Pesquisa FAPESP_184

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o olhar desfocado do autista pesquisa fapesp Perspectivas da energia solar no Brasil Sabor tropical na ficção científica ESPEcial Química ii Novos materiais Junho 2011 184 Junho 2011 184 exemplar de assiNaNte venda proibida

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O olhar desfocado do autista

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Perspectivas da energia solar no Brasil

Sabor tropicalna ficçãocientífica

ESPEcial Química ii

Novos materiais

Junho 2011 ■ Nº 184

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 3

imagem do mês

Sem a gravidade terrestre, combustíveis queimados no espaço formam padrões e trajetórias surpreendentes. Em experimento na Estação Espacial Internacional, uma chama faz a gota com três milímetros do hidrocarboneto heptano formar fuligem (verde) que se afasta do líquido (em amarelo) em espirais cada vez mais miúdas.

Combustão espacial

nA

SA

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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BRWWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

seções

3 imagem do mês 6 CaRTas 7 CaRTa da ediToRa

8 memÓRia

24 esTRaTÉgias

44 LaBoRaTÓRio

62 LiNHa de PRodUÇÃo

92 ReseNHa

93 LivRos

94 fiCÇÃo

96 CLassifiCados

184 | junho 2011

28 fomeNTo Universidades criam

serviços de apoio para reduzir a burocracia na rotina dos docentes

32 HisTÓRia i faPesP abre festejos

dos 50 anos com novos investimentos e homenagem ao fundador

34 dos estudos pioneiros do cancro cítrico ao genoma do amarelinho, a faPesP investiu em pesquisas que deram competitividade à citricultura nacional

CaPa

16 alterações no córtex temporal do autista podem causar prejuízo na percepção de informações importantes para a interação socialeNTRevisTa

10 John Beddington, conselheiro científico chefe do governo britânico, conta como cientistas podem ajudar na formulação de políticas públicas

14 iPCC aprimora rigor científico e estratégias de comunicação

ciência

46 geoLogia a espessura da

superfície explica os constantes tremores de terra no Nordeste

50 asTRoNomia estudo detalha relação

entre explosões no sol e tempestades magnéticas na Terra

52 físiCa grafeno pode ser

a base de hipotético nanotransistor quântico

38 BioeNeRgia artigo de

pesquisadores do Programa Bioen prevê multiplicação da produtividade da cana-de-açúcar

39 iNovaÇÃo diretora de agência

sueca aposta em parceria com brasileiros

40 CoLaBoRaÇÃo estudo mostra

as dificuldades de compreender a contribuição de cada um dos autores de um artigo científico

política científica e tecnológica

CAPA LaURa daviña

16 28

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54 esPeCiaL Palestras do ano

internacional da Química mostram perspectivas de uso crescente de novos nanomateriais

60 PediaTRia Corticoide não trata

problemas respiratórios em prematuros tardios

64 eNeRgia Brasil começa a usar

painéis solares de forma mais abrangente

70 aLimeNTos Novas formulações

atendem aos mais refinados paladares

78 LiTeRaTURa a ficção científica

brasileira e a relação do país com a ciência e a tecnologia

84 demogRafia Perfil migratório de

são Paulo é marcado por idas e vindas e pela internacionalização

88 soCioLogia artigos sobre as artes

brasileiras foram fundamentais para a formação do pensamento de Roger Bastide

tecnologia humanidades

786446 70

75 saúde Tecnologia em

celular permite detectar problema oftalmológico

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6 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

[email protected]

cartas

empresa que apoia a ciência brasileira

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-012 - Pinheiros - São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

o crédito. É estimulante ver a Pesquisa FAPESP tão bonita!

Maria Regina Pinto Pereira São Paulo, SP

Do twitter

Matéria impecável da revista Pesquisa FAPESP (@PesquisaFapesp) sobre re-dação de trabalhos científicos.

BibliotecaIfusp Biblioteca IF USP

Maravilhosa a edição de maio da @Pes-quisaFapesp! A matéria sobre investi-mentos em ciência foi a melhor!

mynickislu Luciano Valerio Jr

Cartografia

Interessante a reportagem “ A mina dos mapas” (edição 182), cujas informações permitem um conhecimento maior so-bre o assunto. Há um equívoco quando cita o almirante Max Justo Lopes. O nome correto é Max Justo Guedes.

Luiz Antonio LimaSão Paulo, SP

Escrever bem

Desde 2008, a Bridge Textos Técni-cos presta serviços de edição, revisão e/ou tradução de manuscritos acadêmicos na área da saúde. Sua experiência con-firma o que foi publicado no artigo “Escreva bem ou pereça” (edição 183) e requer que se interprete o significado de fatos com aparente contraste: os es-tudantes que comprovam proficiência em inglês são aceitos em programas de pós-graduação nos centros de pesqui-sa do país; por outro lado, a busca dos serviços acima nesse idioma por recém--doutores e jovens pesquisadores está aumentando. Como a habilidade para redação é essencial ao desempenho da atividade científica e considerando que uma maior pontuação no ranking de avaliação acadêmica consolida o reco-nhecimento e aumenta o prestígio das universidades, estas deveriam oferecer apoio adicional aos pós-graduandos e professores cuja habilidade para reda-ção não é natural, mas pode melhorar.

Paulo BoschcovUnifespSão Paulo, SP

Ilustrações

Eu adoro a revista e sempre aprecio as ilustrações, todas de ótima quali-dade. Vibro com as da Paula Gabbai e também com algumas que não vejo

CElSo lAfErPresidente

EDuArDo moACyr kriEgErvice-Presidente

ConSElho SUPErIor

CElSo lAfEr, EDuArDo moACyr kriEgEr, horáCio lAfEr PivA, hErmAn jACobuS CornEliS voorwAlD, mAriA joSé SoArES mEnDES giAnnini, joSé DE SouzA mArtinS, joSé tADEu jorgE, luiz gonzAgA bElluzzo, SEDi hirAno, SuEly vilElA SAmPAio, vAhAn AgoPyAn, yoShiAki nAkAno

ConSElho TéCnICo-ADmInISTrATIvo

riCArDo rEnzo brEntAnidiretor Presidente

CArloS hEnriQuE DE brito Cruzdiretor científico

joAQuim j. DE CAmArgo EnglErdiretor AdministrAtivo

ConSElho EDITorIAlCArloS hEnriQuE DE brito Cruz (presidente), CAio túlio CoStA, Eugênio buCCi, fErnAnDo rEinACh, joSé ArAnA vArElA, joSé EDuArDo kriEgEr, luiz DAviDoviCh, mArCElo knobEl, mArCElo lEitE, mAriA hErmíniA tAvArES DE AlmEiDA, mArizA CorrêA, mAuríCio tuffAni, moniCA tEixEirA

ComITê CIEnTíFIColuiz hEnriQuE loPES DoS SAntoS (presidente), Cylon gonçAlvES DA SilvA, frAnCiSCo Antônio bEzErrA Coutinho, joão furtADo, joAQuim j. DE CAmArgo EnglEr, joSé robErto PArrA, luíS AuguSto bArboSA CortEz, luiS fErnAnDEz loPEz, mAriE-AnnE vAn SluyS, mário joSé AbDAllA SAAD, PAulA montEro, riCArDo rEnzo brEntAni, Sérgio QuEiroz, wAgnEr Do AmArAl, wAltEr Colli

CoorDEnADor CIEnTíFIColuiz hEnriQuE loPES DoS SAntoS

DIrETorA DE rEDAçãomAriluCE mourA

EDITor ChEFEnElDSon mArColin

EDITorES ExECUTIvoSCArloS hAAg (humanidades), fAbríCio mArQuES (pOLÍtiCa), mArCoS DE olivEirA (teCnOLOgia), mAriA guimArãES (ediçãO On-Line), riCArDo zorzEtto (CiênCia)

EDITorES ESPECIAISCArloS fiorAvAnti, mArCoS PivEttA EDITorAS ASSISTEnTESDinorAh ErEno, iSiS nóbilE Diniz (ediçãO On-Line)

rEvISãomárCio guimArãES DE ArAújo, mArgô nEgro

EDITorA DE ArTElAurA DAviñA E mAyumi okuyAmA (COOrdenaçãO)

ArTEAnA PAulA CAmPoS, mAriA CECiliA fElli

FoTógrAFoEDuArDo CESAr

ColAborADorESAnA limA, AnDré SErrADAS (BanCO de dadOs), CAtArinA bESSEll, CriStinA CAlDAS, DAniEl buEno, DAniEl DAS nEvES, EDuArDo SAbino, luAnA gEigEr, márCio fErrAri, mAriE hiPPEnmEyEr, ninA krEiS, PAulA gAbbAi, SAlvADor noguEirA, yuri vAnConCEloS

é ProIbIDA A rEProDUção ToTAl oU PArCIAl

DE TExToS E FoToS SEm PrévIA AUTorIzAção

PArA fAlAr com A redAção(11) [email protected]

PArA AnunciAr(11) [email protected]

PArA AssinAr(11) [email protected]

(11) [email protected]

tirAgEm: 39.650 ExEmPlArES

imPressãorr DonnEllEy EDitorA E gráfiCA ltDA.

distribuiçãoDinAP

Gestão AdministrAtivAinstituto uniemP

PesQuisA fAPesPruA JoAQuim Antunes, nº 727 - 10º AndAr, ceP 05415-012PinHeiros - são PAulo – sP

fAPesPruA Pio Xi, nº 1.500, ceP 05468-901Alto dA lAPA – são PAulo – sP

secretAriA de desenvolvimento econômico, ciênciA e tecnoloGiA

govErno Do ESTADo DE São PAUlo

instituto verificAdor de circulAção

iSSn 1519-8774

fundAção de AmPAro à PesQuisA do estAdo de são PAulo

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 7

O apreço dos governadores

Uma cerimônia em seu auditório reformado e agora carregando o nome do governador Carlos Alberto de Carvalho Pinto, com a

presença do governador Geraldo Alckmin, deu início à celebração dos 50 anos da FAPESP que vão se completar em 23 de maio de 2012 (ver notícia na página 32). Autor do projeto que, transformado em lei, autorizaria o Executivo a instituir finalmente a Fundação prevista na Constituição estadual de 1947 e responsável pelo Decreto 40.132 que assinou em 23 de maio de 1962, instituindo-a efetivamente, Carvalho Pinto nunca disfarçou seu orgulho por essa iniciativa. “Se me fosse dado destacar alguma das realizações da minha despretensiosa vida pública, não hesitaria em eleger a FAPESP como uma das mais significativas para o desenvolvi-mento econômico, social e cultural do país”, ele disse em algum momento mais ao final de sua produtiva trajetória pública. O respeitado advogado e político governou São Paulo de 1959 a 1963 e morreu em 1987, aos 77 anos.

Os governadores de São Paulo parecem mesmo ter um apreço especial pela FAPESP. Pensei um pouco nisso enquanto assistia ao evento de lançamento do cinquentenário, lem-brando que foi graças a Franco Montoro que conheci melhor a Fundação em 1992. Explico: a FAPESP estava fazendo 30 anos e o ex-gover-nador (1983-1987) enviara uma carta à Gaze-ta Mercantil, então o mais importante jornal econômico do país, sugerindo que a efeméride valeria uma notícia, dado o importante papel da instituição no desenvolvimento paulista. O diretor de redação do jornal, Matias Molina, um excepcional jornalista econômico, melhor, um excepcional jornalista, chamou-me numa tarde e disse que o jornal ia seguir a sugestão de Montoro. Só que, em vez de falar dos 30 anos da FAPESP, mostraria ao leitor, numa série de reportagens, uma meia dúzia de projetos apoia-dos pela Fundação, ao longo de sua história, que tiveram real impacto sobre o desenvolvi-mento do estado. Eu era editora de tecnologia, o trabalho cabia a mim. Um dos objetos que elegi para a série foi a pesquisa do cancro cítri-co, doença cujo controle foi fundamental para a expansão da citricultura paulista.

Quase 20 anos passados, quando discutíamos em recente reunião de pauta qual poderia ser a contribuição própria da revista para celebrar os 50 anos da FAPESP, eu trouxe à tona essas memórias e mais o enorme prazer que senti no trabalho de descobrir projetos de pesquisa de cuja existência eu sequer suspeitava, para escrever sobre eles em tempos ainda um tanto inóspitos na imprensa para a produção científica brasileira. Decidimos que a essa altura Pesquisa FAPESP poderia levantar, não meia dúzia, mas uma dúzia de histórias de linhas de pesquisas financiadas pela Fundação, altamente relevantes para São Paulo, para o Brasil ou, mais amplamente, para a produção do conhecimento mundial. Elas serão publicadas a cada mês, até maio de 2012. Curiosamente, Fabrício Marques, nosso editor de política, optou por começar a sé-rie pelas pesquisas de doenças em citros, o que vai muito além do cancro e inclui, obviamente, o projeto pioneiro da genômica brasileira, o da Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), que em 2000 ejetou a ciência feita no país para a mídia nacional e internacio-nal. Vale a pena conferir a reportagem a partir da página 34. Mas é tempo de observar que os resultados desse projeto foram o melhor pretexto para outro governador de São Paulo, Mário Covas (1995-2001), demonstrar à larga seu enorme apre-ço pela FAPESP. Numa festa inesquecível na Sala São Paulo, em fevereiro de 2000, Covas concedeu a medalha do mérito científico do governo do estado, que criara dias antes, a 200 pesquisadores que haviam participado do projeto.

Mas antes que o espaço desta carta se esgote, preciso destacar ao menos a reportagem de ca-pa desta edição a respeito do autismo, excelente trabalho de Ricardo Zorzetto, nosso editor de ciência, apresentado a partir da página 16. O autismo permanece como uma das mais miste-riosas condições psíquicas e/ou neurológicas a acometer uma pequena parcela da humanidade e há tempo queríamos fazer uma exploração pelas trilhas que cientistas brasileiros, em conexão com seus colegas de outros países, estão percorrendo no esforço para decifrá-la, diagnosticá-la e, se possível, tratá-la. Para concluir, recomendo as re-portagens sobre energia solar (página 64) e ficção científica brasileira (página 78). Boa leitura!

Mariluce Moura - Diretora de Redação

carta da editora

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8 n Junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

A teoria de que todos os continentes estiveram unidos formando uma única extensão de terra há cerca de 250 milhões de anos foi proposta, de modo cientificamente fundamentado, pelo geólogo e meteorologista alemão Alfred Lothar Wegener em 1912. No livro A origem dos continentes e oceanos, publicado em 1915,

reuniu evidências morfológicas (o “encaixe” da América do Sul com a África), paleoclimáticas (vestígios de glaciares em terras tropicais) e paleontológicas (fósseis de plantas tropicais no Ártico) para compor sua hipótese. A teoria foi debatida nas décadas seguintes e rejeitada pela maioria dos cientistas porque faltava uma boa explicação para a movimentação dos continentes. Alguns anos depois, no Brasil, um outro alemão, Reinhard Maack (1892-1969), achou evidências geológicas no oeste de Minas Gerais que iam na mesma direção dos trabalhos feitos por Wegener.

Maack havia passado 11 anos na colônia alemã África do Sudoeste (atual Namíbia) trabalhando como técnico em geodésia. Nos seus primeiros anos no Brasil realizou pesquisas no cerrado mineiro e deparou-se

Uma única terrahá 85 anos, o alemão Reinhard Maack achava, no Brasil, evidências sobre a origem dos continentes

Neldson Marcolin

Pat vendigna aut laoreet lut aliscil ip er iure ex ex ea alit, quat erillandre magnim ilit lore

memória

Maack lê mapa durante expedição no rio Ivaí, em 1934, enquanto material seca

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PESQUISA FAPESP 184 n Junho DE 2011 n 9

com formações geológicas iguais às da Namíbia. No mesmo ano dessa descoberta, em 1926, ele a descreveu no artigo “Uma viagem de pesquisa do planalto de Minas Gerais até o Paranaíba”, publicado na Revista da Sociedade de Geografia em Berlim. “Foi o primeiro trabalho de pesquisa de Maack no Brasil e tinha várias falhas, mas suas observações foram comprovadas anos mais tarde”, conta o agrônomo Alessandro Casagrande, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador da Rede Brasileira de História Ambiental-RBHA, autor de um capítulo sobre o alemão no livro Histórias de uma ciência regional, organizado por Fabiano Ardigó (Contexto, 2011).

Maack foi para a Namíbia em 1911. Lá realizou serviços de topografia para o governo e fazendeiros da colônia ao mesmo tempo que efetuava expedições memoráveis como a de 1917, que determinou a altura da Brandberg, a montanha mais alta do país, com 2.585 metros. Na mesma região, descobriu uma gruta com pinturas

rupestres que foram reproduzidas em desenho por ele e posteriormente se tornaram importantes ao serem estudadas por historiadores da Pré-história. O afresco rupestre conhecido como Dama branca, por exemplo, ganhou grande notoriedade.

Em 1923, ele veio ao Brasil contratado pela Companhia de Mineração e Colonização Paranaense. Radicou-se em Curitiba, mas continuou fazendo expedições pelo mundo em razão de seu interesse

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Equipe na cachoeira Vira-Panela (1929). No meio, Maack com insígnia do governo alemão (1969)

O pesquisador no rio Tibagi, em 1930: gosto pela aventura

pela história geológica da Terra. Voltou à Alemanha algumas vezes para estudar – em 1949, aos 57 anos, recebeu o título Rer. Nat. (doutor Rerum naturalium) com o trabalho sobre a glaciação gondwânica do Carbonífero Superior apresentado na Universidade de Bonn.

No Paraná Maack teve atuação marcante. Explorou rios como o Tibagi e o Ivaí, determinou a altura do pico do Paraná – batizado e escalado por ele –, publicou o mapa geológico e fitogeográfico do estado e foi crítico de primeira hora da destruição das florestas.Também sofreu reveses: por ser alemão, foi encarcerado no presídio da Ilha Grande, no Rio, durante a Segunda Grande Guerra. Em 1946 tornou-se professor na Universidade do Paraná, atual UFPR. Sua obra mais conhecida é A geografia física do estado do Paraná.

“Maack defendia a teoria de Wegener e viajou muito para comprová-la”, diz João José Bigarella, professor catedrático da UFPR, que trabalhou com o alemão. “Os norte-americanos sempre duvidaram dela, mas mudaram de posição no final da década de 1950 com as novas descobertas que surgiram.” A ideia central de Wegener – de que todos os continentes estiveram unidos num tempo remoto – só seria amplamente aceita a partir dos anos 1960.

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10 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

John Beddington

O Sir da ciência

o conselheiro científico chefe do governo britânico conta como cientistas participam da formulação de políticas públicas

John Beddington, conselheiro científico chefe do governo do Reino Unido, combina habili-dades de cientista, diplomata, articulador e mobilizador de visão ampla. Ele representa os pesquisadores de universida-

des e mostra ao governo britânico – co-meçando pelo primeiro-ministro, Da-vid Cameron, a quem se reporta – como utilizar o conhecimento científico para embasar suas decisões. Depois de assu-mir o cargo, em 2008, ele convenceu 17 ministros de Estado a abrirem espaço para conselheiros científicos, hoje atuan-tes em áreas variadas como educação, ambiente e transportes. Beddington encontra os outros conselheiros toda quarta-feira para um café da manhã: é quando criam estratégias para tra-balhar em conjunto. Tão logo surgem emergências, como a gripe suína, o caos aéreo do ano passado, causado pelo es-palhamento das cinzas de um vulcão da Finlândia, ou o acidente nuclear do Japão, ele monta grupos de especialistas que rapidamente sugerem ao governo formas de agir diante das crises.

Beddington é Professor, o equiva-lente a professor titular no Brasil, de biologia aplicada no Imperial College London, e Sir, título de nobreza con-ferido pela própria rainha da Inglater-ra. Em seu cargo anterior no governo, como chefe de ciência e tecnologia, ele verificou que não havia registro de quantos engenheiros e cientistas tra-balhavam para o governo. Começou então a fazer com que os engenheiros que trabalhavam para o governo se

Carlos Fioravanti

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entrevista

encontrassem, mesmo que fossem de outras áreas. “Formamos uma comu-nidade de cientistas do governo, com cerca de 4 mil integrantes, nos encon-tramos várias vezes por ano e temos um site, de modo que todo cientista e engenheiro que trabalha para o gover-no agora tem a oportunidade de falar um com o outro”, ele contou.

Pouco depois de ter assumido o posto de conselheiro-chefe para assun-tos científicos do gabinete de Ciência e Tecnologia do Reino Unido, Bedding-ton visitou o Brasil pela primeira vez em 2008. Voltou em maio deste ano: no dia 10, visitou a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e o Ministério da Ciência e Tecnolo-gia. No dia seguinte, como parte de uma reunião dos coordenadores dos projetos aprovados no Programa FA-PESP de Pesquisa em Mudanças Cli-máticas Globais (PFPMCG), ele fez uma apresentação em São Paulo sobre o que chama de “tempestade perfeita” – a combinação entre o crescimento da população mundial e das cidades, a demanda crescente por alimentos e por energia, e as mudanças climáticas. Em seguida, acompanhado de uma de-legação composta por representantes de universidades e agências britânicas de fomento à pesquisa, participou da assinatura de convênios de cooperação científica e tecnológica entre a FAPESP e as universidades de Nottingham e Southampton, e atendeu a dois repór-teres desta revista, mostrando como ele e seu grupo de conselheiros científicos resolvem e antecipam problemas.

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 11

Cada ministério do governo do Reino ■nUnido tem um conselheiro científico?

Sim. Meu trabalho é complicado, —porque ciência e tecnologia é um assun-to muito amplo. Então, depois que as-sumi, tornou-se claro que deveria haver um conselheiro científico em cada mi-nistério. Há um conselheiro científico no Ministério da Energia e Mudanças Climáticas, outro no de Ambiente, de Transportes, de Agropecuária, de Ali-mentação, no Ministério da Defesa e assim por diante. Há um conselheiro científico no Ministério da Educação. O único ministério que não tem é o das Finanças, e estamos em negociações para que o governo nomeie um. Dis-cutimos com os ministros e adotamos uma definição ampla de conselheiro científico, que inclui pesquisadores so-ciais, engenheiros, economistas.

Por que o Ministério das Finanças não ■ntem um conselheiro científico?

Boa pergunta. Já levantei esse ponto —com o ministro das Finanças, porque já temos conselheiros científicos no Ministério das Relações Exteriores, no da Justiça e no que cuida de assuntos internos, só o de Finanças que não tem. Então estamos discutindo seriamente essa questão. Uma de minhas tarefas é dirigir o programa de antecipação. Por exemplo, que tipo de problemas tere-mos daqui a cinco ou 10, 20, 50 anos? Terminamos um amplo estudo, de 400 páginas, com 400 pesquisadores de 35 países, sobre o futuro da alimentação e da agricultura, que inclui uma análise do Brasil, da Embrapa. Para mostrar como a ciência é importante para as finanças, outro estudo trata do futuro das negociações financeiras. Há duas preocupações principais nessa área. A primeira é que uma quantidade crescente de negociações financeiras é hoje feita por meio de algoritmos em computadores. A segunda é que a velocidade com que esses negócios são feitos nas bolsas de valores está se tornando mais e mais rápida, apenas milissegundos. Significa que 20 mil operações podem ser feitas em um piscar de olhos, mas esse é um sistema que causa muita instabilidade. Temos aí um novo problema, que traz tanto questões de engenharia quanto ques-

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12 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

serviço geológico e meteorológico para recomendar o que poderia permanecer aberto ou não e o que poderia ser mu-dado nas regulamentações. Acabamos de completar outro sobre o desastre nuclear no Japão, para decidir se era necessário evacuar nossos cidadãos ou fechar a embaixada. Com engenheiros nucleares, meteorologistas e especialis-tas em radiação e saúde, novamente, de universidades, do governo e da indús-tria, aconselhamos a comissão COBR. Felizmente, concluímos que não era preciso evacuar, mesmo no pior dos casos os níveis de radiação não seriam muito graves.

O senhor tem de conciliar transpa-■nrência com segredos, certo? Poderia dar exemplos de coisas que funcionam ou que não funcionam?

Uma área em que estamos traba- —lhando é segurança nacional. Uma de minhas realizações foi convencer o ser-viço de segurança a nomear um conse-lheiro científico... me desculpe, mas não posso contar o nome. Quando mostro, em apresentações, toda a equipe dos conselheiros, na foto aparece apenas a silhueta do que está no departamento de segurança. Os conselheiros cientí-ficos estão no coração desses assuntos: temos de pensar sobre as ameaças de terrorismo. Há coisas relativamente mais simples para resolver, como as explosões, mas o terrorismo também implica ataques biológicos ou de radia-ção. Também precisamos detectar redes de terroristas, por exemplo, rastreando o uso de telefones celulares. Há formas de usar a ciência não só para comba-ter terrorismo, mas também o crime organizado.

Como convencer pessoas de outros ■ngrupos?

Esse é sempre um problema, mas o —governo está comprometido em pro-duzir políticas com base em evidências, que podem ser científicas, econômicas ou legais. Isso acontece nas altas esferas do governo, eu me reporto diretamente ao primeiro-ministro. Também chefio o Conselho de Ciência e Tecnologia, formado não só por cientistas estabe-lecidos, mas também por empresários importantes. O conselho também se

tões ecológicas, mais amplas. Em maio de 2010 houve um crash na bolsa de valores de Nova York e muitas centenas de milhões de dólares em ações sim-plesmente desapareceram em menos de dois minutos. Ninguém sabe explicar o que aconteceu. Parte da explicação é que os algoritmos dos computadores estavam fazendo negócios uns com os outros. Em um estudo patrocinado pe-lo Ministério das Finanças, apresenta-mos questões de mercados financeiros a engenheiros, físicos e economistas. Ciência e engenharia vai muito além da ciência e da engenharia.

Como os conselheiros científicos tra-■nbalham?

São 17 conselheiros científicos. Eu —me encontro com eles toda semana, às quartas-feiras, para um café da manhã. Isso significa que formamos uma rede de pessoas em cada um dos principais ministérios e discutimos problemas comuns que devemos trabalhar jun-tos. Podemos, por exemplo, ter uma conversa entre nosso departamento de transportes e nosso departamento de energia e o que isso tem a ver com mudanças climáticas. Tentamos manter essa rede. Também nos encontramos a cada dois ou três meses para discutir as-suntos específicos; daqui a duas sema-nas, teremos uma reunião para tratar de alimentos, agricultura e mudanças climáticas. E a cada três meses nos encontramos com os coordenadores dos Conselhos de Pesquisas do Reino Unido para debates durante o dia, com atividades sociais à noite. Dessa forma, todo mundo envolvido com ciência e tecnologia no Reino Unido faz parte dessa rede e se reúne regularmente.

O governo aproveita as ideias que vo-■ncês oferecem?

Penso que sim. Todo dia, em cada —ministério, os conselheiros científicos avaliam se uma ideia é realmente boa ou inviável enquanto as políticas públi-cas estão sendo formuladas. Eles tam-bém são responsáveis por decidir sobre quanto gastar em cada área dos Conse-lhos de Pesquisa. Vou dar um exemplo, os biocombustíveis. Há dois anos, o Ministério de Mudanças Climáticas fez uma proposta para aumentar nos

todo dia, em cada ministério, os conselheiros científicos avaliam se uma ideia é realmente boa ou inviável enquanto as políticas públicas estão sendo formuladas

combustíveis para transporte a propor-ção de biocombustíveis. Havia alguma preocupação sobre o impacto disso nos preços dos alimentos e em produtos agrícolas. Então eu reuni um grupo com os conselheiros não só da área de transportes, mas também de alimentos e mudança climática. Chamamos espe-cialistas para ajudar a formular reco-mendações ao governo e eles mudaram a decisão. Os conselheiros científicos também lidam com emergências. O governo tem um grupo de alto nível dos ministérios que forma a comissão COBR, que quer dizer cabinet office bre-efing room. É um nome ótimo. Quando há uma emergência, eu convoco um grupo, o Sage, scientific advisory group in emergencies [sage significa “sábio” em inglês]. Quando eclodiu a epidemia de gripe suína, reuni um grupo com conselheiros científicos do governo no departamento de saúde e no social – porque havia questões de emprego – e também especialistas de universidades, para aconselhar o governo sobre o que fazer. Em 2010, quando o espaço aéreo da Europa teve de ser fechado por cau-sa do espalhamento das cinzas de uma erupção vulcânica, formei um grupo com os conselheiros científicos de to-dos os departamentos e especialistas independentes de universidades e do

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 13

reporta diretamente ao primeiro-mi-nistro. Por exemplo, no ano passado, o conselho apresentou um relatório sobre a necessidade de desenvolver uma in-fraestrutura, obviamente de rodovias e ferrovias, mas também em um sentido mais amplo, de redes de computado-res e de energia. O primeiro-ministro também se reúne regularmente com o conselho, a última vez foi há seis ou sete semanas, para ver como a ciência e a tecnologia podem se conectar com o coração do governo. O que é interes-sante é que apenas dois países da União Europeia têm conselheiros científicos chefes que respondem diretamente ao chefe de Estado: um é o Reino Unido e o outro, a República da Irlanda.

Todo país deveria ter conselheiros ■ncientíficos?

É difícil generalizar. No caso do —Brasil, um país comparável, em termos geográficos, são os Estados Unidos. O presidente Obama tem um conselheiro científico, John Holdren, que trabalha na Casa Branca. Os Estados Unidos também têm um Conselho de Ciência e Tecnologia do presidente, que agrupa não só ganhadores do Prêmio Nobel, mas também representantes de empre-sas. Eles têm cientistas em praticamente todos os departamentos, mas não con-seguem se reunir com frequência. Isso é mais fácil em um país pequeno como o Reino Unido do que em um país grande como o Brasil. Todos moramos em Lon-dres, então marcar um café da manhã é bem mais fácil. Não há um modelo que

sirva para todos. A França e a Alemanha não têm uma pessoa assim; o Japão tem, os Estados Unidos, a Austrália, a Nova Zelândia, o Canadá também. Há um grupo de conselheiros científicos chefe e ministros de Ciência, Carnegie Group, formado pelos G8+5, que inclui Méxi-co, Brasil e China, e nos encontramos uma vez por ano. É um encontro em que não podemos tomar notas.

É um encontro secreto?■nNão. Significa apenas que não preci- —

saremos ler sobre essas conversas mais tarde. Temos discussões detalhadas so-bre alguns temas. No ano passado, por exemplo, falamos muito sobre medi-camentos falsos. São gangues crimino-sas que fazem produtos com menos ou nenhum princípio ativo e embalagens idênticas às dos medicamentos reais, é uma indústria imensa.

E o que decidiram?■nNão vou contar! —

Quais são suas prioridades como ■nconselheiro científico chefe do Reino Unido?

Como o primeiro-ministro, estou —muito preocupado em fazer a ciência e a engenharia ajudarem mais efetiva-mente no crescimento econômico.

E como usar a ciência para ajudar no ■ncrescimento econômico?

É o que estou discutindo com a FA- —PESP. Por exemplo, podemos pensar em desenvolver técnicas para biorre-finarias, em modos mais eficientes de usar produtos agrícolas ou usar com-putadores para tornar os processos de manufatura mais eficientes, em qual-quer área. No Conselho de Ciência e Tecnologia, que reúne cientistas, en-genheiros e empresários de alto nível, estamos reorganizando as formas de financiamento à ciência. Agora, uma pessoa, o diretor-geral de conhecimen-to e inovação, Sir Adrian Smith, cuida de toda a ciência, todas as universidades e toda a inovação no Reino Unido. Ele é um matemático, dirigiu o Departamen-to de Matemática do Imperial College, depois esteve à frente do Queen Mary College, uma das universidades de Lon-dres, antes de ingressar no governo. Ele

tem agora um orçamento de 16 bilhões de libras esterlinas por ano (cerca de R$ 40 bilhões) para fazer a pesquisa das universidades chegar às empresas.

Outras prioridades?■nOutra prioridade em que espero tra- —

balhar: quais são os desastres potenciais que devem acontecer? Uma das áreas que destacamos recentemente é o fato de o Sol estar se movendo para uma fase mais ativa, e mudanças no clima espa-cial podem causar danos nos satélites e nas redes de comunicações. Escrevi um artigo com John Holdren, dos Estados Unidos, publicado no New York Times, alertando que devemos levar o espaço mais a sério. Não temos pesquisa sufi-ciente para lidar com esses problemas potenciais. Nosso mundo está muito mais vulnerável do que era.

Como estão as negociações sobre mu-■ndanças climáticas no Reino Unido?

Vou evitar responder, porque sou —um conselheiro científico, não um co-mentador político. Diria que há evi-dências crescentes de que a mudança climática é real, está acontecendo, é pe-rigosa e é causada pelo ser humano.

O senhor está conseguindo reunir as ■npessoas e instituições para trabalhar jun-tos e lidar com esse problema?

Sim. No Reino Unido temos o Had- —ley Center, o departamento de energia e de mudanças climáticas, o de ambiente e alimentação trabalhando juntos. Há um ministério responsável pela adap-tação às mudanças climáticas e outro pela adaptação aos efeitos das mudan-ças climáticas. Há conselhos de pesqui-sa atuando nessa área, com programas de pesquisa, e estamos desenvolvendo colaborações, por exemplo, com a FA-PESP. Também temos colaborações com grupos de pesquisa nos Estados Unidos, Europa, China, Índia, Canadá, Austrá-lia, entre outros. Nossas embaixadas, nos principais países, têm pessoas que integram a rede de ciência e inovação e estão atentas para possibilidades de novas colaborações e de inovações, co-mo aqui em São Paulo, em Délhi, em Pequim e em Washington. Como disse em minha apresentação, colaboração é o caminho do futuro. n

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14 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

Em clima de diálogo

IPCC aprimora rigor científico e estratégias de comunicação

O Painel Intergovernamental de Mudanças Climá-ticas (IPCC) está em fase de reformulação. Deve ampliar o rigor científico com que sua equipe de cientistas tem trabalhado e se tornar mais sensível às inquietações de negociadores interna-cionais como Sir John Beddington, conselheiro científico chefe do governo do Reino Unido (ver

entrevista na página 10). No dia 11 de maio, o primeiro de um workshop do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), Beddington alertou para as consequências provavelmente dramáticas das mudanças do clima, da urbanização, da escassez de alimentos e de água no mundo. Dois dias depois, 13 de maio, em Abu Dabi, capital dos Emirados Árabes Unidos, os líderes do IPCC anunciaram que adotarão as reco-mendações sobre mudanças de métodos de trabalho e estratégias de comunicação propostas pelo InterAcademy Council (IAC), que embasam as mudanças em curso.

Em abril de 2010 as Nações Unidas, que mantêm o IPCC, tinham pedido ao IAC para formar um comitê in-dependente de revisão dos procedimentos do IPCC, que havia perdido credibilidade após a divulgação de uma série de mensagens eletrônicas indicando que algumas previ-sões sobre os efeitos das alterações climáticas tinham sido precipitadas. Uma delas era que as geleiras do Himalaia desapareceriam até 2035. “Os erros, embora pequenos, tiveram um efeito imenso”, observou para Pesquisa FA-PESP Robbert Dijkgraaf, membro do IAC, presidente da Academia Real Holandesa de Ciências e Artes e professor da Universidade de Amsterdã, Holanda. “Eles deveriam ter sido corrigidos imediatamente, mas o IPCC não achava que havia necessidade de comunicação ou de explicações, já que as medidas que apresentavam eram consensuais.” E

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Dos Andes para a Amazônia: bactérias da bartonelose se espalham

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 15

Colaborações – Na abertura do workshop do Programa FAPESP de Pes-quisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), Shaun Quegan, pesquisador da Universidade de Sheffield, Reino Uni-do, comentou: “As estimativas anuais de áreas desmatadas em florestas tropicais são precisas e altamente confiáveis, pelo menos no Brasil”. No entanto, acrescen-tou, “a utilização desses dados para ava-liar as emissões de carbono provenientes de mudanças de uso do solo traz gran-des incertezas, principalmente porque o mapeamento da biomassa das florestas é precário”. O objetivo do encontro era estimular a integração entre as equipes dos vários projetos de pesquisa que com-põem o PFPMCG, agora coordenado por Reynaldo Luiz Victoria, pesquisador da Universidade de São Paulo, que substi-tuiu o climatologista Carlos Nobre.

