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Filomena Maria de Arruda Monteiro Helena Amaral da Fontoura

(Organizadoras)

PESQUISA, FORMAÇÃO E

DOCÊNCIAprocessos de aprendizagem e desenvolvimento profissional

docente em diálogo

Filomena Maria de Arruda Monteiro Helena Amaral da Fontoura

(Organizadoras)

PESQUISA, FORMAÇÃO E

DOCÊNCIAprocessos de aprendizagem e desenvolvimento profissional

docente em diálogo

Filomena Maria de Arruda Monteiro Helena Amaral da Fontoura

(Organizadoras)

Cuiabá, MT2017

PESQUISA, FORMAÇÃO E

DOCÊNCIAprocessos de aprendizagem e desenvolvimento profissional

docente em diálogo

Conselho Editorial Filomena Maria de Arruda Monteiro

Fábio MarianiHelena Amaral da Fontoura

Marlene GonçalvesRicardo Antonio Castaño Gaviria

Ficha Técnica Produção editorial Editora Sustentável Editor e designer gráfico Téo de Miranda, Editora Sustentável Consultoria de arte Eliana Martinez e Naine Terena Revisão textual Fabiula Bento Guth

Ficha catalográfica

Editora Sustentável www.editorasustentavel.com.br [email protected]: (65) 98159 9395

Copyright© Filomena Maria de Arruda Monteiro (Org.), Helena Amaral da Fontoura (Org.), Editora Sustentável, 2017.A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violação da Lei nº 9.610/98.A Editora Sustentável segue o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa em vigor no Brasil desde 2009. A aceitação das alterações textuais e de normalização bibliográfica sugeridas pelo revisor é uma decisão do autor/organizador.Os conteúdos dos artigos e as revisões dos textos são de inteira responsabilidade dos autores e coautores.

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Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária: Elizabete Luciano/CRB1-2103

M772p Monteiro, Filomena Maria de Arruda Pesquisa, formação e docência: processos de aprendizagem e desenvolvimento

profissional docente em diálogo. /Filomena Maria de Arruda Monteiro. (Org.) Cuiabá: Editora Sustentável, 2017.

287p. ISBN 978-85-67770-17-8

1.Apresentação. 2.De ensinantes a aprendizes: investigação narrativa nos anos

iniciais. 3.Desafios da pesquisa (auto)biografia na formação de professores. 4.Educação e contemporaneidade: uma reflexão antropológica e pedagógica. 5.”Proscripción curricular” del conflicto armado en libros de texto colombianos. 6.Narrando a luta da vida na educação: a utopia de viver. 7.História da educação profissional da Escola Técnica Federal de Mato Grosso. 8.Educação ambiental: da teoria à prática no contexto do IFMT, Campus Bela Vista. 9.Narrando a luta da vida na educação: utopia de viver. 10.Didática transdisciplinar: pesquisa e análise de possibilidades. 11.Tempo e temporalidade na formação do pedagogo: diálogo com Gaston Pineau. 12.Pesquisa sobre professor iniciante: algumas considerações. 13.Dilemas da profissão docente: narrativas de professores principiantes de Língua Portuguesa.

CDU: 371

Sumário

Apresentação .................................................................................... 7

De ensinantes a aprendizes: investigação narrativa nos anos iniciais ........................................ 15Filomena Maria de Arruda Monteiro

Desafios da pesquisa (auto)biográfica na formação de professores................................................................ 35Helena Amaral da Fontoura

Educação e contemporaneidade: uma reflexão antropológica e pedagógica ................................... 49Ricardo Antonio Castaño Gaviria

“Proscripción curricular” del conflicto armado en libros de texto colombianos .................................................................................... 63Edisson Cuervo Montoya

Narrando a luta da vida na educação: a utopia de viver ............. 87Carlos Alberto Caetano

Tempo e temporalidade na formação do pedagogo: diálogo com Gaston Pineau ......................................................... 111Dejacy de Arruda Abreu

Pesquisa sobre professor iniciante: algumas considerações ............................................................... 123Deusodete Rita da Silva Aimi

Dilemas da profissão docente: narrativas de professores principiantes de Língua Portuguesa ............................................ 135Edson Gomes Evangelista

Oficina de contação de histórias para professores dos anos iniciais ....................................................... 153Eliane das Neves Moura

Compondo sentidos para o “tornar-se” universitário em um curso de Direito: ressignificações entre o direito e o avesso .... 165Éverton Neves dos Santos

Aprendizagens da docência na formação inicial: os sentidos sobre o ser professor a partir da ideia do bom professor ........................................................... 183Fábio Mariani

História da educação profissional da Escola Técnica Federal de Mato Grosso ............................................................... 199Flavia Geane dos Santos

PIBID de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso: contribuições dos portfólios ......................................................... 211Lilian Auxiliadora Maciel Cardoso

Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso: narrativas de professores ............................................................. 229Lineuza Leite Moreira

Educação ambiental: da teoria à prática no contexto do IFMT, Campus Bela Vista .... 241Paulino Ferreira Filho

Didática transdisciplinar: pesquisa e análise de possibilidades ......................................... 255Rodolfo Carli de AlmeidaAna Paula Carli de Almeida

Inclusão escolar de crianças com necessidades educacionais especiais no 1º Ciclo do Ensino Fundamental: narrativas de professoras ............................................................. 267Sandra Pavoeiro Tavares Carvalho

Sobre os autores ........................................................................... 285

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Apresentação

Este livro foi organizado mediante um processo colaborativo firmado entre vários autores de diversas instituições de ensino brasileiras e estrangeiras. Tais pesquisadores apresentam aqui relatos de pesquisa e ensaios teóricos com o intuito de contribuir com as pesquisas circunscritas em torno da temática formação de professores, docência e currículo. Para tanto, se guiam por olhares plurais, buscando apontar novos caminhos de compreensão das contradições presentes no exercício do desenvolvimento profissional em diferentes níveis.

Além disso, a obra congrega resultados de pesquisas que integram o projeto Desenvolvimento Profissional da Docência nos anos iniciais: ressignificando aprendizagens, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), edital apoio a Projetos de Pesquisa/MCTI/CNPQ/Universal 14/2014. Traz, portanto, uma produção conjunta do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente - GEPForDoc vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT. Tais textos refletem as orientações do projeto, no sentido em que tomam como referência os princípios teórico-metodológicos da pesquisa em andamento e seus desdobramentos mais recentes.

O grupo, constituído desde 2004, desenvolve estudos e pesquisas relacionadas à formação de professores na concepção de desenvolvimento profissional para refletir sobre processos e contextos de desenvolvimento e aprendizagens na docência. Tais processos, individuais e/ou coletivos, integram uma construção contínua, complexa de sentidos e significados que se dá ao longo da trajetória profissional, estabelecendo relações entre as dimensões pessoal, profissional, organizacional e institucional, fases da carreira e os diferentes contextos em que ocorrem os processos formativos e as aprendizagens profissionais da docência.

Assim, por meio da aproximação e do diálogo com os contextos das escolas dos anos iniciais da educação básica, negociando contratos de confiança, propósitos, relacionamentos e colaboração, os integrantes do grupo passam, a partir da experiência refletida e da investigação narrativa, a recontextualizar o profissional docente, em um movimento permanente de indagação, problematização, experienciação e ressignificação do exercício docente. De acordo com Clandinin e Connelly (2011), ao dialogarmos com o contexto da prática pedagógica na diversidade de lugares e tempos em que a docência se realiza, buscamos aproximações com a pesquisa narrativa, enquanto método de investigação, denominada de Narrative inquiry.

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Neste contexto, as diferentes entradas, possibilitadas pelos subprojetos de Mestrado e Doutorado que integraram o projeto maior, apontam os dilemas experienciados em uma perspectiva mais ampla de fortalecimento das relações entre formação e investigação. Deste modo, as pesquisas já concluídas, e, algumas ainda em desenvolvimento, têm favorecido a interlocução com diferentes pesquisadores.

A obra traz ainda trabalhos de mestrandos em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro que estabeleceu um convênio com o Instituto Federal de Educação de Mato Grosso com vistas à capacitação de seus professores e funcionários, que vem sendo construído em uma frutífera parceria.

Salienta-se que, apesar de os enfoques serem diversificados, todos os textos visam a superação e consolidação dos debates que envolvem a formação de professores a partir do diálogo com pesquisadores de diferentes instituições, entrelaçando dados com nossas pesquisas. Tais articulações têm nos possibilitado ampliar o que vivenciamos no interior de nossas instituições, potencializando, por conseguinte, avanços no campo dos estudos citados com parcerias colaborativas por meio dos estágios de pós-doutoramento.

O artigo De ensinantes a aprendizes: investigação narrativa nos anos ini-ciais, de autoria de Filomena Maria de Arruda Monteiro, relata uma pesquisa em desenvolvimento vinculada a um projeto maior financiado pelo CNPq, in-titulado “Desenvolvimento Profissional da Docência nos anos iniciais: ressigni-ficando as aprendizagens”, o qual toma a indagação narrativa enquanto método de investigação. Assim, se pauta nas perquisições em torno da maneira segundo a qual os professores que atuam no primeiro ciclo significam e ressignificam o trabalho docente. Para tanto, observa-se como suas experiências vividas na do-cência são percebidas, narradas e de que modo explicam a relação destas com o processo de aprender a ensinar. Neste contexto, busca-se estabelecer um diálogo com diferentes processos de desenvolvimento profissional construído em dife-rentes contextos escolares, além de procurar entender como um grupo de pro-fessoras ressignifica teorias e práticas no entrelaçamento de emoções, conflitos, conhecimentos e aprendizagens, suscitados pela prática do exercício docente.

O artigo Desafios da pesquisa (auto)biográfica na formação de professores, de autoria de Helena Amaral da Fontoura, trata da pesquisa (auto)biográfica e apresenta quais são os desafios para sua efetiva implementação pelos formadores de professores, uma vez que constitui-se como um dos recursos a ser explorado em processos formativos que desenvolvemos. Ademais, revela algumas reflexões, principalmente, com base na experiência de atividades desempenhadas na Residência Pedagógica da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), que é um espaço de formação para os

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que procuram ressignificar suas práticas e se tornarem professoras e professores melhores e mais felizes com suas atividades na docência.

O artigo Educação e contemporaneidade: uma reflexão antropológica e pedagógica, por Ricardo Antonio Castaño Gaviria, apresenta uma reflexão crítica a respeito da educação na contemporaneidade. O autor enfatiza que pensar a Educação Superior na contemporaneidade significa lidar com novos desafios que ainda precisam ser identificados na complexidade social e cultural de hoje, pois há outros cenários de produção e diálogo do conhecimento pedagógico se configurando. Por isso, um pensamento contemporâneo como horizonte de possibilidades, nos leva ao território do questionamento do estabelecido, evidenciando, particularmente, para o Projeto de Universidade, bem como a necessidade de reforçar seus vínculos com a sociedade e com a história.

O artigo “Proscrición curricular” del conflicto armado en libros de textos colombianos, por Edisson Cuervo Montoya, aborda questões relacionadas à violência epistêmica em livros-texto produzidos na Colômbia. Lá, esta é uma ferramenta bastante usada nas escolas, trazendo a problemática de sua utilização relacionada ao currículo e às formas de implementação de discussão desse currículo. O autor estabelece uma relação com o problema do narcotráfico presente na sociedade colombiana, e faz um alerta acerca dos perigos dessas relações naturalizadas e das práticas invisibilizadas nos espaços educativos daquele país. Ademais, sinaliza para a importância de um currículo que dê conta da real situação social da Colômbia.

O artigo Narrando a luta da vida na Educação: a utopia de viver, de autoria de Carlos Alberto Caetano, tem como proposta refletir acerca da im-plantação do atendimento educacional para alunos migrantes na rede esta-dual de Mato Grosso. Para tanto, utilizou a pesquisa narrativa, tendo como centralidade as práticas docentes, gestão e formação de professores, por meio de conversas entre protagonistas do atendimento educacional dos migrantes haitianos em Cuiabá desde a chegada deles em grande número a partir de 2010, ano do terremoto no Haiti. Na conjuntura abordada, a temática docen-te é compreendida na perspectiva da justiça social e da multidiversidade que apontam para um campo da formação docente que apoia a diferença; pensar a formação e as práticas docentes na educação para migrantes haitianos como forma de entendermos a interculturalidade na formação narrativa dos docen-tes da educação migratória nos respaldará para estruturar o atendimento atual de mais de cinco mil haitianos escolarizáveis, que, atualmente, ainda esperam por oportunidades nas escolas da rede estadual e municipal, que ainda não contam com profissionais preparados para o atendimento.

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O artigo Tempo e temporalidade do pedagogo: diálogos com Gaston Pineau, de Dejacy de Arruda Abreu, refere-se à pesquisa de Doutorado em Educação em andamento pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Trata-se de um estudo que nasceu da evocação da memória tecida por uma narrativa que envolve o processo formativo do ser docente para além do tempo prescrito regulado, mas orientado a partir de várias temporalidades, concebendo a formação do pedagogo como um tempo intenso e permanente inserido nas complexidades dos contextos sociais. A pesquisa apoia-se em Pineau (2003; 1988) e pretende entender o movimento formativo do pedagogo, mostrando que não há uma indissociabilidade na relação teoria e a prática na dialética da cotidianidade.

Em Pesquisa sobre professor iniciante: algumas considerações Deusodete Rita da Silva Aimi traz uma análise de trabalhos disponíveis em dois repositórios: o site da Biblioteca Eletrônica Scielo e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), utilizando os seguintes filtros: professores iniciantes, formação de professores e aprendizagem profissional da docência. A pesquisa apontou a existência de 54 artigos envolvendo esta temática. Muitos deles discutem o Programa de Iniciação à Docência (PIBID), mas quando foram buscados artigos desvinculados deste programa, o número de publicações diminui consideravelmente. As teses e dissertações que abordam esse tema somam um total de 16 trabalhos, sendo dez dissertações e seis teses, cujos temas variam entre formação de professores e aprendizagem profissional da docência. A pesquisa realizada proporcionou o acesso a uma gama de saberes. Contudo, foram localizadas poucas informações a respeito dos professores que atuam em séries iniciais. Desse modo, foi possível concluir que ainda há muito a ser estudado a respeito dos desafios vividos pelos professores iniciantes egressos do curso de Pedagogia.

O artigo Dilemas da profissão docente: narrativas de professoras principiantes de Língua Portuguesa, por Edson Gomes Evangelista, expõe um excerto de sua pesquisa de Doutorado, o qual apresenta interpretações de tessituras corporificadas em trajetórias de professores principiantes que atuam com Língua Portuguesa em escolas da Rede Estadual, localizadas em Várzea Grande, Mato Grosso. Nos meandros das paisagens em que os textos advindos de diálogos vivos – Gadamer (1997) – e autênticas conversações – Maturana (1997) – vêm sendo dotados de sentidos entretecidos nos encontros entre pesquisador e participantes. A Pesquisa Narrativa, em perspectivas próximas ao modo como a compreendem Clandinin e Connelly (2011), tem fundamentado o desenvolvimento da pesquisa. Do entrelaçamento de

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diversas narrativas, emergem novas perspectivas no que concerne ao modo como lidam com os desafios que enfrentam cotidianamente. A pesquisa apresenta contributos ao corroborar com a compreensão de que os professores principiantes vivenciam processos complexos, porquanto necessitam da elaboração de políticas públicas capazes de fortalecer o desenvolvimento profissional docente desde o início na carreira.

O artigo Oficina de contação de histórias para professores dos anos iniciais, de Eliane das Neves Moura, surge de uma oficina de contação de histórias realizada com professores dos anos iniciais de três escolas da Rede Municipal de Ensino de Cuiabá, Mato Grosso, por ocasião do Encontro do Grupo de Pesquisa em Políticas e Formação Docente da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Assim, compreende-se que as narrativas dos professores a respeito das experiências vivenciadas permitem que eles pensem acerca de sua prática e trajetória de formação, desvelando sua própria história, e, por conseguinte, dando sentido às suas experiências pessoais e profissionais. Neste contexto, as narrativas dos professores demonstraram que eles estavam motivados para esse tipo de formação e abertos para novas práticas de leitura em sala de aula, utilizando diferentes recursos didáticos.

Em Compondo sentidos para o “tornar-se” universitário em um curso de Direito: ressignificações entre o direito e o avesso, Éverton Neves dos Santos revela um recorte dos dados apresentados na dissertação “Experiências Pessoais e Formativas de Jovens Universitários no Curso de Direito: Vademecum, Vem Comigo”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. O trabalho buscou compreender como as narrativas ajudam a entender as ressignificações a partir das experiências na universidade, aqui entendida como tempo-espaço social para constituição da identidade. Os resultados demonstram que os jovens têm percursos de vida não-lineares. Nesta conjuntura, há que se considerar que as dificuldades da vida, o papel da família e outros grupos de socialização, as inspirações e os afetos, o status, o simbolismo e os desejos compõem vários sentidos que implicam na escolha do curso. E, para além disso, afetam a maneira segundo a qual se tornam universitários, bem como interferem nas ressignificações das experiências nos primeiros semestres do curso, que se revela como um momento de novas tensões, reflexões e possibilidades.

O artigo Aprendizagens da docência na formação inicial: os sentidos sobre o ser professor a partir da ideia do bom professor, de autoria de Fábio Mariani, apresenta parte de uma pesquisa de Doutorado que se propôs a investigar e compreender os processos formativos de licenciandos em um curso

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de Física. O pesquisador parte do pressuposto de que aprender a ensinar e a se tornar professor precisa ser compreendido não como um evento configurado e concebido dentro de um determinado tempo e espaço, mas como um processo longo, contínuo, complexo e multidimensional. Por isso, tal processo se estende por todo o percurso formativo do professor e está imerso em seu contínuo caminho de desenvolvimento profissional. A partir de então, são propostas as discussões referentes às aprendizagens docentes que se evidenciaram nas narrativas de quatro licenciandos a começar dos sentidos que foram construindo acerca da ideia de bom professor. O domínio do conteúdo específico, bem como de outros conhecimentos necessários à docência; a necessidade de se pensar didaticamente os conhecimentos científicos de modo que possam ser transformados em conhecimentos ensináveis; o papel do professor em mediar o processo de aprendizagem; os tempos da aula e o domínio de sala; a busca por formação ao longo da vida profissional são aprendizagens que demarcam o campo dos sentidos construídos e narrados pelos licenciandos com início nas experiências vividas durante a formação inicial.

O artigo História da educação profissional da Escola Técnica Federal de Mato Grosso, por Flavia Geane dos Santos, exibe resultados parciais de uma pesquisa de Mestrado em andamento, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e busca fazer a historicidade da Escola Técnica Federal de Mato Grosso (ETFMT), e contribuir para o entendimento a respeito dos processos de constituição e desenvolvimento da escola, no período de 1968 a 2002. Este recorte temporal, que compreende 35 anos, corresponde ao período em que a escola vigorou com essa denominação. As investigações partiram da perspectiva histórica, especificamente, da Educação Profissional, no contexto de Mato Grosso. Os primeiros resultados apontam que a elevação da escola é resultado de ações para reestruturar as escolas da rede, devido ao momento político e econômico que elegeu as Escolas Técnicas Federais como caminho para o desenvolvimento do país, consolidados por meio de decretos do Estado Ditatorial para guiar a política educacional em favor das metas de segurança e de desenvolvimento que se apresentavam mediante o controle, a repressão e a promoção social.

Em PIBID de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT): contribuições dos portfólios, Lilian Auxiliadora Maciel Cardoso mostra um recorte da tese de Doutorado “Os processos formativos no Programa de Iniciação à Docência da UFMT: a experiência de um grupo de Licenciandas em Pedagogia”, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, que investigou a problemática de como

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o processo formativo é significado/ressignificado por um grupo de licenciandas vinculadas ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da UFMT. O estudo desenvolvido aproxima-se da abordagem metodológica da pesquisa narrativa de Connelly e Clandinin (2011), em que a narrativa é instrumento e método, e contou com a colaboração de nove estudantes bolsistas da área de Pedagogia. Neste espaço, foi retomada uma das estratégias formativas utilizadas na iniciação do grupo para destacar algumas de suas contribuições e significações construídas no processo formativo, evidenciando a produção de portfólio como possibilidade de refletir/avaliar as próprias experiências e de dar visibilidade a processos específicos e coletivos vividos.

O artigo Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso: narrativas de professores, apresentado por Lineuza Leite Moreira, aborda os processos multiculturais narrados por professores de uma escola de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso, e advém da pesquisa de Doutorado que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. O objetivo do trabalho consiste em problematizar as relações multiculturais narradas pelos quatro professores participantes da pesquisa. Eles foram convidados a realizar um relato escrito no qual deveriam narrar suas impressões e reflexões a respeito da diversidade cultural e de sua prática pedagógica. As narrativas dos professores revelaram como foram construindo sentidos acerca da experiência formativa na qual estão envolvidos, assim como suas percepções em relação ao conceito de diversidade cultural e das experiências vividas no ambiente escolar.

Em Educação ambiental: da teoria à prática no contexto do IFMT, Campus Bela Vista, Paulino Ferreira Filho teve por objetivo levantar informações relacionadas à forma como a Educação Ambiental é contemplada no Curso Técnico de Nível Médio Integrado em Meio Ambiente, IFMT, Campus Bela Vista, mediante a análise da percepção dos professores a respeito da sua formação, suas práticas pedagógicas e os reflexos dessas práticas na formação dos alunos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa em que os dados serão analisados pelo método de tematização, pois acredita-se que esta forma se constitui como uma oportunidade de o professor ter espaço para falar das suas dificuldades/facilidades em trabalhar a Educação Ambiental com seus alunos, assim como a oportunidade de entender a formação inicial e continuada destes sujeitos em se tratando de Educação Ambiental.

O artigo Didática transdisciplinar, por Rodolfo Carli de Almeida e Ana Paula Carli de Almeida, discute princípios da transdisciplinaridade em contextos de espaços educativos, a partir de uma dissertação de Mestrado

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concluída na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, que buscou compreender a fragmentação das ciências e intentou encontrar formas de mudar o fazer pedagógico em um projeto de meio ambiente. Os autores apresentam questões para se repensar a atividade docente e buscar alternativas para que uma formação didática transdisciplinar possa acontecer a partir de uma universidade aberta a inovações, ou mesmo na formação continuada baseada nos preceitos da coformação, ecoformação e autoformação. Assim, apresenta-se a partir da pesquisa realizada, um olhar transformador para uma educação que enxerga na ação docente a preocupação com o futuro da humanidade.

O artigo Inclusão escolar de crianças com Necessidades Educacionais Especiais no 1º Ciclo do Ensino Fundamental: narrativas de professoras, de autoria de Sandra Pavoeiro Tavares Carvalho, busca compreender como professoras do 1º Ciclo do Ensino Fundamental estão lidando com as crianças que apresentam Necessidades Educacionais Especiais (NEE) em suas salas de aula. E, a partir dessa experiência, investiga como estão significando/ressignificando a docência. Respaldada em reflexões relacionadas à inclusão escolar e desenvolvimento profissional de professores, a pesquisa foi desenvolvida em uma Escola Municipal de Educação Básica de Cuiabá, Mato Grosso, que atende crianças de seis a nove anos de idade. O estudo tem apontado que a inclusão escolar se constitui como um desafio, e que é preciso refletir acerca de estratégias que favoreçam a aprendizagem da criança com NEE a partir das suas necessidades, das necessidades das professoras e da unidade escolar, favorecendo, por consequência, o engajamento em um processo de formação contínua na perspectiva do desenvolvimento profissional docente.

Diante deste conjunto de pesquisas realizadas, nos sentimos orgulhosos pelo avanço alcançado ao longo deste período de 13 anos de estudos entrelaçados às vivências e experiências de vida e de desenvolvimento profissional docente.

Filomena Maria de Arruda Monteiro

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Filomena Maria de Arruda Monteiro

Eu queria pegar na semente da palavra...

(Manoel de Barros, 2010)

Introdução

Este artigo traz narrativas de professoras a partir de alguns resultados de pesquisa vinculada a um projeto maior financiado pelo CNPq1, intitulado “Desenvolvimento Profissional da Docência nos anos iniciais: ressignificando as aprendizagens”- desenvolvido sob minha coordenação pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente/GEPForDoc, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Os estudos e pesquisas (MONTEIRO, 2013; MONTEIRO, 2014a; 2014b; MONTEIRO et al., 2014; MONTEIRO, 2015; 2016) vêm se orientando na perspectiva do que temos compreendido como desenvolvimento profissional docente e aprendizagens na docência (GARCIA, 1995; 1999; MIZUKAMI et al., 2006; DAY, 2001; VAILLANT; GARCIA, 2012), buscando aproximações com a indagação narrativa enquanto método de investigação, denominada de Narrative Inquiry (CLANDININ; CONNELLY, 2011). Para tais autores, a ênfase não está na utilização de dados narrativos, e sim, no processo de indagação narrativa, compreendendo que este não se dissocia daquilo que pesquisamos, ou seja, todo o processo de indagação narrativa é considerado uma experiência relacional.

Nesse sentido, a questão relacional, tanto na pesquisa narrativa, quanto no entendimento da profissão docente, tornou-se referência aos integrantes do grupo de pesquisa aqui em diálogo. Isso significa que a compreensão da profissão docente como sendo uma profissão predominantemente caracterizada pela interação humana, se constitui na relação com o outro, aprende-se com o outro e constrói-se com o outro. Neste contexto, percebe-se que no processo colaborativo da investigação, pesquisador e participante vão construindo as

1 Projeto de Pesquisa Edital Universal/2014 CNPq.

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histórias de modo recursivo entre estar no campo, compor textos de campo, elaborar e partilhar os textos e compor os textos de investigação.

De acordo com Connelly e Clandinin (2006, p. 480), “pesquisadores estão sempre em um relacionamento de pesquisa com as vidas dos parti-cipantes. Não podemos nos subtrair desse relacionamento”. E os autores acrescentam que:

[...] as pessoas vivem histórias e no contar dessas histórias se reafirmam. Modificam-se e criam novas histórias. As histórias vividas e contadas educam a nós mesmos e aos outros, incluindo os jovens e os recém-pesquisadores em suas comunidades. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 27)

Desse modo, na compreensão dos autores,

As histórias que trazemos como pesquisadores também estão marcadas pelas instituições onde trabalhamos, pelas narrativas construídas no contexto social do qual fazemos parte e pela paisagem na qual vivemos. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 100)

Ao assumir essa perspectiva teórico-metodológica, nos ancoramos também em Carr e Kemmis (1986, apud DINIZ, 2014, p. 39), que ressalta que tal investigação não significa apenas “investigar atitude sobre o ensino e o currículo”, mas envolve um domínio específico de ação estratégica para uma investigação mais sistemática e contínua. E acrescenta que, ao convertermos experiências em discursos, criamos a possibilidade de fazermos análises críticas localizadas, afetando a vida de todos os envolvidos no processo, ao mesmo tempo em que projetamos uma visão de futuro que desejamos construir com consequências sociais e políticas que direcionam a prática educacional.

Nesta conjuntura, a imersão na escola e o estabelecimento de diálogo com as experiências, nas quais fomos aprendendo a trabalhar colaborativamente em um contexto marcado por tensões, desafios e possibilidades, nos fez reconhecer que tal opção metodológica colocava em confronto algumas de nossas concepções, pois a relação dialética revelada pela pesquisa vai além das experiências individual e coletiva, uma vez que termina por se constituir a partir de características mais amplas de distintos contextos. Em vista disso, os significados da experiência produzida na pesquisa nos levaram a problematizar o que Ferrarotti (2014, p. 66), chama de uma renovação metodológica.

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[...] essa relação de interação permite acesso a estratos sociais e estruturas de comportamento que, por seu caráter marginal e sua condição de exclusão social, fogem irremediavelmente aos dados estabelecidos e formalmente elaborados, bem como as imagens oficiais que a sociedade oferece a si mesma.

Desse modo, quando o referido focaliza as vidas que emergem das narrativas, marcadas pela experiência pelas quais passam os indivíduos, nos possibilita compreender outras dimensões da pesquisa, mais especificamente, “do poder pela partilha de saberes”, que só é possível ao se propor o respeito pela história do outro. Assim, assumimos que compreender a experiência de outrem implica em se colocar ao lado desta pessoa, dialogando com ela, para que, por meio da indagação narrativa, seja possível dar a ela o lugar apropriado em um contexto de ressignificações. Portanto, institui-se o que Ferrarotti (1990, p. 19) nos diz:

Dar a palavra significa estabelecer um vínculo com a menção do passado, com a experiência vivida, não se quer dar uma mera notificação no mero fazer saber. Significa que quem escuta se faz depositário de uma história e, por conseguinte, esta lhe seguirá incumbindo, importando mesmo na ausência ou no caso de desaparecimento do protagonista do relato.

Assim, a partir das indagações em torno de como os professores que atuam no primeiro ciclo significam e ressignificam o trabalho docente, e como suas experiências vividas na docência são percebidas, narradas e como eles explicam a relação destas vivências com o processo de aprender a ensinar, buscamos estudar o desenvolvimento profissional docente, tomando a experiência/sentido, contando e/ou vivendo histórias narrativamente, enfatizando, principalmente, sua dimensão temporal e relacional, em prol de práticas de formação e investigação socialmente mais justas e de transformações educacionais significativas (ZEICHNER, 2009). Conforme Clandinin e Connelly (2011), a indagação narrativa nasce da experiência e retorna a ela em uma evolução cíclica do viver, contar, recontar e reviver.

Embora esse processo revele tamanha complexidade e multidimensiona-lidade, é o processo pelo qual os professores revivem, renovam e ampliam seu compromisso, refletindo sobre os propósitos éticos e morais do ensino, considerando que as consequências desses compromissos se alimentam das experiências (DAY, 2001, 2005; CONTRERAS, 2002; ZEICHNER, 2008).Isso significa também levar em conta que há a necessidade individual/coletiva

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e organizacional que pressupõe comprometer-se com uma aprendizagem con-tínua e “com o desejo de marcar a vida dos alunos” (DAY, 2001 p. 53).

Desse modo, o desenvolvimento profissional está intimamente entrelaçado ao movimento de significações e ressignificações atribuídos à dinâmica profissional em um contexto situado. Ou seja, o professor necessita explicar a si mesmo como constrói sua prática profissional para que possa entender as aprendizagens profissionais da docência a partir de múltiplos contextos e diversas experiências vivenciadas ao longo dos percursos pessoais profissionais e contextuais.

Diante das reflexões apresentadas, passamos a olhar a docência como experiência-saber dotada de sentidos e significados, sendo um lugar de produção de subjetividades e intersubjetividades, circunscrito em um movimento de ressignificação, ancorado pelos conhecimentos/saberes problematizados no entrecruzamento de diferentes culturas em um contexto situado – a escola, que é um lugar privilegiado de aprendizagem, de desenvolvimento profissional da docência, e, mais especificamente, de construções de saberes.

A seguir, expomos os caminhos trilhados na pesquisa narrativa na tentativa de compartilharmos as experiências vividas e narradas, considerando como Clandinin (2010), que a experiência é a própria vida.

Contextualização da pesquisa

A pesquisa coordenada por Monteiro (2014)2 terá duração de quatro anos e foi iniciada no primeiro semestre de 2015, tendo identificado junto à Secretaria Municipal de Educação de Cuiabá – SME, em seu levantamento inicial, a existência de 22 escolas que atendiam ao 1º Ciclo – anos iniciais. Nessas 22 escolas, foram identificados 298 docentes. Na primeira etapa da pesquisa realizamos a caracterização do quadro docente das escolas municipais que atendem ao 1º Ciclo do Ensino Fundamental em Cuiabá, Mato Grosso, com vistas a compreender quem são os profissionais que atuam nesse nível de ensino, buscando informações a respeito de sua formação inicial, vínculo empregatício e tempo de experiência na docência. Nessas escolas, para a caracterização docente, foi realizado o levantamento de dados iniciais fornecidos pela gestão escolar e pelos próprios professores. Tais informações foram registradas em uma ficha criada pelo grupo de pesquisa.

2 Projeto de Pesquisa Edital Universal/2014 CNPq, em desenvolvimento nas unidades escolares no ano de 2015.

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No que se refere ao levantamento inicial a respeito da formação dos professores que atuam no 1º Ciclo, identificamos que 80% são graduados em Pedagogia (Figura 1), o que mostra o atendimento das diretrizes oficiais em relação aos docentes dos anos iniciais do 1º Ciclo do Ensino Fundamental. Porém, 60% desses professores foram formados em instituições de ensino superior particulares, conforme constam nos registros dos diplomas.

Figura 1 - Percentual de docentes em relação ao curso de graduação em nível superior

Fonte: Dados organizados pelos autores (2015)

No que tange à formação continuada, observamos que 71% dos professores realizaram curso de Pós-Graduação lato-sensu (Figura 2). Segundo Day (2005), os professores são sujeitos ativos e precisam estar preparados para cumprir os fins edu-cativos, devendo demonstrar compromisso e entusiasmo frente à aprendizagem con-tínua. Os professores participantes da pesquisa, ao buscarem conhecimentos e cursos de Pós-Graduação para subsidiar a ação docente, vão ao encontro dessa perspectiva. Pacheco e Flores (1999), por sua vez, apontam para a necessidade de o processo de inserção profissional centrar no desenvolvimento da construção das identidades do-centes por meio de uma articulação entre biografia pessoal, prática reflexiva, apoio dos pares e conscientização crescente do contínuo aprimoramento profissional.

Nóvoa (1992; 1995) enfatiza que o desenvolvimento da identidade profissional não é um processo linear, e sim um lugar de lutas e de conflitos, e também de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. É nesse

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processo de desenvolvimento do sentimento de pertença e da construção da identidade, no qual cada um se apropria do sentido da sua história pessoal/profissional, reconstruindo identidades para assimilar mudanças, novas perspectivas e inovações.

Figura 2 - Percentual de docentes em relação a realização de curso de Pós-Graduação lato-sensu e stricto-sensu

Fonte: Dados organizados pelos autores (2015)

Em relação ao vínculo empregatício, 53% são efetivos e 43% são contra-tados temporariamente (Figura 3). Este alto quantitativo de professores tem-porários demonstra a carência de concursos para efetivação do quadro docente de professores da rede municipal de ensino, além de revelar uma política de desvalorização desses professores dos anos iniciais, ocasionando, por conse-guinte, a rotatividade dos professores no Ensino Fundamental. No entanto, é necessário ressaltar que a Secretaria Municipal de Educação realizou concurso público para professores no ano de 2015, conforme edital n° 01 e 02, de 30 de setembro de 2015,3 ocorrência posterior ao levantamento realizado por este grupo de pesquisa.

3 Disponível em: <http://www.cuiaba.mt.gov.br/concursos/concurso-educacao>. Acesso em: 02 out. 2015.

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Figura 3 - Percentual de docentes em relação ao vínculo empregatício

Fonte: Dados organizados pelos autores (2015)

Já no que se refere ao tempo de docência, os dados gerais indicam que a maior parte dos docentes que está atuando nos anos iniciais, e no tocante ao tempo de experiência na docência, é considerada experiente, totalizando 74%, pois apresentam período superior a cinco anos de docência (Figura 4). Mesmo em se tratando dos profissionais contratados, a maioria destes possui tempo de experiência em sala de aula. Para Day (2001, p. 16), “os professores se constituem no maior trunfo da escola”, sendo que são sujeitos ativos que com seu potencial de desenvolvimento, aprendizado e participação na tomada de decisões coletivas, se constituem como peças-chave para um ensino de qualidade. Vaillant e Garcia (2012), citando Ávalo (2000), ressaltam:

Junto ao poder epistemológico dado pelo fortalecimen-to de seu conhecimento, ser profissional significa poder decidir e influir na mudança educacional, quer dizer, contar com poder público. O desenvolvimento profis-sional envolve, então, a oportunidade para fortalecer as condições que permitem o exercício de poder profis-sional: o que se denomina em inglês de empowerment. (VAILLANT; GARCIA, 2012, p. 170)

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Figura 4 - Percentual de docentes em relação ao tempo de experiência

Fonte: Dados organizados pelos autores (2015)

No tópico a seguir apresentaremos como compomos os textos de campo do estudo de forma narrativa, procurando entrelaçar contextos, tempos, aprendizagens, experiências, significados pelas narrativas produzidas nos encontros com os professores durante o ano de 2015. Como nos alertam Clandinin e Connelly (2011, p. 128), compor textos de campo é estar atento para as coisas que os participantes fazem e dizem como parte de sua experiência, mantendo registros ligados à forma como vivenciam a experiência de estar na pesquisa, pois todos que participam desse processo têm sentimentos e pensamentos a respeito da pesquisa.

Na segunda etapa do estudo foram escolhidas três escolas municipais que possuíam apenas o 1º Ciclo, atendendo a alunos na faixa etária de 6 a 9 anos para a produção dos vários textos de campo narrativos. Em relação às três escolas pesquisadas, as tabelas expostas a seguir possibilitam visualizar questões institucionais, organizacionais e profissionais das unidades escolares em questão.

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Tabela 1 - Dados gerais das unidades pesquisadas

Escolas Regional Ano de Criação

Nº de Turmas

Nº de Alunos

Nº de Alunos com NEE

Nº de professores

A Oeste 1986 18 439 07 18B Sul 1987 24 633 10 22C Sul 2008 16 420 02 17Total 58 1492 19 57

Fonte: Dados organizados pelos autores, com base no levantamento feito na escola

Tabela 2 - Distribuição dos professores por escolas

Escolas Total de Professores

Nº de Professores Principiantes

Nº de Professores Experientes

A 18 05 13B 22 11 11C 17 08 09Total 57 24 33

Fonte: Dados organizados pelos autores, com base no levantamento feito na escola

De acordo com a Tabela 1, verificamos que duas escolas municipais foram criadas há mais de 20 anos e uma delas há apenas cinco anos. Estas duas unidades escolares estão localizadas em duas regionais do município de Cuiabá, e, juntas, atendem a 1492 crianças matriculadas, distribuídas em 58 turmas. Tal distribuição aponta para uma composição média de 25,72 alunos por turma, o que atende parcialmente os parâmetros estabelecidos no anexo I da Instrução Normativa nº 001/2013/SME/CUIABÁ/MT, que recomenda o número máximo de 25 alunos por turma do 1º Ciclo. No entanto, as diretrizes que tratam da inclusão preveem a redução desse número para, no máximo, 20 estudantes, no caso de a turma contar com criança que apresenta deficiência ou transtorno global de desenvolvimento, o que nem sempre se cumpre. Frente ao fato de que a Constituição Federal de 1988, a LDB 9394/96 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 asseguram a educação como direito público subjetivo, muitas vezes, as instituições de ensino sofrem injunções do Ministério Público para que este direito seja garantido, mesmo que em detrimento das condições organizacional e institucional apresentadas pela escola.

