Pensar em Tempo de Crise

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PENSAR EM TEMPO DE CRISE

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PENSAR EM

TEMPO

DE

CRISE

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PENSAR EM TEMPO DE CRISE

Jean Bartoli

[email protected]

Estamos perplexos! O que está acontecendo? Como agir? Esse concerto

por uma exclamação e duas interrogações está provocando dissonâncias no

descanso intelectual que nosso jeito habitual de pensar nos tinha proporcionado!

Aqui está uma conseqüência positiva das tribulações que vivemos.

Nesse texto, gostaríamos de questionar alguns dilemas do que

costumamos chamar de “ciências da gestão”, no intuito de perceber as

limitações impostas por esse paradigma. Num segundo momento, tentaremos

apontar algumas trilhas para pensar em tempo de crise.

Redescobrindo as limitações das “ciências da gestão

empresarial”

Quase vinte anos atrás, alguns avisavam que as “ciências da gestão” iam

enfrentar problemas de credibilidade1. Surgia a necessidade de que o

conhecimento em gestão refletisse sobre si mesmo, explicitando seus

pressupostos e fundamentos teóricos, assim como os modelos do humano, do

social, da organização, do econômico e do político sub-entendidos na

elaboração dos instrumentos de gestão. Esta tarefa é mais fundamental hoje na

medida em que a gestão usa sinais e símbolos que parecem ter sido duramente

atingidos na crise que vivemos.

1 Vamos acompanhar a reflexão de Alain Charles Martinet, no capítulo primeiro (“grandes

questions épistémologiques et sciences de gestion”) em MARTINET, Alain Charles (org.),

Épistémologie et Sciences de Gestion, Paris, Economica, 1990

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ciência e gestão: uma relação sempre difícil

Desde a “Econômica” de Xenofonte (século V antes de Cristo), que

descrevia a arte de administrar a cidade, a gestão foi recuperada por um

pensamento econômico que se centrou no bem comum, no interesse geral ou

nos desejos do Príncipe (Mercantilistas). É preciso esperar Adam Smith (1776)

para que o trabalho do homem, e não o ouro ou a terra, seja designado como o

principal fator de riqueza das nações. Vale a pena citar:

“A mais sagrada e a mais inviolável de todas as propriedades é a do

próprio trabalho, porque ela é o fundamento originário de todas as outras

propriedades. O patrimônio de um homem pobre reside na força e na destreza

de suas mãos, e impedi-lo de empregar essa força e destreza da maneira que

julga apropriada, desde que não cause prejuízo a seu próximo, constitui violação

manifesta da mais sagrada propriedade. Trata-se de uma flagrante usurpação

da lícita liberdade, tanto do trabalhador como dos que estariam dispostos a dar-

lhe trabalho.”2

O homem princípio de produção, a divisão do trabalho, a constituição do

capita fixo e circulante, o papel dos preços e do mercado e a “mão invisível” do

mercado são os temas que se situam no interface da economia e da gestão.

Desde Ricardo e os neo-clássicos, a introdução do cálculo marginal, do homo

oeconomicus, da mecânica social exclui a empresa como objeto de análise. Ela

pode ser vista como o criador, o proprietário do capital ou o gestor num centro

virtual de cálculo econômico, sendo considerada como uma unidade técnica,

convidada a trazer mecanicamente uma resposta otimizada às grandes

questões de produção. A economia interessa-se somente pelas quantidades e

pelos preços, e transforma a organização produtiva numa mecânica da alocação

ótima. As hipóteses do modelo tornam inútil a análise do que acontece no seio

da empresa, por exemplo dos múltiplos problemas de eficácia e de eficiência

que constituem o dia a dia do mundo industrial.

