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JAN/JUN 2008 59 Resumo: A atenção em saúde mental no Bra- sil, historicamente marcada por práticas manicomiais, vem passando por intensas modi- ficações desde a década de 1980, com a pro- posta da substituição do modelo hospitalo- cêntrico por uma rede de serviços alternati- vos. Entretanto, para viabilizar a implantação de uma rede realmente efetiva, precisamos in- vestir na avaliação do que já vem sendo feito para subsidiar a tomada de decisões quanto às iniciativas futuras. Partindo destes pressupos- tos, apresentamos uma avaliação baseada na abordagem da sociopoética que, ao utilizar o método do grupo-pesquisador, considera o ca- ráter autogestivo e a dimensão subjetiva dos atores envolvidos. Para apresentar o potencial desta abordagem em pesquisas avaliativas, descrevemos as etapas do método do grupo- pesquisador e o exemplificamos com uma pesquisa desenvolvida em um Centro de Aten- ção Psicossocial do município de Fortaleza-CE. Palavras-chave: avaliação; saúde mental; métodos, política de saúde mental Pesquisa de avaliação em serviços de saúde mental: uma proposta ético-estético-política Avaliative research in mental health services: a ethics- aesthetic-political proposal Investigación en evaluación de servicios de salud mental: una proposición ética-éstética-política Recherche pour levaluation du services de santé mentale: un projet esthétique-ethique-politique Lia Carneiro Silveira* Maria Lucilane Sales da Silva** Maria Rocineide Ferreira da Silva*** Ariza Nara Saldanha de Almeida**** Monyk Neves de Alencar***** Abstract: The mental health attention in Brazil, historically marked by asylum practices, is undergoing intense changes since the 80 years, with the proposal of replacing the hospitalar model by a network of alternative services. However, to facilitate the deployment of a network really effective, we need to invest in the evaluation of what is already being done to support decision-making on future initiatives. On these assumptions, we present an eva- luative study based on the sociopoetic approach that, by using the method of group- researcher, considers the self-management character and the subjective dimension of the involved actors. To display the potential of this approach in evaluative research, we describe the steps of the group-researcher method and exemplify with a research developed in a Psychosocial Center of Forta- leza city. Keywords: evaluation; mental health; methods, policie on mental health * Doutora em enfermagem, professora do Curso de Enfermagem e do Curso de Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos de Saúde da Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected] ** Doutora em enfermagem e professora do Curso de Enfermagem e do Mestrado Acadêmico em Cuidados Clínicos de Saúde da Universidade Estadual do Ceará (UECE). *** Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), professor assistente da Universi- dade Estadual do Ceará. **** Graduada em Enfermagem e mestranda em Cuidados Clínicos de Saúde pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected] ***** Graduado em enfermagem pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected] ARTIGOS INÉDITOS

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Resumo: A atenção em saúde mental no Bra-sil, historicamente marcada por práticasmanicomiais, vem passando por intensas modi-ficações desde a década de 1980, com a pro-posta da substituição do modelo hospitalo-cêntrico por uma rede de serviços alternati-vos. Entretanto, para viabilizar a implantaçãode uma rede realmente efetiva, precisamos in-vestir na avaliação do que já vem sendo feitopara subsidiar a tomada de decisões quanto àsiniciativas futuras. Partindo destes pressupos-tos, apresentamos uma avaliação baseada naabordagem da sociopoética que, ao utilizar ométodo do grupo-pesquisador, considera o ca-ráter autogestivo e a dimensão subjetiva dosatores envolvidos. Para apresentar o potencialdesta abordagem em pesquisas avaliativas,descrevemos as etapas do método do grupo-pesquisador e o exemplificamos com umapesquisa desenvolvida em um Centro de Aten-ção Psicossocial do município de Fortaleza-CE.

Palavras-chave: avaliação; saúde mental;métodos, política de saúde mental

Pesquisa de avaliação em serviços de saúde mental: umaproposta ético-estético-política

Avaliative research in mental health services: a ethics-aesthetic-political proposal

Investigación en evaluación de servicios de salud mental:una proposición ética-éstética-política

Recherche pour l’evaluation du services de santé mentale:un projet esthétique-ethique-politique

Lia Carneiro Silveira*Maria Lucilane Sales da Silva**

Maria Rocineide Ferreira da Silva*** Ariza Nara Saldanha de Almeida****

Monyk Neves de Alencar*****

Abstract: The mental health attention in Brazil,historically marked by asylum practices, isundergoing intense changes since the 80 years,with the proposal of replacing the hospitalarmodel by a network of alternative services.However, to facilitate the deployment of anetwork really effective, we need to invest inthe evaluation of what is already being doneto support decision-making on future initiatives.On these assumptions, we present an eva-luative study based on the sociopoeticapproach that, by using the method of group-researcher, considers the self-managementcharacter and the subjective dimension of theinvolved actors. To display the potential ofthis approach in evaluative research, wedescribe the steps of the group-researchermethod and exemplify with a researchdeveloped in a Psychosocial Center of Forta-leza city.

Keywords: evaluation; mental health;methods, policie on mental health

* Doutora em enfermagem, professora do Curso de Enfermagem e do Curso de Mestrado Acadêmico em

Cuidados Clínicos de Saúde da Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected]

** Doutora em enfermagem e professora do Curso de Enfermagem e do Mestrado Acadêmico em Cuidados

Clínicos de Saúde da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

*** Mestre em Saúde Pública pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), professor assistente da Universi-

dade Estadual do Ceará.