Em uma das apresentações do se-gundo dia, o médico Manuel Cesario, pesquisador da Universidade de Fran-ca (Unifran), relatou seu estudo sobre disseminação de doenças infecciosas na Amazônia – ampliadas pelas mudanças no uso da terra promovidas pelo asfalta-mento de estradas, pelo desmatamento e pela urbanização – e as alterações do clima na América do Sul. Pesquisadores da Universidade de São Paulo, Univer-sidade Estadual Paulista, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal Carlos Fioravanti

Dijkgraaf acompanhou o trabalho do comitê do IAC, que reuniu 12 es-pecialistas de academias de ciências e conselhos de pesquisa de diversos países, entre os quais o Brasil, repre-sentado por Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “Os dirigentes do IPCC aceitaram a maioria de nossas recomendações e sugestões”, comentou o economista Harold Sha-piro, professor e ex-reitor da Universi-dade Princeton, nos Estados Unidos, e coordenador do comitê.

As recomendações do comitê do IAC sugerem mudanças na governan-ça e no gerenciamento, nos métodos de revisão do trabalho científico, na caracterização e na comunicação das incertezas científicas e nas estratégias de comunicação. “Qualquer organi-zação precisa se rever, de tempos em tempos, porque os tempos mudam”, disse Shapiro para Pesquisa FAPESP. O comitê do IAC sugeriu que o presiden-te do IPCC tenha apenas um mandato e que todo o enfoque de trabalho seja revisto a cada quatro ou seis anos.

O IAC sugeriu que o IPCC explici-tasse mais claramente os modos pelos quais os documentos técnicos serão re-visados, apresentasse uma variedade maior de visões científicas, incluindo aquelas sujeitas a controvérsias. Outro ponto relevante: explicitar as incerte-zas científicas. “O IPCC e os cientis-tas do clima devem reconhecer mais claramente o que sabem e também o que não sabem”, disse Dijkgraaf. Outra recomendação seguida à risca: imple-mentar uma estratégia de comunicação que enfatize a transparência e respostas rápidas e satisfatórias a qualquer inte-ressado. “O IPCC deve se tornar mais interativo e os cientistas do clima, mais críticos do que fazem.”

O IPCC deve se tornar mais interativo e os cientistas do clima, mais críticos do que fazem,diz Robbert Dijkgraaf

de Santa Catarina e Fundação Oswaldo Cruz participam desse trabalho.

Cesario acredita que a bartonelose, doença de origem bacteriana com sin-tomas semelhantes aos da malária, antes restrita a regiões dos Andes de 500 a 3.200 metros de altitude, pode ter se expandido geograficamente e se adaptado a regiões mais baixas na esteira da crescente mi-gração e das alterações climáticas. A seu ver, essa doença, detectada pela primeira vez em 2004 na região de Madre de Dios, sudeste do Peru, pode passar facilmente pela fronteira com o Acre, no Brasil, e com Pando, na Bolívia. As cidades dessa região estão cada vez mais interligadas pelo prolongamento da rodovia BR-317: a Rodovia Interoceânica, também chamada de Estrada do Pacífico, já em operação e quase toda asfaltada.

A leishmaniose também avança. “As duas formas de leishmaniose, a visceral e a cutânea, no Brasil, eram doenças as-sociadas ao desmatamento, transmiti-das por vetores tipicamente de florestas, mas hoje estão ligadas à urbanização e ao desmatamento”, disse. A bartonelose e a leishmaniose são transmitidas por in-setos do gênero Lutzomyia, abundantes na região. Em 2008 Cesario e sua equipe percorreram o município de Assis Bra-sil e, para capturar insetos, instalavam armadilhas das seis da noite às seis da manhã. Em uma semana coletaram mais de 3 mil insetos de 56 espécies de Lut-zomyia. “As casas com frestas, próximas à floresta e com animais de criação por perto”, disse ele, “formam o ambiente ideal para os insetos que saem de seus es-paços naturais e usam restos de material orgânico para se reproduzir e animais para sugar o sangue, aproximando-se das pessoas e transmitindo as doenças”. n

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O c é r e b r O n O a u t i s m O

Alterações no córtex temporal podem causar prejuízo na percepção

de informações importantes para a interação social

Ricardo Zorzetto | fotos Marie Hippenmeyer

capa

mamãe, mamãe, descobri que o Capitão Gancho é bonzinho. Ele falou ‘Eu vou cuidar muito bem de você!’”, anunciou o garoto durante a consulta, interrompendo a conversa da mãe com o médico. E repetiu mais duas ou três vezes a descoberta que fizera ao assistir ao filme sobre Peter Pan, para em

seguida retomar o silêncio habitual e voltar a agitar as mãos para cima e para baixo como se quisesse desprendê-las dos braços. Diferentemente de crianças da sua idade, o menino de 7 anos atendido pelo psiquiatra infantil Marcos Tomanik Mercadante não conseguia perceber a ironia na fala do vilão, determinada por uma marcante alteração no tom de voz.

Os sinais que Mercadante observou no garoto são carac-terísticos de um grupo de distúrbios com prevalência ainda pouco conhecida no país e que apenas nos últimos anos começaram a ser mais bem compreendidos – em parte, conse-quência de trabalhos de pesquisadores brasileiros trabalhan-do no país e no exterior. Classificados como transtornos do

espectro autista ou transtornos globais do desenvolvimento, esses problemas de origem neuropsicológica se manifestam na infância e, com maior ou menor intensidade, prejudicam por toda a vida a capacidade de seus portadores se comunica-rem e se relacionarem com outras pessoas. Incluem quadros variados como o autismo clássico, marcado por dificuldades severas de linguagem e de interação social; a síndrome de Asperger, na qual a inteligência é normal ou superior à média e a aquisição da linguagem se dá sem problemas, mas em que são comuns os gestos repetitivos e a falta de controle em movimentos delicados; ou ainda a síndrome de savant, em que, apesar do retardo mental, a memória ou as habilidades matemáticas ou artísticas são extraordinárias.

Levantamentos feitos nos últimos anos registraram um aumento importante no número de casos desses transtornos. Há pouco mais de uma década se acreditava que o autismo e suas variações fossem bastante raros. Com base em pesquisas feitas nos Estados Unidos e na Europa, calculava-se que uma

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18 n junho de 2011 n PESQUISA FAPESP 184

em cada 2,5 mil crianças – ou 0,04% da população infantil – apresentasse algum distúrbio do espectro autista. Hoje essa proporção é 20 vezes maior. Quase 1% das crianças norte-americanas e inglesas sofrem de algum desses transtornos de desenvolvimento, segundo dados recen-tes dos Centros para Controle e Preven-ção de Doenças dos Estados Unidos e de pesquisas de universidades da Inglaterra. E a taxa pode ser ainda mais elevada. Trabalho publicado em maio no Ame-rican Journal of Psychiatry indica que a prevalência de distúrbios autistas é de 2,5% na Coreia do Sul.

O mais provável é que não haja uma epidemia de autismo. Em relatório apre-sentado em 2010 à Organização Mundial da Saúde (OMS), especialistas brasileiros e estrangeiros indicaram, após analisar quase 600 estudos sobre o assunto, que o aumento na taxa desses transtornos pa-rece decorrer do uso de estratégias mais abrangentes de diagnóstico e da maior vigilância de profissionais da saúde – em-bora não se possa excluir completamente uma elevação real no número de casos.

No Brasil, porém, os dados sobre o problema são praticamente desconhe-cidos. Por falta de estudos populacio-nais, não se sabe com segurança quan-

população. Coordenado por Merca-dante, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Cristiane Silvestre de Paula, psicóloga e epidemiologista da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o estudo avaliou sinais de autismo em 1.470 crianças com idade entre 7 e 12 anos, uma amostra considerada bastan-te razoável. Mas o trabalho, publicado em fevereiro no Journal of Autism and Developmental Disorders, ainda é um estudo piloto. Sua principal limitação é que foi realizado em apenas um muni-cípio brasileiro: Atibaia, cidade de 126 mil habitantes a 60 quilômetros de São Paulo. “Fizemos esse estudo, financiado pelo Mackenzie, com pouco dinheiro”, conta Mercadante, que pretende repetir o levantamento em cidades das cinco regiões brasileiras.

Em Atibaia, a psicóloga Sabrina Ri-beiro identificou todas as escolas e as unidades de saúde da região es-

tudada e treinou professores, médicos e profissionais do programa de saúde da família para identificar sinais de autismo nas crianças. Das 1.470 que viviam na área, 94 foram encaminhadas para testes clínicos mais detalhados e 4 receberam diagnóstico de autismo.

Se o índice observado ali puder ser extrapolado para o resto do país – in-clusive para os adultos, uma vez que estudo recente na Inglaterra mostrou prevalência de autismo semelhante em adultos e crianças –, é de esperar que existam 570 mil brasileiros com alguma forma de autismo. “Alguns trabalhos indicam que a prevalência de autismo talvez seja mais baixa entre os latinos”, comenta Mercadante. “O fato de nossa cultura exigir mais o desenvolvimento das habilidades sociais do que as de muitos países do hemisfério Norte, on-de costumam ser feitos os estudos epi-demiológicos, pode ajudar as pessoas com casos mais leves a levar uma vida com certa independência e a não serem identificadas como autistas”, diz.

Essa seria uma estimativa favorável. É possível que os números daqui e os de outros países estejam subestimados, suspeitam os pesquisadores ingleses que realizaram o primeiro estudo de prevalência de autismo em adultos, pu-blicado em maio nos Archives of General Psychiatry. No trabalho, eles avaliaram sinais de autismo em 7.461 adultos e

Quase 1%

das crianças

norte-americanas

e inglesas

sofrem de algum

transtorno de

desenvolvimento

tas são nem onde estão as crianças com transtorno do espectro autista. Muito menos se recebem o mínimo de aten-ção do sistema de saúde e de educação para que consigam levar uma vida o mais próximo do normal possível.

O maior e mais recente levantamen-to realizado no país – um dos únicos feitos na América do Sul – sugere que o autismo e suas variações afetam uma em cada 370 crianças ou 0,3% dessa

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PESQUISA FAPESP 184 n junho de 2011 n 19

confirmaram que 618 tinham alguma forma do distúrbio. “Em nenhum dos casos identificados nesse levantamen-to as pessoas sabiam que eram autistas nem tinham recebido um diagnóstico oficial anteriormente”, disse Traolach Brugha, pesquisador da Universidade de Leicester, na Inglaterra, e autor do estudo, em comunicado à imprensa.

Embora a maioria dos casos fosse de pouca gravidade, a constatação acende um sinal amarelo: mesmo em países com sistemas de saúde bem estrutura-dos muitos casos nem chegam a ser co-nhecidos. Caso as taxas no Brasil sejam elevadas como a dos Estados Unidos, pode haver até 1,9 milhão de brasileiros com autismo. “Seria uma bomba para os cofres públicos”, diz Cristiane. “Mos-traria que é preciso aumentar muito a capacidade de atender o problema.”

“O autista demanda tratamento contínuo e dispendioso”, conta Maria Cecília Mello, mãe de Nicholas, um jo-vem de 19 anos que há apenas três anos recebeu o diagnóstico de síndrome de Asperger. “Eles também precisam de acompanhamento especializado para alavancar suas habilidades específicas e desenvolver aquelas em que apresen-tam dificuldades”, diz a juíza federal, fundadora, ao lado de Mercadante e de outros pais e pesquisadores, da organi-zação não governamental Autismo & Realidade, criada em 2010 com a meta de divulgar informações sobre o distúr-bio e arrecadar recursos para financiar pesquisas na área.

Nos Estados Unidos, onde há estatís-tica para quase tudo, anos atrás Michael Ganz, da Universidade Harvard, calculou em US$ 3,2 milhões o custo para manter um autista ao longo da vida, levando em conta despesas médicas, de educação e perda de produtividade no trabalho.

N o sistema público de saúde brasi-leiro, os casos suspeitos de autismo deveriam, em princípio, ser iden-

tificados pelos pediatras nas unidades básicas de saúde e encaminhados para cuidado especializado em um dos 128 centros de atenção psicossocial infan-til (CAPSi). Mas esses centros estão concentrados no Sudeste e no Nordes-te. Cinco estados brasileiros não têm CAPSi e outros sete dispõem de apenas um, de acordo com relatório recente do Ministério da Saúde.

O maior e mais recente levantamento

realizado no Brasil sugere que o autismo

afeta uma em cada 370 crianças

vive-se um círculo vicioso. “Como não há estudos de prevalência abrangentes no país, não se consegue mostrar que o problema existe. E, sem provas, fica difícil exigir atendimento”, afirma a epidemiologista, que participa de um levantamento de problemas de saúde mental em crianças de cinco capitais brasileiras, projeto do Instituto Nacio-nal de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes, apoiado pela FAPESP e pelo governo federal.

Atendimento médico precoce e de qualidade é fundamental para influen-ciar a evolução do autismo. Tanto que,

Mesmo na cidade de São Paulo, a mais bem servida do país, apenas 9 dos 16 CAPSi estão habilitados para atender casos de autismo, segundo Cristiane. Ante esse quadro, conta Mercadante, a maioria dos casos é atendida por as-sociações de pais e amigos das crianças com deficiência intelectual, as AMAs e APAEs. Em São Paulo, uma decisão de 2001 da Justiça determinou que a Secretaria de Estado da Saúde pague tratamento, assistência e educação es-pecializados para quem tem autismo.

Sem um levantamento mais amplo como o que ele e Cristiane planejam,

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20 n junho de 2011 n PESQUISA FAPESP 184

no mundo todo, pesquisadores buscam estratégias para identificar com segu-rança o autismo já no primeiro ano de vida. “Quanto mais cedo se identificam os sinais, melhores as chances de inter-vir para tentar recuperar a capacidade de a criança se relacionar com os outros e buscar a construção de uma lingua-gem significativa”, afirma a psicóloga e psicanalista Maria Cristina Kupfer, do Instituto de Psicologia da Universida-de de São Paulo (USP), fundadora do Lugar de Vida, entidade que há 20 anos atende casos de autismo. “A intervenção precoce permite ainda ouvir os pais, que sofrem por não receber de volta dos filhos a atenção que lhes dão.”

D esde que o autismo foi descrito nos anos 1940, o diagnóstico continua clínico. Em geral um neurologista

ou psiquiatra examina a criança e avalia sua história de vida à procura de indí-cios de atraso no desenvolvimento da capacidade de interagir socialmente e se comunicar e de defasagem no desen-volvimento motor, descritos no Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, da Associação Psiquiátrica Americana, e na Classificação Interna-cional de Doen ças, da OMS.

na fase inicial, pediatras do município de Embu e medir a capacidade de iden-tificarem o autismo e outros problemas psíquicos que levam ao sofrimento pre-coce. “O pediatra tem de estar atento à relação entre pais e filhos e ao dia a dia da família”, diz Posternak.

A nos atrás Maria Cristina Kupfer tentou criar uma ponte com os pediatras e auxiliar no trabalho de

detecção do autismo. Embora a psica-nálise não use protocolos de identifica-ção como os da psiquiatria, um grupo de nove especialistas coordenado por ela desenvolveu em 1999, com apoio da FAPESP, uma série de 31 indicadores para a detecção precoce de risco para o desenvolvimento psíquico: o protocolo IRDI. Esse material, elaborado a pedido da pediatra Josenilda Brant, consultora da área de saúde da criança do Ministé-rio da Saúde, deveria integrar o Manual para o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, que o ministério dis-tribui aos médicos da rede pública.

Pediatras de 11 centros de saúde de nove cidades brasileiras aplicaram os indicadores a 726 crianças de até 1 ano e meio de idade. Apresentados em 2009 no Latin American Journal of Fundamental Psychopathology Online, os resultados mostraram que 15 desses indicadores – eles avaliavam interações simples como mãe e bebê trocam olha-res ou a criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa se diri-ge a ela – eram capazes de predizer, a partir do sexto mês de vida, se havia risco de desenvolvimento de proble-mas psíquicos. “Os indicadores do protocolo IRDI, adaptados, chegaram a fazer parte da Caderneta da Saúde da Criança, destinada a orientar os pais, em 2006, 2007 e 2008 e depois foram retirados”, conta Maria Cristina. “Mas os indicadores validados pela pesquisa não foram integrados à ficha de acom-panhamento do desenvolvimento, usa-da pelos pediatras nas consultas feitas no sistema público de saúde.”

Apesar do revés, Maria Cristina não se acomodou. “Se fecharam uma porta, procuramos outra”, diz a psicanalis-ta, que planeja testar seus indicadores em 29 creches do bairro paulistano do Butantã. “O uso dessa ferramenta em creches é uma alternativa interessante, porque as crianças passam oito horas

Ainda que alguns sintomas surjam muito cedo, nos primeiros meses de vida, os casos só costumam ser confir-mados por volta dos 3 anos de idade, quando o cérebro já atravessou uma das fases de crescimento mais intenso. E is-so na melhor das hipóteses. Mercadante acredita que no Brasil a identificação só ocorra aos 5 ou 6 anos, quando já se perdeu uma fase fundamental do de-senvolvimento infantil. No estudo de Atibaia, por exemplo, só um dos quatro casos de autismo havia sido identifica-do anteriormente e recebia acompa-nhamento especializado. “Precisamos melhorar a capacitação dos pediatras para que identifiquem os sinais o mais cedo possível”, afirma Cristiane.

Leonardo Posternak, pediatra do Hospital Albert Einstein em São Paulo, pretende iniciar neste ano, em parceria com uma equipe da Unifesp, um estudo multicêntrico para avaliar a eficácia de um treinamento de pediatras desenvol-vido por uma entidade assistencial fran-cesa, a PréAut, com auxílio da psicana-lista brasileira Marie Christine Laznik. Posternak, que já oferece o treinamento para os médicos do Instituto da Família, organização social que atende crianças e famílias de baixa renda, planeja treinar,

olhares divergentesAssistindo a cenas de um filme, as pessoas com autismo focavam a atenção por mais tempo na boca do personagem, menos expressiva

A o ve r a c e n a a b a i xo, o s n ã o a u t i st a s

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PESQUISA FAPESP 184 n junho de 2011 n 21

por dia ali e têm muito mais contato com os professores do que com os pe-diatras”, justifica.

Foi como problema de contato afetivo, aliás, que os primeiros casos do que viria a ser conhecido como au-tismo foram descritos pelo austríaco Leo Kanner, psiquiatra do Hospital Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Em outubro de 1938, Kanner examinou um garoto norte-americano chamado Donald Gray Triplett, do Missouri, que desde muito cedo demonstrava dificul-dade de interagir com pessoas ao mes-mo tempo que tinha fixação por certos objetos e grande capacidade de memo-rização. Embora os sinais lembrassem o de um problema psiquiátrico grave, a esquizofrenia, Kanner não conseguiu fechar o diagnóstico de imediato. Nos anos seguintes, ele reuniu outros nove casos semelhantes e os apresentou em um artigo de 1943 intitulado “Autis-tic disturbances of affective contact”. No texto Kanner tomou emprestado o termo autismo, usado para descrever o distanciamento e o ensimesmamento típicos da esquizofrenia. Um ano mais tarde outro psiquiatra de origem aus-tríaca, Hans Asperger, descreveria casos um pouco distintos. Eram crianças com

da médica brasileira Monica Zilbovicius, pesquisadora do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm) da França. Usando um aparelho de to-mografia por emissão de pósitrons, que mede o fluxo sanguíneo e, portanto, o nível de atividade de diferentes regiões do sistema nervoso central, Monica ana-lisou o cérebro de 21 garotos com autis-mo e 10 sem o problema – o autismo é quatro vezes mais comum em meninos do que em meninas.

Ela verificou que as crianças do pri-meiro grupo apresentavam atividade reduzida no sulco temporal superior, pequena área do lobo temporal, segun-do resultados apresentados em 2000 no American Journal of Psychiatry. “Quatro grupos haviam tentado antes de nós, mas não encontraram nada”, conta Mo-nica. “Naquela época, nem sabíamos qual era a função dessa área no cérebro normal.” Além de menos ativo, o córtex do sulco temporal superior, situado na região das têmporas, logo acima das orelhas, era menos espesso.

Inicialmente se acreditava que o lobo temporal fosse importante apenas para a percepção dos sons. Estudos mais de-talhados mostraram, porém, que tanto o sulco temporal superior como outra

inteligência e capacidade de aprendi-zado de linguagem normais, mas com dificuldade de interagir socialmente – sinais que se tornam característicos da síndrome de Asperger, um dos trans-tornos do espectro autista.

E nquanto Asperger acreditava na origem biológica desses distúrbios, Kanner os via como problemas com

causas psíquicas, resultado da criação por pais frios e distantes. Por influên-cia de pesquisadores como o psicólogo Bruno Bettelheim, esta visão prevaleceu por anos e se tornou conhecida como a “teoria da mãe geladeira”. “Toda uma geração de pais – particularmente as mães – foi levada a se sentir culpada pelo autismo dos filhos”, escreve o neu-rologista inglês Oliver Sacks no livro Um antropólogo em Marte, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Esse peso só seria tirado dos ombros dos pais nos anos 1960, quando come-çaram a surgir evidências favorecendo a ideia de que alterações no sistema nervo-so central estariam por trás do autismo. Mas levaria algum tempo para a visão biológica ganhar força. O primeiro gru-po a identificar o funcionamento anor-mal no cérebro de crianças autistas foi o

Quanto mais

cedo são

identificados

os sinais,

melhores as

chances de

reduzir as

deficiências, diz

maria cristina

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22 n junho de 2011 n PESQUISA FAPESP 184

área do lobo temporal, o giro fusiforme, estavam envolvidos no processamento de dois tipos de informações relevantes para as interações sociais. Eles captam informações auditivas, sobre a voz do in-terlocutor, e visuais, como os movimen-tos dos olhos, os gestos e as expressões faciais, processam-nas e as distribuem para outras áreas cerebrais associadas às emoções e ao raciocínio lógico.

É o funcionamento adequado dessas áreas que permite conhecer a intenção e a disposição da pessoa com quem se intera-ge. Quando uma das áreas está alterada, a percepção de informações tanto visuais quanto auditivas é deficiente, como no

caso do garoto que não conseguia per-ceber a intenção maldosa na voz do Ca-pitão Gancho. Essas descobertas levaram Monica a propor em 2006 que modifi-cações nessas regiões do cérebro durante o desenvolvimento seriam responsáveis pelo sintoma mais frequente do autismo: a dificuldade de interação social.

Ao mesmo tempo que se mapeavam algumas das regiões cerebrais envol-vidas no autismo, outro pesquisador brasileiro, o psicólogo Ami Klin, come-çava a identificar por que as crianças com o distúrbio falhavam em perceber informações importantes para a inte-ração com outras pessoas. Durante o

doutorado em psicologia na London School of Economics, Klin criou um experimento simples que permitiu constatar que os bebês com autismo têm uma reação anormal ao ouvir vozes. Ele próprio criou um aparelho com dois botões – um reproduzia uma gravação da voz materna e o outro, a de uma mistura de vozes – e o apresen-tou a bebês com menos de 1 ano. Na maioria das vezes, as crianças saudáveis acionavam o botão que permitia ouvir a voz da mãe. Já as com autismo não mostraram preferência: apertavam am-bos indistintamente. Na Universidade Yale, nos Estados Unidos, onde dirigiu

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PESQUISA FAPESP 184 n junho de 2011 n 23

um programa de estudos sobre autis-mo, Klin passou a usar uma técnica que permite rastrear o movimento dos olhos a fim de verificar onde quem tem autismo focava a visão no contato com outras pessoas. “Se quisermos de fato compreender o que passa pela cabeça deles, precisamos ver o mundo pelos olhos deles”, disse Klin, hoje pesquisa-dor da Universidade Emory, em uma entrevista anos atrás.

N um teste com adolescentes saudá-veis e autistas, ele constatou que, na maior parte do tempo, os primei-

ros dirigiam a atenção para os olhos do interlocutor, padrão que os seres humanos e outros grandes primatas desenvolvem nas primeiras semanas de vida – e teria importância evolutiva por permitir distinguir os membros da mesma espécie (e suas intenções) dos predadores. Os autistas focavam o olhar ao redor da boca ou nos cabelos, áreas que não fornecem informações relevantes sobre o contexto social. No autismo, aparentemente, a capacidade de buscar essas pistas sociais se perde-ria bem cedo na vida, como demons-trou Klin ao repetir o experimento com crianças de 2 anos. “É provável que, por esse motivo, as pessoas com autismo não consigam decifrar a expressão do rosto do outro nem demonstrar ex-pressões adequadas às situações so-ciais”, comenta Monica.

É consenso hoje que a formação inadequada das redes neuronais liga-das à percepção e ao processamento das informações sociais – o chamado cérebro social – se deve a defeitos nos genes. “Acredita-se que o autismo te-nha origem genética importante e que a manifestação do problema dependa predominantemente da constituição genética do indivíduo”, comenta Maria Rita Passos Bueno, geneticista da USP que investiga o distúrbio.

Até o momento alterações em mais de 200 genes, distribuídos por quase todos os cromossomos humanos, já foram associadas ao autismo. Defeitos em um pequeno número (10%) desses genes, porém, aparentemente explicam por completo o problema. Apesar de haver certo padrão entre os sinais clí-nicos, do ponto de vista genético cada paciente parece ter uma forma de au-tismo própria, segundo Maria Rita. Seu

grupo na USP, que em 2009 descreveu alterações nos genes de dois recepto-res do neurotransmissor serotonina, desenvolveu um chip de DNA para procurar pequenas alterações em 250 genes responsáveis pelas conexões en-tre os neurônios em 500 crianças com autismo, a maioria diagnosticada pela equipe do psiquiatra Estevão Vadasz. Das 70 crianças já testadas por Cíntia Marques Ribeiro, 20% têm defeitos em ao menos um desses genes.

M ercadante e a geneticista Patricia Braga, também da USP, tentam ou-tro caminho. Em vez de trabalhar

com um grupo grande de autistas com características clínicas variadas, selecio-naram poucos pacientes com quadros semelhantes a fim de ver se apresentam alterações genéticas em comum.

“Uma classificação mais geral revela que as alterações gênicas já encontra-das interferem em três vias bioquími-cas responsáveis pelo desenvolvimento dos neurônios, um dos tipos de célu-las que compõem o cérebro”, explica o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, Estados Unidos. As vias bioquímicas afetadas controlam a pro-liferação e a maturação de neurônios e a formação de conexões (sinapses) entre essas células cerebrais.

No ano passado a equipe de Muotri conseguiu um avanço importante pa-ra investigar o que há de errado com os neurônios no autismo. Como não é ético extrair células do cérebro de uma criança, o pesquisador brasileiro e seu grupo retiraram células da pele de crianças com síndrome de Rett – um dos distúrbios do espectro autista – e de crianças não afetadas para conver-tê-los em células-tronco, por meio de um processo chamado reprogramação genética. Em seguida, essas células fo-ram estimuladas em laboratório a se transformarem em neurônios. Muotri observou que os neurônios de crianças com Rett apresentavam cerca de 50% menos projeções (espinhas) que conec-tam uma célula a outra. Em parceria com o grupo de Maria Rita, ele repetiu o experimento com células de polpa do dente de crianças com autismo clássico e observou resultado semelhante. Da-dos preliminares mostram um número menor de espinhas nos neurônios de-rivados de crianças com autismo (ver Pesquisa FAPESP nº 173).

“Nunca vamos saber se o que ob-servamos nesses neurônios em cultura é fiel ao que ocorre no cérebro”, expli-ca Muotri. “Ainda assim, acredito que alguma informação importante seja possível tirar desse modelo”. Apesar da dúvida, esse modelo celular do autismo é promissor. Aplicando dois compostos – o antibiótico gentamicina e o fator de crescimento semelhante à insulina 1 (IGF-1) – durante o desenvolvimento neuronal, Muotri conseguiu alterar a estrutura dos neurônios obtidos a par-tir de células autistas, que passaram a exibir o aspecto de neurônios saudá-veis. “Ao mostrar que essas alterações são reversíveis, provamos que existe um problema biológico e quebramos o estigma de que o autismo não tem cura”, diz o neurocientista.

Ele próprio sabe que a estratégia usada com células em cultura ainda não poderia ser aplicada a seres humanos. A gentamicina é relativamente tóxica e o IGF-1 aplicado na corrente san-guínea não chega ao cérebro de forma eficiente. O resultado, porém, desperta a esperança de que um dia, num futuro ainda distante, talvez seja possível de-senvolver um tratamento farmacológi-co para amenizar os traços do autismo, um problema ainda sem cura. n

se quisermos

compreender

o que se passa

na cabeça deles,

precisamos

ver o mundo

pelos olhos deles,

comenta Klin

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24 ■ junho DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 184

Estratégias mundo

BarraDos no lançamEnto

Um grupo de jornalistas chineses foi

proibido de assistir ao lançamento do

ônibus espacial Endeavour, em Cabo

Canaveral, no mês passado, depois que

o Congresso norte-americano bloqueou

colaborações entre a Nasa e a China. O

voo do Endeavour interessava à China

porque a carga científica levada pela

nave, o espectrômetro magnético Al-

fa, foi construído com a participação

de cientistas chineses. A Nasa seguia

instruções de uma legislação aprovada

em abril, que proíbe a agência espacial

e o Escritório de Política Científica e

Tecnológica da Casa Branca de manter

qualquer atividade científica conjunta

com a China até o final do ano fiscal

de 2011. Como os jornalistas chineses

trabalhavam para a Xinhua, agência

oficial de notícias, foram considerados

funcionários públicos e tiveram o aces-

so barrado. A restrição foi proposta

pelo deputado republicano Frank Wolf,

chefe do painel de orçamento da Câ-

mara dos Deputados, que supervisiona o orçamento da Nasa.

"Nós não queremos dar a eles a oportunidade de tirar vanta-

gem da nossa tecnologia, e não temos nada a ganhar com a

deles”, disse Wolf ao blog ScienceInsider, da revista Science.

A agência Xinhua criticou a decisão: “Obviamente, a cláusula

Wolf contraria o interesse manifestado tanto pela China quanto

pelos Estados Unidos de impulsionar intercâmbios”.

novo marcolEgal

O Parlamento da Espanha aprovou em caráter definitivo, no dia 12 de maio, a nova lei de ciência, tecnologia e inovação do país, após dois anos de tramitação. A lei busca aproximar as universidades do setor produtivo e estimular os investimentos do setor privado em pesquisa e desenvolvimento (P&D), além de criar novas bases para a carreira de pesquisador (ver Pesquisa FAPESP nº 183). A passagem do projeto pelo Senado incorporou 45 emendas, que não comprometeram o espírito original do texto. Entre as mudanças, foram incorporados prazos para a criação da agência de pesquisa espanhola (um ano) e para a apresentação de um projeto de lei para estimular financiamentos privados à ciência (seis meses). A nova legislação também prevê a criação de um comitê de ética na pesquisa e autoriza o governo a reorganizar as instituições públicas de pesquisa, o que pode implicar a extinção de instâncias com objetivos redundantes. “A partir de agora a ciência pode ser considerada uma característica da Espanha. Ela está colocada no centro da sociedade assim como a inovação, no centro da economia”, comemorou a ministra da Ciência e Tecnologia, Cristina Garmendia, segundo o jornal La Vanguardia.

Endeavourlevanta voo:chineses fora

coopEraçãoluso-francEsa

A Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), de Portugal, e a Agência Nacional de Pesquisa da França (ANR) celebraram um acordo de colaboração para investir em projetos nas áreas de biologia, saúde,

ecossistemas e ambiente, ciências sociais e humanidades. O protocolo de cooperação foi assinado em Paris pelo diretor da FCT, João Sentieiro, e a diretora da ANR, Jacqueline Lecourtier. Cada agência vai investir € 1 milhão nas pesquisas, que deverão envolver grupos mistos dos

dois países. O edital com a primeira chamada de propostas deve ser anunciado em setembro. O acordo representa uma mudança de estratégia da FCT, principal agência de fomento à pesquisa de Portugal. “Não é comum que projetos de equipes mistas possam concorrer a financiamentos da FCT”, disse à agência Lusa João Sentieiro. Um precedente, observou ele, foi um protocolo de cooperação com a Espanha na área de nanotecnologia. O modelo, afirmou o dirigente da FCT, deverá ser seguido em breve com outros países.

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PESQUISA FAPESP 184 ■ junho DE 2011 ■ 25

os Ets poDEm EspErar

A busca de vida em outros planetas foi prejudicada pelo corte

no orçamento dos Estados Unidos. O Allen Telescope Array,

conjunto de 42 antenas de rádio criado para procurar por si-

nais de planetas distantes, entrou num período de hibernação,

devido a um corte dos recursos que a

National Science Foundation promete-

ra ao projeto. As observações ficarão

suspensas enquanto o Instituto Seti

(“busca de inteligência extraterrestre”,

traduzido da sigla em inglês), na Cali-

fórnia, procura novos patrocinadores.

“Estamos buscando novas abordagens

para manter as pesquisas. Eu gosto de

sentar e pensar: se eu fosse ET, que tipo

de estratégia usaria para entrar em con-

tato?”, disse Seth Shostak, astrônomo-

-chefe do Instituto Seti ao site da revista

Astronomy Now. As antenas foram cons-

truídas graças a uma doação de US$ 13,5

milhões do fundador da Microsoft Paul

Allen. Recentemente elas foram usadas

para acompanhar sistemas planetários

detectados pela sonda Kepler da Nasa.

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Antenas desligadas:falta de recursos

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O racionamento de energia no Japão, imposto após a tragédia da usina nuclear de Fukushima, mudou a rotina de cientistas do país. Pesquisadores tentam se acostumar aos inconvenientes de um ambiente de baixo consumo de eletricidade. O químico Eiichi Nakamura, professor da Universidade de Tóquio, disse à revista Nature (17 de maio) que a restrição ao uso de equipamentos fez a pesquisa perder velocidade. “Podemos poupar facilmente 10% de energia, mas os cortes atuais na casa dos 30% vão prejudicar a produtividade no longo prazo”, afirmou. Para Haruhiko Bito, professor de neuroquímica da mesma universidade, a economia de energia é tolerável: “Restringir o uso de alguns equipamentos para horários fora de pico é realista e viável”. Outros se queixam de que a estratégia irá desencorajar os cientistas mais jovens, forçando-os a trabalhar à noite.

“É uma boa ocasião para percebermos que os nossos recursos não são infinitos”, disse Toshio Yamagata, especialista em modelagem do oceano, que teve que lidar com um corte de 30% no tempo de operação de um supercomputador. Não se trata, já se sabe, de um desconforto passageiro. O primeiro-ministro, Naoto Kan, anunciou que está arquivada a meta de construir 14 reatores nucleares nos próximos 20 anos. Com a política energética do país em frangalhos, os defensores das energias renováveis e da

eficiência mostraram seus argumentos. O Instituto para Políticas Energéticas Sustentáveis, de Tóquio, propôs uma mudança ambiciosa na combinação de matrizes energéticas do país. Em nível nacional, o instituto diz que a parcela

de energias renováveis do mix de energia deve subir de cerca de 8% a 30% até 2020 e para 100% em 2050. Mas a estratégia, para compensar a suspensão das usinas nucleares, exigirá que a demanda energética atual seja reduzida pela metade.