À mecânica econômica dos neo-clássicos responde a empresa-máquina

dos tayloristas. Ao comportamento racional dos agentes econômicos

2 SMITH, Adam, A riqueza das nações, 2 volumes, São Paulo, Martins Fontes, 2003, livro I

cap. 10, p. 155-156

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(maximização do lucro da firma, da utilidade para o consumidor) responde o

comportamento racional dos trabalhadores (maximização da r enda no quadro do

salário proporcional ao rendimento). Com os custos administrados pelos

gerentes e os preços harmonizados pelos economistas, o jardim do mundo será

bem cultivado! Assim, o renascimento de um pensamento sistemático e

formalizado sobre gestão acontece no quadro de um paradigma de organização

perfeita, de quantificação clara, de divisibilidade, de intemporalidade, de

repetição e de estabilidade.

No prazo de quarenta anos, o estatuto da empresa e da gestão fica

consideravelmente modificado. Aparece a necessidade de construir os custos

dos produtos, de conhecer e de antecipar os mercados, de informar o

consumidor pela publicidade, de ver a empresa como um sistema social a ser

administrado. A busca da verdade científica esmaece diante das proclamações

de eficácia: a demonstração parece menos importante do que a força da

convicção; isso leva essa jovem disciplina a assumir o pragmatismo como

finalidade, o empirismo como método e a retórica como meio de expressão.

Esse corpo de conhecimentos – ou, pelo menos, de discursos – vai ter um

grande desenvolvimento a partir dos anos 30, oscilando com desconforto entre a

preocupação com eficácia e a busca da verdade.

Algumas controvérsias

Algumas controvérsias epistemológicas, que marcaram a primeira metade

do século XX, ajudam a enxergar os limites das ciências da gestão.

verificação / refutação: este embate opõe os que buscam a verdade

aos que se esforçam de mostrar que uma proposição não é falsa.

Para os primeiros, se a observação dos fatos confirma a hipótese,

ela é verificada. Para os segundos, basta uma conjetura que resiste

bem a fatos contraditórios. Vários pesquisadores da área de gestão

aceitam os critérios de verificação, elaborando enunciados que

invocam unicamente o tamanho das amostras para validar leis.

Articulam variáveis pouco claras, alheios ao fato de que os sistemas

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empresariais analisados são extremamente complexos e

interdependentes. Eles parecem querer evitar que os resultados de

suas pesquisas sejam questionados a partir de outras variáveis não

levadas em consideração nas suas demonstrações.

hiper-empirismo: O operacional chafurda no hiper-empirismo e no

pragmatismo: alguns esquecem que não tem nada de mais

operacional de que uma boa teoria. Muitas vezes, pesquisas

indutivas, estudos de casos ou monografias levam a resultados

triviais, pouco explicativos e não prescritivos por falta de

embasamento numa boa reflexão teórica.

explicativo / normativo: o pensamento empresarial oscila entre a

tentativa de explicar o mundo, e o papel das empresas nele, e a

vontade de mudá-lo. A hesitação abre um abismo entre a primeira

parte do trabalho – a explicação – e a segunda – a prescrição. É a

ruptura entre o científico e o tecnológico, entre o positivismo e o

construtivismo. A pesquisa em gestão não pode limitar-se, por

razões que dizem respeito à sua própria natureza, a uma visão

explicativa: ela não se distinguiria da sociologia ou da economia de

empresa! Todavia, pode ela contentar-se com um mero “isto

funciona?” As ferramentas propostas induzem estruturas mentais,

comportamentos, decisões e finalmente ação do homem em relação

a outro homem.

intencionismo / determinismo: a lógica da intenção nem sempre se

entende com a lógica do sistema. A estratégia e o management não

existem se não aceitarem graus de liberdade dos seus protagonistas

e as limitações que estruturam a situação – por exemplo as regras

do jogo que devem ser conhecidas para que se possa evitá-las,

adaptar-se a elas ou mudá-las -. A empresa não pode ter certeza de

uma boa performance pela simples consulta a um repertório de

estratégias pretensamente eficazes. Elas não são condições

necessárias ou suficientes, mas tão somente princípios e pontos de

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referência que servem de balizas para permitir uma maior

compreensão e um melhor julgamento.

