres dos minaretes

do Cairo. Peer Gynt chega e olha atentamente para a

esfinge, através de um Lorgnon ou fazendo um telescópio

com uma das mãos.

PEER – Com os diabos, onde foi que achei uma coisa parecida

com esse cara aí? Ah, lembro-me vagamente. Será que era uma

pessoa? Quem? Porque eu devo ter conhecido alguém assim,

no norte ou no sul. Memnon eu achei parecido com os velhos de

Dovre, como eles se chamam na minha terra. É a mesma

atitude rígida e compassada, com o traseiro pregado numa

pedra. Mas esta besta aqui, diante de mim, esse bastardo, meio

mulher, meio leão, também faz parte da história? Ou será uma

reminiscência? Faz parte da história? Ah, sim, te peguei meu

caro: você, a Curva, a quem dei umas boas pauladas em

sonhos! Entenda-se: eu estava de cama, com febre.

(Aproximando-se.) Os olhos são os mesmos, os lábios também

só tem um ar assim menos indolente, um pouco mais astuto.

Olha só, hein, Curva, quem diria? Visto por detrás, à luz do dia,

você parece um leão, hein? Será que você ainda se lembra de

algum enigma? Vamos ver. Você vai me responder como da

outra vez? (Falando alto.) Ei, você aí, Curva: quem é você?

UMA VOZ (Por detrás da Esfinge) – Ach, Sphynx, wer bist Du?

PEER – O que? Um eco que fala alemão? Que coisa esquisita,

puxa!

A VOZ – Wer bist Du?

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PEER – Alemão puro, não há dúvida. Vou ser o primeiro a

anotar uma observação tão inédita. (Escrevendo em seu

caderno de notas.) ‘Eco alemão, sotaque de Berlim’.

BEGRIFFENFELD (Saindo detrás da Esfinge) – Um homem!

PEER – Ah, já entendi de quem era a voz. (Escrevendo.)

‘Modifiquei mais tarde estas primeiras impressões’.

BEGRIFFENFELD (Demonstrando inquietação) – Desculpe

senhor, é uma pergunta vital: o que o senhor veio fazer aqui?

PEER – Uma visita. Vim ver um amigo de infância.

BEGRIFFENFELD – Quem: a esfinge?

PEER – É minha conhecida há muito tempo.

BEGRIFFENFELD – Oh, que felicidade! E isso depois da noite

que eu passei! Ah, como arde minha fronte! Acho que minha

cabeça vai estourar! Quer dize que o senhor a conhece, é?

Responda! Fale! Quem é ela?

PEER – Ela é quem ela é. Sei muito bem. É o eu.

BEGRIFFENFELD (Dando um pulo de alegria) – O eu, o eu!

Que raio de luz! Vislumbro o enigma supremo da vida! Ele é o

eu, o senhor diz, não é? Tem certeza?

PEER – Tenho. Pelo menos é o que ele afirma.

BEGRIFFENFELD – O eu! Está próxima a grande evolução,

então! (Tirando o chapéu.) Sua graça, senhor?

PEER – Eu me chamo Peer Gynt.

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BEGRIFFENFELD – Peer Gynt! É simbólico! Eu podia ter

minhas próprias dúvidas. Peer Gynt? Isso quer dizer o

desconhecido, o porvir, o que me previram.

PEER – Ah, é, é? Aposto que o senhor veio me ver!

BEGRIFFENFELD – Peer Gynt! Mas é um mistério, um abismo.

E é um acontecimento marcante. Cada palavra, um

ensinamento profundo! Quem é o senhor?

PEER (Modestamente) – Sempre procurei ser eu mesmo. Aliás,

olha aqui o meu passaporte.

BEGRIFFENFELD – Outra palavra enigmática! (Pegando-lhe o

pulso.) Vamos para o Cairo! Encontrei o Imperador dos

Exegetas!

PEER – O Imperador?

BEGRIFFENFELD – Venha, venha!

PEER – E ficarei famoso?

BEGRIFFENFELD (Arrastando-o) – O Imperador de uma

exegese baseada no eu!

No Cairo. Um pátio amplo, cercado por edifícios e altas

muralhas. Janelas com grades. Jaulas de ferro. No pátio,

três guardas. Chega um quarto.

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O QUARTO GUARDA – Ei, Schaffman, e o diretor?

UM DOS TRÊS – Saiu muito cedo, hoje, antes de amanhecer.

O QUARTO – Acho que teve algum aborrecimento durante a

noite.

OUTRO – Psiu! Olha ele aqui! (Begriffenfeld introduz Peer

Gynt, fecha a porta à chave e põe a chave no bolso.).

PEER (À parte) – De fato, isso é que é um homem culto! Quase

tudo que ele diz é incompreensível. (Olhando em torno.) Então

é esse o Clube dos Sábios?

BEGRIFFENFELD – Estão todos reunidos aqui. O Círculo dos

Setenta, recentemente acrescido de cento e três membros

novos. (Chama os guardas.) Michel, Schligemberg, Schaffman,

Fuchs, nas jaulas: rápidos!

OS GUARDAS – Nós?

BEGRIFFENFELD – Quem então? Vamos, vamos! Já que o

mundo dá voltas, nós vamos dar voltas com ele. (Força-os a

entrar na jaula.) Peer, o Grande, fez sua entrada solene –

vocês não têm outro remédio senão fazer-lhe companhia. Não

lhes digo mais nada. (Tranca a jaula e joga a chave num

poço.).

PEER – Ora, meu querido Diretor, meu caríssimo senhor

Diretor...

BEGRIFFENFELD – Nem uma coisa nem a outra. Fui só, até

agora. Senhor Peer Gynt: o senhor vai ficar bem quieto? Preciso

aliviar minhas mágoas.

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PEER (Com inquietude crescente) – Como assim?

BEGRIFFENFELD – Prometa que não vai tremer.

PEER – Vou tentar, não é?

BEGRIFFENFELD (Puxando-o para um canto e falando-lhe

em voz baixa) – A razão absoluta faleceu ontem, às onze da

noite.

PEER – Pelo amor de Deus Todo-Poderoso!

BEGRIFFENFELD – Pois é: é muito triste mesmo. E a minha

situação torna este acontecimento ainda mais desagradável.

Pois até agora, este estabelecimento era considerado um

hospício para doentes mentais.

PEER – Um hospício de loucos?

BEGRIFFENFELD – Já acabou, entendeu?

PEER (Pálido, com um fio de voz) – Compreendo, sim. Esse

homem está louco varrido! E ninguém percebe. (Afasta-se.).

BEGRIFFENFELD (Seguindo-o) – O senhor compreende que

quando eu digo faleceu, estou exagerando um pouco, não é?

Ela saiu sem ninguém mandar ela embora, saiu da própria pele,

como a raposa do Barão de Munchausen.

PEER – Um momento, por favor.

BEGRIFFENFELD (Retendo-o) – Ou melhor: não foi bem como

uma raposa, como uma enguia foi. Um alfinete no olho...

cravada no muro... Esperneou um pouco...

PEER – Como é que eu saio dessa?

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BEGRIFFENFELD – Um corte no pescoço e pronto! Saiu da

própria pele!

PEER – É louco varrido! Perdeu a razão!

BEGRIFFENFELD – Agora é claro, que essa fuga, terá como

conseqüência uma revolução no mar e na terra. As pessoas

consideradas loucas até então, acham-se, a partir das onze da

noite de ontem, num estado normal, em plena posse da razão,

nesta nova fase da razão, quero dizer. E, se formos um pouco

mais longe, verificaremos que, imediatamente, todas as pessoas

consideradas razoáveis ficaram loucas.

PEER – O senhor está falando das horas. Sabe, estou com o

tempo todo tomado.

BEGRIFFENFELD – Seu tempo? Ah, é mesmo. (Abre uma

porta e chama.) Saiam! Chegou o tempo esperado! A razão

morreu! Viva Peer Gynt!

PEER – Bem, meu amigo, francamente... (Um depois do outro,

os loucos aparecem no pátio.).

BEGRIFFENFELD – Bom dia, bom dia! Saúdem a aurora de

sua liberdade que raia! Eis seu Rei, seu Imperador!

PEER – Imperador!

BEGRIFFENFELD – Como não?

PEER – É uma honra tão grande, que ultrapassa os limites...

BEGRIFFENFELD – Não, nada de falsa modéstia num

momento desses!

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PEER – Pelo menos me dê um momento de descanso. Não

sirvo para nada, assim. Estou completamente embotado,

embrutecido!

BEGRIFFENFELD – Um homem que decifrou o enigma da

esfinge? Um homem que consegue ser ele mesmo?

PEER – Pois é: aí é que está a dificuldade. É verdade, achei a

mim mesmo, eu sou eu dos pés à cabeça. Mas, uai, se não me

engano, todo mundo está é fora de si...

BEGRIFFENFELD – Fora de si? O senhor se engana

redondamente. Ao contrário: cada um aqui é si próprio com toda

a intensidade. Só isso e nada mais. Cada um é si mesmo até

dizer chega. Cada um se fecha em si mesmo, como dentro de

um tonel. E é no poço fundo de si mesmo que a madeira

endurece, é com a rolha de si mesmo que cada um fermenta

dentro de si mesmo. Ninguém chora os males alheios aqui. Nós

aqui somos nós mesmos até as unhas. De modo que, se

tivermos que ter um Imperador, o senhor é o homem que nos

falta. Nem há dúvida.

PEER – Eu queria que o Diabo...

BEGRIFFENFELD – Ora, tenha coragem, vamos! No princípio

todo mundo se sente assim pouco à vontade. Ser o que se é!

Olhe, vou dar-lhe um exemplo. Vamos pegar o primeiro que

chegar. (Dirigindo-se a um personagem de aspecto

sombrio.) Bom dia, Uhu! Mas o que é isso? Ainda está triste,

meu caro?

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UHU – Como é que eu posso ficar alegre, com tantas gerações

desaparecendo assim, incompreendidas? (Para Peer Gynt.)

Você que não é daqui, quer me dar atenção?

PEER (Inclinando-se) – Com muito prazer.

UHU – Então escute. Lá para o leste, lá longe, é a costa de

Malabar. Os holandeses e os portugueses semeiam sua cultura

entre as tribos de verdadeiros malabares. São tribos que

misturam seus idiomas. Reinam – soberanas - no país inteiro.

Mas, antigamente, era o babuíno, o macaco, me entende, que

era o chefe. Era o dono das florestas verdejantes, onde podia

lutar; fazer caretas, berrar à vontade, esganiçado o quanto

quisesse, já que estava em casa! Até que – ah, que horror! –

chegaram as hordas estrangeiras, e era uma vez a língua da

selva. Uma noite quatro vezes secular estendeu-se sobre o

macaco infeliz e fez parar seu desenvolvimento. Todo mundo

sabe o que acontece com os povos que sofrem esse destino. O

idioma antigo já não ressoa mais na floresta. Já não se ouve

mais aquele grunhido primitivo. Para exprimir pensamentos,

temos que recorrer às palavras. Eu lutei para preservar a pureza

de nossa língua silvestre, de galvanizar o cadáver. Defendi o

direito ao berro. Berrei eu também. Demonstrei a necessidade

do berro nas canções populares. Mas me recompensaram muito

mal pelos meus esforços. Obrigado pela atenção. E se você

conhece algum remédio para essa situação, diga qual é.

PEER (À parte) – A gente tem que dançar conforme a música.

(Em voz alta.) Meu caro amigo: pelo que eu me lembro, há no

Marrocos / Um povo de babuínos sem gramáticos nem poetas.

A língua / Que falam parece com o idioma malabar. Você / Faria

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uma boa ação e daria um ótimo exemplo se, / Como muitos

homens de renome, consentisse em deixar / Seu país pelo bem-

estar de seus compatriotas.

UHU – Obrigado pela atenção. Farei o que me aconselham.

(Com um gesto nobre.) O oriente recusou seu poeta. O poeta

vai ter com os babuínos do ocidente. (Afasta-se.).

BEGRIFFENFELD – E então, será que ele foi o que é? Foi - não

foi? Ele, só ele, está cheio de si, não pensa noutra coisa. Ele

está, porém, fora de si. Venha: vou lhe mostrar outro que a partir

da noite passada, como o primeiro, segue as regras da razão

normal. (Para um felá que carrega uma múmia às costas.)

