Pensamento Teórico Em Sociologia

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  • PENSAMENTO TERICO EM SOCIOLOGIA

    O presente livro apresenta de forma eminentemente didtica os trs principais temas da teoria sociolgica hodierna: a teoria da troca, o funcionalismo e a interao simblica. Cada uma dessas teorias adota uma diferente abordagem para a tarefa de explicar a ordem social. Alm de descrever o que essas teorias enunciam, W il l ia m Sk id m o r e expe minuciosamente os problemas tericos com que se defrontam os principais socilogos por ele estudados, como R o b e r t M e r t o n , T a l c o t t P a r s o n s , G eo r g e H. M e a d , H e r b e r t B l u m e r , G. C. H o m a n s e outros.

    A teoria aqui apresentada como um empreendimento intelectual criativo, capaz de sugerir idias, modelos, hipteses, leis e tipologias que cumprir ao analista examinar e comprovar, de uma perspectiva crtica, quer atravs de experimentos empricos, quer de pesquisas de campo. O livro inclui uma reviso crtica dos problemas significativos e das concluses aduzidas da histria e da filosofia da teoria sociolgica; entretanto, a nfase recai sobre o pensamento terico atual. Cada captulo descritivo acompanhado de uma recenso da literatura mais representativa e o autor explica as relaes existentes entre a pesquisa e a rea terica em que ela se fundamentou. Alm disso, cada captulo descritivo inclui tambm uma crtica que tem por objetivo mostrar as virtudes e as fraquezas da respectiva teoria, pois, como W il l ia m Sk id m o r e adverte, os estudantes devem saber que todas as teorias so deficientes em, pelo menos, alguns aspectos, e o pensamento terico deve incluir uma ?preciao adequada dos comentrios crticos acerca de cada ponto de vista concorrente .

    O autor assumiu uma posio estritamente didtica, na medida em que no opta por uma ideologia especial em sua exposio nem nas crticas que formula s diversas teorias analisadas. Finalmente, oferecida uma breve descrio dos progressos mais recentes no pensamento terico, com destaque para conceitos bsicos como os de formalizao , etnometodologia , regra de comportamento etc.

    W il l ia m S k id m o r e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de New Brunswick e autor de Sociologys Model o / Man e Social Behaviour and Competition.

  • W i l l i a m Sk id m o r e

    (k

    Traduo de

    A l b e r t o O l i v a e Luiz A l b e r t o C e r q u e i r a

    Z A H A R E D I T O R E S

    RIO DE JA N E IR O

  • Ttulo original:

    Theoretical Thinking in Sociology

    Traduzido da primeira ediSo inglesa, publicada em 1975 pela Cambridge University Press, Londres, Inglaterra

    Copyright 1975 by Cambridge University Press

    capa de R I C O

    1 9 7 6

    Direitos para a lngua portuguesa adquiridos por

    Z A H A R E D I T O R E S

    Caixa Postal 207, ZC-00, Rio que se reservam a propriedade desta verso

    Impresso no Brasil

  • ndice

    Pgs.

    Prefcio ...................................................................................................... 15

    1 Teoria Sociolgica ..................................................................................... 17

    I. O termo teoria ....................................................................... 17

    II. Teoria e prtica ........................................................................... 19

    A . A teoria como sugestiva de idias ............................. 19B. A teoria com o sugestiva de modelos ........................... 21C. Os modelos como sugestivos de teorias ..................... 23D . As teorias como produtoras de hipteses ................... 25

    III. Tipos de teoria e tipologias de teoria ................................. 29

    IV . Os objetivos da teoria ............................................................... 32

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; Questes disser-tativas; Para leitura e estudo complementares ............... 36

    2 Problemas Tericos Chave ..................................................................... 38

    I. Ordem e mudana ..................................................................... 39

    A . Ordem .................................................................................. 39B . Mudana ............................................................................. 44

    II. Subjetivo e objetivo ................................................................... 46III. O lugar do indivduo na teoria sociolgica ....................... 50

  • IV. Funo e causa ........................................................................... 54

    V . Teoria sociolgica e valores .................................................... 58V I. Histria e teoria sociolgica .................................................... 62

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; questes disser-tativas; Para leitura e estudo complementares ............... 64

    3 Tipos de Teorias em Sociologia e o Problema da Verificao . . . 66

    I. Introduo ................................................................................... 66II. Explicao e ideal ..................................................................... 66

    III. Como as explicaes tm sido julgadas ............................. 67IV . Descrio e explicao ............................................................... 69

    A . Termos observacionais ...................................................... 69B . Construtos ........................................................................... 70

    1. Termos primitivos e analogias ............................. 712. Termos primitivos, analogias e descrio .......... 79

    C. Termos tericos ou explicativos ................................... 80

    V . Descrio e explicao: um sumrio .................................... 83VI. Tipos de teorias ........................................................................... 84

    A . Teorias hipottico-dedutivas ou simplesmente dedutivas ......................................................................... -___ 85

    B. Teorias padro ou concatenadas .................................... 93

    1. Reducionismo: formas mutveis de uma dadateoria ....................................................................... 95

    C. Perspectivas ....................................................................... 96

    VII. Verificao de teorias ................................................................. 98

    A . Verificao das teorias dedutivas ................................. 98B. Verificao das teorias padro ...................................... 102

    VIII. Concluso ..................................................................................... 104

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; questes disser-tativas; Para leitura e estudo complementares ............. 105

    4 Teoria da Troca ....................................................................................... 107

    I

    (, NDICE

  • I . Introduo ................................................................................... 107

    II. Origens do uso sociolgico do termo troca ................... 107

    III. Um enunciado geral dos princpios da teoria sociolgicada troca ..................................................................................... 112

    A . A unidade de anlise na teoria da troca ................... 113B. O motivo na teoria da troca ................................. .. 113C. Lucro ................................................................................... 114D . Voluntarismo ..................................................................... 115E. Aprovao social ................................................................ 116

    NDICE 7

    IV . A teoria geral da ordem social baseada nos fundamentosda troca ........................................................................................... 117

    A . Posio e valor ....................................... .......................... ......118B . O valor comparativo ...................................................... ......119C. Explicando o grupo ........................................... .......... ......119

    V . A teoria dedutiva da troca: as proposies de G. C.Homans ..................................................................................... ......122

    A . As proposies ...........................................................................123B . As dedues ...............................................................................130C. O institucional e o subinstitucional na teoria de

    Homans ..................................................................................... ......133

    V I. A troca e a psicologia social de grupos: Thibaut e Kelley 135V II. Troca e poder: o uso que Blau faz dos princpios da troca 140

    A . O interesse de Blau pela troca ............................................140B. Trocas no-equilibradas: algumas conseqncias . . . 141C. Tipos de recompensa e tipos de relaes ........................... 143D . Microestruturas e macroestruturas .................................... 145

    1. Valores e estrutura social ..............................................146E. Ulteriores analogias com a teoria econmica usada

    por Blau ............................................................................. ......1471. A lei da utilidade marginal decrescente ...................1482. Curvas de indiferena .............................................. ......1493. Monoplio bilateral: a troca entre duas pessoas 151

    VIII. A pesquisa representativa resultante da teoria da troca . . 154IX . Algumas observaes crticas sobre a teoria da troca . . . 157

    A . a teoria da troca falsificvel? ........................................158B . Pode a oferta de valor ser quantificada? .....................159C. Insensibilidade da teoria da troca explicao so

    ciolgica estrutural ........................................................ ......162D . O modelo de homem da teoria da troca ................... ......164E. Explicando o grupo ...........................................................

  • 8 n d i c e

    X . Concluso ....................................................................................... ......167Conceitos chave; Tpicos para discusso; questes disser-

    tativas; Para leitura e estudo complementares .....................168

    5 Funcionalismo ......................................................................................... ......172

    I. Introduo ..........................................................................................172

    II. O modelo funcional .........................................................................174

    A . Funo ................................................................................. ......174B. Estrutura ............................................................................. ......175

    1. Nveis de estrutura .................................................. ......1762. Sistemas ....................................................................... ......176

    C. Integrao ........................................................................... ......1801. Evoluo social .................................................................1802. Requisitos funcionais ................................................ ......183

    D . Equilbrio........................................................................................1861. Equilbrio, evoluo social e mudana social . . 187

    E. Valores ........................................................................................1881. Socializao e motivao .......................................... ......189

    F . Que espcie de explicao d o funcionalismo? . . . . 1901. Teoria padro, pensamento categorial e realidade 1902. O funcionalismo como ideologia ........................... ......191

    m . Robert Merton e o funcionalismo .......................................... ......193

    A . Estruturas ........................................................................... ......1931. Objetivos e meios para o sucesso ......................... ......194

    B . Integrao ........................................................................... ......195C. A tipologia dos modos de adaptao individual ...............196D . Funo e disfuno .................................................................197

    IV . M. J. Levy e a anlise do requisito estrutural-funcional . . 198A . A nfase emprica de Levy ............................................ ......198B. O que se exige? .........................................................................198C. Requisitos funcionais ...............................................................200D . Requisitos funcionais e diferenciao de p a p e l.................201

    V . O tratamento da estratificao dado pelo funcionalismo . . 204A . Estratificao ..................................................................... ......204B. Estratificao e valores .................................................... ......207

    V I. Talcott Parsons ............................................................................. ......208

    A . O objetivo ........................................................................... ......209B. Primeiros ingredientes do sistema parsoniano .................210

    1. Voluntarismo ...................................................................2102. Racionalidade ...................................................................2103. Valor atitudes ...................................................... ......2114. Sntese preliminar .............................................................212

    C. Sistemas e ambientes ...............................................................213

  • 1. As variveis padro .................................................. 215Problemas do sistema ...................................................... 216

    D . Que espcies de sistemas existem? ............................. 221E . Relaes cibernticas entre as quatro partes do sis

    tema geral ......................................................................... 226F . Evoluo social ................................................................... 231

    V II. Pesquisa e funcionalismo .......................................................... 236