explicação total / explicação parcial: por razões opostas, a busca

incessante de verificação e o pensamento mágico pretendem ser

uma explicação total que pretende dar conta da “realidade essencial”

sob a aparência de fenômenos observáveis. As vezes, a literatura

gerencial prefere a encantação à argumentação no esforço de

persuadir que a performance é o fruto de uma cultura forte, de

estruturas descentralizadas ou, pior, da onisciência e do carisma da

liderança! Por não se desmarcar da busca de uma formulação

universal dos mecanismos da eficácia, muitos trabalhos acabam

caindo na tautologia. O excesso de recorte em objetos distintos,

cada vez mais subdivididos, arrisca de transformar a “comunidade

científica” em uma coleção de hiper-especialistas não comunicantes,

cada um refugiando-se, solitário, no seu campo minúsculo! Como

qualquer outra disciplina, a ciência da gestão deve acolher as idas e

vindas entre aprofundamentos locais e rearticulação dos

conhecimentos em quadros conceituais mais globais.

purismo / anarquia metodológica: desejosos de ser admitidos no

campo das “ciências duras”, mesmo quando a percepção comum

destas últimas está sendo ultrapassada, certos pesquisadores

parecem ser dominados pelo método. É melhor admitir o pluralismo

metodológico que contribui para a pertinência, a coerência e a

eficácia da sistematização conceitual, assim como para o bom

entendimento e a comunicabilidade dos enunciados.

Nessa altura da nossa reflexão aparece uma dificuldade complementar:

como combinar uma reflexão intelectual as vezes árida com a necessidade do

comprometimento tão esperado pelas lideranças empresariais? Uma exortação

motivacional poderia ajudar?

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Pensamento positivo

Podemos considerar o discurso do pensamento positivo (ou “positive

atitude”) como uma tentativa de resposta, infelizmente bastante simplória, para

resolver os problemas existenciais daqueles que sentem que algo de estranho

está acontecendo no nosso mundo planejado, explicado e guiado pelos critérios

da eficácia. Essa ideologia assim se articula3:

•Um objetivo é facilmente atingível se a pessoa o quiser com bastante

sinceridade, força e concentração.

•Cada um deve pensar que, para conseguir um bom emprego ou para ser

um líder envolvente, a atitude necessária, embora não suficiente, consiste em

ser otimista.

•Ninguém pode tornar-se um executivo bem sucedido se ficar

constantemente anunciando possíveis desastres. O realismo é confundido com

pessimismo.

O problema é que isso não substitui a falta de uma discurso crítico

consistente. Uma ideologia que quiser servir de fundamento para a ação de um

grupo, deve também ter a capacidade de dar às pessoas os motivos para

trabalhar, mesmo que elas devam enfrentar sofrimentos e obstáculos. Sentindo

que o sistema atual chegou ao ponto de fazer a apologia de sua própria

precariedade, as pessoas partem para a lógica da ur gência e da impaciência.

Uma das possíveis conseqüências é que a democracia e o mercado estejam

cada vez mais questionados: essa crise pode contribuir para desencadear um

movimento de revolta e de violências políticas sem precedente! Já está

acontecendo em algumas partes do mundo dito desenvolvido...

Ter consciência dessas limitações e rever hábitos intelectuais poderia

ajudar a colocar os pés no chão e ser mais humildes no trato das questões

empresariais. Contudo, no momento impar que vivemos, isso não parece

3 ATTALI, Jacques, La crise, et après?, Paris, Fayard, 2008

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suficiente. É preciso indagar mais radicalmente o que significa pensar em tempo

de crise.