Neste contexto, verificamos que nas escolas pesquisadas há a presença de 19 crianças com Necessidades Especiais (NEE), indicando que estas unidades

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escolares trabalham na perspectiva da educação inclusiva, e, portanto, buscam a efetivação do direito à educação para todos. Os estudantes com NEE apresentam diagnósticos variados: deficiência física, deficiência mental, deficiência visual, deficiência múltipla, Síndrome de Rett, autismo associado à audição reduzida, autismo, hiperatividade, problema renal e também problema motor. Todas elas recebem atendimento individualizado efetuado por um Auxiliar do Desenvolvimento Infantil (ADI), cuja formação mínima requerida é o Ensino Médio completo. Estes profissionais são contratados para atuar em sala de aula juntamente com o professor responsável pela turma.

Quando o contexto escolar passa a buscar a efetivação das políticas públicas e atende populações diferenciadas, se constitui um fator muito importante, visto que impacta significativamente a prática docente.

A partir da Tabela 2, observamos que apenas a escola A apresenta um número elevado de professores experientes, e que as demais (B e C) possuem um corpo docente dividido entre professores principiantes e professores experientes.

Dada a extensão do estudo, as análises narrativas realizadas consideraram cada escola como estudos de caso com suas situações particulares, compostos por um conjunto de textos de campos com descrições dos contextos, acontecimentos, eventos e pelas narrativas dos professores em diferentes momentos, produzindo a análise “historiada”. Ou seja, o encontro da narrativa partilhada e ressignificada do participante e do investigante (CLANDININ; CONNELLY, 2011).

Assim sendo, os textos narrativos construídos pelos participantes da pesquisa visam contribuir na compreensão dos contextos e lugares onde estes se inserem e nos quais desenvolvem e constroem seus conhecimentos em ação. É necessário esclarecer que as narrativas orais e escritas apresentadas neste estudo são resultado de registros feitos em encontros de formação nas escolas, denominados Roda de Conversa4 e nos encontros da pesquisa (gravados em vídeos e transcritos posteriormente), em que propusemos aos professores que compartilhassem reflexões relacionadas às experiências e aprendizagens vividas com as turmas em que estavam atuando.

4 Constitui-se em momento para estudo coletivo previsto no calendário escolar, em consonância com a política da Secretaria Municipal de Educação/SME, visando o fortalecimento da consciência coletiva dos profissionais, o fortalecimento da autonomia, da identidade profissional, bem como o desenvolvimento de conhecimentos de saberes essenciais ao exercício da prática educativa (CUIABÁ, 2008, p. 22).

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Diálogos historiados e compartilhados

Ao se ponderar a compreensão segundo a qual a indagação narrativa se constitui como um ciclo que envolve contar, viver, recontar e reviver de maneira que possamos significar e ressignificar nossas experiências nessa relação, necessitamos compor relatos que, ao serem problematizados, apontem outros sentidos e significados. Apresentamos, neste artigo, os relatos de algumas professoras de duas escolas pesquisadas, em que propomos aos participantes, em um dos encontros da pesquisa, que compartilhassem com o grupo suas experiências vividas no exercício da docência, de modo que todos pudessem estar implicados com o processo de reelaborar aquela experiência narrativa, “viver junto a” (CLANDININ; CONNELLY, 2011).

O esforço para tal empreendimento pressupõe uma experiência relacional diferenciada na composição das narrativas, criando e recriando suas histórias, expectativas e significados que cada participante vai produzindo nas vivências, ampliando, por consequência, as possibilidades na investigação.

Neste contexto, é necessário sublinhar que as professoras mencionadas neste estudo, como já apontamos anteriormente, encontram-se em diferentes etapas de desenvolvimento profissional e carregam consigo experiências diversas no exercício da docência, tanto em relação ao tempo, quanto ao nível de ensino em que já atuaram, embora, atualmente, todas se encontrem em exercício no 1º Ciclo nas escolas do município de Cuiabá. Desse modo, as professoras estão imersas em contextos distintos, e, em decorrência disso, vivem particularidades de suas histórias profissionais e institucionais, e, assim, constroem sentidos próprios, ao mesmo tempo em que expressam algumas atitudes socialmente compartilhadas.

Para Galvão (2005, p. 343), a narrativa constitui-se como um processo de interação com o outro, potencializando nossa compreensão a respeito de “um maior conhecimento de si próprio, pela reflexão”, assim como nos “obriga a equacionar aprendizagens, a reconhecer limites pessoais e a redefinir modos de agir”.

Deste ponto em diante, iremos socializar alguns fragmentos desse processo, trazendo à cena algumas narrativas dos processos investigativos vividos por nós que revelaram relações, aprendizagens e situações como parte desse processo formativo/investigativo, em um movimento de sentidos diversos, que vão nutrindo nossas significações de forma mais ampla, fazendo-nos ficar atravessados por aquilo que investigamos.

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Tecendo algumas significações

As narrativas das professoras apontam situações, pessoas, acontecimentos e experiências vividas em um contexto específico do 1º Ciclo. Ao relatarem as aprendizagens e os conhecimentos produzidos nas trocas de experiências, suas narrativas tornam-se importante estratégia de construção e socialização dos saberes valorizados, o que nos permitiu compreender como são traçadas as ações para troca de experiências ligadas às atividades que visam garantir um ensino com mais qualidade. Assim, percebeu-se que os sentidos construídos na experiência como lugar de criação do possível, significado a partir das interações estabelecidas com toda comunidade escolar e entre as tensões e os desafios enfrentados no contexto específico do trabalho com projetos, mostraram que não é fácil tomar decisões, ao mesmo tempo em que vão ampliando, negociando e ressignificando esse lugar no exercício da docência. Tais relatos refletem e expressam como vão se construindo interlocuções nas experiências vivenciadas, revelando a relação com o conhecimento firmada entre os professores e com os alunos e também as relações estabelecidas por meio de encontros e desencontros.

Atualmente trabalho com duas turmas de 3º ano e vejo como ponto positivo ter acompanhado essa turma desde 2014 quando começamos no 1º ano. Sempre fui contra esse negócio de acompanhar turmas. (Professora Cristiane)

Quando assumi a turma me deparei com algumas situações desafiadoras, pois na sala há alunos que estão com o desenvolvimento bem adiantado, enquanto um número significativo de alunos ainda requer atenção maior em todos os sentidos da aprendizagem. Então me questiono todo dia sobre qual seria a melhor forma de lidar com isso [...]. (Professora Rosângela)

O processo de ensino aprendizado não é fácil [...] Estou trabalhando com o 1º ano. Um desafio após mais de cinco anos sem atuar. Estou reinventando, procurando coisas diferentes. Em sala são 28 alunos Estrutura física precária, mas não me falta vontade em ensinar. (Professora Paula)

Porque até alguma coisa que a gente está fazendo lá no 1º ano pode ajudar muito as professoras que estão no 2º ano, ou seja, porque tem alguns alunos que ainda não avançaram, têm algum tipo de dificuldade, então precisam desse avanço. E, às vezes, alguma coisa que o 1º ano está

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propondo serve bem certinho para esses alunos do 2º ano. Então, esse meio de comunicação que a gente fez na escola, entre e-mail e whats [...]. E a própria coordenação, está fazendo essa intervenção, ‘Olha Dilce a professora Ilza fez isso, isso aqui [...]’ Que é essa troca. (Professora Dilce)

Então, tem um grupo que fica para todos os funcionários e um grupo que fica para os professores fazerem essa troca de experiência. Com isso, com essa troca de experiência, vai melhorando, eu vou cobrando do outro professor: ‘professora, vamos fazer outra coisa porque eu acho que nessa parte a gente estagnou, vamos melhorar!’ Trabalho como um todo, então, por exemplo, o trabalho com o 2º ano é um planejamento para o 2º ano matutino e vespertino. Porém, nós temos o projeto, e o projeto não é para o matutino e vespertino, é para cada sala. Aquela sala de manhã e tarde é um projeto. Aquela outra sala de manhã e de tarde é outro projeto. Então elas têm que fazer essa troca de experiência. O projeto em si foi difícil de finalizar, porque um é da manhã e o outro é da tarde. Então tem essa dificuldade. Elas têm que trocar ideias à noite, finais de semana […]. (Professora Maria)

Também só colocar aqui [...] Essa minha primeira experiência [...]O professor tem que ter essa oportunidade de chegar. Porque tudo tem que ter um começo e então tem o professor novato. Então quem já está há mais tempo é [...] Acolhe aquele professor, né? Acolhe no local, olha aqui funciona assim e tal [...]. (Professora Ane)

O que a gente tem visto que na escola é assim, os 3º anos, fazem um projeto só de aula da semana, e esse projeto a gente troca. Então nós somos quatro. Essa semana eu faço. Na semana seguinte faz a outra. Na semana seguinte faz a outra, e a gente troca, faz essa troca pra ter mais tempo na hora de dar, pra fazer uma atividade legal e tem dado resultado lógico, a nossa coordenadora [...]. (Professora Ilza)

Além das aprendizagens, as narrativas das professoras envolvidas nesta pesquisa revelam também as contradições presentes no exercício da docência, desvelando os contextos em que atuam, marcados para além de suas práticas, por pessoas, lugares, tempos e sentimentos de vida singular-plural (FERRAROTTI, 2014). Nesta conjuntura, são enfatizadas as condições precárias do trabalho por um grupo de uma das escolas, acrescentando que isso dificulta pensar esse espaço

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como de reflexão e produção de conhecimentos. As situações de dificuldades, muito embora perturbadoras do fazer profissional, tornaram-se, para algumas, um desafio, conduzindo à problematização e à tentativa de resolução dos problemas, passando a ser potencializadoras do desenvolvimento profissional.

Já outro grupo de docentes que vivencia um trabalho cooperativo em sua escola, reforça a possibilidade da escola enquanto espaço relacional e da necessidade de se cultivar o diálogo e o apoio de um professor mais experiente, evidenciando-se, assim, a importância de se institucionalizar a troca de experiências no processo de aprendizagens da docência.

Aprendizagens partilhadas e ressignificadas por Olga e Celly

As narrativas da professora iniciante Olga refletem os sentidos construídos a partir das relações estabelecidas entre as tensões e os desafios enfrentados no contexto específico de inserção profissional.

Eu passei no concurso e assumi em 2011. Porque o que eu ouvia na rede é que as pessoas se fecham e não sei nem por que direito. Eu não sei explicar, mas, elas se fecham né, minha sala, meus alunos, minhas lembrancinhas [...] num individualismo muito grande. Então, a gente soube articular isso aqui dentro da escola e a coordenadora também conseguiu fazer essa articulação com os professores que estavam aqui, entendeu? Com os novos e com aqueles que tinham uma experiência, então deu certo.

No cotidiano a gente continua tentando desenvolver uma prática em conjunto[...] É o planejamento em conjunto, mas eu já tô vendo outras necessidades né, porque se tratando de ciclo a gente vai ter vários encaminhamentos dentro da sala, várias outras necessidades. Eu senti esse ano que só o planejamento coletivo não dá um suporte para direcionar a questão de conteúdos a se trabalhar [...] a questão de projetos. Isso aí eu acho que ele atende bem. A gente consegue atingir com um planejamento coletivo, mas o planejamento de uma escola em ciclo exige muito do professor [...], então eu sei que se eu chegar lá sem alguma coisa pensada, vai ser complicado [...]

Acho que errei muito. É muito difícil não trazer a nossa vivência [...] teve dia de não render quase nada, de chegar em casa desesperada, principalmente porque à tarde eu

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conseguia desenvolver o que tinha planejado e de manhã não ia de jeito nenhum [...] vai chegando a quinta a sexta-feira e você já está esgotada. Tem vez que não rende mais, não dá, é incrível [...] vejo a necessidade de ter outras estratégias, como os jogos [...] é do terceiro bimestre para cá que eu comecei a achar os meios para começar a lidar com cada um, extremamente complicados [...] a sala de aula é uma caixinha de surpresa, não dá para gente prever. Porque é lá que a gente sente o reflexo de muitas coisas [...] todas as coisas que acontecem chegam lá na sala. Então esses encaminhamentos são difíceis [...] durante o ano você vai sofrendo várias angústias (risos). Mas, não tive medo, porque eu sabia que se a coisa ficasse muito crítica, alguém ia me socorrer (risos) Esse é um ponto muito positivo nesta escola. Se você não tiver quem te apoia aqui dentro, se for uma escola maior, com mais dificuldade de apoio, sofre. Eu tenho necessidade ainda de formação continuada. Ela deve existir [...] o que é sempre significativo para o professor, pelo menos para mim, é ver esses avanços, essas aprendizagens, esse desenvolvimento das crianças . (Professora Olga)

No tocante ao cenário institucional, diferentemente do que ocorreu com outras professoras iniciantes das outras escolas pesquisadas, esta professora enfatizou como um dos aspectos formativos e significativo, a qualidade das relações estabelecidas com colegas de apoio permanente, o que passou a ser uma fonte de desenvolvimento profissional. Ou seja, a existência de momentos contínuos de apoio e partilha colaborativa de situações a serem enfrentadas no cotidiano da sala de aula contribuíram significativamente na constituição do processo de aprender a ensinar a ser professora. Entretanto, esse cenário institucional também é narrado como complexo, com contradições, tensões e conflitos.

Ao relatar como pensa a docência, emergem dificuldades relacionadas aos alunos e com a gestão do trabalho escolar. Tais dificuldades parecem ser impossíveis de serem antecipadas. Já o tempo é revelado como um dos aspectos que muito interferiu no fazer dessa professora quando declara que “durante o ano você vai sofrendo várias angústias”. Portanto, vê-se que se trata de um tempo vivido em constante instabilidade e insegurança, permeado por reorganizações frequentes à realidade. As situações de dificuldades, muito embora perturbadoras do fazer profissional, tornaram-se, para esta professora, um desafio, conduzindo à reflexão e à tentativa de resolução dos problemas, passando a ser potencializadoras do desenvolvimento pessoal/profissional.

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Por outro lado, ao longo desse tempo, podemos notar que a professora vai deixando aquela situação inicial de instabilidade ao ir confrontando-se com a necessidade de ressignificar as aprendizagens advindas de contextos formativos diversos. Então, seus desejos e suas concepções relativas à realidade passam a apontar que a ressignificação do exercício profissional não se dá de forma imediata.

Assim sendo, percebemos que a professora destaca um ponto importante para o compartilhamento de sentidos imbricados no processo de aprender a ensinar: o pensar sobre o que se vai fazer é necessário. Todavia, com isso novas indagações se colocam, novos percursos deverão ser trilhados. No final de sua fala, a docente declara que o que é significativo para o professor é ver o avanço de seus alunos, revelando sua satisfação pessoal e profissional, consubstanciadas em uma experiência profissional positiva. Além disso, seu relato está enredado por uma política curricular e educativa. E termina por revelar que acredita na política de formação continuada como possibilidade de desenvolvimento profissional quando diz “Eu tenho necessidade ainda de formação continuada, ela deve existir [...]”.

Já as narrativas da professora experiente Celly focam o exercício docente como lugar fértil de construção de conhecimento pedagógico e de aprendizagens, ao mesmo tempo em que estas são reveladoras de desenvolvimento profissional.

Só nesta escola são 14 anos, é uma vida já né!! Mas eu já tive minhas andanças, trabalhando como interina, eu morei no interior, em Rosário Oeste. Acabei trabalhando com turmas de 5ª e 6ª série, português, não foi só assim com criança no 1º ciclo. Depois que estou aqui nesta escola que estou diretamente nesses 14 anos agora só com o 1º ciclo mesmo. Mas, trabalhei em outros anos com educação infantil também. Morei lá em Minas. Trabalhei com educação infantil lá. Gosto muito também. Assim, já dei um passeio por várias turmas. Em 2002 eu passei num concurso em Várzea Grande. Aí fiquei em conflito, porque eu trabalhava de manhã aqui e à tarde em Várzea Grande e a faculdade era à tarde eu transferi para a Univag. Aí terminei naqueles finais de semana, aquele modular.

Engraçado que o que me levou a mudar minha prática foram as palestras. Ouvi várias. Li algumas coisas, mas foi mais estudo mesmo, ensinando a gente a trabalhar em grupos. Por exemplo, eu achava difícil. Eu achava que virava bagunça na sala de aula, porque é muito mais fácil você controlar uma sala enfileirada do que você contro-

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lar uma sala agrupada. Muito mais difícil, muito mais, porque eles conversam mais [...] Depois eu descobri, é engano, é mais fácil trabalhar em grupo, porque não é ficar com a sala bem quietinha. Ah que sala organizada, todos bem quietinho. Aprendi que a conversa faz parte da aprendizagem das crianças. Então eles têm que con-versar. Eles têm que dialogar, desde que esteja tudo den-tro do limite, nada exagerado [...] o PNAIC é o seguinte, não é coisa nova. É coisa que nós já fazíamos. O que não tínhamos era uma sistematização da aula como que nós fazíamos. Hoje eles querem sequência didática, sequ-ência de atividades, como fazer leitura. Deleite que não tínhamos na sala de aula[...] Então eu penso que houve mudança na minha prática. Não sei se é tão significativa, mas para mim foi muito significativa, muito.

Se a gente não tem abertura, você continua do mesmo jeito. É mais cômodo continuar do mesmo jeito sempre, você já tem domínio daquela situação e situação nova você nunca sabe o que vai acontecer, não sabe se vai enfrentar uma situação nova. De repente, vai ser fácil de controlar. De repente não, vai dar muito errado. Pode dar resultado positivo, e, às vezes, não. E então, aquela insegurança, às vezes. Mas, a gente tem que ter coragem. Ter coragem de partir para o novo e buscar melhorar, querer melhorar [...] Ensinar é uma coisa muito profunda. Não envolve só você chegar na sala de aula e dizer: eu sei esse conteúdo. Eu passo no quadro, ensina e a criança aprende, não é isso. É muito mais, e envolve sentimento, coração mesmo naquela coisa. (Professora Celly)

No que se refere ao exercício da docência, percebe-se que a professora experiente o enfatiza como sendo o lugar privilegiado da aprendizagem docente, do fortalecimento e da legitimação profissional. Ao relatar suas experiências bem-sucedidas, faz algumas reflexões acerca da formação continuada e da necessidade de o professor estar aberto frente a novas situações, sem deixar de ressaltar a complexidade que envolve o processo de aprender a ensinar.

Por fim, vale destacar que as duas professoras vão ressignificando teorias e práticas constituídas no entrelaçamento de emoções, conflitos, conhecimentos, suscitados pela prática do fazer docente. Tal processo possibilita que a identidade docente vá sendo construída.

Neste sentido, esse diálogo, permeado por diferentes processos de desenvol-vimento profissional, construído em diferentes contextos escolares e que requer

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processos investigativos diferenciados, tem nos apontado a necessidade de consi-derarmos um olhar plural a respeito dos elementos essenciais desse processo em um movimento não-linear. Logo, a partir de nossa experiência, temos clareza que os professores aprendem muito compartilhando sua profissão e seus dilemas, no contexto de atuação, uma vez que é no exercício do trabalho reflexivo que, de fato, o professor produz sua profissionalidade.

Como aprendizes, neste esforço de síntese provisória, percebemos que esse movimento revela outros sentidos e significados ao exercício docente que potencializam nossa compreensão a respeito das complexidades das relações e tensões vividas, pois ao mesmo tempo em que entendemos, modificamos e ampliamos nosso diálogo atinente às outras possibilidades de formação e investigação, envolvendo os participantes e também os investigadores.

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Pesquisa, formação e docência: processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional docente em diálogo • 35

Desafios da pesquisa (auto)biográfica na formação de professores

Helena Amaral da Fontoura

[...] a consciência nasce quando interpretamos um objeto com o nosso sentido autobiográfico, a nossa identidade

e a nossa capacidade de anteciparmos o que há de vir. (JOSSO, 2002, p. 08)

Este trabalho tem por finalidade refletir acerca dos desafios trazidos pela pesquisa (auto)biográfica para nós, formadores de professores, bem como discutir quais são os desafios para que sua efetiva implementação seja mais um recurso a ser utilizado nos processos formativos que desenvolvemos. Com tal propósito, traremos algumas reflexões relacionadas à temática, principalmente, com base na experiência de atividades desenvolvidas na Residência Pedagógica da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), que se constitui como um espaço de formação para os que nos procuram com vistas a ressignificar suas práticas e se tornarem professoras e professores melhores e mais felizes com suas atividades na docência. Já temos um grande número de publicações que detalham o que temos feito enquanto formação de professores e professoras nesta instituição. (FONTOURA, 2015; 2014a; 2014b; 2014c; 2014d; 2013a; 2013b; 2011a; 2011b; 2011c; 2009; 2008a; 2008b; 2007; FONTOURA et al., 2014; FONTOURA et al., 2013; FONTOURA et al., 2010; FONTOURA; PIERRO, 2015; FONTOURA; PIERRO, 2014; FONTOURA; PIERRO; CHAVES, 2011; FONTOURA; VERÍSSIMO, 2014)

Nesta conjuntura, temos percebido que trabalhar no espaço universitário traz alguns riscos de encastelamento de pesquisas que falem a respeito dos professores, mas que não falem com eles. Todavia, nosso interesse é pensar como ações e pesquisas colaborativas com o aporte (auto)biográfico podem contribuir para fortalecer as práticas docentes nas escolas e os processos formativos, tanto no espaço escolar, como no espaço da Universidade. Para tanto, apostamos nas parcerias universidade-escola básica como ações importantes quando pensamos e fazemos formação docente. Isso porque constatamos que, sem essas ligações intensas, os processos formativos tendem a se perder no vazio de iniciativas somente burocráticas ou conteudistas.

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Contudo, é preciso sublinhar que temos plena consciência das dificuldades em estabelecer parcerias frutíferas entre a Universidade e a escola básica, tanto a partir de nossas experiências, quanto pelas leituras no tema. Entretanto, a partir da própria experiência construída ao longo de muitos anos trabalhando no campo, podemos afirmar que o potencial de ganhos nas parcerias estabelecidas é muito grande, já que a colaboração entre instâncias de ensino parece ser um caminho muito potente para alimentar o trabalho conjunto, como nos apontam, por exemplo, Sirotnik e Goodlad (1988), Giovani (1998) e Ludke e Cruz (2005).

Sirotnik e Goodlad (1988) pontuam características essenciais para uma ação colaborativa entre universidade e escola básica, de modo que uma parceria efe-tivamente aconteça. Entre estes aspectos, estão a ênfase no trabalho coletivo, o foco, tanto nas questões práticas da escola real, quanto nas questões teóri-cas necessárias para sua compreensão, bem como dedicar atenção especial ao processo de investigação das questões fundamentais e da implementação dos achados das pesquisas desenvolvidas colaborativamente. Para Giovani (1998), os relacionamentos em colaboração entre universidade e escola básica podem ser vistos como alternativa importante, tanto para pesquisa, quanto para for-mação, já que, ao desenvolver projetos de natureza coletiva, que aproximam a pesquisa da realidade a ser reflexionada, podemos oportunizar exercícios de práticas diferenciadas em ambos os ambientes. Ademais, há a possibilidade de desenvolvimento de profissionais reflexivos na área da Educação, que é um dos alvos da nossa empreitada.

Ludke e Cruz (2005) discutem a relação entre a pesquisa e o professor de educação básica a partir de dados de um programa integrado de investigação relacionado ao tema. Para as autoras, a articulação entre ensino e pesquisa na formação e no trabalho do professor da educação básica é algo que há algum tempo tem sido abordado na literatura acadêmica. Entretanto, pouco se sabe em relação ao seu alcance entre os professores desse nível de ensino. Elas trazem três pontos a serem considerados quando estudamos esse tema, quais sejam: o que professores de educação básica veem como sua preparação para exercerem a profissão; a opinião desses professores acerca da sua formação na Universidade; e uma investigação a respeito do que pensam os que decidem sobre a pesquisa em nível de políticas de formação. Além disso, expõem reflexões atinentes aos achados da investigação, sinalizando para a necessidade de haver a aproximação das duas realidades, a Universidade e a Educação Básica, no que diz respeito aos processos e práticas de pesquisa em Educação.

Há alguns autores que nos auxiliam no processo de entender o que consideramos pesquisa (auto)biográfica e por onde caminhamos, que são:

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Ferrarotti (2014), Connelly e Clandinin (1986; 1990) e Clandinin e Connelly (2011), que pensam abordagens para se refletir sobre educação que sejam referidas nas pessoas envolvidas nos processos, muito mais do que nos processos em si, desvinculados de quem participa deles.

Para Ferrarotti (2014, p. 51), a abordagem biográfica depende de uma transformação que envolve componentes sociais e pessoais. O autor pontua que: “[...] o que torna único um ato ou uma história individual apresenta-se a nós como uma via de acesso – muitas vezes possível – ao conhecimento científico de um sistema social”. E, prosseguindo, afirma que a especificidade do método biográfico implica em ultrapassar o quadro lógico-formal e o modelo mecanicista, que são característicos de uma epistemologia científica já estabelecida. Assim, o ser humano é um universo singular totalizado, singular em sua essência, universalizado por sua época, trespassado pela singularidade universalizante de seus projetos e ações.

Segundo Clandinin e Connely (2011), para o desenvolvimento da investigação narrativa é necessário entender a experiência de vida como um dos focos centrais da produção do conhecimento narrativo. Para eles, aprendemos sobre educação quando pensamos na vida da mesma forma que aprendemos sobre a vida pensando a educação. Essa perspectiva apresenta a possibilidade de se superar as dicotomias e linearidades quando se relacionam aspectos do pensar e fazer educação em um mesmo e complexo processo, o qual atravessa o vivido e o pensado, de uma forma ampla e integradora.

Os mesmos teóricos, Connelly e Clandinin (1995), pontuam que a questão da temporalidade nas narrativas é de fundamental importância, já que falam da tríade presente, passado e futuro, a qual está sempre presente em nossas memórias e falas, e isso nos possibilita (re)construir histórias, em um momento atual com vistas a algo que esperamos que venha a acontecer. Ao ampliar esta discussão, trazem o que chamam de espaço tridimensional da pesquisa narrativa, e que trata das dimensões temporalidade, sociabilidade e lugar. Então, frisam a importância do uso de narrativas nas pesquisas, já que todos somos contadores de histórias. E que também somos os personagens dessas histórias que contamos e ouvimos, ou seja, vivemos vidas relatadas, tanto de modo individual, como socialmente. Assim, damos sentido ao que vivemos enquanto relatamos e construímos nossos cotidianos. Para eles, pesquisadores qualitativos em educação trabalham mediante as narrativas, e as histórias que contamos a partir das experiências que vivenciamos e que são alvo das pesquisas que desenvolvemos, estabelecendo, portanto, uma estreita relação.

Para além disso, Connelly e Clandinin (1986) defendem que os professores conhecem o ensino por imagens, rituais, hábitos, ciclos, rotinas e ritmos que

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têm por base a sua experiência. Assim, ao propormos a docentes em formação uma tarefa como a de construir sua biografia, trabalhamos no sentido de que possamos tomar para nós a liberdade de construirmo-nos e (re)construirmo-nos, na busca de possibilitar emergir de/em nós mesmos o desejo de viver de forma mais construtiva e consciente de nossos próprios recursos.

Outrossim, pensar e propor a abordagem (auto)biográfica como uma das formas de potencializar professores e professoras em formação possibilita buscarmos a mudança de perspectiva sinalizada por autores da área, com vistas a construir e reconstruir a história, tanto pessoal, quanto profissional de quem vive a docência por escolha. Neste contexto o desafio é, concomitantemente, pessoal e profissional, individual e social, coletivo e solitário, e tudo isso se apresenta em dimensões complementares, as quais, no conjunto, trazem os benefícios desejados quando fazemos o planejamento de processos formativos. Assim sendo, é por isso que, ao elaborarmos o processo de formação docente, muitas vezes, nos preocupamos em excesso com questões mais formais do que com as reais preocupações e necessidades dos que estão na prática docente, já que, em muitas situações, estes profissionais não são ouvidos, tampouco são chamados a opinar. Quando sinalizamos para a inclusão de processos que envolvam conhecimento de si, do outro significativo, dos conteúdos e serem trabalhados e das inserções sociais e políticas dos envolvidos, estamos trabalhando com as dimensões includentes presentes no dia a dia de espaços educativos.

Devido a esta conjuntura, não vemos sentido na existência de processos formativos que apenas enfatizem os aspectos conteudistas, embora não desprezemos sua importância no fazer docente. Ao contrário, apostamos na fecundidade inerente às narrativas (auto)biográficas que trazem aos sujeitos a possibilidade de se verem como parte da sociedade que formam e que por ela são formados, pois assim, terminam por conjugar suas histórias com as da humanidade de que fazem parte. Agindo assim, vê-se que as consequências para o indivíduo que se vê como parte integrante de um todo social são imensas e profundas.

A este respeito, Nóvoa (2003) enfatiza que, se queremos produzir práticas educativas significativas, temos que refletir acerca das experiências pessoais e profissionais partilhadas entre pares, na escola como lócus privilegiado, já que para ele é nesta escola que acontecem os processos formativos e autoformativos. A partir deste raciocínio, juntamos professores como agentes de sua própria formação no local onde as coisas acontecem efetivamente. André (1997) segue o mesmo entendimento, e sinaliza para esta fecundidade ao trazer que programas de capacitação que levam professores a refazerem suas histórias de vida, a analisar

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condições e contextos em que se desenvolveram e viveram suas experiências, pois considera que assim podem trazer a importante compreensão das especificidades do trabalho docente e identificar as aproximações com as histórias de outros sujeitos nas mesmas condições de trabalho e com escolhas semelhantes a serem partilhadas.

Giroux (1988) propõe que tudo o que possa auxiliar professores a agirem como intelectuais participativos e transformadores pode e deve ser levado para os espaços escolares, mas devem ser privilegiadas as ações baseadas em pesquisas, de preferência, colaborativas, envolvendo participantes com consciência da necessidade de investigarmos nossas práticas e nossas inserções diversas. Deste modo, professoras e professores podem passar a ter uma autopercepção de que são intelectuais, e que podem ainda ver seu trabalho docente como sendo algo transformador e produtor de conhecimento, e, a partir disso, implementar parcerias criativas e que possam promover seu desenvolvimento profissional docente e seu aprimoramento pessoal, concomitantemente.

Neste contexto, identificamos que há uma enorme demanda reprimida para formação de professores, o que contradiz o que o senso comum acredita, e estas pessoas estão comprometidas com seu fazer e desejam aprimorar suas práticas e sua qualificação. Bastaria que fosse feito um levantamento do quantitativo de inscritos nos cursos de pós stricto-sensu em Educação para que constatássemos essa situação. Por isso, as instituições de nível superior, assim como agências governamentais em diferentes níveis, têm buscado oferecer cursos e espaços formativos, tanto como extensão e como aperfeiçoamento, com o propósito de buscar atender a essa demanda. Nesta conjuntura, as iniciativas mais bem-sucedidas articulam as dimensões de ensino, pesquisa e extensão, quando feitas nas universidades, e, quando promovidas por outras instâncias, focam mais especificamente a dimensão do ensino, ainda por acreditar nesse modelo instrucional. Consideramos que isso é válido, porém, torna-se pouco efetivo para realmente estabelecer um diálogo com as realidades vividas por aqueles que buscam a formação enquanto estão atuando na área docente.

Neste cenário, apontamos, então, as narrativas (auto)biográficas como um dos caminhos possíveis para fazermos propostas de processos formativos contextualizadas e que levem a ampliações de possibilidades nessa tarefa de formar professores com vistas a desenvolver processos educativos referidos e referenciados nas condições reais em que trabalhamos.

Para Josso (2002), as narrativas produzem conhecimento que proporciona a reflexão a respeito de sua prática a quem se dispõe a embarcar neste processo. A autora trata da biografia educativa, que é uma das atividades que fazemos

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durante os encontros da Residência Pedagógica na FFP/UERJ. Nestas ocasiões, temos recebido devoluções importantes quanto ao impacto de tal atividade, que faz com que participantes se declarem envolvidos nas reflexões e sujeitos efetivos de seus processos formativos. E temos percebido que, algumas vezes, isso ocorre após tomarem consciência de situações vividas que podem ter outras dimensões ainda não vistas, e que são constatadas após o exercício na narrativa (auto)biográfica e do compartilhamento entre os pares. Ademais, Josso (2002) sinaliza que o recurso biográfico permite o (auto)formar-se, possibilitando, por consequência, que ocorram revisões de práticas desenvolvidas considerando uma construção identitária feita a partir de outro prisma, que é o da valorização das experiências, intentando conhecer como elas se formam e de que maneira transformam nossas subjetividades e identidades.

Segundo Josso (2002, p. 31), “[...] as experiências, de que falam as recordações-referências constitutivas das narrativas de formação, contam não o que a vida lhes ensinou, mas o que se aprendeu experiencialmente nas circunstâncias da vida”. Com base nessa colaboração importante com relação aos momentos significativos dos caminhos pessoais e profissionais trilhados pelos participantes da Residência Pedagógica, optamos por ter entre nossas estratégias de trabalho relatos (auto)biográficos relacionados, especialmente, as experiências de ensino e aprendizagem.

Fizemos esta escolha pois, ao longo dos encontros, vimos que eram con-ceitos amplos e abrangentes, não relacionados necessariamente a experiências escolares. Essa dimensão ampliada do processo de ensino-aprendizagem foi se constituindo como um marco em nossos trabalhos, já que abriu o leque de referências para todos nós do que se constitui aprender nessa dimensão maior. Isso tem reflexos profundos na maneira, por exemplo, de lidar com alunos iden-tificados como apresentando “problemas de aprendizagem”, o que isso significa, o que pode ser feito, como lidar, como perceber, como não rotular, vendo dife-renças como inerentes a nós todos e todas, humanos e imperfeitos que somos.

André (1995) indica que, no Brasil, há experiências que têm apontado para as relações de parceria e colaboração entre pesquisadores e professores como um avanço, tanto do ponto de vista da metodologia da pesquisa e do ensino, quanto no tocante à produção e transmissão do conhecimento. Consideramos esta contri-buição importante para nossas reflexões, já que concordamos com a perspectiva de colaboração como fundante na relação formativa, sem a qual apenas reforçamos modelos ultrapassados que enfatizam transmissão de um saber de um indivíduo que sabe mais para outro que sabe menos, o que, por si, descaracteriza tudo o que acreditamos e fazemos como formadores de docentes no exercício da docência.

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Bruner (1991) afirma que organizamos nossas experiências de acontecimentos vividos e presenciados, principalmente, sob a forma de narrativa. Neste cenário, criamos histórias, desculpas, mitos, razões para fazer ou não fazer. À medida em que caminhamos para a vida adulta, nos tornamos cada vez mais adeptos a ver o mesmo conjunto de acontecimentos de acordo com múltiplas perspectivas, interpretando os resultados como se fossem mundos alternativos. Por isso, damos diferentes status de realidade a experiências que criamos a partir de diversos encontros com o mundo. Conferimos, por exemplo, um valor canônico a atitudes que dizem respeito a certas formas de conhecimento. Algumas destas formas de saber são: o científico, o racional e o lógico. Todavia, de acordo com Bruner (1986), uma parte considerável da nossa experiência decorre destas formas. Para o autor, as narrativas são uma versão da realidade cuja aceitabilidade é governada mais por convenção e necessidade do que por verificação empírica e requisitos lógicos, embora continuemos a chamar de histórias verdadeiras e falsas, em uma perspectiva dicotômica e de rotular tudo o que precisamos superar. E, tal como a nossa experiência do mundo natural tende a imitar as categorias da ciência familiar, a nossa experiência das relações humanas propende a tomar a forma das narrativas que usamos para as contar. Há aqui dois fenômenos difíceis de separar: o processo mental e o discurso que o exprime. Isto nos leva à questão do significado da narrativa, isto é, “[...] ao modo como a narrativa opera como instrumento do pensamento ao construir a realidade” (BRUNER, 1991, p. 06).

Pensar o que significam as narrativas para quem narra ao invés de para quem pesquisa, como tradicionalmente se convencionou ser o papel do investigador acadêmico, constitui-se como um dos pilares de um movimento de transformação de processos de investigação que envolvam professoras e professores como sujeitos de sua ação e de sua vida.

Assim, apontamos, a partir das atividades e dos encontros que temos tido, que as narrativas se revelam como sendo um excelente terreno para analisar e ressignificar aspectos de formação, muitas vezes desconhecidos pelos protagonistas dessas mesmas histórias. Por isso, temos como uma das tarefas contextualizar e buscar perspectivas de análise dos relatos que realmente possam ser consideradas pelo grupo como acréscimos ao repertório grupal, ao propor a observação de ângulos ainda não explorados, apontando possibilidades de visões ainda não discutidas. Almejar tais alvos tem sido muito promissor, especialmente para professoras e professores ingressantes na carreira docente.