    A . Nveis de pesquisa ............................................................ 236B. Pesquisa de alternativas funcionais ............................. 238C. Pesquisa de tipos de comunidades e sociedades . . . . 240D . Pesquisa da evoluo social .......................................... 242

    V III. Observaes crticas teoria funcionalista ......................... 245

    A . o funcionalismo uma teoria ou um modelo? . . . . 245B. Crticas ao funcionalismo como teoria ....................... 246

    1. Crticas lgicas e tericas ...................................... 247C. Crticas substncia da teoria funcional ................... 253

    1. O conceito supersocializado de homem ............... 2532 . Poder, fora e voluntarismo .................................... 2543. Mudana e conflito .................................................. 2554. Crticas teoria da estratificao ....................... 2565. o funcionalismo conservador? ......................... 257

    IX . Concluso ................................................................................... 259

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; Questes disser-tativas; Para leitura e estudo complementares ............... 260

    6 Interacionismo Simblico ......................................................................... 263

    I . Introduo ................................................................................. 263

    II. A filosofia pragmtica e o interacionismo simblico . . . . 267

    A . O problema mente-corpo ................................................ 267B . Rejeio da metafsica .................................................... 269C. Smbolos e comunicao .................................................. 270

    1. Centralidade do conceito de com unicao........... 2702. A arte como exemplo dessa viso de comunica

    o simblica .......................................................... 2723. Linguagem ................................................................. 273

    D . O ato; a conduta social .................................................. 273E . O self ...................................................................................... 275F . O self como objeto ............................................................. 277

    D l. George Herbert Mead ............................................................... 279

    A . Paralelismo psicolgico e comportamentalismo . . . . 281B. Mente, gestos, significao e significado ..................... 283

    NDICE 9

  • C. Self ........................................................................................ 2871. O eu ......................................................................... 2872. O mim ..................................................................... 2883. A aquisio do self: o representar-papel e o assu-

    mir-papel e a teoria dos estgios ..................... 289D . Sociedade ............................................................................. 294

    IV. A influncia de Mead ............................................................ 297

    A . Herbert Blumer ........................................................ .. 2971. A viso de Blumer da sociedade ....................... 2982. A crtica de Blumer ao mtodo cientfico em

    Sociologia ............................................................... 300B. Os interacionistas simblicos como positivistas ......... 303

    1. Operacionalismo aplicado ao interacionismo simblico ................................................ ...................... 304

    2. O problema dos conceitos no-empricos ........... 305C. A questo da motivao .................................................. 307

    V . Pesquisa e interacionismo simblico ...................................... 309

    A . Usando conceitos sociolgicos sensibilizadores ......... 312B. Investigaes empricas sobre o self ............................. 316

    VI. Concluso e crtica .................................................... ................ 320

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; Questes disser-tativas; Para leitura e estudo complementares ............... 325

    ri7 Formalizao; Construo de Teoria; Etnometodologia ................. 328

    I. Introduo .................................................................................... 328

    II. Formalizao de teorias ............................................................. 329

    A . Objetivos da formalizao .............................................. 329B. Benefcios decorrentes das formalizaes das teorias 332C. Os procedimentos de formalizao ................................ 333

    1. Definies ................................................................... 3332. Enunciados ................................................................. 334

    III. Construo da teoria ................................................................... 335

    A . Formao do conceito ...................................................... 338B. Conceitos de ligao ......................................................... 339C. Enunciados tericos adicionais ........................................ 339

    IV. Etnometodologia ......................................................................... 340

    A . O problema da ordem redifinida .................................. 341B. A fala..................................................................................... 343C. Estrutura social ................................................................... 345D. Tccnicas de pesquisa ........................................................ 346

    10 n d i c e

  • NDICE 11

    V . Formalizaes, construo da teoria e etnometodologiacom o reaes sabedoria herdada .................................... 347

    V I. Concluso ..................................................................................... 350

    Conceitos chave; Tpicos para discusso; Questes disser- tativas; Para leitura e estudo complementares ............... 351

  • AThe Anchorage

    eTodos os Seus Habitantes

  • Prefcio

    A experincia sugere que os estudantes de Sociologia de todos os nveis tm muito em comum. Em geral, necessitam estar convencidos de que a teoria sociolgica merece ser estudada em razo de si mesma e no como exigncia para uma graduao. Necessitam saber algo acerca de como julgar a teoria como distinguir entre o que serve e o que no serve no mundo conceituai da Sociologia. Necessitam, acima de tudo, conhecer o objetivo da teoria: explicar a ordem social, de tal modo que possam ver melhor qual o propsito de todo o empreendimento e para que possam estimar seu progresso.

    Quando algum se dedica ao estudo da teoria sociolgica, no deseja ser sufocado por detalhes nem ser afrontado pela superficialidade. Procura-se uma viso substancial da teoria, de modo que um posterior trabalho de campo possa proceder-se de acordo com slidos entendimentos preliminares. A maioria dos estudantes gostaria tambm de conhecer a relao da teoria sociolgica com a pesquisa e de ter exemplos concretos a respeito de como a teoria e a pesquisa contribuem para alcanar o sucesso nessa relao. Finalmente, para ganhar perspectiva, os estudantes tm de saber que todas as teorias so deficientes em pelo menos alguns aspectos, e que o pensamento terico inclui uin9 apreciao adequada de observaes crticas acerca de cada ponto de vista em questo.

    Pensamento Terico em Sociologia tenta falar dessas exigtf cias. Os primeiros trs captulos consideram a idia da teoria sociolgica e seu uso, examinam alguns mtodos de teorizao e alguns problemas tericos, e expem entendimentos bsicos da Filosofia da Cincia Social acerca da relao de evidncia com a teoria, acerca da estrutura lgica da teoria e acerca dos procedimentos metodolgicos apropriados a vrios estilos tericos. Esses

  • 16 P r e f c i o

    primeiros trs captulos esboam os traos distintivos das trs espcies de teoria a serem descritas posteriormente: teoria dedutiva, teoria padro e perspectivas.

    Os captulos 4 a 6 examinam essas teorias mais detalhadamente. 0 Captulo 4 descreve a estrutura terico-dedutiva usando como exemplo a teoria da troca. 0 Captulo 5- examina a teoria padro descrevendo o funcionalismo. 0 Captulo 6 descreve o interacionismo simblico como uma perspectiva. Finalmente, o Captulo 7 delineia outras atividades dos tericos em Sociologia e volta questo da ordem social atravs da descrio de como a etnometodologia trata desse problema. Esses captulos so independentes o bastante para serem lidos separadamente e em qualquer ordem; mas o autor espera que o livro seja lido do incio ao fim, ou pelo menos que os primeiros trs captulos sejam familiares ao leitor antes de qualquer um dos quatro seguintes. Isso porque os captulos subseqentes foram planejados como exemplos da teoria ativa das foras, fraquezas e estilos de pensamento que os primeiros trs captulos introduzem. O livro delineia o pensamento dos tericos que discute, e no apenas suas concluses.

    Ao escrever-se qualquer livro, incorre-se em muitos dbitos para com professores e estudantes, colegas conhecidos e desconhecidos, cujas idias foram absorvidas, e tambm para com a famlia. Desejo fixar aqui meu reconhecimento considervel assistncia crtica e racional dada por minha esposa, que tambm datilografou duas vezes todo o manuscrito. Meu reconhecimento tambm Universidade de New Brunswick, que amavelmente forneceu uma subveno para garantir a preparao deste livro, e a meus colegas do Departamento de Sociologia e Antropologia da U.N.B., que mantiveram a costumeira atmosfera conveniente e estimulante.

    W.S.The Anchorage Maio de 197U.

  • ^ flswii - ^ g o c ' i c f y n i i u i l c . vi 'tfiq-xi ..j*b ea&it&i,,)

    i O f i

    1 Teoria Sociolgica

    I. O termo teoria

    0 termo teoria sociolgica tem uma variedade de significados e utilizaes. Essa variedade tem por vezes levado confuso socilogos e pessoas que estudam Sociologia, porque duas ou mais pessoas podem no concordar acerca do significado terico de um a idia. Por causa desse desentendimento, a prpria idia pode perder-se ou ser mal interpretada. , portanto, uma boa idia ter um entendimento seguro da variedade de coisas a que o termo teoria pode referir-se em Sociologia, e uma compreenso das principais diferenas entre essas coisas.

    As teorias so apresentadas de modo vrio. Podem ser enunciadas clara e sucintamente, ou podem ser implicadas por meio de enunciados menos precisos. Em verdade, o trabalho terico, de modo geral, em parte ambguo pelo menos quanto a um aspecto e, em conseqncia, quase sempre h lugar para interpretao e reavaliao do significado exato de qualquer teoria. Trataremos melhor dessa questo quando progredirmos em nosso exame da teoria sociolgica. Por enquanto deve ser enfatizado que aparentemente a prejudicial ambigidade dos enunciados tericos com muita freqncia um aspecto positivo, uma vez que como conseqncia do trabalho mental de reinterpretao e avaliao da teoria que realmente avanamos no trabalho terico nas Cincias Sociais.

    0 surgimento da Sociologia acadmica nas universidades e escolas superiores foi acompanhado de um estudo mais ou menos sistemtico da teoria sociolgica enquanto tal. Mas no foi sempre assim. Antigamente, o mais usual era que as teorias ocorressem como conseqncia da tentativa de algum de entender algo que o tivesse embaraado. As teorias se desenvolveram em torno de

  • 18 T e o r i a S o c i o l g i c a

    temas aos quais poderamos chamar problemas tcricos. Esses temas, s vezes, foram imediatos e, com igual razo, os chamaramos de problemas prticos. Tais problemas, como o advento do crime urbano, o crescimento da taxa de nascimento ou a natureza da solidariedade social, foram causados. A preocupao com questes dessa espcie realmente transcendeu a importncia prtica imediata que deu origem ao interesse por elas. Conseqentemente, tais questes formaram as bases dos sistemas de pensamento que vieram a ser chamados de teorias, e estes sistemas foram muito alm dos problemas que lhes deram origem.