**** Graduada em Enfermagem e mestranda em Cuidados Clínicos de Saúde pela Universidade Estadual do

Ceará (UECE). E-mail: [email protected]

***** Graduado em enfermagem pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected]

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O atual contex-to histórico apre-senta-se perpas-

sado por intensas mudanças nos planos social,econômico e cultural, relacionadas às inova-ções tecnológicas, e pela reorganização polí-tica em torno do paradigma da globalização.Entretanto, nem sempre estas mudanças tra-duzem-se em ganhos qualitativos para as po-pulações, principalmente para aquelas dos paí-ses considerados “em desenvolvimento”. Ésabido que grande parte deste contingentenão só permanece à margem destes benefí-cios como também sofre as consequências dascondições iatrogênicas do mundo moderno.

Com relação aos aspectos de saúde, assis-timos (principalmente em países desenvolvi-dos) ao surgimento de uma tendência dedeclínio da incidência de patologias infecto-contagiosas e ao aumento das chamadasdoenças crônico-degenerativas, estas últimasgeralmente associadas ao estilo de vida dohomem moderno. Por outro lado, nos paísesem desenvolvimento como o Brasil, percebe-se que os dois perfis epidemiológicos convi-vem lado a lado, dependendo da classe socialque se observa (Lessa, 1998). Em meio a estequadro epidemiológico, os transtornos men-tais apresentam relevante incidência. Segun-do dados do Ministério da Saúde, 3% da po-pulação brasileira sofrem com transtornos men-tais severos e persistentes; 6% apresentamtranstornos psiquiátricos graves decorrentesdo uso de álcool e outras drogas; e 12% ne-cessitam de algum atendimento de saúde men-tal, seja contínuo seja eventual (Brasil, 2005).

As políticas de atenção às pessoas em so-frimento psíquico no Brasil têm sido, historica-mente, marcadas pelo curativismo e pelas prá-ticas hospitalocêntricas. Em oposição a estemodelo, nasce na década de 1980 a propostada Reforma Psiquiátrica. Esta pode ser enten-dida como um processo de reformulação críti-ca e prática que busca o questionamento e aelaboração de propostas de transformação domodelo clássico e do paradigma da psiquiatriaconsiderado iatrogênico e excludente.

O objetivo da reforma psiquiátrica é adesinstitucionalização. Desinstitucionalizar vaialém de desospitalizar e significa abordar osujeito em sua existência e em relação comsuas condições concretas de vida, construin-do novas possibilidades de sociabilidade e sub-

jetividade. Este processo não é apenas técni-co-administrativo, jurídico ou político; é, aci-ma de tudo, um processo ético, que tentaoferecer à pessoa em sofrimento psíquico umcuidado verdadeiro através de uma terapêuti-ca cidadã (Amarante et al., 1995). Busca, por-tanto, a desospitalização, a reabilitação psicos-social e o fortalecimento da cidadania dos su-jeitos, por meio da formulação de campos depráticas e saberes na qual haja uma preocu-pação com os aspectos subjetivos do pacien-te e que não se restrinja à medicina e aossaberes psicológicos tradicionais. A reformaé, sobretudo, um campo heterogêneo que en-volve a clínica, a política, o social, o cultural eas relações com o jurídico. Ressalta ainda queeste projeto é obra de novos atores, entreeles a família e o próprio portador de sofri-mento psíquico (Tenório et al., 2002).

Como resultado da construção da propostada reforma psiquiátrica, o movimento de trans-formação no campo da saúde mental passapor importantes mudanças, caracterizadas pelacriação de novos serviços. Dentre as novasexperiências, destacamos o surgimento dosCentros de Atenção Psicossocial (CAPS), quevieram como base para a abertura de novaspossibilidades para a saúde mental em nossopaís.

O CAPS é um serviço de saúde aberto ecomunitário que serve de referência para tra-tamento de pessoas em sofrimento psíquico,com psicoses, neuroses graves e demais qua-dros, cuja severidade e/ou persistência justi-fiquem sua permanência num dispositivo decuidado intensivo, comunitário, personalizadoe promotor de vida. Caracteriza-se como uma“estrutura intermediária” entre o hospital e acomunidade, que oferece às pessoas um es-paço institucional que permita entendê-las einstrumentalizá-las para o exercício da vidacivil. Desta forma, torna-se possível o desen-volvimento de laços sociais e interpessoais es-senciais para o estabelecimento de novas pos-sibilidades de vida, contribuindo, assim, parao processo de reinserção social do paciente.

A implementação dos CAPS enfrenta muitosdesafios, uma vez que o desenvolvimento dosserviços substitutivos só acontece de formaefetiva se houver uma mudança na forma deencarar o processo saúde-doença mental pe-los sujeitos envolvidos (trabalhadores de saú-de, usuários e sociedade). Desta forma, bus-

Introdução

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ca-se o comprometimento destes para se con-seguir a superação de antigas práticas na as-sistência à pessoa em sofrimento psíquico.Concordamos com Lima et al. (1993) quandodestacam que a viabilização deste processosó será possível quando os profissionais en-volvidos romperem as barreiras de uma práti-ca limitada e trabalharem a condição humanadentro de seu real contexto político e social.Para que isso aconteça, é necessária a imple-mentação de políticas de saúde eficientes, queestimulem a participação da comunidade.