Pensar em tempo de crise

Pensar vem do verbo latino pensare que significa pesar, apreciar,

contrabalançar, ponderar, trocar, resgatar, expiar. O verbo grego krinein, origem

da palavra crise, significa discernir, avaliar, tomar partido, fazer escolhas. Nessa

segunda parte, gostaria de descrever o ato de pensar como uma atitude de

discernimento existencial destinada a alicerçar um agir mais consistente e

constituir um contrapeso à loucura que parece querer tomar conta do mundo

atual! Distinguirei duas modalidades: o pensamento conceitual e o pensamento

situacional. Por fim, comentarei duas palavras meio exdrúxulas embora não

esotéricas: métis e catastrofismo....esclarecido!

Pensar é uma atitude existencial

Sabemos o quanto Friedrich Nietzsche marca nossa contemporaneidade.

Já no seu tempo, ele perguntava se os homens eram doentes por causa de sua

agitação e de sua falta de ócio: sofreriam eles por causa de um excesso de

energia? A resposta é não! Segundo ele, o que se esconde por baixo dessa

preocupação febril é uma insidiosa preguiça!

“Acho que cada pessoa deve ter uma opinião própria sobre cada coisa

a respeito da qual é possível ter opinião, porque ela mesma é uma coisa

particular e única, que ocupa em relação a todas as outras uma posição

nova, sem precedentes. Mas a indolência que há no fundo da alma do

homem ativo impede o ser humano de tirar água de sua própria fonte.”4

O preguiçoso é o “homem de ação” que submete-se a um ritmo frenético

de trabalho para escapar dos problemas.

Para Nietzsche, não existe pensamento profundo que não doa:

“Cada palmo de verdade deve ser obtido com luta; por ela foi preciso abandonar quase tudo a que se apega o coração, o amor, a confiança na

4 NIETZSCHE, Friederich, Humano, demasiado Humano, São Paulo, Companhia de

Bolso, 2007. par. 286

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vida. Isso requer grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro

serviço. – Que significa, afinal, ter retidão em coisas do espírito? Ser

rigoroso com seu coração, desprezar os “belos sentimentos”, fazer de cada

Sim e Não uma questão de confiança!”5

Um outro pensador, às antípodas de Nietzsche, Nicolas Berdiaev

apresenta a reflexão filosófica como um reflexo das lutas do espírito6. Segundo

ele,

“as contradições que aparecem em qualquer sistema filosófico são as que

nascem da luta espiritual: são inerentes à própria existência e não se deixam

dissimular por baixo de uma aparente unidade lógica. A verdadeira unidade do

pensamento, de fato inseparável da unidade da pessoa, é uma unidade

existencial, não lógica. E a “existencialidade” é contraditória”7.

Assim, cuidado com a patologia da urgência que parece destinada a

oferecer boas desculpas para fugir das contradições, não pensar e não avaliar

as próprias responsabilidades e as conseqüências do agir!

Pensamento conceitual e pensamento situacional

Longe de ser uma fábrica de kits de respostas, o pensamento parece-s e

com a arte de fazer as perguntas justas: tem início mas não tem fim8. As

respostas são perguntas disfarçadas e toda resposta nova suscita outras

perguntas. Segundo Abraão Heschel, existem duas formas de pensamento: um

ocupa-se de conceitos e o outro de situações. O pensamento conceitual é um

ato do raciocínio; o pensamento situacional supõe uma experiência interior: a

pessoa que expressa um julgamento sobre uma proposição considera-se

pessoalmente envolvida nesse julgamento. O pensamento conceitual é válido

quando nos propomos de aumentar nosso conhecimento do mundo. O

pensamento situacional é necessário quando tentamos entender os problemas

que engajam nossa existência verdadeira.

5 Ibid.

6 BERDIAEFF, Nicolas, De l’esclavage et de la liberté de l’homme, Paris, Desclée de

Brouwer 1990, En guise d’introduction; des contradictions de ma pensée.