    A soluo de um problema terico no significa necessariamente que o problema prtico a ele associado tambm tenha sido resolvido. Qualquer um que j tenha observado o nmero de teorias sobre o crime e a ascendente taxa criminal sabe disso. Mas os problemas tericos tm solues no sentido de que as idias de uma teoria, e suas inter-relaes e estrutura, podem dar respostas aos problemas tericos. Por exemplo, o problema de como conceituar classe social adequadamente resolvido pela gerao de outros conceitos e idias relacionados. Quando essas idias so reunidas e sistematizadas, o resultado torna-se algo que comea a parecer-se com uma teoria sociolgica.

    As teorias formadas desse modo poderiam obviamente assumir muitas formas e existir em vrios estados de relativa consistncia ou inconsistncia, de relativa claridade ou obscuridade. Tambm poderiam ser confundidas com uma simples exposio de fatos ou talvez com uma ideologia. Por essa razo, s vezes difcil descobrir o significado real de um termo terico, uma vez que pode no estar claro se seu inventor pretende que o leitor considere o termo como descrio, plano de ao, ou principalmente por sua utilidade para o entendimento de algo. Posteriormente trataremos disso com maior detalhe.

    A partir da coleo de idias um tanto livre sugerida acima como um plo de um continuum, podemos sugerir o plo oposto. As teorias podem assumir a forma de precisas apresentaes de idias, nas quais os conceitos e processos sugeridos pela teoria so clara e definitivamente elaborados. Evidentemente, esse um ideal de muitos tericos em Sociologia, que geralmente desejam esclarecer questes e problemas tericos. Mas j que esse estado de coisas ideal no freqentemente alcanado na prtica real, devemos esperar encontrar exemplos de teorias sociolgicas reais que se situam em algum lugar entre os plos da livre construo e da construo precisa.

  • T e o r i a e P r t i c a 19

    primeira vista, freqentemente a teoria sociolgica se assemelha a uma entidade separada, solitria, como algo a ser conquistado, uma vez que, como a montanha, ela simplesmente est l. Esse enfoque teoria sociolgica usualmente termina em frustrao, visto que no se baseia num entendimento razovel do que podemos esperar da teoria sociolgica. Em geral, a eficcia da teoria est em sua capacidade de fornecer um grande nmero de pensamentos e informaes com relao a um problema especfico ou conjunto de problemas e, por esse meio, vai alm do pensamento assistemtico no detalhe e na preciso da subseqente formao e manipulao do conceito. As teorias produzem e mantm as idias prontas para serem usadas a qualquer momento.

    A idia de um problema terico j foi introduzida. Podemos dividir convenientemente os modos atravs dos quais uma teoria ataca um problema terico em quatro categorias e discuti- -las separadamente. Eis as quatro categorias:

    1 A teoria pode sugerir idias adicionais no curso da soluo de algum dado problema terico.

    2 A teoria pode sugerir modelos do objeto de estudo, de modo que resulte uma espcie de descrio esquemtica. A descrio pode ser considerada um padro no qual as idias possam ser colocadas por convenincia e clareza.

    3 Os modelos podem sugerir teorias.4 A teoria pode sugerir hipteses.

    A. A teoria como sugestiva ds idias

    Pensar teorias como sugestivo de idias corresponde mais ou menos ao enfoque da livre construo teoria descrita acima. Um nico conceito no uma teoria. Uma classe social pode ser sentida ou experimentada, em algum sentido, mas no h nenhum significado terico no termo isolado. Somente quando idia de classe social se juntam as idias adicionais que cie comea a er explicado e a tornar-se inteligvel ou a fazer parte da explicao de alguma outra coisa. Por exemplo, o entendimento do que classe social tambm tem a ver com o significado de estrutura social, relaes sociais, poder, privilgio, obrigao, autoridade, e muitas outras idias semelhantes. 0 que isso significa em termos prticos que para entendermos o conceito de classe social

    II. Teoria e prtica

  • 20 T e o r i a S o c i o l g i c a

    somos obrigados a desenvolver definies e concepes claras acerca dessas idias relacionadas. Agindo assim, provvel que at mesmo mais idias sejam sugeridas, e que a busca do entendimento que elas exigem iluminar posteriormente a idia de classe social, bem como as outras idias que se desenvolveram a partir da primeira.

    As idias e conceitos que parecem brotar em torno se um problema ou objeto de pensamento iniciais no surgem ao acaso. Desenvolvem-se principalmente porque: 1) a definio de um conceito sugere outro, ou 2) alguma observao indica que necessita-se de uma idia ou conceito. No primeiro caso, podemos dizer que a livre coleo de conceitos com que comeamos implicou relaes entre os conceitos que devem ser descobertas. A idia de classe social, por exemplo, sugere que h mais de uma classe, e que as caractersticas dessas classes no so as mesmas. Assim, distinguir especificamente uma classe de outra ajuda a entender a ambas. No segundo caso, estamos perguntando como uma conceituao inicial parece ajustar-se bem aos fatos. Novamente usando classe social como exemplo de idia, em princpio possvel ter muitos conceitos de classe, embora somente alguns desses parecero ter algum poder de descrever ou sugerir alguma coisa sobre as classes sociais reais. Aqueles que parecem ter esse poder sero preferidos.

    Para continuar o exemplo, vemos de imediato que qualquer definio de classe social ( qualquer uma especfica que possamos escolher) imediatamente implica uma diviso de algo social em categorias chamadas classes . Comeando com uma idia de classismo geramos a necessidade de descobrir a relao de uma classe com outra. No processo desse procedimento, tambm tivemos de definir classe social de tal modo que houvesse uma distino clara entre uma classe e outra. Comeamos a tarefa de construir categorias tericas. Uma vez que essas classes esto no processo de tornar-se distintamente definidas medida que este trabalho terico prossegue, o problema da relao entre elas alcana uma posio de destaque e passa a exigir ateno. Isso acontece tambem porque seja qual for o ponto de partida do que entendemos como social tambm est no processo de ser definido em termos de classismo . A relao dessas classes enquanto formam urna unidade social tem de ser do nosso interesse. A natureza dessa relao formaria provavelmente a base de uma idia geral acerca da estrutura social.

  • T e o r i a e P r t i c a 21

    Vimos, neste exemplo, que um enfoque terico de uma idia levou naturalmente criao de outras idias que ajudaram a clarificar a primeira e a definir sua relao com as outras. mais ou menos desse modo que as teorias tendem a desenvolver-se em sua estrutura lgica, posto que em breve provavelmente sero descobertas as idias que so logicamente incompatveis entre si. Ento, essa incompatibilidade lgica exigir do terico que ele mude as idias ou altere toda a estrutura terica de algum modo, com a esperana de que resulte um sistema de idias mais coerente.

    Tambm levantamos questes claramente empricas como resultado de t-las sugerido a ns mesmos atravs da teoria. Se nosso entendimento de classe social se desenvolveu a um ponto em que as relaes especficas entre as classes foram sugeridas, seria conveniente tentar descobrir se essas relaes realmente existiram, ou tentar descobrir mais acerca de quaisquer relaes entre as classes que realmente encontramos. H grandes problemas aqui envolvidos, que sero examinados mais a fundo nas sees deste livro por teorias especficas e pela verificao. Diga-se, entretanto, que em princpio possvel gerar uma idia atravs do exame emprico de algo e trabalhar essa idia dentro do emaranhado de idias a que se chama teoria.1 Se no acreditamos nesse princpio como verdadeiro, no poderia haver seno pouca esperana de alguma vez aplicar a teoria sociolgica, mesmo queo processo de teorizao comeasse pelo interesse em um problema emprico.

    B. A teoria como sugestiva de modelos

    Infelizmente, no h nenhuma distino clara entre modelos e teorias. A idia de um modelo freqentemente confundida com a de uma teoria, e s vezes os dois termos so permutados sem se dar nenhuma ateno s diferenas entre eles. Uma teoria poderia servir como modelo para outra. 2 Em essncia, as teorias

    1 Gerar idias a partir da observao emprica geralmente descrito como o processo de induo. Isso exige do observador de fatos notar que certas coisas na realidade andam juntas e, ento, conceituar essas coisas de acordo com uma entidade ou processo unificados. Logicamente faiando, infelizmente no h nenhuma regra que oriente tal trabalho, o que asseguraria a formao adequada do conceito. Assim, devemos ter como uma questo de princpio que os conceitos podem ser gerados a partir da experincia e que tm valor ao descrever e explicar a experincia.

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    sem modelos explicam diretamente, enquanto os modelos explicam por analogia.

    Ser til descrever o conceito de modelo antes de retornar aos modos em que uma teoria pode sugerir modelos e o que se ganha quando isso acontece. Um modelo de uma coisa , por definio, no a prpria coisa, mas algo que tem uma semelhana com a coisa de interesse. precisamente nas semelhanas que a utilidade dos modelos evidente. Se o modelo mantm semelhana com a coisa real de certos modos, mas no de outros, os modos em que o modelo de fato se assemelha realidade o sentido em que o modelo anlogo realidade. Um modelo pode ser til destacando esses elementos de similaridade e desenvolvendo um melhor entendimento do porque o modelo se assemelha coisa. Uma vez mais, um exemplo poderia ser valioso. Todos sabem que um aeromodelo e um Boeing 747 no so a mesma coisa. Mas em que aspectos eles so similares? Se o modelo voa como resultado de ser lanado, a ao do ar sobre as asas do modelo quando este se move o mantm em vo. Porque o vo ocorreu como resultado da ao do ar sobre as asas, a forma e a estrutura das asas e sua relao com o resto da estrutura so anlogos em alguns aspectos com o vo do 747. Se nos interessarmos em rentender a ao do ar sobre as asas do 747, podemos investigar isso investigando a ao do ar sobre o modelo e estabelecer uma .analogia com o avio real. Mas no poderamos fazer isso para descobrir a causa do movimento atravs do ar, uma vez que lanssemos ao ar nosso modelo. 0 modelo anlogo realidade em algum importante sentido, mas no anlogo em algum -outro. 0 modelo intil se quisermos entender porque o avio real se move, mas poderia ser importante se nos interessarmos em saber por que ele pra.

