Pelas cidades partidas do Peru Uma viagem de arquiteto ... · quéchua, chopcca, aimará em cada...

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Pelas cidades partidas do Peru Uma viagem de arquiteto José Lira

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Pelas cidades partidas do Peru Uma viagem de arquiteto José Lira

Acabei de voltar de duas semanas no Peru. Estava lá como turista. O país é uma meca

no setor. E com ótimas razões para tal. Principalmente em sua modalidade arqueológica.

O período – como de praxe no turismo – foi curto. Ainda assim, naturalmente, sempre

saímos com algumas impressões. As minhas não são tantas, nem tão bem formadas,

talvez até meio genéricas, mas deu vontade de compartilhá-las. Recém-chegado

publiquei-as no facebook e logo alguns colegas sugeriram-me trazê-las à revista

Arquiteturismo do portal Vitruvius. A elas, juntei essa pequena coleção meio desconexa

de fotos. É que o Peru não apenas revela fraturas muito visíveis em sua paisagem, mas

escancara a sensação de ignorância sobre os países vizinhos e os povos originários da

região a que os brasileiros nos acostumamos. Sensação de ignorância e de

estranhamento ali difíceis de escapar, mesmo ao turista mais disponível à alteridade.

É comum nessas circunstâncias buscarmos algum termo de familiaridade, de

aproximação, paralelos, contrapontos com o que conhecemos. Entre os arquitetos,

inclusive – mesmo em uma viagem em que somos alvo da cortina de ferro das

mercadorias turísticas – é quase um vício desviarmos o olhar das maravilhas

monumentais, históricas, culturais, gastronômicas, da paisagem, que o Peru aliás tem de

sobra. E fixarmos aspectos meio triviais, nada excêntricos ou sem muito glamour nos

lugares visitados: tipologias construtivas recorrentes, características dos centros, dos

bairros e das periferias, a continuidade e descontinuidade dos tecidos urbanos e do

patrimônio edificado, inclusive no tempo, a qualidade dos espaços públicos, a condição

dos transportes, do saneamento, da arborização, da iluminação pública, os bairros

pobres, favelas, conjuntos habitacionais, tendências de encortiçamento e de

gentrificação, e outros temas meio sem graça ao turista que se preze. Aspectos que se

misturam à experiência da viagem, à sua ingenuidade e a suas derivas possíveis, tanto

quanto àquilo que passamos a vida discutindo enquanto arquitetos ou professores de

arquitetura e urbanismo.

Cusco é uma maravilha! Nossa Ouro Preto, ou nossa Olinda! Evidentemente mais

mourisca que qualquer cidade colonial brasileira, com seus abalcoados descomunais; e

mais misteriosa, com suas pedras, mitos e sítios incaicos por todo lado e a presença

quéchua, chopcca, aimará em cada esquina; na contaminação do europeu, do cristão, do

barroco e do mudejar pelos grafismos indígenas em todas as cores do arco-íris (a

bandeira da cidade é a bandeira gay a propósito). É de passar mal de tanta beleza! E da

altitude! Um convite a mascar folha de coca e flanar devagarinho por suas ruas, pátios e

largos. A cidade, capital do império Inca, era 4 ou 5 vezes maior do que Madrid à época

da conquista e é ainda hoje uma metrópole nos Andes. Inclusive em seu crescimento

caótico, os contrastes mais brutais entre o amplo centro histórico, tão bem preservado

quanto disneificado, e as paróquias, quebradas e encostas mais distantes, exploradas

com grande liberdade pelos especuladores de plantão e favelizadas como em toda

grande cidade latino-americana. Não à toa, quando lá chegamos, já fazia algumas

semanas que manifestações diárias de professores, estudantes e pais tomavam conta da

Praça de Armas a gritar bordão muito pertinente: "corruptos son pagados! Maestros,

olvidados!" A epítome desses descompassos é a simbiose entre o esplendor de Machu

Picchu e o mal cheiro de Águas Calientes, estreita e densa base de apoio às hordas

diárias de turistas de todo o mundo.

Os contrastes urbanos no país, ao que parece, contudo, são mais intrincados, tal a

heterogeneidade das populações naquelas bandas. E se Lima tem todos os problemas de

qualquer grande metrópole, sua topografia sociocultural é talvez das mais estratificadas

do continente. Estão ali as marcas tradicionais da mestiçagem (impressionou-me a

iconografia peruana das famigeradas "três raças" desde o século 18), da imigração

chinesa, japonesa e italiana do 19, dos fluxos gigantescos da Selva e da Serra desde os

anos 1950. Sem contar o imenso passado da chamada cultura Lima, do século 1 em

diante, que se espalha – informam-nos os arqueólogos – por mais de 300 sítios na

cidade, um milênio mais antigos que os Incas. No centro de Miraflores – um de seus

distritos mais burgueses, onde está a maioria dos hotéis – fica Huaca Pucclana, um dos

centros cerimoniais Lima de culto à deusa Mar, "la mar" como ainda hoje se referem os

pescadores da região. No feminino: caprichosa, inquieta, imprevisível como um

tsunami. Todo feito de “adobitos” sobre um promontório natural, sua estrutura sismo-

resistente composta de pirâmides, terraços e praças muradas, até os anos 1980 ainda não

havia sido descoberta, de certo modo integrando-se ao movimento da urbanização, seja

como terra disponível a invasões seja como zona das mais disputadas pelo motocross.