7 N eologismo também em francês.

8 HESCHEL, Abraham, Dieu en quête de l’homme, philosophie du judaïsme, Paris,

Éditions du Seuil, 1968

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Assim, por exemplo, não se discute o futuro da humanidade na idade

atômica como se fala da meteorologia! Seria um grande erro eliminar do debate

o medo, o terror, a humildade e a responsabilidade. Esses sentimentos deveriam

ser parte integrante da discussão sobre o perigo nuclear tanto quanto o próprio

átomo. Não estamos diante de um problema independente de nos mesmos: é

uma situação da qual somos parte integrante. Para entender o problema,

devemos examinar a situação. No pensamento conceitual, a atitude é de

distanciamento porque o sujeito coloca-se frente a um objeto independente dele

mesmo. No pensamento situacional, a pessoa está envolvida porque toma

consciência de sua implicação numa situação que ela precisa entender.

O começo do pensamento situacional não é a dúvida ou o distanciamento:

é o sobressalto, o medo, o engajamento. O pensador é testemunha e não

simplesmente contador (nos dois sentidos da palavra: conto e contabilidade!)

das ações dos outros. Se o pensador não estiver engajado, o problema não tem

presença. O pensamento criador não é estimulado pelas descobertas dos outros

mas sim pelos nossos problemas pessoais e nosso engajamento nos desafios

coletivos. As dificuldades onde se encontra nosso coração nos fornecem os

motivos imperiosos de nossa busca da verdade.

Onde pensar tem a ver com finta....

Vem o momento de introduzir as duas palavras esdrúxulas prometidas. E

se pensar tivesse a ver com a astúcia, a busca de atalhos, o drible? Isso

comporta inovar e ao mesmo tempo resgatar, enfrentar e ao mesmo tempo

contornar, raciocinar e ao mesmo tempo intuir, criar e ao mesmo tempo repetir,

duvidar e ao mesmo tempo afirmar, ter medo e ao mesmo tempo ter esperança.

Me parece que a métis e o catastrofismo são as duas faces de uma mesma

atitude.

Métis

A métis implica um conjunto complexo, porém muito coerente, de atitudes

mentais, de comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade, a

previsão, a flexibilidade, a finta, a capacidade de se virar, a atenção vigilante, o

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sentido de oportunidade, habilidades diversas e uma experiência adquiridas com

o tempo. Ela se aplica a realidades fugazes, mutantes, desconcertantes e

ambíguas, que não são captadas por medidas precisas, nem por cálculos

exatos, nem por um raciocínio rigoroso. A métis percorre todo o universo cultural

grego: é preciso identificar em escritos, aparentemente heterogêneos, uma

mesma atitude de espírito a partir da qual os gregos representaram para si uma

inteligência engajada na prática e astuta para enfrentar obstáculos9.

Trata-se de uma categoria mental porque as formas de inteligência astuta

que os gregos operaram em largos setores de sua vida social, espiritual e

religiosa, nunca foram objetos de uma formulação explícita ou de uma exposição

seguida de ordem teórica. Não existem tratados sobre a métis, nem sistemas

filosóficos construídos sobre ela: aviso aos que gostariam de encontrar mais

uma metodologia infalível, submissa a copyright e...vendável! O indivíduo, deus

ou homem, dotado de métis e confrontado a uma realidade complexa, só pode

dominá-la quando ele também se transforma numa pessoa mais versátil e mais

ágil.