    Evidentemente, neste exemplo j sabamos que o modelo mo era anlogo causa do movimento, e que essa falta de correspondncia entre o modelo e a realidade no causou nenhuma dificuldade. Mas s vezes construmos modelos da realidade a fim de entend-la melhor, e a falhamos em observar os aspectos em que os modelos no correspondem realidade. Ou, considerando um problema relacionado, podemos definir partes da realidade que so pouco entendidas como se fossem anlogas s partes do modelo, sabendo que isso arriscado. No campo da

    2 Para uma descrio mais completa de modelos em cincia, ver Abraham Kaplan, The Conduct of Inquiry (San Francisco: Chandler Publishing Co., 1964), Cap. 7.

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    Economia, por exemplo, tem sido h muito uma preocupao embaraosa como as pessoas distribuem uma dada quantidade de recursos entre centenas de escolhas. Uma vez que a teoria dessa espcie de atividade deve enfatizar a escolha e o escolher, uma espcie de modelo que surgiu foi o do Homem Racional ou Homem Econmico.3 Esse modelo corresponde a uma srie de suposies acerca de como as escolhas so feitas, baseado no princpio de maximizao do benefcio. A questo imediata acerca desse modelo a seguinte: verdade que as pessoas reais se comportam segundo os modos que o modelo sugere e maximizam seu benefcio a partir de um dado nvel de recursos? Tambm de interesse a questo relacionada que pergunta se as pessoas so ou no motivadas a agir segundo o modo suposto pelo modelo. Considerado literalmente, o modelo est errado no sentido de que provavelmente ele no uma descrio de como as pessoas reais realmente pretendem distribuir seus recursos. Obviamente, elas no gastam inteiramente com base no benefcio egosta e, com freqcia, gastam os recursos imprudentemente. Mas lem- bremo-nos de que no gastam caoticamente e que usualmente gastam com o objetivo de receber valor em dinheiro. E no nos esqueamos de que o que queramos inicialmente era um modelo do distribuidor de recursos, no um modelo do Homem Emocional ou Homem Altrusta. provvel que o Homem Econmico, como um modelo, seja bastante til para enfatizar aspectos do comportamento econmico que so de nosso interesse, muito embora esse modelo seja por demais simples e no se assemelhe ao homem real em muitos detalhes. O uso inteligente de um modelo como este envolve o entendimento dos pontos anlogos entre a realidade e o modelo embora no supondo que o modelo explique demasiadamente.

    C. Os modelos como sugestivos de teorias

    Os modelos podem sugerir teorias ou acrscimos s teorias. Isso pode ser muito valioso quando a teoria menos elaborada do que o modelo. Uma teoria pode predizer que existe uma certa relao entre duas idias, mas diz pouco sobre as relaes entre essas idias e alguma outra. Ao encontrar um modelo que parece aproximar-se da relao entre as duas primeiras idias, talvez

    3 O conceito de racionalidade no se limita ao uso em Economia, e teremos ocasio de examinar o conceito mais detalhadamente, especialmente no cap. 4.

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    seja possvel ver por analogia que h outras idias e relaes implicadas. Assim, o modelo sugeriu acrscimos teoria. Um exemplo dessa situao pode ser encontrado na teoria sociolgica. Sustenta-se por vezes que o processo de mudana social atravs do tempo anlogo ao processo de evoluo biolgica. 4 De fato, um ramo muito importante da teoria sociolgica do sculo X IX (que no est completamente fora de moda atualmente) dizia precisamente isso. Tal teoria usa nosso conhecimento do processo evolutivo, um fenrueno biolgico, como modelo para entender a mudana social. Entre as coisas sugeridas por esse enfoque da mudana social est a de que enquanto puder haver intenso conflito na parte das unidades sociais discretas no incio, entre indivduos, classes, interesses, ou o que quer que possa ter sido sugerido pela verso particular da teoria, o resultado final do conflito no a destruio da sociedade, mas antes uma reforma e uma retomada do desenvolvimento dela. Note-se que esse aspecto construtivo no foi sugerido por um conhecimento de instncias do conflito social; a idia de benefcio surgiu a partir do modelo biolgico.5 Nesse caso, as sugestes preliminares de que a mudana social poderia ser anloga mudana e evoluo biolgicas produziram a idia, derivada por analogia, de que o conflito social produtivo de algum modo. No apropriado tentar aqui resolver a questo de se o conflito social ou no benfico, mas importante ver de onde tiramos a idia de que assim o seja. Usamos um modelo, e a idia veio a partir do modelo, no diretamente da observao. 0 uso desta analogia poderia ir muito mais adiante. Por exemplo, j advertimos que na ausncia de qualquer prova slida, os limites dentro dos quais as analogias podem ser consideradas so desconhecidos. Por conseguinte, seria importante saber exatamente como a evoluo social se asse

    4 Um breve e bom trabalho a respeito de como esse princpio afetou a obra de William Graham, Sumner e Lester Ward encontrado emSocial Darwinism in American Thought (Boston; Beacon Press, 1944), de Richard Hofstadter. O conceito de evoluo foi aplicado em muitos nveis de generalidade. Num trabalho relativamente recente, Talcott Parsons usa a idia para ajudar a explicar o padro geral de desenvolvimento social mundial em seu livro Societies: Evolutionary and Compara- tive Perspectives (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1966).6 A origem da idia uma questo um tanto controvertida, uma vez que poderia ter sido tomada emprestado pelas Cincias Naturais aos estudos de Economia Poltica. A questo permanece, entretanto, visto que no presente exemplo a idia de mudana evolutiva foi emprestada aos tericos em Sociologia pelos naturalistas.

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    melha evoluo biolgica e se a semelhana essencial ou superficial.

    Deve-se enfatizar que s vezes o desejo de entender melhor a realidade nos leva a defini-la em termos de modelos. Neste exemplo, se dizemos que a evoluo social apenas uma espcie particular de evoluo biolgica, ento estamos dizendo por implicao que tudo o que for social se assemelha ao mundo biolgico em aspectos essenciais. Isso corresponde a fazer suposies acerca do mundo social nos mesmos termos em que o naturalista faz uma gama de suposies acerca do mundo biolgico. Feito dentro de limites, isso pode produzir teoria til, mas tambm pode levar a absurdos. Por exemplo, poderia ser instrutivo imaginar a sociedade como a teia de um complexo de partes funcionais inter-relacionadas tal como um corpo vivo; mas provavelmente absurdo continuar a atribuir vida a essa teia como no sentido em que um corpo vive. 6 Os modelos so usualmente melhor entendidos e mais completos do que os fatos sociais que so considerados representar. Conseqentemente, quando a inteno conhecer a realidade por analogia atravs de um modelo, a mxima cautela deveria levar-nos sempre a questionar a extenso em que os modelos so realmente aplicveis e o valor de aprender tanto to facilmente ao aceitar to grandiosa analogia.

    D. .As teorias como produtoras de hipteses

    Na discusso dos modelos e teorias, temos continuado mais ou menos na idia intuitiva de que uma teoria sociolgica uma espcie de ordenao de idias que nos diz algo acerca do mundo social. Mas o modo como ela nos diz isso pode ser muito importante. Um modo de fazer isso produzir hipteses, embora este no seja o nico modo. Na discusso da estrutura das teorias, veremos qual a melhor forma de teoria na produo de hipteses.

    Uma hiptese um enunciado de uma relao entre duas ou mais idias ou classes de coisas. 0 aspecto importante relativo a essa definio preliminar que ela por si mesma tambm poderia ser a definio de uma lei cientfica, ou pelo menos uma suposio. Considerando primeiro esta ltima possibilidade, a diferena importante entre hipteses e simples suposies que

    6 Quando atribumos vida s entidades sociolgicas, como na expresso a cidade viva , nos aproximamos perigosamente desse erro.

  • a hiptese se relaciona conceitualmente de algum modo com a teoria da qual ela provm. Considerando a relao mais forte entre teoria e hipteses, as hipteses so dedutivamente derivadas; isto , elas se seguem diretamente como uma extenso lgica das generalizaes e conceitos j estabelecidos dentro da teoria. 7 Uma teoria pode gerar hipteses se ela se aplica a algum problema terico ou emprico especfico. Se temos uma teoria concernente solidariedade social e s prticas religiosas, como teve Emile Durkheim em seu livro Suicide, 8 podemos estar em condies de criar hipteses ou enunciados de relao possvel entre prticas religiosas e algum problema social, como o suicdio nesse aso.

    A teoria durkheimiana sustenta, em geral, que o indivduo inteiramente dependente em sua vida, inclusive em sua individualidade, da sociedade. A sociedade coletiva lhe d sua identidade, estabiliza-o contra as foras adversas da vida cotidiana e o sustenta num sentido espiritual e material. A sociedade representada na mente de cada pessoa pela conscincia coletiva , que pode ser concreta ou abstrata, dependendo do estado de desenvolvimento social.

    Mas o que nos interessa agora como uma hiptese pode ser derivada da teoria de Durkheim? Sabiamente, Durkheim escolheu o suicdio como um problema para testar seu esquema terico. Ele raciocinou que se pudesse mostrar uma influncia social sobre o suicdio, o mais individual dos atos individuais, teria um longo caminho para provar o que queria, ou seja, que a sociedade tem primordial importncia para a individualidade. Mas como conseguir isso? Era fcil descobrir os dados estatsticos e mostrar que em certos lugares da Europa em certas pocas a taxa de suicdio variava, para mais ou para menos, em torno de um nvel mdio. Durkheim raciocinou que, se pudesse explicar as mudanas na taxa de suicdio inteiramente pela referncia aos estados de solidariedade social, teria sua resposta.