Turbinas eólicas no Japão: eletricidade racionada

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26 ■ junho DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 184

Estratégias brasil

o rEgistroDos DEbatEs

A Royal Society, academia de ciência no Reino Unido, publicou o relatório UK-Brazil Frontiers of Science Meeting, com os principais resultados dos debates ocorridos no encontro de mesmo nome realizado em Itatiba (SP), em agosto de 2010. O simpósio de quatro dias integrou o programa

intErcâmbiobrasil-israEl

A FAPESP e a Universidade Hebraica de Jerusalém (HUJ, na sigla em inglês) publicaram chamada de propostas de pesquisa envolvendo missões de intercâmbio de pesquisadores. Do lado paulista, podem apresentar propostas os responsáveis por vários tipos de Auxílios a Pesquisa apoiados pela FAPESP. Podem se candidatar o próprio pesquisador responsável, pesquisadores doutores e bolsistas de pós-doutorado da FAPESP associados ao projeto vigente. Do lado de Israel, apenas pesquisadores da HUJ estão aptos a participar. A chamada está aberta a todas as áreas do conhecimento. As solicitações deverão ser apresentadas até 15 de agosto.

pela Royal Society e pela FAPESP, em parceria com o British Council, as academias brasileira e chilena de ciências e a Cooperação Reino Unido-Brasil em Ciência e Inovação. Os debates abordaram temas como biocombustíveis, plasticidade cerebral, modelagem de populações e doenças, jornalismo científico, emaranhamento quântico e efeitos das mudanças climáticas no desenvolvimento de plantas.

rankingibEro-amEricano

O Brasil divide com a Espanha as po-

sições de destaque na mais recente

versão do Ranking Ibero-Americano

SIR 2011, produzido pelo SCImago

Reserch Group. Entre as universida-

des latino-americanas e de Portugal e

Espanha, o Brasil lidera em número de

instituições avaliadas (357) e também

naquelas que conseguiram publicar,

entre 2005 e 2009, pelo menos 400

artigos científicos na base de dados

Scopus (71 brasileiras, ante 51 da Espa-

nha, 23 do México e 20 de Portugal).

No ranking dos países cujas universi-

dades mais publicaram no período, a

Espanha lidera, com 204 mil artigos

científicos, seguida pelo Brasil, com 163 mil. A Universidade de

São Paulo (USP) lidera em número de artigos (40.192), seguida

pela Universidade Autônoma do México (Unam), com 17.622, a

Estadual de Campinas (Unicamp), com 14.994, e a Universida de

de Barcelona, com 14.630. O impacto da produção científica das

instituições latino-americanas, porém, segue inferior ao das de

Portugal e Espanha, e nenhuma delas superou a média mundial

de citações. Outro dado curioso é o percentual de artigos científi-

cos resultantes de colaborações internacionais. Enquanto a taxa

da USP é de 24,8% e a da Unicamp, de 21,9%, a Universidade

de Barcelona registrou 44,5% e a Unam, 40,5%.

Frontiers of Science, uma série de encontros promovidos pela Royal Society em diversos países, com o objetivo de estimular os participantes a refletir sobre os novos rumos de seus campos de atuação e de outras áreas. A publicação, disponível no endereço <www.fapesp.br/publicacoes/UKBrazil_FOS_report.pdf>, traz resumos de todas as sessões do simpósio. O evento foi organizado

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Os países mais produtivos

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PESQUISA FAPESP 184 ■ junho DE 2011 ■ 27

brasilEiro na acaDEmia

O imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade

Rockefeller, em Nova York, tornou-se membro da Academia

Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Eleito na cota de

pesquisadores norte-americanos, Nussenzweig se junta na

academia a outros sete brasileiros – o mais recente (2007)

havia sido o neurocientista Iván Izquierdo, da PUC do Rio

Grande do Sul. Nussenzweig vive desde os 12 anos em Nova

York, onde os pais, os parasitologistas Victor e Ruth, foram

fazer um pós-doutorado e acabaram lá se

instalando. Uma das linhas de pesquisa de

seu laboratório examina a função das célu-

las dendríticas, fundamentais para iniciar e

regular as reações contra microrganismos.

“Estamos procurando a forma de mandar

antígenos para essas células e induzir uma

resposta imunológica”, conta. Sua equipe

também tem tido sucesso com estudos sobre

anticorpos humanos que combatem o vírus

HIV, causador da Aids. O trabalho rendeu dois

artigos na revista Nature e se mostrou bem-

-sucedido em testes com macacos. “A apli-

cação de anticorpos protetores que algumas

pessoas produzem defendeu os macacos da

doença”, explica. Estudos clínicos testarão

a ideia em seres humanos.

DEsafiosDa saúDE

A Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) tornou-se representante da América do Sul da M8 Alliance, uma rede de instituições de excelência em ensino e pesquisa, fundada em 2008 e que auxilia no desenvolvimento de soluções baseadas na ciência para enfrentar desafios da área da saúde. A Universidade Nacional de Cingapura também passou a integrar a rede. Com a adesão das duas instituições, a M8 Alliance está presente nos cinco continentes. A entrada da USP foi oficializada em evento na Austrália, de que

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participou Eduardo Moacyr Krieger, diretor executivo da comissão de relações internacionais da FMUSP e vice-presidente da FAPESP. Com a adesão da universidade, o Brasil poderá colaborar nos debates para a promoção da saúde por meio de pesquisa acadêmica e clínica mais intensa, desenvolvida pelo Sistema FMUSP-Hospital das Clínicas. A M8 Alliance organiza anualmente a Cúpula Mundial da Saúde. A próxima será realizada em outubro, em Berlim, e discutirá soluções para os desafios da saúde, como a prevenção de doenças, mudanças climáticas, urbanização e envelhecimento.

DivulgaçãociEntífica na wEb

A Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade de Brasília (UnB) inauguraram páginas na internet de divulgação científica. Os sites Ciência e Cultura Agência de Notícias em CT&I (www.cienciaecultura.ufba.br/agencia) e UnB Ciência (www.unbciencia.unb.br) têm como missão difundir as pesquisas realizadas nas duas instituições. Na década de 1990, a UFBA teve uma experiência chamada Ciência Press,

Nussenzweig:células dendríticase anticorpos

sem continuidade. “Salvador tem 3 milhões de habitantes, mas um único jornal que produz meia página de ciência com fontes oriundas do eixo Rio-São Paulo”, diz Simone Bortoliero, coordenadora do curso de especialização em jornalismo científico e tecnológico da Faculdade de Comunicação da UFBA e responsável pela agência. “Os pesquisadores estão reagindo bem. Apenas em um dia cinco professores se candidataram a escrever sobre ciência para nosso site”, conta. Apesar de ter levado um ano para colocar o UnB Ciência na rede, a editora de jornalismo, Ana Lúcia Moura, está satisfeita com a repercussão. “Os pesquisadores queriam ter um espaço para contar o que acontece nos laboratórios”, afirma. Com frequência os cientistas se queixavam quando matérias do cotidiano da instituição – como greve e vestibular – ocupavam lugar de mais destaque no portal da UnB do que as sobre pesquisas.

Faculdade de Medicina da USP: rede m

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 29

política científica e tecnológica

[ FomEnto ]

Mais teMpo para a pesquisa

pois os docentes poderão dedicar-se a mais projetos. Hoje muitos se queixam de que não aproveitam todos os editais por causa do peso da burocracia”, diz. Entre várias atribuições, os escritórios deverão assessorar docentes e alunos na elaboração de pedidos de auxílios à pesquisa e submissão de projetos às agências, divulgar programas e bolsas disponíveis e auxiliar na divulgação, elaboração e aprimoramento de projetos. “Os escritórios vão con-ferir e encaminhar a documentação para as agências de fomento, orientar o corpo docente no preenchimento do Currículo Lattes, apoiar parcerias empresariais, di-vulgar editais associados à internacionalização da Unesp e organizar eventos que levem à integração dos alunos estrangeiros”, diz Maria José. Os escritórios vão aprovei-tar a experiência de unidades que já haviam desenvolvido por conta própria serviços semelhantes, caso dos campi de Araraquara, São José dos Campos, Marília e Assis.

A experiência da Unicamp mostra que a meta de aumentar o número de projetos de pesquisa é palpável. A captação de recursos extraorçamentários, provenientes de agências de fomento e de empresas, tem registrado um contínuo crescimento, observa Ronaldo Pilli, pró- -reitor de Pesquisa da instituição. “No ano passado essa captação foi de R$ 300 milhões, ante R$ 220 milhões em 2008. A nossa Unidade de Apoio ao Pesquisador (UAP) responde parcialmente por esse avanço, ainda que seja difícil mensurar quanto”, diz. A UAP ajuda principalmen-te a prestar contas. O pesquisador deve cadastrar-se no serviço e apresentar o termo de outorga de seu projeto,

universidades criam serviços de apoio para reduzir a burocraciana rotina dos docentes

Fabrício Marques

ilustração Daniel Bueno

As universidades paulistas estão organizando ser-viços talhados para reduzir o peso das tarefas burocráticas e administrativas na rotina dos pesquisadores, tais como a gestão de projetos, a prestação de contas a agências de fomento, a compra de materiais e a prospecção de novas li-nhas de financiamento. Depois da Universidade

Estadual de Campinas (Unicamp), que em 2003 montou uma unidade para auxiliar seus pesquisadores na presta-ção de contas de seus projetos, também as universidades de São Paulo (USP) e Estadual Paulista (Unesp) começam a organizar escritórios e promover serviços dessa natu-reza. “A ideia é permitir que os docentes pesquisadores concentrem-se em sua tarefa primordial, que é o ensino e a condução dos trabalhos científicos”, diz Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da USP, que lançou no ano passado um programa piloto de escritórios de apoio em três das unidades da universidade – a intenção é, após a fase inicial, implantar seções em toda a instituição.

A Unesp aprovou, em abril, a criação em todas as suas unidades de seções técnicas para apoio a pesquisa-dores. Um grupo de trabalho composto por seis técnicos está recebendo treinamento na FAPESP e atuará como multiplicador em cada um dos campi da universidade espalhados pelo estado. De acordo com a pró-reitora de Pesquisa, Maria José Giannini, o objetivo do novo ser-viço é permitir que o docente concentre-se no trabalho de pesquisa e de orientação. “Temos certeza de que isso terá um impacto na produção científica da universidade,

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30 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

que contém as informações sobre as características e o montante da dotação concedida, para que os funcionários au-xiliem no gerenciamento. “Eles cobram notas fiscais, avisam quando a verba de material de consumo está acabando, alertam sobre prazos”, afirma Pilli.

A opção por usar os serviços é de cada pesquisador. “Alguns já dispõem de serviços semelhantes em seus de-partamentos, outros estão acostuma-dos a cuidar da prestação de contas e resistem a delegar essa tarefa”, diz Pilli. Paulo Mazzafera, professor do Insti-tuto de Biologia da Unicamp, elogia a qualidade dos serviços da UAP. “Os funcionários não permitem que a gente cometa erros. Ajudam a organizar, che-cam os documentos e avisam quando há pendências. Aí é mais fácil resolvê--las”, afirma. A UAP já supervisionou 900 prestações de contas, cerca de 100 por ano, e o número de interessados aumenta. “Só no primeiro quadrimes-tre recebemos 41 novos projetos. No ano passado inteiro foram 98 projetos, sendo 74 da FAPESP”, afirma o pró- -reitor Pilli. A Unicamp estuda am-pliar o apoio. A ideia é selecionar as unidades que mais captam recursos de pesquisa e oferecer a elas mais funcio-nários para gerenciar projetos, fazer compras e pagamentos.

A FAPESP tem estimulado as uni-versidades paulistas a criar essas estru-turas. “Esse é um assunto importante para a FAPESP”, observou o diretor científico da Fundação, Carlos Hen-rique de Brito Cruz. “É preciso haver apoio para evitar que o pesquisador se desgaste na administração do projeto e na sua gestão, de tal modo que o seu tempo possa ser dedicado à pesquisa e à orientação de estudantes”, disse à Agência FAPESP. Um artigo recente publicado na revista Research Mana-gement Review destaca a importância da existência de estruturas de apoio institucional à pesquisa. “O texto mos-tra que, nos Estados Unidos, 42% do tempo do pesquisador é gasto com ad-ministração dos projetos de pesquisa”, afirmou Brito Cruz. Em outubro passa-do, a FAPESP implantou um programa piloto de treinamento para as equipes de escritórios de apoio institucional, que já foi oferecido a cinco unidades da USP. De acordo com o diretor admi-nistrativo da FAPESP, Joaquim José de Camargo Engler, a iniciativa teve início com a elaboração do programa e prepa-ro da equipe e do material audiovisual. O objetivo é estender a iniciativa a mais unidades da USP, além de outras uni-versidades e instituições de pesquisa no estado de São Paulo. A FAPESP mantém

há anos pontos de apoio distribuídos por universidades e instituições, que atuam como facilitadores no envio de documentação, além de orientarem bol-sistas e pesquisadores nos procedimen-tos envolvendo a Fundação. “Mas a ação precisava ser ampliada. Assim, surgiu a ideia de criar um programa de treina-mento para as equipes que as próprias instituições de pesquisa vêm constituin-do para dar apoio ao pesquisador”, disse Engler à Agência FAPESP.

A paleontóloga Fresia Ricardi-Bran-co, professora do Departamento de Geologia e Recursos Naturais do

Instituto de Geociências da Unicamp, destaca a economia de tempo propor-cionada por esse tipo de serviço, de que é usuária há quatro anos. Ela conta que, antes do advento da unidade de apoio, precisou usar vários dias de suas férias para colocar em ordem a documen-tação de uma prestação de contas de um projeto vinculado ao Programa Biota-FAPESP do qual participou. “A pesquisa tem várias fases. Primeiro a gente consegue os recursos e vêm as partes gostosas, que são o trabalho de campo e em laboratório e a análise dos resultados. No final vem a pior parte, que é prestar contas”, diz. “E tudo fi-ca mais complicado quando é preciso administrar dois ou três projetos ao mesmo tempo”, afirma.

O zoólogo Celio Haddad, professor do Instituto de Biociências de Rio Cla-ro da Unesp, comemora a decisão da universidade de organizar os serviços de apoio. “Se funcionar como está pre-visto, será de grande utilidade para os docentes da Unesp que fazem pesquisa, pois permitirá que a gente tenha mais tempo para concorrer a novos auxí-lios”, afirma. No mês passado Haddad perdeu vários dias apenas cuidando da burocracia necessária para trazer para Rio Claro uma pesquisadora visitante, a norte-americana Kelly Zamudio, da Universidade Cornell. “Eram três pro-cessos diferentes, um na FAPESP, outro no CNPq e ainda foi preciso submeter o nome dela ao Sisbio”, diz, referindo-se ao Sistema de Autorização e Informa-ção em Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, que monitora ativida-des científicas. Ele ressalta a necessida-de de ter mão de obra qualificada nos serviços. “É desejável que os funcioná-

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 31

Os serviços de

apoio buscam evitar

que o docente se

desgaste com a

administração dos

projetos para dedicar-se

mais à pesquisa

rios falem inglês para nos auxiliar num momento em que a universidade busca internacionalizar-se”, diz.

Serviços desse tipo às vezes levam algum tempo para convencer pesquisa-dores a delegar a tarefa de prestar contas. O diretor do Instituto de Ciências Bio-médicas (ICB), da USP, Rui Curi, criou no ano passado o Setor de Auxílio à Solicitação e Administração de Recur-sos (Sasar), um dos programas piloto vinculados à Pró-Reitoria de Pesquisa, que é composto por seis funcionários incumbidos de dar apoio aos 150 pro-fessores da unidade. Por enquanto, 10 docentes estão usando o serviço para gerenciar 24 projetos, mas a procura au-menta. “Os colegas vêm perguntar se o serviço é bom e eu mostro que confio plenamente”, diz Curi, que entregou a gestão dos oito projetos de pesquisa que lidera para o Sasar. O setor é comanda-do por Marcella Panizza, funcionária do setor financeiro que há anos auxiliava docentes do Departamento de Anato-mia a prestar contas. Os demais funcio-nários foram admitidos em concursos públicos recentes. “Há um aprendizado que precisa ser cumprido por eles, mas a tendência é que o serviço se consoli-de”, afirma Curi. Segundo Marcela, há professores que ainda não confiam em entregar seus projetos. “Mas alguns deles já nos procuram para checar se a pres-tação de contas tem algo errado, o que é um bom começo.” Outros, ela diz, estra-nham os alertas que recebem da equipe. “Era comum que um pós-graduando fi-zesse uma compra, apresentasse a nota e pedisse ressarcimento. Com o nosso ser-viço isso não é possível, pois nos incum-bimos de procurar os fornecedores, fazer a tomada de preços e só pagar depois que o produto foi entregue. Só levamos o cheque para eles assinarem. É a forma adequada para não haver problemas na prestação de contas”, ela diz.

A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), outra unidade da USP que instituiu um serviço de

apoio, optou por um modelo diferente em seu Centro de Gerenciamento de Projetos, criado em setembro de 2010. Em vez de contratar uma equipe para cuidar dos projetos, reforçou a estrutura já existente – e está organizando todas as tarefas num sistema informatizado, sob a coordenação de um funcionário.

“A ideia é reunir todas as informações sobre o projeto, desde a submissão a conselhos, como o de ética na pesquisa, até o histórico do uso dos recursos”, diz Benedito Maciel, diretor da FMRP. “O sistema vai emitir alertas automáticos para os pesquisadores, informando sobre prazos, por exemplo.” O serviço administra 15 projetos, mas já há outros 12 previstos. O centro vai acompanhar os editais das agências de fomento, au-xiliar os pesquisadores na elaboração de propostas, cuidar da aquisição de bens e fazer prestações de contas.

A ambição da Pró-Reitoria de Pes-quisa da USP é lançar, ainda neste ano, um sistema informatizado capaz de ge-renciar projetos de pesquisa, da gestão à prestação de contas, e implantá-lo em suas unidades. O sistema é uma iniciativa da direção da universidade e do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), em razão da experiência disponível naquela unida-de. O ICMC conta com um serviço de convênios, bolsas e auxílios, que desde meados da década de 1990 dá apoio a seus pesquisadores nas prestações de contas, tomadas de preços e compras. Essas atividades vinham sendo apoia-das pelos serviços disponíveis em uma intranet. No ano passado, o ICMC re-cebeu da USP um analista de sistemas

para auxiliar nas atividades do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos, sediado na unidade de São Carlos. “Foi quando tivemos a ideia de desenvolver um siste-ma para fortalecer o trabalho do servi-ço de convênios e liberar o pesquisador para a atividade fim da universidade”, afirma o diretor do ICMC, José Carlos Maldonado, que também coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecno-logia. “Nessa mesma época, o professor Zago, pró-reitor de Pesquisa, lançou a ideia de padronizar e disseminar ser-viços de apoio à gestão de projetos em todas as unidades da USP. Ele incum-biu o ICMC de preparar o sistema”, afirma Maldonado. “Quando tivermos o sistema funcionando, ele dará apoio a todas as atividades de gestão e ad-ministrativas pertinentes a um projeto de forma integrada, e deverá produzir um pacote com todas as informações e elementos de prestação de contas de um projeto que seria repassado em meio eletrônico para as agências de fomento”, diz Tatiana Deriggi, respon-sável pelo serviço de bolsas, convênios e auxílios do ICMC. O sistema está sendo testado e no início do segundo semestre deverá transformar-se num sistema corporativo – o processo será concluído até o final de 2011. n

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32 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

FAPESP abre festejos dos 50 anos com novos investimentos e homenagem ao fundador

A FAPESP abriu as comemorações de seus 50 anos, que se completam em maio de 2012, em grande estilo. Num evento que teve a presença do governador de São Paulo, Ge-raldo Alckmin, a Fundação reinaugurou no dia 23 de maio seu auditório em São Paulo,

que passou a chamar-se Governador Carlos Alberto de Car-valho Pinto (1910-1987), homenagem ao homem público que comandou o estado de São Paulo entre 1959 e 1963 e foi responsável pelo decreto de criação da FAPESP, assinado em 23 de maio de 1962. Na solenidade foram anunciados investimentos de R$ 182,6 milhões em duas modalidades do Programa de Apoio à Infraestrutura de Pesquisa: a de Equipamentos Multiusuários e a de Museus, Centros De-positários de Informações e Documentos e de Coleções Bio-lógicas. Outro anúncio importante foi o lançamento de um novo edital do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid). Cerca de R$ 495 milhões serão destinados, nos próximos 11 anos, ao funcionamento de 15 centros de pesquisa de classe mundial.

O presidente da FAPESP, Celso Lafer, relembrou os pri-mórdios da Fundação e destacou a figura do ex-governador Carvalho Pinto. “A homenagem é merecedíssima”, afirmou Lafer, lembrando que a criação da Fundação, prevista na Constituição estadual de 1947, foi incluída por Carvalho Pinto em seu Plano de Ação. “Foi dele a iniciativa do projeto que se transformou na lei que autorizou o Executivo a instituir a FAPESP, e a instituiu efetivamente pelo Decreto 40.132, de 23 de maio de 1962”, disse Lafer. Na cerimônia foram descerradas duas placas em homenagem a Carvalho Pinto, com a presença de sua filha, Lia de Carvalho Pinto Lang.

Segundo Celso Lafer, as diretrizes expressas nos estatutos da Fundação, estabelecidos em 1962, continuam em vigor e mantêm plena atualidade. Essas diretrizes, disse o presidente, determinavam que a FAPESP deveria apoiar a pesquisa, e não fazer pesquisa, que deveria fornecer elementos de orientação e auxílio financeiro, sem interferir na personalidade do in-vestigador ou da instituição e que não cabia restrição quanto ao gênero da pesquisa realizada. “Os estatutos determinam, também, o reconhecimento da interdependência da pesquisa básica e da pesquisa aplicada, a limitação das despesas ad-ministrativas a um teto de 5% do orçamento da Fundação, a republicana prestação de contas e o empenho na objetivi-

[ história i ]

A caminho do cinquentenário

dade e imparcialidade na avaliação das solicitações apresentadas, pela análise dos pares, o que ensejou a integração da comunidade acadêmica ao processo decisório da FAPESP”, afirmou Lafer. O presidente da Fundação destacou, ainda, o papel dos deputados consti-tuintes estaduais de 1989, que amplia-ram de 0,5% para 1% o percentual da arrecadação de impostos destinados à FAPESP e acrescentaram a diretriz de desenvolvimento tecnológico à missão da Fundação. “Em 2010 a FAPESP de-sembolsou R$ 780,3 milhões no apoio à pesquisa, sendo 36% para formação e aprimoramento de recursos humanos, por meio da concessão de bolsas, e 64% para o apoio direto à pesquisa.”

O diretor científico da FAPESP, Car-los Henrique de Brito Cruz, apresentou ao governador Alckmin dados sobre a Fundação, destacando a importân-cia dos novos investimentos anuncia-dos. Serão destinados R$ 159 milhões para a compra de 251 equipamentos científicos proposta por 118 projetos aprovados no Programa Equipamen-tos Multiusuários (EMU). Um dos objetivos da chamada, divulgada em 2009, foi equiparar os laboratórios de

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 33

cursos estaduais (62%) em relação aos recursos federais (38%). “Isso mostra o empenho do governo estadual em garantir recursos contínuos à ciência e tecnologia”, afirmou. Ele enumerou projetos apoiados pela FAPESP que ti-veram destaque em revistas científicas internacionais importantes e mostrou que a Fundação, além de investir em pesquisas aplicadas que desenvolvem novas tecnologias e curam doenças, também patrocina o avanço do conhe-cimento em ciência básica, aquele que torna a humanidade mais sábia.

Em seu discurso, o governador Geral-do Alckmin destacou a produção cientí-fica do estado de São Paulo, que investe 1,64% de seu PIB em Pesquisa e Desen-volvimento (P&D) e produz 52% da ciên- cia nacional, medida em número de ar-tigos em revistas indexadas. “A FAPESP é democrática em suas origens e práticas, pois foi concebida no clima democrático que sucedeu o Estado Novo. Também é uma instituição avançada, que conjuga o saber especulativo com o desenvolvi-mento tecnológico, e sólida, graças a um fluxo contínuo de recursos gerenciados com rigor e eficiência”, afirmou. “O povo de São Paulo conta com a FAPESP para manter o estado na vanguarda da ciência e da tecnologia.” n

instituições de pesquisa do estado aos mais modernos do mundo. “Esses la-boratórios centralizados são dotados de instrumentos sofisticados e modernos e a intenção é que sejam usados por pesquisadores de outras instituições, inclusive de outros estados e países”, disse Brito Cruz. A relação aprovada dos instrumentos está publicada no site <www.fapesp.br/emu>.

Concepções inovadoras - O Programa de Apoio à Infraestrutura de Museus, Centros Depositários de Informações e Documentos e de Coleções Biológicas terá investimentos de R$ 23,5 milhões para desenvolvimento e implantação de 40 projetos selecionados, que propõem concepções inovadoras de armazena-mento, organização e disponibiliza-ção de acervos. Os projetos aprovados preveem a adequação das instalações, a informatização e a disponibilização dos acervos do Museu de Zoologia da Uni-versidade de São Paulo e do Instituto Butantan, a modernização do Arquivo Público do Estado, a reorganização de sistemas da Pinacoteca do Estado de São Paulo, a disponibilização on-line da Coleção Anita Malfatti e a organização completa do acervo do Instituto Lina Bo e P. M. Bardi.

Também foi anunciada a abertura do segundo edital do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), para seleção de até 15 propostas. Tais centros têm enfoque multidisciplinar sobre diferentes áreas do conhecimento e seu objetivo é desenvolver pesquisa fundamental, pesquisa orientada para a transferência de tecnologias e atividades de educação e difusão do conhecimen-to. Cada Cepid poderá receber até R$ 4 milhões anuais por um período inicial de cinco anos, renovável por mais dois períodos de três anos. O prazo de apre-sentação de pré-propostas vai até 15 de agosto. Em 2000, o programa aprovou a criação de 11 centros nas áreas de pes-quisa e tratamento do câncer, óptica e fotônica, estudos da metrópole e da vio-lência, sono, genoma humano, terapia celular, desenvolvimento de materiais cerâmicos, biologia molecular estrutu-ral e toxinologia. Estes centros poderão concorrer no novo edital. “Os Cepid, compostos por equipes de pesquisa altamente qualificadas, dedicam-se a projetos ousados que dependem de um longo período de maturação”, disse o diretor científico da FAPESP.

Brito Cruz destacou que os investi-mentos públicos em pesquisa em São Paulo provêm majoritariamente de re-

Alckmin e Lafer (ao centro), no auditório Carvalho Pinto

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Laboratório no laranjal

Dos estudos pioneiros do cancro cítrico ao genoma do amarelinho, a FAPESP investiu em pesquisas que deram competitividade à citricultura nacional

As doenças que atingem a citricultura paulista vêm sendo alvo de sucessivos projetos de pesquisa financiados pela FAPESP desde a criação da Fundação, há quase 50 anos. Dos estudos sobre cancro cítrico realizados pelo Insti-

tuto Biológico na década de 1960 ao sequenciamen-to genético de patógenos que atingem os laranjais, como a Xylella fastidiosa e a Xanthomonas citri, os recursos da FAPESP e a curiosidade de centenas de pesquisadores foram mobilizados para fazer avançar a ciência básica relacionada à cultura dos citros, o combate a pragas e o melhoramento de variedades. “São Paulo tem um clima favorável, solo fértil e uma indústria que aprendeu a ser extremamente compe-titiva, mas convivemos com os maiores problemas fitossanitários existentes que podem atingir os ci-tros no mundo”, diz Antonio Juliano Ayres, gerente do Departamento Científico do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), entidade ligada aos produtores e à indústria de suco que investe R$ 9 mi-lhões em pesquisas e mantém parcerias importantes com a FAPESP. “A citricultura paulista não teria essa pujança se não houvesse um contínuo investimento em ciência e tecnologia no setor – e a FAPESP teve um papel fundamental nisso”, afirma. A atividade econômica movimenta no estado US$ 2 bilhões por ano, gera 400 mil empregos diretos e tem, em São Paulo, a maior área plantada de laranja destinada a suco do mundo (627 mil hectares).

A cientista Victoria Rossetti (1917-2010), pesqui-sadora do Instituto Biológico, é um nome-chave na trajetória dessa linha de pesquisa. Primeira mulher a graduar-se em engenharia agronômica na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo, Victoria pediu, em 1963, o primeiro auxílio para estudos do controle do cancro cítrico concedido pela Fundação, num momento em que a doença se alastrava e ameaçava dramaticamente a agroindústria da laranja no estado. Uma das mais sérias doenças dos laranjais, o cancro cítrico é causado por uma bactéria que ataca ramos, folhas e frutos. Surgira

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 35

Plantações no interior paulista: competitividade

no Brasil em 1957, na região de Presidente Prudente, e faltavam informações básicas sobre sua forma de contágio e métodos de controle. O primeiro sintoma é o aparecimento de manchas ama-reladas que, com a evolução da doença, escurecem e se tornam salientes. A doença não tem tra-tamento – a solução é erradicar a planta e parte do pomar infec-tado. “Não havia recursos sufi-cientes para a pesquisa e ela se precupava muito em obter apoio para a publicação dos achados de pesquisa e para enviar pes-

quisadores para estágios ou eventos no exterior”, afir-ma Eduardo Feichtenberger, pesquisador do Instituto Biológico que trabalhou com Victoria Rossetti.

Entre 1953 e 1985, a cientista obteve da FAPESP 14 auxílios para projetos de pesquisa, bolsas para pesquisadores e vários auxílios para apresentação de trabalhos em reuniões internacionais, visitas a outros centros de pesquisa e publicações científicas. Seus estu-dos permitiram desenvolver um programa de trabalho fundamental tanto para a erradicação como para o controle do cancro cítrico. Uma obra de referência com análise de toda a bibliografia conhecida sobre cancro cítrico foi lançada por Victoria em 1982, com patrocínio da FAPESP.

Enquanto os estudos feitos no Instituto Biológico ajudaram a conhecer as características da Xanthomonas citri, o Instituto Agronômico (IAC) investiu no desen-volvimento de variedades mais resistentes e tolerantes à doença. O acúmulo de conhecimento sobre a doença, que só havia sido detectada antes no Japão, levou a uma decisão que, paradoxalmente, inviabilizou a pesquisa de campo. No início dos anos 1970 foi criada uma le-gislação que, para controlar a doença, determinava a erradicação de todas as plantas atingidas pelo cancro cítrico. “Só era permitido fazer pesquisa na região de Presidente Prudente. Mais tarde, o Instituto Biológico

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parou de trabalhar com cancro cítrico naquela região e a pesquisa acabou erra-dicada junto com as plantas”, diz Marcos Antonio Machado, diretor do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, unidade de pesquisa ligada ao IAC. Do ponto de vista econômico, a decisão foi acertada. A doença foi suprimida, para ressurgir mais forte após a chegada da larva mi-nadora dos citros em 1996 – a praga te-ve picos de incidência no estado de São Paulo em 1999 e no ano passado.

Após a restrição imposta pela legisla-ção, a pesquisa sobre o cancro cítrico foi retomada no final dos anos 1990, com ênfase no aperfeiçoamento de métodos de prevenção e de erradicação da doença e principalmente no campo da genômi-ca. No final de 2000, 11 laboratórios de sequenciamento financiados pela FA-PESP, espalhados pelas universidades de São Paulo (USP), Estadual de Campinas (Unicamp), Estadual Paulista (Unesp) e institutos de pesquisa, concluíram o se-quenciamento do genoma da Xantho-monas citri. Pelo prazo em que foi feito na época, apenas 14 meses, o esforço evi-denciou o amadurecimento dos métodos de trabalho e da equipe – em boa parte, a mesma rede de 192 pesquisadores que havia participado, em 2000, da monta-gem dos genomas de outra bactéria, a Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada de citros (CVC), ou amareli-nho, outra importante doença dos laran-jais. O genoma da Xylella, o primeiro se-quenciamento completo do DNA de um patógeno feito no mundo, foi registrado em reportagem de capa da revista Nature em junho de 2000 e causou um grande impacto para a visibilidade da pesquisa brasileira no mundo – em 2010, a mesma Nature dedicou um editorial lembrando os 10 anos do feito.

Rede virtual - Em 2002, os pesquisadores da rede de laboratórios apontaram caminhos para o com-bate à Xanthomonas citri a partir da análise de 100 de seus genes, em estudo feito em comparação com sua prima Xanthomonas campestris. Os projetos de sequenciamento das bactérias foram feitos no âmbito do Programa Genoma FAPESP.

Marcos Machado observa que um dos objetivos do Projeto Genoma, que era capacitar equipes em biologia molecular e genômica, foi cumprido. “Com a ação da FAPESP foi possível agregar grupos que nunca trabalhariam juntos”, diz. Pesquisadores de várias instituições e diferentes disciplinas, da biologia à medicina, passando pela então quase desconhecida

bioinformática, atuaram em con-junto numa grande rede virtual que chegou a reunir 35 laboratórios pa-ra enfrentar um objetivo comum, no caso o sequenciamento genético de vários organismos. Mas os fru-tos do sequenciamento da Xylella e da Xanthomonas foram desiguais. “Infelizmente, não houve uma am-pliação significativa do número de trabalhos sobre a Xanthomonas, co-mo ocorreu com a Xylella, que, a partir das informações do genoma, se tornou a oitava bactéria mais es-tudada do mundo”, diz Machado. Ele destaca o avanço rápido no conhecimento da bactéria propi-

ciado pelo programa. “Não conheço nenhum objeto de pesquisa que evoluiu tanto quanto a Xylella, em matéria de conhecimento em prazo curto. Não veio o controle da doença, mas se avançou bastante no conhecimento de sua patogenicidade. Em 20 anos, passou de ilustre desconhecida para notória bactéria. São Paulo e Califórnia reúnem os grupos mais sólidos trabalhando com a Xylella.”

Entre os frutos da pesquisa, Machado destaca o desenvolvimento de uma tecnologia que impede a bactéria de se disseminar na planta, de autoria de seu grupo. “Já solicitamos a patente no Brasil e trabalha-mos agora para fazer o registro no exterior.” A escolha da Xylella para ser o primeiro patógeno com genoma sequenciado baseou-se numa série de características

Para controlar

o cancro cítrico,

a legislação

determinou a

erradicação de

todas as plantas,

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Após o

sequenciamento

genético,

a Xylella

fastidiosa

tornou-se a

oitava bactéria

mais estudada

do mundo da bactéria: ela tem um genoma peque-no, cujo mapeamento era factível do ponto de vista técnico, além de repre-sentar um problema emergente para a citricultura paulista. “A Xylella reunia vários apelos”, afirma Machado. Victoria Rossetti, ela novamente, teve participação fundamental na determinação da causa da CVC, nome com que ela batizou a doença em 1987, ao registrá-la na região norte do estado de São Paulo. “Suspeitando inicialmente tratar-se da te-mível doença huanglongbing (HLB), ou greening, ela enviou materiais coletados de plantas afetadas para diagnóstico no Laboratório da Universidade de Bor-deaux, na França”, diz Eduardo Feichtenberger. Foi a colaboração entre Victoria, Monique Garnier e Jose-ph Bové, da França, que permitiu ao grupo francês estabelecer a relação causal entre a CVC e a bactéria, batizada de fastidiosa porque tem crescimento len-to. O grupo francês forneceu o isolado de Xylella ao grupo do Centro de Citricultura, que preparou DNA suficiente para sequenciar.