Histórias de vida e relatos de experiências pessoais e profissionais fazem emergir dimensões formativas nos/dos acontecimentos, quando os narradores são instigados a pensar a respeito do que relatam, a buscar dimensões pouco

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esclarecidas, se propondo a compreender trajetórias e eventos, percebendo, refletindo e analisando os momentos (trans)formativos. Esses momentos são os que Josso (2004) chama de “charneira”, ou seja, são os que fazem o próprio narrador refletir e buscar os recursos necessários para se desenvolver como pessoa e profissional. Trata-se de vivenciar momentos portadores de futuro, já que no passado, além das situações vividas, há, ainda, o potencial que temos de prosseguir a existência de futuro, como pontua a autora referida. Então, mais importante do que achar que formamos alguém, é sabermos que a formação depende do trabalho de cada sujeito em processo, o qual se forma a si mesmo/a. E, nesta conjuntura, é preciso sublinhar que todo processo de formar é também um processo de formar-se, e que todo conhecimento é autoconhecimento, e, que toda formação é autoformação, como já nos trouxe Nóvoa (1995).

Dentre os desafios que encontramos, trazemos alguns para acrescentar à nossa exposição. Inicialmente, apontamos a importância de ver narrativas (auto)biográficas como processo de investigação, já que associar formação de professores à pesquisa é função mais do que precípua de qualquer instituição que faça propostas formativas docentes. Para tanto, há que se considerar estudos relacionados às metodologias investigativas participativas de modo a ancorar as relações na confiança mútua e na aceitação da importância dos papéis de cada um nos processos de pesquisa. Isso porque desconfianças minam as relações interpessoais e profissionais, dificultando investigações acerca dos nossos saberes e fazeres. Ao contrário, uma relação franca e aberta é ponto fundante para processos formativos em colaboração que envolvam narrativas (auto)biográficas e os possíveis usos indevidos das histórias e relatos produzidos. Assim, vê-se que trabalhar com narrativas é rico, e, ao mesmo, tempo difícil, já que a experiência humana é diversa, trazendo conexões entre as pessoas, aproxima e envolve, o que nem sempre é uma situação tranquila para os participantes. Neste contexto, o formador deve ter em mente os riscos e as delicadezas necessárias para superar tais barreiras.

Outro desafio a se considerar é o da análise que se venha a fazer das narrativas coletadas, pois tal empreendimento exige domínio de técnicas e métodos, e isso, muitas vezes, não é observado. Alguns trabalhos apenas coletam as narrativas, trazem as falas, por vezes, demasiadamente extensas e não cuidam de explicitar processos de análise do que foi caracterizado como pesquisa.

Portanto, cuidar da fundamentação dessas análises é um aspecto importante e desafiante, pois é necessário significar discursos e interpretações, explicar ao leitor processos levados a cabo durante a investigação que não podem ser ignorados. Assim, convém lembrar que, para todas as escolhas há sempre

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aspectos descartados, e, por conseguinte, há outras possíveis interpretações para o que foi relatado por participantes. Então, decorre que é vital explicar os procedimentos de análise e as escolhas das relevâncias das informações apuradas junto aos sujeitos da investigação.

Em cada encontro, em cada conversa (auto)biográfica, há inúmeros acontecimentos que se desenrolam, pois são estabelecidas relações com conversas e situações faladas anteriormente, construindo-se, deste modo, um ethos grupal que vai alimentando as relações e os processos formativos. Diríamos que este é o desafio que pontuamos para finalizar este texto. Trata-se do desafio de amalgamar pessoas, histórias, conflitos, emoções, vivências, conhecimentos construídos, decepções e alegrias. Enfim, lidamos com uma gama interminável de sentimentos e situações que permeiam a escolha pelas narrativas (auto)biográficas como recursos para processos formativos docentes.

Assim sendo, podemos dizer que apontamos a narrativa como processo de reflexão pedagógica, e esta possibilita que, ao relatarmos, possamos compreender o que nos levou a agir da maneira que agimos, bem como identificar o que aconteceu por conta de nossa ação. Ademais, é possível detectar o que poderíamos fazer de maneira diferente, se não ficamos satisfeitos com nosso procedimento. Afinal, há possibilidades múltiplas de reflexão, investigação, interação, compreensão, autoconhecimento, indagação, reconhecimentos de limites e possibilidades, redefinição de modos de ser e de agir. Igualmente, a narrativa (auto)biográfica vista aqui como processo formativo evidencia a relação investigação-formação, confrontando saberes e fazeres distintos, evidenciando aspectos de processos de aprendizagem que são personalizados, e, ao mesmo tempo, também são coletivos. Ao pensarmos coletivamente as diferentes situações relatadas, nas semelhanças e distinções dos caminhos dos sujeitos participantes do grupo, pudemos perceber que a disponibilidade para ouvir é uma conquista que podemos vislumbrar em um contexto, às vezes, desanimador para muitos de nós. Contudo, é algo que pode ser alimentado por parcerias frutíferas, tal como a que estamos desenvolvendo.

Por derradeiro, consideramos que a sensação de ser capaz de criar outras estratégias para lidar com os impasses na docência, e na vida como um todo, é uma aquisição permanente, que alimenta novas buscas e uma prática pedagógica que pode ser muito gratificante. Para nós, aceitar encarar os desafios da pesquisa (auto)biográfica na formação docente na Residência Pedagógica da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro tem sido um aprendizado potente, de acompanhamento do desenvolvimento profissional dos que participam deste trabalho, uma vez

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que vemos a evolução a partir desse espaço de reflexão e de construção de conhecimento, com base nas tentativas de abrirmos caminhos para outros olhares relacionados aos desafios presentes no fazer docente.

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Educação e contemporaneidade: uma reflexão antropológica e pedagógica

Ricardo Antonio Castaño Gaviria

Introdução

Na contemporaneidade, a Educação, considerada como campo de estudo, compreende um amplo espaço da vida social dos sujeitos e de nossa cultura. Além disso, se expressa em uma variedade de contextos espaciais onde diferentes processos e formas organizativas, desde diferentes fatos educativos, nos confrontam com a produção de novas subjetividades e outras práticas pedagógicas. Mas, não poderíamos afirmar com isso que se trata de uma democratização da Educação ou que esteja sendo efetivado um mecanismo de integração social e cultural. Colocando a questão de maneira problemática na contemporaneidade, e, particularmente, em nosso contexto latino-americano, queremos fazer aqui levantamentos críticos a respeito da Educação na perspectiva antropológica e pedagógica, sinalizando outros horizontes de possibilidades.

O panorama da crítica curricular a respeito do papel e dos espaços sociais da Educação nestes tempos que chamamos de contemporâneos, indica de que modo, em diferentes espaços de nossas vidas cotidianas, se modelam e se controlam novos projetos de formação da cultura e da sociedade como modelo de produção de sujeitos. Neste cenário, a Educação tem conquistado uma nova força e interesse como projeto geral. Então, precisamos de uma compreensão do que significa pensar contemporaneamente a Educação, bem como do que é contemporâneo e de qual é o desafio que está posto. A este respeito, Agamben (2008, p. 59) pondera que:

A contemporaneidade é, então, uma singular relação com o próprio tempo, que nos adere a ele e, simultaneamente, toma distância; mais precisamente, é aquela relação com o tempo que adere a ele através de uma abertura e um anacronismo. Aqueles que concordam plenamente com o tempo, que se encaixam perfeitamente em todos os pontos com sua época não são contemporâneos, porque precisamente por esta razão, eles não conseguem ver isto, não pode corrigir a sua visão sobre ela.

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A partir disso, vê-se que uma compreensão contemporânea da Educação coloca novos desafios epistemológicos, que procuram desconstruir o dado como se fossem certezas, fazendo afirmações sem refletir no projeto de formação. Paradoxalmente, nunca em nossa sociedade latino-americana tivemos tanta Educação, tanta oferta de programas e propostas educativas em diferentes níveis, alternativas formais e informais, dirigidas para todas as esferas da população que podem acessá-las diferencialmente como se houvesse um serviço de qualidade centrado na satisfação do comprador. Em diversos tipos de organizações públicas e privadas, se fala a linguagem da Educação e da pedagogia como necessárias ao sujeito atual e à formação da cultura do sucesso pessoal e da competitividade. Porém, esta linguagem não consegue, e também não oferece, pontualmente, oportunidades adequadas para as populações mais desfavorecidas historicamente.

Parece um contrassenso, pois na verdade, a concepção de tal expansão do discurso e a prática de gestão educativa na política geral, não está inspirada em critérios democráticos ou libertários que levem a tentar igualar as oportunidades sociais, e, sim, estão dirigidos a marcar as diferenças sociais estrategicamente nos segmentos das populações, dos sujeitos e de seus territórios. Temos em frente, como desafio da crítica contemporânea, compreender um exercício de governamentalidade, no qual a Educação se marca como um critério de produção e seleção social que reproduz um modelo econômico.

A universalização da Educação, macroprojeto que marcou as últimas décadas do XX, foi um objetivo político-econômico ligado aos movimentos e reconfigurações do mercado internacional em expansão. Trata-se de um projeto do liberalismo econômico, que tem mostrado seus resultados em indicadores de accountability e nos modelos da gestão das últimas três décadas. Todavia, é importante destacar que esses resultados estão orientados desde o projeto de reforma educativa e com critérios socioeconômicos neoliberais, que não buscam em seu fundamento político e filosófico fundamental igualar as condições para que os sujeitos e suas comunidades se desenvolvam plenamente, como aponta Martinez (2005, p. 28):

No que respeita hoje ao neoliberalismo, este se considera ‘um paradigma que muda de forma, mas é consistente no conteúdo’ (HENALES; EDWARS, 2000, p. 01) Se tivéssemos que procurar sua máxima, esta poderia identificar-se com a crença de que o mercado, através de seus mecanismos de autorregularão, é o melhor instrumento para atribuir recursos e satisfazer as necessidades dos indivíduos.

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De acordo com Bourdieu e Wacquant (2005), neste ambiente de questionamentos e outros pontos de vista, cabe destacar que se fala prioritariamente da Educação dos indivíduos e não das comunidades, da Educação como mercadoria e bem individual. E, do outro lado da moeda, como cobertura e obrigatoriedade, se aponta pouco na política educativa dirigida para um desenvolvimento local e sustentável. Assim, a Educação se propõe como uma conquista individual, como trajetória de sucesso pessoal, como um produto que se adquire. Logo, passa a ser o resultado do planejamento racional dos recursos e das oportunidades individuais, e, como tal, satisfaz as expectativas de crescimento de uma porção privilegiada da sociedade atual, que procura um diferencial no mercado competitivo da Educação e da meritocracia social. Assim, a oferta educativa aparece como aquilo que pode acrescentar esse diferencial de capital cultural em um enfoque competitivo.

Outro aspecto diferencial da Educação na contemporaneidade coloca em questão a ideia e a prática de educação convencional, mostrando que não se restringe apenas ao contexto escolarizado formal de ensino clássico. Porém, a função social do professor, sua construção social de identidade, a imagem da pedagogia, a própria pedagogia como campo (RUNGE, 2003), a produção da identidade profissional docente (MONTEIRO, 2003), têm novas configurações antropológicas, interpretações sociológicas e espaços de ação, novos contextos e novas formas de apresentação metodológica e conceitual.

Nesses outros espaços e momentos do trabalho educativo na atualidade, com a participação de novos atores, se expressam mudanças de enfoque, de cenários e identidades profissionais que vamos identificando hoje, como por exemplo: a) a organização e a gestão da cultura das cidades; b) o trabalho educativo dentro de diversas organizações produtivas do setor público e privado, seus processos formativos e de cultura organizativa; c) os espaços formativos e as práticas pedagógicas dos movimentos sociais de diversas índoles. Vemos como nestes cenários se descrevem e dinamizam interessantes processos educativos e formativos dentro da vida social contemporânea, dando-se nestes espaços o surgimento de novas práticas educativas e pedagógicas que precisamos compreender e articular melhor uma compreensão pedagógica contemporânea.

Nesta conjuntura, uma perspectiva contemporânea da Educação, ou seja, uma postura crítica reflexiva, coloca o desafio de formação de novos perfis profissionais dentro das faculdades, escolas e institutos de educação, na direção de atender a estes processos nos quais a escola, vista como paradigma essencial do tradicional enfoque pedagógico de ensino, abre lugar a novos espaços, conhecimentos e saberes, e passa a construir novos referentes nas práticas cotidianas nos quais

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vemos processos educativos gerando mudanças. Nesses novos espaços sociais de aprendizagens e formação, é tecida uma nova identidade do campo pedagógico. A contemporaneidade, enquanto movimento de recolocação, está marcada por uma dúvida geral ligada à tradição e à naturalização das coisas. E o pensamento crítico contemporâneo passa a ser um modo de estar, uma maneira de posicionar-nos frente à realidade múltipla, trabalhando com essa dúvida fundante. E é no sentido mais contundente, uma forma de potência de pensamento, de reflexão e de crítica.

A compreensão da educação na contemporaneidade

A Educação na contemporaneidade oferece vários pontos a serem reconsi-derados, refletidos e questionados, uma vez que há vários processos e aspectos para problematizar. Desde uma postura pedagógica crítica, particularmente nessa perspectiva, consideramos a reflexão antropológica e pedagógica do contempo-râneo como a questão essencial para a compreensão destes tempos a fim de re-lacionar o papel político, econômico e social da educação com as mudanças do modelo cultural que vem se impondo em nosso contexto latino-americano.

Neste cenário, as tensões na cultura global e local que se expressam também no campo educativo e pedagógico, efeito da imposição dos interesses econômicos e políticos transnacionais, têm dado entrada a uma concepção antropológica neoliberal1 do sujeito, a qual ficou relacionada com o projeto formativo que hoje orienta, em boa medida, o modelo de Educação que é levado às instituições públicas e privadas. Esta situação supõe um imperativo categórico, eficiência e produtividade, nos processos da gestão educativa e também em todas as esferas organizativas da educação e seus currículos.

No panorama atual, temos não só uma proposta de reestruturação do modelo econômico e administrativo de nossos estados e das instituições clássicas de ensino, mas, também estamos atrelados às mudanças dos fundamentos antropológicos e pedagógicos que definem qual é o processo de formação, bem como qual deverá ser a orientação pedagógica e curricular que os sujeitos de maneira estratificada deverão receber nas instituições educativas. Assim, o projeto educativo de escola, de universidade, e em conjunto com as outras organizações nas quais se oferece Educação, parece estar alinhado com estes propósitos gerais de um novo paradigma de humanização e formação.

1 Ao falar de uma concepção antropológica neoliberal devemos ter em conta que esta gera uma imagem de homem, um discurso e um modelo formativo e normativo a ser seguido e trabalhado como objetivo dentro dos projetos educativos.

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Ao falar da situação da educação na contemporaneidade recompõem-se de maneira complexa a questão política e antropológica e os marcos de referência que definem qual é o projeto de humanidade que se procura. Criticamente, falamos de uma mudança no modelo de controle e funcionamento das instituições que prestam o serviço educativo2, mas também dos diferentes programas formativos e curriculares que se elaboram em função de um modelo gerencial de uma sociedade competitiva e eficiente. Esta situação envolve profundamente o debate acerca da Educação em seus fundamentos filosóficos e antropológicos. Porém, nos coloca um problema contemporâneo para pensar: a Educação que queremos e precisamos construir alternativamente em correspondência com outro modelo alternativo de sociedade.

Os problemas diante do modelo hegemônico da Educação na contemporaneidade estão relacionados a questões muito mais amplas e complexas que classicamente eram tratadas de forma separada pelas disciplinas das Ciências Sociais: Sociologia, Antropologia, Filosofia e História. Por exemplo, as questões das diversidades, das narrativas da identidade e as experiências estéticas, da organização dos movimentos sociais e suas novas formas de comunicação e expressão, dos processos sociais de aprendizagem e apropriação de conhecimentos variados, dos processos de participação dos coletivos e das comunidades alternativas mediadas pela tecnologia, relacionam a Educação a um novo patamar social e antropológico. Isso exige dos profissionais e pesquisadores do campo da Educação mais capacidade interpretativa e crítica.

Temos, em consequência, mais referência de conhecimento dos lugares de produção das novas práticas e saberes pedagógicos para poder articular melhores capacidades de pesquisa com referências locais e globais, aplicando várias metodologias sem dividir os enfoques de maneira parcelada, gerando uma alternativa explicativa e compreensiva de nosso tempo dentro do jogo de uma realidade relacional. Mas, estas novas práticas e saberes pedagógicos não desfazem a tensão e conseguem a invisibilidade da forte tendência que colocamos no debate desde o início deste texto: fazer do modelo de Educação um médio racional, um imperativo para produzir formas de controle e produção de sujeitos dentro do marco de uma antropologia neoliberal.

Deste modo, uma reflexão a respeito do tempo em que vivemos com seus paradoxos é talvez a característica mais comprometedora de uma análise da contemporaneidade em relação à Educação. Todavia, vemos

2 Chama a atenção também a mudança de linguagem proposta por o novo modelo educativo. Serviço educativo, já indica o conjunto de valores que orientam a concepção.

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também a contemporaneidade como um processo de identificação e de diferenças, de desregularidades, de produção intelectual e reflexão. Portanto, a contemporaneidade e seus problemas envolvem um discurso acadêmico, um questionamento epistemológico, mas também um problema político, filosófico, ético e estético.

De modo geral, as pessoas não pensam o chamado contemporâneo neste sentido, pois pensar o contemporâneo requer uma forma de saída do próprio tempo, do próprio marco de referências, uma vez que a questão não se esgota ao enfrentá-lo como um problema de definição apenas, muito menos como um problema sociológico, antropológico ou histórico delimitado.

Trata-se de compreender que somos nós enquanto sujeitos históricos, inseridos em uma comunidade crítica, é que damos o valor a isso ao empreender um caminho da reflexão. E, por isso, o debate envolve justamente, e de maneira direta, a questão da Educação, já que vemos nesta não só um problema de instrução e alinhamento e, sim, um profundo questionamento antropológico e filosófico dentro das necessidades de compreender nossa sociedade com seus conflitos.

Ademais, o que chamamos por contemporâneo, pelo menos em um esforço interpretativo crítico, tem relação com um trabalho compreensivo de problemas que já visitamos em outros momentos da nossa história. Diante disso, vê-se que a questão não tem nada a ver com formas nominativas e metodológicas delirantes e de moda e, sim, está relacionada à compreensão das novas formas de relações sociais, dos significados culturais emergentes, e, em geral, das lógicas de funcionamento da sociedade atual que se apresentam. A questão diferencial é como o debate contemporâneo nos introduz e nos atualiza diante destas problemáticas e o lugar que a Educação, como eixo, ocupa como um projeto geral e amplo.

As problemáticas que se apresentam nos campos da História, identidade, estética e a construção do saber são as chaves para compreender os processos de produção dos movimentos contemporâneos, enquanto produção de novas referências de pensamento e também de novas formas epistemológicas e metodológicas aplicadas ao estudo de nosso campo de trabalho educativo. Mas, em relação à Educação, o que isso compromete em particular? Como nos mobilizamos para nos posicionarmos de forma diferenciada?

Trabalhar a partir de um pensamento do contemporâneo, significa compreender como este se produz fora de um pensamento padrão. Ou ainda, ao se entrar e sair dele. E, relacionando-nos diretamente com o enfoque da tradição pedagógica, porque a Educação de massa quer definições, respostas e formas úteis para um mundo produtivo e rentável.

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A orientação em política pública educativa e alguns dos profissionais da Educação, assim como setores da produção acadêmica de nosso campo, querem fórmulas para fazer acontecer determinados resultados, a reprodução do estabelecido, do formal. Esse é um complexo problema para lidar com aquilo que chamamos de contemporâneo. Como estamos vendo, no tempo presente, não podemos simplesmente definir o conceito. Para além disso, precisamos de uma construção crítica e engajada com este momento histórico.

De acordo com o filósofo Flusser (2011), a complexidade supõe sair do ter-ritório das certezas epistemológicas, uma vez que os conceitos nos provocam dú-vidas e um pensamento contemporâneo trabalha nisso, na dúvida como atitude.

Foucault (2001), por seu turno, acrescenta que esta é a aporia3 que temos que aceitar como parte da formação do pensamento crítico contemporâneo, pois este é o problema e o desafio, trabalhar com as contradições, uma vez que a Educação hegemônica como docilização do sujeito querem que os conceitos sejam definições claras e os comportamentos das pessoas transparentes padrões suscetíveis de controle.

Colocados no problema de um pensamento autoafirmativo teremos que reconhecer que as definições gerais são coisas abstratas, são movimentos da ciência moderna racional. Ao contrário, um pensamento contemporâneo crítico explora os limites e abre novas possibilidades de interpretação, de compreensão e resposta. Explorar estes limites nas disciplinas e nos sujeitos se constitui na tarefa para o campo da Educação, dos estudos curriculares e da Pedagogia.

Mas nesta problemática também estão presentes as diferentes realidades que os contextos socioculturais nos colocam para empreender a tarefa de situar a educação como algo que tenha sentido, além do controle e da instrução. E então, como fazer? A resposta não poderá ser outra receita, e, sim, a proposta de trabalhar com uma Educação na perspectiva contemporânea, que terá que lidar com uma pedagogia crítica e uma reflexão permanente, em relação ao seu tempo e à ideia de formação (bildung). Apostar na dúvida como critério de trabalho intelectual significa compreender na instabilidade e nas rupturas e inflexões de todos os tipos, como se dão outras formas de problematizar dentro do que é colocado como contemporâneo. Trata-se de aceitar e construir a possibilidade de uma pedagogia contextual, ou seja, uma compreensão pedagógica a bordo de seu tempo e seus paradoxos, das conjunturas e dos movimentos que caracterizam um projeto de sociedade assimétrico e violento em múltiplos sentidos.

3 Aporia no sentido de não poder fixar um único sentido, o que constitui um sentido dubitativo no pensamento e no próprio linguaje.

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Uma antropologia pedagógica e histórica

A perspectiva antropológica do problema pedagógico contemporâneo compreende os contextos históricos como conjunturais, que se desenvolvem em uma temporalidade de tensão e contradição com a referência de uma reflexão crítica, constituindo-se como o diferencial desta abordagem. O tempo é visto como algo que é construído pelos seres humanos e suas relações, e não como algo dado naturalmente. Portanto, a temporalidade surge como efeito das ações dos homens e não como uma determinação invariável. Ademais, o tempo é como um horizonte de possibilidades que se quer, mas também como um processo contínuo feito de momentos descontínuos, em que as relações de poder colocam os sujeitos em determinados lugares sociais frente aos outros homens.

Uma perspectiva antropológica e histórica como fonte de pensamento crítico para refletir a respeito da Educação e a pedagogia nestes tempos, resulta, antes de tudo, em uma mirada de desconstrução do dado como uma doutrina universal em relação aos homens e sua formação, sua cultura e seu projeto de sociedade. Então, é a partir desta perspectiva, que o que chamamos de natureza humana resulta de uma inter-relação dinâmica e cultural, como lembra Wulf (2013, p. 65):

Ao invés do animal e a planta, cuja natureza já está fixada quando surge, a natureza humana é em grande parte flexível e dinâmica […]. A natureza humana é o resultado de uma inter-relação de condições físicas de um lado, e condições modificáveis, de outro. Não é possível compreender apenas observando seu lado biológico nem sequer se limitando a considerar os elementos de sua variabilidade social e cultural. A natureza é o resultado de um complexo emaranhado de processos biológicos, sociais e culturais, nos quais a Educação e a socialização desempenham um papel central. Pode-se falar, simplificando de uma natureza cultural do homem.

O campo de estudos da antropologia pedagógica e histórica parte do orçamento da formabilidade4 humana, que coloca a questão segundo a qual os

4 A formabilidade, conceito do campo da pedagogia, é entendida como a capacidade de nos formar, dar sentido a nossa vida como projeto em construção, que se encontra paradoxalmente num marco de possibilidades que entende na modernidade o formativo numa perspectiva positiva que extirpa e substitui todo aquilo que não se vê como positivamente humano. A formabilidade permite conceber um projeto de homem que se pode dirigir para melhoras, dada sua indeterminação e imperfectivilidade (ROUSSEAU). Isto também está como princípio no pensamento de Kant e de vários dos Ilustrados, baixo a ideia de transcendência do humano e de uma perspectiva de teorias afirmativas do sujeito.

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seres humanos não nascem feitos e dispostos; eles se fazem em decorrência das suas experiências e da práxis de suas vidas, com o qual aparece com mais clareza o caráter circunstancial, mas também político, do devir humano como um processo inacabado e de possíveis contradições. Este ponto de vista nos coloca diante da necessidade de compreender a práxis da vida humana.

A práxis (a vida humana) não é então um fenômeno biológico, senão antropológico. A práxis é um fazer humano a partir do qual se vê transformado o humano mesmo. Só os seres humanos são seres da práxis já que nelas e com elas, se pode e tem que decidir ou tomar decisões. (RUNGE, 2009, p. 03)

Já no problema da formação do sujeito, questão central nesta abordagem, con-figura-se uma forma de Educação no processo de confrontação dos seres humanos com seus marcos sociais, históricos, culturais e institucionais. Desta perspectiva am-pla da pedagogia reflexiva e crítica, os seres humanos formam-se e se veem remetidos a práticas educativas e discursos do comportamento em um sentido amplo, incluin-do prescrições com respeito ao que são e deverão ser e fazer. Tais processos de orien-tação, modelação no sentido de uma prática de identidades individuais e coletivas que se constroem historicamente, nos permitem identificar critérios de aproximação à dimensão antropológica e pedagógica da vida sociocultural dos seres humanos e o lugar que a Educação ocupa.

Os processos de modelação ocorrem ao longo da formação da pessoa sem que estes processos possam ser reduzidos funcionalmente a preencher um espaço vazio na categoria de Sujeito. Cada experiência, com sua práxis singular, e as trajetórias para tornar-se um sujeito, implica em lidar com tensões, resistências e mudanças em termos gerais e particulares. Como propõe Wulf (2013), a mimeses cultural não é um mero processo de reprodução técnica em sentido literal. Trata-se de uma apropriação, uma aprendizagem, uma recreação que resulta em novos enfoques e sentidos.

A forma de procedermos desde o campo da Antropologia Pedagógica e Histórica está relacionado à produção dos sujeitos e da cultura como problemas históricos, e uma aproximação ao problema da formação (bildung) desnaturalizando os conteúdos políticos, ideológicos e curriculares dos modelos de sociedade e de cultura, que derivam das práticas e discursos da Educação que vão se tornando hegemônicas. Trata-se de uma abordagem crítica, na qual a pedagogia não é concebida como um espaço disciplinar neutral. Pelo contrário, é um campo configurado por forças em tensão que estabelecem sua episteme e seus métodos de trabalho, os quais contém como fundamento concepções

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antropológicas, ou seja, ideias de homem. Assim, o diferencial desta abordagem, segundo Runge (2005, p. 48):

Quem tenha pensado em sua profundidade e visto com lupa aguda as problemáticas relacionadas com a educação e a formação humana, não pode passar de longe em frente ao fato de que tanto a teoria como as práxis pedagógicas sempre se apoiam, bem seja implícita ou explicitamente, em propostas, conhecimentos, conceptualizações e pontos de vista antropológicos. Isto é algo inevitável, na medida em que a pedagogia reflete sobre a educação e a formação humana. Ademais, quando a pedagogia analisa o fenômeno educativo e o devir humano – formação, pessoa, gênesis, individuação – fala geralmente com o propósito – e muitas vezes com o ideal – de fazer dos seres humanos seres mais humanos – isto significa, necessariamente, que sempre se está ancorado a um marco de entendimento determinado do que é ou dever-se-ia entender por humano. Por conseguinte, quando se vê como tarefa da educação o educar aos homens e mulheres para que se humanizem, para que se formem isto supõe como algo presente também a problemática antropológica.

A Antropologia Pedagógica e Histórica passa por uma reflexão analítica em relação ao ser humano, dado que é um ser que se pode formar e educar. Assim, parte-se do princípio de formabilidade humana, conforme pontua Benner (1998), e do fato que precisamente os seres humanos não nascem feitos, mas que eles se fazem no transcurso de suas vidas em suas experiências. Assim sendo, se formam e se veem remetidos a práticas educativas em um sentido amplo. Todavia, há diferentes posturas em relação ao que se entende por antropologia pedagógica. No entanto, a antropologia pedagógica, em uma perspectiva crítica, tem que ser vista como uma antropologia histórico-pedagógica, ou seja, como uma antropologia que se pergunta pela construção das imagens e narrativas que configuram o humano em contextos educativos amplos e diferenciados.

Portanto, à Antropologia Histórica Pedagógica em diferença da Antropologia Pedagógica tradicional, não interessa constituir-se como disciplina única, tampouco interessa definir uma espécie de objeto ou método particular e específico dentro do problema da formação; em diferencial, a AHP (Antropologia Histórica Pedagógica) trabalha questionando precisamente as formas convencionais da Educação que aparecem histórica e socialmente e se especificam em modelos de humanização, que têm com base noções que estão definindo o conceito de humanidade que se quer.

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A AHP, ao interrogar a ideia e as práticas da formação (bildung) dos sujeitos, identificando os fundamentos que atravessam os orçamentos que constitutivamente definem o humano como projeto histórico, localiza a questão educativa como problema antropológico e pedagógico em uma perspectiva necessariamente crítica e contextualizada. Isto é, a Educação e a Formação desde uma antropologia de revisão e análise, de desnaturalização de práticas e enunciados, se pergunta e procura identificar as imagens e narrativas de formação em contextos socioeducativos5 amplos. Este tipo de abordagem compromete-nos a identificar coordenadas que não só passam pelos projetos educativos escolarizados, mas que se adentram nas formas sociais e culturais mais sutis e cotidianas de modelação e regulação da conduta individual e coletiva.

A concepção crítica acerca da Educação que se posiciona a partir desta perspectiva, parte de uma abordagem analítica aos discursos e práticas educativas e pedagógicas contemporâneos, compreendendo com elas seu sentido político e de controle, em que se expressam fundamentos de uma modelação antropológica. É por isso que o estudo das práxis educativas é essencial para esta forma de abordar tais questões.

A Educação como práxis resulta então do fato que o ser humano, em tanto ser imperfeito, é a única criatura que precisa e é capaz de educação. Nem os animais e nem as plantas precisam da educação para ser ou devir tais, ademais, eles mesmos não se educam. A diferença, o ser humano é ou devém em humano a partir do que faz (práxis) de si. Não obstante, com esse fazer não se supera a imperfeição, pelo que o humano se apresenta sempre como tarefa, como projeto, como história. (RUNGE; MUÑOZ, 2012. p. 03)

Colocando-nos nesta referência da abordagem Antropológica da Pedagogia para propor repensar o movimento dos tempos que chamamos de contemporâneos em relação ao papel da Educação e seu projeto formativo. A partir desta perspectiva que tem suas consequências epistemológicas, se desafia a pensar alternativamente o lugar dos saberes e práticas pedagógicas e dos novos compromissos de uma Educação crítica que confronte e desnaturalize o modelo de sociedade que é colocada com incontestável.

5 Entendem-se esses contextos como espaços onde também de maneira formal, não formal e informal, o sujeito vivência processos educativos e formativos, como são: a família, os centros escolares, os centros universitários, a cidade, o espaço de trabalho, as associações, os meios de comunicação entre outros espaços de interação social que comunicam um ideário de pessoa e de vínculo social. A antropologia pedagogia abre a outros entendimentos do lugar da pedagogia e dos processos educativos não escolarizados na contemporaneidade.

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Educação, Universidade e Projeto Político Pedagógico

Conforme Martinez (2005), a Educação universitária em nossos contextos latino-americanos, as questões relacionadas com a formação profissional e a gestão dos currículos são tarefas que demandam novos esforços teóricos e práticos. E mais ainda o estabelecimento de um Projeto Político Pedagógico crítico, como responsabilidade de uma Universidade contemporânea, deverá ter em conta e ajustar-se às necessidades de desestabilizar os currículos do território das certezas e da formação positiva instaurada pela lógica do empreendedorismo e do coaching permanente. Neste contexto, o sentido da crítica se dilui no espaço da afirmação constante das individualidades e das competências que dividem a capacidade de cooperar com o coletivo, com a sociedade.

Uma Educação universitária guiada por esta perspectiva é tocada diretamente por essas necessidades de refletir a respeito do caráter cultural, antropológico e pedagógico de seu projeto de formação, no qual o conceito do contemporâneo mais que uma moda enunciativa, discurso promocional, se coloca como uma necessidade de recompor a função crítica da Educação em relação à sociedade e seu tempo. Em relação a este panorama, Agamben (2008) nos lembra que:

A contemporaneidade é, então, uma singular relação com o próprio tempo, que adere a ele e, a sua vez, toma distância; mas precisamente, é aquela relação com o tempo que adere a ele através de uma defasagem e um anacronismo. Aqueles que coincidem em demasia com sua época quem, encaixa em cada ponto perfeitamente com ela não são contemporâneos, porque, justamente por esta razão não logram olhar, não podem ter fixa a mirada sobre ela. (AGAMBEN, 2008, p. 59)

[...] contemporâneo é aquele que tem fixa a mirada em seu tempo, para perceber não as luzes, senão a escuridão. Todos os tempos são, para quem leva a cabo a contemporaneidade, escuros. Contemporâneo é, precisamente, aquele que sabe ver esta escuridão. (AGAMBEN, 2008, p. 62)

É comum que a Educação seja encarada como um valor único, universal e invariável; e, além disso, como tendo um poder redentor para os sujeitos. Isto é ainda mais reforçado em nossos contextos baixos devido à ideia de subdesenvolvimento. Esta é uma visão que, até hoje, se impõe para o campo da pedagogia, reduzindo-lhe com a apresentação de técnicas de controle mais

Educação e contemporaneidade: uma reflexão antropológica e pedagógica

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sofisticadas, envolvendo a sedução e o desejo de um futuro individual e mais promissor. Assim, mediante a promessa de superação e ganho individual, se promovem os projetos de formação universitária atual, e os currículos também apontam para estes objetivos de fazer do conhecimento disciplinar, um mecanismo de ascensão social.

O Projeto de Universidade contemporânea6 parece, em muitos aspectos, estar alinhado com esses propósitos, uma vez que seu papel e lugar político na sociedade parecem estar enfraquecidos pela necessidade imperante de ser mais competitiva e eficiente em relação a seus indicadores de avaliação. Trata-se de uma carreira permanente em que hoje as universidades latino-americanas têm sido colocadas, na qual princípios como autonomia e pertinência têm sido esvaziados de seus conteúdos pedagógicos e passaram a tomar um sentido mercadológico, dizendo como os programas têm que ser pertinentes em relação aos critérios estabelecidos pelos indicadores de rentabilidade e lucro.

Nesta encruzilhada, a Universidade Pública tem enormes dificuldades para identificar seu caráter de compromisso social na gestão de seus currículos e da formação docente. Essas tensões são evitadas quando se coloca todo o esforço no caráter técnico e burocrático da questão curricular, não dando atenção às reflexões e ajustes que têm a ver com a universidade como um ator político, social, institucional e territorial.

O Projeto Político Pedagógico, enquanto espaço crítico do fazer curricular, da prática pedagógica e da gestão educativa da Universidade Pública, faz relevante a função política que a Universidade tem e seu dever em relação a seu protagonismo no desenvolvimento territorial e seu papel governamental dentro das macropolíticas educativas. Acreditamos que se faz necessário que isso seja discutido e tornado visível como tarefa do currículo e da gestão universitária dentro de outros referentes e contextos de atuação da Educação.

A diversidade de sujeitos e espaços sociais que, produzem hoje a Educação e a formação colocam as problemáticas das identidades, das referências culturais e sociais diversas como desafios para uma Educação e um projeto de formação atualizado, nas quais o campo de estudos da pedagogia não pode ser de outra forma transdisciplinar.

6 Fora de uma perspectiva crítica, o conceito de contemporâneo foi reduzido com inovação e competitividade, com capacidades de assimilação de tecnologias e estilos de vida que não tem nada a ver com os referenciais coletivos e práticas comunitárias ou emancipadoras.

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A Universidade, como um espaço social e político dinâmico, não pode ficar neutra frente a estas mudanças. Finalmente, pensar a Educação Superior na contemporaneidade, a partir de uma perspectiva AHP, significa enfrentar novos desafios para identificar na complexidade social e cultural de hoje como vêm se configurando outros cenários de produção e diálogo do conhecimento pedagógico. Um pensamento contemporâneo, como horizonte de possibilidade, assume uma postura crítica do pedagógico e nos leva ao território do questionamento do estabelecido, evidenciando, particularmente, para o Projeto de Universidade, sua necessidade de reforçar seus vínculos com a sociedade e com a história em geral.

Referências

AGAMBEN, G. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Tradução Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó-SC: Argos, 2009.

BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. Respuestas por una antropología reflexiva. México, Grijalbo, 1995.

FOUCAULT, M. La hermenéutica del sujeto. México: Fondo de cultura económica. 2001.

FLUSSER, V. A Dúvida. São Paulo: Annablume, 2011.

MARTÍNEZ, M. La educación en América Latina: entre la calidad y la equidad. Barcelona: Editorial Octaedro, 2005.

MONTEIRO, F. M. A. Desenvolvimento Profissional da docência: Uma experiência de formação em curso de Licenciatura em Pedagogia. São Carlos, UFSCAR, 2003.

RUNGE, A. Foucault: La revaloración del maestro como condición de la relación pedagógica y como método de formación. Una mirada pedagógica la hermenéutica del sujeto. In: ZULUAGA, Olga, et al. Foucault, la Pedagogía y la Educación. Pensar de otro modo. Bogotá: Editorial Magistério. 2005.

RUNGE, A. Breve introducción al campo disciplinar y profesional de la Pedagogía: Consideraciones básicas sobre pedagogía, práctica educativa y saber pedagógico. Manuscrito no publicado. Medellín: Universidad de Antioquia. 2009

WULF, C. Homo pictor. São Paulo, Hedra, 2013.