    Segundo as generalizaes da teoria de Durkheim, quanto maior a solidariedade social de uma populao, mais provavelmente os indivduos experimentaro uma resistncia social signi

    ~7 A deduo freqentemente definida com o o raciocnio do geral para o particular. Fundamentalmente, o processo dedutivo segue a forma do silogismo: uma premissa maior enuncia uma generalidade, uma premissa menor enuncia um caso especfico e uma concluso enuncia a relao entre o caso especfico e a generalidade.8 Traduo inglesa de J. A. Spalding e G. Simpson (Nova York: Free Press, 1951).

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    ficativa em tempos de tenso e, em conseqncia, menos provavelmente eles cometero suicdio. Durkheim pensava que a f catlica romana proporcionava solidariedade social mais forte do que o Protestantismo. Isso lhe parecia assim porque o Catolicismo na poca em que Durkheim escrevia tendia a dar um enfoque mais coletivo e integrador do indivduo, e mais freqentemente enfatizava os aspectos comuns e a similaridade entre os indivduos. 0 Protestantismo, ao contrrio, era muito mais individualstico. Com suas doutrinas de participao direta em alguns dos sacramentos, a nfase dada leitura individual da Bblia e, em alguns casos, o controle democrtico dos negcios da Igreja pela congregao, a f protestante se associava a um sistema social menos coeso e solidamente integrado.

    Aqui Durkheim teve sua resposta. Para demonstrar uma relao entre a solidariedade social e o comportamento individual, Durkheim necessitou de indicaes reais de cada um. Ele tinha indicaes acerca de atos individuais, par excellence suicdios. Tinha de explic-los. Para fazer isso, em termos de solidariedade social, ele tinha o Catolicismo e o Protestantismo.

    Sua hiptese, portanto, era a de que em reas da Europa onde o Catolicismo era forte, as taxas de suicdio seriam menores do que nas reas da Europa onde o Protestantismo predominasse. importante demorar-nos um pouco mais no que a hiptese de Durkheim significava. Ela significava, em seu sentido mais bvio, que ele esperava que existisse uma relao entre as taxas de suicdio e a filiao religiosa. Mas ele no supunha isso ad hoc. Derivou isso a partir de uma teoria sobre algo muito mais amplo e potencialmente importante: a relao entre a solidariedade social e a individualidade. 0 fato de que a predio de Durkheim (sua hiptese) fosse em geral confirmada sugeria que seu esquema terico relacionando solidariedade social e individualidade era vlido. Ainda que sua pesquisa no tendesse a confirmar sua predio, sua teoria da integrao social ainda seria uma teoria, e a lgica de sugerir a provvel distribuio de suicdios na Europa ainda estaria intacta.9 Entretanto, ela no teria evidncia de sua validade empiricamente derivada.

    9 Isso pode parecer confuso, mas realmente simples. A hiptese de Durkheim poderia no ter sido confirmada, mas h uma variedade de razes que poderiam explicar isso: suas estatsticas poderiam estar erradas; ele poderia ter cometido um erro de clculo; algum outro fator que produzisse um efeito na solidariedade social poderia ter influenciado temporariamente seus resultados. Assim, usualmente as hipteses so cau

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    Deve-se assinalar que a teoria geral de Durkheim acerca da solidariedade social e de sua relao com o indivduo tambm sugere outras hipteses. Implica, por exemplo, a primazia da sociedade em questes morais e de tica profissional, e Durkheim pesquisou nesse campo, uma vez mais confirmando de modo geral sua teoria principal.10 Mais de uma hiptese pode ser derivada de uma teoria, e o nmero e variedade de hiptese derivveis de uma dada teoria so parte da medida do valor dessa teoria.

    A definio de uma hiptese ainda no foi diferenciada da definio de uma lei cientfica. Uma vez mais, maiores detalhes sero protelados at passarmos discusso sobre a estrutura das teorias. Mas podemos dizer agora que, se uma dada hiptese parece ser confirmada pela experincia num domnio amplo de eventos e num domnio amplo de situaes, a hiptese pode ser elevada ao status de lei. Isso significa que aqueles que trabalham com hipteses e a conhecem em todas as formas que ela assume, e que tm confiana suficiente de que suas predies so verdadeiras, comearo a sentir cada vez menos necessidade de test-la constantemente na experincia cada vez que a usarem. Ao contrrio, comearo a usar a hiptese como uma generalizao ou princpio a partir do qual passaro a deduzir novas hipteses. Desse modo, ela se tornar uma le i.11

    A forma geral do enunciado da relao entre duas idias no muda necessariamente quando o enunciado deixa de ser uma hiptese e comea a se tornar lei. Nem mudaria necessariamente a forma se o enunciado fosse apenas um pressentimento. A distino entre hiptese, lei e pressentimento entra no estado de relao lgica e peso de evidncia corroboradora que se forma entre o enunciado da relao e a evidncia, por outro. Se um enunciado da relao est clara e logicamente ligado teoria, ele

    telosamente relacionadas com a realidade em termos de pesos de evidncia ou tendncias a confirmar ou desconfirmar uma dada hiptese. Evidentemente, todas as coisas que pudessem ter conduzido a um insucesso a confirmao da hiptese de Durkheim tambm poderia ter contribudo para sua confirmao.10 Emile Durkheim. Professional Ethics and Civic Aforais, trad, inglesa de Cornelia Brookfield (Londres: Routledge and Kegan Paul. 1957).11 Uma considervel literatura sobre a Filosofia da Cincia tem. aumentado. em parte, em tom o da questo das leis. Para subseqentes discusses a respeisto de leis, ver Kaplan, Conduct o f inquiry, Cap. 8, e N. R . Campbell, Foundations o f Science (Nova York: Dover, 1957), Parte I.

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    mais uma hiptese do que uma suposio. Se o que suporta o enunciado uma soma de evidncia, ele pode ser chamado de lei em vez de hiptese.

    III. Tipos de teoria e tipologias de teoria

    Obviamente, h mais de uma teoria em Sociologia. Isso no quer dizer que sejam todas erradas exceo de uma delas, nem que qualquer delas seja errada . Quando as teorias se desenvolvem em torno de problemas, conforme foi sugerido, elas se agrupam naturalmente em tipos de teorias relacionados a essa questo, quela questo, e assim por diante. Em certo sentido, isso realmente prevalece. Mas, como vimos, as teorias tm uma tendncia a expandir seu escopo incluindo hipteses, e tambm sugerem outras hipteses que vo alm do interesse inicial de quem props a teoria pela primeira vez. Assim, o tempo todo h uma sobreposio de territrio terico, de tal modo que agora h muitas teorias que oferecem explicaes de aproximadamente o mesmo fenmeno. Isso origina a necessidade de classificar as teorias e orden-las segundo alguns critrios racionais. A tentativa de fazer isso tem levado s vezes a problemas e confuses.

    Um modo de classificar teorias ligar-lhes datas, de acordo com as pocas em que foram propostas pela primeira vez ou que pela primeira vez entraram em uso relativamente amplo. Portanto, as teorias podem ser analisadas numa ordem temporal. Os cursos de teoria sociolgica que do um enfoque histrico* freqentemente fazem essencialmente isso. A vantagem desse procedimento que ele mostra repetidamente que uma dada idia teve o poder de gerar outras idias e que os sistemas de idias envolvem medida que elas se desdobram cada vez mais. Revendo o curso do tempo, atravs das novas e diferentes idias podemos remontar s antigas. A desvantagem desse enfoque que s vezes difcil compreender as razes por que as teorias mudam, e aparecem e desaparecem.12

    Outro esquema que tem sido usado com algum sucesso agrupar as teorias de acordo com o pas em que foram propostas

    12 O mestre em mostrar precedentes histricos das idias sociolgicas P. A. Sorokin. Ver suas obras Contemporary Sociological Theoriet (Nova York: Harper, 1928), Sociological Theories o f Today (Nova York: Harper and Row, 1966) e Fads and Foibles in Modern Sociology (Chicago: Henry Regnery, 1956).

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    e mais amplamente usadas. Esse enfoque tem levado a algumas classificaes da teoria relativamente estveis, tanto em Sociologia como em outras disciplinas. A Sociologia alem da metade e final do sculo XIX, por exemplo, tendia a distinguir-se da Sociologia inglesa ou francesa do mesmo perodo. Provavelmente as similaridades entre as teorias alems foram o resultado dos temas culturais comuns e dos pontos de vista compartilhados pelos tericos alemes. Isso no quer dizer, entretanto, que essas teorias eram todas iguais. Longe disso. Nem quer dizer que as outras teorias produzidas em outros pases no se assemelhava teoria alem. Isso sucedia. De fato, bons exemplos de semelhana podem ser dados, como o da teoria da solidariedade social de Durkheim, desenvolvida na Frana, com as teorias alems acerca do esprito do povo e da importncia da herana cultural. Poder-se-ia mostrar tambm que idias similares estavam em uso na Inglaterra nessa poca. No obstante, o mtodo de classificao nacional tem sido usado como uma conveniente tcnica de rotular, e Teoria sociolgica alem ainda tem um significado razoavelmente preciso.13

    Um mtodo mais defensvel de classificar as teorias tem sido analis-las de acordo com seus principais conceitos e suposies, e grupar os que so similares, no importando quando ou onde foram originalmente formados.14 Esse mtodo tem as vantagens distintas de mostrar as similaridades lgicas das vrias teorias e de mostrar como um dado grupo terico difere de outro em bases conceituais. Considerar esse enfoque especialmente apropriado se desejarmos uma comparao do valor ou utilidade possveis das teorias, na medida em que mostra claramente o que podemos esperar de um dado grupo de teorias. Contudo, h um perigo em classificar teorias segundo conceitos e idias principais que tm de ser destacados, uma vez que isso causa de muita confuso. Quando as teorias so classificadas segundo as similaridades de suas idias, conceitos, predies e tipos de explicao principais, h uma tentao de ver todas as teorias num grupo como sendo iguais. No so iguais, mas o fato de certos aspectos similares delas terem sido enfatizados, parcialmente para satisfazer o enfoque categorial, d essa impresso.