Rei Ápis: como vai vossa senhoria?

O FELÁ (Com raiva, para Peer) – Sou o eu, o Rei Ápis?

PEER (Escondendo-se atrás do Doutor) – Eu não tenho

competência, confesso... Mas, julgando pelo seu tom de voz...

O FELÁ – Você também está mentindo?

BEGRIFFENFELD – Que vossa senhoria se digne a explicar-lhe

o caso.

O FELÁ – Pois bem! Está vendo isso que levo nas costas?

Chamava-se o Rei Ápis, agora se chama Múmia e, como se

fosse pouco, ainda está morto. Foi ele que construiu todas as

pirâmides e esculpiu na pedra a grande Esfinge, e combateu os

turcos. Por isso o Egito fez dele um deus, que adoravam num

templo, com a forma de um boi. Pois bem! O Rei Ápis sou eu. É

uma coisa que vejo clara como a luz do dia. Você duvida? Eu

posso te provar. Um dia que o Rei Ápis estava caçando, desceu

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do cavalo para retirar-se um momento. O terreno, adubado

assim pelo grande Rei, pertencia a meu avô. Ora, desse terreno

brotou o trigo que me alimentou. Quer outra prova mais? Tenho

na cabeça chifres invisíveis. Não é mesmo uma maldição

ninguém reconhecer meus títulos? Ápis pelo nascimento. Aos

olhos do vulgo sou apenas um felá. Você tem qualquer conselho

para me dar? Então, fale com franqueza. Meu sonho é parecer-

me com o Grande Rei Ápis.

PEER – Vossa senhoria só precisa construir as pirâmides,

esculpir uma grande Esfinge e lutar contra os turcos.

O FELÁ – É fácil de dizer. Eu, um felá morto de fome, já faço

muito em defender minha favela dos ratos e ratões. Ora, vamos,

acha uma coisa melhor para eu fazer, para eu ficar famoso, sem

perigo que me dê o aspecto do Rei Ápis, que carrego nas

costas!

PEER – E que tal se sua senhoria se enforcasse e depois

ficasse debaixo da terra como morto, protegido pelos limites

naturais de um bom caixão?

O FELÁ – Isso mesmo! Minha vida por uma corda! Viva a forca!

Não vai sair tudo igualzinho como foi, para começar, mas o

tempo depois iguala tudo. (Afasta-se e prepara-se para se

enforcar.).

BEGRIFFENFELD – Eis aí um homem cheio de personalidade!

Não é mesmo, senhor Peer? Um homem metódico!

PEER – Ah, isso é sim, mas... Pelo amor de Deus: não é que ele

está se enforcando de verdade? Já estou tonto! Acho que vou

ficar doente!

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BEGRIFFENFELD – É um estado de transição: passa logo!

PEER – De transição? Transição para chegar a quê? O senhor

me desculpe: eu tenho que ir embora.

BEGRIFFENFELD (Tentando detê-lo) – O senhor está louco,

é?

PEER – Ainda não... Louco, hein? Para mim chega! (Tumulto.

O Ministro Hussein, atravessando a multidão, aproxima-se

deles.).

HUSSEIN – Acabaram de me informar que um Imperador tinha

chegado aqui. (A Peer.) É o senhor?

PEER (Com um tom desesperado) – Parece que sou sim!

HUSSEIN – Muito bem. Aqui temos umas cartas que

precisamos responder.

PEER (Arrancando os cabelos) – De acordo! Vamos em frente

então, vamos!

HUSSEIN – Quer fazer o favor de me molhar? (Inclina-se

profundamente.) Eu sou uma pena de escrever.

PEER (Inclinando-se mais ainda) – E eu sou seu velho

pergaminho imperial.

HUSSEIN – Minha história, senhor, é muito simples. Me

tomaram por uma ampulheta e eu sou é uma pena de pato.

PEER – E minha história, ó pena de pato, se resume em duas

palavras apenas: sou uma folha de papel fadada eternamente a

ficar em branco.

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HUSSEIN – As pessoas não sabem o partido que podiam tirar

de mim. Todos só querem me usar para espalhar areia.

PEER – Eu já fui um livro dourado nas mãos de uma mulher. A

sabedoria e a loucura são apenas erros tipográficos.

HUSSEIN – Imagine o senhor, que triste é para uma pluma, não

sentir nunca o ferro de uma faca.

PEER (Dando um pulo grande) – E imagine um cabrito

saltando de cima para baixo sem parar e sem nunca tocar a

terra!

HUSSEIN – Uma faca! Estou embotada! Precisam-me talhar,

me raspar. O mundo vai morrer se não afinar minha ponta!

PEER – Que tristeza para o mundo, que Deus, como autor, o

tenha achado tão bem feito!

BEGRIFFENFELD – O senhor quer uma faca? Olha aqui uma.

HUSSEIN (Pegando-a) – Ah, agora sim vou me embeber de

tinta! Que felicidade me cortar a ponta! (Degola-se.).

BEGRIFFENFELD (Afastando-se) – A pluma vai arranhar o

papel.

PEER (Com angústia crescente) – Segurem ele!

HUSSEIN – É isso: me segurem! Peguem da minha pluma! Isso!

Papel, papel! (Cai.) Estou embotado. Não se esqueçam do meu

epitáfio, hein? ‘A vida inteira e até a morte, foi uma pluma casta’.

PEER (Desmaiando) – Que vai ser de mim? Que é que eu sou?

E você, Grande... Chega aqui... Serei o que você quiser...

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Turco... Diabo... Pecador... Mas vem aqui. Alguma coisa se

rompeu em mim... (Rindo.) Não acho mais teu nome. Chega

aqui até mim, ó Tutor dos Animais! (Desmaia.).

BEGRIFFENFELD (Com uma coroa de palha na mão,

cavalga Peer e diz) – Ah, olhem o sol como faz brilhar! Está

fora de si! É o momento para coroá-lo! (Coloca a coroa na

cabeça de Peer Gynt e grita.) Viva o Imperador de Si-Mesmo!

SCHAFFMAN (Dentro da jaula) – Es lebe hoch der Grosse

Peer!

FIM DO QUARTO ATO

QUINTO ATO

A bordo de um navio que percorre o litoral da Noruega. Pôr-

do-sol. Mar agitado. Peer Gynt, um ancião cheio de vigor, de

cabelos e barba brancos, está na popa do navio. Veste uma

roupa semelhante a um uniforme de marinheiro. Está

usando jaqueta e botas de cano largo. Suas roupas estão

um pouco gastas. Bronzeado pelo sol, suas feições tem

uma expressão mais dura, agora. O Capitão está perto do

timão. A tripulação está na proa.

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PEER (Apoiado na murada, contemplando a costa) – Olha

aqui o Velho Halling, de roupa de inverno, estufando o peito

para os raios do sol poente. Como está todo empertigado, o

velhinho! O Pico da Geleira, seu irmão, fica atrás,

modestamente. Sua capa de gelo cintila ao sol. As águas do

Mar da Neve se estendem graciosas, como virgens com longos

vestidos de linho. Bom, nada de loucuras, hein, meus velhos

companheiros? Fiquem direitinhos aí mesmo onde estão.

Pensando bem, vocês não passam de blocos inertes de gelo.

O CAPITÃO (Gritando para a tripulação) – Dois homens para

o timão! Içar a lanterna!

PEER – Que vento frio, do norte!

O CAPITÃO – Esta noite vamos ter tempestade.

PEER – De longe será que veremos os Montes Ronden?

O CAPITÃO – Não, ficam escondidos pelo Mar de Neve.

PEER – E Blohoe?

O CAPITÃO – Também não. Mas com bom tempo, da gávea, lá

no mastro mais alto, pode-se ver o Pico de Galdho.

PEER – E onde fica Hasteigen?

CAPITÃO (Indicando) – Lá daquele lado.

PEER – Ah, muito bem.

CAPITÃO – Pelo visto, o senhor conhece bem esta região.

PEER – Quando parti, passei por aqui. E, como dizem, os

tempos da mocidade são os que se gravam mais na lembrança.

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(Cospe e volta a fitar a costa.) Aquilo que está luzindo azul, lá

longe, no meio dos penhascos, aquele desfiladeiro preto numa

cova, e às margens dos fiordes que desembocam no oceano, é

lá então... (Dirigindo-se ao Capitão.) Lá tem poucas casas?

CAPITÃO – Poucas, espalhadas por aí.

PEER – E chegaremos lá antes de raiar o dia?

CAPITÃO – Espero: se a noite não piorar muito.

PEER – Do lado do poente há nuvens grossas.

CAPITÃO – É verdade.

PEER – Ah, antes de desembarcar, não se deixe esquecer-se

de dar umas lembranças à tripulação, hein?

CAPITÃO – Ah, obrigado!

PEER – Não vai ser muita coisa, não. Fui garimpar ouro, mas

tudo que eu achei, depois perdi... A sorte e eu estamos de

relações cortadas. O senhor sabe quanto depositei a bordo? É

tudo o que eu tenho: o resto levou a breca.

CAPITÃO – Dá e sobra para viver muito bem por aqui.

PEER – Não tenho família. Não tenho ninguém esperando pelo

rico vagabundo. Pelo menos não teremos choradeira no cais.

CAPITÃO – Lá vem a tempestade.

PEER – Então, é como eu disse: se algum marinheiro está com

problemas, não ligo para dinheiro, ouviu?

CAPITÃO – É muita gentileza da sua parte. A maioria ganha

pouco e todos têm mulher e filhos. Passam apertos com salários

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tão pequenos. Ah, se ganhassem um dinheiro extra no

desembarque, para eles seria uma festa para ser lembrada por

muito tempo!

PEER – O que é que o senhor está dizendo? Que são casados?

E que tem mulher e filhos?

CAPITÃO – Sim, senhor, todos, do primeiro ao último. O que dá

mais pena é o cozinheiro: na casa dele é só miséria, da negra!

PEER – Casados, é? Com gente esperando por eles em casa?

Com gente alegre pela chegada deles, é?

CAPITÃO – É, mas são festas simples que fazem: festas de

pobres.

PEER – O que é que acontece na noite em que eles chegam?

CAPITÃO – Caramba: acho que pelo menos dessa vez a patroa

os espera com um jantar e tanto.

PEER – Com uma vela acesa em cima da mesa?

CAPITÃO – Até duas. E um traguinho para completar a comida.

PEER – E eles ali, se esquentando no lar, diante de uma boa

lareira, no meio de uma criançada alegre fazendo uma algazarra

dos diabos? É a felicidade, não?

CAPITÃO – Acho que sim. Por isso, repito, é tão amável o

senhor dar um presente de despedida para eles.

PEER (Dando um murro na amurada) – O senhor acha, é? E

essa agora? Então o senhor está pensando que eu sou algum

louco? Que eu vou lá me arruinar para alegrar os filhos dos

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outros? Suei muito para ganhar meu dinheiro e não vai ser

agora, que vou jogá-lo fora, não! Lá não tem ninguém

esperando o velho Peer Gynt!

CAPITÃO – Bom, é claro, o senhor faz o que quiser do seu

dinheiro, afinal é todo seu!

PEER – Se é! É meu e de mais ninguém! Assim que jogar a

âncora, o senhor me apresenta a sua conta. Pago só minha

passagem do Panamá até aqui, e dou um pouco de aguardente

para a tripulação. E é só. Se eu der um centavo a mais, Capitão,

o senhor pode me cuspir na cara.

CAPITÃO – Vou lhe dar um recibo e não insultos. Com licença:

a tempestade está chegando. (Dirige-se rumo à proa. O céu

tornou-se inteiramente escuro. Acendem-se luzes. O navio

joga cada vez mais forte. Névoa e nuvens espessas.).

PEER – Crianças travessas em casa, lembranças alegres que te

acompanham onde você for! Mas de mim, quem se lembra de

mim? Ninguém! Vão acender velas e pôr castiçais à mesa, é?