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“Proscripción curricular” del conflicto armado en libros de texto colombianos

Edisson Cuervo Montoya

Violencia epistémica en los libros de texto

Sabemos que el concepto de violencia epistémica es presentado por notables académicos de las teorías del poscolonialismo como Dussel (1994) y de las teorías de la subalternidad (GUHA, 2013; SPIVAK, 1988), sin embargo, es claro que a quien debemos reconocer su desarrollo inicial es a la misma Gayatri Chakravorty Spivak, quien en un texto publicado en 1988 y con título ¿Puede hablar el sujeto subalterno? desarrolla de manera interesante sus ideas sobre un concepto de tal potencia como lo es la violencia epistémica, aludiendo con este fundamentalmente a las formas en que se impone determinada episteme a una cultura o grupo social que la ‘adopta’ o la recibe para sí, luego de la anulación de la suya propia de manera sistemática, por parte del grupo o clase social que inocula y/o impone la foránea. Los ejemplos que propone Spivak (1988) a este respecto, siendo bastante sugerentes, nos ilustran en que no necesariamente estamos refiriéndonos a una anulación e imposición epistémica que esté mediada por ejercicios de violencia directa (aunque en varios casos puede serlo), sino que pudiera parecer que dicho ejercicio de violencia se efectuara de manera impasible, socavando las estructuras sobre las que se soporta un sistema cultural, social, religioso, educativo o jurídico, e implantando la nueva episteme, esto es, la del grupo social hegemónico, bien sea político o económico.

Ahora bien, para el caso de la reflexión curricular en educación, dicha noci-ón de violencia epistémica nos posibilita visibilizar otra de las formas en que son manifiesta o subterfugiamente anuladas las epistemes de los grupos sociales (edu-cativos) o profesionales (en el caso de los maestros), que se encuentran y desen-cuentran en los ámbitos escolares. El libro de texto pudiera decirse interviene en la construcción social del conocimiento, imponiendo o inoculando determinada episteme sobre el conocimiento escolar como tal y para un caso particular colom-biano, una episteme bien específica. No siendo otra que aquella que se impone so-bre las formas de comprensión social del fenómeno violento en dicho país, con una idea específica del mismo, emanada de centros de poder institucional (el Estado), religioso (la Iglesia) o de algunos sectores privados de la sociedad (las editoriales).

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Como antítesis de lo anterior, pudiera decirse que precisamente el libro de texto se encarga de modificar las estructuras erradas de conocimiento subjetivo, en determinadas comunidades o, visto de otra manera, el libro de texto circunscribe y condensa el logos escolar que permitirá superar la vana doxa, vulgar y popular que se manifiesta en las comunidades a las que se lleva educación. Sin embargo, puede quedarnos una pregunta: ¿acaso esas comunidades construyen y son partícipes de los conocimientos sobre violencia directa, política o social que se presenta en el material curricular utilizado en los procesos de enseñanza aprendizaje, como lo es el libro de texto?

El problema acá esbozado no es que el libro de texto sea un material de consulta válido o no; las tradiciones didácticas y escolares, así como la historia misma del manual escolar, nos demuestran su validez e histórica utilización. El asunto es preguntarnos por cuáles conocimientos se presentan sobre violencia directa en dichos manuales y, además, reflexionar sobre qué prácticas escolares de construcción de conocimientos sobre violencia se anulan a través del uso del mismo manual escolar, inoculando determinada episteme sobre la idea de violencia directa e imposibilitando el ejercicio de racionalización, reflexión y discusión que pudiera proponerse o presentarse en las propias comunidades que deberían pensar sobre la violencia misma. No olvidemos que el libro de texto es otro interventor sociocultural más en la construcción de la identidad cultural (MORALES; KISS; GUARDA, 2006) de los grupos sociales que se ven influenciados por sus efectos; por tanto, si aquel anula de formas diversas la posibilidad de contradicción o construcción de una episteme comunitaria y escolar, estaría precisamente violentando epistémicamente el quehacer racionalizador de las comunidades académicas que lo tienen como fuente documental valida.

Los estudios que se han realizado sobre el libro de texto y sus implicaciones en el quehacer escolar son de una muy prolífica producción. Baste como ejemplo lo reportado por el Centro de Investigación MANES (Manuales Escolares) de la UNED, que, en junio de 2011, presentaba que, solo en España, en la Bibliografía sobre manuales escolares, se contaba con más de 660 materiales aproximadamente, en los que, a manera de artículo de revista, libro, tesis o monografía, se da cuenta de que el libro de texto hace un aporte enorme a los ámbitos escolares, resultado precisamente de la enorme influencia que tienen estos materiales de trabajo en la vida escolar. Su producción anual es de millones de ejemplares en el mundo y son soporte de lectura, por supuesto, para millones de estudiantes y millones de profesores cotidianamente (RAMÍREZ, 2002).

Ahora bien, por contraste con el alto número de investigaciones sobre libros de texto, en cuanto a multiplicidad de conceptos o aspectos educativos

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variados, podemos mencionar que es marcadamente menor la producción sobre la reflexión del tratamiento que en textos escolares se hace del concepto de violencia (o de términos asociados a ella), hasta el punto de hacerse notable que países como México, desde su legislación más actual, vienen reclamando la inclusión en dichos libros de contenidos como la prevención de la violencia escolar, la educación para la paz y los derechos humanos, entre otros temas de planteamiento transversal1 y que manifiestan alguna relación con nuestra preocupación teórica.

Se hace entonces importante destacar que los trabajos que un centro de investigaciones sobre libros de texto y manuales escolares de histórica trayectoria y reconocimiento mundial, como lo es el Instituto Georg Eckert para la Investigación Internacional sobre Libros de Texto,2 tuviera su origen después de los fenómenos de hipernacionalismo de la Primera Guerra Mundial, cuando la UNESCO, posteriormente al fin de la guerra, promovió precisamente la investigación en dicho campo, dado que el “papel negativo desempeñado por los libros de texto en la configuración de la idea de enemigo había quedado ya muy claro” (Página web oficial del Georg Eckert Institute, sesión de historia, S/F).

Además, debe señalarse el papel que ha desempeñado esta línea de investigación en la comprensión internacional posterior a acciones bélicas de notado impacto, como lo fue el Acuerdo Franco-Alemán sobre temas controversiales en los libros de texto (Franco-German Textbook Commission), alcanzado en 1951, y el desarrollo del trabajo de la Comisión Germano-Polaca de libros de texto, en 1975 (RUCHNIEWICZ, 2008); además del trabajo sobre libros de texto desarrollado en por el Instituto de Investigación para la Paz en el Medio Oriente,3 donde se puso en marcha el proyecto de investigación “Learning Each Other’s Historical Narrative in Israeli and Palestinian Schools”, en el cual se presenta, desde un ejercicio de narrativa construido por ambas partes enfrentadas y en sus propias lenguas maternas, la historia y pormenores

1 Ver el ACUERDO número 689 del Secretario de Educación Pública de México, por el que se establecen los lineamientos a que se sujetará el procedimiento de evaluación para autorizar el uso de obras destinadas a servir como libros de texto en las escuelas secundarias del Sistema Educativo Nacional que se sometan a consideración de la Secretaría de Educación Pública.

2 El Das Georg-Eckert-Institut – Leibniz-Institut für Internationale Schulbuchforschung, es un centro fundado en el año 1975.

3 El Peace Research Institute in the Middle East es, como ellos mismos se describen en su página web, “…una organización no gubernamental, sin fines de lucro, establecida por investigadores palestinos e israelíes, con la ayuda del Instituto de Investigación de la Paz en Frankfurt, Alemania. El propósito de PRIME es perseguir la convivencia mutua y la consolidación de la paz a través de actividades de investigación y difusión conjuntas”. Puede consultarse más sobre este centro en: http://vispo.com/PRIME/.

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del conflicto palestino-israelí. Solucionando así, en parte, el hecho de que los alumnos y alumnas “[…] que estudian la historia en tiempos de guerra o conflicto aprenden un solo lado de esa historia” (ADWAN; BAR-ON; MUSALLAM; NAVEH, 2003, p. 03).

Es importante señalar que las discusiones, recomendaciones y análisis sobre los contenidos de libros de texto en relación con las temáticas de guerras y visión del oponente no son nada nuevas,4 aunque tampoco están desactualizadas; el debate está servido, tal como podemos observar con Banerjee y Stöber (2010), quienes mencionan que los retos actuales en este campo tienen que ver con lo que se ha entendido como la búsqueda de un “libro de texto europeo”, que aborde en conjunto, y para toda la Unión, temas como la inmigración, las escuelas internacionales y la evaluación, discusiones que llegan después de cuestiones de guerras internas europeas.

De igual manera, Deepa (2010) y Podeh (2010) indagan, por un lado, la primera autora, en los efectos y dinámicas de los libros de texto en los conflictos por la unificación de los criterios de construcción de la idea de nación en los estados del sur de Asia; y, en el caso del segundo autor, en los libros de texto publicados de 2000 a 2010, con respecto al mencionado conflicto palestino-israelí, descubriendo que no son muchos los cambios hechos en los libros de texto con respecto a las posiciones políticas representadas en tales textos.

Sobre esto último nos interesa volver a mencionar el ejercicio investigativo realizado por el PRIME sobre dicho conflicto del Medio Oriente, por el contraste que marca la narrativa histórica sobre quién es el enemigo en los procesos de enseñanza de la historia, poniendo en confrontación cognitiva al sujeto educando (y al profesorado, por demás) con los discursos bélicos y violentos que se encuentran afincados en los grupos sociales victimas de históricas disputas. La metodología empleada en dicho ejercicio fue la recolección, por separado, de las narrativas del mencionado conflicto palestino-israelí hechas por estudiantes y maestros de ambos países, con las cuales fue construido posteriormente un manual unificado, que fue puesto a prueba en aulas de colegios de ambas partes.

La investigación mostró que los libros de texto que emplearon los maestros en los colegios estudiados suelen estar centrados en el conflicto que padece el respectivo grupo social, con la información de sus pérdidas humanas y

4 Nos recuerda (Eckhardt, 2010) que desde 1925 la Sociedad de Naciones se interesó por el tema de los libros de texto con la llamada Resolución Casares, que pretendió regular y mejorar la historia en los libros de texto, para la promoción de la paz, y que finalmente no fue oída para hacer una regulación internacional de estos. Y en el año de 1932, dicha Sociedad de Naciones publicó el informe crítico sobre el estado de los libros de texto de la historia sujetos, geografía, y educación cívica y moral.

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sufrimientos; y, por lo contrario, lo importante de los periodos de paz y coexistencia no se presenta o se descuida. Los investigadores destacan a su vez que el profesorado convertido en emisario cultural de cada nación se ve sometido a que se ponga de relieve la bondad de esta, frente a la maldad de la otra parte contendiente (ADWAN; BAR-ON; MUSALLAM; NAVEH, 2003).

Una herramienta, por tanto, bien relevante para indagar en los libros de texto en torno a la categoría violencia directa o armada es el concepto de ideología, vinculado precisamente a los desarrollos teóricos de las críticas que emanaron de la Escuela de Frankfurt y entendiendo puntualmente por ella lo referido anteriormente, cuando aludíamos con Torres (1991), como una visión del mundo que marca las pautas de comportamiento en él, además de los significados que se configuran a partir de esta. No pudiendo pasar de largo por la claridad que a este respecto hace Silva (2001) cuando nos recuerda que uno de los primeros en trabajar dicho concepto de ideología con relación a los sistemas escolares fuera Louis Althusser, en su ensayo Ideología y los aparatos ideológicos del estado, donde la ideología tiene que ver con las creencias que nos hacen ver legítimas determinadas estructuras sociales, además de que ellas se entregan y difuminan a través del quehacer escolar.

Y es que, entre otras tecnologías educativas que forman parte de la cotidianidad de la escuela, el libro de texto es una herramienta que, además de coadyuvar a las labores de enseñanza y aprendizaje, paralelamente y para el interés puntual de los discursos de los Estados y su ideología, constituye un material imprescindible a la hora de conformar tanto la nación como las identidades de los conciudadanos. Una relación indiscutible entre libros de texto e ideología, incluso una tautología, según Blanco (2001), quien dirá que es impensable eliminar o evitar la realidad de dicha relación, en torno a lo que cumplen política e ideológicamente los libros de texto en los educandos.

También Martínez y Rodríguez (2010) plantearán en su momento que la relación entre el currículum y los libros de texto supone un ejercicio dialéctico siempre abierto en torno a los ejercicios de selección y legitimación del conocimiento impartido en las escuelas, entre otras cosas porque puede ser entendido como “el principal recurso de la instrucción” (MARTÍNEZ; RODRÍGUEZ, 2010, p. 249). Y, en este mismo sentido, González García (2005) planteará que el material curricular, como lo es el manual escolar, es un modo de interpretar, comprender y hacer currículum, convirtiéndose, por tanto, dicho material educativo, en un soporte para la instrucción, dependiente del uso que haga el profesorado de él para que, en realidad, sea un medio facilitador de los procesos de enseñanza y aprendizaje del alumnado.

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Está claro que un trabajo teórico imprescindible para comprender dichas relaciones entre el currículo y la ideología es el de Apple (1986), que nos acerca un poco más a la más a la comprensión de la legitimidad del conocimiento escolar, tal como él mismo declara en Apple (1993), donde se pregunta qué conocimientos son los que tendrán más valor en el currículum escolar y de quién son explícitamente esos conocimientos, aclarando subsecuentemente que “lo que se considera conocimiento legítimo es […] el resultado de complejas relaciones de poder y de luchas entre clases, razas, sexos y grupos religiosos identificables” (APPLE, 1993), conocimiento que se materializa y entrega en los libros de texto, material curricular de consulta del profesorado y, por excelencia, de los estudiantes (GIMENO, 1997; 1988).

La investigación, pues, sobre esos elementos ideológicos que delimitan los libros de texto no es poca. Encontramos diversas líneas de trabajo y metodologías para indagar en los mismos. Pero no menos importante es señalar que, si bien se ha hablado de la incidencia y utilización de la red de redes como recurso alternativo al libro de texto en el ámbito escolar (ADELL, 2004), por ser, para los más optimistas, más democrática, pudiéramos argumentar que desde esa noción de violencia epistémica generada en los ámbitos escolares, la internet puede muy bien perpetuar o trasladar dichos ejercicios de anulación o inoculación de principios de legitimidad o incluso validación epistémica de la violencia misma en las comunidades, toda vez que múltiples grupos xenófobos, ultrarreligiosos, violentos o terroristas, de izquierdas o de derechas, alientan el uso de la violencia como vía legitima para acceder a derechos.

Por ello, recalcamos el valor de la mediación del maestro para la selección del material escolar estudiado y las fuentes de consulta disponibles para comprender y problematizar los fenómenos que, como la violencia directa o las violencias en general, necesitan de toda una comunidad de aprendizaje que las problematice desde el aula y desde sus comprensiones subjetivas o experienciales de ella misma.

Caso puntual de ese ejercicio de violencia epistémica en el libro de texto será el que se presenta por obnubilar, como efecto de su implantación epistémica, la comprensión que la comunidad educativa pueda tener sobre los fenómenos de violencia que ella misma padece y/o la influencia que dicho manual escolar pudiera realizar en los debates e indagación del contexto escolar sobre las causas y efectos de las problemáticas sociales complejas de su entorno más próximo, como efecto precisamente del desperdicio de la experiencia particular del sujeto que hace la escuela (MARTÍNEZ, 2010) y que se potencializa desde dicho ejercicio de violentamiento epistémico, que promueve y efectúa, en cierto sentido, dicho manual escolar o libro de texto.

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La violencia epistémica ejercida por los libros de texto puede obnubilar o negar, precisamente, los ejercicios de violencia directa y/o simbólica que las propias sociedades o comunidades padecen cotidianamente. Investigar sobre las formas en que se cuentan y se representan la historia, la cotidianidad y el rigor de las violencias sociales forma parte fundamental del quehacer educativo; al contrario de la vía de silenciamiento, negación o anulación de las realidades de esas mismas comunidades, configurando estos efectos por otra vía, la de un ejercicio de currículum proscrito, referido a las formas curriculares en las que se excluye y destierra voluntariamente del espacio escolar determinados conocimientos, que son considerados inapropiados, indecentes o peligrosos.

Presentación de contenidos sobre violencia directa y armada en libros de texto colombianos

Indagar en algunos de los libros de texto utilizados por los maestros y maestras de algunos centros escolares colombianos, en torno a la presentación de los conceptos de violencia directa y/o armada, nos permitió acercarnos, hace poco, a las formas en que se organiza y se pone a disposición la información sobre esta temática en particular, para los respectivos procesos de selección de contenidos, con las mencionadas repercusiones que tiene en las dinámicas educativas, el tener al alcance de la mano determinados conocimientos y otros no. De esta manera, podemos decir que, en 11 (once) libros de texto y 3 (tres) editoriales seleccionadas, bajo los criterios de utilización cotidiana y reconocimiento por un grupo de profesores y profesoras que laboran en zonas de conflicto social en la ciudad de Medellín (Colombia), tres (3) son las categorías de análisis que pudimos diferenciar en el tratamiento sobre la violencia directa en Colombia, a saber:

a) Actos y elementos de violencia incluidos y presentados en libros escolares de Colombia;

b) Víctimas y victimarios en los libros de texto;c) Tiempos y lugares de la violencia en Colombia en los libros de texto.

Pasemos, pues, a desarrollar cada una de estas categorías diferenciadas y que pueden ayudar a comprender la forma en que los libros de texto presentan contenidos sobre violencia cuando ellos mismos son estudiados en regiones que se encuentran influenciadas o afectadas por los mismos fenómenos de violencia.

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a. Actos y elementos de violencia incluidos y presentados en libros escolares de Colombia

Por actos y elementos de violencia entendemos los hechos concretos e instrumentos específicos que materializan la violencia directa y armada en los respectivos manuales. Así, por lo que respecta a actos y elementos, nos referimos, por un lado, a la serie de hechos que materializan y hacen tangibles las expresiones de violencia directa y armada en distintos momentos y regiones de Colombia, más concretamente en la ciudad de Medellín, donde el asesinato, la tortura, un atentado con carro bomba, un secuestro, las amenazas contra la vida de las personas, entre otros hechos, cristalizan o cristalizaron la propia violencia, que, a su vez, es ejecutada con elementos o artefactos concretos para materializarla. Instrumentos que también fueron identificados en tales manuales, haciendo emerger de esta manera nuestra primera categoría.

Y bien, decimos actos como hechos tangibles de violencia y elementos como aquellos artilugios materiales para ejercer violencia, porque, contrario a las generalizaciones sobre el concepto mismo de violencia, consideramos que, en los libros de texto estudiados, la violencia se presenta en los manuales escolares, por un lado, apelando igualmente a generalizaciones sobre el concepto, pero también (y allí nuestro mayor interés) referenciando acciones concretas y particulares, siendo ejecutada esta violencia, a su vez, con artefactos u artilugios específicos, como un arma de fuego, un carro bomba o un machete, entre otros elementos, con los que se hace posible, de alguna manera, el ejercicio de la violencia directa como tal. Y es necesario establecer esta diferenciación (actos y elementos de violencia), toda vez que consideramos que no existe una violencia como concepto abstracto, que se difumine entre las poblaciones de víctimas. Hay acciones específicas de violencia directa, que se dirigen contra víctimas particulares que la padecen, siendo utilizados elementos materiales concretos, en muchos de los casos, para llevar a cabo la misma.

Así, podemos decir que, en los textos escolares colombianos objeto de estudio, se habla, en muchos casos, de la violencia con un tono netamente generalista, que puede obnubilar o anular el sentido propio de la violencia directa que afecta a las comunidades de la ciudad de Medellín (donde desplegamos nuestra pesquisa), proponiendo, por ejemplo. en uno de los textos de filosofía estudiados, y desde el propio estándar del tema, el “Comprender mediante argumentos los problemas morales implicados en el asesinato, la guerra, la eutanasia, la experimentación científica, la pobreza y otras realidades cotidianas que motivan la reflexión ética” (SERRANO; RODRÍGUEZ; OCHOA, 2006, p. 57), esto es,

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un estándar de competencia que, entre otros aspectos, pretende generar reflexión crítica en los estudiantes sobre temas como la guerra y el asesinato, pero que, curiosamente, centra el análisis posterior única y exclusivamente en las temáticas de la eutanasia, el aborto, la experimentación científica y la pobreza, dejando de lado (es decir anulando) la temática de la guerra, a pesar de iniciar el capítulo que lo cobija con imágenes alusivas a un conflicto bélico manifiesto, en donde se observa a unos militares canadienses portando fusiles de asalto e iniciando la parte teórica de temario anunciado con la pregunta “¿Qué hay de malo en matar una persona?”(SERRANO; RODRÍGUEZ; OCHOA, 2006, p. 57).

Queda por tanto, referida la violencia directa, en nuestro anterior ejemplo, a un aspecto general de los problemas morales relacionados con el asesinato, perdiendo fuelle la posible reflexión que se desataría al abordar explícitamente el tema de la guerra y el asesinato en acciones bélicas, dedicándose, el mencionado texto, a otras problemáticas igualmente importantes, pero que no se encuentran relacionadas con las realidades de violencia directa de los estudiantes (e incluso los maestros) que planean y desarrollan su quehacer curricular con dicho texto. De igual manera, cabe mencionar que, en varios casos, se presenta a las fuerzas armadas como actores exclusivamente de paz, que no de acción violenta y bélica, como básicamente es su propósito social, configurándose así una retórica visual que compone un discurso casi de ternura y salvaguardia del orden.

En apoyo de lo anterior, debemos mencionar que, aunque también son abordados en algunos de los libros de texto estudiados, ciertos actos de violencia directa que retratan realidades particulares del ejercicio de violencia directa que acaece en Colombia y, dicho sea de paso, escasos hechos violentos ocurridos en la ciudad de Medellín, tal como lo observamos en otro de estos manuales, podemos comentar lo encontrado particularmente en un libro de texto de ciencias sociales del noveno (9º) grado, donde, en un ejercicio de presentación de la Colombia Contemporánea, según se indica y bajo el estándar de competencias “Manejo conocimientos propios de las ciencias sociales” (PRIETO et al., 2010, p. 190), en el componente “Relaciones con la historia y la cultura” (PRIETO et al., 2010, p. 191), se le dedican solo cuatro (4) breves párrafos al tema del narcotráfico en Colombia y solo un (1) párrafo al tema del paramilitarismo, siendo acompañados tales apartados de una imagen de campesinos cultivando hoja de coca y una de las víctimas del conflicto en dicho país. Insuficiente y genérico contenido escolar visual, a nuestro criterio, ya que la acción de pensamiento propuesta por el mismo libro de texto, con estos cinco párrafos, es comprender “…los efectos perjudiciales del narcotráfico para Colombia” (PRIETO et al., 2010, p. 200).

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Así mismo, en Galindo, et al. (2010), de Santillana, se dedican solo 8 párrafos a la exposición de la problemática del narcotráfico en Colombia y su relación con el conflicto que acaece en el país, direccionando la atención del docente y del discente al tema de “los cultivos ilícitos” y su afectación de “[…] la cobertura vegetal de los bosques, la producción de alimentos… y problemas económicos y sociales…” (Galindo, et al. 2010: 69), deslindando las relaciones de una problemática campesina de estas proporciones de sus repercusiones a nivel de violencia directa urbana en el país y centrando la atención en el problema del narcotráfico con el cultivo de la planta de coca (Erythroxylum Coca), sin mencionar, por ejemplo, que el cultivo de dicha hoja es ancestral en muchas comunidades indígenas del país y señalando dicho cultivo de la planta de la coca (Erythroxylum Coca) como el problema en sí mismo, sin la promoción de una reflexión crítica sobre el hecho, que señale las diferencias entre el uso religioso de la misma y su explotación industrial e ilícita. Consecuencia de la presentación teórica del contenido como de su acompañamiento visual, que estigmatizan el cultivo de la coca y lo asocian directamente a la problemática violenta del país.

Por contraste a lo dicho, varios aspectos que representan acciones concretas y particulares de la violencia en Colombia fueron detectados y, sobre ellos, podemos decir que se observaron representados de manera escrita algunos y otros, visualmente. Entre ellos, los siguientes hechos:• Acciones de violencia directa o delitos contra la vida de las personas• Acciones violentas contra la propiedad privada• Acciones violentas contra la libertad• Acciones violentas contra la dignidad humana

Ahora bien, toda vez que nuestro interés no era realizar un estudio estadístico o un análisis de frecuencia de la aparición de los términos citados anteriormente, pasaremos a comentar algunos de los mismos, ya que existen matices y puntualizaciones que resulta importante mencionar, no sin antes dejar claro que, si bien en el grueso de los textos se observaron tratamientos generales y específicos sobre la violencia directa en el mundo o en América Latina, máxime en los momentos de abordaje histórico del siglo XX, con sus pormenores belicistas e importantes altibajos de violencia, nuestra mirada se direccionó a lo que a Colombia específicamente se refería, desde el punto de vista histórico y, en algún sentido, geográfico.

Así, en cuanto a las acciones violentas o delitos contra la vida de las personas, podemos decir que, en los textos estudiados, se mencionan asesinatos a particulares, asesinatos selectivos, masacres y/o magnicidios. Puntualizando

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que el tratamiento de eventos como el asesinato se realiza, en dichos textos, básicamente como una exposición estadística, tal como podemos verlo en el texto de Sánchez, et al. (2008, p. 139), cuando dice que “[…] en 1957, la cifra de homicidios se aproximó a los 40 por cada 100.000 habitantes. Diez años después, esta cifra se redujo a casi la mitad y, hacia 1987, volvió a la cifra de los años cincuenta”. Así mismo, alusiones generales sobre asesinatos selectivos perpetrados en este caso por los paramilitares contra “[…] políticos de izquierda, activistas de paz y miembros de organizaciones no gubernamentales […]” (PRIETO et al., 2010, p. 97).

Similar caso al referirse a las masacres, las cuales son comentadas en varios casos como hechos adicionales a estrategias de guerra, violencia armada o intimidación, sin detallar en análisis concretos sobre el desarrollo de alguna de estas masacres en particular, tal como fue observado en el manual de Galindo et al. (2010, p. 67) donde al presentar los modelos de accionar de los paramilitares, refieran que estos “[…] por medio de amenazas, asesinatos y masacres, aterrorizaron a diferentes poblaciones […]”, tratando el tema de manera genérica, en detrimento de nuestro interés de observar la utilización de recursos que les pudieran ayudar a conocer la realidad concreta del país a los y las estudiantes, por ejemplo mediante la utilización de temáticas que abordasen alguna de las masacres que han sido ya juzgadas por la justicia colombiana y que forman parte de la historia reciente del conflicto armado del país.

Por otra parte, en cuanto a los llamados magnicidios o muerte de personas muy importantes por su poder o cargo (DRAE, 2001), debemos mencionar que estos sí que son nombrados de manera puntual, tanto las personas públicas victimizadas como los hechos luctuosos que acompañaron al magnicidio, tal es el caso que encontramos en el texto de Galindo, Ortiz, Borja y Odermatt (2010, p. 118) al decir que “[…] las contiendas entre las guerrillas liberales y la policía conservatizada (…), tuvieron su punto más álgido con el asesinato del caudillo liberal Jorge Eliecer Gaitán el 9 de abril de 1948 […]”, magnicidio que entre otras cosas, es el de mayor tratamiento en los libros de texto, asociado a los eventos que se conocieron posteriormente en Colombia como el Bogotazo, hechos de importante trascendencia política en la historia violenta del país.

Los contenidos que atienden a la violencia directa en relación con delitos contra la propiedad privada se refieren a las formas en que “los grupos armados atacan a los civiles de manera selectiva, saquean sus bienes por considerarlos simpatizantes del enemigo” (MALDONADO et al., 2010, p. 71). Así, los hechos que se pudieron observar en los libros de texto tienen que ver, por ejemplo, con los hurtos y extorsiones que los distintos grupos armados han ejecutado a lo

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largo de su accionar violento en dicho país. Así como también la utilización del secuestro no solo como un accionar violento con fines de presión política, sino también de orden económica, esto es, el secuestro extorsivo, en plena emergencia de acciones violentas contra la libertad de las personas.

Por otro lado, en cuanto a los delitos o hechos violentos contra la dignidad humana, estos se abordan fundamentalmente desde el tratamiento de temáticas alusivas a la violación sistemática de los Derechos Humanos en Colombia, objetivándose esta, en la mención de actos como la tortura, la intimidación armada en contra de la población, la desaparición forzada y el desplazamiento forzado,5 entre otros hechos contra la dignidad de las personas que han tenido concurrencia en dicho país, siendo así constantes manifestaciones de violencia directa, por ejemplo, en cuanto al desplazamiento forzado se refiere, y entendido ese fenómeno como el desalojo y traslado obligado de miembros de la sociedad civil por vía de la amenaza o la agresión directa, encontrándonos algunos ejercicios de presentación de ello, desde el contenido teórico, donde se identifican a unos u otros miembros de grupos armados (principalmente la guerrilla y los paramilitares) como propiciadores y ejecutores de los hechos en mención, tal es el caso de los paramilitares y su relación con estas acciones violentas, en la medida que su accionar de terror se desató sobre varias poblaciones, poniendo “…a sus habitantes en la disyuntiva de integrarse a las AUC,6 irse de la región o morir” (GALINDO et al., 2010, p. 67).

De igual manera, por lo que respecta a la intimidación armada a la población, se hacen en varias ocasiones alusiones completamente generalistas, tal como observamos en el ejemplo presentado en el texto de Melo et al. (2009, p. 189), cuando dice que “[…] en 1990 (las FARC) perpetraron 280 ataques en 120 municipios. En 1991 esta cifra se elevó a 668 ataques en 243 municipios”.

Ya desde el punto de vista grafico o visual se debe mencionar que, por lo que respecta a actos de violencia, en los libros de texto se incluyen fundamentalmente imágenes de eventos violentos realizados en distintas zonas de la geografía colombiana, como por ejemplo edificaciones destruidas, desplazamiento forzado, alguna persona asesinada e integrantes de determinados grupos armados reconocidos públicamente, como lo son guerrilleros rasos o comandantes de las FARC, algunos paramilitares o comandantes de los mismos y miembros de la

5 “Es desplazada toda persona que se ha visto forzada a migrar dentro del territorio nacional abandonando su localidad de residencia o actividades económicas habituales, porque su vida, su integridad física, su seguridad o libertad personales han sido vulneradas o se encuentran directamente amenazadas…” Ley 387 de 1997 de la República de Colombia.

6 AUC, sigla de las Autodefensas Unidas de Colombia, grupo paramilitar de ultraderecha.

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fuerza pública, fundamentalmente, estos últimos, en formaciones militares y no en operaciones activas de violencia directa, así como también se pudieron observar algunas fotografías de explosiones, imágenes que, por tanto, objetivan las formas de violencia que se quieren representar.

Y, por lo que respecta a elementos de violencia o elementos para ejercer la violencia, se observaron en los textos, básicamente, fotografías de personas con uniformes de guerra y armadas con fusiles en posición pasiva y actitud bélica, alguna bomba antipersonal, tanques militares y algunas armas de fuego. También se encontraron ciertos dibujos, pero no siendo esta forma de representación visual una constante.

b. Víctimas y victimarios en los libros de textos de la muestra

Nuestra segunda categoría de análisis tiene que ver con las víctimas y victimarios que son presentados en los libros de textos del estudio referido, sujetos que también deben ser identificados, por un lado, como miembros concretos de la población y que padecen o han padecido los rigores de misma violencia directa y, por otra parte, como específicos ejecutores de la misma (victimarios). No obstante en el primer caso, pudiera hablarse de las víctimas en general, como “víctimas de la violencia en Colombia”, observamos que se corre el riesgo de invisibilizar a determinadas partes de la población afectada por actos y elementos de violencia, siendo evidente, por ejemplo, el hecho de no poder ponderar de la misma manera la muerte de un soldado, un policía, un sicario, un guerrillero o un paramilitar, en acciones bélicas manifiestas y declaradas, con el asesinato de un miembro de la población civil, aunque fuera en el mismo tiempo y lugar. Sabemos que las diferenciaciones entre la población civil y los agentes bélicos se encuentran debidamente legitimadas desde el Derecho Internacional Humanitario, cuando reza en el Protocolo II adicional a los Convenios de Ginebra de 1949 relativo a la protección de las víctimas de los conflictos armados sin carácter internacional del año 1977 que “La población civil y las personas civiles gozarán de protección general contra los peligros procedentes de operaciones militares. Para hacer efectiva esta protección, se observarán en todas las circunstancias las normas siguientes” (Numeral 1, Artículo 13, Título IV).

Ahora bien, por lo que respecta a las víctimas, podemos decir inicialmente que estas, como lo mencionábamos anteriormente, son representadas en gran parte de manera general en los libros de texto, aludiéndolas y/o representándolas visualmente de manera genérica, nombrándolas

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esencialmente como “población civil”, tal como podemos observar en la presentación e identificación de los ataques a esta población en la segunda mitad del siglo XX en un texto de 11º grado:

[…] el enfrentamiento no fue directo entre las fuerzas en contienda, sino que se manifestó a través del asesinato de líderes políticos y populares, supuestamente apoyados por la guerrilla, y el asesinato sistemático de campesinos a quienes se les acusaba de ser de uno u otro bando… (MALDONADO et al., 2010, p. 68)

Observamos así, un marcado acento en las víctimas de origen campesino, que nos lleva a intuir un despliegue del conflicto en zonas rurales, no obstante el pleno conocimiento general de que la violencia directa y armada en Colombia también ha tenido un importante despliegue en los grandes centros urbanos del país, en ciudades como Bogotá, Cali y Medellín, entre otras, donde la objetivación del conflicto ha llevado a que la presencia de actores armados de distintos grupos y de diferentes intereses hayan posibilitado la emergencia de víctimas en dichas ciudades, razón por la cual podemos decir que hace falta una mayor profundización en las realidades de las víctimas urbanas, quienes en muchas ocasiones cargan con el sino de ser víctimas rurales que continúan siendo víctimas en las urbes.

Con excepciones marcadas en cuanto a dicha generalización, a la hora de representar a ciertos personajes públicos que han padecido los rigores de la violencia directa y armada en carne propia, son varios los personajes de reconocimiento público que se mencionan tanto de manera escrita como visualmente. Tal es el caso, por ejemplo, de Rodrigo Lara Bonilla, ministro de Justicia en el año 1984 y que fuera asesinado por sicarios al mando del narcotraficante Pablo Escobar Gaviria, o el de Luis Carlos Galán, político colombiano candidato a la presidencia de la Republica para el año 1990 y que también fuera asesinado por órdenes de grupos de narcotraficantes en el año 1989.

Por similar eje discursivo, en cuanto a los victimarios, podemos referir que fundamentalmente identificamos bajo esta categoría a:• Las guerrillas partidistas y las guerrillas revolucionarias• Los narcotraficantes y• Los paramilitares

Teniendo de presente, así mismo, que en algún caso se nombra la participación de “algunos” miembros de las fuerzas del Estado en las violaciones sistemáticas de las normas del DIH, aunque no es un tema que se analice de

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manera amplia ni acerca del cual se mencionen casos específicos. Así, cuando de los grupos guerrilleros se habla y representa, es importante decir que se diferencia en estos a las guerrillas bipartidistas de la segunda mitad del Siglo XX, en el período histórico colombiano más conocido como “la violencia”, así como también se hace alusión a las guerrillas revolucionarias de izquierda con principal ascendencia en los años 70 y 80, con una injerencia directa en la nominación de la violencia de cuño rural en el país.

[…] En los años cincuenta del siglo XX surgieron las guerrillas liberales, producto de la persecución política por parte del gobierno conservador… el país se vio envuelto en un enfrentamiento entre liberales y conservadores que dejó un saldo de cerca de tres mil muertos… A lo largo de los años sesenta del siglo XX, hicieron su aparición las guerrillas revolucionarias que pretendieron disputar el poder a los partidos tradicionales a través de una guerra revolucionaria […]. (MALDONADO et al. 2010, p. 68)

De esta manera son nominados algunos miembros de las guerrillas, dando materialidad a la imagen del guerrillero como persona del campo y desmarcándolo en la mayor parte de los casos de la representación guerrillera que afectaron en los años 80 y 90 las principales ciudades del país, el guerrillero entonces se representa como alguien afín a la guerra, un personaje de principalmente ascendencia campesina, sin estudios y sin idearios o formación política.

Ahora bien, desde el punto de vista gráfico, observamos que se incluyen para representar a los mencionados guerrilleros o guerrillas revolucionarias, fotografías donde puede observarse principalmente a integrantes de las Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC), no obstante ser de conocimiento público que este no es el único grupo guerrillero que hace presencia en territorio colombiano. Además, se reitera, a través de las imágenes que pudieron observarse, la idea de una guerrilla revolucionaria rural, con poca presencia en zonas urbanas, con una única fotografía encontrada que representa un accionar bélico de una guerrilla revolucionaria en la ciudad de Bogotá.

Por lo que tiene que ver con los narcotraficantes, como actores del conflicto armado en el país y victimarios que han promovido o promueven y ejecutan actos de violencia directa, podemos decir que, en los libros de texto colombianos objeto de estudio, se les nombra de manera genérica con relación a su negocio ilegal con las drogas, como es el caso que puede observarse en los textos de ciencias sociales de 9° y 10°:

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La influencia del narcotráfico en la situación de violencia en Colombia es innegable. Desde su nacimiento, hacia 1960 con los diferentes carteles de narcotráfico (cartel de Medellín, cartel de Cali, cartel del Valle y el cartel de la Costa) […] (GALINDO et al., 2010, p. 68).

Para la década de 1980, los llamados ‘narcos’ controlaron el tráfico de estupefacientes a nivel internacional. Haciendo uso del dinero ilícito, se relacionaron tanto con los sectores más altos como con la población carente de oportunidades (MALDONADO et. al., 2010, p. 200).