    13 Exemplos desse enfoque so: Howard Becker e Harry E. Barnes, Social Thought jrom Lore to Science, ed. rev. (Nova York: Dover, 1966),III, e Raymond Aron, German Sociology, trad. inglesa de Mary e Thomas Bottomore (Nova York: Free Press, 1964).14 Ver Don Martindale, The Nature and Types of Sociological Theory (Boston: Houghton Mifflin, 1960).

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    Isso freqentemente conduz crena de que h uma teoria correspondente ao nomo da categoria em que vrias teorias so colocadas.

    0 exemplo mais bvio desse erro o da teoria do conflito . Em mais de um texto atualmente em uso, vrias teorias so agrupadas em virtude do fato de que todas tm algo a dizer acerca do conflito social. Mas, quando as diferenas entre as teorias so obscurecidas, o resultado a impresso de que as teorias so similares no essencial. Por exemplo, as idias de Marx referentes s relaes sociais modais entre as classes na sociedade capitalista so por vezes agrupadas s idias de Darwin e daqueles que usaram as idias de Darwin a respeito da seleo natural! para pr em discusso um modelo de conflito bsico da sociedade. Mas quase nunca vemos as idias de Marx agrupadas s de Simmel, que tambm tinha algo considervel a dizer a respeito de conflito. Similarmente, a teoria racionalista de Adam Smith poderia ser considerada uma teoria do conflito justamente na medida em que pudesse ser considerada uma teoria baseada na variedade e interdependncia das necessidades humanas. A classificao de Smith com Marx enfatizaria certas coisas, enquanto classificar Smith separadamente enfatizaria outras.

    importante verificar que o estudo da teoria o estudo das idias, relacionadas de tal modo que so sugestivas de explicaes, modelos e hipteses, e que a classificao dessas idias feita meramente por convenincia. Em outras palavras, nomes de classificaes de teoria no so nomes de teorias.

    Mais um modo de classificar teoria que tem algo a recomend-lo foi proposto recentemente. Tal esquema enfatiza que, para se ter uma teoria de algo, a coisa deve ser em primeiro lugar precisamente definida, depois ento pode ser explicada. Essa ateno definio absorve muita teoria sociolgica. 0 resultado disso a proposta de agrupar teorias que do um enfoque similar da definio de o social e ento examinar essas categorias para descobrir como as teorias explicam o social com elas. As teorias que definem e explicam de maneiras similares so reunidas por convenincia; aqueles que tm diferenas substanciais so colocados parte.16

    Provavelmente ser verdadeiro que nenhum esquema de classificao de teorias fornecer categorias dentro das quais o trabalho de um nico terico se ajustar em sua totalidade.

    15 Walter L. Wallace, Sociological Theory: An Introduction (Chicago:Aldine, 1969).

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    Isso porque as categorias so com freqncia rigidamente consistentes com relao a algum critrio, enquanto um terico, trabalhando durante toda uma vida, pode ter desenvolvido uma variedade de idias e t-las enquadrado todas em seu esquema. Isto , o trabalho inicial de um terico concernente a alguma explicao pode referir-se a uma categoria diferente a partir de seu ltimo trabalho sobre a mesma questo ou problema. Essa resistncia categorizao leva ao ltimo mtodo de organizar o estudo da teoria social, que realmente no de modo algum nenhum esquema. Deve-se estudar o trabalho dos homens que tm feito contribuies teoria sociolgica, e tentar tornar-nos familiares com seus esforos de tal modo que o conhecimento de vrios deles nos proporcione suficiente base para dizermos que sabemos algo de teoria sociolgica em sua totalidade.

    IV. Os objetivos da teoria

    Por que teorizar? H uma alternativa para o teorizar? Estas so questes razoveis para serem formuladas, especialmente quando no se est a princpio de acordo com a teoria e se quer o mais breve possvel chegar aos fatos . Mas a verdade que teorizamos ainda que compreendamos isso ou no, e interpretamos os fatos luz do pensamento que d significado aos fatos. A teoria sociolgica em sentido formal, com a qual estamos aqui preocupados, simplesmente uma forma mais completa, mais cuidada e melhor compreendida de teorizar do que a teoria ingnua que todos empregamos na vida cotidiana.

    A maioria das pessoas j conhece bastante teoria sociolgica, e os termos chaves da teoria sociolgica freqentemente aparecem na linguagem diria. Vejamos como um termo comum de fato uma palavra chave para os tericos sociais. Freqentemente algum ouve as pessoas falarem teoricamente sobre papel , como na expresso o papel das mulheres atualmente . 0 que pode ou no ser entendido quando esse termo usado, entretanto, que papel um conceito chave em vrias teorias sociolgicas. Usada em seu sentido da teoria funcionalista,16 a idia conota um conjunto de direitos e deveres aceitos por quem representa um papel. Este acredita na legitimidade desses direitos

    M Evidentemente, cada funcionalista um tanto diferente em nfase e estilo. O significado exato de funcionalismo no est fixado. s vezes o_ termo funcionalismo estrutural usado do mesmo modo que funcionalismo neste exemplo.

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    e devres conforme definidos e sancionados pelo sistema em que se encontra o papel. A idia de papel neste contexto recebe significado das teias de direitos e deveres. Estes constituem coletivamente um sistema que pode ser considerado como realizando algo, com efeitos sistemticos ou funcionando (da o termo teoria funcionalista ). Assim, a expresso o papel das mulheres realmente conota no apenas algo a respeito das mulheres, mas algo por implicao acerca dos vrios papis dos homens e de todos os outros papis com que algum representando o papel de mulher pudesse entrar em contato. Esses papis interligados so vistos na teoria funcionalista como aglomerados naturais compondo grupos funcionais. Portanto, a famlia vista como um conjunto de relaes legtimas entre dois ou mais papis complementares referentes s funes da vida familiar, por exemplo, mutuamente suportando e cuidando de pessoas de relacionamento especial, procriando legalmente, educando e instruindo os filhos.

    Alm disso, o termo papel freqentemente usado na linguagem cotidiana num sentido bem outro. Se algum diz que est representando o papel querendo dizer que acredita estar fazendo o que o outro espera dele enquanto ele mesmo poderia no ver esse comportamento como lhe sendo realmente apropriado, ele est enfatizando o significado de auto-apresentao ou "gerncia da impresso do termo papel , teoricamente falando.17 Tal enfoque enfatiza o self como uma entidade consciente que usa smbolos para veicular significados e impresses para os outros que, por sua vez, fazem o mesmo. 0 termo papel usado aqui como anlogo ao comportamento na frente de um palco em que a apresentao feita, enquanto o outro o pblico. Atrs do palco so encontradas todas as facilidades de produo que tornam possvel a ao na frente do palco. A organizao social, nesse modo de pensar, no tem tanto a ver com a interdependncia funcional dos papis em algum sistema como tem a ver com uma espcie de ordem negociada em que cada ator vai executando sua parte medida que progride.

    Nestes dois exemplos o significado real do termo papel claramente intudo pelo usurio inocente segundo a idia que ele deseja veicular. tarefa da teoria sociolgica no apenas assinalar os diferentes significados, mas tambm assinalar que outros conceitos e processos esto implicados quando se usa um termo ou idia sociolgicos. 0 estudo da teoria enfatiza que

    17 Ver Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life (Nova York: Doubleday, 1959).

  • num contexto conceituai e lgico que um termo como papel ganha seu significado inicial. Tais contextos s vezes so muito complicados, mas tambm muito interessantes e ricos. Abrem muitos caminhos para a explorao e pensamento e para a crtica e raciocnio. De certo modo, para isso que serve teorizar.

    No h realmente nenhuma alternativa para a teorizao. Se nos desfizssemos disso, ficaramos com uma massa catica de dados e impresses que apenas exigiriam ordenao e interpretao. Mas como a ordenaramos? Se no tivssemos nenhuma idia das possveis ordens disponveis, ou nenhuma noo de como comear, seramos realmente incapazes de dar o significado material bruto. Pois os modos em que os fatos e impresses ganham significado (e, em conseqncia, implicam s vezes a necessidade de ao) so precisamente os mtodos por meio dos quais eles so reconhecidos como tendo relaes com outras idias e conceitos do processo. Encontrar relaes entre fatos implica que eles tenham alguma coerncia de ordem conceituai. A construo e a anlise dessas ordens, usualmente com ateno considervel para os modos em que essas ordens conceituais se ajustam aos fatos, o processo de teorizao.

    De maneira mais formal, a teoria introduz a ordem terica em uma situao com o propsito de explicar algo, ou introduz um domnio de coisas, para as quais a teoria relevante. A ordem terica que ela introduz a ordem que relaciona os conceitos na teoria. No exemplo do uso do papel , uma ordem terica relacionava conceitos como papel , sistema , funo , legtimo , direitos , deveres , e assim por diante. Esta ordem conceituai realmente o sentido constitudo por uma dada ordenao desses termos e suas definies conectadas. Definidos diferentemente, e colocados num contexto diferente, eles no teriam uma espcie diferente de sentido. Usados juntamente com outros conceitos que enfatizam alguns outros aspectos do mundo social, ainda uma outra espcie de sentido resultaria uma espcie diferente de ordem terica, mas no obstante, uma ordem.

    Quando essas ordens conceituais so compreendidas, possvel p-las a explicar. Uma descrio de alguns dos diferentes modos do termo explicao ter de esperar at o captulo sobre a estrutura das teorias, mas pode-se adiantar que explicar o principal objetivo da teoria sociolgica. Basicamente, essa explicao consiste em relacionar de algum modo um problema conceituai ou conjunto de observaes a uma construo terica da realidade que a ela se ajuste. Se no h nenhum esquema

    3 4 T e o r i a S o c i o l g i c a

  • O b j e t i v o s d a T e o r i a 35

    terico disponvel que parea fazer isso razoavelmente bem, o desejo de ter o problema explicado satisfatoriamente realmente o desejo de ordenar coisas atravs da inveno de algum esquema de idias que d uma definio convincente e um entendimento do problema mo. Isso teorizar. Se algum esquema realmente parea ajusta- "

  • 36 T e o r i a S o c i o l g i c a

    prximo. A teoria sociolgica est em um constante estado de mudana e reformulao. Mas isso no quer dizer que, num dado momento, uma teoria necessariamente chegar a explicar tudo, e ento todo desenvolvimento e interpretao adicionais cessaro. medida que novos problemas aparecem e novas necessidades pressionam, as interpretaes tericas do processo social sero alteradas. Os fatos e idias que pareciam satisfatoriamente explicados repentinamente se tornaro novamente um problema, medida que novas nfases sero exigidas e novos argumentos aparecero. Portanto, o trabalho terico no apenas se desenvolve para formulaes mais sutis e acuradas medida que o tempo passa, ele tambm se reformula medida que avana.

