Pef final2

3
O caminho faz-se caminhando José Luís de Matos os últimos anos, muito caminho se tem feito, muitos trilhos se têm desbravado, na luta contra o abandono escolar e o absentismo. Porém, os números de um e outro caso não são os que se desejam para uma sociedade, dita desenvolvida, democrática e com propostas diferenciadas para as diferentes situações com que a escola pública se depara. Foi o que aconteceu no Agrupamento de Escolas de Avis. Quando se identificou o absentismo escolar como um problema a merecer uma atenção especial, procedeu-se ao levantamento do número exato dos jovens que se encontravam nessa situação. Levantamento feito, chegou-se a um grupo de catorze alunos, treze deles de etnia cigana. A equipa técnico-pedagógica (Assistente Social, Animadora Sociocultural, Psicóloga e Professor responsável pelo processo equipa possível somente pelo facto de o Agrupamento ter sido inserido na rede TEIP), saiu para o terreno e iniciou contactos com estes jovens e respetivas famílias. A partir desta auscultação, algo de novo estava prestes a arrancar: um novo projeto que inserisse estes alunos num grupo com um currículo construído à luz das suas especificidades. Alguns alunos, que faziam parte da lista inicial, acabaram por ser daí retirados: alguns porque as professores das turmas onde estavam integrados consideraram que ainda não havia um desfasamento que justificasse a sua saída do grupo/turma, um outro aluno havia mudado de residência e uma aluna vivia já num concelho limítrofe (segundo informações da comunidade cigana, havia casado). Nove alunos estariam, então, prestes a integrar o grupo PEF (Programa Educativo e Formativo), constando como a ação 5 do Eixo II Outro (s) Percurso (s), o mesmo objetivo, do Programa TEIP. Porém, numa ida a um acampamento, os familiares de um jovem pediram que o seu filho também tivesse oportunidade de voltar à escola, para poder aprender «a ler e a escrever». Problema: o jovem tinha 20 anos. O sistema não estava preparado para receber, de volta, jovens de vinte anos, a não ser nos cursos de alfabetização (ter-se-ia que esperar por um número suficiente de interessados para se poder arrancar com um curso destes). A equipa técnico- pedagógica mostrou-se sensível às pretensões deste jovem e da sua família, N P E F 2 0 1 2 2 0 1 3

Transcript of Pef final2

Page 1: Pef final2

O caminho faz-se caminhando José Luís de Matos

os últimos anos, muito caminho se tem feito, muitos trilhos se

têm desbravado, na luta contra o abandono escolar e o

absentismo. Porém, os números de um e outro caso não são os

que se desejam para uma sociedade, dita desenvolvida, democrática e com

propostas diferenciadas para as diferentes situações com que a escola pública se

depara.

Foi o que aconteceu no Agrupamento de Escolas de Avis. Quando se

identificou o absentismo escolar como um problema a merecer uma atenção

especial, procedeu-se ao levantamento do número exato dos jovens que se

encontravam nessa situação.

Levantamento feito, chegou-se a um grupo de catorze alunos, treze deles

de etnia cigana. A equipa técnico-pedagógica (Assistente Social, Animadora

Sociocultural, Psicóloga e Professor responsável pelo processo – equipa possível

somente pelo facto de o Agrupamento ter sido inserido na rede TEIP), saiu para o

terreno e iniciou contactos com estes jovens e respetivas famílias.

A partir desta auscultação, algo de novo estava prestes a arrancar: um

novo projeto que inserisse estes alunos num grupo com um currículo construído à

luz das suas especificidades.

Alguns alunos, que faziam parte da lista inicial, acabaram por ser daí

retirados: alguns porque as professores das turmas onde estavam integrados

consideraram que ainda não havia um desfasamento que justificasse a sua saída

do grupo/turma, um outro aluno havia mudado de residência e uma aluna vivia já

num concelho limítrofe (segundo informações da comunidade cigana, havia

casado).

Nove alunos estariam, então, prestes a integrar o grupo PEF

(Programa Educativo e Formativo), constando como a ação 5 do Eixo II –

Outro (s) Percurso (s), o mesmo objetivo, do Programa TEIP.

Porém, numa ida a um acampamento, os familiares de um jovem pediram

que o seu filho também tivesse oportunidade de voltar à escola, para poder

aprender «a ler e a escrever». Problema: o jovem tinha 20 anos. O sistema não

estava preparado para receber, de volta, jovens de vinte anos, a não ser nos

cursos de alfabetização (ter-se-ia que esperar por um número suficiente de

interessados para se poder arrancar com um curso destes). A equipa técnico-

pedagógica mostrou-se sensível às pretensões deste jovem e da sua família,

N

P E F 2 0 1 2 2 0 1 3

Page 2: Pef final2

considerando que as portas da escola não se devem fechar a casos destes. Que

raio de sociedade «desenvolvida» e preocupada com a escolarização dos seus

cidadãos o faria?