Catastrofismo esclarecido

O último livro de Jean-Pierre Dupuy, filósofo extremamente perspicaz, que

cunhou a expressão “catastrofismo esclarecido” 10 numa obra anterior, incomoda

pela lucidez das advertências e provoca pelo convite a uma inteligência ativa

para enfrentar os perigos que, como humanidade, estamos correndo11. Para ele,

é preciso, primeiro, reconhecer que pensar implica violar os interditos e as

obrigações do método cartesiano e renunciar ao ideal de um conhecimento

fundado nas “idéias claras e distintas”. Pensar é aproximar-se o mais perto

possível do “buraco negro” onde não existem diferenças evidentes, afim de

9 DETIENNE Marcel et VERNANT, Jean-Pierre, Les ruses de l’intelligence, la

mètis chez les grecs, Paris, Flammarion, 1974

1 0 DUPUY, Jean-Pierre, Pour un catastrophisme éclairé, quand l’impossible est certain,

Paris, Seuil, 2002

1 1 DUPUY, Jean-Pierre, La marque du sacré, Paris, Carnetsnord, 2008

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perceber o caos primordial de onde tudo se origina e onde tudo pode acabar em

catástrofe.

Poucos prestam atenção a isso porque nossa sociedade é dominada pela

economia: sua relação com o futuro somente se dá por meio dos movimentos de

preços que antecipam as carências futuras. Por isso a crise energética atrai

mais a atenção do que a ameaça climática, por demais rebelde à quantificação!

Mesmo quando sabemos que a catástrofe está na nossa frente, não acreditamos

no que sabemos porque a propensão de uma comunidade em reconhecer a

existência de um risco é determinada pela idéia que ela tem da existência de

soluções. Como os poderes econômicos e políticos acreditam que uma

mudança radical nas nossas vidas e uma renúncia ao “progresso” seriam o

preço a pagar para evitar o desastre climático, e que esse preço parece

exorbitante demais, a ocultação do mal aparece como rota de fuga. A catástrofe

não é crível: somente é considerada possível quando ela aconteceu... quer dizer

tarde demais!

Afim de incitar-nos a vigiar, o catastrofismo esclarecido consiste em um

convite a projetar-se pelo pensamento no momento do pós-catástrofe; feito isso

e, olhando para trás na direção do nosso presente, poderemos ver na catástrofe

um destino que podíamos escolher de descartar quanto estava ainda em tempo!

O catastrofismo esclarecido é uma finta, uma métis, que consiste em fazer de

conta que somos vítimas de um “destino” para acordar e reconhecer que, na

realidade, mais do que vítimas, somos a causa do que pode nos acontecer.

Existe verdadeiramente liberdade e autonomia porque, pessoalmente e

coletivamente, podemos abrir outros caminhos pela nossa vontade livre.

Métis, catastrofismo e esperança

As mensagens passadas pelos acontecimentos e pelas pessoas lúcidas

que refletem sobre eles, não são muito animadores! Não é a toa que o novo

presidente dos Estados Unidos optou por um discurso claro e sem concessões,

bem diferente de outros estadistas... Seria um convite para o pessimismo? Não

gosto muito da dialética otimismo / pessimismo que me parece apropriada para

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o torcedor que não pode influenciar o decorrer do jogo a partir da arquibancada:

só sobra para ele conjeturar sobre o possível resultado do embate! No nosso

caso, a partir do momento em que nos consideramos parte ativa do pr ocesso, o

catastrofismo, que é uma métis destinada a antecipar o futuro para influenciá-lo,

encontra seu complemento numa prática decidida da esperança.

A esperança é, segundo o dicionário Houaiss, “ o sentimento de quem vê

como possível a realização daquilo que deseja”. Prefiro substituir “sentimento”

por “atitude”. Essa atitude praticada com perseverança vira um hábito que

nossos antecessores em humanidade chamavam de virtude! O catastrofismo,

ajudando a enxergar as conseqüências terríveis de decisões inconseqüentes,

pode provocar uma revisão de desejos e objetivos e levar a uma mudança de

comportamentos e de ações. Isso acontece se aceitamos de reconhecer a

presença de uma vontade livre como fonte de nossas escolhas! Esse processo

contagia porque o humano pessoal e coletivo constrói-se também pela imitação.

Günter Anders, filósofo do século XX, traduz isso num texto extraordinário,

“a lenda de Noé”, que não resisto em citar.