    C o n c e it o s C h a v e

    teoria hiptese modelo lei

    T p ic o s P a r a D is c u s s o

    1 Se tuna hiptese no descreve realmente a realidade observada, qual a implicao para a teoria relacionada?

    2 Os mesmos termos tericos podem ter diferentes significados, dependendo das teorias em que os termos se encontram. Discuta.

    3 H uma toria do conflito ? Por que ou por que no?4 Qual o benefcio possvel da ambigidade terica?5 Qual a diferena entre suposies, hipteses e leis?6 Quais as foras e fraquezas dos vrios modos de classificar

    teorias?7 Como seria a vida se ningum teorizasse?8 Que idias tericas e espcies de suposies voc diria que

    so implicadas por termos cotidianos como instinto , condicionamento , livre arbtrio , sistema ?

    9 Que uma explicao?10 Como que um problema terico pode ser resolvido

    e o problema prtico relacionado permanecer sem soluo?Questes Dissertativas

    Descreva como uma idia como natureza humana realmente depende de pensamento, modelos e conceitos tericos.

    ordem terica explicar predizer analogia

  • C o n c e i t o s C h a v e 37

    Examine as questes ticas envolvidas quando se usa a cincia social para predizer ou controlar os eventos sociais.

    P a r a L e i t u r a e E s t u d o C o m p l e m e n t a r e s

    A r o n , Raymond. German Sociology. Trad, inglesa de Mary e Thomas Bottomore. Nova York: Free Press, 1964.

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    K a p la n , Abraham. The Conduct of Inquiry. San Francisco: Chandler Publishing Co., 1964.

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    Macmillan, 1970.W a l l a c e , Walter L. Sociological Theory: An Introduction.

    Chicago: Aldine, 1969.

  • 2 Problemas Tericos Chave

    O principal objetivo da teoria explicar. Mas o que deve ser explicado? No suficiente presumir simplesmente que algo sociolgico deva ser explicado em virtude de este livro ser sobre teoria sociolgica. Este captulo examina alguns problemas ligados questo do que se deve explicar em relao sociedade e como faz-lo, bem como assinala alguns dos problemas que isso envolve.

    Os problemas a serem discutidos neste captulo esto alistados abaixo. Em cada caso, o modo pelo qual cada terico resolve esses problemas tem muito a ver com a forma e o contedo da teoria que ele finalmente elabora. Os problemas so:

    1 0 problema de como conceituar ordem social e o conceito relacionado de mudana social. Discute-se se diferentes teorias so necessrias ou no para cobrir essas duas idias bsicas.

    2 0 problema de como conceituar adequadamente o tema de uma teoria sociolgica. Da a polaridade entre abordagens objetivas e abordagens subjetivas.

    3 0 problema do enfoque adequado da teoria sociolgica. Aqui a questo saber como a idia do indivduo se enquadra na teia de idias chamada teoria sociolgica.

    4 0 problema de como compreender a causa. A seo sobre funo e causa discute algumas dentre a variedade de coisas a que poderamos nos referir atravs do termo causa e o significado especial dessa palavra normalmente associado ao conceito de funo. Nessa seo discute-se a questo de como aplicar a idia cientfica de causa e efeito teoria sociolgica.

  • O r d e m e M u d a n a 39

    5 O problema dos valores. Considera-se, aqui, como e em que medida os valores do terico devem moldar suas concluses e se ele deve tentar evitar que seus valores o influenciem. Esse problema normalmente conhecido pelo nome de problema do valor-opo .

    6 0 problema metafsico da repetibilidade dos eventos humanos. Aqui se introduz a questo de saber se h ou no similaridade suficiente entre aes humanas para tornar possvel a teorizao. 0 problema relacionado da singularidade dos eventos sociais considerado nesse contexto.

    I. Ordem e Mudana

    A . Ordem

    0 principal problema para todas as teorias sociolgicas e o principal objetivo da teorizao sociolgica em todas as pocas o de explicar a ordem social. importante dar ateno a isso, posto que a confuso relativa ao objetivo geral de toda a teoria est normalmente na raiz de confuses especficas sobre teorias especficas.

    Portanto, a idia de ordem social devia ser examinada mais cuidadosamente em virtude de sua posio central no trabalho terico em Sociologia. Os tericos no usam o termo no sentido de lei e ordem , onde se concebe a ordem como sendo mais ou menos idntica represso ou conflito. Nem se pretende que ordem denote ordem autoritria maneira de regras vociferadas por um sargento instrutor as quais so seguidas, em virtude de existir um sistema que prev rigorosa penalidade. Ordem , no sentido sociolgico, refere-se a qualquer ao padronizada ou a qualquer regularidade exibida no comportamento das pessoas. Com esse emprego, a ordem social anloga ordem descrita pela tbua peridica dos elementos qumicos ou observao de que a gua desce da colina: algumas coisas se comportam de modos similares, modos padronizados, que em princpio poderiam ser, em dadas situaes, simples ou complexos. A principal funo da teoria sociolgica conceituar as circunstncias em que certas ordens ocorrem, e discernir as razes pelas quais essas circunstncias esto associadas a essas ordens.

    Devemos, contudo, ter cuidado para no falar de ordem social num sentido estrito e restrito. A ordem pode ser bastante abstrata, mais do que observvel. Pode aparecer num nvel de

  • 40 P r o b l e m a s T e r i c o s C h a v e

    anlise e desaparecer noutro. Pode dizer respeito a uma dada subunidade de uma populao ou amostra e no a uma outra. A idia de ordem no trabalho sociolgico pode fundamentar-se diretamente em alguma experincia de coisas ordenadas, mas quando a ordem usada como uma idia geral ela se refere aos eventos padronizados que podem ser explicados, mesmo se as observaes sugerirem ou no ordem ao observador ingnuo.

    Desse modo, a prpria idia de ordem abstrata e cobre muito mais terreno do que simplesmente as instncias de coisas ordenadas que descobrimos em relao ao comportamento humano. A teoria sociolgica, ao mesmo tempo que tenta dar explicaes razoveis de determinadas instncias concretas do fato sociolgico, est sempre se desenvolvendo na direo de um enunciado geral sobre as causas e as conseqncia da ordem social. Isso assim porque ela desenvolve explicaes das causas primrias da prpria ordem e no apenas explica instncias dessa ordem. As teorias tendem a se tornar enunciados gerais sobre a natureza da ordem social, e elas tendem a se expandir. Observamos no Captulo 1, que as teorias poderiam incluir outros problemas tericos e as explicaes que elas expandem. O princpio sobre o qual se baseia essa expanso a explicao da ordem social como uma idia geral.

    Que tipo de ordem h na sociedade? Esta uma questo razovel que apresenta vrias respostas, j que o problema pode ser visto sob diferentes pontos de vista. A sociedade pode exibir tipos de poder um tanto bvios. Por exemplo, a taxa de nascimentos que tem importantes conseqncias para o planejamento social, a especulao econmica etc., podem variar a partir de determinadas influncias. notvel que na maioria dos pases ocidentais a taxa de nascimentos tem constantemente declinado nos ltimos dez anos ou mais. As razes para isso variam, e tm diferentes causas em diferentes lugares, mas a principal idia por ora que a taxa, calculada dividindo-se o nmero de nascimentos por ano pelo milsimo da populao, constitui um exemplo de ordem. De que maneira esse fato pertinente idia de ordem? Em primeiro lugar, poder-se-ia tentar ver por que em certos pases a taxa de nascimentos bem alta enquanto em outros muito baixa. Sem levar em considerao as mudanas na taxa de nascimentos, isto , considerando as taxas momentaneamente estveis, e comparando-as, como poderia tal variao ser explicada? Uma resposta que algum aspecto do sistema de crena poderia ter alguma influncia. As pessoas que acreditam

  • O r d e m e M u d a n a 41

    ser virtuoso ter filhos podem t-los mais freqentemente do que aquelas que no crem nisto. Uma outra explicao poderia ser a de que o tipo de economia determina isso muita terra para cultivar exige muitos filhos.

    0 que se deve mostrar que quando uma dada ordem, regu- laridades na taxa de nascimentos, explicada, a explicao transcende o simples relato da prpria ordem, ao sugerir que as coisas que causam essa ordem podem elas mesmas ser ordenadas. Pode, por exemplo, haver alguma relao geral entre o tipo de economia e os padres do uso da terra, por um lado, e a taxa de nascimentos, por outro. Essa especulao sugere a possibilidade no apenas de que a taxa de nascimentos exiba ordem, mas que as influncias sobre ela tambm sejam de algum modo ordenadas, e que haja alm disso algo ordenado e regular a respeito da relao entre esses dois fatos. Talvez, a relao entre o uso da terra e a taxa de nascimentos siga algum padro. Suponhamos que a influncia de um dado tipo de uso de terra sobre a taxa de nascimentos, em iguais circunstncias, sempre a mesma ou similar. Essa similaridade de efeito (dadas circunstncias similares) no observada diretamente, mas abstratamente entendida, j que aquilo que real* mente observamos so instncias da taxa de nascimentos, e aquilo de que falamos um princpio que relaciona todas as taxas de nascimentos com determinadas causas. Demos um passo atrs na explicao de nosso problema particular e um passo em direo ao nvel geral no qual toda a teoria acabada existe.