Desta perspectiva, percebemos que a im-plantação efetiva do CAPS é um processo ain-da em andamento e passível de mudanças eadaptações. Trata-se de um momento histó-rico de ruptura, cujas repercussões só pode-rão ser avaliadas a partir da análise de dadosconcretos a respeito do que já foi e continuasendo desenvolvido nos serviços já implanta-dos.

Avaliação de serviços de

saúde mental: construção de

uma nova proposta

O ato de avaliar faz parte da história dahumanidade desde seus primórdios, sendo ine-rente ao próprio processo de aprendizagem(Contandriopoulos et al., 1997). O interesseem avaliar programas públicos manifestou-selogo após a Segunda Guerra Mundial comoconsequência da necessidade de planejar einvestir, eficazmente, os recursos destinadosàs áreas da educação, do social, do empre-go, da saúde etc. Esta visão do processo deavaliação segue uma ótica gerencial e estávoltada para a maximização da eficácia dosprogramas e para a obtenção da eficiênciana utilização dos recursos (Uchimura e Bosi,2004).

No Brasil, embora os estudos acerca doprocesso de avaliação só tenham se intensi-ficado a partir da década de 1980, percebe-se que foram se desenvolvendo ao longo dotempo diversas visões teórico-conceituaissobre o tema. Pode-se afirmar que existeconsenso entre as diversas correntes ao per-ceber a avaliação como o ato de emitir algumjuízo de valor sobre determinada ação. En-

tretanto, observa-se que, dependendo datendência seguida, estas visões podem sercomplementares ou até mesmo antagônicas,criando uma multiplicidade de sentidos acer-ca do que estaria envolvido no ato de avaliar(Tanaka e Melo, 2004).

Partindo deste princípio, entendemos serimportante apresentar algumas destas visões,tentando, por meio de um diálogo entre elas,definir o conceito que estará sendo abordadoneste estudo.

Contandriopoulos (et al., 1997), em umclássico texto sobre avaliação em saúde, se-gue a visão de que avaliar é emitir julgamen-tos com o objetivo de ajudar na tomada dedecisões. Para o autor, este julgamento podeser resultado da aplicação de critérios e denormas (avaliação normativa) ou da elabora-ração a partir de um procedimento cientifico(pesquisa de avaliação).

Na primeira alternativa, busca-se compa-rar os recursos empregados e sua organiza-ção (estrutura), os serviços ou bens produ-zidos (processo) e os resultados obtidos, comcritérios e normas. A finalidade principal daavaliação normativa é ajudar no processogerencial e, geralmente, ela é conduzida poraqueles que são responsáveis pelo funciona-mento e pela gestão da intervenção (idem,op. cit.). À avaliação normativa, Contandrio-poulos (op. cit.) contrapõe a pesquisa deavaliação, que seria caracterizada pela apli-cação de métodos científicos no processo deavaliação.

Entretanto, pode-se contestar essa divi-são conceitual, pois a análise de programas àluz de critérios e normas consiste, também,em atividade científica que requer um rigormetodológico para sua implementação (Uchi-mura e Bosi, op. cit.).

Outra questão levantada nas discussõesacerca da avaliação de programas e serviçosé relativa à dicotomia quantidade–qualidade.Historicamente, a construção deste campotem sido diretamente influenciada pelo rigorcientífico positivista. Esta vertente enfatizaa medição quantitativa dos fenômenos, ex-cluindo os elementos que descrevem o con-texto local e sua influência nos resultadosfinais da avaliação (Tanaka e Melo, op. cit.).Além disso, a abordagem positivista valorizaa objetividade e a neutralidade do pesquisa-

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dor, entendendo-o como um especialista ex-terno (Furtado, 2001).

A partir da década de 1980, percebe-seno Brasil a constituição de um espaço propí-cio à discussão de questões de teor qualita-tivo, com ênfase em questões emancipa-tórias (Silveira et al., 2003). A abertura po-lítica após o período ditatorial, a entrada emcena de novos atores políticos preocupadosem discutir a participação social e a críticaàs desigualdades (principalmente no setorsaúde) exigem uma reflexão também acercados processos de avaliação. Reconhece-senesta corrente a necessidade premente deavaliar para poder planejar e intervir, mas, aomesmo tempo, pode-se interrogar: Quem iráavaliar? Como avaliar? E, acima de tudo, comque consequências?

Estas questões crescem em importânciaquando se percebe que avaliar não é apenasum processo técnico, mas sim uma questãopolítica na qual avaliador e avaliado sofremmudanças qualitativas (Demo, 1999). A orien-tação qualitativa das pesquisas de avaliaçãoenfatiza a dimensão subjetiva dos fenômenos,contextualizando-os historicamente.

Para avançar neste sentido, precisamosincorporar às nossas discussões não só aspreocupações com a qualidade formal (ins-trumentos e métodos), mas também a quali-dade política (processos e conteúdos) (idem,op. cit.). Entendemos que o primeiro passorumo a esta conquista é aquele que diz res-peito à participação ativa dos atores envol-vidos nos serviços a ser avaliados, permitin-do a multiplicação de visões acerca de suaspráticas.

Se percebermos a avaliação como premis-sa básica para conduzir a tomada de deci-sões, não se pode admitir que se excluamdesta prática os sujeitos envolvidos direta-mente em suas consequências. Quando tra-tamos de serviços de saúde, a avaliação en-volve o resgate não só de profissionais desaúde, mas também de usuários do serviço,beneficiários últimos destas ações. Some-seainda a importância de se resgatar a promo-ção da saúde como conceito transversal atodo este processo. Este tem sido definidohistoricamente nas discussões de constru-ção do Sistema Único de Saúde como direta-mente relacionado à participação social naspolíticas de saúde.