Dou um jeito de apagar tudo. Pronto! Vou deixar todos bêbados

de cair. Quero que nenhum desses animais desça à minha terra

sem estar altíssimo! Vão abraçar a mulher e os filhos

empapados de álcool! Gritando palavrões! Dando socos na

mesa! Vão fazer uma confusão infernal e em casa todos vão

tremer de medo deles! As mulheres vão fugir gritando e

carregando os filhos para longe! Era uma vez tanta alegria! (O

barco joga muito. Peer tropeça e luta para se manter em pé.)

Epa! Epa! Bela sacudidela! O mar trabalha como se fosse pago

para isso! Nada mudou nestas regiões do norte. Sempre

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expostas aos mesmos horrores! (Ouvindo.) Que é que estão

gritando?

VIGIA (Na proa) – Uma balsa a estibordo!

CAPITÃO (Na ponte do meio) – Timão para estibordo! Baixar

velas!

PILOTO – Tem alguém na balsa?

VIGIA – Estou vendo três homens!

PEER – Desçam o bote salva-vidas!

CAPIATÃO – Não: pode naufragar. (Dirige-se à proa.).

PEER – Quem está pensando numa coisa dessas? (Aos

membros da tripulação.) Salvem-nos, se forem homens! Que

diabo: será que vocês estão com medo de molhar os pés, é?

CHEFE DA TRIPULAÇÃO – Mas é impossível, com o mar

assim!

PEER – Estão ouvindo os gritos? É o vento que está ficando

com raiva! Ei, você aí, cozinheiro: desce lá. Te dou uma boa

recompensa!

COZINHEIRO – Nem por vinte guinéus!

PEER – Ah, cachorros sem-vergonhas! Capados miseráveis!

Pensem nesses coitados que têm mulheres e filhos esperando

por eles em casa!

CHEFE DA TRIPULAÇÃO – Eles que tenham paciência!

CAPITÃO – Olha que ondas! Deixa o barco flutuar!

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PILOTO – A balsa virou!

PEER – Não se ouve mais nada...

PILOTO – Se eles eram casados, como o senhor diz, o mundo

agora se enriqueceu de mais três viuvinhas. (A tempestade

aumenta. Peer Gynt vai à popa do navio. Já anoiteceu. Um

passageiro desconhecido, de pé ao lado de Peer, saúda-o,

cortesmente.).

DESCONHECIDO – Boa noite.

PEER – Boa noite... Hein? Quem é o senhor?

DESCONHECIDO – Seu companheiro de viagem, às suas

ordens.

PEER – Essa agora! Eu pensava que fosse o único passageiro

a bordo!

DESCONHECIDO – Foi engano seu, que já está corrigido.

PEER – Mesmo assim, é esquisito: nunca o vi até hoje, no

navio.

DESCONHECIDO – É que eu nunca saio da cabine de dia.

PEER – Será que o senhor está doente? Estou achando o

senhor branco como o cal.

DESCONHECIDO – Que nada: estou muitíssimo bem.

PEER – Que tempestade, não?

DESCONHECIDO – É meu amigo, uma verdadeira bênção!

PEER – Uma bênção?

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DESCONHECIDO – Vagalhões do tamanho de uma casa! A

gente fica todo salpicado de espuma! Pense só em todas as

jangadas que aparecerão amanhã, os cadáveres cuspidos pelo

mar!

PEER – Ah, meu bom Deus, haverá muitos mesmo!

DESCONHECIDO – O senhor alguma vez já viu alguém morrer

estrangulado, enforcado... ou afogado?

PEER – Como disse?

DESCONHECIDO – Os cadáveres sorriem, ou melhor, fazem

uma careta bonachona e na maior parte das vezes mordem a

própria língua.

PEER – Que horror! Quer me deixar em paz, por favor?

DESCONHECIDO – Só uma pergunta, a última: e se nós

naufragássemos esta noite? E se afundássemos no mar, nesta

noite escura?

PEER – O senhor acha que há esse perigo?

DESCONHECIDO – Eu não sei de nada. Mas suponhamos que

eu escapo e que o senhor é que morre afogado.

PEER – Deixa disso, vamos!

DESCONHECIDO – É uma simples possibilidade. Ora, quando

o sujeito já está com o pé na cova, o coração já fica mole, as

pessoas já começam a ficar generosas...

PEER ((Pondo a mão no bolso) – Bom, se é questão de

dinheiro...

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DESCONHECIDO – Não, não é isso. Mas será que o senhor me

concedia como especial favor seu precioso cadáver?

PEER – Que brincadeira é essa? O senhor está passando dos

limites, sabe?

DESCONHECIDO – Mas é só o que eu lhe peço. Seu cadáver.

É para minhas experiências científicas.

PEER – O senhor quer fazer o grande favor de me deixar em

paz de uma vez?

DESCONHECIDO – Mas o que é isso, meu amigo: reflita um

pouco. O senhor também terá suas vantagens. Mandarei abrir

seu corpo e expô-lo à luz do sol. O objetivo de minhas

pesquisas é localizar, sobretudo, o local onde nascem os

sonhos humanos. Além do que, prometo-lhe submetê-lo inteiro à

minha análise.

PEER – Vá-se embora daqui!

DESCONHECIDO – Mas, meu caro, um simples corpo

afogado...

PEER – Seu blasfemo desafiador de tempestades! Ah, mas é

loucura demais! A chuva e os ventos estão nos açoitando sem

dó, o mar nos sacode como sacos soltos, corremos perigo de

vida, e o senhor parece que quer é acelerar a catástrofe!

DESCONHECIDO – Bem, eu acho que o senhor não está bem

disposto agora. Mas pode mudar depois. (Com uma saudação

amável.) Nós voltaremos a nos encontrar no fundo do mar ou

talvez até antes. Aí espero que o senhor esteja de humor mais

alegre. (Entra num camarote.).

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PEER – Que personagens repugnantes são esses cientistas!

Deve ser um ateu! (Ao Chefe de Tripulação, que passa diante

dele.) Um momento, amigo: quem é esse louco que viaja como

passageiro conosco?

CHEFE DE TRIPULAÇÃO – Um passageiro? Que eu saiba o

senhor é o único que nós temos a bordo.

PEER – O único? Que coisa esquisita! (Ao Praticante de

Piloto.) Quem foi que acabou de descer para os camarotes

agora mesmo?

O PRATICANTE – Foi o cachorro de bordo, senhor. (Sai.).

O VIGIA (Gritando) – Terra à vista!

PEER – Minhas malas! Meu cofre! Tudo para o convés!

CHEFE DE TRIPULAÇÃO – Temos mais o que fazer.

PEER – Eu estava brincando, Capitão, não era a sério, não!

Mas é claro que vou dar uma ajuda ao cozinheiro!

O CAPITÃO – O mastro grande se rompeu ao meio!

O SEGUNDO – Está caindo a bujarrona!

CHEFE DE TRIPULAÇÃO (Na proa) – A proa encalhou!

O CAPITÃO – Ficou partida! (O navio naufraga. Barulho,

tumulto.).

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Banquisas e recifes perto da costa. O barco está afundando.

Percebe-se através da névoa o barco salva-vidas que leva

dois homens. Uma onda o faz submergir e virar. Um grito,

depois um momento de silêncio. Pouco a pouco se vê

emergir o barco salva-vidas, com a quilha no alto, e logo a

cabeça de Peer saindo da água.

PEER – Socorro! Um bote! Socorro! Vou afundar! Está escrito:

‘salvai-me, oh Senhor!’ (Agarra-se ao costado.).

COZINHEIRO (Nadando ao lado oposto) – Nosso Senhor:

tende piedade de meus filhinhos! Permiti que eu chegue até a

praia! (Agarra-se ao costado.).

PEER – Larga daí!

COZINHEIRO – Larga você!

PEER – Você vai ver só!...

COZINHEIRO – Quem vai ver é você!

PEER – Vou dar cabo de você de tanto soco e pontapé! Larga,

eu repito! Não dá para nós dois!

COZINHEIRO – Eu sei disso. Por isso que você tem que largar.

PEER – Eu não: você!

COZINHEIRO – Espera só! (Lutam. O cozinheiro solta uma

das mãos, mas continua agarrado com a outra.).

PEER – Solta essa pata, anda!

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COZINHEIRO – Tenha dó, meu senhor! Tenha pena de mim!

Pense só nos meus filhinhos!

PEER – Eu preciso viver mais do que você, pois eu ainda não

tenho filhos!

COZINHEIRO – Deixa o bote! O senhor já viveu muito, eu sou

moço ainda!

PEER – Qual o quê? Dá o fora! Você está brincando cada vez

mais pesado!

COZINHEIRO – Pelo amor de Deus! Deixe-me viver, pelo santo

amor de Deus! O senhor não deixa ninguém para chorar sua

morte!

PEER (Agarrando-o) – Pronto, te peguei! Agora reza tuas

últimas orações!

COZINHEIRO – Não me lembro de mais nada. Não estou

enxergando nada!

PEER – Depressa: as partes mais importantes!

COZINHEIRO – Dá-nos hoje...

PEER – Afunda! Você já tem tudo, não precisa pedir mais nada!

COZINHEIRO – Dá-nos hoje o pão...

PEER – Sempre a mesma toada! Bem se vê que você foi

cozinheiro!

COZINHEIRO (Desaparecendo) – Dá-nos hoje o pão nosso de

cada dia... (Afoga-se.).

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PEER – Amém, meu caro! Você foi fiel a si mesmo até o fim!

(Ergue-se até o bote.) Enquanto houver vida, há uma

esperança!

O PASSAGEIRO DESCONHECIDO (Prendendo-se até o

barco) – Bom dia!

PEER – Ué?

DESCONHECIDO – Ouvi um grito. Que prazer vê-lo! Como o

senhor está vendo, eu predisse tudo certo.

PEER – Dá o fora daqui, rápido! Aqui só cabe uma pessoa, não

está vendo?

DESCONHECIDO – Não há de ser nada, eu ajudo com o pé

esquerdo. Apoiando os dedos nesta beira, consigo nadar. Por

falar no assunto, e o nosso cadáver?...

PEER – Cala essa boca!

DESCONHECIDO – Não se pode mais contar com os outros,

não é?

PEER – Chega!

DESCONHECIDO – Como o senhor quiser. (Pausa.).

PEER – Então?

DESCONHECIDO – Estou calado.

PEER – Pelas barbas do Diabo: o que é que o senhor está

fazendo?

DESCONHECIDO – Esperando.

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PEER (Com gestos de irritação e de desespero) – Mas isso é

de deixar alguém louco! Quem é o senhor, afinal?

DESCONHECIDO (Inclinando-se) – Um seu servidor.

PEER – E que mais? Vamos, fale, fale!

DESCONHECIDO – Adivinhe! O senhor nunca viu alguém

parecido comigo?

PEER – O Diabo me...

DESCONHECIDO (Baixando a voz) – Ele tem costume de nos

amedrontar para nos avisar do perigo?

PEER – Vai ver que o senhor é um espírito de luz!

DESCONHECIDO – Meu amigo: será que o senhor sabe o que

é sentir angústia? O senhor chegou a pensar seriamente nisso,

ainda que fosse só duas vezes por ano?

PEER – Quando se está em perigo, é natural sentir medo. Nada

mais.

DESCONHECIDO – O senhor, por acaso sabe que triunfo existe

na angústia? O senhor já sentiu isso nem que fosse uma única

vez na vida?

PEER (Olhando para ele) – Se é a salvação da minha alma que

o senhor está querendo, chegou tarde, sabe? O mar vai me

engolir!

DESCONHECIDO – Ah, quanto a isso, pode ficar tranqüilo: o

herói não morre nunca no meio do quinto ato. (Some.).

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PEER – Ah, por fim ele se desmascarou! Não passava de um

insosso moralista!

Um cemitério de montanhas. Um cortejo fúnebre. À beira da

sepultura, um Pastor Protestante. Termina-se de cantar um

Salmo. Peer Gynt surge na estrada, fora do proscênio.

PEER (Parando na estrada) – Sem dúvida é mais um

conterrâneo que segue o caminho de toda poeira humana.

Graças a Deus que não sou eu. (Entra.).

REVERENDO (Pregando) – E agora, meus caros irmãos,

quando a alma se apresenta diante do Tribunal Supremo e o

corpo repousa, como uma casca sem o fruto, diremos poucas

palavras sobre o caminho que o defunto trilhou sobre a Terra.