    Mas que dizer do fato de que nos pases ocidentais, de modo geral, a taxa de nascimentos est declinando? contraditrio para a teoria especulativa relacionar taxa de nascimentos e uso da terra conforme temos considerado? Em outras palavras, alm de notar ordem nas taxas de nascimentos, e suas relaes ordenadas com padres caractersticos do uso da terra, estamos introduzindo a ordem sob a forma de uma tendncia: algo est fazendo com cjue as taxas de nascimentos passem de nveis anteriormente mais altos para nveis atuais mais baixos. Como se explica isso?

    Poder-se-ia explicar isso considerando que as causas da taxa de nascimentos anteriormente elevada esto ou no perdendo sua fora, e, caso estejam, se esto sendo substitudas por algo que resultaria numa nova e mais baixa taxa de nascimentos. No exemplo dado, os padres do uso da terra estavam hipoteticamente ligados taxa de nascimentos para explicar o fato de esta ser elevada ( muita terra para cultivar exige muitos filhos ). Mas se- esse padro do uso da terra se transforma, talvez num outro em

  • 42 P r o b l e m a s T e r i c o s C h a v e

    que a agricultura extensiva e mecanizada mais importante, e se o movimento de filhos do campo para as cidades se torna predominante, no seria de se esperar que as taxas de nascimentos declinassem? No poderamos razoavelmente relacionar as alteraes de determinadas taxas de nascimentos e as taxas enquanto tais com alguma terceira tendncia ou fora que poderia ser chamada de industrializao, mecanizao ou urbanizao?

    bvio que se deve mais ordem social do que s taxas de nascimentos ou a outros tipos de fatos e figuras demogrficos. Considere-se o conceito de autoridade e como a autoridade poderia exibir ordem. Max Weber, em um importante trabalho sobre a natureza da ordem econmica e social, sugeriu haver tipos caractersticos de autoridade.1 Ele relacionou esses tipos s diferentes razes que as pessoas tinham para seguir regras estabelecidas por autoridades. Por exemplo, a autoridade zweckrational a que surge a partir de situaes em que as pessoas aceitam a autoridade de outras porque sua aceitao lhes traz algum benefcio racionalmente procurado. Esse tipo de autoridade que deixamos nossos mdicos terem sobre ns em matria de sade. Normalmente, ela se limita, de maneira estrita, aos aspectos da relao diretamente relevante com os objetivos das pessoas envolvidas e no se transpe para outras reas. Mas a autoridade tradicional , por outro lado, muito diferente. Podemos aceitar a autoridade tradicional de um chefe ou de algum mais velho porque tem sempre dado certo fazer assim ou porque podemos achar sem razo no fazer como sempre se tem feito. Caracteristicamente, a autoridade desse tipo muito mais abrangente e cobre a maioria das atividades daqueles que a aceitam. Seria fcil relacionar tais tipos de autoridade a tipos de situaes sociais e as necessidades sociais de eficincia ou produo e, desse modo, prever que a coordenao racional ( autoridade zweckrational) viria a caracterizar uma sociedade com extrema diviso de trabalho e que as sociedades com pequena diviso de trabalho poderiam permanecer mais tradicionais nos padres de autoridade. De fato, Weber mostrou algo de parecido em seu famoso trabalho sobre a burocracia.2

    No exemplo em que usamos taxas de nascimentos, tnhamos algo para considerar como nosso dado bsico (nascimentos), mas no exemplo extrado da literatura sobre a autoridade no temos

    * Max Weber, The Theory o f Social and Economic Organization, trad, inglesa de Talcott Parsons (Nova York: Free Press, 1964) Cap. 1.:2 Ibid. Cap. 3, Parte 1.

  • ' O r d e m e M u d a n a 4.3

    nada to fcil de que possamos lanar mo. A autoridade uma qualidade abstrata que tem a ver com uma relao em que uma pessoa d as diretrizes e uma outra as aceita. E, com exceo de alguns casos de compulso, aquele que recebe instruo da autoridade a recebe com algum grau de espontaneidade. Desse modo, as abstraes referentes s relaes sociais, tais como a autoridade, so potencialmente ordenadas e to importantes na teoria sociolgica quanto as coisas que podemos mais facilmente ver e medir. A maior parte da ordem social com que se preocupa a Sociologia de um tipo abstrato e deve ser entendida em termos abstratos. A maioria das idias operatrias que envolvem coisas tais como autoridade, papel, estrutura social, cultura etc., no so diretamente visveis e devem por isso ser inferidas e compreendidas como idias concernentes ordem concreta que observamos.

    Tomemos exemplo para mostrar isso. No captulo anterior, usamos uma idia do papel das mulheres para mostrar que o conceito de papel , que a maioria das pessoas conhece bem, era na realidade um termo terico. Mostraremos agora que ele tambm um termo inteiramente abstrato. Lembremos que a idia de papel envolve, no exemplo relativo s mulheres casadas, uma considerao do que pode ser chamado os deveres do papel e os direitos que lhe so associados. Lembremos, tambm, que a idia de papel implicava a existncia de outros papis que tinham alguma relao com o das mulheres. 0 que uma mulher poderia considerar deveres, outra pessoa poderia considerar direitos, e assim os direitos de uma mulher seriam as obrigaes, os deveres, de outra pessoa. A relao entre esses conjuntos compatveis de direitos e deveres o significado importante do termo papel . Mas como observar uma relao? 0 que se observa so comportamentos. No vemos a relao composta de direitos e deveres; vemos apenas o que podemos usar como dados a partir dos quais possvel inferir a relao. Vemos o comportamento concreto que serve de evidncia mas no vemos a relao como se ela mesma fosse observvel.

    A maioria dos tericos da Sociologia prope como causas e conseqncias da ordem social esse carter abstrato e, sendo assim, o objeto da prpria Sociologia abstrato. Isso no radicalmente diferente da situao de outras disciplinas que tambm fazem uso da teoria, mas normalmente mais difcil de ser compreendido em Sociologia onde, em virtude de estarmos to acostumados s relaes sociais, tendemos a pens-las mais

  • 44 P r o b l e m a s T e r i c o s C h a v e

    concretas do que so e a procurar inutilmente pela concretude em coisas que so abstratas por natureza. Assim sendo, temos uma ordem a explicar normalmente uma ordem abstrata.

    B . Mudana

    importante distinguir entre mudana e caos. 0 termo mudana, quando aplicado s formaes sociais, significa algum tipo de alterao nos padres das relaes sociais. Se no existissem padres, no haveria mudana, e sim caos. Conseqentemente, correto dizer que a mudana um tipo de ordem, e foi com isso em mente que o exemplo do decrscimo das taxas de nascimentos foi dado como um exemplo de ordem. A ordem de um determinado tipo era responsvel pelo fato de as taxas de nascimentos estarem num certo nvel, e um tipo diferente de ordem parecia explicar a alterao das taxas de nascimentos para um novo nvel.

    Esse um outro modo de dizer que qualquer teoria sociolgica capaz de explicar a mudana se capaz de explicar a ordem. Isso no universalmente reconhecido. Alguns argumentam que so necessrias teorias distintas para a ordem e para a mudana. Contudo, o aspecto a ser apresentado aqui que qualquer teoria que explique a ordem nas relaes sociais o faz indicando as foras que tornam as coisas ordenadas . A ordem, ou estabilidade social, considerada algo notvel, uma espcie de varivel dependente. A questo que se coloca para o terico que explica a ordem : Por que deveria esse aspecto das relaes sociais ser padronizado desse modo no catico, e no de todos os outros modos em que ele poderia ser padronizado . Quando ele tiver respondido satisfatoriamente a essa questo, ele ter elaborado, da maneira mais hbil, um conjunto de conceitos e idias sobre as relaes sociais que explicam as coisas como so. Mas a se notar que o terico elaborou tambm um conjunto de conceitos e idias que explicam a mudana, exatamente em termos paralelos. Isso se d assim porque, de acordo com sua anlise, a ordem obtida por causa de certa relao de elementos sociais; na ausncia de algum desses, ou se um ou mais deles alterado, o terico deve prever a mudana social como resultado. Ademais, esse tambm seria o caso se um pensador partisse da ponto de vista de tentar explicar a mudana social. Se ele, de fato, explicasse a mudana citando os processos e os fatos b*

  • O r d e m e M u d a n a 45

    sicos da vida social, ele depararia exatamente com o problema referido acima, mas pelo avesso: toda aparncia de estabilidade .seria um problema especial a ser explicado somente pela adaptao de sua teoria da mudana.

    Por exemplo, um velho e importante ramo da teoria sociolgica explica a ordem social em termos de valores compartilhados. Assim, enfatiza de modo particular a centradade de certos valores amplos e considera a aceitao moral destes um fator chave na modelao da sociedade. Essa explicao, nos termos mais simples, afirma que quando h consenso substancial, em relao aos valores, entre os membros de uma sociedade, resulta disso uma ordem moral. A ordem explicada em termos do consenso de valores. Esse tipo de pensamento pode facilmente explicar a mudana, voltando-se para o mesmo termo chave: consenso de valor. Ao sugerir que o consenso imperfeito, ou a ausncia de consenso, existe em certas situaes, a principal explicao da ordem suprimida e o terico deve ao contrrio, explicar a mudana.

    0 mesmo argumento pode ser demonstrado para um outro aso. Suponhamos que uma teoria tenha considerado a mudana o principal fato de toda a sociedade, e tenha atribudo a razo disso luta contnua dos oprimidos para se tomarem livres . Essa teoria depararia imediatamente com o fato de que nem todos so atualmente livres no sentido pretendido pela teoria, e o prximo passo teria de ser a proposio do motivo pelo qual isso assim. De modo claro, essa teoria precisaria identificar uma srie de compulses que impediam a liberdade, introduzindo assim uma forma de agente antimudana . Por mais inesperado que isso possa ser, tal teoria finalmente o faria; ela teria de dar uma explicao terica que incluiria a idia de ordem, mesmo se a teoria enfatizasse inicialmente a