Neste contexto, o papel do avaliador afas-ta-se da visão tradicional de um observadorexterno que vem apontar erros e estabelecerverdades. Dirige-se, antes, a propiciar um es-paço autogestivo, no qual os sujeitos pos-sam, eles mesmos, identificar suas necessi-dades e dificuldades.

Partindo destes pressupostos, apresenta-mos um estudo de avaliação baseado na abor-dagem da sociopoética, que considera o ca-ráter autogestivo e a dimensão subjetiva dosenvolvidos no processo. Entendemos que,assim, pode-se possibilitar a reflexão sobre arealidade das políticas de saúde mental, es-pecialmente sobre as particularidades nogerenciamento dos centros de atenção psicos-social, e, ao mesmo tempo, proporcionar o sur-gimento de soluções para o enfrentamento dasquestões encontradas. Entendemos que, paratanto, faz-se necessária a criação de espa-ços que facultem e estimulem a livre expres-são, a dinâmica do diálogo, o respeito à di-versidade de opiniões e a tomada de deci-sões coletivas.

Entramos no espaço da produção de sub-jetividades, uma realidade dinâmica e cons-tantemente construída. Sendo assim, nãopodemos tentar cercá-la com instrumentosestáticos e rígidos. Precisamos utilizar ferra-mentas metodológicas que nos permitam rea-lizar a apreensão das questões produzidassem, no entanto, congelá-las, e, por isso,adotamos o método da sociopoética.

Apresentando uma nova

proposta para a pesquisa

avaliativa

A sociopoética é uma prática e uma teo-ria da pesquisa que “[...] se propõe a umaanálise crítica da realidade social buscandoproporcionar a expressão da transversalidadedos desejos e poderes que agem, de manei-ra inconsciente, na vida social” (Gauthier,1999:13).

Do ponto de vista epistemológico, a socio-poética foi gerada num encontro entre a pe-dagogia do oprimido, a análise institucionale a escuta mitopoética. Da pedagogia dooprimido, herdou o método do grupo-pes-

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quisador, que proporciona a possibilidade deuma produção autogestiva em que os sujei-tos da pesquisa são corresponsáveis peloconhecimento produzido, participando ativa-mente de todo o processo de pesquisa. Daanálise institucional, apropria-se do concei-to de dispositivo entendido como montagensou artifícios que propiciam o surgimento deinovações, de diferenças, de singularidades.A escuta mitopoética de René Barbier tam-bém está presente para lembrar que o pes-quisador “[...] deve aprender a escutar asfalas e os silêncios que ritmam os processosde criação em cada ser. Pois estes ritmospertencem integralmente ao processo de pro-dução de conhecimento” (Gauthier, 1999:14).

Além destes referenciais, a sociopoéticatambém mantém proximidade com a esquizoa-nálise, pois ambas realizam uma crítica radicala toda tendência homogeneizadora (Petit eGauthier, 2005). Vários conceitos esquizoanalí-ticos, como o de “devir”, “afeto” e “linha defuga” servem como peças muito úteis nomaquinário da sociopoética.

Acreditamos que a sociopoética introduzno árido terreno da pesquisa um pouco da fer-tilidade da arte. O importante é o cuidado quese deve ter ao fazer esta conexão. Se a arteentrar na pesquisa, que supere a função es-tética e atue como um verdadeiro dispositivo.É ele que abre caminho para o simbólico, paraa superação das neuroses institucionais, per-mitindo a simbolização do que era proibido,desconhecido. Assim, um grupo até agora su-bordinado pode se tornar sujeito (Gauthier etal., 1998).

A sociopoética é a caixa de ferramentas quenos possibilita construir os dispositivos neces-sários para mergulhar neste espaço, sem, noentanto, cristalizá-lo. Para isso, alguns pontosprecisam ser valorizados, como, por exemplo, aimportância da participação dos sujeitos dapesquisa como copesquisadores, a percepçãodo corpo todo como passível de desencadearpotências criadoras e a utilização da criatividadede tipo artístico no processo de pesquisa.

Estes pressupostos rompem com outros jábastante arraigados na cultura ocidental, su-gerindo que, além da mente, o corpo tambémpensa; que os sujeitos de nossas pesquisas

podem ir além de simples fornecedores de da-dos e que a arte também pode atuar no pro-cesso de produção de conhecimento.

Para abordar o potencial da sociopoéticano desenvolvimento de pesquisas avaliativas,apresentamos o estudo que segue, em queobjetivamos descrever as etapas do métododo grupo-pesquisador, exemplificando-o comuma pesquisa desenvolvida em um Centro deAtenção Psicossocial do município de Forta-leza.

O método do grupo-

pesquisador

Na pesquisa científica convencional, a re-lação do pesquisador com os sujeitos da pes-quisa é sabidamente bastante verticalizada.O pesquisador recorre às pessoas para cole-tar os dados e, na verdade, sem este conhe-cimento do qual os sujeitos da pesquisa sãoportadores, seria impossível pesquisar. Elessão, portanto, a ponte entre o pesquisador ea realidade que se quer conhecer. Entretan-to, o que vai ser feito em seguida com essesdados quase sempre escapa completamenteao universo dos sujeitos da pesquisa. Em ou-tras palavras, o conhecimento que detêm éexplorado e utilizado em proveito da manu-tenção de um status quo do pesquisador, quepassa, de título em título, a ascender cadavez mais na escala do saber/poder.