Não tinha nem riquezas nem dotes de inteligência. De voz

estridente, de porte pouco viril, exprimia-se com hesitação e mal

conseguia dirigir seu lar. Na igreja, parecia pedir, humildemente,

permissão para se sentar ao lado dos outros. Era - como sabeis

- nascido no Vale de Gudbrand. Menino ainda - tinha vindo para

esta aldeia. Todos recordais vê-lo passar, até o dia de sua

morte, circulando entre nós, com a mão direita enfiada no bolso.

É nessa postura que sua imagem ficou gravada em vossas

mentes. A ela acrescentemos seu embaraço e a atitude

reservada que o caracterizavam quando participava de qualquer

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reunião. Mas, mesmo preferindo manter-se à parte e tendo

sempre sido um estranho entre nós, vós não ignorais – eu sei –

o segredo que ele se esforçava em ocultar: a mão que ele tinha

sempre guardada no bolso tinha só quatro dedos. Lembro-me

ainda: há muito tempo se deu isso. Certa manhã chegaram

recrutadores a Lunde. Estávamos em guerra e só se falavam de

calamidades públicas. Todos se preocupavam com o futuro do

país. Eu estava presente. O Capitão estava sentado atrás da

mesa, com o Prefeito e os Sargentos. Um a um, nossos rapazes

eram examinados, medidos, recrutados. A sala estava repleta

de gente. Lá fora ecoavam os risos dos jovens. Aí, pronunciou-

se um nome. Um recém-chegado respondeu à chamada. Estava

pálido como um morto, branco como a neve das montanhas.

Mandaram que ele se aproximasse. Chegou até a mesa. Estava

com a mão direita enrolada num pano. Esbaforido, engolindo em

seco, ele não estava em condições de pronunciar uma só

palavra. Não respondia nada às perguntas do Capitão. Afinal,

ficou com o rosto em fogo: balbuciando, alando as palavras,

gaguejou qualquer coisa sobre um acidente, uma foice que, por

acaso, decepara-lhe um dedo. Logo se fez um silêncio na sala.

Trocavam-se olhares, lábios se cerraram, olhares fulminantes

caíram sobre os rapazes. Com os olhos baixos, ele sentia a

tempestade ao seu redor. De repente, o velho Capitão se

levantou, cuspiu no chão, esticou o braço e disse: ‘vá embora

daqui!’ – e o rapaz saiu. Abriram passagem e ele passou como

se estivesse levando vergastadas. Foi assim até a porta e de lá

começou a correr em disparada, subindo em direção aos

montes. Pulou correndo pelos bosques, pelas serras,

tropeçando nas pedras, nas rochas, até chegar à sua morada,

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no fiorde. Seis meses mais tarde, ele veio aqui com a mãe,

filhos pequenos e uma mulher que desposou assim que pôde.

Tinha roçado um terreno da planície, adiante de Lomb, e ali

construíra uma casa. O solo era duro, mas ele conseguiu vencê-

lo, como comprovam os outeiros, eriçando suas arestas

pontiagudas. Na igreja ele ficava com uma das mãos no bolso,

mas nos trabalhos dos campos seus nove dedos trabalhavam

como dez. uma primavera, a torrente levou tudo abaixo. Só se

salvaram o homem e a sua família. Sem recursos, sem um teto,

ele voltou a trabalhar com afinco e antes de terminar o verão

surgia na montanha um novo campo de semeadura num ponto

mais protegido que o anterior. Sim, mais protegido contra a

inundação, mas não contra a avalanche. Daí a dois anos, tudo

ficou soterrado sob a neve. Tudo, menos a coragem daquele

homem. Cavou, desentulhou, trabalhou com tanto afinco, que

antes do inverno tinha reconstruído uma casinha modesta, pela

terceira vez. Tinha já três filhos, três meninos robustos. A escola

ficava longe, lá onde acaba a estrada do município. Precisavam

seguir por um atalho estreito e abrupto, cavado na neve

endurecida. O que é que ele fez então? Deixou o mais velho dos

filhos subir pela encosta como podia, limitando-se a ampará-lo

de vez em quando, quando o terreno era muito íngreme. Os

outros dois, ele carregava nas costas. Assim se passaram vários

anos de privações. Os meninos ficaram homens feitos. Era

tempo de pedir que o ajudassem agora... Mas, qual o quê? Três

cidadãos abastados esqueceram, hoje em dia vivendo no Novo

Mundo, seu velho pai norueguês e o atalho para a escola

distante. Era um homem de visão curta. Além do pequeno

círculo de seus familiares, não percebia mais nada. As palavras

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poderosas que deviam fazer pulsar mais forte todos os corações

soavam, a seus ouvidos, como guizos ocos. O povo, a Pátria,

tudo o que existe de mais elevado, de mais sublime, parecia-lhe

envolto numa espessa bruma. Mas, era um humilde, esse pobre

homem. Desde o dia do recrutamento militar, ele vivia como que

sob a ameaça de prisão, a frente curvada pela vergonha e a

mão metida no bolso. Diante da lei do país, não era um

desertor? Sem dúvida que era. Mas há coisas que brilham mais

alto que a lei, como os cumes altos alvejam detrás do Monte

Glittertind e arrojam sobre a geleira, nuvens que o tapam. Era

um mau cidadão. Para a Igreja e para o Estado, era uma árvore

estéril. Mas lá no alto, no topo da montanha, lá onde nossos

caminhos se estreitam, naquele trabalho para o qual ele se

sentia chamado, ele era grande, porque era ele próprio, fiel a si

mesmo. A vida restituiu-lhe seu som peculiar. Ela, que sempre

tinha vibrado em surdina. Repousa em paz, modesto guerreiro,

que lutaste e morreste no humilde combate do lavrador! Não

compete a nós, poeira da poeira, sondar rins e corações, mas

sim a Ele, que nos governa. Mas tenho a firme esperança e uso

livremente exprimi-la: não é como pecador que esse homem

surge hoje, diante de Deus! (O cortejo se dispersa e afasta-se.

Peer Gynt fica sozinho.).

PEER – É isso que eu chamo de Cristianismo! Nada de

crueldade, nada de sofrimento humilhante para a alma humana.

O Pastor escolheu uma tese edificante ao pregar a obrigação de

cada um de nós de ser sempre fiel a nós mesmos. (Olha para a

cova.) Esse homem, não é o que eu vi cortando um dedo na

floresta, naquele tempo em que eu andava derrubando árvores?

Quem sabe? Se eu não estivesse aqui, agora, com uma bengala

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na mão, à beira dessa sepultura agradável, eu poderia pensar

que era eu que durmo nesse caixão e que aquele panegírico era

para mim. Realmente, é um belo costume cristão, esse de

rememorar toda a carreira de um defunto. Para mim bastava de

sobra ser julgado desse modo por este digno Pastor da roça.

Mas qual! Ainda me resta uns tempos até o dia do coveiro vir me

oferecer seus serviços. E as Escrituras ensinam que o melhor é

inimigo do bom. ‘Cada época da vida tem suas aflições’, está

escrito também. E, mais adiante: ‘não aceites ser enterrado a

crédito’. Dá no mesmo: a única consolação verdadeira nos vem

da Igreja. Até hoje não a apreciei como devia. Mas agora é que

eu vejo como faz bem, de uma voz autorizada: ‘colherás o que

semeaste’. É isso: é preciso ser o que somos. Nas coisas

pequenas como nas grandes, precisamos cuidar do que é nosso

e preocuparmo-nos com nós mesmos, porque se a fortuna nos

atrair; pelo menos nós temos a honra de termos pautado nossa

vida por aquilo em que acreditamos. E agora, vamos para

dentro! Não tem nada demais se o caminho é estreito e o atalho

é íngreme! Não tem nada demais se o destino continua a me

abater. Não será por isso que o velho Peer Gynt deixará de

seguir seu próprio caminho ou de ser o que sempre foi: pobre,

mas honesto. (Sai.).

No litoral. Perto do leito seco de uma torrente, um moinho

em ruínas. Por toda a parte, devastação, vestígios de uma

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avalanche. Mais para cima, um terreno cercado. Diante

deste, um leilão. A multidão está reunida, bebe e se agita

ruidosamente. Peer Gynt está sentado sobre os escombros,

perto das ruínas do moinho.

PEER – Por onde se olhe, é sempre a mesma coisa. O tempo

rói tudo. A torrente desgasta as margens. ‘Dá a volta’ –

aconselhou a Curva. Sempre se acaba voltando ao mesmo

ponto.

UM HOMEM DE LUTO – Só ficaram bugigangas. (Vendo Peer.)

Ué: vieram estranhos também? Que Deus esteja contigo, amigo!

PEER – Bom dia! Está todo o mundo alegre. O que foi? Algum

casamento? Alguma Missa de purificação de uma mulher que

deu a luz?

O HOMEM DE LUTO – Ao contrário: é mais uma festa de

inauguração da casa. A linda noivinha montou casa com os

vermes.

PEER – Enquanto outros vermes disputam seus despojos.

O HOMEM DE LUTO – E é o fim de uma bela canção.

PEER – Sempre a mesma. É uma canção velha, que eu cantava

desde criança.

UM MENINO (Mostrando uma forma) – Olha só que peça linda

que eu comprei: é a forma que Peer Gynt usava para fundir

botões de prata!

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OUTRO MENINO – E eu então? Comprei uma bolsa por um

xelim!

UM TERCEIRO MENINO – Eu é que fiz um negócio da China:

dei só um xelim e meio por um saco de vendedor ambulante!

PEER – Quem é esse tal de Peer Gynt que vocês

mencionaram?

O HOMEM DE LUTO – A única coisa que eu sei é que ele era

da família da falecida e de Aslak, o ferreiro.

O HOMEM VESTIDO DE CINZA – E eu? Você está me

esquecendo? Você deve ter bebido mais da conta.

O HOMEM DE LUTO – Você é que está ficando com a memória

fraca. Não se lembra de certa porta de celeiro em Haegstad?

O HOMEM DE CINZA – Sei muito bem e mais ainda: sei que

você não ficou nada aborrecido.

O HOMEM DE LUTO – Contanto que não dê azar para a morta,

agora.

O HOMEM DE CINZA – Vem primo! Vamos beber um trago em

homenagem ao nosso parentesco!

O HOMEM DE LUTO – Teu primo? Vai para o diabo que te

carregue! Você está é bêbado e nem sabe mais o que está

dizendo!

O HOMEM DE CINZA – Vamos logo! Não adianta: a gente pode

se quebrar em quatro. A gente sempre se sente membro da

família de Peer Gynt. (Afastam-se juntos.).

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PEER (Falando em voz baixa) – Sim senhor: velhos amigos de

outros tempos!

UM MENINO (Gritando para o homem de luto, que se afasta)

– Ei Aslak: se você beber, minha mãe morta vai puxar a tua

perna!

PEER (Levantando-se) – Bem, não cavemos fundo demais. Os

gnomos podem dizer o que quiserem: as tripas da Terra não têm

um cheiro nada bom.

OUTRO MENINO (Mostrando uma pele de urso) – Olha só,

moço! É o gato de Dovre, ou pelo menos o pelo dele. Foi ele

que numa noite de Natal assustou à beça o Duende.

OUTRO MENINO (Mostrando uma cabeça de rena) – E olha

aqui o cabrito que levou Peer Gynt pelos ares até o cume do

Monte Gendin!

UM TERCEIRO MENINO (Mostrando um martelo e gritando

para o homem de luto, que se afasta) – Ei, Aslak: é este o

martelo que você atirou no Diabo quando ele furou o telhado da

tua oficina?

UM QUARTO MENINO (De mãos vazias) – Ei, Matz Moen, olha

aqui o traje invisível que Peer e Ingrid usaram para fugir!

PEER – Ei, vocês aí, meninos! Me paguem uma bebidinha!

Estou me sentindo velho e acabado. Tenho uma porção de

velharias para vender, sabem?

UM MENINO – O que, por exemplo?

PEER – Um castelo em Ronden. De paredes sólidas.

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O MENINO – Ofereço um botão por ele.

PEER – Não, vê se chega a oferecer um traguinho. Oferecer

menos não é nem decente.