O que mais chama atenção em Lima são aliás essas fissuras no espaço e no tempo, essas

camadas distintas de ocupação. Certamente elas resultam dos estratos superpostos de

culturas e populações que ali se estabeleceram ao longo dos séculos, Lima, Wari,

Chimu, Ychsma e outras; da violenta segregação étnica implantada pelos espanhóis e

bem cuidada por seus descendentes; e evidentemente da avalanche de metropolização

que nas últimas décadas vem inundando a cidade de grupos das mais diversas

proveniências. Mas esse intricado terreno sociocultural é também produto dos

terremotos que há milênios vem sacudindo a cidade em intervalos de tempo

assustadoramente curtos. É que a ruína sísmica, antecipando-se ao desígnio humano,

vem definindo a modelagem e remodelagem dessa cidade como um quebra-cabeças

sempre em aberto, e que vira-e-mexe tem algumas de suas peças extraviadas. Daí seu

aspecto meio grotesco e até feio muitas vezes, com o que sua invariável cerração muito

contribui. Essa mancha espalhada e descontínua de distritos, eles mesmos uma mistura

heteróclita de retalhos mal costurados; quadras coloniais mais ou menos bem

preservadas em que despontam reconstruções fake ou ainda mais apressadas e

cogumelos de concreto armado; estranhos vazios, às vezes enormes, no meio de quadras

densas à europeia e silhuetas urbanas desdentadas; imensas periferias nas franjas do

núcleo central como Rímac, La Victoria, San Borja, San Cristobal, com suas ruas

coloridas, movimentadas e esburacadas, conjuntos habitacionais mal construídos, senão

mal conservados como o sensacional Matute (uma das primeiras unidades vecinales de

Lima, iniciada no começo dos anos 50 pela equipe de Santiago Agurto, e

complementada nos 60 por Enrique Ciriani), a informalidade em todo lado, e não

somente nas apropriações da terra, a precariedade dos serviços e espaços públicos, os

meios de transporte coletivo desastrosos; as urbanizações-jardim impecáveis, como em

San Isidro e Miraflores, tomadas por infinitas vilas residenciais em estilo missões com

seus pátios coletivos, habitações unifamiliares modernas de ótima qualidade, edifícios

de apartamentos que dão notícia de um mercado imobiliário por alguma razão menos

predatório que o nosso, talvez porque menos imponente, ainda que entremeadas por

zonas tugurizadas; antigos balneários e vilas pesqueiras como Barranco, Magdalena e

Pueblo Libre, cuja proximidade do centro não impede que guardem características

sócio-espaciais muito próprias, inclusive do ponto de vista tipológico, como as casas de

pátios frontais abertos à rua, as pequenas pracinhas de miolo de quadra ou as bodegas

chanfradas de esquina.

Uns sobre os outros, mundos desencontrados, pedaços que não se encaixam assim tão

bem, coloniais, antigos, burgueses, populares, criolos, indígenas, contemporâneos,

planejados ou não, construindo-se e precipitando-se uns sobre os outros, construções

sobre construções, ruínas sobre ruínas, vazios perturbadores no meio de toda aquela

atividade humana, infra-humana e sobre-humana. Mesmo ao viajante brasileiro, há algo

ali de estranho, irredutível ao exótico e não muito pitoresco, que embaralha o que se

entende por cidade, por modernidade urbana. Senti algo parecido na cidade do México,

em Roma, em Los Angeles, em Varsóvia. São cidades de fato muito diferentes mas em

comum parecem sabotar toda teoria, toda imagem, todo modelo de que por ventura

lancemos mão para entende-las. E é isso que as torna tão fascinantes, abertas, eternas,

ainda que nem sempre belas, ou talvez de uma beleza outra, que se transforma a cada

passo e nos desloca ao percorre-las, refazendo-se em nosso olhar.

Não sei o que será de Lima, de Cusco ou do Peru nos próximos anos. Diz-se que ao

contrário dos países vizinhos eles estão se modernizando ano a ano, e que tal

crescimento não se faz sem envolver seus dirigentes em escândalos de corrupção (todos

os cinco últimos presidentes, inclusive o atual, ou estão sendo investigados ou estão na

cadeia). Mas o que sei é que por lá existem forças subterrâneas em plena atividade,

ainda que vigorosas tendências de superfície pareçam o tempo todo devastá-las. Talvez

porque lá, como em poucos lugares do mundo, conheça-se o poder incontrastável da

natureza, dos terremotos, dos tsunamis, das serpentes, dos pumas e dos condores.

Que viva el Peru!

sobre o autor

José Tavares Correia de Lira é professor livre-docente do departamento de história da

arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação

Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e

organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac

Naify, 2004, com Rosa Artigas).