Quanto aos sujeitos da pesquisa, quandomuito, tomam conhecimento dos resultadosdesta e, mesmo quando isso acontece, osdados chegam até eles carregados de um sen-tido que lhes escapa completamente. Váriasperguntas que muitas vezes nem chegarão aser feitas, permanecem sem respostas: “Apesquisa terá efeitos favoráveis para eles?Desfavoráveis? Dormirá em gavetas? A pes-quisa, mesmo de intenções sociais, será pre-sa na lógica individualista da carreira do pes-quisador? Ela terá um sentido partilhado, dis-cutido entre ele e o grupo produtor dos da-dos?” (Gauthier, 1999:41).

A sociopoética instaura-se dizendo não aesta expropriação de maneira radical, crian-do dispositivos que geram espaços e tem-pos para que as pessoas-alvo da pesquisa

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tomem poderes os mais amplos possíveis naprodução de conhecimento e na realizaçãoda pesquisa (idem, 1999).

Sendo assim, no método do grupo-pes-quisador, os sujeitos da pesquisa têm vozativa desde o início desta até o fim. A se-guir, descrevemos e exemplificamos a utili-zação do método apresentando dados deuma pesquisa realizada na avaliação de umcentro de atenção psicossocial da rede pú-blica do município de Fortaleza-CE.

Consideramos que a própria elaboração deuma pesquisa sociopoética já traz consigouma preocupação ética; entretanto, desta-camos que, com relação à ética normativana pesquisa, preocupamo-nos em assegurara observação dos princípios éticos descritosna Resolução nº 196/96, que trata da pes-quisa envolvendo seres humanos que asse-gure o consentimento livre e esclarecido dos

sujeitos da pesquisa (autonomia); o compro-misso com o máximo de benefícios e o mínimode danos e riscos (beneficência); a garantiade que danos previsíveis serão evitados (não-maleficência); e a relevância social da pes-quisa (justiça e equidade). Ainda para garan-tir os preceitos éticos, a pesquisa foi subme-tida à apreciação de comitê de ética no qualrecebeu parecer positivo.

a) Primeira etapa: formação do grupo pes-quisador – O primeiro momento da pesquisasociopoética é a aproximação com o campoda pesquisa. O método da sociopoética su-gere ainda que, nesse momento, seja feitajuntamente com o grupo a escolha do tema aser pesquisado. Em nosso caso, como se tra-ta de uma pesquisa já delimitada, detivemo-nos apenas a propor o tema. A esse momen-to chamamos “oficina de negociação”.

QUADRO 1 - EXEMPLO DA FORMAÇÃO DO GRUPO PESQUISADOR

Nesse estudo, o local escolhido foi um dos centros de atenção psicossocial do município deFortalezaii. Procuramos o serviço e solicitamos um momento com a equipe para apresentarnossa proposta e convidar os que pretendessem dela participar. Neste momento, fizemos aapresentação de toda a equipe envolvida na pesquisa, a exposição do projeto e a discussãosobre a sua realização, juntamente com a negociação das oficinas de produção. Estavampresentes na reunião três assistentes sociais, uma médica, uma pedagoga, um enfermeiro,duas auxiliares de enfermagem e duas psicólogas. Os objetivos da pesquisa e sua metodologiaforam detalhados, por meio da explicação das oficinas de produção e do grupo-pesquisador.Inicialmente, notamos os profissionais um pouco reticentes, mas, com as discussões que seseguiram acerca do caráter autogestivo da pesquisa, percebemos que o grupo mostrava-semais seguro com relação à nossa proposta e que os profissionais foram se disponibilizando aparticipar. Explicamos ao grupo que os usuários também fariam parte da pesquisa, pois sãoelementos fundamentais na percepção acerca das ações oferecidas pelo CAPS. Pedimos queos profissionais convidassem alguns usuários entre aqueles que tinham maior participaçãono serviço (os que já fazem parte do Conselho de Saúde local, por exemplo), por entender-mos que estes estão mais próximos do processo de gestão do CAPS. Solicitamos ainda quetodos os participantes assinassem o termo de consentimento e dessem permissão para queas oficinas seguintes fossem gravadas e fotografadas. Em seguida, marcamos a primeiraoficina de produção dos dados.

Segunda etapa: oficinas de produção dosdados – Na pesquisa sociopoética, falamosem “produção de dados”, não em “coletade dados”, pois partimos do princípio de queo real está em constante produção, nãoexistindo um mundo já dado que se possacoletar. A produção dá-se com a realizaçãode oficinas nas quais utilizamos técnicas/dispositivos que permitam fazer funcionar

os princípios da sociopoética: a importân-cia da participação dos sujeitos da pesqui-sa como copesquisadores, valorização docorpo na produção de conhecimento e autilização da criatividade de tipo artísticono processo de pesquisa. Geralmente, a ofi-cina começa com uma atividade de prepa-ração corporal; em seguida, tem início a pro-dução dos dados.