El narcotraficante como actor y participe de la violencia directa y armada en Colombia, y representado en los libros de texto, por tanto, está identificado a través de la nominación de algunos de sus representantes históricos, como es el caso de Pablo Escobar Gaviria, Carlos Ledher y Gonzalo Rodriguez Gacha. De hecho, solo se encontraron estos nombres en el texto de Maldonado et al. (2010). Y, ya desde el punto de vista de la imagen, podemos decir que no se incluyen en los libros de texto imágenes de narcotraficantes reconocidos, ni de sus ostentosas prácticas consumistas o de su accionar violento, rasgos propios del actuar de estos victimarios, ni imágenes alusivas al negocio del narcotráfico. Solamente se pudieron identificar algunas pocas imágenes en todos los textos estudiados donde se muestrea los narcotraficantes como victimarios.

Por otra parte, en lo atinente a los paramilitares, es importante referir que, si bien son mencionados, no es desarrollado un análisis amplio sobre el fenómeno, aun a sabiendas del gran impacto que dichos grupos tuvieron (o han tenido) en la violencia directa y armada que afectó a diversas zonas de Colombia hacia finales del siglo XX y principios del XXI, entre ellas la ciudad de Medellín. En nuestro estudio se detectaron breves caracterizaciones de estos grupos armados. En particular, diciendo por ejemplo que:

Los paramilitares entran a escena. Simultáneamente con el fortalecimiento de la guerrilla, empezaron a aparecer los grupos paramilitares, como respuesta a los abusos y amenazas de la guerrilla, y otros conformados por narcotraficantes que veían en las guerrillas una amenaza de control de los territorios donde sembraban los cultivos ilícitos. (MALDONADO et al., 2010, p. 68)

Y es relevante este dato, toda vez que la ciudad de Medellín se vio afectada de manera particular por tales grupos delictivos de ultraderecha (Amnistía

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Internacional, 2005; NOREÑA, 2007; MONTOYA, s.f.) en un período amplio, afectando probablemente tal invisibilización de estos hechos, en los libros de texto, los procesos educativos de los centros escolares de la muestra, en la medida que un no abordaje teórico del problema no promueve el análisis del mismo por parte de los y las estudiantes que aprenden de los currículos moldeados por los maestros y maestras que utilizan tales textos, para sus planeaciones curriculares y las clases mismas.

Ya en el plano de la imagen, se observa igualmente que la del paramilitar es relacionada directamente con alguien que hace presencia en zonas rurales, a pesar de que el actuar violento por parte de estos grupos también se desarrolló con especial impacto en zonas urbanas de pequeñas, medianas y grandes poblaciones. Puede generarse entonces en el profesorado y los estudiantes, que se ven influenciados por los contenidos de estos libros de texto la idea de que la violencia directa y armada tiene teatro de operación fundamental en zonas rurales e incluso selváticas del país, empero unos y otros cohabiten o hayan cohabitado con las violencias que dichos grupos paramilitares ejecutaron y ejecutan en la ciudad de Medellín.

Así mismo, por lo que respecta al fenómeno del sicariato, con igual e importante impacto nacional y local (en la ciudad de Medellín), toda vez que, desde “la década de los ochenta aparece en Colombia el Gráfico del sicario con una serie de características especiales” (RENGIFO, 2008, p. 97) e influencia en las culturas juveniles del país. Se debe comentar que, en los textos escolares estudiados, son exiguas las referencia a dichos agentes de violencia armada y, por supuesto, victimarios, pudiendo decir de igual manera que solo fue encontrada alguna alusión breve y circunstancial a dicho fenómeno, y que lo relaciona con el narcotráfico, como promocionador de tal problemática. Veamos:

A través de obras, como la construcción de viviendas y de centros populares de recreación, los narcos se hicieron merecedores de las simpatías de mucha gente, lo cual les permitió conformar grupos de jóvenes sicarios dispuestos a obedecer fielmente sus órdenes (MALDONADO et al., 2010, p. 200).

Por lo tanto, consideramos que, dado el escaso abordaje analítico o de contenido escolar sobre esta tipología de victimario, se cumple un ejercicio de anulación curricular, ya que el no abordar la problemática del sicariato de manera más amplia, con referentes históricos, sociales, económicos e incluso políticos, sus causas y consecuencias no posibilita un estudio en profundidad

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del fenómeno como tal, con particular relevancia para nuestro caso múltiple, ya que esta tipología afectó (y afecta igualmente en la actualidad) el desarrollo y bienestar de la ciudad de Medellín. El sicariato es, por tanto, el contenido escolar ausente de los libros de texto retomados para nuestros análisis. No obstante que

[…] la imagen del sicario, [es de un] un asesino a sueldo –la mayoría de veces un adolescente que se encuentra apoyado por una organización para cometer sus delitos. [Y en quien su] actuación no está regida por ningún principio ideológico y simplemente considera su acción como uno de tantos trabajos (RENGIFO, 2008, p. 98).

Y es que, en las dinámicas de la violencia directa en la ciudad de Medellín, el sicariato ha estado vinculado a los distintos grupos al margen de la ley, siendo relevante que los espacios escolares medien con sus estudiantes reflexiones sobre el fenómeno y no que esté desterrado de los contenidos del libro escolar, como queda asegurado desde el exiguo comentario a dicho fenómeno y la nula presencia de imágenes del sicariato en Colombia o la ciudad de Medellín.

c. Tiempos y lugares de la violencia en Colombia en los libros de texto

Sabemos que el tiempo y el lugar no son solo adverbios circunstanciales que denotan elementos específicos en una oración. Ambos son elementos lingüísticos clave en las ramas jurídicas que, como el derecho penal, pretenden esclarecer la concurrencia de determinados hechos, para que, en su discernimiento, pueda determinarse si ellos mismos son punibles o no. Razones por lo cual, luego de indagar en los manuales escolares seleccionados para nuestro estudio, pudimos diferenciar que a la hora de presentar la violencia directa y/o armada, existen tiempos específicos en los que ella se ha manifestado y lugares puntuales donde ha concurrido y/o se materializa.

Es por ello que, en cuanto a los Tiempos y lugares de la violencia, similar perspectiva de diferenciación y particularización nos allana, a la hora de distinguir y comentar las posibles generalizaciones y presentaciones globales que se hacen sobre la violencia directa y/o armada, que fueron observadas en dichos libros de texto, en detrimento de las ya mencionadas necesidades de concreción y particularización a la hora de hablar de la violencia con matices armados. Primordiales diferenciaciones curriculares, toda vez que pudiera

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correrse el riesgo de caer en amplias generalizaciones si de la violencia en el mundo se hablara, que no con los matices nacionales y locales que en el territorio colombiano se presentan, siendo aún necesario igualmente, circunscribir escolarmente los territorios donde se materializa dicha violencia armada y directa en Colombia, por lo que, desde las mismas dinámicas de la guerra o el conflicto, han llevado a privilegiar determinados sitios o lugares del territorio nacional donde se asientan específicas poblaciones que han podido ser victimizadas, esto es, territorios concretos que se han visto afectados por la misma, en periodos temporales precisos. Si es bien cierto que la violencia acaece en Colombia, fue pertinente preguntar, a los libros de texto estudiados, en qué lugares concretos de la geografía colombiana se desarrolló y en qué fechas específicas o periodos temporales.

Así, podemos decir que, de los once (11) textos estudiados, solamente cinco (5) hacen alusiones a tiempos y lugares de violencia directa y/o armada. Entre ellos, pudimos observar que los lugares que particularmente son descritos concretamente como afectados por la violencia son: Bogotá, Medellín, Barranquilla y Cali, así como algunas zonas rurales. Así mismo, en términos temporales, cabe destacar un primordial acento en los años cincuenta, sin una completa presentación de eventos que hayan acaecido hacia finales del siglo XX y principios del XXI.

Ahora bien, desde el punto de vista gráfico, solo pudimos observar que la representación de la violencia directa en Colombia está centrada principalmente en eventos de índole violenta en sectores rurales y detalla las zonas de acciones violentas en el país.

Ya en cuanto a Medellín, ciudad donde están ubicados los centros escolares de nuestro estudio, podemos referir que es nombrada marginalmente en algunas ocasiones que la sitúan entre otras ciudades de Colombia como asentamiento del narcotráfico, por ejemplo, cuando en el texto de Melo et al. (2009, p. 141) se dice que “los primeros carteles reconocidos fueron los de Cali y Medellín. Más adelante se consolidaron los carteles de la Costa, Bogotá y el Norte del Valle”.

También podemos decir que el “retrato” o selección de contenidos de violencia directa en Colombia y sus regiones, en los textos estudiados, se enmarca principalmente desde una diferenciación histórica en los períodos comprendidos entre la primera y segunda mitad del siglo XX, como también lo que va corrido del s. XXI. Períodos que, por sus particularidades, denotan los conflictos políticos y sociales que derivaron en la aparición y recrudecimiento de violencias de distinto tipo, con diferentes participantes y con diferenciada intensidad, daño y perjuicio sobre la población.

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Invisibilidad y proscripción curricular sobre violencia: una incompresible práctica

Presentados, pues, nuestros análisis y visibilizando la violencia epistémica que puede desatarse a través de los libros de texto, en este caso, con algunos libros de texto colombianos, frente a los conceptos mismos de violencia directa y armada en el país, no podemos cerrar este capítulo sin aludir al concepto de transversalidad curricular, que no se aplica en los libros de texto estudiados, los cuales, no obstante acompañar el quehacer escolar tanto de maestros como de estudiantes y por ende del currículum en distintos momentos de objetivación, desconocen, por las mismas dinámicas que generan, la fortaleza de reflexionar sobre problemas sociales complejos, como es el caso de la violencia directa y armada, desde distintas disciplinas pero en un mismo texto común. Se ratifica, por tanto, desde nuestras observaciones, que con el libro de texto se puede sostener en el tiempo una práctica curricular asignaturista y no transversal, respaldado este dato en cuanto que, como se ha dicho, el grueso de la información encontrada sobre violencia directa y armada en Colombia y en Medellín, como debiera ser en tal caso, se enmarca en los textos de Ciencias Sociales (Geografía e Historia) fundamentalmente, con una presentación higienizada y que poco desarrolla las realidades sociales que históricamente se han desplegado.

Y decimos presentación higienizada de la realidad por razón de que, en los libros de texto estudiados, se presentan de una manera parcial y altamente fragmentada la información sobre violencia directa y armada en Colombia. Cumpliéndose ejercicios de proscripción curricular, y, por ende, invisibilización en el mismo diseño curricular y la correspondiente praxis del mismo cuando quedan expatriados de los textos detalles sobre las lógicas del conflicto armado colombiano, a tenor de la anulación de análisis conceptuales e históricos sobre prácticas como el sicariato. De la misma manera, no se detalla, en estudios específicos sobre las dinámicas de la guerra y las violencias en contextos más cercanos a los centros educativos, cuándo se observó que al presentar la violencia en Colombia se habla genéricamente de esta desde el punto de vista geográfico y con un acento en la ruralidad, a sabiendas de que puntualmente, en la ciudad de Medellín, se ha tenido un escenario de violencia importante, por distintos factores, además del causado por las dinámicas delictivas del narcotráfico en la ciudad. Así pues, los libros de texto estudiados demuestran la existencia de un currículum proscrito sobre violencia directa y armada, que anula determinados contenidos del currículum escolar que son de vital importancia para sociedades que padecen estas formas de la violencia.

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De esta manera, vale afirmar que dichos textos escolares invisibilizan una parte fundamental de las realidades violentas de los entornos escolares de la ciudad de Medellín, ya que, en buena medida, no abordan puntualmente hechos acaecidos en la ciudad de Medellín propiamente y sus territorios cercanos. Razón por la cual fenómenos como el sicariato pueden quedar al margen de la planeación escolar, en contravía de las realidades cotidianas que padecen los estudiantes formados mediante los curricula de estos centros, dependiendo del interés particular o capacidad del profesorado para incluir la temática, azar que, como se pudo observar, puede estar dirigido básicamente a reflexiones de índole moral laica o religiosa y no a un examen crítico y analítico del mismo. No obstante, se debe tener presente, en este sentido, que el ambiente de zozobra en la ciudad y en los barrios, vía las agresiones a las instituciones educativas por la amenaza de docentes o el asesinato de estudiantes, entre otros tipos de violencia armada, reducen la capacidad en los mismos docentes de hacer efectiva la prescripción. De ahí que, en el ejercicio de moldeamiento del currículum, sean más las ausencias que las presencias de tales contenidos o que, en realidad, su moldeamiento se convierta en un ejercicio de ocultamiento y/o de negación.

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Narrando a luta da vida na educação: a utopia de viver

Carlos Alberto Caetano

Entendendo o fenômeno da migração haitiana através da narrativa

O percurso metodológico deste estudo teve início quando estabelecemos contato com as colaboradoras e colaboradores que se propuseram a participar deste itinerário de histórias narrativas, buscando, por meio do diálogo, entender o longo movimento e o caminho percorrido desde seu país de origem, o Haiti, até o Brasil, especificamente, até chegarem ao Estado de Mato Grosso, e à cidade de Cuiabá. Busca-se, também, descrever a conjuntura política encontrada pelos imigrantes e as trajetórias construídas para se obter a garantia do acesso a políticas de Educação em Mato Grosso.

No contexto da garantia das políticas educacionais, nos deparamos com muitos desafios que foram enfrentados e que vão desde a discriminação racial até as conquistas rumo ao reconhecimento em alguns espaços sociais. Tais desafios se revelam como esforços em busca de uma vida melhor.

Na atuação coletiva em relação à implantação do atendimento aos migrantes na Rede Básica de Educação, um dos primeiros desafios foi criar um campo de indignação e sensibilização quanto à necessidade de que os migrantes haitianos obtivessem acesso às políticas públicas educacionais. Mesmo em uma conjuntura nacional em que contextualmente o Brasil vem produzindo um grande campo de valoração da diversidade, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais para Diversidade e Inclusão na Educação Básica (BRASIL, 2013), vimos que ainda não contávamos com um arcabouço legal normativo que pudesse garantir atendimento a esta especificidade, pois se trata de garantia de acesso à língua portuguesa para estrangeiros. Isso posto, notamos o quanto é desafiador o enfrentamento da problemática da chegada dos migrantes haitianos.

Ao iniciarmos nossas conversas narrativas, observamos a necessidade de delimitarmos a fala acerca da Educação para Migrantes enquanto espaço de justiça social. Outra dimensão que nos chama a atenção é entender a migração no contexto da globalização das diversidades culturais, ressaltando

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as necessidades de novas concepções ligadas às dimensões sociológicas das experiências educacionais. Trata-se de uma Sociologia estabelecida por meio das experiências coletivas e individuais, quando as vozes de docentes, também migrantes, atendendo a outros migrantes, podem nos trazer elementos para pensarmos uma política de educação para migrantes.

No caso específico de Cuiabá, o maior público migrante é composto pelos haitianos. Então, pensar a formação e as práticas docentes na educação para migrantes haitianos como forma de entendermos a interculturalidade na formação narrativa dos docentes da educação migratória, nos respaldará para estruturar o atendimento a mais de cinco mil haitianos escolarizáveis, que, atualmente, ainda esperam por oportunidades nas escolas das redes estaduais e municipais. E há mais um agravante, uma vez que estas unidades escolares ainda não contam com profissionais preparados para realizar tal atendimento.

Por isso, para mergulharmos neste estudo, delimitamos uma pesquisa com di-mensão biográfica, utilizando-se de narrativas coletivas e individuais. Inicialmente, foram convidados cinco participantes, a saber: um docente de Filosofia, Professor Doutor Fabio Shimizu, que acompanha a Comissão de Educação em Direitos Humanos do Conselho de Estado e Educação, CEE-MT há mais de três anos, atuando como assessor técnico; Professora Especialista Antonieta Luísa Costa, que atua na área da Geografia e Pedagogia. Atualmente, preside o Conselho Estadual de Promoção e Igualdade Racial – CEPIR-MT e tem atuado na área da Educação de Jovens e Adultos como responsável pela implantação da política de Educação para Migrantes na Secretaria de Estado e Educação – SEDUC-MT, ao lado de uma equipe de mais alguns professores; Duckson Jacques, haitiano, intérprete de “créole” – o crioulo haitiano (kreyòl ayisyen), que é conhecida como a língua falada por quase toda a população do Haiti. Jacques terminou recente-mente seu Ensino Médio no Brasil, na Escola Estadual CEJA Almira Amorim. Trabalha na SEDUC-MT, na Escola Estadual Leovegildo de Melo, acompanhan-do como intérprete os alunos haitianos; Professora Lídia Djú, formada em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso pelo intercâmbio Brasil-África (países de Língua Portuguesa). Djú é de Guiné Bissau, e, atualmente, trabalha na Escola Estadual Leovegildo de Melo; Professora Silvina Jana Gomes, formada em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso via intercâmbio Brasil-África (países de Língua Portuguesa). Gomes também é de Guiné Bissau e hoje atua na Escola Estadual Ceja Almira Amorim.

Neste momento é importante apontar que nós já estamos iniciando nossa conversa tomando como camada teórica os estudos de Ferrarotti (2014), os quais ressaltam em seus escritos uma passagem de Stendhal que afirma a ideia

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de periodicidade como momento ideográfico da padronização nomotética, o qual compartilha, assim como Christian Godin (2004 p. 612), que “Ideográfico designa o que pertence à esfera do indivíduo: nomotético, o que diz respeito à vida social”. (FERRAROTTI, 2014, p. 44). Este marco teórico situa nosso percurso nestas histórias narrativas que tratam de participantes mergulhados no contexto do “Universal singular”, mas que, em suas visões de totalidades, enxergam a utopia alimentada no seu fazer, dia a dia, com luta e esperança, à medida em que não há incertezas na esperança, pois ela, por si, afirma-se na busca incansável de suas realizações.

Narrando as transformações da pós-modernidade e suas consequências globais

De início, estabelecemos diálogo com Bauman (1998), a partir de seu livro O mal-estar da pós-modernidade. Neste estudo, o autor retorna às suas raízes na Polônia, escreve em sua língua materna – o polonês – abrindo um diálogo com professores e estudantes de seu lócus de origem – a Universidade de Varsóvia. Relativo ao seu pensamento em relação ao “mal-estar” que circula pela Pós-modernidade, o autor afirma que as ideologias totalitárias tiveram o mérito de “condensar o difuso, localizar o indefinível, transformar o incontrolável num alvo ao seu alcance e, por assim dizer, à distância de uma bala” (BAUMAN, 1998, p. 22).

Ao que parece, o autor pressagia as mudanças que estão em curso, sustentadas por múltiplas transformações, as quais abarcam desde um cenário paradigmático da modernidade para a transição pós-moderna. Nestas impressões e interpretações conjunturais e estruturais, vamos nos localizando enquanto seres em ebulição já que o ataque às nossas certezas significa, mais que a perda de nossas convicções e identidades alicerçadas, a própria desconstrução de um ser estático, em oposição a um ser nascente, focado no movimento, e que não tem pátria. Passamos, então, a ser a soma de nossas incertezas e as sínteses temporais transitórias de momentos históricos de nossas verdades vividas. No que consiste esta experiência? O próprio autor apresenta algumas possibilidades de responder a esta indagação:

No mundo pós-moderno de estilos e padrões, de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem que mostrar-se capaz de ser

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seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável e cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. (BAUMAN, 1998, p. 23)

Este paradigma da Pós-modernidade que se organiza na própria desorganização da modernidade, afirma-se nas incertezas como formas constantes de ver e viver o mundo, significando e resignificando o presente imediato. Neste contexto, não há valores que se sustentem como alicerces firmemente edificados, uma vez que nesta temporalidade o próprio tempo se condensa em uma metamorfose na qual passado-presente-futuro são uma só fração imediatizada do presente-futuro quando tudo tem seu sentido, imersos em um mundo de permanentes incertezas.

Outro fator de análise está relacionado aos macrofenômenos sociológicos desencadeados por estas novas conjunturas discursivas em curso. Entre elas, está a da globalização e as erupções de mobilidades globais que vêm desencadeando-se nos diferentes continentes, impulsionadas pela restruturação produtiva do capital. Tal contexto tem provocado um intenso fluxo de migrações rumo a melhores condições de vida. E percebe-se que as causas para esse fenômeno vão desde eventos climáticos de grandes proporções catastróficas, à árdua busca pela sobrevivência, incluindo a fuga das intensas guerras civis e perseguições políticas. Todos estes fenômenos são orquestrados pela procura por um novo Estado Nação que aposta todas as suas forças a fim de tornar-se Estado de direito em um Estado-Mercantil consumista, no qual sobrevive quem é consumista inveterado. Vejamos o que diz Bauman (1998, p. 26) a respeito:

A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar. Tende, pois, a fortalecer-se contra aqueles que seguindo suas intrínsecas tendências ao descompromisso, à indiferença e livre competição ameaçam exibir o potencial suicida da estratégia, ao entender sua implementação ao último grau da lógica.

Ainda segundo Bauman (1998, p. 26), a busca da pureza da modernida-de se explicitou no cotidiano com intensas perseguições às chamadas “classes perigosas”, enquanto que a busca da pureza pós-moderna ataca, indiscrimi-nadamente, a maioria despojada de recursos financeiros, por meio de ações

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punitivas, focalizam-se, então, os moradores de rua pobres e mendigos, os vagabundos e indolentes.

Dukcson Jacques, um dos colaboradores deste estudo, relatou sua trajetória desde de sua primeira saída do Haiti, em busca por dias melhores para ele, que, por isso, teve que deixar para trás sua família, ao passo que foi descrevendo elementos que reafirmam as tendências sociológicas e transformativas mundiais enquanto espaço que vem incidindo em seu percurso profissional, Jacques reconhece a necessidade de estar sempre estudando para melhorar de vida, conforme afirma:

Não há nada que é fácil, sempre a gente tem que lutar para concretizar e superar tem que ter dedicação, o motivo primordial de nós haitianos virmos para o Brasil é procurando uma vida melhor. E a primeira coisa que tem que ter é a educação. A educação é como uma chave. Uma chave é uma ferramenta para abrir porta e a educação é uma chave que pode abrir qualquer porta. Fiquei muito emocionado, pois as pessoas escolheu para ajudar a nós haitianos além das outras parte, a educação. Sempre imaginei que não seria um professor, mas eu gosto de ajudar, e como eu pensei, se eu gosto ou não de dar aula, pois nunca pensei em trabalhar como professor, mas como eu gosto de ajudar, me entreguei para ajudar em todos os sentidos. Eu pensei então: se eu existo é para ser útil, eu vi também que o povo de Cuiabá é um povo que se entrega desta forma, entrega para ajudar, eu vejo vocês todos desta forma. (Jacques, entrevista narrativa, 2016)

Torna-se importante situar a narrativa acima, tomando como foco o valor dado à educação. De fato, os migrantes que aqui chegaram, ainda no início do ano de 2012, em meio à efervescência da organização para Copa do Mundo de 2015, momento em que a indústria de construção civil estava acelerada com necessidade de mão de obra, e vimos que muitos, assim que chegavam à Pastoral do Migrante, imediatamente conseguiam emprego – mesmo que informal. É fato que, na maioria das vezes, estes empregos possuíam características de vínculos bastante frágeis, haja vista que poucas empresas cumpriam com recolhimento das custas dos direitos trabalhistas. Tal fator chegou a ser constatado pelo Ministério Público Federal em suas vistorias às obras. Mas, para Duckson Jacques, assim como para os demais migrantes haitianos que aqui chegaram, para que seus sonhos não sucumbissem antes mesmo de conseguirem se estabilizar, era

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necessário conseguir adentrar à área da educação, dominar o português e foi isso que ele foi buscar, conforme sua narrativa abaixo:

No primeiro momento fui à UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), pensei primeiramente em ajudar os haitianos meu povo, fui ver se existia uma forma de estudar o português, passei um dia todo na UFMT, andei por várias faculdades e fui ao Instituto de Linguagens, mas não tinha acesso para nós estrangeiros (Haitianos) estudar o português, fiquei bem triste mesmo, não tinha bolsa de estudo para estudar português, não tinha como estudar. Então meu colega que estava comigo disse que se não tivesse como estudar não teria como ficar aqui em Cuiabá. Então surgiu a ideia de criar uma Organização Não Governamental – ONG, se temos a ONG podemos conquistar muitas outras coisas. (Jacques, entrevista narrativa, 2016)

Continuando sua história de vida, Jacques, de forma alegre e sorridente com um ar de felicidade, disse:

Foi aí que conheci o senhor em 2013, no ano em que promovemos o COMIGRAR - (Conferência sobre Migração e Refugio); o senhor ainda não era presidente do CEE-MT (Conselho Estadual de Educação de Mato Grosso), através da ONG surgiu o projeto da Professora Antonieta Luísa Costa, de começar a atender nós haitianos na Escola Estadual Leovegildo de Melo, veio também um senhor de Rondônia e divulgou o trabalho que eles estavam fazendo e ajudou a levar o projeto de ensinar o português na UFMT. E eu pensei como poderia fazer uma faculdade? Eu não tinha documento, resolvi e fui na Escola Estadual Leovegildo de Melo, meu português ainda estava muito pouco. [...] A professora iria verificar as condições dos documentos, iniciei no projeto onde, hoje, trabalho como intérprete com a professora Antonieta e professor Rafael eu já estava trabalhando, entrei no 1º ano fiz reclassificação e algumas provas meu português estava mais ou menos, depois fiz o 2º ano e o 3º ano e me formei depois de três anos, foi aí que o senhor foi na escola na colação de grau e recebi de suas mãos o certificado. Foi uma honra para mim receber este certificado, graças a Deus. (Jacques, entrevista narrativa, 2016)

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Quando verificamos o esforço de Jacques em avançar para melhorar de vida, nos veio à memória sua trajetória até o Brasil, até Cuiabá. Notamos que ele traz consigo a experiência de ter convivido com várias pessoas diferentes. Em suas histórias percebe-se um ser que fala da saga de atravessar vários países em transporte terrestre, tendo como foco central chegar ao seu objetivo, pois ele não sabia o que iria encontrar, e nem como seria recebido. Mas, a despeito disso tudo, vestiu-se de esperanças e vendo-se com cidadão do mundo, aqui chegou; para ele existe um grande projeto que precisa alcançar: ser feliz e sobreviver. Com certeza, este projeto é universal, como já dizia Ferrarotti (2010, p. 51):

Um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamar-lhe um universal singular ‘totalizado’ e, por isto mesmo, universalizado pela sua época, retotaliza-a, reproduzindo-se nela enquanto singularidade universal pela universalidade singular da história humana. Singular pela singularidade universalizante dos seus projetos.

Jacques foi um dos primeiros haitianos a formar-se nas escolas do sistema estadual de educação de Mato Grosso e hoje exerce um lugar importante na organização e fortalecimento dos migrantes haitianos em Cuiabá e no Brasil, pois ele se tornou um militante das causas haitianas fora do Haiti; organizou um conjunto de amigos também haitianos e fundaram uma ONG denominada OSAMB (Organização de Suporte das Atividades dos Migrantes no Brasil). A partir desta representação, participou das Conferências para Políticas Migratórias no Brasil. Foi eleito em Cuiabá na Conferência Estadual de Migração e Refúgio-MT para participar em São Paulo da Conferência Nacional de Políticas Migratórias e foi eleito ainda para representar os haitianos na Comissão Nacional de Ações Migratórias.

Contextualização dos efeitos da globalização no trabalho e na migração

Um dos focos centrais para entendermos as migrações tem sido compreender a globalização situada na dimensão da restruturação produtiva do capital. Nesta abordagem, podemos perceber que, para além dos problemas pontuais existentes em relação às migrações, temos que enfrentar as macrocausas que impulsionam o encadeamento das grandes transformações ecológicas e ambientais, ou seja, o apelo ao consumismo desenfreado que leva o planeta Terra, a nossa Gaia, a mudanças climáticas e geográficas que têm causado grandes impactos à humanidade.

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Quando conversamos pela primeira vez com o professor intérprete Duckson Jacques, pudemos perceber que sua história trata de uma grande “saga”: a luta pela sobrevivência até a chegada ao Brasil, como ele mesmo enfatizou em uma de nossas rodadas de histórias:

Eu viajo muito à República Dominicana e volto para o Haiti, mas naquele momento do terremoto em 2010, eu estava na República Dominicana, coloquei mais um visto e vim para o Brasil. Eu estava cursando Teologia e tive que deixar o curso. As coisas estavam muito difíceis para mim. Tive que deixar tudo e vim para o Brasil. A rota que a gente fez é realmente longa e difícil. Passamos por vários países até chegar no Brasil. Passei na verdade por Panamá, Equador, Peru, Bolívia e depois, Brasil. É uma rota muito grande. Fiz esta viagem, mas viajei de avião somente do Haiti para o Panamá e Equador, o restante do itinerário viajei de ônibus. Foram países inteiros de um para outro. (Jacques, entrevista narrativa, 2016)

Deste modo, vê-se que a trajetória destes imigrantes se constitui como uma verdadeira saga, pois o caminho percorrido pelos migrantes na atualidade globalizante, é marcado pela presença de barcos carregados de migrantes e refugiados em todos os pontos de conflitos armamentistas e de guerrilhas que fogem desesperadamente das guerras e da fome, em busca de dias melhores. Pensamos que este é um dos maiores problemas sociais a ser enfrentado, pois o sistema econômico global vem devastando países inteiros com seu potencial de exploração e destruição, e, com isso, vem deixando vastos campos de miséria e violência como legado. Há incontáveis pessoas morrendo na maioria das nações, pois os tentáculos do poderio de concentração do capital tomam como referência continentes em sua totalidade, deixando-os como verdadeiros campos de guerras, com o alastramento de doenças, sede, exploração de crianças, entre outros aspectos nefastos. Enfim, trata-se de um vasto campo repleto por desesperança. Diante disso, permanece a pergunta: para onde poderão ir estes migrantes, oriundos atualmente de uma humanidade sem pátria? Onde eles poderão aportar suas vidas cansadas e desesperançadas? E o Direito Universal à Educação?

Creio que algumas das indagações acima tratam do que Ferrarotti (2014) denominou de dialética do social, pois consistem, essencialmente, na relação complexa, não determinável a priori, entre as condições objetivas e o vivido. Conforme já visto, o contexto de restruturação produtiva do capital, influenciado pelas mudanças do paradigma de produção no mundo, assola os continentes menos industrializados e empobrecidos, trazendo desemprego.

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Muitos assistem ao desaparecimento de vários postos de trabalho, substituídos por uma tecnologia que sempre está a serviço de uma pequena parcela de pessoas que detém a propriedade destas tecnologias e que concentra seus lucros sem efetuar a divisão justa da renda. Vejamos o que nos diz Antunes (2010, p. 192):

Nas últimas décadas ocorre a difusão de um novo paradigma técnico-produtivo caracterizado pela transição do método taylorista-fordista para o toyotismo que incorpora novas estratégias patronais que visa uma produtividade crescente. Nesse cenário algumas tendências são apontadas por Pochmann (2007), dentre as quais, temos a diminuição na participação relativa do emprego industrial, o crescimento do setor de serviços e a maior presença das mulheres nas ocupações formais.

Duckson Jacques ainda nos descreve em sua narrativa a situação que tem enfrentado em relação ao trabalho, já que está à frente da Associação dos Haitianos aqui em Cuiabá:

Viajei fiquei cerca de quatro dias fora da empresa onde trabalhava. Fui a Brasília representar os haitianos, quando voltou já havia sido demitido, dizia fiquei pensando [...] será que eu estou com ‘capacete da China’ na cabeça que não está vendo nada, eu fiquei pensando eu não estou ganhando nada [.] pois sou voluntário e ainda isto está a prejudicar eu mesmo para trabalhar [...] hoje em dia eu tenho algumas reuniões para participar eu pedi chance para participar destas reuniões [...], mas, às vezes, tem duas e\ou três reuniões na semana e aí pensei [...] vou pedir de novo chance para sair [...] pensei quem eu possa consultar para me ajudar nesta situação e fiquei concentrado. Ultimamente eu viajei em Brasília e fiquei três dias e perdi o emprego porque fui participar na Conferência Nacional de Refúgio e Migrações, como representante dos haitianos. Eu sofri muito por isso, mas hoje em dia esta experiência que eu estou fazendo como intérprete, eu me considero intérprete porque não sou formado professor, conforme a lei, eu não me formei como professor, na verdade, tem semelhança. Mas eu não tenho ainda estes conteúdos para ensinar. Eu gosto de ensinar, gosto de ajudar as pessoas. (Jacques, entrevista narrativa, 2016)

Analisando com Jacques a situação descrita acima, conseguimos encaminhá-lo para a função de intérprete dos haitianos em sala de aula da Escola Estadual

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Leovegildo de Melo, mas também pensamos na perspectiva dele poder continuar a estudar, pois está à frente da Associação dos haitianos e muito tem feito para construir um ambiente de socialização integradora com os diferentes povos que vivem em Mato Grosso. Contudo, o fator que mais vem contribuindo para a desestabilização é, sem dúvida, a falta do emprego ou trabalho, conforme aponta Antunes (2010, p. 191):

Há no capital um processo de subjetivação que qua-lifica e hierarquizam as diferenças, as subjetividades. Esse processo de subjetivação é, portanto, diferente da subjetivação em si, porque é nesse processo que a ver-ticalização das subjetividades se manifesta e dificultam os mecanismos de coletividade, por exemplo.

Apesar das dificuldades enfrentadas, no diálogo com Duckson Jacques é possível notar o entusiasmo e a esperança em viver dias melhores. Ele tem organizado, em conjunto com seus amigos haitianos, atividades de fortalecimento e vivências da cultura haitiana em Cuiabá. Juntos, já realizaram várias atividades que têm possibilitado à sociedade em geral conhecer os haitianos, seus costumes e crenças, sua arte e também suas músicas. O Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, por meio da Professora Doutora Anna Maria Ribeiro Costa, bem como as Professoras Mabel Strobel, Izabel Cristina Cavalcanti da Cruz e eu. Todos são membros do Conselho Estado de Educação, em conjunto com a Coordenação das Políticas para Migrantes da SEDUC, e temos entendido que neste momento, é importante manter o apoio à integração dos haitianos com os demais espaços de cidadania, entendendo também que se trata de contrapormos qualquer possibilidade de reações xenófobas ou discriminações em qualquer espaço. Isso porque entendemos que o lócus privilegiado para vencermos o estranhamento, muitas vezes, manifesto pela sociedade, tem sido o espaço escolar, pois na escola, mesmo que aconteçam bullyings raciais, é possível que tais reações sejam trabalhadas de forma imediata, desconstruindo o referencial racista ou de preconceito.

Ademais, percebemos que é muito importante conhecer as histórias de vida dos alunos migrantes haitianos que aqui chegaram trazendo cada qual sua trajetória e significados para que possamos (re)significar os sentidos de suas presenças em nosso território. Assim, consideramos relevante destacar o que nos coloca Ferrarotti (2014, p. 52):

A história é habitualmente compreendida como história rerum gestarum, história das coisas passadas, dos grandes

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feitos políticos e das grandes empreitadas. Vemos aqui delinear-se a posição original de Nietzsche; um excesso de história impede que se faça história. Na verdade, a ação que rompe a cotidianidade e abre novas possibilidades, só é praticável quando não é bloqueada por um excesso paralisante de ‘sentido histórico’.

Neste momento, penso que esta investigação narrativa impulsionada por algumas histórias de vidas de professores migrantes da conjuntura atual geopolítica internacional pode desencadear o interesse necessário, propiciando, assim, o envolvimento que necessitamos para retirar do imobilismo setores institucionalmente racistas e xenófobos, que ainda não se socializaram junto à presença de mais de cinco mil migrantes haitianos aqui em Mato Grosso, segundo dados cadastrais da Pastoral do Migrante, atual instituição que tem recebido cotidianamente os migrantes vindos de todos os locais do mundo.

A necessidade de intensificar a luta por justiça social, para a garantia de políticas sociais básicas aos povos migrantes, tem adentrado os muros escolares, uma vez que as marcas trazidas nas mais difíceis trajetórias de suas vidas são legados que, com certeza, nos ensinaram a ser melhores enquanto formadores/docentes e militantes pela garantia de cidadania a todos e todas.

Educação migratória a formação de professores para justiça social

Ao pensar nesta investigação narrativa, sentimos logo as dificuldades que enfrentaríamos em abordar uma questão tão intricada e ainda sem muitas referências teóricas que pudessem oferecer algumas pistas a respeito de como poderíamos entender, a partir das narrativas dos professores no contexto conjuntural, histórico e político pedagógico para termos parâmetros, ou tipos simbólicos para ancorarmos nossas análises do campo das conversas narrativas de dimensão políticas e sociais. Mas, lembrei-me da coragem narrada por Ferrarotti (2014) quanto a “fazer histórias” e parece-me que cada um destes corajosos migrantes que por aqui aportou faz história em suas vidas e a faz tomando como referência a justiça social. Ferrarotti (2014, p. 53) acrescenta que:

[…] existe nessa ação um momento inicial a-histórico ou francamente anti-histórico, de que somente alguém profundamente enraizado na história é capaz. Em outras palavras, somente aquele que está suficientemente seguro de seu fundamento histórico para encarná-lo e traduzi-

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lo, por uma consciência reflexa, num poderoso instinto natural, pode, sem páthos nem incertezas, dar livre curso às decisões das quais se originam as novas fases históricas.

A investigação narrativa formativa nos leva a um mergulho profundo com o outro enquanto colaborador e participante das conversas históricas, pois o sentido histórico posto pelas vivências será parte dos sentidos que embrenharam de sentidos significativos universais singulares e de maneira holística, as totalidades das mediações postas e tecidas pelos sentidos em processo, no campo da subjetividade e intersubjetividade, campo este, aqui visto, de maneira estruturante. Neste sentido, a história compactua com uma práxis humana e as vivências se tornam campos de sentidos, conforme teoriza Bourdieu (2010, p. 69):

Compreender a génese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade especifica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir

Penso que ao tratarmos da educação para migrantes em Cuiabá estamos inaugurando um novo campo de valores, já que nunca houve a preocupação em preparar-se para atender migrantes em número tão expressivo, pois em geral, estes contatos eram impulsionados mais por intercâmbios e/ou estudantes vindos dos mais variados países, mas que, no entanto, vinham com suportes mínimos de sustentação social e econômica. Quando do início da chegada dos haitianos, logo sentimos que seria necessária a inauguração de uma nova fase de organização para atendimento e garantia de direitos humanos para o aporte mínimo de sua sobrevivência aqui no país. Muitos vinham e já conseguiam adentrar no mercado de trabalho, outros, porém, ficavam por meses a receber apoio no Centro Pastoral do Migrante em Cuiabá.