OUTRO MENINO – Que engraçado esse velho! (Agrupam-se

em torno a Peer.).

PEER (Gritando) – Meu cavalo alazão! Quem quer meu cavalo

alazão?

UMA VOZ – Onde está?

PEER – Lá longe, no oeste, no poente, meus filhos. É um bom

trotador. Corre tão bem quanto Peer Gynt sabia mentir.

VOZES – Que mais que você tem para vender?

PEER – Ouro e bugigangas: o que quiserem eu tenho.

Comprado com prejuízo, mas vendido com desconto. A

lembrança de um livro de Salmos por um colchete à toa.

O MENINO – As lembranças que vão para os quintos dos

infernos!

PEER – Meu império! Vou jogá-lo para vocês. Quem pegar é o

dono!

O MENINO – Inclusive a coroa?

PEER – Inclusive a magnífica coroa de palha. Para quem

chegar primeiro! Vamos: tem mais! A casca de um ovo; um fio

de cabelo branco de um louco; a barba do profeta; tudo será de

quem me mostrar, na montanha poste com escrito em cima

estas palavras: ‘é por aqui!’

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O PREFEITO (Aparecendo) – Meu caro, você fala de um jeito

que vai acabar te dando com os costados na cadeia.

PEER (Tirando o chapéu respeitosamente) – É provável. Mas

o senhor quer ter a bondade de me dizer o que foi Peer Gynt?

O PREFEITO – Que conversa fiada é essa?

PEER – Eu lhe peço: a sério! Me diga quem foi!

O PREFEITO – O que? Bem, dizem por aí, que foi uma espécie

de mau contador de histórias.

PEER – Contador?

O PREFEITO – É: de lorotas. Sempre ele contava que tinha feito

e acontecido como grande herói sem medo por esse mundo

afora. Mas, meu caro, queira desculpar: tenho deveres que me

esperam. (Sai.).

PEER – E onde está agora esse original personagem?

UM VELHO – Cruzou os mares para ir ao estrangeiro. Como era

de se esperar, nada deu certo e já faz alguns anos que o

enforcaram.

PEER – Enforcaram? Não me diga! Sim senhor: enforcado? Ah,

mas eu sabia. O falecido Peer Gynt permaneceu fiel a si mesmo

até o fim. (Saudando.) Adeus para todos, muito obrigado e

passem bem! (Dá alguns passos para afastar-se, mas muda

de idéia e pára.) Jovens alegres e as senhoras, amáveis

damas, permitam testemunhar-lhes minha gratidão, contando-

lhes uma história.

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NUMEROSAS VOZES – Você sabe alguma história? Então

conta para a gente, conta!

PEER – Não quero mais nada. (Aproxima-se. Seu rosto

adquire uma expressão enigmática.) Aconteceu em São

Francisco da Califórnia, onde foi buscar ouro. A cidade estava

cheia de saltimbancos. Um tocava violino com os pés, outro

executava, de joelhos, um passo de dança espanhola; um

terceiro, dizem, fazia versos enquanto lhe furavam o crânio. Aí

se passou que o Diabo, tendo-se reunido a esse grupo de

saltimbancos, quis enriquecer, achando que ele também

merecia. Imaginou, então, imitar na perfeição um grunhido de

porco. Sua fisionomia atraía multidões. De mero desconhecido,

da noite para o dia ele enchia os teatros, quando aparecia.

Todos ficavam mudos quando ele surgia. Aliás, ele sabia se

vestir: usava para a representação um manto longo de pregas

flutuantes. E ninguém percebia que, debaixo do manto

esvoaçante, o Tinhoso escondia um porco de verdade. Quando

soava a hora, ele dava-lhe um beliscão e o instrumento vivo

produzia um som. Essa fantasia musical executada por um

virtuoso baseava-se num tema conhecido: a passagem de um

porco do estado de liberdade para o da escravidão. No final,

ouvia-se um grito estridente: era o do animal abatido pelo

açougueiro. Finda esta parte, o artista cumprimentava

gentilmente o público e saía de cena. Sobre esse número

acenderam-se discussões apaixonadas. Críticos eruditos

duelavam com colegas, um culpando, outro elogiando o que

tinham assistido. Alguns achavam o grunhido muito estridente,

outros opinavam que o grito final era muito afetado. Mas num

ponto, todos estavam de acordo: o número todo era exagerado

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demais. Foi a paga do Diabo por ser tão desajeitado e contado

com o público. (Cumprimenta e se afasta. A multidão

mantém-se num silêncio inquieto.).

Véspera de Pentecostes. No interior de uma grande floresta.

No fundo, numa clareira, uma cabana. Sobre a porta da

entrada, chifres de rena. Peer Gynt arrasta-se pelo chão,

colhendo cebolas.

PEER – Uma nova etapa! Da vida vou virar uma nova folha. / É

preciso tatear o terreno antes de fazer qualquer escolha. / Esse

foi o meu destino. E, como lição moral e cívica / Aprendi a

perscrutar as lições da Sagrada História Bíblica. / De César

radioso acabei de quatro, como Nabucodonosor. / Velho e ainda

menino, olha só onde foi parar todo o teu furor! / No seio da

mãe, a Terra, és pó, em latim: pulvis est! / Encher o bucho é a

arte de viver que te ensinam a pontapés! / Um pouquinho de

cebola... não é muito, reconheço, / Mas tenho imaginação e vou

em frente, não esmoreço. / Ah, um riacho de água clara para

minha sede matar. / Ser rei dentro do bosque, é uma glória que

não se pode desprezar. / Na hora de morrer, espero poder ainda

/ Como árvore abatida depois da batalha finda / Escrever num

derradeiro esforço penoso / Um epitáfio a mim mesmo, um

epitáfio orgulhoso! / ‘Aqui jaz Peer Gynt, rapagão alegre, alerta e

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grande fã do amor / Morreu pranteado pelas feras deste bosque

como seu grande Imperador’. / Imperador? (Ri sozinho.) / Ah,

velho louco, sempre às voltas com a fantasia sem freio! / Hoje

você não passa de uma cebola descascada pelo meio. / E eu

vou te descascar bem direitinho, meu amigo, / Não deixo nada

sem terminar, para isso conte comigo. / (Pega uma cebola e

arranca todas as camadas, uma por uma.) Um pele primeiro,

arrancada como está feia! / O náufrago triste jaz caído sobre a

areia! / Agora outra de aspecto miserável que dá pena / O

passageiro fanfarrão, mau ator interpretando uma cena. / E

agora esta folha murcha e amarela com cheiro de Peer Gynt / É

o cavador de ouro da América, o Gentleman Mister Gynt. / E

essa agora, dura, de borda recurvada / É o rude caçador de

focas da Baía de Hudson de carreira fracassada. / Uma coroa?

Qual! É a mesma farsa idiota que prossegue! / Arranquemos

esta folha e o diabo que a carregue! / Esta camada aqui é curta

e robusta / É Peer que procura o ignoto e proclama a meio

mundo / Que com nada mesmo se assusta! / ah, agora é a vez

do Profeta... Sensual e carnudo / Mas de longe se percebe seu

truque e o pé de cabra do chifrudo. / Esta folha retorcida de

reflexo purpurino, / É o Creso que vive entoando à riqueza de

um hino. / E esta outra, doente, de manchas pretas só pode ser /

O pobre diabo do Peer Gynt que passa sem perceber / Do

negócio rendoso dos escravos para a Missa, o Pastor /

Adotando sem embaraço a cerimônia séria de novo se benzer. /

(Arranca várias camadas de uma vez.) A cebola fica cada vez

menor, ah, imagem da vida do homem neste mundo / Quanto

mais te cavo e em ti me aprofundo mais descubro que você não

tem fundo! / (Termina de descascar a cebola.) Pronto, agora

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acabou de uma vez! Foram-se embora as folhinhas / Cada vez

mais miúdas, cada vez mais mesquinhas, / A natureza é doida

varrida! / (Jogando longe as folhas da cebola.) De que serve

meditar sobre a vida? / Quem anda olhando só para o

firmamento / Bate com o nariz no solo duro de cimento. / Em vez

de buscar nas estrelas mistérios e uma explicação, / Anda de

quatro, velho Gynt, com a cara colada no chão. / (Coçando a

cabeça.) É bobagem cansar tanto a cabeça, a vida é um

instrumento engraçado / Que ou fica mudo ou só responde com

som desafinado. / A gente quer tocar, mexe sem jeito no teclado

/ Mas não há professor capaz de explicar seu significado. /

(Aproxima-se da cabana e ao percebê-la estremece.) Ué...

Essa parte da floresta... E esta cabana largada... / (Esfregando

os olhos.) Já não vi antes esta casa abandonada? / No alto da

porta estão os chifres da rena ainda / E no telhado – será

possível? – uma sereia linda! / Não, deve ser engano! Mas olha

aqui o ferrolho secreto que encerra o pensamento do diabinho

indiscreto!

SOLVEIG (Cantando dentro de casa) – Amigo querido, / Como

tardas a chegar! / Está tudo pronto / Para a Páscoa florida /

Estou aqui a te esperar! / Mas se descansas no caminho / -

Carregas um peso tão grande! - / Eu te espero com paciência /

Quero te dar tanto carinho!

PEER (Levantando-se de um salto, palidíssimo) – Aqui, ó

esquecimento triste / Ali, a fé fielmente mantida / E a alma

amorosa e querida / Aqui a alma despedaçada, / A angústia

sugando o coração / Como um vampiro de cemitério / Lá, a

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verdade, a paixão. / Lá, sim, que foi meu verdadeiro império!

(Corre para dentro do bosque.).

É noite. Uma clareira de pinheiros devastados por um

incêndio. Por toda a parte, troncos calcinados visíveis até o

horizonte. Aqui e ali, vapores flutuam acima do solo. Peer

Gynt atravessa a clareira correndo.

PEER – Pó, cinza e podridão, / Ruína, terra queimada e escura /

Por toda parte reina a devastação. / Agora já sei: o edifício da

fantasia, / Agora já sei: a base do edifício da imaginação / É feita

de argila de sonhos e mentiras / Para sobre ela erguermos o

real malsão / Do horror da verdade sem nenhuma falsa ilusão. /

O temor de qualquer pensamento profundo / Vai me servir de

alicerce bem fundo / E leviano, sem pensar, minha obra

assinarei: / ‘Petrus Gynt, que foi Imperador e Rei’. / (Ouvindo.)

Estou ouvindo uma criança a soluçar... / Mas será mesmo

choro? Não, acho que é um coro / (Novelos de lã começam a

rolar diante dele. Olhando-os.) Que é isso? Novelos e mais

novelos a correr / Será que querem meu passo de vencedor

deter? / (Chuta-os com os pés.).

OS NOVELOS – Nós, os pensamentos / Que você nunca teve, /

Rolamos levados pelos ventos / Tolhendo teus passos, leves. /

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Espíritos sutis que murmuram a teu coração oco: / ‘Liberta

nossos pobres filhos da prisão deste louco!’ /

PEER – Impossível! Houve um tempo, é verdade, / Em que eu

vivia só de falsidade! / (Tropeça, joga-se de lado e tenta

fugir.).

FOLHAS SECAS – Palavras desconhecidas / Do velho mistério

que em nós se encerra / Árvores nuas e retorcidas / Caídas

mortas em cima da terra / Tu nos deixaste caídas / No meio da

lama e da imundície / Para sermos pasto dos vermes / E foste

embora tranqüilo / Rumo à tua descuidada velhice. /

PEER – Começa uma nova estação agora / As sementes

velhas, eu já joguei todas fora! /

MURMÚRIOS NO AR – Nós, as canções que não foram

cantadas, / Te maldizemos sem arrependimento / Almas áridas

que não soubemos / Comover teu sentimento, / Nunca ninguém

escutou / Nossa doce melodia / Numa noite de lua e poesia / Por

isso, maldito seja quem nos matou! /

PEER – Viver como trovador? Amar, cantar e beber? / Eu tinha

coisa muito mais séria para fazer! / (Tenta fugir novamente.).