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QUADRO 2 - EXEMPLO DE OFICINA DE PRODUÇÃO DOS DADOS

Utilizamos como referência na elaboração das oficinas os parâmetros de humanização da gestãoadaptados a partir do modelo proposto pelo Ministério da Saúde (2001), enfatizando os seguin-tes pontos: condições de acesso e presteza dos serviços; clareza das informações oferecidas;qualidade das instalações, equipamentos e condições ambientais; qualidade das relações entreusuários e profissionais; gestão e participação dos profissionais e usuário. Foi desenvolvida umaoficina para discussão de cada item; entretanto, para fins de ilustração, apresentaremos osdados referentes às condições de acesso e presteza dos serviços. Estes foram compostos portodo o material produzido no grupo, incluindo gravações das falas dos participantes e fotogra-fias. A oficina aconteceu no dia 4 de agosto de 2005. Iniciamos com uma atividade de expres-são. A fim de facilitar o envolvimento do grupo-pesquisador no momento seguinte, com exercí-cios que estimulavam vários tipos de expressões: gritando, rindo, pulando, fazendo caretas. Emseguida, formamos três grupos, sendo um de quatro pessoas e dois de três pessoas. Pedimosque cada grupo discutisse a temática do acesso e presteza dos serviços e, após a conversa,formulasse uma cena estática que representasse a ideia discutida de acordo com a proposta doteatro-imagem. Este constitui-se de uma série de técnicas desenvolvida por Augusto Boal(2004). Segundo o autor, o objetivo do teatro-imagem é ajudar os participantes a pensar comimagens, a debaterem um problema sem o uso da palavra, usando apenas o próprio corpo eobjetos. Cada cena e suas respectivas mudanças foram fotografadas.

Análise dos dados – O método da so-ciopoética propõe três momentos de análisedos dados: a realização da análise dos dadospelo grupo-pesquisador, a análise realizadapelo pesquisador e a contra-análise dos da-dos. A análise do grupo-pesquisador é ummomento da pesquisa em que o grupo traz à

tona os elementos que o constituem; tudoaquilo que foi capturado ao longo de sua vidae, agora, possa ser utilizado como referencialde análise. Segundo Gaulthier (1999), osfacilitadores participam discretamente destemomento, realizando uma escuta sensível àfala do grupo.

QUADRO 3 - EXEMPLO DE ANÁLISE DOS DADOS

A análise do grupo pesquisador aconteceu à medida que cada grupo apresentava suasimagens e o restante do grupo-pesquisador analisava a cena apresentada. Em seguida,aqueles que discordassem da imagem exposta refaziam a cena de outra forma, para quenovamente o grupo-pesquisador pudesse analisá-la. Após esta discussão, os grupos quepropuseram inicialmente as cenas apresentavam sua representação.

Em seguida, o facilitador da pesquisa tam-bém realiza sua análise, utilizando-se de ân-gulos diferentes. O primeiro tratamento dosdados é feito através da categorização dasfalas, procurando identificar palavras-chave,cortando e classificando os dados de acordocom suas relações de compossibilidade (“aná-lise classificatória”). É importante que efetue-

mos esta categorização levando em conta tan-to os conteúdos semióticos como os semânti-cos; tanto os do afeto como os da razão.Podemos afirmar que, na lógica dos aconteci-mentos, este momento é o que nos permiteidentificar as séries, perceber como elas sedistribuem, não esquecendo de garantir umespaço também para o não-senso.

QUADRO 4 - EXEMPLO DA ANÁLISE CLASSIFICATÓRIA

Nesta etapa da análise, procuramos identificar, em cada relato do grupo, as divergências,convergências, ambiguidades ou oposições, formando as seguintes categorias: tempo deespera para atendimento; acolhimento na recepção; compreensão das necessidades dooutro; atendimento de urgência para pacientes em crise; e sugestões propostas.

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O segundo momento de criação é chama-do “análise transversal”, em que se identifi-cam passagens, fluxos e relações entre es-