Naquele momento sentimos que era necessário desencadear algumas ações concretas para garantir o direito básico à educação e, nós, no Conselho de Estado e Educação-CEE-MT lançamo-nos em busca de propostas que garantissem a realização de ações concretas e passamos a realizar atendimento dos haitianos para análise da equivalência de estudos, pois entendíamos que, pelo fato de que muitos já tinham estudado no Haiti, mediante o aporte mínimo de documentos, poderíamos aprovar a equivalência dos estudos e eles iriam somente buscar o acesso à língua portuguesa a fim de fluir no idioma e poder garantir seus empregos. Nesta

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fase, me encarreguei de solicitar que os primeiros processos para dar parecer com estas matérias ligadas aos haitianos pudessem ser direcionadas a mim, enquanto presidente do CEE-MT. Tal estratégia objetivava sensibilizar meus pares, ou seja, os outros conselheiros, a respeito da necessidade de dar os pareceres aos processos de equivalência, levando em conta que este público havia recebido o visto humanitário, o que os colocaria em uma condição de ter autorização para permanecer por tempo indeterminado no Brasil, e em Cuiabá. Foi então que consegui a aprovação no primeiro processo que foi encaminhado, com pedido de equivalência. Porém, somente este caminho seria pouco para garantirmos justiça social, já que tínhamos muitos haitianos já formados em cursos de graduação, mas que perderam toda a documentação em meio aos escombros deixados como rastros pelo terremoto que aconteceu em 2010, no Haiti.

Então, deste modo, tínhamos evidências destas formações quando conversamos com os haitianos, mas, era necessário, em função de nossas legislações, adotar medidas mais concretas que pudessem atingir um número maior de migrantes. A partir disso, foi sugerido que algumas escolas pudessem aplicar provas para análise de proficiência para os migrantes que ainda não haviam terminado o equivalente à Educação Básica. Todas essas ações revelaram-se validadas e positivas. No entanto, foi sem dúvida quando nos aproximamos e fizemos o processo de escuta diretamente com cada migrante, ouvindo suas histórias é que começamos a encontrar novas saídas. Neste sentido, penso que a concepção nietzschiana de história foi essencial:

Nietzsche delineia elementos essenciais de uma pesquisa da antropologia cultural e à história social ou, para dizê-lo de um modo polêmico, à história vista de baixo. Com isto quer dizer que a história não é mais concebida, de um modo restrito, como a nobre sequência de grandes acontecimentos, batalhas, tratados, casamentos dinásticos e assim por diante, mas, antes como o resultado cumulativo de tramas e redes de relações, nas quais se envolvem necessariamente, dia a pós dia, os grupos humanos, as pessoas fadadas a permanecerem desconhecidas, mas que constituem, em seu conjunto, a substância viva, a substância sociológica real do processo histórico. (FERRAROTTI, 2014, p. 54)

Entretanto, este processo estava apenas iniciando-se, uma vez que a militância do movimento negro de Mato Grosso vinha pensando em uma maneira de inserir os novos migrantes negros da maioria dos países africanos e outros, no atendimento das políticas públicas. Além disso, no mesmo

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contexto, estava enfrentando o problema com uma aluna negra haitiana que havia sido retida no programa de bolsa da Universidade Federal de Mato Grosso, e tal situação estava envolvendo todos nós militantes que entendíamos que não podíamos permitir este entrave em função da injustiça que estava sendo cometida. A estudante estava em estudo no campus de Cuiabá quando tomou conhecimento da ocorrência do terremoto em seu país. Assim, sem contato com todos os seus, ficou muito vulnerável e sem apoio, pois não conseguia assimilar o conjunto dos conteúdos do curso que estava cursando, Nutrição. Em face desses problemas descritos, a aluna foi reprovada em algumas disciplinas, o que não podia ocorrer, conforme normas da bolsa de assistência estudantil internacional que recebia. Essa questão desencadeou uma grande luta, e decidimos intervir junto à reitoria, ao CONSEPE/UFMT e, com muita persistência, depois de dois anos, conseguimos que ela voltasse a estudar. Ela terminou os estudos e se tornou a primeira mulher negra haitiana a se formar em Nutrição no campus da UFMT, em Cuiabá.

A história da estudante de Nutrição, Denise Civil, demonstra o quanto os sentidos do cotidiano são importantes para desencadear ações. A partir do ocorrido com essa estudante universitária, conseguimos envolver um grande coletivo de lideranças que permaneceram juntas em outras ações de luta contra atos de discriminação racial. Este parece ser um dos problemas da globalização. É preciso entender que o trabalhador também passa a ser o homem da globalização, mas, ainda assim, não houve uma globalização dos sentidos da subjetividade ética que nos levasse a um pensar reflexivo coletivo da docência, que, para além da função social e educacional, tenha como mote central, a justiça social.

Nestes cenários nos quais a racionalidade técnica se alimenta da globalização enquanto tecnologia de comunicação, visando intensificar suas variáveis de controle e governabilidade sobre os processos educacionais, construindo uma engenharia que justifique o tensionamento do “ranqueamento” educacional – com base em um falso “desenvolvimento” que corresponde somente à manutenção da exploração econômica do potencial dos países emergentes –, é preciso manter a clareza de que estamos em um momento no qual devemos humanizar este tecnicismo exacerbado, trazendo o conceito primário de eticidade no sentido trazido por Abbagnamo (1999, p. 387), referindo-se a Hegel: eticidade “[...] é o conceito de liberdade, que se tornou mundo existente e natureza da autoconsciência; as instituições éticas têm uma realidade superior à da natureza, porque constituem uma realidade necessária e interna”.

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Continuando, como base para construção de referências que coloquem nos espaços de correlação de forças outros valores resignificados pelos sentidos de que quem realmente vive e faz educação são os profissionais da educação, levando em conta suas carreiras, pisos e profissionalidade, enquanto epistemes docentes.

A globalização das diversidades e necessidades de novas geopolíticas educacionais

Como adiantamos anteriormente, a ideia é nos fundamentarmos teoricamente em um novo campo, o da educação para migrantes e nele conceber seus símbolos, significados e sentidos históricos. Clandinin e Connely (2011) indicam que para o desenvolvimento da investigação narrativa é preciso entender a experiência de vida como um dos focos centrais da produção do conhecimento narrativo. A partir de seus estudos sobre Dewey, afirmam:

Para Dewey, Educação, experiência e vida estão inextricavelmente inter-relacionadas. Quando alguém questiona sobre o que significa estudar Educação, a resposta é, em geral, estudar a experiência. Seguindo Dewey, o estudo em Educação é o estudo da vida. Por exemplo, o estudo das epifanias, rituais, rotinas, metáforas, e todas as ações do dia-a-dia. Aprendemos sobre a Educação pensando sobre a vida, e aprendemos sobre a vida pensando a educação (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 24).

A partir do pensamento dos autores anteriormente citados, entendemos ainda mais a necessidade de definição deste campo como base de apoio para a autoconstrução dos significados que subjazem os sentidos simbólicos e culturais que estão permeando os valores desta trama intercontinental. Portanto, iniciamos nossa conversa com o professor Fábio Shimizu, visando dialogar acerca de como compilar alguns referenciais para fundamentar teoricamente esta investigação. Em nossa conversa investigativa, ele dizia:

Eu não acompanho estes temas, mas o problema da migração é um problema mundial. A gente vê lá na Europa, na Alemanha onde estão cercando tudo, no USA. Esta migração no contexto da globalização é um problema mundial. Como isso tem sido feito, como se apresentam os problemas a gente sabe muito pouco, geralmente são problemas econômicos, mas não são

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somente problemas econômicos, temos muitas guerras civis. Os haitianos foram um dos primeiros países de população negra a fazer a independência. Existe uma fragilidade em poder resolver os problemas políticos, econômicos em alguns países, pois o pessoal está atravessando o Pacífico em busca de outros lugares e, nestas travessias, às vezes morrem dezenas de pessoas afogadas, as pessoas estão preferindo morrer do que ficar em seus países. No Haiti falam que foi o terremoto, mas já vimos com os próprios haitianos que existem outros problemas de ordem econômica que têm levado à migração. (Shimizu, entrevista narrativa, 2016).

Entendendo que os engajamentos comprometidos na luta pela justiça social nos impulsionam como profissionais docentes a buscarmos entender que as diferentes narrativas das lutas sociais por justiça vêm reconceituando as diferentes histórias da humanidade e resignificando relações e definindo novos campos sociológicos e legais para uma vida mais plena de direitos. Neste contexto, a formação de professores ganha o envolvimento do pluralismo das lutas por justiça social, presentes nos diferentes campos narrados por militantes e ativistas.

O pensamento de Zeichner (1993; 2010) a este respeito leva sempre à inserção e aponta para uma formação que leve o professor à reflexão e a se posicionar no contexto político em que está inserido. Buscando a garantia da autonomia do professor, este estudioso afirma que um dos desafios dos professores diz respeito ao enfrentamento da conjuntura política, tornando-se, assim, apto a oferecer condições para uma formação para justiça social. Para Zeichner (2010, p. 76), “[...] uns dos problemas é que os professores não estão familiarizados com as circunstâncias dos alunos e alunas pobres, não conhecem os lugares onde as crianças passam a maior parte das suas vidas”.

Neste contexto, consideramos que, para que possamos abarcar toda a complexidade hermenêutica dos processos de reconhecimento das identidades e busca de afirmação, precisamos pensar em um campo epistêmico fenomenológico, por meio do qual o desenho do objeto possa se mostrar no contexto intersubjetivo da dialogia vivida. Em se tratando deste campo dialógico, compreendo que se trata de vidas que se entrecruzam interativamente, produzindo sentidos sempre mútuos. O reconhecimento, neste panorama, explicita os valores produzidos em uma intersubjetividade ética que implica em uma formação para a justiça social.

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Construindo a política de Educação para Migrantes

Em busca de entender investigativamente como propor uma política de educação para migrantes, iniciamos um grupo de discussões que passou a ser composto por membros da Escola Estadual Leovegildo de Melo, ligada à Secretaria de Estado e Educação por meio da coordenadoria de Ensino de Jovens e Adultos-EJA, Conselho Estadual de Educação-CEE-MT, Conselho Estadual de Promoção Igualdade Racial-CEPIR-MT, todos institucionalmente impulsionados pelas iniciativas em curso na Escola Estadual Leovegildo de Melo, onde já havíamos iniciado o atendimento com o trabalho de algumas lideranças: professoras e professores militantes sensíveis à conjuntura da chegada dos migrantes haitianos.

Ao conversar com a professora Antonieta Luísa Costa, solicitei seu depoimento, por estar atualmente à frente da própria política de educação para migrantes em Mato Grosso que parece ser uma experiência exitosa, pois é a primeira do Brasil que trouxe a questão migratória para ser tratada enquanto política pública. A professora falou a respeito de como é tratada por nós da militância do movimento negro. E, em seguida, começou a narrar sua história acerca da educação para migrantes:

Tem que entender que hoje a gente fala de política de educação para migrantes, mas nós não começamos nesta perspectiva. É bom frisar: eu era professora do Leovegildo de Melo à noite, professora do EJA, pois sempre trabalhei em EJA e gosto muito de trabalhar em EJA. Nesta trajetória da tarde para a noite, quando eu vinha de outra escola para a Escola Estadual Leovegildo, eu vinha de ônibus, no período da tarde para noite e via muitos haitianos circulando na avenida de bicicleta, a pé no sentido terminal do Bairro Novo Horizonte, porque na Avenida dos Trabalhadores era a trajetória e ainda é a trajetória de muitos migrantes haitianos. E aí que tive o primeiro contato com os haitianos na Conferência de Promoção da Igualdade Racial, realizada pelo CEPIR-MT, a Carol levou três migrantes para participar e para a gente conhecer. Ficamos amigos, mas isto não foi o motivo, o motivo foi ver eles caminhando e aí um dia conversei na escola com colegas que trabalhavam comigo, conversando com professor Luís Alberto Santiago (Luizinho), __eu falando, gente eu fico pensando na hora que acabar ‘A Copa do Mundo’ de futebol, o que será destes haitianos aqui? Pobres, sem empregos, para

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nós que somos brasileiros já é difícil, imagina estrangeiro, com toda esta sobrecarga de discriminação. E aí eles os colegas professores disseram: vamos trazer para a escola, o Lucinei que era coordenador pedagógico também concordou: é, vamos trazê-los para cá para estudar, a gente começou a pensar nisto. Foi neste momento para trazer os haitianos, ou seja, então a fala não era para uma política de educação para migrantes, era num sentido menor, vamos fazer educação para os haitianos, colocar os haitianos para estudar. Aí na primeira reunião discutimos como íamos fazer, como eu faço parte do CEPIR-MT, pensamos vamos chamar os companheiros, foi aí que a gente pensou e chamou o Professor Rinaldo Ribeiro de Almeida, que era conselheiro, você, Carlos Alberto Caetano, que na época era conselheiro e Presidente do CEPIR-MT, e a SEDUC-MT e a partir desta reunião começamos a traçar caminhos e formas, fazer a busca ativa, o que é a busca ativa, ver onde estava os maiores focos destes alunos, saber a questão da escolaridade para poder montar turmas, criar mecanismos para pensar uma matriz pedagógica que atendesse estes alunos. E no primeiro momento a gente pensou em iniciar na Escola Estadual Leovegildo de Melo, por conta da proximidade do terminal de ônibus do Novo Horizonte, que fica uma quadra da escola, mas enfim o diálogo com a SEDUC, nas reuniões que tivemos estava tudo articulado para os alunos haitianos se matricularem no Escola Estadual Leovegildo de Melo, por isto o Leovegildo é o começo a sede deste trabalho com os alunos, porque foi lá, que foi pensado, foi lá que foi idealizado, foi lá que começou o trabalho de educação para migrantes, mas nós tivemos que colocar os alunos lá no CEJA Elmira Amorim e ficar como salas anexas, à época a pessoa que ficava na SEDUC achava que não tinha condições de deixar fora dos CEJAs –Centros de Educação de Jovens e Adultos, estes foram pensados para trabalhar com jovens e adultos os 3(três) períodos. A SEDUC-MT possui atualmente 23 centros no Estado, o CEJA Almira Amorim é um dos centros onde se pensa Educação de Jovens e Adultos, o tempo todo, por isto o coordenador do EJA pensou que fosse o melhor local, como eu era uma simples professora, não tinha conhecimento das Rops-Regras de Orientação Pedagógicas, nem das matrizes existentes da SEDUC, a gente aceitou colocar no CEJA Almira, mas eles aceitaram colocar os intérpretes. (Antonieta, entrevista narrativa, 2016)

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Com este trabalho iniciado por parte das Escola Estadual Leovegildo de Melo e Escola Estadual CEJA Almira Amorim, intensificaram-se os encaminhamentos de solicitação de equivalência de estudos no CEE-MT e a busca pelas formas mais adequadas de garantir os estudos desse público migrante, já que este aumento se deu também pelo fato de que com o esgotamento dos serviços da Indústria de Construção Civil, eles vêm buscando inserir-se em outros postos de trabalho e a escolarização é condição primordial para a estabilização e garantia de sua sobrevivência.

Formação e práticas docentes na educação para migrantes haitianos

Atualmente, estamos vivendo o momento de construção deste campo, ou seja, o campo da Política de Educação para Migrantes, que passa por fundamentos de sentidos e significados deste campo para teorizarmos este conceito. Nesse aspecto, fundamento-me em Bourdieu (2003, p. 119):

Os campos apresentam-se à impressão sincrônica como espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem da sua posição nesses espaços e que podem ser analisadas independentemente das características dos seus ocupantes (em parte determinadas por elas). Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, campo da filosofia, o campo da religião tem leis de funcionamento invariantes (é isso que faz com que o projeto de uma teoria geral não seja insensato e com que, desde já, possamos servir-nos do que apreendemos sobre o funcionamento de cada campo particular para interrogarmos e interpretarmos outros campos, superando assim a antinomia mortal da monografia ideográfica e da teoria formal e vazia).

Um dos desafios centrais, na educação para migrantes, segundo as professoras e intérpretes das escolas citadas ao longo do presente texto, é de fato, construir referenciais, a partir das mediações formativas, que nos sirvam para afirmar caminhos percorridos, que nos ajudem a refletir acerca dos percursos e trajetórias envolvidas, para que possamos sistematizar nossas práticas como forma de fundamentos para sustentar nossas epistemes. A professora Lídia Djú, por sua vez, relatou que:

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Quando a professora Antonieta nos chamou para participar de um projeto, as coisas não eram para estar como estão hoje, ou seja, partindo para discutir uma política de educação para migrantes. Mas Nieta me falou que não quer só isso, ela quer que continuemos. Ela não quer que ensinemos somente a Língua Portuguesa, mas que consigamos criar referências maiores de identidade cultural enquanto espaço de reencontro dos migrantes com seus valores culturais. Nós não sabíamos que tudo isso ia se tornar o que é hoje. Professora Nieta quer uma política de educação para os migrantes. Quando Nieta me chamou para compor a equipe eu estava acabando de me formar na UFMT. Colei grau e fui trabalhar, eu não tinha experiência, não tinha material apropriado, mas fui para escola e comecei a montar meu material, o material que trata de língua estrangeira. Como trabalhar se eu não montasse meu próprio material? Tive que criar um método. Eu fiz assim: comecei a ensinar como são as coisas na Língua Portuguesa e o que significa, depois vem a articulação entre as coisas e os conceitos. No início seria assim na minha língua, eu adotei um método. Eu me coloquei no lugar deles e me perguntei qual a melhor forma de aprender? O que significa isso na minha língua, eu tenho que saber o que significa, na outra língua eu preciso saber como se fala e como se escreve e pronuncia. Aprofundamos sempre os vocabulários. O que são as coisas na língua, no início é assim, depois vem as leituras. As leituras envolvem verbo, preposição, compreensão do texto. Depois vêm os textos, mas não textos grandes para que eles não desanimem de estudar. Eles não falam com você sobre a desistência, mas falam com os colegas que vão desistir se não estão entendendo. Então, eu ensino que eles devem ver o conteúdo. Devem chegar em casa e buscar mais. Para mim é sempre um desafio. Embora a escola esteja aberta, as salas são separadas entre haitianos e outros alunos. (Djú, entrevista narrativa, 2016)

Analisando a história da professora Djú, vejo que estamos construindo sentidos de uma prática docente para lidar com a educação para migrantes. Parafraseando Bourdieu (2003), estamos ampliando o aprendizado. Continuando, disse a professora:

Os alunos pedem que querem novos vocabulários. Eles querem saber como apreender novas coisas. Eles, às

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vezes, perguntam, e, quando eu não sei, eu vou atrás: pesquiso e trago para próxima aula. Eu na verdade não sonhei em ser professora. Queria ser jornalista de futebol. Quando fiz a inscrição no programa, me inscrevi em duas opções: Jornalismo e Letras. Passei para Letras e depois de um ano comecei a gostar e não deixei mais. Quando acabei de me formar, Professora Nieta nos chamou à SEDUC–MT e não estávamos preparadas para atender a essa área – idioma de francês – e tivemos que ir nos adaptando para trabalhar. Nós não achávamos que íamos receber esse fluxo migratório tão grande. No nosso caso, que viemos de Guiné Bissau/Brasil, tivemos o intercâmbio, enfrentamos dificuldades, mas foi bem menos que os haitianos. Houve aqui com os haitianos um choque cultural, o encontro da cultura brasileira com outra cultura, em função do número expressivo. (Djú, entrevista narrativa, 2016)

Notamos na história da experiência docente de Djú que vão se circunscrevendo nos momentos vividos que as mediações são preenchidas com uma variedade de sentidos que decorrem do experienciar, e que este novo campo que se constrói de forma relacional e complexa. Todas as motivações se afunilam nas vivências e a necessidade de fazer dessas vivências um caminho para dar sentido à experiência. Nesse momento, a professora Lídia Djú percebe que gosta de estar em sala de aula. E entendemos que este sentimento brotou do convívio e do autoconhecimento de si e dos outros. Atualmente, tem aumentado a necessidade de termos mais docentes preparados para enfrentar este espaço de construção da educação para migrantes. Todavia, é preciso que, para além do desprendimento, se alcance uma dimensão de justiça social.

A professora Silvina Jana Gomes descreve as dificuldades que tem enfrentado em sala de aula enquanto professora da educação para migrantes. Ela afirma que no Brasil a questão das relações interculturais é assim:

Tudo que é Europa o povo admira e gosta e diz que é bom, mas quando é uma coisa que vem da África ou do Haiti, para eles é macumba, por isso é preciso trabalhar muito com os alunos. É preciso muita conscientização. Sempre que surge o preconceito racial, muitas vezes, os próprios professores que deviam ser exemplo, eles mesmos debocham da cultura, no período da comemoração do dia de Zumbi. No 20 de novembro fomos em sala

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de aula para convidar os alunos que quisessem fazer penteados afros e uma aluna falou: por que que tem que ser afro? E começou a debochar. E o próprio professor em sala começou a rir. E eu até saí da sala para não dizer nada para este professor que ainda bem este ano não está trabalhando no CEJA Almira. Foi este ano que eu fui para o Encontro das Mulheres Negras em Brasília e teve uma apresentação de dança de candomblé, alguma coisa assim de dança, e um aluno evangélico criou maior confusão na escola. Na outra semana que teve reunião dos professores, veio a diretora falando que tem que tomar cuidado porque a maioria do público que está na escola é evangélico. A escola não é laica? Então quando é para fazer reunião pedagógica eu rezo o Pai Nosso, quando é para falar sobre a Cultura, eu não posso falar nada que toca na religião africana porque isso é macumba e eu estou ofendendo os alunos. Isso deu maior “BO” dentro da escola. Isso deu maior confusão, a diretora disse que ela não estava falando para não fazer, mas para tomar cuidado. Que cuidado? Não falar então? Na fala dela é para não fazer, se não fazer, você não afirma a cultura do outro. E aí fica mais difícil, como você vai trabalhar uma relação intercultural sem trabalhar a cultura do outro? Somente a sua. Por isso que a maioria dos Haitianos segue a religião de matriz africana, mas se pergunta para ele, dizem eu sou evangelique, ou seja, evangélica. Então esta fuga para dentro da religião evangélica é para serem aceitos, fazem isso para serem aceitos na sociedade. (Gomes, entrevista narrativa, 2016).

Finalizando, ao pensarmos a respeito da narrativa das professoras Djú e Silvina, sentimos que os haitianos vão reinventando suas próprias vidas, e, que assim, vão negociando suas aceitações enquanto migrantes aqui em Cuiabá, no Estado de Mato Grosso. Mudam suas religiões, os costumes, a forma de conceber o fazer cultural, e somente vivenciam suas culturas de forma autêntica quanto estão entre seus pares. Uma parte deles foge do enfrentamento dos estereótipos existentes nas culturas negras; a outra prefere vivenciar seus valores entre os seus. Para isso, vão criando locais onde se encontram e podem dialogar e vivenciar seus valores e significados. A escola parece ser um destes locais, já que se tornaram um número considerável no espaço escolar. Então, junto dela, têm vivenciado seus momentos históricos, suas músicas, suas artes e suas representações de vida.

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Algumas considerações

Este estudo nos mostra a urgência que temos em conhecer como enfrentar os problemas causados pela globalização e, entre estes, um problema que alcança dimensões mundiais é o que trata da questão das migrações, frente à garantia dos Direitos Humanos para todos. Buscamos iniciar, por meio deste texto, um campo de diálogo entre formação de professores e educação para migrantes, com o objetivo de fortalecermos abordagens investigativas formativas que focalizem como vem ocorrendo o atendimento aos haitianos aqui em Mato Grosso; mas também é nosso objetivo retratarmos como este fenômeno tem adentrado os muros escolares. Ressalto aqui a importância de se construir referenciais epistemológicos que envolvam os problemas das migrações e entendo que poderíamos continuar a explorar as contribuições teóricas e práticas dadas pelas professoras e pelos professores neste estudo. No entanto, por ora, finalizamos nossas reflexões, sugerindo o desafio de mergulharmos em histórias e narrativas que nos ajudem a interferir de maneira positiva nestes percalços que os povos migrantes vêm enfrentando. Algumas escolas abriram suas portas, porém, há muito a ser feito e temos que buscar fazer com que todo o sistema estadual e municipal de ensino se organize para receber estes novos cidadãos e cidadãs que, sendo de outros países, já começam, no entanto, a ser um pouco brasileiros, em face do trabalho e dedicação ao país que os recebeu.

Referências

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COSTA, A. L. Entrevista concedida a Carlos Alberto Caetano. Cuiabá, setembro de 2016.

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ZEICHNER, K. M. La Formacion del Profesorado y la lucha por la Justicia Social, Madrid, Edição Morata ,2010.

______. Formação reflexiva de professores: ideias e práticas. Lisboa: Educa, 1993.

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Tempo e temporalidade na formação do pedagogo: diálogo com Gaston Pineau

Dejacy de Arruda Abreu

Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas

de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras.

Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os

primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. (MANOEL DE BARROS, 2003)

Introdução

A formação docente se encontra constantemente tensionada, se apresentando como um caminho de muitas possibilidades e de múltiplos olhares e tempos. Enveredando por esse caminho, encontrei eco nos estudos relacionados a tempo e formação, em suas múltiplas nuances, em Gaston Pineau. Neste momento, a formação é entendida no sentido amplo, como evolução humana, especialmente, quando estamos tratando de formação de professor.

Para esse ensaio, indo além de uma licença poética, decidi pedir emprestado do poeta mato-grossense Manoel de Barros, a sua escova. Para, com ela, escovar as palavras apresentadas por Pineau, com o intuito de saber o que seus estudos poderão mostrar. E é, com essa curiosidade epistemológica que inicio essa escovação à procura das temporalidades escondidas, guardadas, produzidas ou produtoras da/na formação.

Quando me enveredei por esse tema, ele já estava colado em mim ou no meu percurso de formação humana profissional. Saltou-se como uma necessidade de um desejo ressequido de vontade de pesquisar algo não previsível, mas subjetivo, individual e, ao mesmo tempo, pertencente a um coletivo diverso, pois para Pineau (2003, p. 73) “o tempo não é nem visto, nem entendido, nem lido, mas vivido”. É nessa fluidez dos micros e macros tempos que sigo essa jornada na arqueologia da escavação da formação.

Tempo e temporalidade na formação do pedagogo: diálogo com Gaston Pineau

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A pesquisa enredou pelos caminhos do tempo e da temporalidade em um, ainda tímido, diálogo com a formação do pedagogo, porque abarco reflexivamente o docente em formação acadêmica no espaço universitário e no prolongamento desse espaço que é a escola. Neste caminhar, tenho visto seu lugar de trabalho, lugar onde os tempos se confundem, se misturam e se fundem, resultando em temporalidades diversas. Tomo a Pedagogia como referência, por sua implicação visceral em minha trajetória/história de formação e de trabalho, em um desejo de trasnver esse profissional em seu processo sempre inacabado de construção, (des)construção, (re)construção, (auto)construção e (hetero)construção.

Ao ler os escritos de Pineau (2003) relacionados às temporalidades na formação, a partir do meu lugar de pedagoga, comecei a transver o tempo da formação, rememorando as falas dos alunos e ex-alunos do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Tais falas foram lançadas e recolhidas em sala de aula, nos estágios, nos dossiês de conclusão do curso, nos momentos de orientação, e nos corredores da instituição. Estas falas que insistem em ecoar em mim.

Nesse celeiro de vozes escritas, verbalizadas e manifestas nas expressões do corpo, foram percebidas as compreensões e incompreensões acerca do processo de formação do ser docente a questionar, afirmando que haveria dois movimentos distintos: o da formação do pedagogo na universidade e o de seu campo de atuação ou trabalho docente nos espaços escolares e não escolares. E o grito ou eco dessa afirmação se ouvia com mais intensidade em todos os momentos que o estudante se via em alguma atividade prática na escola, e, mais fortemente, em alguma etapa de estágio supervisionado de regência. E, finalmente quando os discentes terminavam o curso e iam atuar diretamente em sala de aula como professores regentes, havia ou há, no dizer de alguns, um apagão que não permite fazer o diálogo entre esses tempos de formação e de atuação profissional.

Tais questionamentos dos professores em formação me suscitam outros: existe mesmo fronteira e dissociabilidade entre tempo de formação e tempo de atuação profissional? Os entretempos e contratempos constituem algo a se evitar? O tempo de formação e de atuação tem sua especificidade? Quanto ou qual a intensidade deste tempo?

Essas inquietudes tensionaram ou deram elementos para o nascimento desta pesquisa, a qual permitiu trazer para este texto uma leitura reflexiva ancorada em Pineau (2003) para dialogar com a temporalidade dos processos de formação do pedagogo, o que passo a entender como sendo implicados em múltiplas temporalidades.

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Como se trata de um recorte de uma pesquisa mais ampla, vou me ater a fios dessa temporalidade. Por isso, pautei-me nas vozes, falas escritas, outras, como já disse, verbalizadas, que deixaram em mim vestígios de inquietudes. Assim, trago uma contribuição de Pineau (2003) acerca da formação como um todo, a formação que está na vida de cada um e a formação para o ser docente. Apresento o sentido do tempo e da temporalidade em um intercruzamento com essas formações.

Caminho teórico e metodológico: “escovando” o tempo

Pensar no tempo em uma perspectiva de movimento, possibilitou encontrar nos escritos de Gaston Pineau “Temporalidades na formação – rumo a novos sincronizadores” (2003); Autoformação no decurso da vida (online) e Transdisciplinaridade e formação (2005), dentre outros estudos deste autor, nos quais encontrei contribuições para tecer reflexivamente alguns olhares sobre a formação docente. Na pesquisa narrativa no tocante à educação localizamos uma estratégia investigativa no que se refere ao ser professor, uma vez que na pesquisa podemos assumir, simultaneamente, a atuação como sujeito e também como objeto dos estudos. É o que procurei fazer neste texto, trazendo as vozes dos alunos e também minhas percepções de professora, sempre observando como fundamentação teórica, a produção de Pineau.

Reportando-se ao pensamento, à escrita e à pesquisa narrativa, Connelly e Clandinin (1990, p. 11) nos dizem que:

[...] os seres humanos são organismos contadores de histórias, organismos que individual e socialmente, vivemos vidas relatadas. O estudo da narrativa, portanto, é o estudo da forma como nós, seres humanos experimentamos o mundo. Dessa ideia geral se deriva a tese de que a educação é a construção e a reconstrução de histórias pessoais e sociais: tanto os professores como os alunos somos contadores de histórias e também personagens nas histórias dos demais e nas suas próprias.

Dentro dessa perspectiva, e, para explicitar o pensar e pesquisar narrativamente, Benjamin (1994, p. 205), sociólogo e filósofo francês, explica que a narrativa é:

[...] uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada

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como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Neste trabalho estamos lidando com tempo e temporalidade, o que abarca subjetividades diversas em processo de formação, as quais vão esculpindo suas vidas e histórias no tempo, tal qual a argila nas mãos do oleiro. Para Connelly e Clandinin (1995), uma especificidade importante nas narrativas é a temporalidade, pois não podemos desconsiderar a articulação da tríade temporal presente, passado e futuro. Com isso, os alunos e ex-alunos, ao retomarem suas histórias, constroem e reconstroem a realidade porque o presente carrega dentro de si o passado que tece um devir.

Foram as vozes, os comentários escritos e ditos dos alunos e ex-alunos que me ajudaram a construir este texto de modo narrativo, em diálogo com Pineu (2003). Com esse referido autor, realizamos um estudo reflexivo, e tomamos emprestado alguns fragmentos de suas ideias concernentes à formação docente no contexto das diversas temporalidades, e usamos essas ideias para dialogar com a formação do pedagogo.

O que apresentamos neste texto são reflexões iniciais de uma narrativa a respeito dessa temática que terá seu desfecho de modo mais aprofundado e contextualizado ao final da formação no Doutorado.

Formação nas tessituras do tempo

O termo formação, tomado por Pineau (2003), foi escavado e encontrado na história da língua francesa, século XII, mas somente em meados do século XIX é que esse termo se apresenta de modo mais acentuado nas pesquisas sobre evolução. Fala-se de formação humana social, da mesma forma que das estrelas ou do universo. A formação, então, se impõe como uma função vital essencial a ser exercida permanentemente.

Esse estudo nos ajuda a entender que a formação é atravessada por diferentes tempos, e, diz ainda, que, “[...] ela está longe de ser utópica, sem lugar território. Diria ao contrário, que ela é multitópica e que, mais ou menos, está sendo concebida, gestada e até mesmo realizada em tantos lugares quantos protagonistas houver” (PINEAU, 2003, p. 160). Já de início, o autor nos arrebata por completo, ao dizer que a formação possui uma função vital permanente, e, por conseguinte, não se deixa confundir como algo ou alguma coisa vazia ou sem lugar algum, uma vez que possui suas utopias de modo aberto, acolhendo

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as individualidades de cada ser para se protagonizar o novo que não nega sua realidade factual, mas se serve dela para anunciar epistemologias diversas acerca da constituição do que se está formando.

Após vários estudos, e mediante o esforço de fazer cruzamentos com outras pesquisas do mesmo campo de estudo da formação, foram identificadas três configurações: a heteroformação, autoformação (que foi a primeira das dimensões a ser estudada, nível do sujeito) e a ecoformação (nível eco, as influências do ambiente mediante processos que nos ajudam na construção do conhecimento). A heteroformação (nível hetero, representado pelo outro) se refere às nossas experiências, as quais sofrem ações de outros e que pode ser, no dizer do autor, alienante se na idade adulta o indivíduo não assumir o protagonismo e a responsabilidade de sua formação. Esse movimento do tempo vivido se identifica com o ‘dia’, no que diz respeito às relações sociais impostas. O diurno representa possíveis tensões, enfrentamentos coletivos e individuais.

Já no tocante à autoformação, está ligada às relações pessoais, às reflexões acerca das experiências vividas no decorrer da vida e que podem ser ressignificadas no presente (o agora) para possibilitar uma reconstrução em nossa prática, colocando o outro em seu próprio lugar, não mais como nosso protagonista, mas como nosso apoio, conforme nossas necessidades. Ela se identifica com o movimento da noite, que é um espaço/tempo concebido mais livre socialmente. Já a ecoformação que nos faz tomar consciência de nossas dependências objetivas e naturais envolve a nossa ação com o mundo, o trabalho, a cultura e o meio ambiente do qual fazemos parte. Com isso, entende-se que a produção do conhecimento vai de um nível ao outro, sempre estabelecendo uma relação. Essa formação do docente que está em construção acontece em processos de relação consigo mesmo, com o outro, e com o ambiente, nas diversas formas que ele se apresenta.

Retomando a autoformação, entendemos que ela é assumida como um poder de formação do ser do sujeito que se move no tempo, contratempo e entretempos, em que o mesmo pode se construir a partir de si mesmo. Por isso, se justifica a reapropriação pessoal do tempo como condição de evolução humana, como apresenta o estudo de Pineau (2003). Nele, nos movemos e evoluímos sem negar, apagar o passado presentificado no agora, em um entendimento dialético do tempo-passado-presente-futuro.

Com isso, Pineau (2003, p. 162) nos orienta ao dizer que em um percurso evolutivo de aprendizado do qual fazemos parte em um dado momento da vida que “[...] as práticas e concepções herdadas da primeira idade” que corresponde à heteroformação, “são exíguas demais para apreender a extensão da formação

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ao longo da vida”. E, para isso, nos apoiamos nele, que, por sua vez, se apoia em Bachelard (1949, p. 153), ao afirmar que “compreender um fenômeno novo não é simplesmente acrescentá-lo a um saber adquirido, é reorganizar o próprio princípio do saber”. Nesse sentido, precisamos ritmar o tempo, pois cada um precisa encontrar seu próprio ritmo:

Conquistar seu tempo exige, portanto, aprender ritmos particulares completamente opostos, indo do biológico ao cósmico, passando pelo social, mas também implica articular estes ritmos para si mesmo, sincroniza-los pessoalmente. É preciso que sua medida seja fornecida, seus ritmos ritmados. (PINEAU, 2003, p. 145)

Como docente em construção e reconstrução, já somos responsáveis pelo que somos ou estamos nos transformando. Isso aparece imprimido em nossas ações e reações. Penso ser oportuno aqui nessa escovação do tempo expressar a frase de Maturana (2000, p. 86), “[...] nada do que fazemos jamais é trivial, porque somos um tempo presente em mudança”. Essa mudança presente na formação do pedagogo produz transformações, pessoais e sociais. É um prenúncio de um devir reconhecido naquilo que já somos no agora.

Assim, ao ouvir os alunos do curso de Pedagogia da UFMT, quando disseram que estão confusos e com dificuldades para compreender e reelaborar alguns conceitos dos fundamentos metodológicos das disciplinas, nos parece que essa contribuição de Bachelard refletida por Pineau (2003), e por Maturana (2000) relacionada a esse tempo de maturação e mudança, também nos é oportuna, pois não é simples e nem fácil tecer essa relação quando a mesma ainda está sendo construída em nossos entendimentos. Isso porque, considerando-se que ainda está em curso, não conseguem encontrar eco, pois em sua maioria, eles não existem. Por isso, não poderão simplesmente acrescentá-los em sua formação inicial. Ocorre que esse conhecimento/saber, ainda precisa ser construído, e isso exigirá do estudante maior dedicação (escovação) aos seus estudos, de modo a assumir a sua autoformação e apropriar-se desse novo conhecimento. Nesse ponto, queremos entender que o tempo, ao fluir de modo consciente e nas subjetividades diversas, vai gestando essa nova experiência e tecendo temporalidades.