Queda de folhas - Pesquisas patrocinadas pela FAPESP também ajudaram a combater diversas outras doenças dos citros. Nos últimos anos houve projetos temáticos, aqueles que articulam várias equipes de pesquisa em esforços de investigação que duram até cinco anos, envol-vendo várias moléstias. Entre elas, destacam-se a tristeza dos citros, doença virótica que dizimou mais de 80% dos pés de laranja no interior paulista na década de 1940; o huanglongbing (greening), que provoca enormes danos com queda de folhas e frutos e reduz drasticamente o Fabrício Marques

tempo de vida econômica das plantas afetadas; a man-cha preta dos citros e a podridão floral, causadas por fungos; e a leprose, uma das mais antigas dos laranjais. No final da década de 1950, pesquisas feitas com par-ticipação de Victoria Rossetti, no Instituto Biológico, confirmaram a associação entre o vírus da leprose e o ácaro Brevipalpus phoenicis. Mais tarde, em conjunto com o pesquisador Elliot Kitajima, da Esalq, e outros colaboradores, comprovou-se que a leprose é doença provocada por um vírus e que no país o ácaro B. phoenicis

é o vetor da doença. “Só nos anos 1990, com o advento da biologia molecular e projetos de peso, foi possível avançar em relação à comprovação final da etiologia da doença, reconhecendo nesse patóge-no um vírus completamente novo, cuja classificação como CiLV (Citrus leprosis vírus) foi aceita internacionalmente”, diz Machado. No passado, a receita era pul-verizar as plantações sempre que a pre-sença do ácaro fosse registrada. Hoje, o uso de defensivos só se justifica quando há certa quantidade de ácaros e quan-do se prova que eles estão efetivamente contaminados pelo vírus da leprose. No início do século XX, a doença foi registrada pioneiramente e erradicada na Flórida. Anos depois, provavelmente devido a um contrabando de material, apareceu no Brasil.

Criado em 2009, um dos 44 Institu-tos Nacionais de Ciência e Tecnologia patrocinados pe-la FAPESP e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em São Paulo vem se dedicando ao melhoramento de citros por meio da ge-nômica. Coordenado por Marcos Machado, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Genômica para Melhoramento de Citros (INCT Citros) trabalha em três plataformas. “Uma delas é a de informação genô-mica, onde o foco se concentra nos estudos de genoma comparativo e funcional, permitindo a ampliação da base de informações, incluindo o genoma completo associado ao Consórcio Internacional do Genoma Ci-tros. Uma das metas é a transformação genética para a produção de plantas geneticamente modificadas a partir de informações de genoma”, afirma Machado. A segunda plataforma baseia-se em estudos das intera-ções entre plantas e patógenos, voltados para ampliar a base de conhecimentos potencialmente aplicáveis nas fases seguintes do programa. E a terceira é calcada em melhoramento genético, por vias tradicionais ou de ma-nipulação genética. “Temos novas variedades, tolerantes à CVC e à leprose, entre outras”, diz Machado. Os esforços do INCT, que dá sequência ao trabalho de um Instituto do Milênio existente entre 2002 e 2005, fornecem uma amostra dos tópicos de pesquisa em citricultura que mo-bilizarão os pesquisadores nas próximas décadas. n

Victoria Rossetti, nos anos 1970, e uma laranjeira doente: ciência deu respaldo a políticas públicas

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38 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

Cálculo originalArtigo de pesquisadores do Programa Bioen prevê multiplicação da produtividade da cana-de-açúcar

U m artigo científico sobre o po-tencial da cana-de-açúcar na produção de bioenergia, de au-toria de um grupo de pesqui-sadores da Universidade de São Paulo e do Centro de Pesquisa em Agricultura do Havaí, atraiu

um inesperado interesse de pesquisado-res. Publicado na revista científica Plant Biotechnology Journal na edição de abril de 2010, o estudo faz uma revisão sobre a literatura no assunto e produz um iné-dito cálculo teórico mostrando quanto a cana poderia render com o uso de ferra-mentas biotecnológicas para criar novas variedades. A produtividade atual, que é de 80 toneladas por hectare/ano em mé-dia, poderia alcançar 381 toneladas por hectare/ano, com o desenvolvimento de variedades talhadas para a produção de bioenergia, dotadas, por exemplo, de alta produtividade, alto conteúdo de açúcar, tolerância à seca e resistência a pestes e doenças. A chamada “planta energia” pre-cisa de crescimento rápido, necessidade reduzida de insumos para o crescimento e ser adaptada para a colheita mecaniza-da. Para fazer o cálculo, o estudo associa dados tecnológicos de produção da cana--de-açúcar com informações sobre a fisio-logia da planta (fotossíntese, crescimento, desenvolvimento e maturação da cana) e genômica funcional (expressão dos genes envolvendo a partição de carbono, que é a maneira como a cana distribui os carboi-dratos que produz via fotossíntese).

Uma carta enviada recentemente aos autores pelo editor da Plant Biotechnology Journal, o biólogo Keith J. Edwards, da Uni-versidade de Bristol, Inglaterra, informou que já haviam sido registrados mais de 1,6 mil downloads do artigo, número elevado para uma revista de interesse especiali-zado, e encorajou-os a submeter outros “manuscritos de alta qualidade” à publi-cação. O interesse no artigo é revelador de

um novo patamar da pesquisa sobre cana- -de-açúcar, observa Glaucia Souza, autora principal do artigo, professora do Instituto de Química da USP e uma das coordena-doras do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Há alguns anos tínhamos dificuldade de publicar artigos sobre biotecnologia da cana, porque se considerava que era uma planta exótica que só dá nos semitrópicos. Hoje, como muitos países buscam desenvolver energia extraída de biomassa, os estudos da cana vêm ganhando importância”, afirma. Um outro ponto é que os genes descobertos nos estudos realizados podem ser intro-duzidos em outras plantas permitindo ampliar o leque de opções de cultivo.

A popularidade do artigo, diz Glaucia, também mostra que o Programa Bioen es-tá avançando no campo do melhoramento genético. “Estamos conseguindo trazer o genoma para o campo. Estamos validando em cultivares a descoberta de genes asso-ciados ao teor de sacarose descrita em ar-tigos anteriores”, disse. Um artigo anterior, que associava genes ao teor de sacarose, também já havia sido classificado como highly accessed, observa a pesquisadora. “Fizemos nesse artigo algo incomum que foi unir a análise da fisiologia da planta a dados tecnológicos e propor uma rota para o melhoramento por meio de transgenia. Os programas de melhoramento tradicio-nais não estavam capacitados para fazer isso do Bioen”, afirmou Glaucia. “Com o programa, unimos forças. Os ‘moleculares’ e os melhoristas se ajudam para compreen-der aspectos fundamentais da cana.” n

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[ BioEnErgiA ]

Artigo científico

WACLAWOVSKY, A.J. et al. Sugarcane for bioenergy production: an assessment of yield and regulation of sucrose content. Plant Biotechnology Journal. v. 8, 263-76. Publicado on-line 19 fev. 2010.

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 39

Charlotte Brogren:

tecnologias sustentáveis

Benefícios mútuosDiretora de agência sueca aposta em parceria com brasileiros

O Brasil e a Suécia devem estabelecer novas parcerias no campo da tecnologia e da ino-vação, sob a articulação de uma instituição sediada em São Bernardo do Campo (SP), que vai coordenar a ação de pesquisadores, empresas e governos dos dois países. O Cen-tro de Pesquisa e Inovação Sueco-Brasileiro

(Cisb) foi criado oficialmente no mês passado, na visi-ta que o premiê sueco, Fredrik Reinfeldt, fez ao Brasil. Iniciativa da multinacional Saab, já reúne 40 parcei-ros, como a Universidade de Linköping e a agência governamental de inovação Vinnova, do lado do país nórdico, e a Universidade Federal do ABC e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), do lado brasileiro. A meta do centro é estimular parcerias em pesquisa e desenvolvimento inicialmente em três áreas: energia e meio ambiente; transporte e logís-tica; e defesa, aeronáutica e segurança. Equipes de especialistas ajudarão os interessados na concepção dos projetos.

Segundo Charlotte Brogren, diretora-geral da Vinnova, os próximos dois anos serão fundamentais para avaliar o potencial das colaborações. “Os dois países têm um histórico de parcerias impulsiona-das por grandes empresas suecas com presença em regiões industriais brasileiras, principalmente São Paulo. Agora os governos querem tornar essa parceria mais organizada e, com isso, temos identificado um bom número de oportunidades. Nosso desafio hoje é transformar as oportunidades em projetos reais”, disse Charlotte, uma engenheira de 48 anos que fez carreira em centros de pesquisa e desenvolvimento de empresas (ver entrevista em www.revistapesquisa.fapesp.br). Desde 2010 ela está no comando de uma agência que busca articular a ação de universidades e empresas na criação de tecnologias sustentáveis com aplicação promissora – entre os projetos apoiados destacam-se o desenvolvimento de redes inteligen-tes de monitoramento da distribuição de energia, capazes de dar ao consumidor informações sobre o custo da energia antes que ele decida usá-la; sistemas de controle de tráfego; e programas de reciclagem de cabos enterrados nas ruas das cidades suecas.

Um dos resultados da cooperação foi a parceria fir-mada em 2007 entre a empresa brasileira Vale Solução em Energia (VSE) e a sueca Scania, para desenvolvi-mento, produção e comercialização de motores a etanol e suas aplicações. Desde o ano passado representantes dos dois países se reuniram no Brasil em duas oca-siões para mapear novas oportunidades, trabalho que culminou com a criação do centro. Para a diretora da Vinnova, Brasil e Suécia têm sistemas de inovação de perfis diferentes, mas as colaborações podem produzir benefícios mútuos. “A Suécia tem um mercado interno pequeno, o que obrigou muitas de nossas empresas a se tornarem globais. Para isso, elas tiveram de se esfor-çar em ser as melhores e ganhar competitividade – e observe que a Suécia não é exatamente o país com os menores custos do mundo”, afirmou. O Brasil, com seu grande mercado interno, não teve a mesma pressão, mas a globalização está mudando isso. “Empresas de vários países estão vindo para o Brasil. As empresas brasileiras vão percebendo que precisam investir em inovação para manter sua posição no mercado inter-no e também se tornarem globais”, diz. A competição global, ela observa, estimula parcerias. “Nunca foi tão importante formar alianças. Hoje é praticamente im-possível para um país sozinho ou para uma empresa sozinha fazer tudo por si só.” n

Fabrício Marques e Marcos de Oliveira

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[ Inovação ]

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Hierarquia complexa

A atividade dos pesquisadores sofre transforma-ções motivadas pelo avanço do trabalho em rede e pela pressão crescente para publicar no-vos conhecimentos em revistas especializadas. Dois pesquisadores espanhóis resolveram in-vestigar os efeitos dessas mudanças analisando um objeto de estudo pouco usual: a hierarquia

das assinaturas dos vários autores de um artigo cientí-fico. Num paper publicado na última edição da revista Scientometrics, Rodrigo Costas, do Centro para Estudos em Ciência e Tecnologia da Universidade Leiden, na Holanda, e María Bordons, do Instituto de Estudos Documentais sobre Ciência e Tecnologia de Madri, na Espanha, analisaram a ordem das assinaturas de artigos publicados por 1.064 pesquisadores espanhóis entre 1994 e 2004. O universo de autores pertencia a três áreas do conhecimento: biologia e biomedicina, ciências de materiais, e recursos naturais (que inclui disciplinas como ecologia, geologia e oceanografia).

A principal conclusão do estudo foi que, com o au-mento da idade e a escalada na carreira, o pesquisador passa a figurar mais como o último nome da lista de au-tores, que é a posição de mais prestígio. Mas há nuanças. Nas áreas onde vigora uma colaboração menos intensa, como a de recursos naturais (média de quatro autores por artigo), é mais comum que o papel de líder da pes-quisa, em geral aquele que assina em último lugar, caiba a um pesquisador com idade mais avançada, sinal de que o tempo de carreira é um fator importante na definição do chefe do grupo. Já em campo do conhecimento em que o trabalho em rede é mais vigoroso, caso de biolo-gia e biomedicina (média de sete autores por artigo), o fator que define a liderança não é tanto a idade, mas

[ Colaboração ]

Estudo mostra as dificuldades de compreender a contribuição de cada um dos autores de um artigo científico

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a posição profissional – pesquisadores que se destacam rapidamente na carreira conseguem ocupar com mais frequência o último lugar na lista das assinaturas. Ainda que a amostra seja restrita a cien-tistas espanhóis, os autores afirmam que o fenômeno não exprime uma situação isolada. “Embora haja diferenças de país a país, elas são cada vez menores por conta da crescente internacionalização da ciência”, afirmaram Rodrigo Costas e María Bordons, que ressaltam a im-portância da ordem das assinaturas para o reconhecimento do pesquisador. “A autoria é um parâmetro em avaliações e resulta em prestígio profissional.”

As regras envolvendo a posição do nome dos autores variam entre as áreas do conhecimento, mas a convenção mais utilizada reserva as posições mais importantes para o primeiro nome da lista (em geral, o responsável pelo tra-balho experimental) e o último, que tem o papel de supervisão e liderança. Os autores remanescentes tendem a apa-recer nas posições intermediárias, em ordem decrescente de contribuição. Há exceções em campos como a economia, a matemática e a física de altas energias, que, por razões peculiares, com frequên-cia optam pela ordem alfabética.

O crescimento das colaborações, além de evidenciar que o mundo da

pesquisa vai ficando cada vez mais com-plexo, também torna mais ambíguo o sentido de autoria e da posição do au-tor na lista de assinaturas, observam os pesquisadores. Em colaborações mul-tilaterais, nas quais membros de vários grupos estão envolvidos, os padrões de assinatura conquistam novas formas. A posição dos autores frequentemente é determinada após uma exaustiva ne-gociação entre os pesquisadores, que pode incluir, por exemplo, uma rotação na posição de autor principal nos arti-gos científicos seguintes para premiar de forma adequada os membros de equipes diferentes. “Em uma pesquisa feita em colaboração entre dois ou três grupos de pesquisa, certamente haverá uma discussão acerca dos nomes que assinarão os artigos e a ordem da lista”, diz Samile Vanz, professora da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de uma tese de doutorado sobre colaborações na pesquisa brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 169). “Já em áreas como a física de altas energias, onde muitos grupos participam das pesquisas e a lista de coautores chega a mil, não há esse tipo de negociação e os nomes aparecem em ordem alfabética.”

Uma possibilidade frequente entre grupos multidisciplinares, diz Samile Vanz, é a preparação de diferentes ar-

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tigos – cada um com foco em uma das disciplinas envolvidas. O pesquisador daquela área específica é o responsável pela preparação do artigo, mas todos os outros entram como coautores – e, nesse caso, aparecem no meio da lista, independentemente da idade ou status profissional. “Posso dar um exemplo concreto, pois aconteceu comigo: um grupo de pesquisadores me convidou para um estudo sobre cocitações de um periódico. O grupo preparou um traba-lho com resultado da análise e submeteu a um congresso de sua área, em que o líder da pesquisa apareceu em primeiro lugar e eu entrei no meio da lista, acima de um aluno de mestrado. Porém, eu preparei um artigo para publicar em uma revista da minha área e, nesse ca-so, apesar de utilizar os resultados da pesquisa, foquei o artigo na técnica de análise dos dados. Obviamente, entrei em primeiro lugar na ordem dos no-mes”, afirma Samile.

Ambiguidades - Revistas, associa-ções e instituições científicas in-ternacionais vêm exigindo que ca-da um dos autores de um artigo científico declare previamente qual foi a sua contribuição específica. A declaração dos autores inibe a in-

clusão daqueles que colaboraram secundariamente, embora haja am-biguidades nos vários campos do conhecimento na definição de quem deve e quem não deve assinar. No Bra-sil, ainda são poucas as revistas que exigem essa declaração, mas a tendên-cia é que esse expediente viceje aqui, diz o editor-chefe da revista Scientia Agricola, Luís Reynaldo Ferracciú Al-leoni. “Os diversos fatores ligados à qualidade dos periódicos científicos serão temas do próximo encontro da Associação Brasileira de Editores Científicos (Abec), que acontece neste mês”, afirma Alleoni, que é professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e será um dos pa-lestrantes do evento da Abec. Ele conta que as regras variam bastante em seu campo do conhecimento. “Quando é um artigo de ciências agrárias vincu-lado à biologia, normalmente segue- -se o padrão da biologia e das ciências médicas, em que o líder aparece por último. Mesmo assim há exceções, como no caso do famoso artigo pu-blicado na revista Nature, em julho de 2000, sobre o mapeamento do geno-ma da bactéria Xylella fastidiosa, em que o líder assinou em primeiro”, diz, referindo-se ao pesquisador Andrew Simpson, do Instituto Ludwig. Já em outros tipos de artigo, ora o supervi-sor/orientador assina por último, ora em segundo lugar, quando são artigos derivados de dissertações e teses, ou até

em terceiro, quando há participação de co-orientadores, sem haver regra pre-ponderante, afirma Alleoni. Em geral, os demais colaboradores aparecem em ordem decrescente. “Há também os que optam por citar colaboradores que não participaram ativamente apenas nos agradecimentos, o que me parece mais recomendável. Assim como há exemplos em que aparece como um dos autores o estatístico, que ajudou a organizar o delineamento do expe-rimento e a analisar os resultados. Isso ocorre quando a análise estatística foi essencial para o autor principal inter-pretar os dados”, afirma.

Segundo o estudo publicado na Scientometrics, há várias orientações para definir a autoria e, embora ne-nhuma delas seja universal, os crité-rios mais aceitos incluem o envolvi-mento na concepção, planejamento e execução do trabalho científico, a interpretação dos resultados, a par-ticipação na escrita de uma porção substancial do manuscrito e a aprova-

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ção final da versão a ser publicada. Em algumas áreas, alguns desses critérios, como a participação efetiva na escrita do artigo, prevalecem sobre outros. Para Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva, editora da Revista Brasileira de Linguística Aplicada e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “o autor é aquele que senta e escreve”. A produção intelectual em linguística é diferente da de áreas em que há uma grande equipe de pesqui-sa e o resultado só pôde sair porque havia muita gente envolvida, diz ela. “Quando há mais de um autor, assina primeiro, em geral, o que teve parti-cipação maior. Se a participação for equivalente, é comum que o pesqui-sador mais consagrado assine primei-ro, mas não existe uma regra única”, afirma. A revista dirigida por Vera não aceita a inclusão do orientador como coautor de artigos que resul-tam de dissertações e teses. “Quando recebemos um artigo, analisamos o Currículo Lattes dos autores. Se ficar

Há gente que assina artigos sem ter uma

participação efetiva na pesquisa e recebe crédito

só porque está em posição de comando,

critica Rogério Meneghini

Fabrício Marques

mo que ele não tenha efetivamente par-ticipado do estudo. “É uma regra não escrita. Já soube de pesquisador que desafiou essa regra e sofreu retaliações”, afirmou. “Não consigo entender por que isso continua, pois não acrescenta nada ao currículo do chefe do serviço, em geral um professor titular.” A revista Clinics exige que o autor principal do artigo declare a participação de cada um dos que assinam. “Isso costuma inibir a inclusão de nomes que não participaram diretamente.”

Esse debate envolve novas defini-ções sobre ética na pesquisa, afirma Rogério Meneghini, coordenador da biblioteca de revistas científicas SciELO Brasil e especialista em cienciometria, a disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desa-fios da ciência. “Nós aqui na SciELO estamos discutindo essa questão. Há muita gente que assina sem ter uma participação efetiva e recebe crédito só porque está em posição de comando institucional. Às vezes é um pesqui-sador que foi para Brasília atuar num órgão administrativo e evidentemen-te não teve tempo de participar.” Para Meneghini, o tema deveria ser discu-tido pela comissão recém-anunciada pelo Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para discutir casos de fraude científica no Brasil.

A pressão para publicar, diz Mene-ghini, é um motor do exagero. Ele con-ta que, quando estava à frente do La-boratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, recusava-se a ter seu nome incluído em trabalhos fei-tos na instituição. “Meus comandados queriam pôr meu nome, mas eu dizia que o fato de eu ler o artigo antes e dar minha opinião não me qualificava como autor”, afirma. Certa vez, sentiu a pressão ao ouvir de um avaliador in-sinuações de que havia líderes da pes-quisa no LNLS que publicavam pouco. Mas o que mais preocupa Meneghini é o fato de os brasileiros ainda pouco se destacarem nos artigos formulados por grandes redes internacionais. “Brasilei-ros assinam artigos em grandes redes nas áreas de medicina, astrofísica e fí-sica de partículas, mas nunca os vi em primeiro lugar.” n

caracterizado que se trata do resumo de uma tese e que um dos autores é o orientador, rejeitamos na hora, sem analisar o artigo”, afirma. “Se é o aluno quem escreve, o autor é ele. O orien-tador pode ganhar crédito, mas como orientador e não como coautor.”

Orientador genuíno - No campo da medicina, a inclusão do nome do orien-tador é aceita. “Se foi um orientador genuíno, ele ajudou a pensar o artigo. E todos os que participaram física ou intelectualmente do artigo podem assi-nar como coautor”, afirma Maurício da Rocha e Silva, editor da revista Clinics, publicação da Faculdade de Medicina da USP, citando as regras da Associação Mundial de Editores Médicos (Wame, na sigla em inglês). Rocha e Silva, que é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, conta que ainda pre-valece uma regra, a seu ver perniciosa, de citar entre os autores de um artigo da área médica o chefe do serviço no qual o pesquisador principal atua, mes-

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laboratório

controlar a doença é combater o mosquito Aedes aegypti, transmissor do vírus causador da enfermidade. Depois de analisar a relação custo-benefício de

um rio Em cascata

O rio das Velhas nasce em Ouro Preto e cruza o estado de Minas Gerais para lançar, 800 quilômetros mais tarde, suas águas no São Francisco. Sai de uma altitude de 1.500 metros e termina o percurso 750 metros mais baixo, depois de atravessar a principal área produtora de minério de ferro do país. Analisando amostras de sedimentos do rio das Velhas, a equipe de Antônio Pereira Magalhães Junior, da Universidade Federal de Minas Gerais, constatou que parte desse desnível surgiu por alterações no relevo nos últimos 50 mil anos, que geraram um terraço mais alto (altitude entre 1.500 e 1.000 metros), um intermediário (1.000 e 900 metros) e outro mais baixo (Geomorphology, no prelo).

insEticiDa contra DEnguE

Enquanto não surge vacina ou tratamento eficaz contra a dengue, a única forma de prevenir e

anticorpos no Espaço

Longas viagens espaciais podem represen-

tar um risco para a saúde dos astronautas

na medida em que seu sistema imunológico

parece funcionar de forma menos eficaz

fora da Terra. Estudo de pesquisadores

franceses da Universidade de Nancy indica

que a qualidade dos anticorpos produzidos

no espaço é pior do que a das células de

defesa originadas em nosso planeta. Es-

se tipo de alteração deixaria os ocupan-

tes de naves e foguetes mais expostos a

pegar infecções e com menor capacidade

de combater vírus, bactérias e tumores

(FASEB Journal, 18 de maio de 2011). As

conclusões do trabalho se baseiam num ex-

perimento feito com anfíbios. Um grupo de

animais foi imunizado a bordo da estação espacial Mir; outro,

vacinado na Terra; e um terceiro não recebeu proteção alguma.

Os cientistas então compararam os anticorpos criados nas

três condições e viram que os fabricados no espaço eram os

menos eficientes. Segundo os autores do estudo, a gravidade

da Terra é um importante fator para o bom funcionamento do

sistema imunológico em animais.

43 estratégias de uso de inseticidas contra o vetor da dengue, Paula Mendes Luz, da Fundação Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, concluiu que é melhor atacar o A. aegypti quando adulto do que no estágio de larva (The Lancet, 15 de maio de 2011). A utilização de compostos de grande letalidade contra a forma imatura do mosquito pode reduzir o impacto da dengue por até dois anos enquanto a mesma abordagem contra insetos adultos produziria efeitos por até quatro anos. Usar inseticidas poderosos, no entanto, poderia causar um efeito colateral: aumentar a vilurência das futuras epidemias. Os mosquitos poderiam se tornar mais resistentes ao veneno e a quantidade de pessoas imunes à dengue poderia diminuir.

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Vida fora da Terra: sistema imune mais frágil

Matar inseto adulto é mais eficaz

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PESQUISA FAPESP 184 ■ junho DE 2011 ■ 45

ovos fóssEis DE crocoDilo

Um novo gênero e espécie de ovo de crocodilo, deno-

minado Bauruoolithus fragilis, foi descoberto por um

grupo de pesquisadores do Brasil e do exterior em 17

ninhos incrustados em rochas sedimentares de uma

fazenda em Jales, no noroeste do estado de São Paulo.

Encontrados em 2006, os fósseis dos ovos pertenceram

a animais que habitaram aquela região há 85 milhões

de anos, no período Cretáceo Superior. Foram provavel-

mente depositados por crocodilos da espécie extinta

Baurusuchus pachecoi, da qual dois esqueletos e um

crânio quase completos foram achados no mesmo sítio

pré-histórico (Paleontology, março de 2011). A casca dos

ovos de Bauruoolithus fragilis é muito fina e delicada,

particularidade que inspirou seu nome. Sua espessura

varia entre 0,15 e 0,25 milímetro, menos da metade da

grossura da casca de ovos pertencentes a formas atuais ou

extintas desses répteis. “Tivemos até dificuldade de trabalhar

com cascas tão frágeis no laboratório”, diz Carlos Eduardo

Maia de Oliveira, da Fundação Educacional de Fernandópolis,

principal autor da descoberta.

do Instituto de Pesquisas Aquário da Baía de Monterey, Estados Unidos. Em cruzeiros de três meses realizados em 2005, 2008 e 2009, os pesquisadores coletaram amostras de gelo flutuante e instalaram robôs submarinos que documentaram esse processo de conversão de energia, já previsto, mas nunca antes demonstrado em detalhes. Os biólogos tratam desse e de outros fenômenos, como

sumiDouros DE carbono

Os icebergs da Antártida fertilizam o mar. Eles promovem o crescimento de algas que absorvem o dióxido de carbono da atmosfera e, por meio das cadeias alimentares dos seres marinhos, transferem o CO2 para o fundo do oceano Austral. A quantidade de carbono que chega ao fundo do mar numa região de 30 quilômetros de diâmetro ao redor de um bloco de gelo pode ser duas vezes maior do que a depositada em uma área de mar aberto, de acordo com um amplo estudo de biólogos dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Argentina. “O papel dos icebergs em remover carbono da atmosfera deve ter implicações para os modelos de previsão de mudanças climáticas que precisam ser mais bem estudadas”, comentou o líder da equipe, Ken Smith,

os micróbios, as algas e as aves que vivem ao redor dos icebergs, em 19 artigos publicados na edição de junho da revista científica Deep Sea Research Part II: Topical Studies in Oceanography.

os riscos Da vErDura

Um programa de controle de qualidade do processamento das verduras que são vendidas nos supermercados precisa ser implantado para aumentar a vida útil e a segurança microbiológica dos produtos. Essa é principal conclusão de um estudo feito por pesquisadores de Ribeirão Preto do Instituto Adolfo Lutz e da Universidade de São Paulo (Food Control, agosto de 2011). Eles analisaram 162 amostras de verduras, como espinafre, chicória e repolho, obtidas em estabelecimentos dessa cidade paulista e encontraram coliformes fecais em 81,5% dos exemplares. A bactéria Escherichia coli estava presente em mais da metade dos produtos averiguados.

Ninho em Jales: ovo fino e delicado

Icebergs retiram CO2 da atmosfera

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O estudo geofísico mais detalhado feito sobre a Província Borborema, nome usado pelos espe-cialistas para se referir ao imenso bloco rochoso que forma boa parte do Nordeste brasileiro, revelou que a crosta terrestre ali é bem mais fina que a média global. A hipótese é que o adelga-çamento da crosta teria acontecido no período

Cretáceo (entre 136 milhões e 65 milhões de anos atrás), quando a África e a América do Sul se separaram pela movimentação dos blocos que formam esses dois conti-nentes. Nesse processo, a crosta teria se esticado naquela região como um queijo derretido que é puxado pelas extremidades. “Normalmente a crosta tem espessura em torno de 40 quilômetros. Nos Himalaias, ela pode chegar a 70 quilômetros”, diz Reinhardt Fuck, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). “Já em partes do Nordeste fica entre 30 e 35 quilômetros, chegando a menos de 30 em alguns pontos. Isso significa que essa crosta foi muito estirada, afinada pelos processos tectônicos.”

A constatação é uma das mais marcantes, mas es-tá longe de ser a única nos estudos feitos na Província Borborema. Fuck é o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Estudos Tectônicos,

A espessura da superfície explica os constantes tremores de terra na região

Salvador Nogueira

A frágil crosta do Nordeste

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[ GEoloGiA ]

de rochas, anomalias gravimétricas, magnetismo das rochas em profundidade e assim por diante.”

Essas pesquisas começaram a evoluir na década de 1990, quando Jesus Berrocal, então pesquisador na USP, hoje aposentado, obteve apoio da FAPESP para um pro-jeto de geofísica no Centro-Oeste. Em parceria com Fuck e o pessoal da UnB, Berrocal conduziu pela primeira vez no país um levantamento de refração sísmica, técnica que permite determinar a espessura da crosta terrestre e a transição entre ela e o manto, a camada logo abai-xo. Ainda assim o esforço era tímido. Mas os resultados ensejaram a conquista de recursos maiores quando o Ministério da Ciência e Tecnologia instituiu os chama-dos Institutos do Milênio, na virada do século XX para o XXI. Esse, por sua vez, foi o germe para o atual INCT, que produz agora os resultados mais completos já obtidos sobre qualquer região da crosta brasileira.

A técnica usada para medir a espessura da crosta foi a mesma aplicada anos antes no Centro-Oeste e consiste em gerar explosões próximo à superfície e verificar como se dá a propagação das ondas de choque no interior da Terra. Quando as ondas passam de um meio a outro, elas são parcialmente refletidas e parcialmente refratadas (mudam

que desde o fim de 2009 reúne grupos de diversas instituições do Brasil, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a Uni-versidade Federal do Ceará (UFC), o Instituto Nacional de Pesquisas Espa-ciais (Inpe) e o Observatório Nacional, do Rio de Janeiro. Com investimento de R$ 2,6 milhões, os pesquisadores produziram cerca de 30 artigos cientí-ficos nos últimos dois anos. Os esfor-ços começam a preencher uma lacuna importante na pesquisa geológica do território brasileiro. “Temos hoje um conhecimento geológico razoável do Brasil em termos de superfície”, explica Fuck. “Mas isso não basta para entender como a crosta se formou e evoluiu. Aí é que entra a geofísica, com uma série de métodos para analisar composição fA

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Paulo Afonso, Bahia: crosta com 35 quilômetros de espessura

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de velocidade). E como as regiões inter-nas do planeta têm densidades e consis-tências diferentes, é possível, medindo a velocidade de propagação das ondas ao longo do tempo, estimar onde fica a fronteira entre a crosta, que é sólida, e o manto, que é mais denso.

Durante a madrugada - O procedi-mento exige uma série de cuidados. São cavados poços com 25 centímetros de diâmetro e 45 metros de profundidade, distantes 50 quilômetros um do outro, e explosivos em gel são colocados lá no fundo. O poço depois é vedado com-pletamente, para que a explosão não se dissipe pelo ar, onde naturalmente en-contraria bem menos resistência. Para medir os efeitos da explosão os pesqui-sadores instalam sismógrafos ao lon-go da região, a cada dois quilômetros. O tempo das detonações – são várias,

feitas em sequência, em intervalos que vão de 15 minutos a uma hora – é me-ticulosamente controlado. Tudo é feito durante a madrugada.

“Tomamos todos os cuidados pa-ra não prejudicar as propriedades. A energia liberada é muito pequena. No máximo, pode provocar um desmo-ronamento em torno do buraco”, diz Fuck. “A uma distância de 100 a 200 metros do local, sente-se certa vibração causada pelo tremor. Mas a 300 metros já praticamente não se percebe nada”, conta. A explosão é surda, porque o po-ço é tamponado. Sente-se a vibração, mas não se ouve nada. A principal razão para os experimentos serem feitos de madrugada é a necessidade de evitar vibrações externas ao experimento, da-da a sensibilidade dos sismógrafos. “Se passar um caminhão ou uma vaca por perto, ele registra”, conta o geólogo.

Outros estudos feitos pelo grupo do INCT levaram a resultados comple-mentares, que ajudam a dar contornos mais precisos à história geológica da re-gião da Borborema. O grupo de Ader-son Farias do Nascimento, da UFRN, mostrou que não só a litosfera no Nor-deste é mais fina, como já sugeriam os estudos de refração sísmica. Ali há um degrau para uma região bem mais es-pessa que fica no chamado cráton do São Francisco, o bloco rochoso sobre o qual se assenta parte da Bahia e de Mi-nas Gerais. A transição entre essas duas composições da crosta é marcada por uma divisão clara e visível na geologia local: uma linha de vulcões extintos que vai de Macau, no Rio Grande do Norte, a Queimadas, na Paraíba.

“Descobrimos que as características das rochas que compõem a litosfera a oeste desse alinhamento de vulcões são muito diferentes das características do tipo de rocha profunda que encontra-mos a leste”, diz Nascimento. A hipótese do grupo é que, com o estiramento da região costeira, se formou esse degrau, e o manto terrestre, mais quente, foi alçado próximo da superfície. Com o acúmulo de calor, o aparecimento de atividade vulcânica se tornou inevitá-vel. Mas não há por que temer: a última erupção deve ter ocorrido 7 milhões de anos atrás. “É difícil dizer, mas até é pos-sível que volte a acontecer alguma coisa na região”, diz ele.

Para obter esses dados do interior da Terra, o grupo da UFRN usou sismó-grafos. Mas, em vez de medir explosões controladas a poucos metros de profun-didade, como na refração sísmica, eles registravam tremores reais, ocorridos a pelo menos 3 mil quilômetros de dis-tância das estações de medição. A partir da informação bruta, eles usaram uma técnica chamada função do receptor pa-ra chegar às conclusões. É um processa-mento que se faz nas medidas sísmicas. A cada evento registrado, os dados bru-tos refletiam quatro efeitos diferentes: o da fonte sísmica, o da propagação, o da interação da propagação com estru-turas da superfície, e um quarto, que é o efeito do próprio equipamento sobre a medição – este é o mais conhecido e mais facilmente subtraído.

O processamento é justamente o caminho para retirar da confusão os efeitos da fonte e da propagação. “O

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Explosões em duas linhas de poços delimitaram a crosta

De norte a sul do Nordeste

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resultado é que se fica só com a geo-logia do local da estação”, explica Nas-cimento. “Para que se tenha uma ideia da dificuldade, é como se você comesse um bolo e fosse capaz de dizer, aqui tem tanto de farinha, tanto de açúcar, tanto de chocolate em pó.” A vantagem dessa técnica é que ela é mais barata e menos trabalhosa do que a refração sísmica, uma vez que basta instalar os equipamentos e esperar pelos terre-motos do outro lado do mundo. Ela é menos precisa, de fato, mas pode co-brir uma região bem maior. Quando se fazem explosões ao longo de uma linha, só se obtêm dados daquela li-nha. “A refração sísmica é como uma radiografia, você obtém a imagem em um plano só. No nosso caso, pudemos observar bem o contraste de compo-sição entre a Província Borborema e o cráton do São Francisco”, conta o geofísico da UFRN.

Terremotos – Outro ponto de inte-resse na Província Borborema são as falhas geológicas, causadoras de ter-remotos. O Brasil se localiza em uma região estável, o meio de uma placa tectônica, sem grandes abalos sísmi-cos. Há, porém, várias falhas, concen-tradas no Nordeste. Os tremores são constantes na região, mas raramente ultrapassam 4 pontos da escala Richter. Em geral causam poucos danos, mas às

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Patos, Paraíba: crosta de 33 quilômetros,

mais espessa ao sulCadeia de

vulcões extintos

marca transição

da Província

Borborema

para o cráton

do São Francisco

vezes assustam. “Em Sobral, no Ceará, em 2008 e 2009 as pessoas não ficavam dentro de casa, com medo de o teto desabar”, conta Fuck.