QUADRO 5 - EXEMPLO DA ANÁLISE TRANSVERSAL

Ao se debruçar sobre as condições de acesso e presteza dos serviços, o grupo aponta comoprincipal problema a sistemática de organização do atendimento, principalmente a demorano tempo de espera. O acolhimento do cliente deve iniciar-se ainda na recepção, e seconsegue com atenção, a mão no ombro, segurando, olhando nos olhos, transmitir umamensagem: “Eu estou te recebendo!”. Entretanto, nem sempre os profissionais têm interes-se em facilitar esse acolhimento, são indiferentes ao sofrimento do outro. Além disso,problemas como a alta demanda do serviço não permitem que ele ocorra: às vezes, fica umúnico profissional na recepção, sem saber como ajudar, e 300 pessoas na fila, mostrando ocartão, querendo ser atendidas ao mesmo tempo, pedindo, reclamando, brigando. Alémdisso, existe também a necessidade de um atendimento diferenciado, de acordo com asnecessidades de cada um. Alguns sugerem uma preferência no atendimento para os pacien-tes que participam de atividades grupais, para que estes não se atrasem nas atividades dogrupo, enquanto outras falas discordam desta organização preferencial de atendimento.Outra questão a ser considerada são as necessidades do paciente idoso. Foi destacada anecessidade de um atendimento diferenciado de acordo com as necessidades de cadacliente desde que se explique isso aos outros que esperam para ser atendidos. Surge umadiscussão sobre a preferência no atendimento ao paciente idoso. Alguns o veem comoalguém que tem deficiências, enquanto outros afirmam que ele é alguém que já trabalhoumuito, que se trata de pessoas que já foram jovens como nós e, com o tempo, foramperdendo alguma coisa, alguma força, alguma energia mesmo. Embora exista quem nãoconcorde com a preferência no atendimento ao idoso, precisamos lembrar que este é umdireito garantido por lei. No entanto, o grupo lembra que é preciso ter cuidado com abanalização. Não se pode, por qualquer motivo, passar à frente da fila. Existem situaçõesreais de pessoas que estão em crise e de outras que precisam aprender a esperar comotodo mundo; afinal, cada um tem suas dores, seus problemas, seus motivos para querer seratendido antes. Além disso, as necessidades não são fixas: uma mesma pessoa pode estarem situações diferentes, dependendo do período. Há fases em que ela vai precisar deatendimento de urgência; outras em que tem condições de esperar, de colaborar, de deixaro outro passar. Não é uma coisa definitiva. Existem ainda pessoas que marcam o atendimen-to e não comparecem na data marcada, querendo ser atendidas fora do horário. Nestasituação, cabe à equipe conversar com elas para informar como é o sistema. Mas existemtambém outras que, realmente, encontram-se em situação de crise; neste caso, o atendi-mento tem de ser diferenciado, pois, afinal, ninguém escolhe o dia para adoecer. Outrasituação a ser considerada é a da pessoa cuja medicação acabou antes do dia marcadopara a próxima consulta e ela vem procurar atendimento no serviço. Neste caso, o profissio-nal tem de ter sensibilidade. Mesmo que não dê para atendê-la naquele dia, ele deveagendar a consulta para o prazo mais rápido possível, porque aquela pessoa não pode ficarsem a medicação. Todas estas necessidades acabam gerando desentendimentos, pois aspessoas não entendem porque estão tendo que atrasar ainda mais seu atendimento. Talveza comunicação a este respeito não esteja muito boa: muitas vezes, simplesmente sedesloca a pessoa para a frente da fila, sem consultar os outros clientes, sem informar o queestá acontecendo. O grupo identifica problemas no acesso e na presteza do serviço eelabora algumas sugestões para superá-los. Para as pessoas que ficam na fila esperando seratendidas, é preciso haver uma boa acomodação no serviço; o cliente não pode ficar jogadoem um banco, ou com a família andando pelo serviço atrás dele. Outra sugestão estárelacionada ao sistema de marcação de consultas, que poderia ser feito por horário marcadoe não com a obrigatoriedade de todos chegarem às 7 horas da manhã. Há também a

ses dados, procurando ligar aquilo que acategorização separou, construindo um tex-to mais fluido (Gauthier, 2004).

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QUATRO 6 - EXEMPLO DE ANÁLISE FILOSÓFICA

Neste estudo, escolhemos um dos confetos criados pelo grupo para exemplificar a análisefilosófica: a “não-escolha”. Entendemos que este confeto tenta dar conta de uma contradição,percebida pelo grupo na organização do atendimento no CAPS, entre as necessidades individuaise a grande demanda pelo atendimento. Entretanto, o confeto de não-escolha não propõe umasuperação dialética do conflito, mas aponta para a necessidade de lidarmos com o diferente,sem soluções homogeneizadoras. A própria estrutura semântica do termo, na qual a partículanegativa (não) soma-se a uma afirmação (escolha), abre espaço para uma proposição disjuntiva(e...e), ao invés de uma designação na qual as coisas devam estar representadas submetidasao critério do verdadeiro ou falso (ou...ou). Não se trata mais de pensar a compatibilidade ouincompatibilidade dos sentidos dependendo de suas contradições. Em vez disso, seguimosaquilo que Deleuze chama de “compossibilidades” ou “incompossibilidades alógicas”. Desta pers-pectiva, o que vai afirmar dois acontecimentos como compossíveis ou incompossíveis será aconvergência ou não das séries que formam suas singularidades. Entretanto, mesmo essadistância assegurada pela incompossibilidade das séries não trata de uma separação negativaou de exclusão. Ao invés disso, ela vai propiciar uma afirmação simultânea de sua diferença,pois se trata de uma distância positiva dos diferentes: não dois contrários ao mesmo, masafirmar sua distância como o que os relaciona um ao outro enquanto “diferentes” (Deleuze,1974). O incompossível passa a ser mais um meio de comunicação diferenciador, ou seja,produtor de uma diferença de potencial, que pode ser desejo, que pode ser amor ou ódio. Sendoassim, percebemos que o confeto de “não-escolha” tenta aproximar o sofrimento urgente dequem acorre aos serviços de saúde mental numa situação desesperadora, sem com isso criar“privilégios” em nome desse mesmo sofrimento. Uma tentativa de potencializar a pessoa e nãoremetê-la eternamente a um lugar de falta que justifique a sua distinção em relação aos outros.Precisamos aprender a dar mais chance a quem precisa mais, mas sem criar esteriótipos quecaracterizam guetos: “Esse é melhor, aquele é pior”, “esse é preto, esse é branco”. Além disso,como já foi dito, é preciso lembrar que essas necessidades não são fixas: uma mesma pessoapode estar em situações diferentes, dependendo do momento. Finalmente entendemos que oconfeto de não-escolha criado pelo grupo-pesquisdor aproxima-se do conceito de equidadeproposto pelo ideário da Reforma Sanitária Brasileira, que remete ao oferecimento de oportuni-dades iguais para que todos possam desenvolver seus potenciais, sem que, no entanto, dissol-vam-se as diferenças.

necessidade de os próprios clientes se organizarem, para facilitar o atendimento, chegandoà hora marcada, não faltando à consulta e respeitando a ordem da fila. Mas a organizaçãodo atendimento também depende do diálogo e da comunicação profissional-cliente acercada necessidade de uma atenção diferenciada. Ressalta-se ainda a importância de os profis-sionais da equipe se preocuparem não somente com as questões clínicas, mas também comos aspectos relativos ao gerenciamento do serviço. Finalmente é preciso lembrar que o CAPSé um local de “não-escolha”. Um lugar onde não existe “esse é melhor, aquele é pior”, “esseé preto, esse é branco”. Precisamos aprender a dar mais chance a quem precisa mais; noentanto, precisamos também fazer isso sem segregar. Afinal, estamos todos aqui em buscade uma mesma coisa.