Pineau (2003), quando se refere à temporalidade, estabelece para ela alguns marcos, localizando-a em três pontos: o primeiro é que o tempo é plural; o segundo, cada tempo único é formado por tempos plurais, e, o terceiro, para cada ser, a temporalidade é o movimento. A respeito do tempo que intercruza nossas vidas, Serres (1981, p. 26) expressa que “[...] a vida é igualmente a sincronia

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de vários tempos”, e que essa sincronia não é dada, simplesmente precisa ser sentida, vivida permanentemente nas suas várias dimensões social, educativa e política. Essa é uma experiência singular para formação do pedagogo; a percepção desses tempos plurais e seus movimentos ajudam no amadurecimento de epistemologias indispensáveis à compreensão da autoformação.

Tensões do tempo e intercruzamentos de temporalidades

Nesse tecido textual de Pineau (2003), encontramos Serres (1980, p. 147), que expressa em sua pesquisa sobre o tempo que “[...] a palavra tempo tem dupla etimologia. Ela possivelmente é derivada de cortar, da mesma família de tempo, átomo; ou de tensionar, estirar, que diz exatamente contrário”. No sentido apresentado, o tempo será contínuo ou descontínuo, conforme a sensibilidade de cada um, bem como seus entretempos ou contratempos. Para o autor, “O tempo é a medida do movimento, não apenas a sua contabilização, sua quantificação, sua média, mas também sua afinação, seu ritmo, seu tom, sua qualidade, seu sentido [...]” (PINEAU, 2013, p. 13). O tempo imprime em nós seu ritmo, mas também temos o nosso ritmo, aquele que é próprio do nosso sentir, onde nos afinamos ou não com outros ritmos internos (consigo mesma/o) e os externos (os outros/ as coisas/ a natureza).

No calor do tempo da academia, em uma instituição, encontramos pelos corredores e salas os alunos do curso de Pedagogia. Eles inauguram um tempo de descobertas, de desvelamento do lugar da formação, não somente nas ditas quatro paredes das salas de aula, mas em todos os espaços como grávidos que estão desse tempo, ou dessa sucessão de momentos. Em um dado momento na formação, quando o estudante do curso de Pedagogia escreve sobre si e de si, como quem se vê do alto ou de fora, reconhece sua trajetória de formação. Alguns se dizem fascinados ao se darem conta de que estão fazendo um curso superior.

Percebe-se, com isso, que existe um movimento do tempo prescrito presente, mas ressignificado por uma temporalidade inicial do reconhecimento de incorporações novas em termos de conhecimentos que suscitam percepções reflexivas novas.

O sentir-se presente, vivo no movimento do tempo, possibilita, no caso do estudante, ao estudar, quebrar o tempo das esperas sociais, culturais e econômicas, forjando temporalidades de energia criativa. É nesse sentido de movimento que Pineau (2003, p. 223) nos diz “[...] a temporalidade é a dialética feita não apenas de tempos da mesma família, mas também de contratempos e

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mesmo entretempos, que , às vezes, são não-tempos, tempos mortos, suspensões de movimentos.” Denota-se com isso, que existem momentos de tempo repletos de certezas e incertezas frente ao processo de formação do pedagogo, de abertura, fechamento e ressignificações. Eles se dão conta do tempo que segue atravessado pela organização da proposta curricular do curso, regulado pelos horários e fracionado por eles também. Para Pineau (2003), esse tempo de formação sofre com os contratempos sociais de toda sorte e pelo imperativo das esperas – que suspendem os movimentos de continuidade –, como mencionamos anteriormente, nem sempre produtivas, vivas, muitas vezes, vazias e de livres associações. Nem sempre conscientes. Essa espera pode ser de natureza de escassez de algum recurso material não acessível naquele momento, como um livro, o acesso a um computador com acesso à internet, o tempo para pensar e se apropriar de epistemologias diversas, a escassez do próprio tempo para os estudos. E, nesse sentido, cabe-nos habitar esse tempo em movimento não prescritivo em uma luta contra o tempo regulado, e medido pelo relógio. Cabe-nos auscultá-lo, saber dele, saber de si, para emergir nossa temporalidade, recriando e dando sentido novo à espera.

Retornando a esse medidor do tempo, assumido pelo relógio, Pineau (2003) o coloca como a máquina chave da idade industrial moderna que não produz nada, exceto a ordem e a medida do tempo homogêneo que transforma temporalidades individuais heterogêneas em temporalidades homogêneas contabilizadas, que quase sempre não ritmam com os ritmos da vida, impondo, portanto, sincronizadores universais.

Quando o tempo é coisificado, paralisado, manipulável, esta redução está na base da alienação; essa dissociação entre passado, presente e futuro causa “[...] a desconcretização de toda apropriação do mundo” (GABEL, 1962, p. 89). O autor em questão nos possibilita entender que pela associação entre os tempos, o seu entrelaçamento faz emergir as nossas memórias e os vestígios da nossa histórica, nessa perspectiva, a compreensão da pesquisa é que essas três dimensões estão sempre presentes nos processos de historicidade da pessoa. Nesse caso da formação do pedagogo, o que ele era antes, o que ele é agora já está no seu devir. Dizendo de outro modo, quando ele adentra o curso de Pedagogia, traz suas memórias, sínteses de suas vivências remisturadas com sua cultura formativa. No decorrer do tempo prescrito e orientado pela proposta do curso, dos entretempos e contratempos, surgem novas temporalidades que descortinam ou não novas possibilidades de escolhas, entendimentos. Nesse movimento, surgem as fronteiras, e, para entendê-las, Wilden (1983, p. 39) escreve:

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As fronteiras, longe de serem barreiras ou cercas, constituem para os sistemas abertos o seu ponto de relação na realidade, e a nossa com estas fronteiras, incluindo nossa descoberta de sua existência e sua descoberta de nossa existência, que é seguramente responsável por aquilo em que nos transformamos.

Para este viés de entendimento, tomamos as fronteiras como um intermeio no sentido de possíveis rupturas e encontros que ressignificam nosso tempo e fazem emergir novas temporalidades, remisturando o que trazemos de nossa heteroformação, com a autoformação e a ecoformação. Afinal, no que expressa Morin (1977, p. 204) a esse respeito,

Toda fronteira [...] é o lugar da dissociação e da associação, da separação e da articulação. Ela é o filtro que ao mesmo tempo reprime e deixa passar. Ela é aquilo por meio do qual se estabelecem as correntes osmóticas e aquilo que impede a homogeneização.

As fronteiras são lugares, tempos de entendimentos ou desentendimentos em que pode surgir ou emergir a individualidade fora dos tempos sincronizadores homogeneizantes, o que gera um tempo ou sujeito modelo universal, que, de alguma forma, estão presentes nos estereótipos epistemológicos e socio-históricos do conhecimento social academicista. Mas, na fronteira, o tempo da espera poderá suscitar a construção de microtempos pessoais que venham ressignificar os contratempos e entretempos sociais. Nesse viés, Pineau (2003, p. 219) nos fala que “[...] caso as fronteiras entre os diferentes tempos existam, elas não são absolutas, isto por dois motivos: elas estabelecem comunicação, ao mesmo tempo que delimitam e são flutuantes”. É nessa comunicação e delimitação do tempo, que a formação gesta suas temporalidades, e o protagonista desse movimento de ação e contração do tempo poderá habitá-lo de modo a reelaborar novas epistemologias e práxis.

E, ao volvermos essa perspectiva de formação para o pedagogo, entendemos que ele possa, então, habitar seu próprio tempo sem esgotá-lo ou preenchê-lo na sua totalidade com as demandas do tempo físico. Percebemos que essa apropriação de si e para si pode vir a criar um movimento formativo permanente para que a escovação das palavras a serem ensinadas ou aprendidas seja constante e que carregue consigo a sua escova para aperfeiçoá-la.

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Considerações finais

Algumas palavras são necessárias acerca deste estudo que se ancorou nas minhas vivências como professora formadora de professores em uma instituição de ensino superior. Nessa tecelagem da vida profissional, em meio às narrativas recolhidas que me inquietaram, frente à formação docente que percebi nos estudos de Pineau (2003) as contribuições para este trabalho, pois é preciso observar que a formação docente inicial traz em seu bojo um misto de possibilidades devido às histórias ou trajetórias de vida de cada pessoa em formação para a docência em uma instituição de ensino superior. Seguimos no tempo regulado, porém, muitas vezes, na contramão, devido aos canais de percepções e reflexões, os quais usamos para produzir ou construir processos novos ou de conhecimentos. É nesses tempos, entretempos e contratempos que produzimos nossas subjetivadas ou intersubjetividades e nossas temporalidades, conjugando os tempos passado, presente e futuro de modo circular, dialético e transdisciplinar.

Nesse sentido de indissociabilidade dos tempos e continuidade, o autor ainda menciona a possibilidade da formação permanente que é pessoal e intransferível, uma formação que não é nem padronizada, mas vai depender da própria pessoa e de sua relação consigo mesma, com o outro e com o meio que a circunda. Para ele, “na formação permanente, o que é permanente é a mudança, é o movimento perpétuo” (PINEAU, 2003, p. 163). Assim, a mudança é o desvelamento do tempo nas temporalidades presentes, tanto na formação inicial, como no trabalho docente, onde essa formação gera a transformação da pessoa de modo relacional em um entrelaçamento das três dimensões do tempo – presente-passado-futuro.

Para alcançar esse entendimento, exige-se que repensemos a formação inicial do docente a partir de um processo de formação integral de natureza transdisciplinar que inclui os três níveis de formação: autoformação, heteroformação e ecoformação, reconhecendo a importância de sua dinâmica integradora para a vida pessoal e profissional docente. No dizer de Pineau (2003, p. 17), esse movimento ou triplo movimento sincrônico ou diacrônico anuncia a possibilidade de uma consciência transdisciplinar nos processos de formação como um todo, fora de um determinismo e conformismo social “um aspecto de uma revolução escondida, a que chamamos a revolução cultural dos tempos livres”. Ela extravasa e atravessa as estratificações sociais e educativas tradicionais recorrentes dos currículos prescritivos reguladores dos tempos. Assim, permite que o tempo da formação, seja ela inicial ou continuada, flua gerando uma mudança evolutiva de aprendizados múltiplos do ser para o ser profissional.

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É trilhando essa perspectiva que o autor chama atenção para uma “cronoformação” permanente, compromisso nada fácil, exigência de uma ação intensa e comprometida que exige mais que uma exploração das dimensões de tempo, mas a apreender a usá-lo com pertinência, para ter, ser e fazer sentido para vida humana, social e cósmica. Nesse raciocínio, “[...] o tempo parece ter alargado as relações entre temporalidade e formação e fixado os marcos do que foi chamado cronoformação” (PINEAU, 2003, p. 216). Constatamos que essa temporalidade na formação poderá contribuir para uma consciência planetária que qualificará nossas ações sejam elas como aprendizes ou ensinantes.

No que se refere à pesquisa no campo da formação de professores, saber lidar com esse tempo fatigante que nos tira a noção do agora, que contabiliza quantitativamente nossas ações e ignora o passado em nome de um tempo social moderno veloz e algoz, exige da formação, da autoformação e das instituições formadoras, habilidades para perceber o que e como está se constituindo esse tempo; e, em que ele está se resultando e evoluindo. E também é relevante buscar saber até que ponto pode ser considerada a formação permanente no sentido de vital e ciclo da vida.

Essa noção de tempos plurais, movimentos e múltiplas temporalidades formativas constitui indagações, inquietudes e a problematização da pesquisa deste doutoramento, o qual pretende contribuir reflexivamente com os estudos relacionados à temporalidade da formação do pedagogo.

Referências

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BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003.

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de. Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.

CONNELLY, F. M.; CLANDININ, J. Stories of experience and narrative inquiry. Educational Researcher, v. 19, n. 05, p. 2-14, 1990.

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GABEL, Joseph. La fausse conscience. Essai sur la réification. Paris, Editions de Minuit, 1962.

MATURANA, H. Transdisciplinaridade e cognição. In: BASERAB, N. et al. Educação e transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO, 2000, p. 74-110.

MORIN, E. La Nature de la nature (t. 1), Le Seuil, Nouvelle édition, coll. Points, 1977.

PINEAU, G. Temporalidades na Formação: rumo a novos sincronizadores. São Paulo: Editora TRIOM, 2003.

PINEAU, G. A autoformação no decurso da vida: entre a hetero e a ecoformação. In: NÓVOA, A.; FINGER, M. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde/Depto dos Recursos Humanos da Saúde. 1988, p. 63-77.

SERRES, M. Le passage du nord-ouest. Paris: Editions de Minuit, 1980.

WILDEN, A. Système et structure. Essais sur la communication et l’échange, Montreal, Boréal Express, 1983.

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Pesquisa sobre professor iniciante: algumas considerações

Deusodete Rita da Silva Aimi

Os primeiros anos de docência são fundamentais para assegurar um professorado motivado, implicado e

comprometido com a sua profissão. (GARCIA, 2009, p. 20)

Introdução

Existem pesquisas sobre o professor iniciante, formado em Pedagogia no Brasil? Se existem, o que dizem estas pesquisas? O que elas revelam a respeito desta etapa da profissão? Estes questionamentos que surgiram quando decidi me aprofundar no estudo do tema são questões atuais remanescentes de uma dúvida que é antiga para mim. Há muito tempo me interessei pela formação dos professores no curso de Pedagogia e a sua inserção no espaço de trabalho. Neste caso, especificamente, a inserção dos profissionais da docência na escola pública de educação básica.

O curso de Pedagogia e os quase 20 anos de atuação em sala de aula com alunos das séries iniciais, e também a atuação como formadora de professores em curso de formação continuada, me levaram além da vivência e me proporcionaram possibilidades de aprendizagem. Junto disso, surgiram também infindáveis perguntas quanto ao modo segundo o qual os professores se aperfeiçoam, tanto no período da formação inicial, quanto durante os anos iniciais da docência. Os últimos cinco anos, de modo em especial, me possibilitaram vivenciar, como professora formadora de professores da educação básica, várias situações de convivência com docentes que, ao serem contratados, iniciaram sua carreira na educação básica e acabavam dividindo comigo suas angústias e desafios diante dessa nova profissão.

Ao iniciar os estudos do Doutorado em Educação, no ano de 2016, já trazia comigo a certeza de que neste período me dedicaria, acima de tudo, a entender o que e como estes professores vivenciam e levam consigo para a sua constituição profissional no período dos primeiros anos de exercício

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da profissão. Isso ocorreu, até mesmo porque sei que, ao buscar respostas para minhas indagações, terei possibilidade de entender o que já foi escrito a respeito deste tema, e, assim, tentarei saber como posso contribuir para que outros profissionais tenham condições de realizar novas propostas para a formação de professores.

Desde modo, para responder às indagações que apresento, delimitei, para este momento, analisar o que já foi produzido e publicado acerca do assunto. E, para isso, elenquei como recorte inicial para a pesquisa os descritores Professor Iniciante, seguido de Aprendizagem da Docência, e optei por escolher as publicações que tinham o professor formado em Pedagogia como sujeito ou o curso de Pedagogia. Para esse trabalho, decidi ainda realizar a busca apenas em dois repositórios, o site da Biblioteca Eletrônica Scielo e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD).

Assim sendo, apresento, neste trabalho, algumas considerações acerca das investigações concernentes aos professores iniciantes, bem como um levantamento do tema a partir das investigações realizadas e disponibilizadas nos espaços acima citados. A pesquisa no site Scielo apontou, inicialmente, um número de 25 artigos. Todos eles abordando o termo Professores Iniciantes em algumas situações, ou resumo ou título. Quando utilizado o termo Ciências Humanas, o total cai para 18, mas este número volta para 16 quando se usa o filtro Pesquisas em Educação. Ainda no refinamento da pesquisa, selecionei 16 trabalhos para leitura. Mas, ao término, foi possível perceber que apenas sete abordaram o conceito Professores Iniciantes como tema central das discussões.

As teses e dissertações que abordam esse tema, encontradas na investigação, somam um total de 16 trabalhos, dez dissertações e seis teses, cujos temas variam entre formação de professores e aprendizagem profissional da docência. Ao realizar a leitura dos resumos destes trabalhos, optei por selecionar apenas cinco dissertações e uma tese por considerar a relevância de cada pesquisa. Desse modo, vale ressaltar que encontramos trabalhos publicados no período de 2002 até 2016.

Este artigo está dividido em três partes principais. A primeira refere-se à introdução atinente à temática; a segunda é composta pela exposição dos dados coletados que foram organizados a partir de três temáticas, que, de uma forma ou de outra, perpassam os trabalhos realizados, são elas: Aprendizagem da Docência de Professores Iniciantes, Políticas e Programas de apoio ao Professor Iniciante e Socialização de Professores Iniciantes. E, por fim foram tecidas as considerações finais.

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O que dizem as produções?

Aprendizagem da Docência de professores iniciantes

Durante a etapa que compreendeu a pesquisa e a leitura dos artigos foi possível identificar os textos que tratavam da aprendizagem da docência. Contudo, foi preciso fazer a separação deles, uma vez que alguns não tratavam especificamente da aprendizagem do professor iniciante. Deste modo, pudemos observar que apenas sete dos artigos encontrados tratavam deste assunto.

Um destes artigos analisados trata especificamente de uma pesquisa realizada em publicações apresentados nas reuniões da ANPED nos anos de 2005, 2006 e 2007, e no banco de teses da CAPES, publicados entre 2000 e 2007. O artigo, que tem como título “As pesquisas sobre professores iniciantes: algumas aproximações” (PAPI; MARTINS, 2010), evidencia que a maior parte das pesquisas apresenta uma análise relacionada ao professor, focalizando sua prática, a construção da identidade, a socialização profissional e as dificuldades encontradas. As autoras afirmam que, durante essa investigação, foi possível perceber que a fase de iniciação à docência tem sido apresentada como um tempo/espaço privilegiado para a constituição profissional docente e que:

Os primeiros anos de exercício profissional são basilares para a configuração das ações profissionais futuras e para a própria permanência na profissão. Podem tornar-se um período mais fácil ou mais difícil, dependendo das condições encontradas pelos professores no local de trabalho, das relações mais ou menos favoráveis que estabelecem com outros colegas, bem como da formação que vivenciam e do apoio que recebem nessa etapa do desenvolvimento profissional. (PAPI; MARTINS, 2010, p. 43)

Vale destacar que, além das discussões acerca das aprendizagens possíveis neste período, o texto cumpre o papel de anunciar a quase inexistência de ações de formação para professores, ao mesmo tempo em que apontam a necessidade de produção de novas pesquisas a respeito do período de iniciação à docência.

Outras autoras que abordam a aprendizagem da docência de forma significativa, são Reali, Tancredi e Mizukami (2008; 2010), que apresentam em dois dos trabalhos a discussão a respeito da formação direcionada a professores iniciantes a partir de um programa intitulado Programa de Mentoria, ofertado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Os trabalhos expõem dados referentes à experiência realizada entre os anos de 2004 e 2007. O primeiro texto

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(REALI; TANCREDI; MIZUKAMI, 2008) discute os resultados de uma pesquisa intervenção ligada aos processos formativos de mentoras e de professoras iniciantes. O texto apresenta dados acerca da formação de professores iniciantes e da formação das mentoras que atuaram na realização do curso. O curso direcionado às professoras iniciantes foi ofertado a partir do portal dos professores da UFSCar enquanto a preparação e a formação das mentoras aconteciam em reuniões juntamente com as coordenadoras do programa. Para a coleta dos dados, as autoras utilizaram as narrativas orais e escritas e conversas interativas entre as professoras iniciantes e suas respectivas mentoras. No segundo texto as autoras informam que utilizaram como principal fonte dos dados as correspondências trocadas entre mentoras e professoras iniciantes, os diários reflexivos de mentoras e professoras iniciantes, a redação de casos de ensino pelas professoras iniciantes, e os registros de observações das reuniões semanais ocorridos entre pesquisadoras e mentoras. As pesquisadoras apontam que o trabalho foi desenvolvido em três fases distintas, quais sejam: fase inicial ou de aproximação; fase de desenvolvimento ou aprofundamento; fase de desligamento (REALI; TANCREDI; MIZUKAMI, 2010).

Os resultados obtidos nos dois trabalhos supracitados apontam que há fortes indícios da necessidade de voltar a atenção para um período crítico no desenvolvimento profissional de professores – início da carreira docente, uma vez que é nessa fase que os jovens profissionais docentes sofrem uma espécie de dificuldade em enxergar determinados aspectos do fazer pedagógico, já que focam sua atenção no gerenciamento das demandas mais imediatas da sala de aula. Ademais, apontam que existe uma lacuna na literatura brasileira concernente à fase inicial da carreira docente e a respeito da formação de formadores para estes professores iniciantes.

Ainda como resultados deste trabalho, as pesquisadoras afirmam que a partir desta pesquisa perceberam o que outras pesquisas já vêm apontando, que “[...] as práticas docentes são fortemente determinadas pelos seus conhecimentos, crenças, metas e hipóteses assim como pelas concepções que têm sobre a matéria que lecionam, o conteúdo curricular, os alunos e a aprendizagem” (REALI; TANCREDI; MIZUKAMI, 2010, p. 484).

Além disso, sublinham que as aprendizagens dos professores iniciantes participantes do Programa de Mentoria Online, abordado pelas pesquisas anteriormente citadas, foi realizada uma pesquisa durante o curso de Mestrado no ano de 2014, em que a autora do texto realizou uma investigação com dez professoras ex-participantes do referido programa, com o objetivo de investigar as contribuições feitas para o enfrentamento das principais dificuldades de professoras iniciantes, bem como no intuito de avaliar os processos vividos por

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suas mentoras. Como resultado da investigação, a autora aponta que foi possível perceber as contribuições mediante a interação entre as professoras iniciantes e suas mentoras experientes, e aponta a interação online entre elas como um dos fatores que contribuíram para o desenvolvimento profissional dessas professoras, pois neste formato é possível ainda minimizar problemas relacionados à falta de tempo e ao acúmulo de responsabilidades individuais (MASSETTO, 2014).

Outro trabalho que chamou a atenção pela iniciativa da autora, foi uma dissertação publicada em 2004, que discute o início da docência, os saberes docentes e a trajetória profissional, e que foi ouvir professores em fim de carreira, ou seja, trabalhou com professores colaboradores com mais de 20 anos de profissão. Seu trabalho apresenta algo próximo daqueles produzidos junto aos professores iniciantes, mas mostra algo de maturidade nas considerações, principalmente, quando aponta que o início da carreira é visto como um período de extrema importância, pois é nesse tempo que se configuram as bases para a construção da carreira docente. “Nela ocorrem momentos inusitados na vida dos professores, caracterizando-se como um momento único e de transição na vida dos principiantes. É uma fase marcada por momentos de tentativas e erros, em que aparecem o sentimento de sobrevivência e descoberta” (PIZZO, 2004, p. 06).

Esta autora aponta em seu trabalho algo que tenho visto nas obras de outros autores como Nóvoa (2009), Garcia (1999; 2009), Mizukami et al. (2002), pois afirma que o desenvolvimento profissional da docência inclui dimensões de desenvolvimento pessoal, da profissionalização e da socialização profissional. Isso nos ajuda a pensar que o desenvolvimento profissional dos professores depende ainda das suas vidas pessoais e profissionais e das políticas e contextos escolares nos quais realizam a sua atividade (DAY, 2001).

Ainda abordando o tema das aprendizagens docentes, Rocha (2005) realizou uma pesquisa a partir do relato de uma Doutora que se torna professora da educação básica e vai vivenciando as dúvidas e incertezas do início da docência. A autora conclui que mesmo que a professora já tenha cursado o Doutorado, seu primeiro ano na docência foi um período marcado por grandes dificuldades e dúvidas, tal como indica boa parte das literaturas da área acerca do professor iniciante. Contudo, em alguns pontos foram notadas algumas diferenças, principalmente, em relação às concepções teóricas.

Outro trabalho encontrado nessa investigação também produzido a partir de uma pesquisa de Mestrado, e aborda os saberes docentes dos professores iniciantes para atuar em creches. A pesquisa, realizada em 2013, girou em torno das dúvidas a respeito de como se configuram os saberes docentes em uma tentativa de caracterizar quais saberes têm as professoras que trabalham com crianças de zero

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a três anos e compreender como elas aprendem a ser professoras neste contexto. Apesar de a autora afirmar que não intencionou fazer uma discussão aprofundada acerca do professor iniciante, foi possível discernir que ela conseguiu esse acesso de forma não intencional, principalmente, quando apresenta os resultados obtidos, pois conforme seu relato, as professoras afirmaram que “os saberes advindos da prática profissional e da troca de conhecimentos com professoras mais experientes, se constituem enquanto as principais fontes de aprendizagem”. As professoras afirmaram ainda que o curso de Pedagogia não prepara para atuar na educação infantil, o que faz com que “[...] o choque de realidade e os primeiros anos de docência se tornem mais difíceis e que através de tentativas e erros acabam construindo seu repertório profissional, o qual oferece mais segurança para trabalhar conforme o tempo” (VOLTARELLI, 2013, p. 216).

Outro tema recorrente nos trabalhos pesquisados está relacionado à formação de professores iniciantes, e, nesse caso, encontraremos alguns textos em que foi possível perceber que este tema tem sido pouco abordado. Em alguns trabalhos, ocorre de forma discreta, quase que imperceptível, e, em outros, de maneira mais direta, tal como no trabalho de Marcos Vieira Junior, que desenvolveu uma pesquisa durante a realização do Mestrado, cujo título “A construção do processo de aprendizagem profissional de professores iniciantes” buscou entender como se deu o processo de construção da aprendizagem da docência, considerando as questões relacionadas ao período anterior à inserção profissional. A pesquisa contou com o questionário e a entrevista em profundidade e com roteiro semiestruturado para a coleta dos dados. Dentre os resultados apresentados pelo pesquisador, vale destacar as questões relacionadas à experiência formativa dos professores iniciantes, com mais destaque para as múltiplas influências nos processos de aprendizagem profissional que foram elencadas pelo autor a partir de quatro eixos de análise: Família, Escola, Formação inicial e Iniciação ao ensino.

Considerando os quatro eixos de análise selecionados fa-mília (saberes pessoais dos professores, vida pessoal e ex-periência familiar: valores morais, posturas, gosto pelo ensino etc.); escola (trajetória escolar, saberes provenientes da formação escolar anterior); formação inicial (percurso universitário, as múltiplas experiências vividas enquanto acadêmico); iniciação ao ensino (a experiência profissio-nal, saberes da prática pedagógica) os casos aqui apre-sentados guardam algumas semelhanças entre si. Mas, se distinguem pelos caminhos que fizeram, pela forma de escolha dos cursos e, certamente, pela dinâmica singular que deram às suas trajetórias de vida, escolar e profissional. (JÚNIOR, 2013, p. 99)

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Ao abordar as experiências pré-profissionais e profissionais dos colaboradores da pesquisa, o autor apresenta ainda algumas singularidades, tais como a vivência religiosa como atividade formativa, apontada por dois sujeitos consultados como uma atividade que contribuiu para a construção de saberes que hoje repercutem na prática pedagógica (JUNIOR, 2013).

A formação de professores iniciantes também foi tema da pesquisa realizada por Lima (2014), que desenvolveu uma investigação no curso de doutorado em educação. Vale destacar aqui que dentre os trabalhos encontrados atinentes à formação do professor iniciante formado em Pedagogia, esta foi a única tese encontrada. A autora realizou uma pesquisa com sete professoras egressas do curso de Pedagogia, e durante a pesquisa, pode concluir que as professores colaboradoras da sua pesquisa estão na etapa inicial do desenvolvimento profissional e que este vem acontecendo de forma gradual. Os dados revelam, ainda, que é necessário pensar em uma formação que possibilite ao professor iniciar na profissão de forma mais eficiente e segura, sobretudo, no que se refere à vivência de situações de aprendizagens da docência a serem consolidadas desde o estágio curricular supervisionado.

Ademais, a autora destaca a necessidade de que o professor iniciante seja preparado para articular teoria e prática como uma das formas de enfrentamento e de superação dos desafios impostos pelo contexto docente, ainda mais se considerar as adversidades em áreas ainda restritas à promoção da condição do ser professor e ao desenvolvimento profissional. Lima (2014, p. 14) considera a formação inicial como etapa primeira, repleta de significações para a profissionalização, e assim sendo, “[...] necessita ser repensada no âmbito da prática docente, tendo em vista a complexidade social e política da atuação dos professores, no contexto do seu desenvolvimento profissional”, e para de fato contemplar a preparação do futuro docente para começar sua carreira de forma mais eficiente e segura, pressupõe a preocupação com o currículo do referido curso.

Políticas e programas de apoio ao professor iniciante

As políticas e os programas também foram abordados em dois artigos estudados, da pesquisadora Marli André (2012; 2013) com dados de uma pesquisa que teve como principal objetivo mapear as políticas relativas à formação, carreira e avaliação dos professores da educação básica e os subsídios oferecidos ao seu trabalho. A pesquisa que serviu de apoio para a escrita dos dois textos guiando-se pelos pressupostos da pesquisa qualitativa, utilizando a análise de documentos oficiais da União, Estados e municípios brasileiros, de revisão de estudos acadêmicos, depoimentos e entrevistas junto aos responsáveis

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pelos órgãos gestores das políticas e registros de campo. Os dados coletados permitiram localizar várias ações de apoio e valorização dos docentes e deixaram evidentes muitos outros aspectos que necessitam de mais atenção.

Um destes aspectos está ligado ao processo de definição de uma política de apoio aos iniciantes e de avaliação das ações formativas. A autora apresenta que algumas secretarias têm utilizado alguns critérios de referência para avaliar o trabalho docente, como no caso de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, que, naquele período, analisava o desempenho dos alunos como um dos critérios de avaliação. A autora enfatiza, ainda, que é preciso tomar cuidado com essa medida, “[...] pois se o esperado é que as ações formativas revertam em aprendizagens significativas dos alunos é necessário questionar que tipo de avaliação está sendo utilizada” (ANDRÉ, 2012, p. 126).

Estes artigos foram produzidos a partir do recorte de uma pesquisa maior que teve como lócus de pesquisa cinco estados e dez municípios brasileiros, sendo um estado de cada região do país, e, em cada estado, foram escolhidos dois municípios. Desse modo, foi identificada a existência de programas de apoio ao professor iniciante em uma Secretaria de Educação do Estado do Espírito Santo e em mais três municípios que são: Jundiaí, no Estado de São Paulo; Sobral, no Estado do Ceará e Campo Grande, em Mato Grosso do Sul. Tais iniciativas se mostraram significativas para o trabalho de atendimento ao professor iniciante. Destas quatro experiências exitosas, a autora destaca os trabalhos desenvolvidos em Sobral e Campo Grande como experiências mais significativas. Ao descrever a iniciativa empreendida em Sobral, a autora informa, ainda, que esta é a única que está devidamente institucionalizada por lei, assegurando, assim, uma garantia aos professores que estão vivenciando essa inserção à docência neste momento.

Quanto ao modelo empregado pela Secretaria Municipal de Educação de Campo Grande, sinaliza que abrange diferentes aspectos considerados fundamentais em um programa de apoio aos professores iniciantes, a saber:

a. inclui uma consulta a esses docentes para delinear as ações de formação em serviço com base em suas necessidades;

b. prevê o acompanhamento e o suporte pedagógico dos iniciantes em seu contexto de trabalho;

c. busca envolver os gestores escolares no processo de formação e posterior acompanhamento dos iniciantes em sua inserção profissional;

d. referência o processo de formação e apoio aos iniciantes nos resultados de aprendizagem dos alunos; e. preocupa-se com a avaliação do processo de formação. (ANDRÉ, 2012, p. 125)

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A proposta de Campo Grande talvez seja a mais completa em termos de apoio ao professor, principalmente, por iniciar prevendo uma consulta aos docentes para delinear as ações de formação em serviço, considerando, antes de tudo, a necessidade de cada um. A autora destaca, ainda, que mesmo considerando a importância e inovação de cada proposta, avalia que algo mais acerca de cada uma delas só poderá ser dito a partir de um estudo mais aprofundado da experiência.

Socialização de professores iniciantes

Socialização de professores em início de carreira foi um tema que apareceu em alguns trabalhos. Mas, em sua maioria, de forma discreta e apenas com a utilização do termo de forma genérica. Entretanto, em algumas produções o termo foi discutido de forma aprofundada, como no caso do texto de Freitas (2002), que, apesar de ter sido encontrado em forma de um artigo, é uma compilação de uma pesquisa realizada durante o Mestrado da autora.

O texto apresenta discussões concernentes ao assunto e traz o resultado de uma pesquisa empírica desenvolvida em cinco escolas públicas, que contou com a colaboração de professores iniciantes e professores experientes. A conclusão da autora nos possibilita discutir os aspectos relacionados à forma como estes professores, colaboradores de sua pesquisa, veem a socialização do professor iniciante. A autora oferece uma discussão muito próxima das questões relacionadas com a organização das salas de aula e a distribuição dos alunos nestes espaços físicos, tudo indicando que, naquele momento, se atrelava essa socialização do professor às questões da organização escolar e conceituação das salas de aula.

Rocha (2005), já citada anteriormente, também discutiu o tema socialização docente, quando apresentou os resultados de sua pesquisa referente a uma professora Doutora em Educação que se tornou docente da educação básica. Em seu trabalho, além das discussões a respeito dos saberes docentes, discutiu alguns aspectos deste conceito, enfatizando a importância de entendermos como a socialização do professor iniciante é um fator importante nesse período de constituição profissional. Para isso, a autora debate a necessidade de pensarmos o contexto ou, a exemplo de Garcia (1999), compreendermos este período como aquele em que o professor principiante aprende e interioriza a cultura escolar com as normas, os valores e condutas que a caracterizam.

Durante todo o texto, a autora discute outros aspectos que relaciona com esse processo de socialização, inclusive, discutindo as várias conceituações realizadas por autores diferentes, tais como Tardif (2002), Zeichner (2009), Garcia (1999; 2009) Tardif e Raimond (2002), entre outros, até mesmo discutindo

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as influências da socialização dos professores, enquanto alunos, que oferece a eles uma bagagem de crenças, representações e certezas em relação à profissão docente. Inspirada nos autores acima citados, Rocha (2005) afirma que nem sempre a formação inicial, o curso de Pedagogia, consegue promover mudanças nas concepções que foram cristalizadas antes do período de socialização

Outra produção que apresenta uma interessante discussão a respeito da socialização do professor, bem como dos assuntos que se aglomeram em torno do professor iniciante, é o texto de Mariano (2006). Trata-se de uma dissertação organizada em torno de uma revisão bibliográfica que consistiu no levantamento de trabalhos apresentados nas reuniões da ANPED e em edições do ENDIPE, tendo como recorte temporal os anos de 1995 a 2004. O autor aponta que os aspectos mais enfatizados nas pesquisas analisadas foram: a socialização profissional, os saberes docentes e o sentimento de sobrevivência e descoberta que marcam fortemente este início de carreira, entre outros aspectos. Ademais, faz um alerta importante, inicialmente, para os aspectos pouco enfatizados, como as relações entre a formação inicial e o momento de inserção profissional e as formas de aprendizagem do professor novato. E, logo em seguida, aponta outra curiosidade, os aspectos silenciados nessas pesquisas, como as políticas de formação continuada e de desenvolvimento profissional, bem como as questões de diversidade/diferença, pluralidade cultural, o professor iniciante e seus modos de atuação profissional e as discussões mais amplas ligadas ao professor que se encontra em início de carreira.

Considerações finais

Ao retomar os motivos que me levaram a realizar esta pesquisa, vejo que foi possível cumprir com o objetivo proposto, pois ao acessar as leituras de algumas produções a respeito do professor iniciante, pude perceber o que está explícito, ou seja, o que já foi escrito e publicado neste período da constituição profissional, como pude também perceber o que ainda não foi dito ou escrito acerca deste tema.

Este exercício de leitura possibilitou-me neste momento de início da minha pesquisa, conhecer novos autores e compreender até onde estes já foram em seus trabalhos. E, nesse caso, destaco alguns autores que me chamaram a atenção até esta fase, tais como o estudo de Papi e Martins (2010), duas pesquisadoras que exploram um tema muito próximo ao que estou buscando, e, com isso, há possibilidade de avançar a partir das suas contribuições.

Desse modo, as discussões apresentadas a partir dos estudos destes textos possibilitam-me assegurar que, quanto mais se estuda a respeito deste período da

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constituição profissional, mais percebemos a sua importância para a formação do professor, e isso nos remete ao que diz Garcia (2009, p. 86), pois para este autor, “[...] converter-se em professor se constitui num processo complexo, que se caracteriza por sua natureza multidimensional, idiossincrática e contextual”.

Assim, posso afirmar que a pesquisa realizada proporcionou o acesso a uma gama de saberes, mas, foram encontradas poucas informações a respeito dos professores, pedagogos, que atuam em séries iniciais. A elaboração deste texto me ajuda a pensar que muito ainda precisa ser estudado e produzido em relação aos desafios vividos pelos professores iniciantes egressos do curso de Pedagogia, pois as pesquisas que já foram realizadas não são suficientes para ajudar a entender este período, muito menos para auxiliar na busca por respostas dos professores, que neste momento vivenciam este processo, essa travessia de deixar de ser aluno para ser também professor.

Referências

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MARIANO, A. L. S. A construção do início da docência: um olhar a partir das produções da ANPED e do ENDIPE. 2006. 142 f. (Dissertação de Mestrado) Universidade Federal de São Carlos UFSCar 2006. Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/2796/DissALSM.pdf?sequence=>. Acesso em: 8 de set. 2016.