GOTAS DE ORVALHO (Caindo dos ramos) – Gotas de pranto

/ Que não brotou nunca / Lágrimas tão sentidas / Que derretiam

gelo mais duro, / Mas nunca nascidas / De choro humano e puro

/ Não podemos tocar teu coração / Empedernido e sem

compaixão / Por isso jazemos aqui, / À beira da vida debaixo do

chão. /

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PEER – Chorar eu chorei: quando foi preciso / Mas as lágrimas

foram inúteis / Não serviram nem para amadurecer o meu juízo./

PEDACINHOS DE PALHA – Feitos sonhados / E nunca

realizados / Inacabados / Diante da dúvida glacial / Homem sem

fé / Que trocaste a alma / Pelo breve prazer sensual / Por teu

coração seco como um figo / Acabamos neste frio jazigo / A

maldição esteja contigo! /

PEER – Não tenho medo do que dizem! Quem ouve vozes falar

/ Pensa que ser cometido, abster-se de excessos / É viver sem

regalias, sem nunca prevaricar! (Tenta correr.).

VOZ DE AASE (De longe) – Menino mauzinho, / Por cima da

neve / Por qual caminho / Levaste tua mãe? / Castelo, pelo

sonho, / É satã medonho, / Que te comanda, danado, / Ah,

como foste um cocheiro malvado! /

PEER – Já que a culpa é do satã medonho / O céu me perdoará

estou certo / E para não ouvir falar mais em sonho / Pernas para

que te quero? Isso por aqui está muito tristonho! / (Escapole.

Noutro ponto da planície, cantando.) Coveiros indiferentes, /

Pios bedéis de igreja, / Cheguem para perto, gentalha, / Vamos

balir seu canto fúnebre e canalha / Quero coser uma tira negra

na aba do meu chapéu / Tenho tantos mortos que enterrar / Não

posso deixar São Pedro esperando lá no céu. / (O Fundidor,

carregando uma caixa de instrumentos e uma enorme

colher de fundidor, chega por um caminho lateral.).

FUNDIDOR – Boa noite, meu velho.

PEER – Boa noite, companheiro.

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FUNDIDOR – Você parece que está com pressa. Para onde

vai?

PEER – Vou a um enterro.

FUNDIDOR – É mesmo? É: você não tá com cara boa, não. Me

desculpa perguntar, mas, por acaso, seu nome não é Peer?

PEER – Me chamam de Peer Gynt.

FUNDIDOR – Isso é que é ter sorte! Pois é justamente Peer

Gynt que eu vim procurar esta noite.

PEER – Não me diga: e o que é que você quer de mim?

FUNDIDOR – Vou te dizer: sou fundidor. Você precisa entrar na

minha colher.

PEER – E para que?

FUNDIDOR – Para ser fundido de novo.

PEER – Fundido?

FUNDIDOR – Tá vendo só: ela tá prontinha. Tua cova já foi

cavada, teu caixão tá encomendado também. Logo, logo as

minhocas vão celebrar no teu corpo aquele banquete. E a tua

alma, o Mestre me encarregou de levá-la lá para ele, sem

demora.

PEER – Ora essa, assim sem mais nem menos, é?

FUNDIDOR – É um velho costume. Seja para enterro, seja para

batismo, escolhe-se em segredo o dia, sem avisar o herói da

epopéia.

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PEER – Sei, sei. Mas minha cabeça não tá muito boa: quer dizer

que você é, é... quem mesmo?

FUNDIDOR – Sou um fundidor, como já lhe disse.

PEER – Ah, compreendo. É que sua gentil Alteza tem tantos

nomes diferentes... Então, meu caro Peer, chegou o fim da tua

viagem. Mas convenhamos, companheiro, que é uma maneira

suja de se comportar. Caramba: eu acho que mereço ser tratado

melhor. Sou menos mau do que pareço e, afinal, também fiz o

bem no mundo. No máximo, no máximo eu podia ser

considerado um inútil, mas não um grande pecador daqueles

com maiúsculas.

FUNDIDOR – Ah, pois aí, justamente, é que está o problema!

Você não é um pecador, no sentido elevado da palavra. Por isso

é que você escapa dos tormentos e é digno só da colher de

fundição.

PEER – Que invenção nova é essa que você inaugurou na

minha ausência?

FUNDIDOR – É um costume velho feito a serpente da Bíblia, e

criado para consertar as peças que saem com defeito da fábrica.

Você conhece bem o ofício, e sabe que muitas vezes a forma

produz uns resultados mal feitos de amargar. Por exemplo:

fazem botões sem furos para pregar. O que é que você fazia

nesse caso?

PEER – Jogava no lixo.

FUNDIDOR – Pois é. Teu pai, Jan Gynt, foi um perdulário

famoso: gastou, gastou até ficar sem um tostão no bolso. Mas o

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Mestre não. O Mestre – sabe? – é econômico. Zela pelas suas

riquezas. Vê lá se ele é de jogar fora uma peça com defeito, se

ainda puder aproveitá-la como matéria-prima. Você, seu destino

era brilhar como botão de ouro no paletó universal, mas você

nasceu sem os furos para te coserem no pano, entendeu?

Então, o remédio é te botarem na caixa de botões com defeitos

para você voltar de novo para a massa, compreendeu agora?

PEER – Como é que é? Você tá pensando que vai me misturar

com qualquer pé rapado aí, para conseguir produtos novos?

FUNDIDOR – Exatamente. E não pense que você é o primeiro

com quem isso acontece ou não. É assim que se faz na casa da

moeda, com o dinheiro gasto, que já está com a efígie muito

apagada, sabe?

PEER – Mas isso é coisa de avarento sórdido! Ora, meu amigo,

vê se me deixa em paz, vê! Uma moeda sem efígie, um botão

sem furos... O que é que é isso para um ricaço feito o teu

Mestre?

FUNDIDOR – Eta raça humana resistente: enquanto tá com

alma tá lutando.

PEER – Não, não e mil vezes não! Vou lutar de unhas e dentes!

Tudo menos isso!

FUNDIDOR – O que é que você quer dizer com TUDO? Qual o

que? Cria juízo, Peer! Você não vê que você é pesado demais

para subir até o céu?

PEER – Não, mas eu sou mais honesto, não aspiro a tanto. Mas

já que se trata de mim, não cedo nem um milímetro. Por que

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você não me julga pelos costumes antigos? Manda-me trancar

durante uns tempos nos domínios de Sua Majestade Muito

Corna, um século inteiro, se o juiz for severo. É uma coisa

perfeitamente suportável, afinal, são sofrimentos morais.

Sempre a gente dá um jeito, não é? Mas me dissolverem para

eu formar depois essa ou aquela parcela de um corpo estranho

– ah, isso nunca! Toda essa história de oficina de fundição, de

desaparecimento do meu eu gyntiano e irrepetível – ah, isso

tudo me enche de pavor até a medula da alma, pode crer!

FUNDIDOR – Ora, ora, meu caro Peer, não perca a cabeça por

tão pouco! Teu eu gyntiano! Que eu saiba você nunca foi você

mesmo. Então, morrer completamente vai lá mudar alguma

coisa?

PEER – Nunca fui eu mesmo! Ha, ha, ha... Você me faz dar

risada. No fim vocês vão ver que Peer Gynt nunca deixou de ser

Peer Gynt. Deixa disso, fundidor. Você tá julgando feito cego.

Pode me virar pelo avesso, me examinar detrás para diante, que

você só acha Peer e mais Peer e nada mais senão Peer.

FUNDIDOR – Não é possível. Olha aqui as ordens que eu

recebi por escrito: ‘procurar Peer Gynt, que falhou na missão, e

deve - como produto fracassado - ser fundido de novo no

caldeirão’.

PEER – Que bobagem! Deve ser engano, nome parecido ou

coisa desse gênero. Está escrito mesmo Peer, aí? Tem certeza

que não diz Rasmus ou Jan?

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FUNDIDOR – Esses? Xi!... Faz um tempão que já fundi esses!

Vamos deixar de prosa: seja um menino bem comportado que é

para a gente não perder tempo!

PEER – Ah, pois sim, vá esperando. Você já pensou que beleza,

se amanhã percebem que houve engano, erro de pessoa? Olha

lá, hein? Vê bem tua responsabilidade, se você se meter numa

enrascada!

FUNDIDOR – Tenho um documento para me garantir.

PEER – Pelo menos me dá um tempinho a mais de tolerância.

FUNDIDOR – Para fazer o quê?

PEER – Para provar que a vida inteira eu fui fiel a mim mesmo.

Afinal, a questão toda é essa.

FUNDIDOR – Bom, e como é que você vai provar isso?

PEER – Apresentando certificado, testemunhas.

FUNDIDOR – Receio que o Mestre não vai se impressionar com

isso nem um pouco.

PEER – Isso é impossível. Aliás, quem viver, verá. Ora, vamos,

meu amigo, me vende fiado um pouco de mim mesmo, por

pouco tempo mais. Eu volto já, já! A gente só nasce uma vez e

tem que cuidar muito bem da pele: então, você concorda?

FUNDIDOR – Está bem, vá lá. Pode ir. Mas lembre-se, que

temos um encontro marcado na próxima encruzilhada, hein?

(Peer foge. Outra parte da floresta. Apertando o passo.) Está

escrito: ‘tempo é dinheiro’. Se ao menos eu soubesse onde é

que as estradas se cruzam. Será perto, será longe daqui? Tô

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com os pés em brasa! Uma testemunha! Uma testemunha!

Onde é que vou achar uma nessa floresta? É impossível. Quem

quiser que tente! (Um velhinho, todo encurvado, vem de

encontro a ele, capengando, com um cajado na mão e um

saco nas costas.).

O VELHO (Parando) – Um vintém, meu bom senhor, para um

pobre diabo largado no mundo.

PEER – Desculpe, não tenho trocado.

VELHO – Oh, meu príncipe Peer! Olha só aonde viemos nos

encontrar de novo!

PEER – Você quem é?

VELHO – Ele não se lembra mais do Velho de Ronden...

PEER – O que? Quer dizer que você é...

VELHO – O Velho de Dovre, paizinho meu!

PEER – O Velho de Dovre! É sério? Responde: você é mesmo o

Velho de Dovre?

VELHO – De alto a baixo! Fico me arrastando por aí pelas

estradas, faminto que nem lobo!

PEER – Tralalá!... Arranjei uma testemunha, e que testemunha!

VELHO – Vossa Senhoria embranqueceu depois que nos vimos,

hein?

PEER – Meu querido sogro, a gente se gasta com o passar dos

anos. Mas, vamos deixar de lado nossas velhas pendências.

Naquele dia eu estava doido.

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VELHO – Ah, é verdade, é verdade. Vossa Senhoria era jovem.

A mocidade faz a gente fazer muita coisa! Mas Vossa Senhoria

agiu com muita sabedoria ao rejeitar a noiva. Nem sabe quanta

vergonha e quanta preocupação se poupou com isso. Porque

ela acabou muito, mas muito mal mesmo.

PEER – Não diga!

VELHO – Digo. Ela virou a cabeça de vez. Sabe o que fez? Foi

morar com Trond.

PEER – Que Trond?

VELHO – O diabinho!

PEER – Ah, já sei, aquele de quem raptei uma pastora?

VELHO – Meu netinho, hoje em dia, é um rapagão e tanto, que

ajuda a povoar o país com a sua descendência.

PEER – Chega de conversa fiada, meu caro. Estou preocupado

com outras coisas. Estou em um apuro terrível e preciso de um

depoimento ou de um certificado. Meu sogro, você bem que

podia me dar um. E uma gorjeta é fácil de dar.

VELHO – O que? Está falando a sério? Eu poderia ser útil a Sua

Senhoria? Espero ter uma recompensa decente.

PEER – Como não? Apesar de eu estar um pouco apertado de

dinheiro agora, e obrigado a renunciar a quase tudo... Mas

escute o que é: você se lembra da noite em que eu apareci em

Ronden, como candidato à mão da sua filha?

VELHO – Claro que me lembro meu príncipe!

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PEER – Deixa para lá essa história de príncipe e vamos tratar

do que interessa. Por bem ou por mal, você queria falsear minha

vista, fazendo uma incisão na minha córnea e me transformar de

Peer Gynt em duende. E eu o que fiz? Resisti, jurando que

nunca deixaria de ser quem eu era. Renunciei a tudo: amor,

poderio, honra – para me conservar como eu era. Pois bem: é

isso que você deve confirmar sob juramento solene.