Apesar do conhecimento gerado por esses estudos, prever terremotos continua tão difícil quanto sempre foi. Embora não tenham feito avanços nes-se sentido, os pesquisadores brasileiros identificaram a origem desses tremores que atingem o Nordeste e mapearam as falhas geológicas responsáveis por eles, informação que a partir de agora pode orientar a realização de grandes obras de engenharia, como a construção de pontes e barragens, ou mesmo o assen-tamento de pessoas.

O grupo do INCT para Estudos Tectônicos espalhou estações sismo-lógicas pelo Nordeste justamente para monitorar os abalos e identificar seus epicentros. Diversas falhas relevantes já haviam sido identificadas no passado, como o lineamento Transbrasiliano, que vai da Argentina ao litoral do Cea-rá. Mas os resultados da equipe de Fuck mostraram que os abalos que afetam Sobral com frequência nada têm a ver com esse lineamento. Eles parecem es-tar ligados a outra falha, até então des-conhecida. “Nossos estudos mostram que se trata de uma falha que não está nos mapas geológicos e que apresenta uma direção distinta.”

Os pesquisadores não sabem direito por que alguns lugares por onde passa a falha estão mais sujeitos a tremores do que outros. Mas está claro que há sítios preferenciais para a liberação da energia. Sobral é um deles. “Aparente-mente algumas regiões da crosta estão enfraquecidas”, diz Fuck. Os trabalhos na Província Borborema continuam. “Elegemos essa região como uma es-pécie de programa piloto. Por meio desses experimentos, queremos formar equipes que possam levar esse tipo de estudo para o Brasil inteiro.” n

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[ AstronomiA ]

Choques solares

Estudo detalha relação entre explosões no sol e tempestades magnéticas na terra

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Com aquela aparência de uma imensa bola de fogo no céu, o Sol de fato está longe de ser um astro brando. Ali aconte-cem explosões – de uma por semana nos períodos mais calmos até duas ou três por

dia quando a atividade está mais in-tensa – que lançam partículas e gases superaquecidos para longe do Sol a velocidades de até 2.500 quilômetros por segundo e perturbam o vento solar. Assim como uma pedra jogada na água gera ondas concêntricas, essas explosões ejetam material e dão origem a ondas de choque que podem chegar à Terra. O fenômeno impressiona e é deslum-brante quando capturado em imagens, mas, nessa área da astronomia, o sur-preendente é o pouco que se conhece. Diminuir o desconhecimento, descre-ver as consequências dessas explosões e avaliar como elas afetam este planeta é o que ocupa a geofísica espacial Cris-tiane Loesch, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entender a atividade solar é um objetivo cada vez mais crucial, como lembra Sir John Bed dington na entrevista desta edição (ver texto na página 10).

O material ejetado do Sol durante as explosões carrega campo magnéti-co que, ao aproximar-se da Terra, por sua vez altera o campo magnético do planeta, causando as chamadas tem-pestades magnéticas. O fenômeno pode causar problemas para a navegação, a aviação, para astronautas em serviço

no espaço e até se manifestar de forma mais prosaica, interferindo no funcio-namento da rede elétrica e causando apagões como o que deixou parte do Canadá no escuro em 1989. Um dos problemas para descrever o fenômeno com exatidão é que não basta apontar um telescópio para o Sol, já que sua lu-minosidade ofusca o que acontece logo em torno. A pesquisadora do Inpe, en-tão, recorre a simulações baseadas em modelos que descrevem os efeitos des-sas explosões de gases solares, conhe-cidas como ejeções de massa coronal (CMEs, na sigla em inglês). “Ninguém sabe ainda exatamente como funcio-na a erupção delas no Sol”, explica. Por meio desse recurso teórico, ela volta os olhos para a região da atmosfera solar mais próxima do Sol, conhecida como baixa coroa solar, uma zona até agora muito pouco explorada.

Durante o doutorado, com orien-tação de Maria Virginia Alves, também do Inpe, e em colaboração com Merav Opher, uma astrofísica brasileira ra-dicada nos Estados Unidos, Cristiane comparou as previsões de dois desses modelos teóricos para estudar, naquela região, as assinaturas de duas CMEs com configurações distintas. Observou que a energia magnética da CME é convertida em térmica e cinética à medida que se afasta da origem e que as característi-cas magnéticas iniciais importam pouco para as velocidades de choque que se seguem. Além disso, os dois modelos se revelaram bastante parecidos no que diz respeito às consequências das CMEs bem próximo ao Sol, numa distância entre duas e seis vezes o raio do astro, conforme mostra em artigo publicado em abril deste ano no Journal of Geo-physical Research. “Ali o vento ainda tem uma estrutura muito solar, com carac-terísticas típicas dos arredores do astro”, ela justifica a escolha, “e mais junto à superfície acontece muita coisa que não se entende”. Para se ter uma noção da escala, a distância entre a Terra e o Sol é de cerca de 212 raios solares.

Na teoria - A semelhança dos resul-taxos obtidos com os dois modelos foi uma surpresa, porque eles partem de premissas que deveriam gerar intera-ções distintas entre a CME e o vento solar. Mas, nos dois casos, as CMEs ge-ram uma onda de choque que se pro-

Maria Guimarães

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 51

baixa coroa solar, onde a densidade do vento solar é mais alta, de acordo com o trabalho de Das, publicado em março no Astrophysical Journal. O artigo tem coautoria de Cristiane e mostra que, quando a CME se afasta do Sol, o cam-po magnético à sua frente se comprime e o plasma entre as linhas de campo sai para os lados, criando uma região pouco densa na bainha. “É como um barco empurrando a água”, compara a pesquisadora do Inpe, “a água passa pe-las laterais”. O estudo mostra também que a CME pode dar origem ao choque posterior quando empurra o plasma da bainha, acumulando massa.

Ainda falta muito para se descre-ver em detalhes como os fenômenos se comportam e por quê. Parece certo que, até três raios de distância do astro que ilumina a Terra, os choques causados pelas CMEs estão associados à acelera-

ção de partículas. Agora Cristiane busca compreender o que ocorre no restante do espaço que separa o Sol da Terra. Ela quer acompanhar a perturbação causada pelas bainhas das ejeções de massa coronal até este planeta para ver que variações elas causam no campo magnético terrestre e como isso pode ser relacionado ao que acontece no Sol. É um longo trajeto. n

Sol e Terra: bombardeio de energias

paga mais depressa do que a própria explosão e caminha em direção à Terra, e empurram diante de si uma zona de vento solar perturbado conhecida como bainha. Essa bainha se alarga à medida que se afasta do Sol e, Cristiane conta, pode aumentar em até 29% a entrada de energia na magnetosfera. É isso que pode contribuir para tempestades mag-néticas na Terra.

Cristiane verificou que o tamanho dessa bainha é diferente nos dois mo-delos e observou nelas uma segunda onda de choque. Ainda falta entender melhor o porquê. Para investigar o que gera esse choque posterior, que aparece a pouco menos de 2,5 raios solares, Me-rav sugeriu a Indajit Das, na época seu doutorando, que examinasse as CMEs como um todo e analisasse o que pode gerar uma compressão atrás do choque. A compressão é especialmente alta na

Artigos científicos

1. LOESCH, C. et al. Signatures of two dis-tinct driving mechanisms in the evolution of coronal mass ejections in the lower coro-na. Journal of Geophysical Research. v. 116. abr. 2011.2. DAS, I. et al. Evolution of piled-up compres-sions in modeled coronal mass ejection sheaths and the resulting sheath structures. The Astro­physical Journal. v. 729, n. 112. mar. 2010.

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52 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

[ Física ]

Grafeno na nova eletrônica

Material pode ser a base de de um hipotético nanotransistor quântico

Marcos Pivetta

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Filme de carbono com apenas um átomo de espessura e dotado de uma estrutura hexagonal, o grafeno é uma das esperanças para o desenvolvimento de uma nova eletrônica, a spintrônica, que poderá levar ao surgimen-

to de computadores quânticos, ainda menores e mais rápidos. Nesse novo mundo, a informação magnética não seria transmitida apenas pela corren te elétrica, como ocorre nos micros atuais, mas fundamentalmente por outra propriedade dos elétrons, por seu spin. Como só existem dois valores possíveis para o spin, esse estado do elétron po-de ser útil para armazenar e propagar dados na forma de bits. Mas o sinal ge-rado pela corrente de spin é extrema-mente fraco e tende a se propagar em todas as direções, duas características que dificultam seu controle e detecção. De acordo com um trabalho recente de físicos teóricos brasileiros, esses empe-cilhos são aparentemente contornáveis no grafeno, um candidato a tomar o lu-gar do silício nos circuitos integrados do futuro: o spin de seus elétrons pode

ser amplificado e controlado por meio de um mecanismo que funciona como uma lente, criando a possibilidade de o material ser usado como um nanotran-sistor quântico.

“Provamos matematicamente que o grafeno pode atuar como uma lente e redirecionar a corrente de spin de uma fonte magnética para uma determinada região onde se encontra uma unidade receptora”, diz o físico brasileiro Mauro Ferreira, do Trinity College, de Dublin, que participou do estudo, publicado na edição de maio do Journal of Physics: Condensed Matter, ao lado de colegas da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Dessa forma, uma parte da in-formação que seria perdida pode ser resgatada.” Nada disso ainda foi feito em laboratório, apenas esboçado em trabalhos teóricos. Depois de uma série de cálculos, os pesquisadores afirmam que o grafeno, um material mais resis-tente do que o aço e melhor condutor de eletricidade do que o cobre, pode se comportar como um transistor de spin se exposto a certas condições. O artigo é o terceiro do grupo de físicos

Folhas de grafeno:

fino e duro

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Especialista em spintrônica, José Carlos Egues, do Instituto de Física de São Car-los, da Universidade de São Paulo, que não participou dos trabalhos de Fer-reira e Muniz, considera os resultados interessantes, mas ainda muito preli-minares. “Mais estudos são necessários para explorar a viabilidade da proposta e a sua relevância para aplicações em spintrônica”, comenta Egues.

Por didatismo, o spin é descrito como o movimento feito por um elétron ao gi-rar em torno do próprio eixo como um pião. Há duas formas de spin, uma com rotação para cima e outra para baixo. Na verdade, o fenômeno é mais com-plicado do que isso e um elétron pode apresentar simultaneamente as duas variantes de spin. Em termos práticos, o desenvolvimento de uma nova ele-trônica depende do pleno domínio da corrente de spin, como se tem atualmen-te da corrente elétrica, e de ter meios eficazes de controlar a conversão de um tipo de spin para outro. Físicos de todo o mundo têm tentado criar correntes de spin em materiais semicondutores e também no grafeno, um cristal bidi-mensional com um conjunto de pro-priedades singulares.

Num artigo publicado na revista científica americana Science de 15 de abril deste ano, Andre Geim e Konstan-tin Novoselov, físicos da Universidade de Manchester que ganharam o Nobel de Física de 2010 por seus trabalhos com o grafeno, mostraram indícios de que esse material pode mesmo transmitir uma corrente de spin. Eles aplicaram um cam-po elétrico entre dois eletrodos situados um milionésimo de metro de uma folha desse material e mediram a voltagem nu-ma região distante 10 milionésimos de metro dos eletrodos. Quando o grafeno foi exposto a um campo magnético, a voltagem se tornou mais elevada. Essa variação, segundo os autores do estudo, é uma evidência de que há uma corrente de spin passando pelo grafeno. n

Artigo científico

GUIMArãES, F.S.M. et al. Graphene as a non-magnetic spin current lens. Journal of Physics: Condensed Matter. v. 23, n. 17. 4 mai. 2011.

a explorar teoricamente as possibilida-des do uso de nanotubos de carbono e do grafeno na spintrônica. Os dois estudos anteriores saíram no ano pas-sado na Physical Review B.

Para transformar o spin do grafeno num meio capaz de transmitir infor-mação num sistema quântico, os bra-sileiros trabalharam com um cenário bastante particular. A criação de uma corrente de spin foi simulada por meio da inserção de um objeto magnético na arquitetura atômica em forma de colmeia do grafeno, composta apenas por carbonos. “Imagine um pequeno ímã em movimento rotatório numa folha de grafeno”, compara Ferreira. A presença desse objeto estranho faria o spin dos elétrons de carbono vibrarem sucessivamente da mesma maneira. A vibração do spin de um elétron seria en-tão repassada a seu vizinho e assim por diante. O problema é que uma corrente de spin se dissemina, sem controle, por todas as direções do grafeno. “A exem-plo das ondas criadas por uma pedra jogada num lago, essa corrente é mais fraca à medida que se distancia de sua origem”, diz o pesquisador

Pequena perda de energia - O passo seguinte da simulação foi dividir o filme de grafeno em duas partes e alterar a densidade de carga elétrica numa delas. O procedimento geraria nesse segmen-to do grafeno um potencial de porta, um caminho para o qual a corrente de spin se dirigiria e por meio do qual se disseminaria pelo material. “A corrente de spin não dissipa calor no grafeno e a perda de energia num sistema assim seria mínima. Um dipositivo que fun-cionasse por meio dessa corrente con-sumiria pouquíssima energia”, afirma o físico roberto Bechara Muniz, da UFF, outro autor do trabalho. Além de canalizar a corrente de spin para uma região específica do grafeno e, assim, amplificar seu sinal, a criação da porta funcionaria como uma chave para ligar e desligar o transistor. Permitiria barrar ou liberar a passagem da corrente de spin. “Nosso trabalho dá apenas uma pequena contribuição sobre essa ques-tão, mas mostra ser possível controlar a corrente de spin no grafeno”, diz Muniz.

Estrutura hexagonal do

material: só átomos

de carbono

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Num mundo invisível a olho nu, ínfimas partículas detectam substâncias, cápsu-las minúsculas transportam medica-mentos a pontos exatos no organismo, tubos dezenas de milhares de vezes me-nores que um fio de cabelo participam da recuperação de zonas poluídas. O

universo dos materiais na escala nanométrica é cada vez mais amplo, revela usos de diversidade crescente e permite a construção de aparelhos cada vez menores.

As palestras do segundo encontro do Ciclo de Conferências do Ano Internacional da Química, realizadas em São Paulo no dia 12 de maio, foram um passeio por essa paisagem normalmente ocul-ta, mas também mostraram que ela não é mis-teriosa só para leigos. “Os engenheiros químicos que usam novos materiais não entendem nada de química”, brincou a coordenadora da confe-rência Rosario Bretas, da Universidade Federal de São Carlos. Ela mesma, engenheira, costuma considerar a química um problema. “Precisamos saber quanto usar de cada elemento e quais são as condições ideais para que se formem nanoes-truturas úteis”, contou, ressaltando a importância

Pequenas ferramentas para grandes usos

especial // Ano Internacional da Química

Palestras mostram perspectivas de uso crescente de novos nanomateriais

Maria Guimarãesilustrações Nina Kreis

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56 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

Não sabemos o que mantém as gotículas unidas nas nuvens, diz Galembeck

das exposições que se seguiriam: os químicos Fernando Galembeck e Oswaldo Alves, da Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Henrique Toma, da Universidade de São Paulo (USP). O ciclo, que vai até novembro, é uma iniciativa da FAPESP e da Sociedade Brasileira de Química como parte da celebração do Ano Internacional da Química com o tema Química: nossa vida, nosso futuro, promovida pela União Internacional de Química Pura e Aplicada em parceria com a Unesco.

Fernando Galembeck ressaltou a necessidade de se reconhecer que a ciência vive hoje muitos impasses. “Alguns tópicos do dia a dia, como o atrito e a eletrostática, são muito pouco conheci-dos por cientistas de qualquer área, devido à falta de atenção aos fenômenos químicos envolvidos”, provocou. Segundo ele, é essa ignorância que permite que aconteçam explosões causadas por descargas eletrostáticas, como a que destruiu o Veículo Lançador de Satélites na base de Alcânta-ra, no Maranhão, em 2003. “Não sabemos o que mantém as gotículas unidas para formar nuvens! Como elas têm carga, deveriam se repelir.”

Os estudos de Galembeck vêm mostrando que as superfícies têm propriedades elétricas inespe-radas, derivadas da nanoestrutura química. Para aproveitar esse conhecimento, é preciso manter a mente aberta e fugir de muitos cânones esta-belecidos. Um fenômeno central, ele mostrou, é

o padrão de distribuição das cargas elétricas nas superfícies. “Ainda não encontrei uma superfície eletricamente lisa.” Com base nisso, o pesquisa-dor criou e tem aplicado com sucesso um novo modelo, no qual os íons da água conferem carga às superfícies dos materiais, alterando suas pro-priedades. Segundo Galembeck, as moléculas de água penetram em qualquer material. Os primei-ros artigos demoraram a ser aceitos, talvez pela própria novidade, mas hoje os resultados vêm sendo muito bem recebidos por especialistas.

O efeito da eletricidade na água é bem ilus-trado por um vídeo com gotas que caem de uma agulha eletrizada. No início as gotas são arredondadas e o gotejamento é lento. À me-dida que a voltagem fica mais negativa o ritmo fica cada vez mais rápido e as gotas mais longas, até formarem um fio contínuo. “A atmosfera é um reservatório de cargas, e a transferência de cargas anula a tensão superficial que mantém a estrutura da gota”, explicou. O importante é per-ceber como, para avançar no desenvolvimento de materiais inovadores, é preciso voltar às raízes do conhecimento, sem hierarquizá-lo. “O que tem permitido costurar esse avanço teórico são teorias químicas antigas”, sintetiza Galembeck, que agora faz experimentos para capturar energia elétrica da atmosfera. Em escala reduzida, já que, brincou, ainda não conseguiu financiamento pa-ra colher raios em tempestades.

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 57

Auto-organização - A importância do com-portamento dos elétrons, a base da eletricida-de e da eletrônica, foi recorrente nas falas dos pesquisadores. Mas, para além da eletricidade, é imprescindível entender todos os parâmetros que afetam as propriedades dos compostos, que às vezes se formam por conta própria. À cata de novidades, Oswaldo Alves se põe na posição de observador dos fenômenos naturais para detectar a emergência da complexidade em materiais na-noestruturados. Nos materiais porosos ordena-dos, por exemplo, ele mostrou que a temperatura afeta as características das paredes que sustentam a estrutura. Temperaturas a partir de 800 graus Celsius (°C) faz essa estrutura colapsar.

A construção de nanomateriais não é novida-de: “Há 20 anos já era factível construir quantum dots no Brasil”, afirmou Alves, se referindo aos nanocristais, semicondutores também conheci-dos como pontos quânticos, com uma infinidade de usos, como nas telecomunicações e em equi-pamentos ópticos. A terminologia usada pelos especialistas é cabeluda mas, na prática, basta trabalhar com blocos de construção específicos e fornecer as condições ideais, como de tempe-ratura, para que se forme uma estrutura com a morfologia e o tamanho desejados.

Um caso emblemático são os nanotubos, em geral à base de carbono como é o caso das folhas de grafeno, compostas por uma camada

de átomos de carbono (ver texto na página 52), enroladas. “Mas o grafeno é um semicondutor”, lembrou o pesquisador, ressaltando que usos diferentes exigem materiais com propriedades específicas. Ele conseguiu, em seu laboratório, construir nanotubos completamente inorgâni-cos (sem carbono) feitos de vanadato ou tita-nato, e nanobastões de trióxido de molibdênio, que, vistos num microscópio ultrapotente, se parecem com palitos de picolé.

Quando fez esferas de sulfeto de molibdê-nio, notou que elas tinham aparência estranha. A solução foi usar um microscópio com feixe de íons focalizados (FIB, na sigla em inglês), que permite manipular as partículas. “O feixe espa-lha as esferas como se fosse um jogo de bilhar”, comparou. Com essa ferramenta foi possível cortar uma das esferas e verificar que era oca. “Depois da concepção e da construção vem a aplicação, que é outra história.” As nanoesferas ocas podem servir como nanocarreadores, por exemplo, para levar medicamentos para ende-reços específicos no organismo. Outra aparição inesperada aconteceu ao produzir nanofios de vanadato de prata, que podem ter propriedades antibacterianas, decorados com nanopartículas de prata. Ao microscópio, essas minúsculas par-tículas tinham uma cara conhecida: pareciam o Mickey (ver vídeo no site www.revistapesquisa.fa-pesp.br). Antes de duvidar da seriedade do grupo de pesquisa, que fique claro que os pesquisadores não gastam tempo procurando construir perso-nagens de histórias em quadrinhos invisíveis a olho nu. “Esse fenômeno de auto-organização não foi intencional, mas o olhar precisava estar preparado para enxergar”, contou.

Desenvolver novos materiais, para ele, po-de envolver pôr uma roupa nova em velhos e conhecidos compostos, e aproveitar de forma inteligente os fenômenos de auto-organização, sobretudo quando se pensa em aplicações. “Se o nanomaterial for muito exótico, ele não tem his-tória epidemiológica nem dados de nanotoxico-logia, ficam maiores as dificuldades de conseguir aprovação, por exemplo, para uso clínico.”

Peça por peça - Igualmente em busca de no-vidades úteis, Henrique Toma, da USP, usa um enfoque que se aproxima mais de um construtor de modelos. “Procuramos fazer com que os com-ponentes atuem de forma concatenada”, descre-veu, uma especialidade conhecida como química supramolecular. O que ele considera um sonho é transformar a química de todos os dias numa quí-mica mais ordenada, dominando as características e tornando a molécula realmente inteligente.

Ele tem consciência de viver num novo mun-do, em que a molécula virou material e estrutu-ras invisíveis movem a economia. Um exemplo

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são filmes de ouro com espessura de um bilionésimo de metro, tão finos que a luz que passa por dentro de-les consegue interagir com os elétrons de superfície das duas faces. O ângulo em que a luz entra em ressonância com os elétrons, e é completamente absorvida, permi-te detectar material pousado na superfície com dimensões muito menores que um grão de areia. Essa ferramenta vem sendo usada no laboratório para monitorar DNA e estudar como ele interage com drogas e outros agentes químicos. Com esse tipo de técnica, Toma trabalha em desenvolver dispositivos para a medicina, para conversão de energia, e sensores eficientes e quase sem custo para alimentos, bebidas e fármacos, por exem-plo. O cliente mais importante das inovações produzidas em seu laboratório é a Petrobras, que requer uma variedade de nanomateriais, como catalisadores e detectores de poluentes, para uso em campo.

A transferência de elétrons, essencial para todos os processos de formação de compostos, dá origem até a manifestações artísticas, como mostrou Toma. Seu grupo de pesquisa desen-volveu pigmentos com moléculas orgânicas es-peciais e íons metálicos que, quando borrifados

ou mergulhados em solução com nanoferratos, revelam uma imagem por meio de transferência de elétrons entre as substâncias. “Costumava ser a abertura dos shows de química, os alunos mergulhavam o papel-filtro no líquido e de re-pente surgia a bandeira do Brasil”, contou. O processo deu origem à imagem que Toma fez em homenagem ao Prêmio Nobel recebido em 1983 pelo norte-americano Henry Taube, o pri-meiro a propor um modelo de transferência de elétrons. “É um resumo de toda a teoria que lhe rendeu o prêmio.” Ele não sabe como Taube interpretou a pintura quando a recebeu, mas o pesquisador da USP afirma que ela represen-ta todos os elementos importantes no modelo desenvolvido pelo norte-americano. É um bom exemplo de princípios básicos da química dan-do origem a fenômenos inesperados, com um aspecto lúdico de lambuja.

Os três palestrantes deixaram claro que es-se lado lúdico permeia o estudo da química. A investigação de fenômenos químicos, da forma-ção de compostos e a observação do seu com-portamento, é, para eles, uma constante fonte de deslumbramento. Galembeck estendeu aos estudantes e curiosos pela química o convite feito por Jean-Marie Lehn, químico francês ganhador do Prêmio Nobel em 1987, na inauguração do Ano Internacional da Química: “O livro da quí-mica está por ser escrito, a música da química está por ser composta. Convido-os a participar dessa obra de criação”. n

Oswaldo Alves, Henrique Toma e Fernando Galembeck

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Novos materiais podem ser velhos e conhecidos compostos com uma roupa nova

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Remédio ineficaz

Corticoide não trata problemas respiratórios em prematuros tardios

Os medicamentos corticoides têm sido usados há mais de 10 anos para apressar o amadurecimen-to de bebês prematuros, que nascem com seis a sete meses de gestação (24 a 34 semanas), e assim reduzir seus problemas respiratórios. Para os chamados prematuros tardios, que nascem entre 34 e 36 semanas, os médicos também usavam

corticoides, mas havia dúvidas se essa estratégia realmente funcionava. Agora um estudo com 320 gestantes atendidas no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (Imip), de Recife, mostrou que é indiferente dar ou não medicamento: não houve ganhos relevantes no estado de saúde dos bebês das 157 mulheres que tomaram placebo e das 163 que tomaram corticoide. Os bebês cujas mães tomaram corticoide apresentaram apenas um pouco me-nos icterícia que o outro grupo.

Esse trabalho, o primeiro desse tipo realizado no Brasil, pode ajudar os médicos a repensarem as estratégias para lidar com as gestações que terminam entre 34 e 36 semanas – os bebês que nascem depois de 37 semanas, chamados de termo, já são considerados normais. “Antes chamá-vamos os prematuros tardios de quase-termo, achando que não teriam muitos problemas”, diz Melania Amorim, professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), médica no Imip e coordenadora desse estudo. “Depois vimos que eles apresentam menos problemas de saúde que um prematuro, mas mais do que um bebê normal, e precisam de cuidados especiais.”

Os prematuros – e, em menor intensidade, os prema-turos tardios – costumam ter, principalmente, problemas respiratórios, já que o pulmão não está maduro, além de distúrbios metabólicos, dificuldade em digerir e icterícia. A prematuridade, que costuma vir com esses problemas, res-ponde por cerca de 40% da mortalidade infantil. De acordo

com o Instituto Nacional da Saúde da Criança (NICH) dos Estados Unidos, a mortalidade de bebês prematuros que nascem com 501 a 750 gramas (g) é de 60%; de 750 g a 1 quilograma (kg) é de 23%; de 1 kg a 1,2 kg é de 10%; e acima de 1,250 kg é de 7%. Um bebê normal nasce com peso entre 2,8 kg e 3,2 kg.

“Desde os anos 1990 o corticoide ajuda bastante a reduzir as consequên-cias da prematuridade”, diz Melania, atenta para a eficácia desse tipo de medicamento desde o doutorado, con-cluído em 1998. “Achávamos que seria efetivo também para os prematuros tar-dios, mas infelizmente não foi. É indife-rente dar ou não dar. O corticoide não vai melhorar o desconforto respirató-rio. Temos de pensar outra estratégia para enfrentar esse problema.” Embora ineficaz, o corticoide, por causa da do-sagem baixa, segundo a pesquisadora, não deve prejudicar o sistema imune – em adultos, corticoides podem às vezes enfraquecer as defesas do organismo contra microrganismos e tumores.

Das 320 gestantes que participaram do estudo no hospital de Recife, 163 tomaram corticoide e 157 placebo, en-tre abril de 2008 e junho de 2010. Os líquidos que lhes eram aplicados em dose única tinham a mesma cor, volu-me e embalagem; eram identificados por meio de um código e apenas o far-macêutico que os havia preparado sabia qual era qual. Em cada grupo nasceram 143 e 130 bebês prematuros tardios, cujo estado de saúde se mostrou bas-tante próximo, de acordo com o artigo que detalha esse estudo, publicado em abril na British Medical Journal (BMJ). A taxa de síndrome do desconforto res-piratório foi baixa (dois bebês no grupo cujas mães tomaram corticoide e um no grupo controle), mas a de respiração ofegante, a taquipneia, foi alta (34 e 29 em cada grupo).

A necessidade de respiração artifi-cial foi de cerca de 20% nos dois gru-pos. Não houve diferença expressiva na morbidade neonatal (88 bebês nas mães-corticoides e 93 nas mães-pla-cebo) ou no tempo em que os bebês permaneceram nos hospitais (5,1 dias no primeiro grupo e 5,2 no segundo). Melania ressalta que esses resultados, embora tenham merecido um comen-

[ Pediatria ]

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PESQUISA FAPESP 184 n junho de 2011 n 61

tário positivo em um dos editoriais da BMJ, ainda precisam ser reiterados por outras equipes em estudos mais abrangentes. Um estudo amplo, com 2.800 mulheres, está em andamento nos Estados Unidos, com resultados previstos para 2013.

Partos antecipados - “Os resultados são clinica-mente e cientificamente importantes”, comentou o médico brasileiro Jaques Belik, professor de pediatria da Universidade de Toronto, Canadá. “Em minha opinião esse estudo definitivamente confirma que corticosteroides não estão indicados em gravidez com ruptura de bolsa além das 34 semanas.” Ruth Guinsburg, professor de pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), alerta que a prematuridade tardia preocupa no mundo inteiro. “No Brasil”, diz ela, “com as alarmantes taxas de cesáreas sem uma indicação definitiva, antes de 39 semanas, a preocupação com a prematuridade tardia é ainda maior”.

O elevado número de cesáreas eletivas fora de trabalho de parto, após uma gestação de 37 e 38 semanas, e, muitas vezes, a interrupção pro-gramada entre 34 e 36 semanas por morbidade da mãe e do bebê, segundo ela, “resultam em um número absoluto de recém-nascidos preocupan-te”. Os bebês que nascem nessas circunstâncias geralmente permanecem sob tratamentos inten-sivos, precisam de fototerapia, têm dificuldade para amamentar e permanecem internados por cinco a 10 dias, “gerando custo emocional para as famílias, custos financeiros para o país e pos-sibilidade de sequelas para as crianças”.

Entre as 34ª e 40ª semanas de gestação, lembra ela, é quando ocorre boa parte do crescimento do cérebro. Essa é uma das razões pelas quais a pre-maturidade tardia pode prejudicar a capacidade de aprendizagem na idade escolar. “É lógico que uma parte dessas gestações apresenta indicações indiscutíveis para a resolução do parto”, diz ela. “Mas há outra parte em que o prolongamento da gestação ou a resolução do parto após o início do trabalho de parto seria benéfico em todos os sen-tidos.” O que os médicos de Recife viram bastou para repensarem as estratégias de atendimento às mulheres gestantes de prováveis prematuros. “Agora, sempre que possível, procuramos sus-tentar a gravidez e adiar o parto, para que o bebê nasça após 37 semanas”, diz Melania. “Já estamos mudando a rotina do serviço de obstetrícia para atendermos melhor os prematuros tardios.” n

Artigo científico

PORTO, A.M.F. et al. Effectiveness of antenatal corticos-teroids in reducing respiratory disorders in late preterm infants: randomized clinical trial. BMJ. 2011. On-line

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Page 59: Pesquisa FAPESP_184

62 ■ junho DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 184

linha de produção

Em três DimEnsõEs

A era das três dimensões (3D) che-

gou aos chips de processamento ele-

trônico. A Intel, fabricante de proces-

sadores e semicondutores, anunciou

que colocará em produção até o fim

do ano os transistores Tri-Gate como

parte do microprocessador Ivy Brid-

ge. Segundo comunicado da empre-

sa, esse transistor de 22 nanômetros

(1 nanômetro equivale a 1 milímetro

dividido por mil), o menor existente,

vai proporcionar melhor desempe-

nho e redução do gasto de energia a

uma série de aparelhos eletrônicos,

de notebooks a servidores, além de

facilitar o design de equipamentos móveis. Com um transis-

tor desse tamanho, a empresa supera as limitações físicas

desses materiais semicondutores em relação ao processa-

mento eletrônico em dimensões tão pequenas. Em vez de um

transistor plano em 2D, com apenas uma forma de conexão,

foram criadas paredes nanométricas de silício sobre o material

semicondutor. Assim, formam-se conexões em três pontos,

um de cada lado da parede e um no cume.

AltA vElociDADEnA intErnEt

Uma boa notícia para quem acha a internet lenta para navegar e fazer downloads. Uma equipe liderada pelo professor Jürg Leuthold, do Instituto de Tecnologia Kalsruhe (KIT), da Alemanha, transmitiu dados a uma velocidade de 26 terabits por segundo (Tb/s), batendo o recorde de transmissão que é do próprio grupo em 2010, com 10 Tb/s. A nova velocidade permite transmitir o conteúdo de 700 DVDs em um segundo. A

sistEmA virtuAl nA sEgurAnçA

A capacitação de policiais civis e militares, guardas municipais e privados é um fator essencial para o sucesso desse tipo de trabalho na área de segurança. O uso de tecnologia contribui para essa capacitação e é isso que procurou fazer a empresa paulista Cientistas, de São Carlos, que

maior novidade tecnológica do grupo esteve em transmitir essa taxa de dados via fibra óptica com um único laser, ao contrário de outros experimentos que utilizaram várias fontes de laser para atingir velocidades próximas. O experimento foi publicado na Nature Photonics (20 de maio). Além do KIT, a pesquisa contou com pesquisadores da Universidade de Southampton, da Inglaterra, e das empresas Agilent e Micram, da Alemanha, Finisar, de Israel, e Time-Bandwidth, da Suíça.

Transistorcom maiordesempenho

Treinamento simula situaçõesde confronto

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desenvolveu um sistema baseado em games para treinamento em segurança. Por meio de projetores, o sistema cria um cenário virtual, em que a pessoa interage com voz e faz disparo simulado de armas, inclusive com mira a laser. O equipamento produz imagens com cenários variados projetados numa tela. Também possui um fone de ouvido e microfone, para o profissional interagir, por exemplo, com possíveis assaltantes. No final, um relatório de desempenho é gerado. “Nosso sistema busca transportar o usuário para uma realidade mais próxima do cotidiano”, diz Antonio Valério Netto, um dos diretores da empresa, acrescentando que os profissionais brasileiros têm pouca oportunidadede treinar porque faltam ferramentas de trabalho práticas. O sistema recebeu financiamento de R$ 66 mil do Programa Pesquisa Inovativa em Pesquenas Empresas (Pipe) da FAPESP.

Page 60: Pesquisa FAPESP_184

PESQUISA FAPESP 184 ■ junho DE 2011 ■ 63

AltErnAtivA Aouso DA mADEirA

Resíduos da agroindústria, que incluem bagaço da cana-de-açúcar, casca de amendoim e fibra da casca do coco-verde, além de serragem descartada pelas madeireiras, são as matérias-primas usadas por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) na fabricação de materiais compósitos utilizados em móveis e divisórias. A resina empregada no processo é à base de óleo de mamona, que começa a ser usado nesse tipo de aplicação. “Em vez de partículas de madeira, estamos propondo o uso de materiais que, em muitos casos, são descartados”, diz o professor Juliano Fiorelli, do grupo de

Construções e Ambiência da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da USP de Pirassununga, no interior paulista, coordenador do projeto que teve apoio da FAPESP na modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa, com financiamento de R$ 145 mil. Testes físicos

cElulAr flExívEl

Dentro de alguns anos, após fazer uma

ligação de seu smartphone, o usuário

poderá dobrá-lo e guardá-lo no bolso.

Pelo menos é o que promete um gru-

po de pesquisadores do Human Me-

dia Lab, da Universidade Queen, do

Canadá, e da Universidade do Estado

do Arizona, nos Estados Unidos, que

criaram um protótipo de um aparelho

feito a partir de papel eletrônico, o e-

-paper, de material plástico. Batizado

de PaperPhone, o dispositivo possui

apenas alguns milímetros de espes-

sura e dispõe de um display em filme

flexível com 9,5 centímetros. O apa-

relho é capaz de fazer tudo o que um

celular convencional faz, além de tocar músicas e exibir e-books.

A novidade é que algumas funcionalidades serão acessadas do-

brando, entortando ou curvando seus cantos ou lados. Com uma

caneta, o usuário poderá escrever no aparelho. O protótipo foi

apresentado na conferência Computer Human Interaction, rea-

lizada em Vancouver, no Canadá, no início de maio.