“Noé estava cansado do papel de profeta da infelicidade e de sempre anunciar uma catástrofe que nunca vinha e que ninguém levava a sério. Um dia,

vestiu um velho saco e espalhou pó sobre a cabeça. Este gesto só era permitido

a quem pranteava um filho querido ou a esposa. Vestindo a roupa da verdade,

ator da dor, voltou para a cidade, decidido a reverter em seu benefício a

curiosidade, a malignidade e a superstição dos moradores. Em pouco tempo,

juntou-se a seu redor uma pequena multidão curiosa e as perguntas começaram

a surgir. Perguntaram se alguém tinha morrido e quem era. Noé respondeu que

muitos tinham morrido e que esses mortos eram eles, o que provocou

gargalhadas. Quando lhe perguntaram quando tinha acontecido tal catástrofe,

ele respondeu: amanhã. Aproveitando então a atenção e a aflição dos ouvintes,

Noé ergueu-se e, do alto de sua grandeza, começou a falar: depois de amanhã,

o dilúvio será algo que já aconteceu. E quando o dilúvio tiver acontecido, tudo

que é nunca terá existido. Quando o dilúvio tiver arrastado tudo o que existe,

tudo que tiver existido, será muito tarde para lembrar, porque não haverá mais

ninguém. Não haverá mais então nenhuma diferença entre os mortos e os que

os choram. Se eu vim aqui diante de vocês, é para inverter o tempo, é para

chorar hoje os mortos de amanhã. Depois de amanhã, será tarde demais. Dito

isso, voltou para casa, trocou de roupa, tirou o pó que lhe cobria o rosto e foi

para sua oficina. No decorrer da tarde, um carpinteiro bateu a sua porta e lhe

disse: deixa-me te ajudar a construir a arca para que tudo aquilo se torne falso.

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Mais tarde, um telhador juntou-se aos dois, dizendo: chove nas montanhas,

deixem-me ajudá-los para que tudo aquilo se torne falso.” 12

Então, tenhamos a coragem de pensar! Não existe tarefa mais urgente do

que apostar e confiar na inteligência das pessoas e estar abertos à diversidade

das manifestações do pensamento humano. Ninguém age sem encontrar razões

e motivos para tanto: nada substitui a busca individual e coletiva do sentido que

transcende as aparências. Aí estão a grandeza, a dignidade e a fragilidade da

vocação de ser individualmente e coletivamente humano!

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BERDIAEFF, Nicolas, De l’esclavage et de la liberté de l’homme, Paris,

Desclée de Brouwer 1990

DETIENNE Marcel et VERNANT, Jean-Pierre, Les ruses de l’intelligence, la

mètis chez les grecs, Paris, Flammarion, 1974

DUPUY, Jean-Pierre, Pour un catastrophisme éclairé, quand l’impossible est

certain, Paris, Seuil, 2002

DUPUY, Jean-Pierre, Petite métaphysique des tsunamis, Paris, Seuil, 2005

DUPUY, Jean-Pierre, La marque du sacré, Paris, Carnetsnord, 2008

HESCHEL, Abraham, Dieu en quête de l'homme, philosophie du judaïsme,

Paris, Éditions du Seuil, 1968

MARTINET, Alain Charles (org.), Épistémologie et Sciences de Gestion,

Paris, Economica, 1990

NIETZSCHE, Friederich, Humano, demasiado Humano, São Paulo,

Companhia de Bolso, 2007

SMITH, Adam, A riqueza das nações, 2 volumes, São Paulo, Martins Fontes,

2003

1 2 O texto é citado em DUPUY, Jean-Pierre, Petite métaphysique des tsunamis, Paris,

Seuil, 2005 p.10. Dupuy tira essa citação do livro de SIMONELLI, Thierry, Günther Anders. De la

désuetude de l´homme, Clichy, Éditions du Jasmin, 2004, pg. 84-85