Pois. Mas, desde logo, uma série de problemas se levantou. Não só com

este aluno, mas com a esmagadora maioria dos outros que, entretanto, haviam

desaparecido das listas dos alunos. O «sistema» não estava (não está!!) preparado

para projetos que saiam da dita «normalidade». A partir daqui foi um constante

caminhar e recuar. Problemas administrativos punham em causa todo um projeto

que mais não queria que dar a oportunidade a muitos jovens: transportes,

refeições, retirada das turmas de origem – que o programa de alunos e entidades

superiores não permitiram!!!!!! – foram alguns dos obstáculos ao arranque do

trabalho com o grupo. E assim se perderam dias!!! E, assim, estes jovens

perderam dias das suas vidas!

Enquanto se esperavam respostas, decidiu-se arrancar. Tínhamos uma

sala própria e pensámos começar por aí: com o aluno que vivia em Avis (e que

frequentava o 5ºano, ainda que com uma assiduidade irregular) partimos para um

projeto de remodelação da sala.

Com muito trabalho já feito, eis que os primeiros alunos de Benavila nos

chegam. Vêm motivados, satisfeitos por voltar à escola. A sala foi, desde logo,

uma atração para estes jovens. Então, integrámo-los de imediato no trabalho de

remodelação. Queríamos que sentissem que naquela sala ficaria um pouco de

cada um deles. (A burocracia continuou… mas eles estavam na escola!)

Com a sala preparada para o outro tipo de trabalho, pusemos a rolar o

currículo que havíamos definido para estes jovens.

A partir daí, apesar da assiduidade irregular continuar a ser um problema,

estes jovens integraram-se na comunidade educativa e passaram a sentir-se como

parte de um todo.

O trabalho de sala continuava. A participação nas atividades da escola

também. Primeiro, a participação na Feira dos Produtos, com a venda de espargos

e distribuição de uma receita cigana (Sopa de Espargos), depois, a comemoração

do Dia Internacional do Povo Cigano, com a saída dos sons ciganos para o pátio da

escola, a divulgação da bandeira e dos signos da etnia. A aproximação entre duas

culturas, há muito desconfiadas uma da outra, ia-se efetivando. Com pequenos

passos mas com importantíssimos passos. Entretanto, os pais destes jovens foram

convidados a conhecer o «seu» espaço e a partilharmos um pouco da experiência

vivida até então. Vieram em força e saíram deliciados e orgulhosos dos seus

«rapazes e raparigas».

Page 3: Pef final2

Aos nove alunos que constavam na lista inicial, acrescentou-se o jovem de

vinte anos e, mais tarde, a rapariga que havia mudado para um concelho próximo.

Oito rapazes e três raparigas era a equipa, então, formada.

Nem tudo foram rosas neste projeto. Longe disso. A acrescentar às

dificuldades reveladas quer na assiduidade quer na pontualidade juntaram-se

mais uns sobressaltos entre elementos da comunidade cigana…

E chegámos ao fim do ano letivo. Antes, porém, o grupo participou na

animação do Dia da Criança, modelando balões para delícia dos mais pequenos. A

integração e aceitação pela comunidade maioritária foi acontecendo. Aos poucos,

mas foi acontecendo!

Assim se vai ganhando uma sociedade mais justa, mais tolerante…

Com o fim do ano letivo, não vamos pôr um ponto final no projeto. Apesar

dos avanços e recuos, avançou-se, e muito. E os resultados só podem ser

considerados positivos – há compensação maior que acompanhar a alegria de

dois jovens (de 18 e 20 anos) por, finalmente, escreverem o seu nome e lerem

algumas palavras?!! Há compensação maior que ouvir estes jovens afirmarem que

querem ir em frente, que não se querem voltar a acomodar à sua situação de

minoria, que se põe à parte e que põem de parte? Há lá agora!!! Por isso, só

podemos fechar o ano com reticências…

«Filhos da estrada e do vento»? Talvez! Filhos de uma estrada construída

pedra a pedra, tentando ir para além das muitas barreiras que vai encontrando no

seu caminho. Filhos do vento? Talvez! De um vento, feito sonho, que se vai

espalhando e deixando sementes um pouco por aqui, um pouco por ali.