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Visor feito de plásticoultrafino pode ser dobradopara acessar funções do aparelho

e mecânicos comprovaram que os compósitos podem ser empregados no lugar da madeira. Fibras de coco e bagaço têm potencial para uso em painéis de vedação e mobiliário. Cascas de amendoim e serragem podem ser utilizadas em forros, divisórias internas e em instalações rurais.

tijolosbioDEgrADávEis

Ao reunir materiais como amido de milho, vinagre, resíduos vegetais, água e glicerina, o professor Antônio Ávila, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), criou um tijolo biodegradável que será utilizado na construção de fossas sépticas no Quênia. Os materiais são misturados, aquecidos e colocados em fôrmas para secar ao sol. Como os tijolos são feitos com encaixes, a sua montagem é muito simples. Empregados nas fossas sépticas, esses blocos vão se decompor em dois anos e, junto com o resto do material, serão transformados em adubo. Pela técnica convencional, as fossas são feitas de cimento ou barro, com piso concretado. Quando não há tratamento e esgotamento dos resíduos, as cavidades costumam ser usadas por um ano, no máximo, e depois disso são fechadas, deixando o terreno no local inutilizado. O trabalho foi escolhido entre 2.500 projetos no mundo e premiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, com US$ 100 mil.

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do So lBrasil começa a usar painéis solares de forma mais abrangente

Dinorah Ereno e

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[ energia ]

em Tauá, no Ceará, a primeira usina solar brasileira de grande porte

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pESQUISA FApESp 184 n junho DE 2011 n 65

A energia solar ainda tem uma participação menor que 0,01% na matriz energética brasileira, mas as expectativas são de forte crescimento nos próximos anos. O setor está se estruturando no país e os pre-ços dos equipamentos em nível global começam a cair na esteira do aumento da produção mundial. Entre 2009 e 2010, a industrialização de sistemas

de energia solar ou fotovoltaicos cresceu 118%, atingindo um total produzido de 27,2 gigawatts (GW) de potência, segundo apurou a revista Photon International. Esse núme-ro representa a potência instalada de quase duas usinas de Itaipu. Mesmo com os níveis recentes de crescimento, que ultrapassa os 40% a cada ano desde 2004, a presença desse tipo de fonte energética não chega a 1% em todo o planeta. A expansão mundial, puxada em quase 50% pela produção da China no ano passado, traz muitas perguntas.

Um dos obstáculos para o Brasil e outros países aumen-tarem a participação nesse tipo de energia é o alto preço dos painéis solares e demais equipamentos. A falta de domínio da tecnologia e de fábricas também é apontada como res-ponsável pela dificuldade em se avançar na energia solar no país. O que existe de promissor é uma nova tecnologia para montagem de placas fotovoltaicas desenvolvida por pesquisadores do Núcleo de Tecnologia em Energia So-lar (NT-Solar) da Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul (PUC-RS), sob a coordenação do professor Adriano Moehlecke e da professora Izete Zanesco. A partir de um tratamento feito nas lâminas importadas de silício purificado, os pesquisadores conseguiram maior eficiência na conversão da radiação solar em eletricidade. “A tecnologia foi comprovada com a fabricação de mais de 12 mil células solares em uma planta piloto e a montagem de 200 módulos fotovoltaicos”, diz Moehlecke, coordenador do NT-Solar. Na minifábrica foram produzidas células com até 15,4% de eficiência energética, número que representa quanto de radiação solar é aproveitado pelo equipamento, enquanto a média mundial está em 14%. “Um dos diferenciais da nossa tecnologia é que usamos matéria-prima de baixo custo, o que reduz o preço final.” As células solares podem ser feitas de vários materiais, mas hoje 90% dos painéis produzidos no mundo são de silício.

Após a comprovação de que a tecnologia nacional é viável para uso em grande escala, os esforços estão concentrados no estabelecimento de uma indústria no Brasil. “Desde o final do ano passado, está sendo elaborado um plano de negócios com esse objetivo”, diz Moehlecke. O desenvolvi-mento da tecnologia e do plano de negócios teve apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), da Eletrosul e da Companhia Estadual de Distribuição de Energia Elé-trica, empresa de economia mista do Rio Grande do Sul.

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66 n junho DE 2011 n pESQUISA FApESp 184

“A expectativa é que nos próximos cin-co meses tenhamos alguma definição, o que inclui um acordo com investidores para a construção dessa indústria.”

O horizonte para novos produtos inovadores nesse setor contempla tam-bém as células solares sensibilizadas com corantes inorgânicos ou orgânicos extraídos de frutas, flores e vegetais, como mostram pesquisas desenvol-vidas na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O grupo da professora Neyde Murakami Iha, do Laboratório de Fotoquímica e Con-versão de Energia da USP, dedica-se ao desenvolvimento de sistemas de ar-mazenamento e conversão de energia solar que levam em sua composição extratos de açaí, jabuticaba e amora, frutos com pigmentos antioxidantes chamados antiocianinas. “Todo o con-ceito de montagem desses sistemas é diferente porque não se trata de um semicondutor que absorve luz como o silício, mas de um corante que evita a degradação dos semicondutores”, diz Neyde. A vantagem desse sistema é que o processamento é barato e não ne-cessita de salas especiais de fabricação. Mas a eficiência dessas células ainda

está em torno de 8%, bem abaixo dos atuais painéis, que atingem até 15%.

Essa linha de pesquisa ganhou im-pulso em 1988, quando o professor Michael Gräetzel, da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, criou uma célula que, em vez de uma única camada de dióxido de titânio, era for-mada por pequenas partículas do óxido metálico com cerca de 20 nanômetros de diâmetro, cobertas por uma camada de pigmento, o que aumentou a absorção da luz solar. Desde então, vários grupos têm se dedicado a transformar a inven-ção em um produto, como o Bell Labs, dos Estados Unidos, além de instituições europeias e japonesas. A tecnologia de-senvolvida na USP foi testada em células de demonstração, com financiamento de R$ 400 mil da Petrobras.

N a Unicamp, o grupo de pesquisa coordenado pela professora Ana Flávia Nogueira, do Instituto de

Química, também trabalha com células solares orgânicas ou plásticas em labo-ratório, utilizando polímeros e outros materiais condutores. Uma outra linha de pesquisa do grupo, já bastante avan-çada, são as células de óxido de titânio sensibilizadas com corantes inorgâ-nicos. “Para dar impulso e continuar essa linha de pesquisa, ex-integrantes do grupo criaram a empresa Tezca, ins-talada no Polo de Alta Tecnologia de Campinas”, diz Ana Flávia. A proposta

é produzir em alguns anos células sola-res flexíveis para aplicação em laptops, smartphones, além de sinalizadores ro-doviários e urbanos. O laboratório de-senvolve ainda um projeto em parceria com a empresa Rede Energia, geradora e distribuidora de energia elétrica, pa-ra desenvolvimento de células solares de óxido de titânio sensibilizadas com corantes químicos para aplicação em janelas e fachadas de prédios, que conta com a colaboração do Centro de Tecno-logia da Informação Renato Archer, de Campinas. A empresa investiu cerca de R$ 480 mil no projeto inicial.

Bateria isolada - Um dos principais problemas do universo fotovoltaico é que ainda não foi encontrada uma maneira eficiente e barata de conver-ter a energia fotovoltaica em energia química. “Seria o mesmo caminho da fotossíntese ao transformar os raios so-lares em biomassa, que é a forma na-tural de armazenar energia química, para depois resultar em etanol no caso da cana. Na energia solar fotovoltaica ainda não existe essa forma de arma-zenamento para uso posterior”, diz o físico da Unicamp Cylon Gonçalves da Silva, diretor-presidente da Ceitec, empresa de semicondutores ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e autor do livro De Sol a Sol, a energia do século XXI (editora Oficina de Tex-tos), focado nas energias renováveis. É justamente pela falta de meios para armazenagem que a energia solar deve ser utilizada ao longo do dia de forma contínua. O uso de baterias para acú-mulo de eletricidade só se justifica em áreas isoladas no campo, por exemplo, porque elas tornam o sistema muito mais caro.

Menos carentes de inovações e já presentes em vários países, como Ale-manha, Portugal e Espanha, as usinas ou fazendas solares estão chegando ao Brasil. São painéis instalados lado a lado, em áreas rurais ou no alto de edifícios, na cobertura de estaciona-mentos ou áreas livres em aeroportos que produzem energia para a rede de distribuição de eletricidade convencio-nal. Duas empresas brasileiras, a MPX e a Eletrosul, tomaram a dianteira e vão colocar na rede a energia captada por milhares de painéis solares. A MPX, do grupo do empresário Eike Batista, anun-

Painéis solares no teto do aeroporto de Munique, na alemanha

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ciou a inauguração no dia 3 de junho de um empreendimento no município de Tauá, a cerca de 350 quilômetros de Fortaleza, no Ceará, com potência ini-cial de um megawatt (MW). A usina conta com 4.680 painéis fotovoltaicos da empresa japonesa Kyocera. A MPX já possui autorização da Agência Nacio-nal de Energia Elétrica (Aneel) para ex-pandir a capacidade da usina até cinco MW. A energia gerada será conectada ao Sistema Interligado Nacional e poderá abastecer até 1.500 residências da região. No total estão sendo investidos cerca de R$ 10 milhões da empresa, além de US$ 700 mil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Em Florianópolis, no telhado do edi-fício sede da Eletrosul e nas cober-turas dos estacionamentos, em uma

área total de 8 mil metros quadrados, serão instalados painéis fotovoltaicos para geração de um megawatt de ener-gia, suficiente para abastecer o consu-mo de 570 residências da cidade. Uma agência de fomento do governo alemão, a GIZ, além de contribuir com a con-cepção do projeto, conseguiu do banco KfW financiamento de € 2,8 milhões, para viabilizar a implantação da usina, que tem apoio ainda da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Até junho deve sair o edital para a escolha da empresa que vai fornecer os equipa-mentos e fazer a instalação”, diz Jorge Alves, gerente do Departamento de Pes-quisa e Desenvolvimento da Eletrosul. A empresa quer ainda firmar parcerias para obtenção de rotas eficientes de pu-rificação e laminação de silício. Para isso pretende investir cerca de R$ 20 milhões. “Queremos mobilizar pesqui-sadores e capacitar laboratórios para chegar a rotas eficientes e de baixo custo para obtenção de silício purificado que possa ser reproduzido em escala indus-trial”, diz Alves.

A agenda brasileira da energia solar também prevê a possibilidade de insta-lação de painéis fotovoltaicos na cober-tura de estádios que estão sendo prepa-rados para a Copa de 2014. Empresas como a Cemig, em Minas Gerais, com o Mineirão, e a Light, no Rio de Janeiro, com o Maracanã, estudam a adoção de painéis na cobertura desses estádios, como acontece na Alemanha e na Suíça. O professor Ricardo Rüther, da UFSC,

especialista em energia fotovoltaica, propõe ainda a adoção de painéis so-lares em aeroportos. “Os aeroportos são grandes áreas horizontais, livres de sombreamento e que serviriam de vitri-ne para outros usos, funcionando como um objeto de marketing para a energia solar no país, como ocorre em vários aeroportos da Alemanha, nas cidades de Munique e Colônia”, diz Rüther, que tem um projeto de pesquisa de painéis solares destinados a aeroportos financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-gico (CNPq). Em 66 aeroportos brasi-leiros, com painéis solares instalados, seria possível ter uma potência total de 300 MW, suficiente para suprir todo o consumo de energia elétrica. Grande parte da eletricidade nesses ambientes é gasta ao longo do dia com sistemas de ar-condicionado.

Num país tão bem contemplado pela luz solar, a tecnologia fotovoltai-ca começa a ganhar interesse porque o aprendizado com o uso cresceu, os custos são decrescentes e a conjuntu-ra mundial mudou. Esses são alguns

resultados extraídos do workshop Ino-vação para o Estabelecimento do Setor de Energia Solar Fotovoltaica no Brasil, realizado pelo Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), realizado em março deste ano. Para o professor Gilberto Jannuzzi, coordenador do Nipe, a energia solar cresce no mundo porque a China, que não fabricava painéis fotovoltaicos até poucos anos atrás, agora é um grande produtor mundial e países como Alema-nha, Portugal, Espanha, que investiam muito na energia solar, abandonaram ou modificaram, com a crise de 2008, os subsídios dedicados a esse setor. “Esse cenário faz o Brasil entrar defi-nitivamente na rota dos fabricantes de equipamentos”, diz Jannuzzi. Outro fator, segundo ele, é que o preço da eletricida-de está subindo e os custos da energia fotovoltaica caindo. “Isso pode levar a uma paridade tarifária daqui a cinco ou 10 anos.” Segundo dados do professor Roberto Zilles, do Instituto de Eletrônica e Eletrotécnica (IEE) da USP, a tarifa da energia fotovoltaica é uma vez e meia a

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No interior dos painéis fotovoltaicos

a eletricidade gerada na célula é usada na casa e o excedente segue para a rede de distribuição

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68 n junho DE 2011 n pESQUISA FApESp 184

da eletricidade cobrada pela Eletropaulo, em São Paulo, e quase a mesma em Belo Horizonte. Esse cálculo é feito levando-se em conta o tempo de vida de 25 anos de um painel, mais os gastos com manu-tenção e a taxa de incidência solar do local (que muda de acordo com o mês e a região do país). O resultado é um valor a ser comparado com a energia cobrada pelas empresas distribuidoras.

No Brasil, o quilowatt (kW) insta-lado sai por cerca de R$ 8,5 mil. Para um consumo médio de uma casa com quatro pessoas são necessários 2,5 kW, elevando o valor para mais de R$ 20 mil. O aumento da escala de produção, de novos materiais e a necessidade de

Ambiente natural - O pesquisador Enio Bueno Pereira, do Instituto Na-cional de Pesquisas Espaciais (Inpe), co-ordenador do Atlas brasileiro de energia solar, fez simulações que demonstram como o seu uso contribui para mitigar o efeito estufa. Em uma delas ele tomou como base o quilômetro quadrado da Região Nordeste, onde o nível de radia-ção solar é muito grande, com poucos dias nublados. “Usando painéis foto-voltaicos com eficiência de apenas 10%, deixaríamos de emitir 98.500 toneladas de CO

2 por ano em comparação com

o uso do gás natural”, diz Pereira. Na comparação com o carvão, seriam 216 mil toneladas a menos na atmosfera.

Mesmo com vantagens ambien-tais e preço de equipamentos caindo, a energia fotovoltaica no Brasil para ficar mais atraente ao consumidor ainda precisa de uma regulamentação que torne viável a geração partilhada, quando uma residência ou estabeleci-mento industrial ou comercial gerar para consumo próprio a sua eletrici-dade via painéis solares e vender para a rede o excedente produzido. Assim, o dono do equipamento poderia gerar essa energia quando não está em casa, por exemplo, e receber por isso. Em paí-ses como Espanha, Portugal, Alemanha e Estados Unidos essa possibilidade já existe. No Brasil, uma regulamentação mais abrangente que permita a cone-xão de pequenos produtores na rede de

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Casa eficiente em Florianópolis:

experimento na UFSC

a energia que vem do Sol é uma radiação eletromagnética. É formada por reações termonucleares que acontecem no interior dessa estrela e se propagam para a superfície e daí para o espaço. as temperaturas chegam a 6 mil graus Kelvin na superfície do Sol. “Os modelos de evolução solar nos mostram que o Sol continuará produzindo essa radiação por pelo menos centenas de milhões de anos ou mais”, diz o professor Pierre Kaufmann, do Centro de radioastronomia e astrofísica da Universidade

Radiação quente Presbiteriana Mackenzie. Distante 150 milhões de quilômetros da Terra, a radiação percorre todo esse caminho até encontrar a atmosfera terrestre. “na atmosfera a radiação é atenuada e por isso a energia solar é mais eficiente em áreas desérticas, onde predomina um tempo sem nuvens e seco”, diz Kaufmann. ele afirma também que as oscilações naturais da atividade solar presentes em períodos de 11 a 14 anos não têm influência relevante na energia solar. “as variações na radiação que chega à Terra são menores que 0,1%.”

apenas no território brasileiro a radiação solar é responsável por um potencial teórico de 115 milhões de terawatt/hora de capacidade de geração de eletricidade por ano. “São cálculos preliminares, mas mostram o potencial astronômico, milhares de vezes superior à demanda energética nacional”, diz o pesquisador enio Bueno Pereira, do instituto nacional de Pesquisas espaciais (inpe). isso já descontando as áreas de preservação, habitadas, alagadas e que tenham topografia montanhosa.

geração de maiores níveis de eletrici-dade sem utilizar os combustíveis fós-seis abrem um largo caminho para a energia solar. Segundo um informe do Painel Intergovernamental sobre Mu-danças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, divulgado em maio, 80% da energia produzida no mundo em 2050 terá que ser renovável para o cumpri-mento das metas de diminuição da emissão de dióxido de carbono (CO

2)

– e a energia solar aparece como uma das mais propícias para esse fim.

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pESQUISA FApESp 184 n junho DE 2011 n 69

distribuição de eletricidade está sendo gestada pela Aneel.

Com o reembolso da energia solar será mais fácil, segundo o professor Rüther, o dono de uma residência ou estabelecimento comercial colocar a mão no bolso para comprar e instalar um equipamento no telhado da casa ou da empresa. É preciso que ele tenha segurança do recebimento pelo exce-dente. No mundo, 95% dos sistemas fotovoltaicos estão conectados à rede elétrica de uma cidade ou região. Em um estudo gerado pelo Centro de Ges-tão e Estudos Estratégicos (CGEE), li-gado ao Ministério da Ciência e Tecno-logia, e apresentado em 2010, chamado de “Energia solar fotovoltaica no Brasil: subsídios para tomada de decisão”, fo-ram apontadas propostas para que a energia solar ganhe novos adeptos no país. Ao ouvir centenas de colaborado-res, entre pesquisadores, executivos de instituições e de empresas, os autores, Moehlecke, da PUC-RS, Paulo Roberto Mei, da Unicamp, Rüther, da UFSC, e Zilles, da USP, indicaram também a elaboração e financiamento de pro-gramas de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I) que possibilitem ganhos de competitividade para a in-dústria brasileira, além de incentivar a geração fotovoltaica distribuída co-nectada à rede elétrica.

Mesmo tendo as maiores reservas de quartzo de boa qualidade, essencial

para a obtenção do silício ultrapuro, o Brasil por enquanto só produz em esca-la industrial o silício metalúrgico, com 98% a 99% de pureza e utilizado para fabricação de aços, ligas de alumínio e silicones. “O Brasil tem que entrar na fabricação do silício purificado”, diz Mei. A principal razão para isso é o seu altíssimo valor agregado. Enquanto o silício metalúrgico é vendido entre US$ 1 e US$ 2 o quilo, o purificado atinge mais de US$ 60 o quilo na for-ma cristalina, chegando a US$ 250 o quilo na forma de lâminas usadas na fabricação dos painéis.

N a década de 1980, a empresa He-liodinâmica, de Vargem Grande Paulista, no interior paulista, fa-

bricava células solares para exporta-ção. Em 1986 respondia por quase 6% da produção mundial. Não aguentou a concorrência internacional, com preços mais competitivos, e fechou as portas. Em julho do ano passado, uma equipe coordenada pelo físico Bruno Topel, fundador e sócio majoritário da Heliodinâmica, estabeleceu uma parceria com a empresa Tecnometal Solar, de Campinas, um dos braços do grupo mineiro Tecnometal, presente em vários segmentos da indústria de equipamentos, para desenvolvimento e implantação de um projeto fotovoltai-co brasileiro. Na primeira etapa serão produzidas placas com células de silício importadas. “Iniciamos um projeto que

levará à verticalização completa da em-presa no prazo de um ano”, diz Topel.

Possíveis boas notícias para o futu-ro da energia solar no país aparecem também no Núcleo de Tecnologia So-lar da PUC-RS. Lá, 20 pesquisadores dedicam-se ao desenvolvimento de oito projetos de pesquisa e desenvolvimen-to. Um desses projetos tem a DuPont como parceira. “Fechamos um acor-do internacional com a empresa para desenvolvimento de produtos para a área fotovoltaica”, diz Moehlecke. A Du Pont anunciou em janeiro deste ano que fará investimentos no Brasil para um projeto piloto de pesquisa e desen-volvimento para produção de filmes finos e outros materiais que compõem os painéis solares.

A expansão global da energia solar chega não somente aos telhados, áreas descampadas ou desérticas, mas tam-bém em locais alagados como lagos e represas. Um exemplo desse avanço sobre as águas ocorre no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, como mostrou o jornal The New York Times de 19 de abril. Painéis solares flutuantes e ancorados estão instalados em dois lagos nas cidades de Napa e Sonora. Cercados por vinhedos, esses lagos com menos de dois hectares cada um pos-suem 144 painéis em Sonora e 994 em Napa. A SPG Solar, da Califórnia, em-presa que instalou as duas “fazendas” solares aquáticas, e, segundo o jornal, a australiana Sunengy e a israelense Solaris Synergy estão apostando num mercado mundial de painéis solares sobre reservatórios de água, lagos de hidrelétricas e de mineração. A novi-dade já chamou a atenção de possíveis clientes na Índia, Austrália e no Oriente Médio. No Brasil ainda não há projeto para lagos, mas o professor Rüther, da UFSC, já fez estudos sobre o aprovei-tamento da represa de Itaipu. “Seria possível gerar cerca de 183 terawatts- -hora por ano (TWh), o que representa 40% da energia consumida no Brasil, se o lago de 1.350 quilômetros quadrados fosse coberto com painéis solares”, diz Rüther. “Em Itaipu, por exemplo, se o lago fosse coberto, haveria a possibilida-de de economizar a energia da hidrelé-trica de dia, ou seria possível substituir com a energia excedente uma parte da operação das usinas termelétricas que funcionam com gás natural.” n

Células orgânicas devem substituir o silício no futuro

Estudo mostra a

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programas de

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Frutas refeitas

Novas formulações atendem aos mais refinados paladares

Carlos Fioravanti, de Fortaleza

Aceita um abacaxi light, com 40% menos calorias que o abacaxi normal? Um pe-daço de manga, já descascada e ainda com cheiro de manga, protegida por uma película comestível feita de pol-pa de manga? Talvez um chip ainda mais amarelo que os de batata, feito

de polpa de laranja ou de mamão? Para beber, prefere um suco de caju probiótico – similar a um iogurte probiótico, mas à base de fruta – ou uma bebida fermentada de caju, cuja cor lembra o vinho branco de uva e o sabor de uma sidra? Muitas novidades à base de frutas brasileiras es-tão amadurecendo nos laboratórios da Embrapa Agroindústria Tropical e da Universidade Fede-ral do Ceará (UFC) em Fortaleza. É o resultado do trabalho de equipes que atuam em várias frentes ao mesmo tempo, da microbiologia aos testes com consumidores.

Para mostrar um dos novos produtos em fase final de desenvolvimento na Embrapa, o químico Edy Sousa de Brito coloca sobre a mesa duas jarras de suco de bacuri, fruta do Nordeste de casca amarela e polpa branca. “Ex-perimente”, diz Edy, alagoano que vive há 10 anos em Fortaleza, colocando em um copo um pouco de um dos sucos. É saboroso, mas bas-tante espesso – deve ficar ótimo em sorvetes ou cremes. “Agora este”, e oferece a outra versão: igualmente saborosa, mas fluida, líquida, bem mais atraente que a primeira. “Um tratamento enzimático”, ele explica, “é que dá essa fluidez e mantém o sabor maravilhoso do bacuri”.

[ AlimeNtos ]

Huma frui-

ta se dá nesta

terra do Brasil muito

saborosa, e mais prezada de

quantas ha. Cria-se numa planta humilde junto

do chão, a qual tem umas pencas como cardo, a fruita

della nasce como alcachofras e parecem naturalmente

pinhas, e são do mesmo tamanho, chamão-lhes

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PESQUISA FAPESP 184 n juNho de 2011 n 71

O químico industrial Gustavo Adolfo Saa-vedra Pinto, também da Embrapa, trabalhou durante seis anos até encontrar a combinação mais adequada de enzimas que removessem ape-nas a viscosidade do suco de bacuri. Não bastou que apenas ele e sua equipe achassem ótimo o que tinham feito. Por duas vezes, em testes sen-soriais realizados em uma sala ampla da própria Embrapa, dotada de seis cabines individuais, 100 consumidores que nunca tinham experimentado suco de bacuri desaprovaram as formulações iniciais – e Pinto teve de rever a escolha de en-zimas. Os provadores aprovaram só no terceiro teste, com outra combinação de enzimas como as pectinases, que quebram as pectinas, carboi-dratos que deixam os líquidos espessos.

Não foi o bastante. Em dezembro de 2010, Gustavo e duas pesquisadoras de seu grupo, An-dreia Aquino e Janice Lima, foram a Belém, no Pará, para testar a formulação que esperavam que fosse a final com outros 100 provadores, dessa vez consumidores habituais de suco de bacuri. “Deram notas mais baixas que os provadores de Fortaleza, mas aprovaram”, conta a engenheira de alimentos Deborah dos Santos Garruti, que cuida das análises sensoriais – de cor, aroma, sa-bor ou textura dos novos sucos ou frutas – com um mínimo de 50 provadores por vez.

Em outro laboratório, Henriette Azeredo e Delane Rodrigues preparam filmes de polpa de frutas – o de acerola forma discos vermelhos sobre uma lâmina transparente, de polpa de ace-rola e alginato, um extrato de algas usado como

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72 n juNho de 2011 n PESQUISA FAPESP 184

com sede na Universidade Federal de Sergipe, estão revalorizando as frutas, que fascinam Edy pela quantidade ge-nerosa de vitaminas e outros nutrien-tes importantes e por serem fontes de prazer para todos os sentidos – são bo-nitas, coloridas, cheirosas, saborosas e agradáveis ao toque.

O fascínio não é de hoje. O explo-rador português Pero de Magalhães Gandavo sentiu-se desarvorado dian-te dos gostos das frutas que conheceu enquanto viveu no Brasil. Em seu Tra-tado da terra do Brasil, publicado em 1576, sem poder fotografar, ele teve de descrever coisas tão estranhas quanto uma banana, que “parecem-se na fei-ção com pepinos, (...) nascem numas árvores mui tenras e não são muito altas, (...) é uma fruta mui saborosa e das boas que há nesta terra, tem uma pele como de figo, a qual lhes lançam fora quando as querem comer” e, al-go que pode ter escapado aos nos-sos olhos de nativos, “têm dentro de si uma coisa estranha, a qual é que quando as cortam pelo meio com uma faca ou por qualquer parte que seja, acha-se nelas um sinal à maneira de Crucifixo” (os resquícios das semen-tes da banana lembram remotamente

uma cruz). Séculos depois, em 1968, a rainha Elizabeth II visitou o Brasil e quase perdeu a pose ao deliciar-se com um sorvete de bacuri.

Diante de tantos sabores possíveis, Edy acha desnecessário estimular o con-sumo de frutas com base apenas no va-lor nutricional. Mas foi a abundância de substâncias antioxidantes que mudou o destino do açaí, que parecia condenado a jamais vencer as fronteiras amazôni-cas. “Há 30 anos ninguém apostava no açaí como fruta que pudesse con-quistar novos mercados”, diz o enge-nheiro agrônomo José Edmar Urano de Carvalho, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, de Belém. “Muitos consumidores não estão preocupados com o sabor, mas em como a fruta pode contribuir para a melhoria da saúde.”

Embaladas pela busca de saúde ou novos sabores ou tentando atender aos hábitos modernos, como a fal-

ta de tempo e paciência para descascar uma laranja, essas inovações alimentam um mercado consumidor em expansão. Em 2006, a Coca-Cola comprou a fabri-cante de sucos Del Valle pelo equiva-lente a US$ 470 milhões, indicando seu interesse em obter rapidamente uma posição forte no mercado nacional de sucos prontos, que movimenta cerca de R$ 250 milhões por ano. Muita fruta ainda pode virar suco. Todo ano, no mundo, os plantadores colhem quase 800 milhões de toneladas de frutas, principalmente bananas (103 milhões de toneladas), melancia (93 milhões) e uva (65 milhões). Depois da China e da Índia, o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de frutas, colhendo anualmente cerca de 40 milhões de to-neladas, das quais 850 mil seguem para outros países, principalmente da Euro-pa, gerando uma receita anual de cerca de US$ 800 milhões para o país. Ainda há uma alta concentração, tanto geográ-

espessante. Mangas em pedaços – ou minimamente processadas – feitas por Ebenezer de Oliveira Silva ganharam uma cobertura de um filme de purê de manga e alginato – e os provadores gos-taram do conjunto. “O filme substitui a casca, protege e mantém o aroma da manga”, diz Henriette. “Algumas fru-tas, como a manga, dão filmes ótimos, mas outras, como a acerola, precisam de mais pectina para fazer um filme mais resistente.” Por meio de uma nova má-quina que deve começar a funcionar em breve em um laboratório mais espaçoso, ela pretende fazer fitas de frutas, com um a dois milímetros de espessura, que possam servir de lanches. É o caminho para, conforme seus planos, produzir barrinhas de frutas – se derem certo, as de abacaxi, por exemplo, dispensarão os consumidores de descascar, livrar-se das cascas e deixar a pia em ordem antes de se pôr a comer.

W illiam Sallum, presidente da Asso-ciação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Néctares e Sucos

(Abrasuco), ao conhecer as inovações em curso em Fortaleza, considerou-as “bastante específicas e progressistas”. São também bem-vindas, em vista da concorrência entre as empresas: “Ma-neiras diferentes de agregar valor são muito importantes para os fabricantes de sucos”. Desde já, essas pesquisas, li-gadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Frutos Tropicais,

Tam-

bém ha

uma fruita que

lhe chamão Bananas,

e pela lingua dos indios

Pacovas: ha na terra muita abun-

dancia dellas: parecem-se na feição

com pepinos, nascem numas arvores

mui tenras e não são muito altas, nem

têm ramos senão folhas mui com-

pridas e largas. Estas bananas

crião-se em cachos, algum

se acha que tem de cen-

to e cincoenta pera

cima...

Texto extraído do

livro Tratado da

Terra do Brasil, de

Pero de Magalhães

Gandavo, 1576

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PESQUISA FAPESP 184 n juNho de 2011 n 73

fica – já que o estado de São Paulo res-ponde por 45% da produção nacional de frutas, principalmente laranja para exportação na forma de suco – quanto de itens: poucas frutas são produzidas comercialmente em larga escala. Laranja (18 milhões de toneladas), banana (6,5 milhões), maçã, mamão, coco-da-baía, manga, melão, uva, caju, cacau, abacaxi, limão e maracujá respondem por três quartos da receita gerada no setor.

O s negócios e o prazer dos consumi-dores devem crescer à medida que as frutas mais conhecidas ganhem

novos usos e as menos conhecidas con-quistem mais espaço. Em uma ensolara-da tarde de um domingo de março, pelo menos 30 pessoas se alinhavam diante de uma sorveteria de um shopping que reavivou parte do antigo porto de Belém, em frente a uma baía com vista para o rio Guamá. O que as movia – ou o que as mantinha na fila – era o desejo de to-mar sorvete de frutas regionais de sabores únicos como o uxi. “O uxi já foi visto como fruta de pobre, mas rico sempre comeu, geralmente escondido porque ti-nha medo de perder a elegância: tem de comer roendo a polpa aderida ao caroço”, conta Carvalho. Ele aposta no consumo crescente de uxi, que, além do sabor mar-cante, é rico em fitoesteróis, compostos que, acredita-se, ajudam a baixar o coles-terol. Segundo ele, os pesquisadores da Embrapa demonstraram que o uxizeiro não demora 30 anos para frutiticar, como se dizia, mas apenas sete, quando pro-pagado por semente, ou menos ainda, quatro, quando por enxertia.

Outra fruta em que Carvalho apos-ta é o murici, que “cheira a queijo do Alentejo”, como o português Gabriel Soares de Sousa anotou no Tratado descritivo do Brasil, de 1587. Segundo Carvalho, o gosto do murici lembra o de uma sopa. Mas aí pode estar um mérito, não um defeito. “Esse aroma salgado tem despertado o interesse de grandes chefs, que estão usando o murici em molhos, recheios de carnes e sopas”, diz Carvalho. Os chefs estão mesmo olhando para essas coisas exó-ticas. O escocês Tom Kitchin esteve em São Paulo em maio e não deixou de ir ao Mercado Central. A um repórter do jornal O Estado de S. Paulo, ele reconhe-ceu: “Nunca provei frutas tão doces e suculentas como as daqui”.

Bacuri, para sucos fluidos, se tratados com enzimas

Em meio aos mais diferentes climas e solo, 827 tipos diferentes de frutas na-tivas ou exóticas crescem no Brasil. Ti-picamente brasileiras devem ser cerca de 350. Só na Região Norte crescem mais de 100 espécies, muitas pouco conhe-cidas da maioria dos brasileiros, como bacabi, biribá, cutite, mangaba e sapota--do-solimões, que o jornalista e repórter fotográfico Silvestre Silva apresenta no livro recém-lançado Frutas da Amazô-nia brasileira (Editora Metalivros, 280 páginas, R$ 180). Como os franceses, que dizem que poderiam comer um tipo diferente de queijo por dia, quem vive no Brasil pode saborear uma fruta nova por dia, “sem contar as variedades de cada espécie”, observa Edy. Segundo ele, os especialistas da Embrapa estão avaliando em campo 39 variedades só de acerola, “algumas quase pretas de tanta antocianina”, o pigmento que faz a cor da casca de frutas variar do vermelho-claro ao roxo.

Vários problemas impedem que no-vos sabores cheguem a mais brasileiros. “As árvores do bacuri e do piquiá, entre

outras que produzem frutos comestíveis, são de uso múltiplo, estão sendo der-rubadas há cinco séculos e escassearam muito”, diz Carvalho. “Repor os estoques anteriores é um processo lento.” As fru-tas regionais, ele ressalta, precisam ser melhoradas geneticamente para terem mais polpa e serem cultivadas como o cupuaçu, que há 10 anos crescia apenas na floresta. Hoje muitas ainda depen-dem do extrativismo – e, por essa ra-zão, são caras, comparadas com frutas já tratadas agronomicamente. “A safra do bacuri, com 10 a 12% de polpa, coincide com a da maçã, que tem 95% de parte comestível e um preço menor.”

S e os novos sucos ou frutas em peda-ços passam pelas provas iniciais, os pesquisadores da Embrapa se põem

a trabalhar na ampliação da escala de produção, em conjunto com os especia-listas do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal do Ceará. Em um dos laboratórios de quí-mica, a partir de um problema trazido pela equipe de Sueli Rodrigues, do De-partamento de Engenharia de Alimen-tos – as fibras do suco de melão entu-piam as pipetas –, o engenheiro químico paulista Fabiano Fernandes verificou que um equipamento de ultrassom de alta potência e baixa frequência pode-ria melhorar a qualidade de sucos e das próprias frutas.

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A vibração causada pela ponteira do ultrassom mergulhada numa solução com a fruta em pedaços

origina uma turbulência que rompe as fibras, quebra as células e cria micro-canais por onde saem água e pequenas moléculas solúveis como os açúcares. O resultado é um suco com 40% me-nos açúcar e mais homogêneo do que o feito com a mesma fruta que não passou por esse tratamento. Sueli dei-xa sobre a bancada do laboratório um vidro com suco de melão que passou pelo ultrassom e outro que não passou: o primeiro mantém a uniformidade, enquanto o outro decanta em poucos minutos. Usando outro tipo de apare-lho de ultrassom, as duas equipes con-seguiram também reduzir em até 25% o tempo de secagem de abacaxi e de melão amarelo em pedaços. Podem vir daí as frutas diet, que mantêm a doçura porque depois são adoçadas com stevia, adoçante natural não calórico. “Dois minutos em um banho de stevia bastam para compensar a perda de açúcar”, diz a pesquisadora.