O terceiro momento, chamado “análise fi-losófica”, pretende buscar as relações entreos “confetos” produzidos pelo grupo e o pen-samento filosófico convencional, estabelecen-do uma comunicação que nos permita perce-ber suas convergências, complementaridadesou oposições. O termo “confeto” faz refe-

rência aos conceitos produzidos pelo grupo-pesquisador, os quais distinguem-se do sen-so comum por dar-se na composição de umplano de consistência no qual conceitos eafetos misturam-se, traçando linhas dedesterritorialização e configurando a realida-de de novos desejos (Gauthier, 2004).

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Terminado o processo de análise, ocorre acontra-análise dos dados. Nesta fase da pes-quisa, apresentamos as análises realizadas pelopesquisador ao grupo para que este possaavaliá-las, aceitando-as, alterando-as ou re-jeitando-as, e propondo sua contra-análise.Aqui, acontece um movimento dialógico dealianças, miscigenação ou bifurcação de sen-tidos, no qual os conflitos nem sempre en-contram soluções. A divergência também éprodutiva. Esta etapa da pesquisa ainda seencontra em desenvolvimento.

Considerações finais

O interesse em avaliar os serviços de saú-de justifica-se, fundamentalmente, pela ne-cessidade de estarmos identificando possibi-lidades e dificuldades ao longo do processo,buscando a garantia do princípio constitucio-nal da saúde como qualidade de vida, garan-tida pelo Estado e considerada um direito detodos os cidadãos.

Quando se trata de serviços de saúde men-tal, essa necessidade de avaliar processual-

mente está ainda mais presente devido aocaráter inovador da rede de serviços propostopela Reforma Psiquiátrica brasileira, que se vemtentando implementar desde a década de 1980.É importante conhecermos como se tem dadoa implantação destes serviços, inclusive parapensarmos as iniciativas futuras.

Entretanto, precisamos levar em consi-deração a necessidade de possibilitar pro-cessos de avaliação que não excluam destaação os sujeitos envolvidos diretamente emsuas consequências. Esta reflexão é de ex-trema relevância no âmbito da atenção emsaúde mental, em que, historicamente, aspessoas têm sido destituídas de seu poderde contratualidade e do exercício de sua ci-dadania.

Entendemos que a sociopoética pode co-laborar nesta construção à medida que valo-riza os sujeitos da pesquisa como corres-ponsáveis pelo conhecimento produzido, in-citando a uma maior autonomia dos envolvi-dos. Sugerimos que outros estudos sejamdesenvolvidos nesta abordagem, a fim de seampliarem suas possibilidades de utilização empesquisas de avaliação semelhantes.

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Résumé: L’attention sur la santé mentale auBrésil, historiquement marqué par asile prati-ques, a traversé d’intenses changements desles années 80 avec la proposition de remplacerle modèle hospitalier par un réseau de servicesalternatif. Toutefois, afin de faciliter ledéploiement d’un réseau vraiment efficace,nous devons investir dans l’évaluation de cequi est déjà mis en oeuvre pour appuyer laprise de décision sur les futures initiatives. Surces hypothèses, nous présentons une étuded’évaluation d’approche fondée sur lasociopoétique, qu’en utilisant la méthode dugroupe-chercheur, estime que le caractèreauto-gestif et la dimension subjective desacteurs concernés. Pour afficher le potentielde cette approche dans la rechercheévaluative, on décrit les étapes de la méthodedu groupe-chercheur et on donne des exemplesde recherche développés dans un Centre deSoins Psychosociaux à la ville de Fortaleza.

Mots clés: évaluation; santé mentale;méthode; politique sur la santé mental.

Resumen: La atención en salud mental en elBrasil, marcado históricamente para losmanicomiais prácticos pasa por modificacionesintensas desde la década de 80 con la ofertade la substitución del modelo del hospita-locêntrico para una red de servicios alternati-vos. Sin embargo, para hacer posible laimplantación de una red realmente eficaz,necesitamos invertir en la evaluación de lo queya ha sido hecho para subvencionar tomas dedecisiones cuánto a las iniciativas futuras. Des-de estos presupuestos presentamos un estudiobasado en el abordaje de la sociopoética que,al usar el método del grupo-investigador, con-sidera el carácter auto-gestivo y la dimensiónsubjetiva de los agentes implicados. Parapresentar el potencial de esto abordaje eninvestigaciones de evaluación, describimos lasetapas del método del grupo-investigador y loexemplificamos con una investigación desarro-llada en un Centro de la Atención Psicossocialde la ciudad de Fortaleza-CE.

Palabras-clave: evaluación; salud mental;métodos; la política sobre salud mental.

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70 JAN/JUN 2008 ARTIGOS INÉDITOS