VELHO – Ah, isso, infelizmente é impossível, completamente

impossível.

PEER – O que é que você quer dizer?

VELHO – Não vai querer que eu seja perjuro! E o rabo de Diabo

que você colocou e o hidromel que tomou. Você não se lembra

mais, não é?

PEER – Ah é: você me tentou de mil jeitos, mas eu me recusei a

dar o passo decisivo. E, em tudo na vida, é o fim que conta. É

por ele que se reconhece quem é homem.

VELHO – Mas é justamente o fim que te desmente.

PEER – O que é que você tá inventando aí?

VELHO – Ao deixar Ronden, você partiu com a minha divisa

escrita atrás da orelha.

PEER – Tua divisa?

VELHO – Sim, senhor: aquela palavra forte e clara que eu te

ditei.

PEER – Que palavra?

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VELHO – A que diferencia os homens dos demônios: ‘Troll,

basta a ti mesmo!’

PEER (Dando um passo atrás) – ‘Basta a ti mesmo!’

VELHO – Pois é. E depois você pôs em prática essa máxima

com todo o empenho da tua alma.

PEER – Eu? Peer Gynt?

VELHO (Chorando) – Ah, que ingrato! Em segredo você

sempre viveu como um demônio. A máxima que te dei foi que te

abriu os caminhos na vida. Ela é que te deu grandeza e

opulência. E agora você vem nos renegar, a mim e à minha

máxima tão benfeitora!...

PEER – ‘Basta a ti mesmo!’... Vivi como demônio... Como

egoísta! Qual: isso tudo é disparate!

VELHO (Tirando do bolso um embrulho de jornais antigos) –

Você pensa que nós não temos jornais também? Espera só.

Você vai ver preto no branco, os elogios que te fazem o

‘Mensageiro de Blocksberg’ e o ‘Eco de Hekfield’. E isso, no dia

mesmo de tua partida. Quer ler os artigos, Peer? Eu te

empresto. Olha aqui um, assinado: ‘Pata de Cabra’. Olha outro,

intitulado: ‘O Espírito Nacional na Terra dos Duendes’. O autor

demonstra que não tem importância ter rabo e chifre – o que

vale mesmo é o couro da pele humana. Além do que, ele conclui

dizendo: “nosso ‘Basta a Ti Mesmo’ essa é a marca

inconfundível dos duendes. Cada homem que a adotar como

lema é um dos nossos.” E cita você como exemplo.

PEER – Um duende, eu?

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VELHO – Para que esse espanto? É uma coisa tão clara quanto

o dia!

PEER – Então não mudava nada se eu ficasse onde estava,

podia ficar tranquilamente lá em Ronden. Ia me poupar muito

trabalho e muita sola de sapato. Peer Gynt... um duende! Deixa

de histórias, isso tudo é mentira, é brincadeira! Bem, adeus,

então! Toma aqui um vintém para comprar fumo.

VELHO – Só mais um minuto, meu bom príncipe Peer!

PEER – Me deixa! Você ou está louco ou ficou caduco. Vai

procurar um hospital, vai!

VELHO – Ah, bem que eu queria! Mas já te disse: meu filho

encheu o país com sua numerosa descendência. O poder está

nas mãos deles e eles dizem que eu sou um personagem

inventado, irreal. São sempre os da família da gente que nos

traem. É uma verdade que eu amarguei para aprender na

própria pele. Pobre diabo que eu sou! É duro, sabe? Passar por

um personagem inventado.

PEER – Meu caro, você não é o primeiro a agüentar uma coisa

dessas.

VELHO – Nós que não temos nem aposentadoria nem Caixa

Econômica. Foram coisas que não deram certo lá nos Ronden,

imagine só.

PEER – Ah, não é para menos! Com esse lema satânico: ‘basta

a ti mesmo!’.

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VELHO – Ah, Vossa Senhoria não tem motivos para se

alimentar desse lema. De um jeito ou de outro logo achará modo

de...

PEER – Meu bom homem, o senhor está enganado de fio a

pavio. Estou, como se costuma dizer, sem ter onde cair morto.

VELHO – Oh, é impossível! Vossa Senhoria sem um vintém?

PEER – Completamente ‘liso’. Empenhei todos os meus

principados. E são vocês, malditos demônios, os culpados disso.

É assim que acabam os que andam em má companhia.

VELHO – O que o senhor está me dizendo? Então, adeus

minhas esperanças! Adeus! Vou tentar me arrastar até a aldeia.

PEER – O que você vai fazer na aldeia?

VELHO – Vou ver se me dão trabalho em algum teatro. Agora

estão muito em moda, os tipos patrióticos.

PEER – Então, boa viagem! Dê lembranças a todos por mim. Se

eu conseguir dar um jeito na minha vida, seguirei o mesmo

rumo. Aliás, estou escrevendo uma farsa que é ao mesmo

tempo profunda e um bocado louca. Se chama ‘SIC TRANSIT

GLORIA MUNDI’. Para os que não sabem latim: ‘ASSIM SE

ESBOROA A GLÓRIA DO MUNDO’. (Volta a correr pela

estrada afora. O Velho de Dovre ainda grita palavras em sua

direção, que se perdem ao longe. Chega a uma

encruzilhada.) Pois é, Peer, você tá no buraco mesmo! Com

essa história de ‘Basta a ti mesmo’, você levou foi o chute final,

sabe? Tua canoa tá vazando de tudo que é lado! O melhor é

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mesmo se agarrar em qualquer balsa por aí. Tudo, menos ser

confundido com o resto dessas ruínas vivas...

FUNDIDOR (Detendo-o na encruzilhada) – Então, Peer Gynt:

onde está o teu certificado?

PEER – Puxa, já cheguei na encruzilhada? Que pressa, hein?

FUNDIDOR – Eu leio no teu rosto como se fosse um livro

aberto. Sei muito bem o que você está querendo dizer.

PEER – Sabe como é, não é? É um caso bastante complicado.

Eu decidi renunciar a ser eu mesmo. Como provar isso ia ser um

troço meio difícil, deixo de lado esse lado da questão. Mas há

pouquinho, andando em meio a essa solidão toda, senti, sei lá,

assim, um peso na consciência. ‘Peer’ – eu disse para mim

mesmo – ‘você não passa de um grandessíssimo pecador’.

FUNDIDOR – Ha, ha! Estamos voltando ao ponto de partida!

PEER – Que nada, homem! Eu disse um grande pecador, mas

não só por causa do que eu fiz não, mas por causa também dos

pensamentos que tive; das palavras que eu disse. No

estrangeiro, fique sabendo, levei uma vida infernal, entendeu?

FUNDIDOR – Não duvido. Mas o que eu quero é o certificado.

PEER – Tá certo! Me dá só mais um prazo, curto! Vou procurar

o Pastor, me confesso num abrir e fechar de olhos e te trago,

um certificado desse tamanho!

FUNDIDOR – Se você me trouxer, é claro que você escapa de

virar material de fundição. Mas as ordens que eu recebi...

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PEER – Ora, um documento já todo comido de traça, pelo que

estou vendo! É do tempo em que eu levava uma vida insossa,

sem responsabilidade, brincando de Profeta e acreditando no

destino. Então, me dá o prazo?

FUNDIDOR – Dou, mas...

PEER – Vamos, meu caro, seja camarada. Aposto que você não

tem muita coisa para fazer. Nossa região tem um ar tão gostoso,

leve. É famoso para prolongar a vida dos habitantes.

‘Raramente se morre nesse vale’, como dizia sempre o Cura de

Justedal.

FUNDIDOR – Tá bom: então só até a próxima encruzilhada.

Mas é a última, hein?

PEER – Um padre! Nem que eu tenha que passar pelo fogo

para achar um!

Uma ladeira (encosta de montanha) recoberta de urzes. Um

atalho meândrico conduz até o topo da colina.

PEER – ‘Sempre pode servir para qualquer coisa’, era o que

Esbing costumava dizer do sapato velho. Quem era capaz de

prever que a gente um dia ia ser salva pelos próprios pecados?

Meu Deus, não é que isso me adiante lá muita coisa, não! Para

falar a verdade, eu caio da frigideira no fogo. Mas que bem me

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importa! ‘Enquanto houver vida sempre há esperança’. Eu me

agarro é na consolação que esse pensamento me traz. (Uma

figura magra, vestida de padre, abotoada a batina até o

queixo, desce correndo a colina com uma rede de pesca às

costas.) Quem vem lá? Um padre carregando uma rede de

pescar? Epa! Já vi que eu sou mesmo o filhado da sorte! Boa

tarde, senhor pastor! Que estrada ruim é esta, não é verdade?

A FIGURA MAGRA – Sem dúvida, sem dúvida. Mas o que a

gente não faz para colher uma alma?

PEER – Ah, apareceu um candidato a ir para o céu, é?

A FIGURA – Não. Acho que vou tomar o caminho oposto.

PEER – Será que o senhor me permite, senhor Pastor,

acompanhar Vossa Reverendíssima um pedaço do caminho?

A FIGURA – Com muito prazer. Sua companhia é muito

agradável.

PEER – Estou com o coração tão pesado!

A FIGURA – Oh, então desabafe, desabafe!

PEER – Diante de Vossa Reverendíssima está um homem

sério. Sempre respeitei a lei. Nunca me puseram no xadrez. Mas

o senhor sabe: às vezes a gente tropeça, sem querer...

A FIGURA – Ai de nós seres humanos! Está aí uma coisa que

acontece até com as melhores pessoas!...

PEER – Não é? E essas coisinhas de nada...

A FIGURA – Ah, são só coisinhas de nada, então?

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PEER – Claro. Nunca pratiquei o pecado por atacado, só assim,

a varejo.

A FIGURA – Nesse caso, meu caro, faça o favor de me deixar

em paz. Acho que está me confundindo com outra pessoa. O

senhor está olhando para as minhas mãos. O que é que o

senhor está vendo nelas?

PEER – Que suas unhas estão crescendo fora do normal.

A FIGURA – E agora olhe os meus pés. Então?

PEER (Fazendo um gesto) – Esse pé é assim mesmo, é?

A FIGURA – É um dos meus orgulhos.

PEER (Tirando o chapéu) – Eu era capaz de jurar que o senhor

era padre. Vai ver, tenho a honra de estar... Bom, é melhor

assim! Quem pode entrar pela porta da frente não vai se

contentar com a porta da cozinha. É melhor falar com o Rei,

diretamente, do que com os ministros.

A FIGURA – Permita-me apertar sua mão! O senhor realmente

parece uma pessoa sem preconceitos. Então, meu caro, vamos

lá: em que posso ajudá-lo? Desde que não me peça nem

dinheiro nem poderio!... Quero morrer enforcado se eu for capaz

de arranjá-los. O senhor não faz idéia como os negócios vão

mal! Um comércio fraquíssimo: quase não se encontram almas

à venda, a não ser assim, uma vez na vida outra na morte, um

caso isolado, é claro.

PEER – Ah, então quer dizer que a raça humana andou

melhorando?

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A FIGURA – Melhorando? Pois se é justamente o contrário!

Piorou meu caro, é uma vergonha como piorou! A maioria aqui

entre nós só serve para ser jogada na forma, para ser

refundida...

PEER – Ah é? Já ouvi falar disso... Para ser franco, é disso

mesmo que eu queria falar, sabe?

A FIGURA – Fala sem medo!

PEER – Se não for muita indiscrição, eu queria...

A FIGURA – Um quarto isolado...

PEER – O senhor adivinhou.

A FIGURA – Naturalmente, bem aquecido...

PEER – Mas não demais... Se possível, com entrada

independente, saídas livres, uma porta de serviço que quem

sabe eu mesmo poderia utilizar...

A FIGURA – Meu caro: lamento profundamente, mas o senhor

não imagina a quantidade de pedidos iguais ao seu que me

dirigem. Todo santo dia, venho buscar almas boas, prontas para

deixar este mundo.

PEER – Bem, mas levando em conta tudo que eu fiz, todas as

minhas ações, acho que tenho direito a uma entrada

independente.