A equipe de Sueli fez também, por tratamento enzimático, sucos de abaca-xi, melão, jambo, sapoti e seriguela pré- -bióticos, com açúcares sem poder calóri-

co chamados oligossacarídeos. Esses açú-cares nutrem as bactérias que vivem no intestino e, por sua vez, produzem ácidos graxos, vitaminas e nutrientes benéficos para o organismo humano. Outro tipo de suco, os pró-bióticos, contém as próprias bactérias – os lactobacilos, como em lei-tes fermentados. “É uma alternativa para quem não quer ou não pode consumir leite”, argumenta Fernandes. A única di-ferença no gosto talvez seja um pequeno – e agradável – acréscimo de acidez em alguns deles. “Com a fermentação”, diz Thatyane Vidal Fonteles, uma das pes-

quisadores do grupo, “o pH do suco de melão cai de 6 para 4, realçando o sabor e dificultando o crescimento de bactérias que poderiam alterar o sabor do suco”.

Outras duas pesquisadoras, Niedla Nascimento Alves e Francisca Diva de Almeida, desenvolvem o suco em pó de abacaxi, laranja, caju e melão – com lactobacilos que permanecem vivos mesmo depois de o suco líquido pas-sar por um processo de desidratação a 130 graus Celsius, similar ao usado para fazer leite em pó. “Os microrganismos que sobrevivem à secagem agora pre-cisam sobreviver ao armazenamento e depois à reidratação”, diz Niedla. “Nossa intenção é fazer um suco instantâneo, mas ele ainda não se dissolve bem.”

S usana Saad, professora da Facul-dade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP),

esteve em fevereiro em Fortaleza, con-siderou os trabalhos na Embrapa e na UFC “extremamente interessantes” e ficou impressionada com a integração entre pesquisa básica e aplicada. “São vários profissionais conversando, cada um com seu enfoque”, comenta Susana, que está vendo como colaborar com os grupos de Fortaleza. Ela é uma das três organizadoras do livro Probióticos e prebióticos em alimentos – Fundamentos e aplicações tecnológicas (Livraria Va-rela, 672 páginas, R$ 143), que mostra como tornar sorvetes, leites e queijos mais nutritivos. Cada vez mais atraen-tes por causa dos benefícios à saúde, os alimentos pré e pró-bióticos devem movimentar negócios anuais da ordem de US$ 160 bilhões no mundo todo.

“Estamos produzindo, organizando e compartilhando conhecimento”, diz Edy. Ainda este ano, ele e sua equipe pretendem liberar uma base de dados, para acesso via internet, sobre com-postos voláteis que formam o aroma e o sabor das frutas. Inicialmente esta-rão nessa base cerca de 200 compostos de cinco frutas: caju, abacaxi, acerola, manga e maracujá. “A identidade e a aceitação das frutas dependem mui-to do aroma, já que o paladar percebe apenas os gostos básicos como salgado, doce, ácido e amargo”, diz Deborah. O cheiro do maracujá resulta da soma de cerca de 120 compostos, o caju libera cerca de 80. Na banana, aparentemente inodora, encontraram mais de 30. n

Estamos

produzindo,

organizando

e compartilhando

conhecimento,

diz Edy Brito

‘Murici, caindo no gosto dos chefs

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Há cegueiras que poderiam ser evitadas se testes diagnósticos baratos e infor-mativos fossem disponibilizados em regiões menos abastadas. É o caso da catarata. Uma nuvem branca que se es-palha pelo olho impede a passagem da luz e compromete lentamente a visão.

Mesmo com os avanços nas técnicas cirúrgicas, a doença continua sendo a principal causa de cegueira no mundo. Uma tecnologia desenvol-vida no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, com a participação fundamental de brasileiros, poderá ajudar na fácil detecção dessa doença relacionada ao pro-cesso de envelhecimento que é responsável pela cegueira de18 milhões de pessoas atualmente em todo o planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A novidade é um dispositivo para ser acoplado a telefones celulares dotados de um sistema para detectar o problema ocular. O trabalho recebeu em maio dois importantes prêmios, o MIT Ideas, uma competição com júri especializado voltada para projetos sociais que envolvam comunidades carentes, e o MIT Global Challenge Public Choice Award, em que projetos recebem votos de fora da comunidade acadêmica. O projeto será apresentado em agosto na conferên-cia de computação ACM Siggraph. O dispositivo é compacto e barato, e se baseia no que a própria pessoa enxerga. “Ele poderá ser usado na triagem de pacientes em locais onde há acesso restrito à oftalmologia”, disse Manuel Oliveira, professor

Catarata mapeada

Tecnologia em celular permite detectar problema oftalmológico

Cristina Caldas, de Boston

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mancha branca da catarata, o ponto so-me rapidamente. Isso acontece porque a catarata faz com que o raio de luz altere seu percurso, tanto bloquean do quanto espalhando a luz.

Na segunda etapa, um software in-terativo emite um bip para cada ponto testado nas lentes naturais do olho do paciente. Caso o raio desapareça, ou se torne escuro, um botão do celular deve ser apertado, marcando a região como afetada pela catarata. Esse proces-so é repetido várias vezes para avaliar a consistência das respostas, gerando ao final um mapa onde estão marcados os pontos em que a pessoa percebeu alguma alteração de luminosidade, mostrando a localização e o tamanho da catarata. Agora que o software sabe a localização dos pontos de catarata, a etapa seguinte é escolher um deles e compará-lo a uma região onde a lente do olho é limpa, sem a presença de de-formações. Usando o mesmo aparato, o paciente compara os dois caminhos luminosos e, via botões do celular, faz com que um dos pontos se torne igual ao outro, gerando um mapa de atenua-ção. Com isso é possível dizer o quanto a mancha está bloquean do a luz, o que equivale à densidade da catarata.

O projeto do Catra começou quan-do Oliveira e seu aluno de doutorado Vitor Pamplona chegaram ao Media Lab em 2009 com a vontade de com-binar seus estudos em modelos mate-

máticos voltados para a fisiologia do olho humano com o conhecimento de Raskar em tecnologias de câmeras. Os testes iniciais usaram uma rede de mi-crolentes dispostas em um pedaço de papel, com pontos coloridos debaixo das lentes para entender onde a luz vin-da de cada lente ia parar. Esses foram os primeiros passos do que viria a ser o Netra (Near-Eye Tool for Refracti-ve Assessment), um dispositivo para prescrição de óculos similar ao Catra, que detecta miopia, hipermetropia e astigmatismo, usando um dispositivo acoplado ao celular. Pamplona parti-cipou dos dois trabalhos, no segundo com a colaboração de Erick Passos, da Universidade Federal Fluminense. “A invenção funciona, mas o uso clínico ainda é questionado pelos médicos, porque não fizemos a validação clí-nica mais extensa, confrontando com informações médicas detalhadas dos usuários”, diz Pamplona.

“O trabalho tem o seu mérito, é inte-ressante, mas a aplicação clínica é preco-ce”, diz o oftalmologista Rubens Belfort Filho, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Belfort gostaria de ver pesquisadores da área médica partici-pando de artigos científicos publicados pelo grupo e se mostra preocupado com o fato de o teste ser subjetivo. “Não existe ainda uma maneira científica e objetiva de avaliar o progresso da catarata. Isso é ruim, pois se vou fazer uma pesquisa clínica quero saber se uma droga é boa para parar a evolução da catarata ou

lente direciona luz para o olho

do Instituto de Informática da Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos brasileiros en-volvidos no trabalho e que ficou entre 2009 e 2010 vinculado ao MIT como professor associado visitante. Unindo conhecimentos em computação gráfi-ca, ótica e técnicas de interatividade, assim como um bom conhecimento de matemática, o sistema, chamado de Catra, permite detectar a presen-ça, localização e gravidade da catara-ta, gerando mapas que os aparelhos disponíveis hoje nos consultórios não produzem. “Acreditamos que o Catra dará início a uma revolução em dispo-sitivos acessíveis e de alta precisão, nos quais os pacientes têm o direito de ver, arquivar e entender os dados brutos de sua própria saúde, monitorando e testando sua visão em qualquer lu-gar”, disse Ramesh Raskar, idealizador do projeto e líder do grupo Camera Culture, no Media Lab do MIT, onde o trabalho foi realizado.

Ponto luminoso - “A base da tecnologia é usar a tela do celular como fonte de luz e um software interativo, desenvol-vido pelos pesquisadores, que varre diferentes pontos do olho em busca de alterações, bloqueios ou dispersões de luz”, diz Oliveira. A cada momento a luz acende em um lugar distinto da tela. Para direcionar os raios de luz projetados do celular, eles criaram um dispositivo plástico que tem um pequeno orifício e uma lente. Quando o ponto de luz acende na tela do celular, a luminosidade passa pelo orifício e vira um raio, um pequeno filete. A lente inserida dentro do dispositivo garante que os raios atinjam a córnea e o cristalino, que são as lentes naturais do olho, convergin-do em seguida para um ponto único na retina do usuário. Cada vez que o ponto luminoso se movimenta na tela do celular, o raio de luz entra por um lugar diferente da córnea.

O usuário olha para a tela do celular por meio do dispositivo e responde a diferentes comandos apertando as te-clas do próprio aparelho. Quem não tem catarata vai enxergar, no primeiro teste, caracterizado por ser uma var-redura automática do olho, um ponto verde que não muda de brilho e nem pisca. Se a pessoa tem a doença, no mo-mento em que o raio de luz passar pela

A tela do celular

é usada como

fonte de luz que

varre diferentes

pontos do olho

em busca

de alterações

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os laboratórios do miT media lab são como ateliês de arquitetura onde engenheiros, artistas, cientistas e designers trabalham em áreas tão distintas como neuroengenharia, carros do futuro e composição musical. Usando muita criatividade, protótipos são criados e testados em espaços abertos, em bancadas onde o espírito colaborativo e a “mão na massa” do miT podem ser observados. “desmontar e remontar é algo marcante no media lab”, diz manuel oliveira, professor do instituto de informática da UfRGs que foi professor visitante entre 2009 e 2010 no laboratório. Vidros separam os pesquisadores dos curiosos que passam pelo local, transformado em um dos pontos turísticos da região de boston. de lá saíram empresas como a e-ink, responsável pela primeira geração de telas de e-books (Kindle), Harmonix, que comercializa os jogos Rock band e Guitar Hero, além da organização sem fins lucrativos olPC (sigla para “um laptop para cada criança”), cujo cofundador foi Nicholas Negroponte, professor do miT. foi ele quem, em 1985, fundou o media lab junto com o então reitor, Jerome Wiesner, defendendo o uso de métodos da arquitetura para desenvolver novas tecnologias e novas mídias. ao clicar em telas interativas

Arquitetura globalReunião multidisciplinar de ideias, criação e inovação

No media lab os protótipos são criados e testados em espaços abertos

espalhadas pelo prédio do media lab é possível conhecer os 30 grupos de pesquisa que conduzem mais de 400 projetos. são 28 professores e pesquisadores, 139 alunos de pós-graduação, além de professores visitantes. a principal fonte de financiamento vem de um consórcio com empresas que pagam “para experimentar projetos malucos ou arriscados demais para elas mesmas”, diz leo burd, pesquisador brasileiro do media lab. oliveira destaca que as pessoas tendem a romantizar demais o laboratório. “Nem tudo que é feito ali é espetacular, mas o espaço consegue atrair pessoas muito competentes, interessadas em construir um ambiente de experimentação e muito trabalho.”

em abril deste ano, o japonês Joi ito, radicado nos estados Unidos, assumiu o cargo de novo diretor do media lab. ito, que nunca trabalhou antes na academia, ajudou a estabelecer em 1994 o primeiro serviço de internet no Japão e é presidente do conselho do Creative Commons, entidade que visa promover o compartilhamento de informações digitais. Como investidor em empresas de tecnologia, ito colaborou na fundação dos sites do Twitter, flickr e last.fm.

não. Só que esse método também não adianta porque é baseado naquilo que o paciente acha que está vendo”, diz.

Shrikant Bharadwaj, diretor asso-ciado de optometria do L V Prasad Eye Institute (LVPEI), rede de pesquisa e tratamento da saúde ocular localizado na Índia e um dos centros da OMS pa-ra prevenção da cegueira, diz que um dispositivo como o Catra teria um im-pacto enorme no seu país. “Atualmente a dimensão da catarata é feita usando uma lanterna, que não detecta todos os tipos da doença, apenas os mais avança-dos. O Catra será muito mais quantita-tivo”, explica. Estruturado com centros de excelência e postos de atendimento, o LVPEI atende à população do meio rural nos chamados centros primários de visão que cobrem em média uma população de 20 mil pessoas moradoras de vilas. As identificadas com a doen-ça podem ser encaminhadas para um centro de tratamento mais complexo se necessário. Para Bharadwaj, um dispo-sitivo como o Catra poderia ser usado por profissionais da saúde, batendo de porta em porta para medir catarata na população. A outra opção seria utilizar o slit lamp, o equipamento comum em consultórios médicos para exame of-talmológico (aquele no qual apoiamos o queixo enquanto o médico avalia os olhos). O problema é que tanto a versão estática quanto a portátil do aparelho são muito caras.

Bharadwaj conta que a questão da interatividade do paciente com o celu-lar é um desafio que eles ainda enfren-tam principalmente com populações do meio rural que utilizam o Netra pa-ra prescrição de graus de óculos. “Os resultados tendem a ter mais ruídos e o tempo de treinamento necessário para que os pacientes moradores das vilas consigam fazer o teste usando o celular ainda não é ideal”, diz. Foi por isso que Bharadwaj viajou ao MIT em maio para discutir com o grupo liderado por Raskar maneiras de dei-xar o teste menos subjetivo. A equipe do LVPEI não sabe ainda se a mesma dificuldade observada com a utiliza-ção do Netra no campo vai acontecer também com o Catra. Eles acabaram de receber o protótipo deste último. “Estamos agora nos organizando para testar o Catra com indivíduos do meio rural”, diz Bharadwaj. n

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[ LITERATuRA ] humanidades

A ficção científica brasileira e a relação do país com a ciência e a tecnologia

Carlos Haag

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O FUTURO DO PRESENTE NO PRETÉRITO

A Presidência da República dos Estados Unidos do Brasil estava confiada a uma mulher. O país estava mais forte, mais belo e rico. Para aqui convergiam povos de todos os recantos da Terra. A Amazônia está urbanizada, o analfabetismo foi abolido e, na roça, os trabalhadores cantam trechos da úl-tima ópera a que assistiram ou recitam, de cor,

os poemas mais lindos.” Aviso: isso não é um texto insti-tucional desvairado do governo atual. A autora, Adalzira Bittencourt (1904-1976), descreveu essa “previsão” em 1929 em Sua Excia. a presidente da República. Mas esse “paraíso” de ficção científica tem um porém: tudo isso foi conseguido graças à ascensão na política das mulheres, que implementam um rígido programa de eugenia e higiene social. Por uma ironia do destino, a presidente, dra. Ma-riangela de Albuquerque, apaixona-se pelo pintor Jorge, que só conhece por cartas amorosas. Cansada de esperar o amante, a primeira mandatária ordena que seja trazido, algemado, em sua presença. “Era lindo de rosto, mas tinha não mais do que 90 cm de altura e tinha nas costas uma corcunda enorme.” A presidente eugenista ordena, im-placável, a eutanásia profilática no amado. “Era mulher”, encerra-se, em tom vitorioso, a novela.

O tom “ideológico” da novela percorreu, e ainda se man-tém, a produção de ficção científica brasileira, infelizmente pouco estudada e vista, em geral, como “produto de segunda ordem” e indigno do cânone literário. “Desde o século XIX

‘o gênero provou ser um veículo ideal para registrar tensões na definição da identidade nacional e do processo de modernização. Essas tensões são exacer-badas na América Latina e, por isso, a produção da ficção em países como Bra-sil, Argentina e México, grandes repre-sentantes desse gênero no continente, é muito mais politizada do que a escrita nos países do Norte. No Brasil, o gênero ajudou a refletir uma agenda política mais concreta e os escritores, ontem e hoje, estão mais intimamente envolvi-dos com os rumos futuros de seu país e usaram o gênero nascente não apenas para circular suas idéias na arena públi-ca, mas também para mostrar aos seus compatriotas suas opiniões sobre a rea-lidade presente e suas visões sobre um tempo futuro, melhor e mais moderno”, explica a historiadora Rachel Haywood Ferreira, da Universidade do Estado de Iowa, autora de The emergence of La-tin American science fiction, que acaba de ser lançado nos EUA pela Wesleyan University Press. “A ficção científica bra-sileira permite traçar a crise de identi-

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dade que acompanhou a modernização, juntamente com o senso de perda que a persegue, e que é parte da entrada do Brasil na condição pós-moderna. A ficção nacional em parte exemplifica a erosão da narrativa latino-americana de identidade nacional, porque ela se torna cada vez mais influenciada pela troca cultural inerente à globalização iniciada nos anos 1990”, concorda a professora de literatura Mary Ginway, da Universidade da Flórida, autora de Ficção científica brasileira: mitos cultu-rais e nacionalidade no país do futuro (Devir Livraria). Apesar disso, o gênero continua considerado como “menor”. “É uma pena, porque o deslocamento da tradição da ficção para o contexto de um país em desenvolvimento nos permite revelar certas assunções sobre como se dá esse desenvolvimento e de-terminar a função desse gênero nesse tipo de sociedade. A ficção científica fornece um barômetro para medir ati-tudes diante da tecnologia, ao mesmo tempo que reflete as implicações sociais da modernização da sociedade brasilei-ra”, avalia Mary. “Há mesmo uma varia-ção gradual de um clima de otimismo para outro, de pessimismo: a ciência pa-rece não mais ser a garantia da verdade,

como se pensava, e o impacto da tecno-logia pode nem sempre ser positivo, o que dificulta que se alcance o potencial nacional. Tudo isso se pode ver na ficção científica latino-americana: a definição da identidade nacional; as tensões entre ciência e religião e entre campo e cida-de; a pseudociência”, nota Rachel.

P ara a pesquisadora, a literatura es-peculativa é importante em paí ses como o Brasil, onde “ciência e tec-

nologia têm um papel-chave na vida intelectual, já que a tecnologia é vista como a solução possível para que o país possa superar o atraso histórico do desenvolvimento econômico com a esperança de se criar uma sociedade melhor e mais utópica”. Infelizmente, foi justamente essa ligação com o nacional que representou a glória e o desprezo da ficção científica no Brasil, apesar de ter-mos acompanhado com certa rapidez a expansão do gênero na Europa. A pri-meira ficção científica nacional data de 1868 (foi publicada no jornal O Jequiti-nhonha até 1872), Páginas da história do Brasil, escrita no ano 2000, de Joaquim Felício dos Santos, uma obra satírica sobre a monarquia que leva dom Pedro II numa viagem pelo tempo até o futu-

ro, onde descobre como seu regime de governo era pernicioso ao país. “Obras como essas que adentram o século XX, até os anos 1920, mostram que havia interesse dos brasileiros em desenvolver narrativas utópicas, fantasias morali-zadoras e até o romance científico, um corpo de ficção especulativa que pode-ria ter sustentado uma produção maior nas décadas seguintes. Infelizmente, como viria a acontecer nos anos 1970, os exercícios nacionais não resistiram à pressão estrangeira, à pressão da crítica, que não criou um nicho para o gêne-ro no Brasil, e ao relativo desinteresse do público leitor”, analisa Roberto de Sousa Causo, autor de Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950 (Editora da UFMG). “A separação rígi-da entre a literatura sancionada e a não sancionada redundou na quase total ausência de uma pulp era no contexto brasileiro. A ficção especulativa perdeu esse espaço de inventividade desregrada, de abertura de novas possibilidades, de constituição de uma tradição mais em-preendedora”, avalia.

Como observa Antonio Candido, em sua Formação da literatura brasi-leira, há uma posição fechada no país de considerar a literatura como práti-

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ca constitutiva de nacionalidade, um pragmatismo que implica até hoje a diminuição da imaginação, pelo inte-resse de se usar politicamente as letras como forma de representar a experiên-cia social e humana. Nesse movimento, avalia Causo, os usos da literatura como instrumento de formação da naciona-lidade teriam preferido a documen-tação realista e naturalista orientada pelo progresso e pelo determinismo. “A versão brasileira sofre duplamente por causa de suas associações com ‘arte baixa’, fruto de uma tradição autoritá-ria nacional que abomina a cultura de massas e a arte popular, e por ser um gênero imaginativo num país que dá alto valor ao realismo literário”, concor-da a brasilianista Mary Gingway. Num conto de Jorge Calife, um dos mais co-nhecidos autores contemporâneos de ficção científica, Brasil, país do futuro, um jovem, em 1969, durante a ditadu-ra, tem como dever de casa escrever um ensaio sobre o Brasil do ano 2000. Ele, de fato, consegue viajar no tempo e ver o Rio do futuro, uma dolorosa decepção ao descobrir que nada mudara e a vida dos brasileiros continuava miserável. De volta ao quarto, escreve o texto des-crevendo uma cidade imaginária sob

um domo, com medo de ser reprovado pelo professor se falasse a verdade. “Es-sa história é um lembrete de que, a des-peito da modernização global, o Brasil pode enfrentar uma longa espera antes de receber os benefícios da tecnologia”, afirma a pesquisadora americana.

Os inícios da ficção científica foi o chamado romance científico, desenvolvi-do entre 1875 e 1939, que tomava como modelos europeus os livros de Jules Verne e Wells. “Embora as contribuições cien-tíficas latino-americanas desse período fossem pequenas em comparação com

o resto do mundo, os cientistas desses países estavam em sintonia com o que fazia na Europa e a adoção da eugenia é um sinal da aprovação generalizada da ciência como prova de moderni-dade cultural. Os textos criados nesse espírito não se revelam como imitações de modelos literários imperialistas que mostravam sociedades imaginárias ba-seadas em tecnologias inviáveis, mas em obras que descreviam o presente com a autoridade do discurso científico e almejavam o futuro brilhante que vi-ria com certeza. São textos utópicos que acontecem em lugares remotos ou tempos distantes, descrevendo socie-dades inexistentes em detalhes”, analisa Rachel. A eugenia dessas obras, porém, vem embalada numa versão mais soft, um ramo alternativo das noções heredi-tárias de Lamarck, em que havia espaço para a reforma das deformações huma-nas, algo que entusiasmava os brasilei-ros, já que ofereciam soluções científicas viáveis para os “problemas” nacionais. “Era um neolamarckismo tingido com cores otimistas em que reformas do meio social poderiam resultar em me-lhoras permanentes e que o progresso, mesmo nos trópicos, era possível. Mais tarde, o darwinismo social se juntaria ao caldo que produziria a ficção”, conta a pesquisadora. Um bom exemplo é o romance pioneiro no gênero, Dr. Be-nignus (1875), de Augusto Zaluar, uma expedição científica ao interior do Bra-sil, com direito a seres vindos do Sol, muita conversa e pouca aventura. Para Benignus, a ciência serviria para dar va-lor ao cidadão importante ou resgataria a nação “bárbara” e abandonada.

Outro tema característico aparece em O presidente negro ou O choque das raças (1926), de Monteiro Lobato,

que mostra como a divisão do eleito-rado branco em 2228 permite a eleição nos EUA de um presidente negro, o que faz os brancos se unirem novamente pa-ra colocar os negros “sob controle”. Para o escritor, a mestiçagem era justamente o fator responsável pelo atraso econô-mico e cultural. A solução era seduzir os negros com um alisador de cabelos, os “raios Ômega”, que provocavam a es-terilização do usuário. De forma menos agressiva, o tom eugenista transparece nas obras do jornalista Berilo Neves, autor da coletânea A costela de Adão

A ficção científica

nacional ainda é

vista como um

gênero de segunda

linha, longe do

realismo da

literatura brasileira

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(1930) e O século XXI (1934), histórias satíricas passadas no futuro cujo alvo preferencial eram o feminismo e as fri-volidades femininas. Em geral suas nar-rativas misóginas envolvem a criação de máquinas de reprodução humana que fazem as mulheres obsoletas ou um mundo futuro em que os gêneros apa-recem trocados. Em A liga dos planetas (1923), de Albino José Coutinho, o pri-meiro romance nacional a mostrar uma viagem espacial, o narrador constrói seu “aeroplano” e finca a bandeira brasileira na Lua. Mas não foge do pensamento corrente: a missão espacial tinha como justificativa um pedido presidencial pa-ra que o herói encontrasse, em outros mundos, gente de qualidade, porque aqui isso não acontecia.

M as houve exceções honrosas ao darwinismo social, como A Ama-zônia misteriosa (1925), de Gus-

tavo Cruls, inspirado em A ilha do Dr. Moureau, de Wells, com uma solução nacional: o protagonista perdido pela Amazônia se encontra com um cientis-ta alemão, o professor Hartmann, que faz experiências em crianças do sexo masculino desprezadas pelas amazonas. Como se isso não bastasse, o médico, após tomar uma droga alucinógena, topa com Atahualpa, que descreve a ele os abusos feitos pelos europeus. O protagonista vê que esses foram man-tidos pelo cientista tedesco e rejeita as explorações colonialistas e o abuso da ciência. Em A república 3.000 ou A filha do inca (1930), o modernista Menotti Del Picchia descreve uma expedição que se depara com uma civilização de grande tecnologia em pleno Brasil Cen-tral, isolada sob uma cúpula invisível. Os protagonistas rejeitam os postula-dos positivistas, fogem com a princesa inca e tudo se encerra com uma elegia à vida simples. Jerônymo Monteiro, o futuro autor do personagem Dick Peter, usa seu romance Três meses no século 81 (1947) para mostrar o seu protago-nista Campos confrontando o próprio Wells sobre a viagem do tempo, usando o recurso da “transmigração da alma”, provocada por médiuns. “O herói de Monteiro não apenas viaja no tempo, mas lidera uma rebelião de humanistas contra a elite massificadora da Terra futura, aliando-se aos marcianos com quem o nosso planeta está em guerra”,

diz Causo. “Por um lado, a nossa ficção científica vai se imbuindo da realidade trágica do subdesenvolvimento e ilu-mina a compreensão do leitor sobre a conjuntura particular em que vive, o que nos diferenciava da ficção cientí-fica do Primeiro Mundo. Ao mesmo tempo, reconhecer isso nos fez rejeitar conceitos importados, como o darwi-nismo social. Não havia mais razão na convivência entre esse discurso e uma conjuntura de neocolonialismo, como se vê na ficção científica brasileira do final do século XIX e início do XX, salvo dentro de uma postura elitista interna ao país”, analisa o pesquisador.

Enquanto isso, florescia nos EUA, em revistas populares, as pulp maga-zines, uma ficção científica tecnófila,

pouco preocupada com o estilo ou com a caracterização de personagens, mais interessada no engajamento do leitor na ação, na aventura e na extravagância das ideias, as pulp fictions. Apesar dos esfor-ços pulps de Berilo Neves e em particu-lar de Jerônymo Monteiro (considerado o “pai da ficção científica brasileira”), essa forma popular não vingou no país. “O Brasil perdeu ao não ter acesso a esse material ou por não ter criado a sua versão de uma era de revistas po-pulares, em que a inventividade estava presente e o público reagia, criando um forte vínculo entre produtores e con-sumidores de ficção científica”, lembra Causo. Ao lado dessa golden age anglo--americana, a ficção nacional, também em função dos efeitos do pós-guerra, passa a apresentar uma desconfiança básica da ciência e da tecnologia nas mãos dos humanos por conta do po-der da razão em face dos excessos da emoção. “Em razão da aguda divisão de classes da sociedade brasileira, com forte concentração de renda nas mãos da elite, a tecnologia é vista como um elemento divisor, e não unificador. Para os brasileiros, a tecnologia é mais um problema político e econômico, e não uma forma de resolvê-lo”, analisa Ma-ry Ginway. Apesar disso, os anos 1960 presenciam uma explosão do gênero graças aos esforços do editor baiano Gumercindo Rocha Dorea, criador das Edições GRD, que passam a batizar e

No Brasil, ao

contrário dos EUA,

houve uma

tendência a ver

a tecnologia com

desconfiança,

como ameaça

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abrigar uma nova geração de escritores, incluindo-se criadores do mainstream convidados a criar ficção como Dinah Silveira de Queiroz, Rachel de Queiroz, Fausto Cunha, entre outros.

Entre EUA e Brasil passam a aconte-cer descompassos ficcionais. “Se a ficção científica americana abraça a tecnologia e a mudança, mas teme rebeliões ou in-vasões por robôs e alienígenas, a ficção brasileira tende a rejeitar a tecnologia, mas abraça os robôs e acha os alieníge-nas como sendo indiferentes ou exóti-cos, mas pouco ameaçadores, quando não portadores de uma mensagem de paz ao mundo”, afirma Mary. Tampou-co as visões americanas de megalópoles plenas de mecanismos futuristas agrada-vam aos brasileiros. “A sociedade brasi-leira, por seu passado rural e patriarcal, valoriza o personalismo nas relações, colocando valo no contato humano. Assim, essa rejeição pode ser lida como a negação de uma nova ordem baseada na uniformização e na obediência cega a uma cultura organizacional”, conti-nua a pesquisadora. A ficção científica nacional começa a colocar o seu sabor sobre os arroubos do futuro. “A tecno-logia só pode ser solução, nessas obras, quando é reduzida e humanizada. Os alienígenas, comparados aos estrangei-ros, são descritos como indiferentes aos humanos e seus destinos, tomando re-cursos e abandonando os humanos à sua sorte. A Amazônia, por exemplo, passa

a ser alvo desses invasores, que pousam ali. Já os robôs são vistos com grande simpatia, talvez em função do passado escravista em que havia uma promiscui-dade entre servos e senhores. Assim, os ícones da ficção são transformados pelas relações sociais brasileiras tradicionais e suas possibilidades como agentes de mudança social, enquanto possibilida-des utópicas são geralmente negadas.” Os autores nacionais se apropriam de um gênero do Primeiro Mundo que li-da com ciência e tecnologia e, ao trans-formarem seus paradigmas, tornam-no antitecnológico e nacional, segundo a pesquisadora, um gesto compreensível de resistência ante o temor da moderni-zação que ameaçava destruir a cultura e as tradições humanistas do Brasil, como se verá com o golpe de 1964.

E sse período da ditadura marca o início da ficção científica distópica, ou seja, usar elementos familiares e fazê-los

estranhos para discutir ideias e fazer de-núncias. “Ao usar um mundo futurista imaginário, as distopias se concentram em temas políticos e satirizam tendências presentes na sociedade. Daí as distopias nacionais serem todas representações ale-góricas de um Brasil sob regime militar, com alusões à censura, tortura, controle etc. Os enredos são sempre sobre rebeliões contra uma tecnocracia perversa e arbi-trária”, nota Mary. É um abrasileiramento da tendência da new age da ficção científi-

ca internacional, sob os auspícios de Ray Bradbury, em que a tecnologia aparece como vilã ao roubar dos brasileiros a sua identidade (uma questão recorrente desde o século XIX), em especial quando em mãos de um governo autoritário. “No lado oposto está o mito da identidade, visto como natural e imutável, assumin-do a forma da natureza, da mulher, da sexualidade, da terra”, nota Causo. Com o fim da ditadura, a ficção científica volta ao seu padrão em formas mais sofisticadas como o cyberpunk, a ficção hard e as histórias alternativas, muitas escritas por mulheres.

Em 1988, Ivan Carlos Regina lança o manifesto antropofágico da ficção científica brasileira, que como o ma-nifesto de Oswald de Andrade, propõe uma “canabalização” do gênero pelos escritores brasileiros. “Precisamos de-glutir, após o bispo Sardinha, a pisto-la de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencí-vel, a dobra espacial, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz e o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas.” “Ao combinar formas altas e baixas de literatura, ao unir mito, mídia, tecnologia moderna e ao abordar questões como raça e gê-nero sexual, a ficção nacional da pós- -ditadura desconstrói a noção de Brasil como uma nação tropical exótica, cheia de gente feliz, oferecendo um mosaico pós-moderno dos conflitos brasileiros para lutar com a sua própria história e com a crescente globalização”, nota Mary. Nesse momento há mesmo quem advogue o gênero como terreno fértil para os escritores do mainstream. “Os heróis da prosa de ficção brasileira estão cansados. Faz pelo menos 20 anos que a sua rotina não muda”, avisa o escritor Nelson de Oliveira, autor de Os trans-gressores, em seu “Convite ao mainstre-am”. “Nossa sorte é que na literatura brasileira existem outras correntes além da principal. A mais vigorosa, brutal e vulgar é a ficção científica. Ela é como os bárbaros que puseram abaixo Roma. Os bárbaros são a solução para uma ci-vilização decadente. Os temas da ficção científica são a semente desses guerrei-ros que, ao fecundarem a prosa cansada e decadente do mainstream, ajudarão a gerar contos e romances mais consisten-tes e menos artificiais.” n

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A metrópole móvel

Perfil migratório de São Paulo é marcado por idas e vindas e pela internacionalização

Já é fato razoavelmente conhecido que a Região Metropolitana de São Paulo não é mais um gran-de polo de absorção de migrantes internos e ex-ternos, papel que desempenhou durante a maior parte do século XX. Na primeira década do XXI houve um expressivo saldo negativo entre os que entraram e os que saíram. Chegaram 100 mil pes-

soas e partiram 800 mil somente para o interior do estado. O que não é tão conhecido é o novo perfil migratório que esses números, de certa forma, escondem. O fluxo já não se explica pela dinâmica da indústria e do emprego formal que antes atraía novos moradores. A grande novidade é o fenômeno da reversibilidade – ou seja, as permanências tendem a encurtar-se e o movimento se caracteriza por idas e vindas, além dos retornos definitivos.

Descrever em detalhes essas novas configurações de-mográficas, suas implicações e desdobramentos é a tarefa que se atribui o Observatório das Migrações do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), financiado pela FAPESP e coordenado por Rosana Baeninger, professora do Depar-tamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), também da Unicamp. O projeto tem uma abrangência cronológica extensa – de 1880 a 2010 – e perspectiva interdisciplinar, o que faz com que novos estudos temáticos, que atualmente totalizam 16, surjam na medida em que as pesquisas avançam.

“Nosso objetivo é que cada pesquisador consiga des-vendar processos que os grandes números não mostram”, diz Rosana. “Temos o desafio de procurar novas fontes de dados – os censos não nos fornecem informações sobre as migrações internas, por exemplo.” Os produtos finais deverão ser um atlas temático e um banco de dados. Não só novas fontes são utilizadas, mas também abordagens recentes da bibliografia nacional e estrangeira que aju-dem a entender o quadro mais amplo. Um dos pontos de partida do observatório é que “o entendimento dos pro-cessos migratórios só ganha significado se considerarmos as dimensões espacial e territorial”.

Assim chegou-se à constatação de que no século XXI, como já se podia entrever desde os anos 1990, a Região Metropolitana de São Paulo inseriu-se na rota das migrações internacionais. “A metrópole tem uma característica muito mais voltada para o mercado in-ternacional, como parte de uma cadeia de cidades glo-

Márcio Ferrari

[ DEMoGRAFIA ]

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bais”, diz Rosana. Nesse arco amplo, enquanto os processos econômicos se multiplicam espacialmente, o tempo se globaliza. É o que o sociólogo britânico Anthony Giddens chama de “mecanis-mos de desencaixe”.

Hoje São Paulo é destino tanto de mão de obra altamente qualificada quanto de trabalhadores indocumen-tados e sem formação específica, mas que já se inserem em mecanismos de produção flexibilizados e conformados à mobilidade do capital. No primeiro caso destacam-se argentinos e chile-nos que vêm trabalhar na cidade em postos de gerência, com autorização de permanência por períodos renová-veis de dois anos e contabilizados pelo Ministério do Trabalho – são 20 mil, conforme os dados mais recentes. No segundo caso estão sobretudo os bo-livianos, que imigram por problemas em seus locais de origem e escapam às estatísticas oficiais. Seu número total é estimado em 200 mil por entidades privadas como a Pastoral do Imigrante. Com isso, segundo a socióloga, “100 anos depois da migração europeia São Paulo voltou a ser a porta de entrada das migrações internacionais, agora não mais subsidiadas pelo governo”.

Como se sabe, num fenômeno que já tem três décadas, os bolivianos vêm principalmente para trabalhar na in-dústria de confecções, de propriedade de imigrantes asiáticos ou seus des-cendentes. A migração boliviana já se encontra na segunda geração e causou impactos urbanos sensíveis, como a conhecida mudança de perfil demo-gráfico do bairro do Bom Retiro, tra-dicionalmente marcado pelo comércio e pela presença judaica e hoje sede da maioria das confecções que empregam a mão de obra latino-americana.

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Essa já é uma atividade interna-cionalizada no princípio da cadeia de produção, uma vez que os tecidos chegam da Coreia. Nos últimos anos o setor vem maturando sistemas elabora-dos que permitem a muitos bolivianos trabalhar sazonalmente, sob demandas específicas de acordo com as tempora-das de lançamentos de roupas (verão e inverno), o que reforça o movimen-to geral de vaivém entre os migrantes da cidade. Hoje muitos trabalhadores bolivianos já se originam de zonas urbanas e chegam com treinamento profissional.

Entre os migrantes internos, princi-palmente nordestinos, o hábito da sazo-nalidade também se intensificou. Como exemplo, há um bom contingente de pessoas que trabalham na venda de bi-lhetes de loteria nas ruas durante alguns meses, mas voltam para seus locais de origem para aproveitar as altas tempo-radas da indústria do turismo. Outra face da permanência curta ou mesmo do retorno de migrantes é o encareci-mento do custo de vida na cidade. Antes as periferias ofereciam rotinas próprias

e potencial de absorção de novos mo-radores, mas hoje, segundo Rosana, “o entorno não é mais desarticulado do centro; essas regiões se adensaram e se reconfiguraram”. Um traço caracterís-tico do perfil migratório do século XXI na Região Metropolitana de São Paulo é a regressão. Trata-se da área do país que mais perde população por ano, es-pecialmente no que se refere à migração interna. Por outro lado, o estado é o que mais recebe mão de obra qualificada.

Redes - Fator importante na estrutura social que permite a circulação de mi-grantes, tanto internos como externos, são as redes sociais – grupos articula-dos de apoio à permanência temporária, formados principalmente por parentes. Graças a elas, é possível aos migrantes muitas vezes deixarem por algum tempo seus filhos no local de origem enquanto se dedicam ao trabalho sazonal. As redes sociais operam nas duas extremidades da migração e não constituem um fe-nômeno novo (às vezes são redes que perduram há 60 anos), mas ganharam importância-chave na sustentação da temporalidade das migrações entre espaços tão longínquos. Isso fez surgir sistemas organizados e dinâmicos de transporte como os ônibus que saem da região de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo.

Hoje o grande eixo migratório do país tem sido o estado de Goiás. “É o grande polo de absorção”, diz Rosana. A agroindústria vem atraindo inclusive mão de obra qualificada paulista. Além disso, um centro produtor de cereais como a cidade de Rio Verde oferece cursos de gestores públicos que atraem profissionais de fora do estado.

A expansão da agroindústria no interior paulista também continua atraindo migrantes de outras regiões, da capital, de núcleos internos vizi-nhos e, em menor escala, do exterior. Soma-se à agroindústria a robustez de nichos econômicos voltados para o mercado externo que as várias regiões conseguiram consolidar: os calçados na área de Franca, as joias em Limei-ra, os móveis em Votuporanga, o setor hoteleiro sustentado pelo circuito do peão em Barretos etc. A malha viária é suficientemente eficaz para que mui-tos profissionais morem numa cidade e trabalhem em outra, provocando “o

Entre os migrantes

internos, o hábito

da sazonalidade

se intensificou

muito, diz Rosana

Boliviano passa em frente a anúncios de trabalho, em La Paz, 2007

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adensamento de pequenas cidades an-tes marcadas pela evasão”.

Um retorno ao campo? “Não”, diz Rosana. “Mesmo que o trabalho se volte para a área rural, as pessoas vivem nas cidades ou no que chamamos de zonas de extensão urbana não catalogadas, ou seja, áreas com características urbanas sem serem oficialmente consideradas assim.” Com essa uniformização, au-mentou muito a migração de curta distância e o vaivém regional, a ponto de se criar um questionamento teórico: será que as pessoas que perfazem esses deslocamentos podem ser consideradas migrantes? Pela concepção em vigor nos anos 1960, informa a professora, a adaptação de um migrante da zona rural tradicional para o ambiente urbano mo-derno demorava cerca de 10 anos. Mas no interior paulista, hoje, os padrões de urbanização e consumo são praticamen-te idênticos entre as regiões.

Impacto - O modo de funcionamen-to das pesquisas do Observatório de Migrações, com peso na interdiscipli-naridade e na cooperação com outras instituições acadêmicas brasileiras e estrangeiras, faz surgir estudos de fenô-menos sem grande volume numérico, mas importantes dos pontos de vista sociológico e antropológico. Planeja-se, por exemplo, um estudo inédito sobre

o impacto social das transferências de presídios para cidades do interior do estado de São Paulo, com a movimen-tação de grupos que isso acarretou.

Um estudo em andamento ilumi-na a migração de refugiados na região metropolitana neste século. Há uma expressiva presença de colombianos (e alguns cubanos) que foram pressiona-dos a sair de seus lugares de origem pelos conflitos internos. “O Brasil tem uma das legislações mais abertas da América Latina para refugiados, o que provoca esse fluxo”, diz Rosana. Calcula-se que haja 1.800 refugiados na cidade de São Paulo. Entre eles, os mais recentes são os colombianos, que em geral têm fa-mília, muitas vezes sendo o cônjuge ou os filhos brasileiros, em geral com qua-lificação profissional mas dificuldade de inserção, porque não têm o diplo-ma validado. A título de comparação, a maioria dos refugiados na cidade do Rio é composta por africanos solteiros, que costumam chegar como estudantes e posteriormente pedem refúgio. Tanto os refugiados como os imigrantes in-documentados, segundo Rosana, cria-ram situações que demandam políticas

sociais em favor de seus direitos e de proteção contra a discriminação, que ainda não foram instituídas.

Um estudo particularmente inte-ressante do Observatório de Migra-ções está a cargo da socióloga Marta Maria do Amaral Azevedo, também da Unicamp, sobre a presença guarani em São Paulo. Atualmente há na re-gião leste do estado 20 comunidades, quatro delas na capital. O processo migratório, oriundo do Paraguai, do atual Mato Grosso do Sul e da Argen-tina, começou na segunda metade do século XIX. Observou-se, no entanto, que ele se mantém, “criando muitas ve-zes impasses para as políticas públicas e para a questão das terras”. O estudo procura, entre outras coisas, quantificar essa população e traçar sua genealogia. “As pesquisas existentes apontam mo-tivações religiosas e econômicas, como a busca da terra sem males, um lugar onde seria possível viver do jeito gua-rani, ou de acordo com o guarani reko, a maneira de ser desse povo”, diz Marta. “Hoje há extensas redes sociais estrutu-radas a partir de parentesco e relações de religiosidade, trocas econômicas e a prática do conceito oguatá: caminhar, o que pode significar uma visita a um parente ou uma viagem para consultar um pajé, ou mesmo para uma reunião de famílias.” n

Coreanos em frente à loja de móveis usados no Bom Retiro

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Artigos sobre o Brasil foram fundamentais para a formação de seu pensamento

Há 60 anos, o sociólogo “francês abrasileira-do” (como o chamava Gilberto Freyre) Ro-ger Bastide (1898-1974) realizou um sonho antigo, acalentado desde pouco depois de sua chegada ao país, em 1938, vindo como substituto do antropólogo Claude Lévi- -Strauss à frente da cadeira de sociologia

da Universidade de São Paulo (USP). Em dois dias plenos de cerimônia, entre 3 e 4 de agosto de 1951, Bastide foi iniciado no candomblé como filho de Xangô e passou a usar o colar de contas vermelho e branco com grande orgulho. Por um curioso parado-xo, a passagem religiosa foi o ápice de suas pesquisas científicas no Brasil e, ao mesmo tempo, expressão sincera do seu “encantamento” pelas descobertas. “A pesquisa científica exigia de mim a passagem preli-minar pelo ritual de iniciação. Até a minha morte serei reconhecido a todas as Mães de Santo que me trataram como um filho branco e compreenderam, com seu dom superior de intuição, minha ânsia por novos alimentos culturais e pressentiram que meu pensamento cartesiano não suportaria as novas subs-tâncias como verdadeiros alimentos”, escreveu em Estudos afro-brasileiros.

Chegou ao Brasil sem saber o que encontraria. “Partiremos em algumas horas e as gaivotas traçam sinos cabalísticos no céu”, escreveu a bordo do navio que o trazia aos trópicos, revelando o espírito aberto ao oculto, ao irracional. Aqui, deparou-se com uma questão complexa: gostaria de ser um intérprete do no-vo país, mas como fazer isso sendo um estrangeiro em busca da compreensão da “identidade brasileira”? Será seu encontro com os modernistas, em especial Mário

de Andrade, que o ensinará a procura do “exótico do exótico” do “outro do outro”. Daí a importância de sua iniciação e, também, da sua inserção na discussão sobre as artes plásticas que os modernistas realizavam. “As ar-tes plásticas, o folclore, o barroco ensinam a Bastide que a originalidade da cultura brasileira era seu hibridismo, a solução ímpar que aconteceu aqui com o cruzamento de civilizações distintas”, explica a antropóloga Fernan-da Arêas Peixoto, professora da USP e autora de Diá-logos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. Do Bastide do candomblé muito se fala, mas o crítico de arte que arregaçou as mangas e saiu da universida-de para os jornais é bem menos conhecido, apesar da importância de seus escritos para a compreensão de seu pensamento. Essa lacuna está sendo, aos poucos, preenchida, como revela o lançamento de Impressões do Brasil (leia resenha na página 92), livro recém- -lançado pela Imprensa Oficial, que reúne 11 artigos que retratam o processo de ambientação intelectual do francês no país e seu envolvimento com a cultura nacional. “Essa paixão pelas artes e pelas letras não era um passatempo dominical de Bastide, mas uma disci-plina estética que ele soube cultivar. Os textos revelam a inclusão crescente de temas brasileiros em seu reper-tório intelectual. E de como, com rapidez e profundi-dade, ele se enganou com a matéria brasileira, antiga e contemporânea”, avalia o professor de literatura da USP, Samuel Titan Jr., que, ao lado da socióloga Fraya Frehse, foi responsável pela organização dos artigos do livro, entre esses: “Machado de Assis, paisagista”; “Igrejas barrocas e cavalinhos de pau”; “Estética de São Paulo”; “Variações sobre a porta barroca”; “Arte e religião: o culto aos gêmeos”; entre outros.

[ SoCIoLoGIA ]

As artes de Roger Bastide

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Há ainda outras boas-novas. “Os estudiosos da obra de Bastide são, em geral, das ciências sociais. Apesar da eficiência desse fio de Ariadne para nos movimentarmos nos aspectos ge-rais da sua produção, a literatura abre ramificações próprias. Ele trouxe uma contribuição importante com o seu olhar estrangeiro e aberto, iluminando de uma forma diferente a nossa própria literatura”, acredita Glória Carneiro do Amaral, professora livre-docente apo-sentada da USP, atualmente pesquisa-dora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, autora de Navette literária França-Brasil: a crítica de Roger Bastide, recém-editado pela Edusp em dois vo-lumes que analisam as críticas literárias bastidianas e as reúnem pela primeira vez, muitas delas quase desconhecidas de pesquisadores de sua obra.

“Bastide pensou e escreveu sobre o Brasil à medida que o foi conhecendo. No exercício rotineiro da crítica jor-nalística, ele comenta as artes visuais e a literatura nacional, discutindo obras no calor da hora. A arte é lida por ele como forma de compreensão da cultu-ra brasileira mais ampla, ligando-se à análise cultural. Foi a partir da matéria artística que ele pensou os processos de ‘aculturação literária’, a incorpora-ção do negro à literatura e mestiçagem estética. O mesmo se deu em outros campos da arte. Ele praticou a inter-disciplinaridade num momento em que isso não era praticado como hoje em dia”, analisa Fernanda Peixoto. “O Brasil que emerge das artes e da cul-tura popular é um Brasil mestiço do que Bastide se aproxima dos mais di-versos ângulos. Ele deve ser visto como um elemento de ligação entre o meio universitário e o cenário intelectual mais amplo, representando, com esses textos, dentro da universidade, a arti-culação entre a academia e os jornais; entre a sociologia acadêmica, a crítica e o ensaísmo; entre as ciências sociais e o modernismo literário”, completa a pesquisadora. “Bastide se interessou a fundo pela nossa arte e pela nossa li-teratura, tornando-se crítico militante e um estudioso que pesou de maneira notável na interpretação de fatos, ideias e obras. Sua visão sociológica concorria para a ampliação das interpretações, sendo um dos raros estudiosos a usar

Roger Bastide: em sua estada no Brasil

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com segurança e felicidade essa com-binação difícil da sociologia e da crítica da arte”, escreveu o ex-aluno Antonio Candido em Recortes.

Mas não se trata aqui da “arte pe-la arte”. “Nas análises que fez sobre a produção artística brasileira, eruditas ou populares (folclore, artes plásticas e literatura), Bastide se concentrou na busca das marcas africanas que estariam impressas nessa produção ou, nas pala-vras dele, ‘buscamos a raça na trama da obra escrita’. O que essa produção revela é a presença de uma África em surdina, oprimida por modelos cultos europeus, exemplificando o drama do africanismo oprimido no país. Daí ele ter se voltado, ao mesmo tempo, para os escritos sobre arte e os estudos sobre as religiões afro-brasileiras que obrigam a redefinir suas análises anteriores”, observa Fernanda. “Se as manifestações artísticas o levam a

ver o Brasil a partir de uma trama sincré-tica (a competição desigual entre a civili-zação europeia e a africana, que luta para impor seus valores e modelos), a religião trouxe a ele outro ângulo de observa-ção”, continua. Segundo Bastide, nota a pesquisadora, os cultos afro-brasileiros seriam redutos privilegiados da reação, o polo de resistência africana e permitem que se possa “decantar” a África pela sua composição mestiça, uma forma nova de compreender a presença africana no Brasil. “Esse é o campo de observação de Bastide aqui: o triângulo África, Europa e Brasil, este último o lugar da barganha dos dois sistemas simbólicos, africano e europeu”, diz a professora. A religião teria o poder de inverter o sentido da equação sincrética, pois seria o lugar em que a contribuição negra é a base e, assim, oferece ao intérprete o caminho preferencial para entender a África no Brasil.

Mas por que a opção africana? O encontro entre Bastide e a África acon-teceu em território brasileiro na sua primeira viagem ao Nordeste, em 1944.

“Diante da fonte europeia e africana, que alimenta o misticismo brasileiro, ele vira sua atenção para a matriz africa-na. Isso não significa uma escolha, mas, pensa, a única opção segura para quem quer entender o caráter particular do misticismo nacional. Pode-se dizer que não é o intérprete que elege o mundo africano como objeto de reflexão, mas é a África que se impõe ao observador”, nota Fernanda. Afinal ela “penetra pe-los ouvidos, pelo nariz e pela boca, bate no estômago, impõe seu ritmo ao corpo e ao espírito, obrigando-o a passar do estudo da mística das pedras e da ma-deira talhada para a religião dos pretos”, como escreveu Bastide em Imagens do Nordeste em preto e branco, “reportagem literária” feita pelo francês em 1944 a pedido da revista O Cruzeiro. “A civili-zação africana, nos termos de Bastide, é recriada no Brasil a partir (e apesar) do encontro entre as três civilizações. As-sim, a África brasileira, longe de cópia de um modelo original, é reelaboração, um produto também híbrido. É uma África sincrética, composta de brancos e negros, como mostram seus estudos sobre arte e literatura. Para ele, o negro está ao mesmo tempo unido e separado na sociedade brasileira.”

A ssim, se Gilberto Freyre, referência fundamental para Bastide, ao lado dos modernistas e Florestan Fer-

nandes (seu aluno e colega de pesqui-sas), estudou o sincretismo do ponto de vista da civilização brasileira, Bastide virou-se para as civilizações africanas, com isso, como escreveu, pretendendo “retomar o problema pelo outro lado da luneta”. O sincretismo bastidiano é, acima de tudo, sinônimo de resis-tência africana. Isso gerou críticas ao sociólogo, visto como passadista, um romântico em busca de purezas perdi-das no tempo. “Se ele se esforça em iso-lar os universos africanos do amálgama mestiço, ao mesmo tempo está preocu-pado em entender como esses ‘nichos africanos’ se articulam na sociedade. A procura de ilhas africanas é inseparável da análise de relações, de aproximações e afastamentos”, nota Fernanda.

“O Brasil é um caso exemplar de interpenetração de civilizações a ser observado e produtor de teorias que Bastide irá usar, não apenas para en-tender as especificidades do Brasil, mas

Noviça pintada pelo orixá (acima) e Oxum (página ao lado)

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 91

também para criar seu instrumental analítico e conceitual”, avisa Fernan-da. “Bastide não era um sociólogo de gabinete, mas um intelectual que realizou detalhadas pesquisas etno-gráficas e históricas e seus textos têm o valor de reabilitar a cultura negra, agora vista como elaborada e plena de valores, recusando a perspectiva preconceituosa de autores brasileiros que o precederam”, observa o sociólo-go Lísias Nogueira Negrão, professor titular da USP e autor de Roger Bastide: do candomblé à umbanda.

“Para Bastide, olhar a África no Brasil implica obrigatoriamente o mo-vimento inverso: olhar o Brasil sincré-tico a partir da África, já que sem o termo africano é impossível pensar o país”, nota Fernanda Peixoto. Entre 1950 e 1951, esse raciocínio avançará em no-vas direções por causa do convite feito a Bastide pela Unesco para investigar as relações raciais no Brasil, já que então o país parecia, ao menos de longe, sofrer menos do que os outros os efeitos do preconceito racial e seria desejável en-tender as raízes dessa suposta harmonia. Bastide une-se ao ex-aluno Florestan Fernandes na tarefa e o diálogo entre os

Para Bastide,

olhar a África no

Brasil implica

obrigatoriamente o

movimento inverso,

diz Fernanda

dois será fecundo ao pensamento bas-tidiano em sua fase final, em especial na avaliação dos nexos entre “novo” e “velho” na sociedade brasileira.

“O tom otimista das previsões de Florestan não encontra eco em Basti-de, mesmo que ele considere notável a maior aceitação dos negros pelas novas gerações”, observa Fernanda. “Mas, para Bastide, a matriz da análise é dada pela persistência dos elementos da socieda-

de tradicional no mundo moderno, e não pela mudança. As dificuldades dos negros para se organizarem politica-mente se dão nesse contexto em que não há ideologia da revolta. Fruto de uma ambivalência ideológica entre o orgulho de ser negro e a sensação de in-ferioridade, a adoção do ponto de vista branco.” Nisso, apesar das críticas que sofreu, Bastide não vê uma aversão ao moderno. Pelo contrário, como revela numa palestra feita em 1973 quando remete seu pensamento ao mito de Pro-meteu, torturado pelos deuses com um abutre ao dar o “fogo divino” do saber aos homens. “A civilização ocidental traz em seu mito de origem o progres-so e a decadência, gerados pela mesma fonte. Não é possível, diz Bastide, refle-tir sobre a civilização e sobre a moder-nidade (Prometeu) sem incorporar a análise da antimodernidade (o abutre), faces de uma mesma moeda.”

A ssim, segundo o francês, a expor-tação de valores para países do Terceiro Mundo (a generalização

da modernidade) que levaria a uma ho-mogenização do modelo ocidental não aconteceu. Bastide, então, questiona se haveria mesmo só um único modelo para alcançar a modernidade e se co-loca em defesa das “modernidades dife-renciadas”, fruto do que viu e observou no Brasil com a cultura africana. Foi um entusiasta dos movimentos jovens dos anos 1960, exemplos da contra-modernidade produtiva: a contestação jovem à sociedade ocidental era feita tendo como modelo as formas arcaicas de sociabilidade reeditadas por hippies e outros. O que provaria a vitalidade dos modelos arcaicos, que logram so-breviver às revoluções mais violentas, refugiando-se em nichos. “Na produ-ção de Bastide, mesmo depois de seu retorno à França, persiste o interesse pelas ‘Áfricas’ do mundo todo”, anali-sa Fernanda. Um pensamento forjado em terras baianas, como recorda Jorge Amado ao lembrar-se do amigo fran-cês, que falava um português enviesado, em visita a um terreiro. “Como se en-tenderam o sociólogo francês e a mãe- -pequena baiana, não sei até hoje; é pa-ra mim um mistério tão grande quanto o da Santíssima Trindade.” n

Carlos Haagfot

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resenha

N a formação da primeira geração de sociólogos brasileiros da Universi-dade de São Paulo, Roger Bastide

(1898-1974) foi o mais influente dos professores estrangeiros que a instituí-ram, onde lecionou de 1938 a 1954. É marcante sua influência na sociologia brasileira até hoje.

A riqueza do pensamento de Bas-tide está exemplarmente contida neste belo livro de rememoração e homena-gem, Impressões do Brasil, organizado e prefaciado por Fraya Frehse e Samuel Titan Jr., que reúne textos a duras penas garimpados em revistas e jornais. É um livro que expressa a densa e madura motivação que trouxe ao nosso país o pesquisador francês. Bastide, como ele mesmo disse, vinha de uma Europa saturada de razão e dela cansada. In-teressava-se, por isso, pelo lugar social do que à razão escapava, nas estruturas sociais profundas, nos modos de ser e de pensar do homem comum, mas também na emoção da arte e nas ela-borações do espírito. O Brasil era para ele o laboratório da descoberta de um lado da condição humana que a razão escondera e reprimira.

Foi autoridade em sociologia da reli-gião e também na relação entre a socio-logia e a psicanálise, tema de um de seus primeiros cursos na USP. Seus estudos sobre o sonho, com dados colhidos em São Paulo, numa pesquisa sobre o ne-gro, levou-o a descobertas fundamentais nesse campo da sociologia, sobre o lado essencial e oculto da negritude. Com ele pode-se dizer que o verdadeiro e raro negro que subsiste entre nós não é o negro de pele, mas o negro que não foi separado de seus ancestrais pelo catoli-cismo da socialização maniqueísta para o cativeiro, o do abismo entre vivos e mortos. Nos sonhos dos negros por ele estudados a presença dos ancestrais é

explicativa. Na mística do negro, não há cisão entre vigília e sonho, mas unidade, a do ser da identidade profunda. O pri-meiro estudo de Impressões do Brasil é justamente uma análise da relação entre arte e mística, a investigação e explicitação do social nas complexas obras do espírito.

Esse belo elenco de pequenas joias praticamente inau-gurais da nossa sociologia é obra densa de um pesquisador erudito, aberto à indagação ampla sobre diferentes aspectos de nossa sociedade. Bastide veio para o Brasil a convite da USP cheio de curiosidade científica, com uma exemplar e incansável disposição para ver, indagar, aprender, decifrar, explicar. Sua cultura lhe permitia ver como cientista até mesmo o que parecia irrelevante traço da realidade social. Seu ensaio sobre “Igrejas barrocas e cavalinhos de pau” é a evidência de uma perspectiva sociológica atenta às conexões da diversidade de expressões do social, à mística da totali-dade, à monumentalidade residual do banal, às heranças e permanências que escapam à fugidia concepção da sociedade como supressão da história, como presente atemporal. As significações, na sociologia bastidiana, são as significações da vida como permanente obra de arte.

O provocante ensaio sobre “Estética de São Paulo” é mais do que um convite a pensar a casa e o espaço na perspectiva sociológica. Bastide toma como referência a modernidade da Via Anchieta e destaca as revelações e os desafios inter-pretativos de uma simples viagem de carro de São Paulo a Santos, para uma digressão sobre o caráter relativo das formas, sobre o poder da persistência das estruturas sociais profundas, familistas, que estende às considerações sobre a verticalização da capital. Destaca aí as tensões da “cidade vertical contra a estrutura horizontal da família”. Nem lhe falta o interesse sociológico pelos significados da porta em nossa cultura, como lugar ritual da passagem, em suas “Va-riações sobre a porta barroca”.

Bastide ultrapassou a porta da sala de aula para falar ao grande público através dos jornais. Foi no jornal O Estado de S. Paulo que ele publicou, em cinco semanas, distribuído em capítulos, em 1948 e 1949, o revelador “Ensaio sobre uma estética afro-brasileira”, um dos capítulos mais impressio-nantes deste livro.

Bastide e a alma do BrasilLivro reúne artigos que formaram o pensamento do sociólogo francês

José de Souza Martins é professor titular aposentado da Universidade de São Paulo, membro do Conselho Superior da FaPESP e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

José de Souza Martins

Impressões do Brasil

Roger Bastide

Imesp

168 páginas, R$ 80

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 93

livros

Estátuas invisíveisGilberto Figueiredo Martins Nankin Editorial / Edusp 216 páginas, R$ 40,00

Este livro trata da obra da escritora Cla-rice Lispector por um ângulo geralmen-te pouco explorado, o das experiências do espaço público na ficção da autora. Gilberto Martins aborda experiências de exílio e morte, infância (faminta), hu-milhações na pobreza, faltas e carências, cidades diversas e diferentes (Recife, Rio de Janeiro, Brasília), brasileiros sem lugar ou destino, entre outros temas que per-passam os textos de Clarice.

nankin Editorial (11) 3106-7567www.nankin.com.br

o professor do jovem imperadorAdílio Jorge Marques Vieira & Lent Casa Editorial 208 páginas, R$ 30,40

A pesquisa minuciosa em manuscritos origi-nais no Brasil e em Portugal traça a história de Alexandre Vandelli (1784-1862), um dos últimos pensadores portugueses dos 800, iluminista de orientações práticas. No Brasil, Alexandre também foi um dos mestres da família imperial, responsável, entre outros, por despertar em dom Pedro II o gosto pelas ciências naturais.

Vieira & Lent Casa Editorial (21) 2262-8314www.vieiralent.com.br

No espaço cênico da propaganda políticaAdolpho Queiroz (Org.) Papel Brasil Editora 332 páginas, R$ 30,00

Adolpho Queiroz aborda em seu livro o pa-pel da mídia, da comunicação e do marketing político nas campanhas presidenciais em 19 artigos que relatam as ações de comunicação e de propaganda mais marcantes no decorrer das disputas pelo poder governamental, tra-çando assim uma reflexão sobre os diferentes contextos que os presidenciáveis tiveram que construir suas estratégias eleitorais.

Papel Brasil Editora (12) 2125-1700 [email protected]

A escuta singular de Pixinguinha Virgínia de Almeida Bessa Alameda Editorial 348 páginas, R$ 67,00

Virgínia Bessa procura explorar a trajetó-ria de Pixinguinha focando seu estudo na “escuta singular” revelada nas composições, interpretações e arranjos do músico. O livro reconstrói o painel cultural e musical do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, apontando para a mistura de elementos do folclore, influências jazzísticas, discursos da música erudita e até para as necessidades das indústrias fonográfica e radiofônica que permeavam a obra do músico.

Alameda Editorial (11) 3012-2400www.alamedaeditorial.com.br

oniskaPedro de Niemeyer Cesarino Editora Perspectiva / FAPESP 424 páginas, R$ 100,00

Oniska: poética do xamanismo na Ama-zônia é um estudo etnográfico sobre os marubos do alto rio Ituí (vale do Javari, Amazonas) que examina os cantos e de-poimentos de xamãs que se dedicam, por meio da linguagem poética, a dilemas tais como a morte e os ciclos vitais, a consti-tuição do mundo e da pessoa, as relações entre visível e invisível.

Editora Perspectiva (11) 3885-8388www.editoraperspectiva.com.br

rimas de ouro e sândaloDaniela Mantarro Callipo Editora Unesp 264 páginas, R$ 37,00

Através de seu estudo, a autora demons-tra a importância e a presença do poeta francês Victor Hugo nas crônicas de Ma-chado de Assis, entre os anos 1859 e 1897, expondo os contextos históricos, políti-cos e literários em que cada história está inserida, assim como traça uma reflexão sobre a influência da França na produção cultural brasileira.

Editora unesp (11) 3242-7171www.editoraunesp.com.brfo

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94 n junho DE 2011 n PESQUISA FAPESP 184

ficção

Ícaro

N esta manhã, enquanto partilhamos o leite, os pães e o canto estridente de Sofia, vejo uma nuvem de genes pairar sobre a mesa. Identifico incontáveis ervilhas na

crosta cinzenta. Elas se combinam para formar cromosso-mos, que se unem em espirais de DNA, as cadeias como tornados ao redor das crianças.

Domingo com a família. Davi mastiga um pedaço de pão desproporcional à miudeza da boca, Vanessa me pede, pela terceira vez, o pote de manteiga. A cozinha bem ilu-minada, Sofia irrompendo no ambiente de touca capilar, uma canção arranhada e insistente vibrando as cordas vo-cais. Da posição em que estou, tudo acontece em câmera vagarosa, um comercial de margarina contaminado por mutações surreais.

Penso na mitologia grega, especialmente em Ícaro e no presente ganhado por ele do pai. Também recebi um par de asas para sobrevoar o labirinto da vida. Como Ícaro, voei para onde não deveria. Sem para-raios, caio, sob tempestade genética.

Sofia é arquiteta e conhece um pouco de alquimia. Transforma em ser vivo, com massagens certeiras, um corpo enferrujado pelo cotidiano. Vanessa está em fase de cresci-mento, uma baratinha esperneando nas metamorfoses da adolescência. Davi nas primeiras descobertas. Folhas em branco, os filhos. Destas nas quais se escrevem livros de receita, mandamentos ou poemas. Eu, engenheiro genético, opto pelos códigos.

Primeiro, a domesticação de animais, a genética nascen-do em cruzamentos raciais e planejados. Depois Mendel e suas ervilhas amestradas, observando padrões, notando o quanto as variações no cultivo obedeciam a estatísticas sim-ples. Agora o Genoma Humano decifrado, o DNA traduzido, a caixa de Pandora aberta.

Deixei escapar genes, sombras, esperanças. O mundo para sempre modificado.

Sofia se senta e diz qualquer coisa sobre a beleza do dia. Vanessa mistura o achocolatado, a colher tilintando no fundo do copo. Davi remexendo as mexericas no cen-tro da mesa, até selecionar a maior. Observo o nosso Éden particular. Estão nus e não se envergonham. Não há frutos proibidos, no máximo transgênicos.

Família, o meu objeto de pesquisa. Essa necessidade de saber para onde as coisas vão. Buscar um improvável desvio na rota. Retardar, quem sabe, o encontro dos ratos com a ratoeira universal.

Colhi partículas para saber-lhes tudo. O cabelo de Va-nessa no pente, um pelo pubiano de Sofia, o primeiro dente extraído de Davi, a unha do meu indicador esquerdo. In-gredientes de uma poção científica e perigosa.

As horas extras se estenderam no laboratório. A descon-fiança dos colegas, os arquivos pessoais se multiplicando, o sonho da perfeição ao alcance de uma senha.

Existem poucas formas de nascimento. Duas vias, ape-nas. Uma vez no mundo, ou mesmo antes de se chegar a ele, os tipos de morte possíveis são inúmeros. Assassinato, canibalismo, suicídio, afogamento, combustão, batida de carro, elevador danificado, espinha de peixe na garganta, abuso de cigarro, AA, AB, BB. De quase todas, com al-guma sorte em estatística, escapa-se. Por mais violenta que seja, a vida social tem uma flexibilidade estranha aos códigos genéticos.

Vanessa salta da mesa, sempre a primeira a terminar. Segue para o espelho. Começa o ritual narcisista, o retoque de maquiagem. O rosto de boneca pronto, ela retira o celular do bolso. Um, dois, vários clicks para o Orkut. Congelo a sua

Eduardo Sabino

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PESQUISA FAPESP 184 n junho DE 2011 n 95

imagem, aperto a tecla mute do mundo. Não é magra nem gorda para a idade, um corpo pré-adolescente programado para explodir. Há nele a fórmula para crescer e se expandir em todas as direções. As ancas serão moradas de celulite, a cintura se dilatará, as pelancas farão dos braços molas flexíveis. Amá-la será uma constante, mas em breve não a terei por inteiro em meus braços. Vanessa tem nos genes uma variante que estimula o acúmulo de colesterol nas células. A obesidade será inevitável, talvez o diabetes.

O caçula também se levanta. Vejo-o jogar as cascas da mexerica no lixo e atravessar o corredor, em velocidade, ao encontro do videogame. O menino não tem bom coração, apesar da pureza infantil. Síndrome de Brugada, como o avô. Grande chance de partir por volta dos quarenta, o coração disparado durante um sonho sereno. Davi e os leões no coliseu pulsante. Se ele não for vítima de outras estatísticas, vou-me antes.

Sofia herdou uma alteração genética da mãe e terá um câncer aos sessenta anos. Um dia a personalidade sensata e organizada vai contrastar com o crescimento desordenado das células. Também não a verei sucumbir.

“Meninos, esqueci de dizer, tem sorvete na geladeira!”Eles voltam correndo para abraçar a mãe, presas fáceis

das surpresas dela. Como Ícaro, sinto a responsabilidade de me aproximar

demais do sol, a cera se derretendo nas asas artificiais. Muito cedo abri mão de Deus. Troquei as cruzes pelas asas. Do-ravante sinto o peso divino como quem carrega o próprio corpo. O conhecimento do bem e do mal.

Há muitas nuances menos graves no caminho evolutivo da família. Não as investiguei a fundo. Quero retornar ao Éden. Estar nu e não me envergonhar.

Sofia carrega Davi no colo. Ele me olha, “papai está ca-lado hoje”, Vanessa coloca o pote de sorvete sobre a mesa. Desprendo-me da nuvem para ajudar a mãe a fazer cócegas no menino. E comer sorvete. Abraços, risos, cheiros e sabores contra o pó da existência.

A partir dos cinquenta anos, o meu universo se encolherá. As conexões entre os neurônios serão destruídas pelo mal de Alzheimer. Irei embora junto com as minhas memórias, o corpo ainda em movimento.

A descoberta é recente. Sou um intruso do futuro me relacionando com o presente. Recolho os instantes como um catador de latinhas. Coleciono cartões-postais diante da injeção letal.

Sofia continua a cantarolar. A delicadeza sonora não lembra em nada a rouquidão de Armstrong. “And I think to myself, what a wonderful world...”

Não darei tanta atenção às sombras sorrindo por detrás das coisas: no carro novo, na mexeriqueira do quintal, no semblante tranquilo de Sofia.

Davi e Vanessa se juntam contra mim, beijam-me o pescoço com as bocas lambuzadas. Entrego-me ao momento.

Sofia se conecta ao jornal do dia pelo dispositivo móvel. Quer ler para mim o horóscopo do meu signo. Ouço as dicas com atenção. Quando me dou conta, a nuvem sombria já se desfez. Por hoje chega de previsão do tempo.

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* Eduardo Sabino é escritor e jornalista, autor do livro Ideias noturnas: sobre a grandeza dos dias. Foi editor da revista lite-rária Caos e Letras e colabora regularmente com sites e revistas, como Balaio de Notícias e Observatório da Imprensa.