A FIGURA – Mas se o senhor disse que eram coisinhas de

nada!

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PEER – Bem, até certo ponto. Me lembro, por exemplo, de ter

traficado mo mercado de escravos negros...

A FIGURA – Qual! Outros traficaram com almas e vontades

alheias, mas foram bobos e não conseguiram entrar.

PEER – Mandei estatuetas de Buda para a China.

A FIGURA – Ninharias!... Vamos perder tempo com isso! Outros

espalharam ídolos muito piores, por meio da literatura, da

cátedra universitária e do púlpito, e nem por isso nos abrimos a

porta para eles.

PEER – Mas o senhor sabe que brinquei de Profeta?

A FIGURA – No estrangeiro? Grande coisa! Olhe: se o senhor

não tiver títulos de mais peso do que esses, confesso que,

mesmo com a melhor boa vontade do mundo, não consigo

alojamento para o senhor.

PEER – Então escute só: num naufrágio, eu estava agarrado a

uma balsa. Está escrito, como o senhor sabe: ‘um náufrago se

agarra até a haste de uma planta’. E está escrito também:

‘’ninguém está tão perto de ti quanto tu mesmo’. Para encurtar a

conversa, fui meio culpado de um cozinheiro ter perdido a vida

afogado.

A FIGURA – Ou que uma cozinheira tenha perdido... outra

coisa. Meio culpado? Meio? Bobagens tudo isso! Então o senhor

pensa que nos dias de hoje nós lá temos combustível para

desperdiçar com casos insignificantes desses? Meu caro: não

fique zangado e se conforme tranquilamente com a forma de

fundição. Para que é que adiantava se eu o hospedasse? Pense

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bem. O senhor, pelo que vejo, é um homem sensato, dotado de

boa memória. Isso, eu não discuto. Mas ela só lhe traz ao

coração e ao espírito, imagens chatas, paisagens sem graça,

desenxabidas... Não faz rir nem chorar tudo o que o senhor me

contou. É uma coisa que não é carne nem peixe, no máximo, no

máximo dá é despeito.

PEER – Está escrito: ‘você não pode saber onde o sapato te

aperta, enquanto andar descalço’.

A FIGURA – É verdade. Falando de sapatos e graças às

circunstâncias, me contento com esse par desaparelhado. Ah,

isso me lembra que tenho que apertar o passo. Mandei assar

um Dito Cujo que deve ser um espetáculo e tanto. Por isso não

tenho mais tempo a perder com ninharias!

PEER – Posso saber que pecados cometeu esse indivíduo?

A FIGURA – Se não me engano, preencheu a condição principal

que exigimos para admissão: noite e dia, dia e noite, ele sempre

foi fiel a si mesmo.

PEER – Fiel a si mesmo? E isso é tudo o que se exige para

entrar lá?

A FIGURA – Depende. Lembre-se que há duas maneiras de ser

fiel a si mesmo: o direito e o avesso. Conhece a nova

descoberta que chegou de Paris: a arte de tirar retratos à luz do

sol, resultando duas provas – a positiva e a negativa? O

negativo mostra só sombras nos lugares iluminados e vice-

versa. Para o leigo, não vale nada, saiu errado. Mas vai ver é o

contrário: a figura do retrato está ali bem nítida, mas é preciso

saber ressaltá-la. A mesma coisa acontece com as almas. Há

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aquelas que - a vida inteira - só deram negativos. Mas isso não

é razão para destruir a chapa. Basta me entregar, que eu

continuo a operação. Conheço os reagentes químicos, enxofre e

outras substâncias indispensáveis. Dou banho, queimo, vaporizo

e logo fica pronta a transfiguração. A imagem aparece direitinha,

como deve ser. De negativo tiro um positivo, a não ser nos

casos como o seu, em que a chapa está meio apagada. Aí, meu

caro, adianta nem enxofre nem potássio.

PEER – E de quem é o retrato com o negativo que o senhor vai

tratar?

A FIGURA – De um tal de Peer Gynt.

PEER – Peer Gynt? Ora, já se viu! Então ele foi sempre fiel a si

mesmo, esse senhor Gynt?

A FIGURA – Ah, por esse eu boto minha mão no fogo!

PEER – E é homem digno de fé esse senhor Peer?

A FIGURA – Quem sabe? O senhor o conhece?

PEER – Bem... um pouco. Sabe, a gente conhece tantas

pessoas...

A FIGURA – Acabou-se minha hora livre. E onde é que ele

estava à última vez que o senhor o viu?

PEER – Ih, longe, lá no Cabo...

A FIGURA – Da Boa Esperança?

PEER – É. Mas, se não me engano, ele parece que ia tomar o

primeiro navio a deixar o porto...

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A FIGURA – Ah, então vou correndo atrás dele. Se eu não

chegar tarde! Ah, esse Cabo, esse Cabo! Sempre me deu ódio!

Está infestado de missionários noruegueses. (Corre na direção

sul.).

PEER – Que imbecil! Saiu numa disparada! Vai ter aquela

decepção! Mas foi um prazer mandar aquele animal para as

garras dele! E bancando o importante! Deve ter suas razões!

Não é nesse ofício que ele vai enriquecer. Vai topar é com uma

bancarrota completa! Ei, por falar nisso, eu, por acaso, estou a

salvo? Aqui estou eu, digamos assim, expulso da nobre manada

dos ‘Eu Mesmo’. (Risca o céu uma estrela cadente.)

Lembranças para o Peer Gynt, boa irmã estrela! Ah, brilhar um

momento, depois apagar-se, desaparecer assim... (Sente mais

angústia e penetra mais para dentro da névoa. Uma pausa.

Depois grita.) Lamentável pobreza da alma que volta ao nada e

se desfaz na névoa! Terra verdejante: me perdoa por ter pisado

inutilmente a relva de teus campos! Sol adorável, que

derramaste teus raios num quarto vazio, onde não tinha

ninguém para receber, tua luz, vida e calor! O chefe da casa

estava sempre ausente! Ah, terra verdejante, sol adorável, como

vocês foram bobos de alimentar e iluminar minha mãe! A

natureza é pródiga e o espírito avarento. Como é duro pagar

com a própria vida o pecado de ter nascido. Mas antes eu quero

me levantar, encher meus olhos com a visão da terra prometida.

Depois, que a neve se amontoe sobre mim e que se rabisquem

na minha tumba estas palavras: ‘aqui jaz ninguém’. E depois...

depois... aconteça o que tiver que acontecer!

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CANTO DOS FIÉIS (No caminho que conduz à igreja, no

meio do bosque) – Este é o dia radioso / Em que labaredas de

amor / Trazendo o espírito de Nosso Senhor / Desceram do céu

generoso / Elevemos até Ele nossa devoção, / Nossa alma e

nosso coração.

PEER (Inclinando-se assustado) – Não, não quero olhar para

eles! São ocos desertos ressequidos! Ah, acho que morri muito

antes que o meu corpo! (Tentando esgueirar-se pelas urzes,

chega de repente à encruzilhada.).

FUNDIDOR – Bom dia, Peer Gynt, cadê teu bilhete de

confissão?

PEER – Você não vai acreditar, mas procurei um confessor até

cansar.

FUNDIDOR – E não achou nenhum?

PEER – Só achei um fotógrafo ambulante.

FUNDIDOR – Azar o teu! O prazo terminou.

PEER – É o fim! Que cheiro de morte! Está ouvindo o pio da

coruja?

FUNDIDOR – Que nada: é o sino da manhã.

PEER (Apontando com o dedo) – E aquela luz o que é?

FUNDIDOR – Uma simples vela acesa numa cabana.

PEER – E este som, de onde vem?

FUNDIDOR – É apenas uma mulher cantando.

PEER – Então é ali que vão me dar um recibo de confissão.

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FUNDIDOR (Pegando-o pelo braço) – Vamos. Põe teus

negócios em ordem! (Os dois saíram da moita de urzes e

estão diante de uma cabana. O dia começa a raiar.).

PEER – É aqui que vou pôr meus negócios em ordem. Estou em

casa, no meu lar! Vai-te embora! Some! Teu mundo podia ser

cem vezes maior que não iam caber nele eu e os pecados que

você vai ler no meu bilhete.

FUNDIDOR – Está bem, Peer, vou te esperar na terceira

encruzilhada. Mas aí... (Afasta-se e desaparece de cena.).

PEER (Aproximando-se da cabana) – A gente vira para o lado

que virar e sempre encontra a mesma coisa. (Pára.) Não, é

muito humilhante, me desola demais voltar em casa nestas

condições! (Dá alguns passos e pára de novo.) Dá a volta,

dizia a Curva. (Ouve o canto que vem do interior da cabana.)

Não, dessa vez, vou em frente, seja o caminho que for! (Corre

para a casa no momento em que Solveig está saindo dela,

de roupa domingueira, levando na mão um missal enrolado

num lenço. Apoiada numa bengala está ainda esbelta,

aprumada e com uma expressão de meiguice no rosto. Peer

ajoelha-se no umbral da casa.) Fala a sentença a este

pecador!

SOLVEIG – É ele! É ele! Bendito seja Nosso Senhor! (Tateia

meio cega, procurando-o.).

PEER – Queixe-se! Me acusa dos meus erros e dos meus

pecados!

SOLVEIG – De você não sei de nenhum, ó meu único amor!

(Tateia ainda e acaba encontrando-o.).

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FUNDIDOR (Detrás da casa) – Vamos, Peer: teu bilhete!

PEER – Ah, grita bem alto todos os meus crimes!

SOLVEIG (Sentando-se perto dele) – Oh, você, que fez da

minha vida um cântico de amor, que Deus te abençoe por ter

voltado para perto de mim! E bendita seja a Páscoa florida que

te trouxe de volta!

PEER – Ah, estou perdido!

SOLVEIG – Existe alguém que vem te ajudar.

PEER (Mudando de opinião com um risinho) – É: perdido, a

não ser que você saiba decifrar enigmas.

SOLVEIG – Fala!

PEER – Pois bem, vou falar. Escuta só: você pode me dizer por

onde andou o Peer Gynt desde a última vez que você o viu?

SOLVEIG – Por onde ele andou?

PEER – É onde ele esteve: exatinho como Deus o marcou com

o selo da predestinação, exatinho como brotou do pensamento

divino! Pode me dizer? Senão tenho que voltar de onde saí,

desaparecer na região das névoas.

SOLVEIG (Sorrindo) – Oh, esse enigma é fácil de decifrar.

PEER – Vamos, diz o que você acha! Onde eu estive - eu

mesmo - em toda a minha plenitude e toda a minha verdade?

Onde andei - desde que nasci -, com o selo divino gravado em

mim?

SOLVEIG – Na minha fé, na minha esperança, no meu amor.

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PEER (Recuando com um salto) – O que você disse? Ah, cala

a boca! São palavras de carinho, enganadoras! Você está

falando de um filho que só existe em você, que só existe por sua

causa, que tem uma mãe só.

SOLVEIG – Então é, meu filho, sim. E ele não tem pai? Tem: o

pai dele é Aquele que perdoa, cedendo aos pedidos da mãe.

PEER (Como que iluminado interiormente, exclama) – Minha

mãe! Minha esposa! Virgem Imaculada! Me esconde, me

esconde no teu seio! (Abraça-se a ela e esconde o rosto no

seio de Solveig. Uma longa pausa. O sol nasce.).

SOLVEIG (Cantando com doçura) – Dorme em paz meu

menininho, / Vou te embalar de mansinho, / A criança no braço

da mãe sorri confiante / Para eles a vida foi feliz e passou num

instante. / Meu menino em meu seio adormece, / Como a vida é

boa, é leve como uma prece, / O menino pendeu a cabeça de

ouro / Encostada ao meu coração, meu lindo tesouro! / Assim se

passou a vida, um breve sonho de ouro! /

A VOZ DO FUNDIDOR (Detrás da cabana) – Pode deixar, vou

te esperar na próxima / Encruzilhada, Peer. / Não te digo mais

nada. /

SOLVEIG (Cantando mais alto, inundada de sol) – Eu te

embalarei de mansinho, / Apóia tua cabeça em meu peito /

Repousa e sonha - meu doce menininho / Apóia tua cabeça

assim no meu peito. /

FIM