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Dilemas da profissão docente: narrativas de professores principiantes de Língua Portuguesa

Edson Gomes Evangelista

Primeiras palavras: aproximações contextuais

A elaboração deste texto se dá em meio a uma pesquisa de Doutorado em andamento no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso – PPGE/UFMT – a qual se volta à compreensão de processos de desenvolvimento profissional (DAY, 2005; GARCIA, 2009) vivenciados por professores principiantes de Língua Portuguesa que atuam na Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso, mais precisamente na cidade de Várzea Grande. Tal empreitada investigativa está delineada a partir das questões: “Que experiências professores (as) principiantes vêm elaborando nos respectivos contextos de trabalho? Que relações estabelecem entre conhecimentos, aprendizagens/interpessoalidades e que dimensões deste experienciar sinalizam como sendo significativas?”. A pesquisa da qual resulta este artigo fundamenta-se em termos metodológicos na Pesquisa Narrativa, em perspectivas ao modo como a compreendem Clandinin e Connelly (2011). Neste sentido, são relevantes ainda as contribuições de Gadamer (1997) e Maturana (1997) para a elaboração de uma concepção de linguagem potencializadora das relações estabelecidas com os participantes da pesquisa. Do mesmo modo, o conceito de experiência, nas conceituações de Dewey (2010), Dubet (1994) e Larrosa (2014) é fulcral no delineamento da pesquisa mencionada.

Aqui são apresentadas elaborações concernentes a narrativas de dois professores principiantes, acompanhados pelo pesquisador ao longo de dois anos de investigação, de 2014 a 2016. Estas narrativas foram compostas durante este período sob a forma de entrevistas, textos escritos pelos participantes, textos de campo escritos pelo pesquisador e narrativas advindas de filmagens realizadas nos contextos onde atuam. Do entrelaçamento destas narrativas, emergem novas perspectivas no que se refere ao modo como lidam com os desafios que enfrentam cotidianamente. Assim, a pesquisa apresenta contributos ao corroborar com a compreensão de que os professores principiantes vivenciam processos complexos, porquanto necessitam da elaboração de políticas públicas capazes de fortalecer o desenvolvimento profissional docente desde o início na carreira.

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Perspectivas teóricas: breves considerações

O delinear da pesquisa que referenda este artigo, os cenários que se apresentaram levaram a pôr em causa metodologias que, advindas de um paradigma moderno, o qual foi e continua sendo importante para desenvolvimento de determinadas Ciências, não suporta, contudo, toda a complexidade das Ciências que se voltam à compreensão da ontologia do humano – sustentadas em certa cissiparidade entre o ser do pesquisador e o ser do pesquisado, por conseguinte, não potencializam o ser da pesquisa, da pergunta, da cosmovisão, ao menos quando consideradas as Ciências Humanas.

Ao pôr em causa os mencionados pressupostos, é facultado compreender a Pesquisa Narrativa como método de investigação e fenômeno vivencial. Os mundos construídos no linguajar cotidiano podem ser compreendidos narrativamente, porquanto podem ser estudados de forma narrativa. Viver é um constante narrar, pois a vida quer seja a nossa quer seja a de outros, quer seja o entrelaçar de experiências advindas de ambas, é composta por fragmentos narrativos, delineados em momentos históricos marcados pelo tempo e o espaço que podem ser refletidos e significados como sendo unidades narrativas erigidas nestas descontinuidades (CLANDININ; CONNELLY, 2011).

Ora, tal perspectiva que, a bem da verdade coteja muito proximamente com a forma como vem sendo pesquisada, elaborada e divulgada por Clandinin e Connelly (2011), já de início requer e aponta para novos horizontes de expectativas, os quais não coincidem com aqueles que se pautam pela dicotomização entre o ser que olha e o ser da observação, ambos se olham e são olhados, pois nos lugares em que vivem, nas temporalidades que habitam, significam e se significam, uma constante é a interação. Aspecto muito fortemente marcado nas investigações que venho desenvolvendo e bastante presente nas narrativizações constituídas no experienciar(se) dos autores supramencionados, para os quais uma questão importante a ser considerada é a de que o próprio pesquisador assume ao longo de contínuo interagir um duplo papel: o da pessoa e o do pesquisador, ao que se refere como os múltiplos “eus” e chama a atenção para o eu crítico. O pesquisador narrativo deve estar sempre alerta, destacando as limitações de sua narrativa, as tomadas de decisão realizadas, proporcionando ao leitor dialogar com esses limites e com outras alternativas, além das selecionadas por ele mesmo na condição de pesquisador.

Nesta perspectiva, o pensamento narrativo constitui, ele mesmo, um experienciar narrativamente engendrado; logo, esta compreensão decorrente, por sua vez, das experiências sociais coelaboradas no decorrer da pesquisa,

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corrobora com o entendimento de que a “experiência acontece narrativamente. Pesquisa narrativa é uma forma de experiência narrativa” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 49). Neste entremeio, a temporalidade que, de certo modo, dimensiona as experiências, sejam elas consideradas individual ou coletivamente, é termo de grande relevo, por permitir conjecturar e refletir sobre a vida ao ser experienciada em um continuum, cujos sentidos quando considerados em relação a contextos mais ou menos abrangentes, mudam com o passar do tempo. Todavia, as temporalidades não pairam em um espaço lacunar. Assim, ao se constituírem como uma maneira de compreender a experiência, por meio da colaboração entre pesquisador e participantes, pressupõe além do tempo covivenciado, considerar que tais vivências ocorrem em um lugar e/ou em diversos lugares, como é caso da pesquisa aqui enfocada; lugares estes significados pela interação entre pesquisador, participantes, mil outros eus imersos no viver e contar, reviver, recontar de histórias das experiências que compuseram as vidas destas pessoas (CLANDININ; CONNELLY, 2011).

A imersão no entrelaçamento das experiências que vêm sendo compostas nesta travessia é que tornou possível o entendimento de que a Pesquisa Narrativa requer a percepção da concatenação de alguns fatores na constituição de um espaço tridimensional que de acordo com os autores mencionados, referenciados em Dewey, são pessoal e social (interação); passado, presente e futuro (continuidade); combinados à noção de lugar (situação). A constituição no âmbito da pesquisa deste espaço tridimensional tem possibilitado investigar introspectiva e extrospectivamente, retrospectiva e prospectivamente, bem como tem tornado exequível situar as experiências e os respectivos sentidos narrados contextualmente. Tal fato que leva a ratificar ipsis literis o enunciado “experienciar uma experiência – isto é, pesquisar sobre uma experiência é experienciá-la simultaneamente nessas quatro direções, fazendo perguntas que apontem para cada um desses caminhos” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 85-86).

Do mesmo modo, o entendimento da linguagem como moradas do ser (GADAMER, 1997) e como ontologia existencial (MATURANA, 1997) torna exequível a compreensão de que os participantes da pesquisa ao elaborarem as respectivas narrativas podem vicejar perspectivas antes opacizadas, as quais podem engendrar novas experiências, sendo que estas últimas, uma vez situadas no âmbito de um continuum de desenvolvimento, podem dotar de sentidos a atuação docente. Logo, cumpre aclarar que nos meandros deste texto Pesquisa Narrativa, Experiência e Desenvolvimento Profissional Docente (DAY, 2005; GARCIA, 2009) são conceitos que se entrecruzam

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Narrativas de professores principiantes de Língua Portuguesa: dilemas contemporâneos

Requer aproximar-se do texto com o cuidado e o respeito devido ao outro distinto de mim. Entra-se no texto. Não basta lê-lo com a atenção externa de quem lê somente para se informar. É necessário habitá-lo. (FERRAROTTI, 2007, p. 27)

Para habitar e coabitar os mundos que cada ser elabora é necessário adentrar ciosa e cuidadosamente as moradas, nas quais cada um dá sentido e sustenta o viver. Moradas forjadas na Linguagem, configurada ela mesma como lugar onde se produz modos de existir, maneiras de ser (GADAMER, 1997). Almejando adentrar nas tessituras que professores principiantes de Língua Portuguesa vêm elaborando, assim como buscando formas para habitar, por um tempo que fosse, nas respectivas moradas linguisticamente textualizadas, o pesquisador acompanhou ao longo de dois anos o constituir-se de professores principiantes e em início na carreira docente. Neste contexto, buscou compreender as relações que se estabeleciam entre conhecimentos, aprendizagens/interpessoalidades, bem como perscrutei desde dentro das moradas erigidas por eles e elas as dimensões deste experienciar sinalizadas como sendo significativas. Nas páginas vindouras são apresentadas as narrativas de dois professores, nomeados pelos codinomes Odisseu e Heitor. Cioso(a) e cuidadosamente, sinta-te convidado(a) a adentrar estes mundos.

Odisseu elabora as respectivas narrativas envolto no processo que o leva a atentar-se ao tempo presente, aos dilemas presentes, o viver neste presente, disto estão feitas as histórias que compõem teu narrar. Aqui assume a posição de quem viu, ouviu, sentiu, viveu, por isso, tem algo que dizer (BENJAMIN, 1994).

Ao ingressar na docência da educação básica, pude ouvir e ver com meus próprios olhos que a situação é muito complicada, pois realmente crianças e adolescentes são tratados pelo sistema legal como seres desprovidos de inteligência, incapazes de perceberem entre o certo e errado. Há proibições sim, mas se desrespeitadas, não ocorrem punições exemplares no sistema legal para desencorajar as atitudes descabidas, desrespeitosas e delinquentes por parte de muitos em nossa pátria varonil. Limites apenas em uma conversa macia, não surte efeito para todos. Muitos tiram proveito da impunidade, deixando-nos impotentes para

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lidar com muitas situações nas quais estes são envolvidos. Tenho alunos de onze e doze anos que questionam o estatuto da criança e do adolescente, julgam-no permissivo e incentivador de atitudes erradas pelos que já têm tendências negativas. E preciso criar mecanismos legais de coerção, para desencorajar jovens infratores que, se não trabalhados adequadamente na proporção necessária caso a caso, serão problemas graves no futuro como muitos exemplos que bem conhecemos atualmente.

Todos esses problemas transitam nas unidades educacionais em maior ou menor proporção. Eu acredito que é possível melhorar a educação, mas isso não depende apenas do professor, ou da unidade escolar. É um problema social. Muitos dizem: esse problema precisa ser enfrentado. Então eu pergunto: quando e como? A sociedade vai continuar empurrando o problema para ser resolvido no futuro? Continuar a premiar infratores de qualquer ordem alegando direitos? Direitos, deveriam exigir deveres imediatos. Deveres não cumpridos, deveria exigir compensação imediata. Somente com atitudes de todos os segmentos da sociedade teremos mudanças reais e de transformação para uma juventude perdida em direitos e mais direitos que não servem para muitos destes repensarem suas atitudes. A sociedade está se tornando vítima de sua própria permissividade. A escola está em dificuldade para realizar seu trabalho. Professores e funcionários precisam tomar cuidado com cada palavra que dizem, pois podem ser processados até por uma palavra mal interpretada, ao passo que alunos fazem e falam tudo que quiserem sem se preocupar com maiores consequências. Palavrões, brigas e agressões ocorrem na escola Brasil afora. (Odisseu, Narrativa escrita, 2015).

Findo o primeiro ano desde que ingressara como professor concursado na Rede Estadual de Ensino, Odisseu percebe a complexidade do trabalho docente no contexto da Educação Básica em uma escola de periferia, a experiência cotidianamente e no processo em que vem se tornando professor; perscruta o horizonte, formula muitas questões para si mesmo, amplia a compreensão, parece evocar aquilo que Gadamer (1997) conceitua como “autoridade”. Todavia, para o professor principiante tangido por problemas a pedirem premência, o termo não se lhe apresenta com a mesma clareza iluminativa dos escritos do pensador alemão e, por vezes, o tom poderia dar margem ao entendimento de que se trata de uma denúncia exasperada. Não obstante, quando perquiridas em processo

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e contextualmente, as narrativas de Odisseu dão passo a outras miradas, das quais podem emergir outros entendimentos. Dentre eles, a percepção de que está inteiramente comprometido com o público com o qual trabalha e que, mesmo ante a voracidade dos dilemas que o acossam, envereda pelas franjas de outras temporalidades e, ainda que estando preso ao presente, espreita veredas que tornem possível vir a ser o docente que potencialmente, poderia ser.

[...] A conversa acontece na temporalidade peculiar e na expressividade marcada do professor que afirma ter enfrentado dificuldades, mas ter igualmente aprendido este ano. ‘Professor, eu sei que é impossível, mas o que eu quero é aprender a ensinar alunos que não querem aprender! Quero ser o cara na Educação! Que quando eu chegar os alunos digam: ‘esse professor é o cara!’ Sempre trabalhei na iniciativa privada e sempre tive de prestar contas de meu trabalho a alguém, não é porque agora sou servidor público que vou deixar de lado a minha responsabilidade’. (Notas do pesquisador, 2015)

Nas teias que vai tecendo, os dilemas enfrentados em âmbito escolar, dos quais parece estar claro, não pode, tampouco deseja escapar incólume. Problemas que, a julgar pelo narrar de Odisseu, não estão dissociados da questão social que em maior ou menor proporção afeta a todos. Percepção relevante de um professor principiante que não tem medo de almejar ao que lhe dizem ser impossível: ensinar até para aqueles que não queiram aprender e, mais, ser reconhecido pelo êxito como docente. Entretanto, não ambiciona o reconhecimento de autoridades, não menciona neste aspecto sequer os pares, professores, busca ser reconhecido por aqueles a quem assiste como estudantes. Singelo desejo, poesia autopoiética, sustentáculos dos sonhos projetados com olhos abertos. Neste processo, narra descobertas, aprendizagens e novas maneiras de fazer face ao porvir. E, característico de Odisseu, este narrar se compõe de muitas histórias que tocaram o professor principiante, converteram-se em experiências, pois o conclamaram a procurar novos modos de pensar, outras possibilidades para interagir com os estudantes. Assim, não por acaso, o termo experiência aparece como núcleo sujeito da oração com a qual intitula a narrativa escrita que produzira no limiar de 2015. Oração que, a propósito, está predicada com um adjunto adverbial de lugar que remete à paisagem intensamente vivenciada por Odisseu, a sala de aula, porquanto não se trata de uma experiência qualquer, mas daquela vivida e corporificada pelo participante, por isso, antecedida pelo pronome possessivo de primeira pessoa.

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Minhas experiências em sala de aula

Profissionalmente, o ano de 2015 foi um ano muito bom, pois nesse momento, sinto-me mais à vontade e seguro em sala de aula. As experiências adquiridas durante esses dois anos no desenvolvimento de meu trabalho, fizeram com que tenha um olhar mais atento às necessidades dos alunos. Agora neste último ano procurei interagir com os alunos através de uma forma que considero mais adequada ou diferenciada do que em meu primeiro ano nessa missão que é servir como mediador nesse importante processo de desenvolvimento na vida desses pequenos.

Nesse final de ano de 2015, tenho refletido bastante sobre o caminho percorrido como professor desde o ano de dois mil e quatorze, ou seja, dois anos completos.

Agora, findando meu segundo ano, integrado à escola, percebo que muito ainda tenho a aprender nesta jornada. Por quê? Porque entre a teoria e a prática é necessário construir pontes. E elas são construídas no dia a dia com os alunos, tendo em vista seu pleno desenvolvimento escolar [...]. (Odisseu, Narrativa escrita, 2015)

Dois anos foram necessários para que Odisseu pudesse se sentir mais seguro ante os próprios alunos, quão desafiadores são os contextos vigentes na escola. O professor em início de profissão, possivelmente teve de lidar, dentre outros, com a afirmação dos saberes pessoais ante as culturas presentes na escola. No entanto, de alguns destes saberes teve de se despir, outros ressignificar, de outros tantos teve de apropriar por meio das experiências pelas quais se deixou tocar, quantos conflitos neste processo! Mas, por fim, pode dizer que após este tempo vivendo a profissão docente está mais atento às necessidades dos alunos, foi preciso percorrer um longo caminho, para então iniciar a caminhada. Ao findar o segundo ano desde que se integrara à escola percebe que tudo está por aprender, pois é necessário construir pontes entre as teorias – saber de outrem – e prática – saber de si – e tal intento pode-se lograr somente nas interações cotidianas, na experiência comum vivida com os estudantes na trivialidade da sala de aula. Atentando-se aos estudantes é levado à percepção da própria paisagem em que aqueles se movem e habitam e povoam como pessoas em interação constante na escola e para além, muito além da escola, de modo que trazem estas paisagens dentro de si. Paisagens que podem ser historiadas pelo professor que aprendeu a olhar, escutar, a compor narrativas que integram muitas histórias.

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Trabalhei nesse período em uma escola em que grande parte da comunidade local é constituída de famílias de baixa renda, e, alguns problemas sociais característicos são muito concentrados naquela região.

Certo dia, no início de minha carreira profissional, enquanto conversava com um professor mais experiente, sobre o progresso que aluno pode alcançar em sua vida escolar, não dei crédito e até contestei quando o mesmo afirmou que o contexto familiar e social pode, e, na maioria das vezes influencia nas perspectivas e rendimento escolar da criança. Depois de algum tempo comecei a perceber que a escola não consegue sozinha dar conta dessa grande tarefa que é a transformação do aluno em cidadão capaz e consciente em um mundo que a cada dia cobra mais e mais de cada ser pensante em uma sociedade que não se detém em seu desenvolvimento. Então, o apoio familiar é fundamental para o desenvolvimento de cada infante.

Neste contexto, quero destacar no ano passado uma aluna do oitavo ano constituído de vinte e oito alunos, a mesma muito dedicada e capaz somando a mais cinco que se sobressaiam entre os demais. A mãe desta, formada em turismo, sempre acompanhou a vida escolar da filha, a qual podemos chamar de Léia (nome fictício). Pude perceber que a dedicação da mãe em ter participação ativa nesse processo foi essencial no desempenho da aluna. Um outro aluno que também se destacou entre seus colegas do sétimo ano em dois mil e quinze foi Fabiano (nome fictício). A presença dos pais na escola foi constante, para se informarem in loco, e acompanhar o filho em todas as situações que se fizessem necessárias. A grande maioria dos colegas de sala desses dois alunos, cujos pais não se preocupavam ou apresentavam dificuldade em acompanhar o crescimento intelectual dos mesmos, não se percebia o mesmo resultado, pois, era visível o pífio desenvolvimento destes. (Odisseu, Narrativa escrita, 2015).

Odisseu se atenta às narrativas dos estudantes com os quais convive, aproxima-se, adentra e as povoa (FERRAROTTI, 2011); porque se deixa tocar por elas, vive experiências (LARROSA, 2014) que provocam um novo sentir e um novo pensar. Embebido em lucidez, percebe-se um ser em relação com os estudantes, com a mãe dedicada, com a mãe desatenta e no encantamento daquele que aprende se alegra, no desalento do que não consegue avançar

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a contento, entristece; agora sabe que não pode caminhar sozinho porque árduo é o caminho. Todavia, experimentou a gratificação de ajudar o outro a desenvolver as disposições que o tornam maior como pessoa e rejubila-se por ter participado deste processo. Assim, tocado por estas experiências que, de certo modo, atravessam e se integram à trajetória na qual e pela qual vem se constituindo este docente em início de carreira, inaugura-se uma nova espiral epistemológica e a teoria antes compreendida como o saber de outrem, vindo de alhures para iluminar a prática aqui e agora, passa a ser questionada, entendida na necessária reconstituição requerida pelas práticas temporalizadas no tempo e lugar presentes.

[...] nestas nossas reuniões a princípio da... no primeiro ano, que participei da coisa, eu achei que era um, como que eu posso dizer, perda de tempo né, mas eu comecei a analisar com atenção, a partir do ano passado e neste ano, é [...] por que a gente via como perda de tempo? Porque existem, é tratado sobre muitas teorias; muitas teorias da educação, que ‘isso não pode’, que ‘isso não tá certo’, não dá. E na realidade, é [...] entre a teoria e a prática existe um abismo muito grande. Muitas vezes, nestas reuniões quando se fala “Olha, a metodologia correta é esta” né, e [...] as vezes, vem o questionamento: “todos que estão aqui, isso aqui, esse tipo de assunto não”, é [...] existe aí, essa defesa toda por pessoas que... desenvolveram essa teoria, mas, isso não funciona. Mas, por que não funciona, né? Porque, a situação, como eu disse, na escola que eu trabalhava, nem sempre a metodologia que eu utilizava lá, vai funcionar na escola que eu trabalho hoje. Porque o público é diferente. Então, o mundo destas teorias que a gente estuda, por que não dá certo? Porque a situação atual, público local, daquela comunidade né, é [...] e também a situação, o tempo é outro, os tempos são outros, a forma como as pessoas percebem a vida, é diferente muitas vezes, da época em que esse teórico criou essa teoria né. Uma pessoa que criou uma teoria, por exemplo, nos anos setenta, a realidade da comunidade era totalmente diferente, a sociedade pensava diferente, reagia diferente aos mesmos estímulos de hoje. Então assim, mas hoje, eu... é importante sim! Porque a gente analisa aquela teoria tudo que é [...] é posto à mesa ali, né, pra nós e, tem que analisar por que não dá certo e procurar um caminho melhor. Então, é importante. (Odisseu, Entrevista, 2016).

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Após dois anos atuando nos contextos de uma escola, Odisseu consegue ser transferido para outra instituição de ensino e nas paisagens que compõem este novo lugar, o aprendiz da docência prossegue na senda em que vinha construindo, por meio do trabalho, um jeito próprio de estar sendo na profissão professor. Nesta transição, elabora continuamente modos de averiguar os novos contextos em que está se inserindo e, ao cotejar esta instituição àquela na qual se iniciara na carreira docente, é instado a se deixar tocar por novos acontecimentos, elaborar novas experiências.

Quando eu mudei de uma escola pra outra. Eu achei que foi muito bom porque eu percebi a [...] a identidade da escola, ela não é igual às demais. Ela tem identidade própria, existem situações totalmente diferentes é [...] das demais. Então, assim, foi muito bom pra mim. Ah, na primeira escola, escola D, que eu trabalhava é [...] a gente percebia assim, uma necessidade muito grande, como o senhor mesmo, estamos citando, né; a questão... social, a questão financeira da comunidade né, e, na nova escola que eu trabalho agora, escola C, que fica ali no Jardim Itamarati, é [...] a gente vê uma diferença na... na comunidade escolar, né. Os alunos, assim, a [...] a [...] como que eu posso dizer, a questão de números né, proporcionalmente falando, é bem maior é [...] a questão do interesse, a questão de... assim, reagir com o professor em sala de aula, né. Então, eles dão mais atenção; é lógico que existem problemas, como em todos os lugares, como havíamos conversado. Mas, assim, a [...] a proporção de alunos que tem interesse, que... consegue, que nós conseguimos atingir é, o objetivo com é bem maior, bem maior. Então, e, isso, é relevante, né, pra mim é relevante. E, com isso, a gente aprende que em cada lugar, você tem que trabalhar diferente. (Odisseu, Entrevista, 2016)

Na mudança de paisagem, Odisseu constrói a percepção de que as instituições são marcadas por especificidades próprias, contextos diversos, porque estão povoadas por pessoas diferentes. De fato, o que professor principiante ressalta ao cotejar as duas instituições são as pessoas com as quais se relaciona, principalmente, os alunos. As escolas possuem identidades diferentes porque são habitadas por pessoas diferentes, parece ser este o pensar que subjaz à experiência que alcança Odisseu na mudança de escola. Mais que comparar a gente daqui com a gente de lá, o docente revela construções que vem elaborando a partir da convivência com os dois grupos. Na descontinuidade nascida da mudança

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de espaço, vida que segue sendo preenchida por narrativas que maximizam a compreensão do mundo, inclusive, daqueles mundos em que se move Odisseu; de forma que é exequível:

[...] dizer que se entendemos o mundo de forma narrati-va, como fazemos, então faz sentido estudá-lo de forma narrativa. Para nós, a vida- como ela é para nós e para os outros – é preenchida de fragmentos narrativos, de-cretados em momentos históricos de tempo e espaço, e refletidos e entendidos em termos de unidades narrati-vas e descontinuidades. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 48)

Nas franjas destes fragmentos narrativos, que atravessam e integram a vida em momentos históricos de tempo e espaço que compõem unidades narrativas e descontinuidades, também Heitor vem se fazendo professor em meio a um narrar, cujas unidades estão marcadas no estertorante desejo de ser, mesmo quando as rupturas ensejadas por mudanças insiram nos meandros destas narrativas descontinuidades.

No ensino regular, no início da minha carreira, tive que me deparar com uma realidade que se distanciava muito da ideia que tinha sobre educação, profissionalismo e comportamento. Posso adicionar que também existiu um desafio interno de readaptação. Três dias antes de tomar posse, eu estava morando na Irlanda e bastante satisfeito com as pessoas, com o que eu estava fazendo e modo de vida por lá. Contudo, efeito de uma consideração familiar e da oportunidade de estabilidade profissional, lá estava eu de volta ao Brasil, numa escola, numa cidade desconhecida e tendo que retirar o substancial e o positivo daquela opção. Eu me tornei professor. Tentar oferecer o melhor de mim é condição básica para tudo que faço. Se eu tiver de ser professor, então que eu seja o melhor do Brasil, eu pensava. Desafios existiram nessa escolha. Morei de favor durante três meses, vinte e quatro quilômetros de distância do trabalho. Até que depois foi disponibilizado um local a quatro quadras da escola. Neste primeiro tempo, lembro-me da primeira reunião que participei e no primeiro dia de serviço. Eram os meus primeiros minutos ali. Depois dela, iria para a sala de aula do período noturno. Confesso que fiquei horrorizado, pois os professores pronunciaram toda a forma de violência que existia naquele lugar. Armas, drogas, roubos e desafios pedagógicos dos mais variados

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naquelas duas horas de diálogo. Considerando que era meu primeiro dia, acreditei até que podia até se tratar um tipo teste para este novato aqui. Achei que fosse um trote. Alguma brincadeira. Mas não era [...]. (Heitor, Narrativa escrita, 2016).

“Eu me tornei professor”. Na narrativa de Heitor, tornar-se professor requer aventurar-se. Aventuras nem sempre venturosas vivificam o viajar deste docente. Viagens que comportam um duplo deslocamento: externo e interno. Move-se da Irlanda a Várzea Grande e, ao ingressar na docência, muito do que acreditava se move nele. Novos modos de viver se lhe apresentam e ele tem de “retirar o substancial e o positivo daquela opção”. E isso apenas para começar. Desafiado a viver de favores, enfrentar o trânsito caótico e a longa distância, continuava nutrindo o desejo de se tornar “o melhor professor do Brasil”. No entanto, o jovem que tivera coragem de buscar novos modos para existir com vistas a se tornar professor, estarrece e fica horrorizado já na primeira reunião com os pares professores, com os quais iria compartilhar modos de ser e maneiras de fazer no âmbito da docência. As histórias que sustentavam o viver naquela escola tocaram-no quando foram narradas e, por absurdas que fossem, eram reais, conforme Heitor pode perceber durante o período em que trabalhou naquele contexto.

O cotidiano constatou o que naquele meu primeiro dia foi assunto da reunião. De fato, os desafios se mostraram diferentes do que esperava. Entretanto eu estava ali por um propósito, então comecei. [...]. Posso dizer que de algum modo eu me saí muito bem em boa parte da atividade. Senti isso com o elogio de alguns alunos, de professores colegas e a coordenadora. Sempre consultava as pessoas para melhorar e me adaptar, me corrigir. (Heitor, Narrativa escrita, 2015)

Esperar pelo inesperado, neste enunciado – que constitui um dos pilares do Paradigma da Complexidade – hoje convertido em saber comum, ao menos na seara educacional, se encontra um dos principais dilemas da profissão docente e Heitor elabora esta percepção ao imergir no contexto de uma escola pública de periferia. Mas, do comprometimento emerge a atitude e o professor principiante busca amparo nos propósitos, princípios de uma ética em que sustenta o próprio agir. Age na urgência e parece intuir que o ato de educar é relacional, consequentemente, alimenta-se na interação com outro e se volta ao coletivo. Coletividade a que consulta visando a melhorar, adaptar, corrigir, em outros

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termos, dotar de sentidos as experiências que vem elaborando e evoluir como docente. Percepções caras a um professor principiante, posto que vão ao encontro do que Day (2005) ratifica como sendo aspectos essenciais do desenvolvimento profissional docente, que, aliás, embora requeira a compreensão de que se dá em um continuum de formação ao longo da vida, comporta conflitos, rupturas, descontinuidades suscitadas por contextos plurais nos quais atua. Heitor não tarda em se deparar com este fato.

[...] após um tempo de surpresa que um novo professor traz, veio a banalização e junto com ela as mais diversas formas de violência. Fui xingado em sala de aula, desrespeitado e ameaçado. Pude testemunhar nestes meses, dois alunos vitimados por arma de fogo. Sendo um deles da turma em que eu lecionava e que poucos dias antes do acontecido, tive uma conversa em particular falando de esperança, de comportamento e vida. Pude experimentar a falta de segurança por meio dos furtos que se tinha notícia e das invasões de pessoas estranhas à escola para brigar durante o recreio. Em uma dessas invasões, um professor recebeu uma cadeirada ao tentar apartar os rapazes. Embasbacado, eu pude ouvir de um dos colegas de profissão ‘isso é normal’, ‘é assim mesmo’. Tentava repetir tudo que sabia de mais moderno de didática. Pesquisava problemas comportamentais, psicológicos, fazia perguntas na internet, usava Youtube e cheguei até mesmo a assistir ‘Mestre, Minha Vida’. Ia me arrastando neste caminho árduo entre os sopros de automotivação e esperança. (Heitor, Narrativa escrita, 2016).

A saga de Heitor naqueles primeiros tempos de docência poderia constar de um romance capaz, quem sabe, até de fazer brotar lágrimas de olhos que aprenderam a ouvir. Para o pesquisador, atravessado por estas narrativas e se debatendo para compreender a pessoa que as vivencia em contexto, surge uma tensão dilemática: uma parte importante dele como humano imerso e enredado por narrativas, fenômeno que, às vezes, faz com as pessoas se compadeçam de outras, se deixa tocar pela narrativa de Heitor. Outra parte, não menos importante, nesta configuração de múltiplos eus, recorda que como pesquisador necessita entender a narrativa como método, instaura-se, então, a compreensão de que está habitando um lugar pautado na pluralidade e eivado de contradições.

Desde este lugar, o pesquisador passa a esboçar o entendimento de que contextualmente, as narrativas que o tocam remetem a muitos dilemas vivenciados por professores principiantes, conforme apontaram investigações

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precedentes (GARCIA, 2009) e encontra Heitor envolto por muitas tensões que se referem ao ingresso nas culturas vigentes na escola, à historicidade encarnada em cada aluno, a questões institucionais e políticas, além da violência exacerbada, dentre outras. O choque inicial se origina no confronto do ideal que o principiante trazia sobre a profissão e os significados que o ser professor tinha naquele contexto, não somente a partir da perspectiva dos alunos, como também de outros professores. Este último fato, ao que parece, levou o professor que não queria se ver apresado pelas premências contextuais a buscar desesperadamente modos de intervir, termina por se afastar dos pares, isolado se despotencializa, e se torna vítima do que buscara combater. Combalido, atingido nos princípios que sustentava o caminhar, a Heitor não interessa sob nenhuma circunstância continuar trabalhando naquele contexto. Foi uma ruptura marcante que poderia afastá-lo da docência definitivamente.

Na última ameaça sofrida naquela escola, peguei uma licença e fiz um pedido administrativo de remoção de município. Isso não aconteceu de maneira fácil. Tive de juntar diversos documentos, como laudo de médico, registro do boletim de ocorrência, ata de registro do aluno e argumentar sobre a distância da minha residência, revelando os riscos e demais desvantagens. Estava certo de que se nada disso resultasse em êxito, não me importaria em pedir mais afastamento ou mesmo exonerar-me [...]. (Heitor, Narrativa escrita, 2016).

Entretanto, como insiste Day (2005), a docência requer uma vocação apaixonada capaz de firmemente assentar-se em um comprometimento pessoal, alimentar os sonhos por mais utópicos que pareçam e Heitor parece mover-se tangenciado por ambos. Tanto é assim, que logra ser removido para outra escola, encontrando motivos para continuar no âmbito da docência.

[...] ali eu estava com a comodidade de estar próximo do meu lar e isso me fez suportar algumas angustiantes situações e tentar mais uma vez. (Heitor, Narrativa escrita, 2016)

A esperança renascida, o retorno do sonho em prosseguir na docência Heitor os reencontrou, segundo ele, no acolhimento e novas amizades na escola onde atua neste momento. Enfatiza muitos aspectos que concorrem para este realentar do desejo da docência: a proximidade da escola com lugar onde reside: ‘Um minuto e meio computado de casa à escola; isto é um fator importante. Antes eu percorria quarenta e

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seis quilômetros considerados a ida e a volta, tempo perdido no trânsito. Agora, a escola é uma extensão de meu quintal; apesar de eu viver em apartamento e não ter quintal, a escola é o quintal de minha casa’. O fato de ter sido, inicialmente, encorajado pelos pares, depois eleito coordenador pedagógico por unanimidade, também é mencionado dentre os fatores que o fizeram reencontrar a satisfação em trabalhar na educação: ‘Depois do ocorrido, cheguei a pensar que se houvesse uma oportunidade, um convite eu me afastaria da sala de aula, mas com o passar do tempo, a mudança de escola, percebi que tem algo mais que move, que nos move a ser professor, a encontrar satisfação em ser professor. E aqui, desde o começo fui bem acolhido. Nunca havia pensado em ser coordenador, mas quando apresentei meu projeto de trabalho e fui eleito por unanimidade, fiquei muito satisfeito’. (Notas de Campo, 2016)

Em um dos encontros do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente/PPGE/UFMT, em março de 2016, a Professora Filomena Maria de Arruda Monteiro, em meio a vivo dialogar, convidou-me a pensar nos dilemas que rondam o trabalho docente nos seguintes termos: “Se a gente não mudar, aventurar para fazer algo diferente, a gente não evolui”. Mudança, evolução, rupturas, continuidades. Na pluralidade em que vem se tornando professor e construindo da melhor maneira que pode uma narrativa própria, Heitor vem se aventurando; busca vicejar criativamente novas possibilidades no contexto de trabalho; ao tempo em que se atenta aos dilemas que vivencia na profissão, reafirma a convicção e o modo em que quer prosseguir burilando o ser professor.

A escola tem um leque de possibilidades de nichos que podem ser preenchidos com criatividade e um pouco de ousadia. A automotivação é fundamental para que o dia a dia possa ser uma experiência menos difícil. Talvez, você ser predecessor de um movimento seja um ponto interessante a se focar na relação profissional com essa tão devastada educação brasileira e que tanto desvaloriza seus profissionais. Não sei o que esses próximos anos reservam. Não sei como serão meus estímulos, minha paciência, meu reconhecimento e motivação nessa profissão. Tentando entender que cada experiência é motivadora e sempre seguindo a filosofia de que reclamação não substitui ação, eu vou seguir tentando oferecer o melhor de mim na esperança de contribuir com essas vidas em formação. (Heitor, Narrativa escrita, 2016).

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Considerações

Apesar do fato de que qualquer docente ao ingressar na carreira já tenha vivenciado longamente contextos educacionais, a complexidade que marca os primeiros anos de atuação constitui um grande dilema. Para tornar-se professor(a) precisamos lidar com demandas diversas, contraditórias, inescapáveis, conforme pode se depreender a partir do que contaram Odisseu e Heitor. Demandas referidas por um lado, às múltiplas relações que docentes estabelecem com os pares, alunos, equipe gestora, pais de alunos, dentre tantos. Por outro lado, é demando de principiantes na docência lidar com saberes advindos de diferentes epistemologias e transformá-los em algo que possa sentir, deixar-se tocar, algo que se configure em experiências gestadas na pluralidade.

Portanto, a partir da compreensão das narrativas presentes neste artigo, das quais emergem novas perspectivas no que concerne ao modo como professores principiantes lidam com os desafios que enfrentam cotidianamente, almeja-se corroborar com o fortalecimento do entendimento de que os professores principiantes vivenciam processos complexos e necessitam da elaboração de políticas públicas capazes de fortalecerem o desenvolvimento profissional docente desde o início na carreira.

Referências

BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CLANDININ, D. J.; CONNELLY, F. M. Pesquisa Narrativa: experiências e história na pesquisa qualitativa. Tradução: Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de Professores ILEEL/UFU. Uberlândia: EDUFU, 2011.

DAY, C. Formar Docentes: Cómo, cuándo y en qué condiciones aprende el profesorado. Narcea, Madrid: 2005.

DEWEY, J. Experiência e educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

DUBET, F. Sociologia da Experiência. Tradução de Fernando Tomaz. Instituto Piaget: Lisboa, 1994.

FERRAROTTI, F. Las historias de vida como método. Convergencia. Revista de Ciencias Sociales [en linea] 2007, 14 (Mayo-Agosto): [Fecha de consulta: 9 de mayo de 2016] Disponible en:<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10504402> ISSN 1405-1435.

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GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1997.

LARROSA, J. Tremores: Escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. Disponível em: <http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf>. Acesso em: 10 nov. 2015.

GARCIA, C. M. A identidade docente: constantes e desafios. Revista Brasileira de pesquisa sobre formação de professores, v. 01, n. 01, ago./dez., 2009.

MATURANA, R. H. A Ontologia da Realidade. Organizadores: Cristina Magro; Miriam Graciano; Nelson Vaz. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.

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Oficina de contação de histórias para professores dos anos iniciais

Eliane das Neves Moura

Introdução

Desde há muito tempo as histórias fazem parte da nossa cultura; contá-las é uma arte muito antiga; o hábito de ouvi-las e contá-las tem significados variados, está associado ao desenvolvimento da imaginação, à capacidade de escutar o outro e de se comunicar, possibilitando a construção da identidade e desencadeando cuidados afetivos. Nas sociedades primitivas, os contadores de histórias tinham um papel fundamental na difusão da história e na transmissão dos conhecimentos acumulados pelas gerações. Os contos de tradição oral viajaram do Oriente ao Ocidente através de séculos.

Segundo Yunes (2012, p. 59), “[...] a tradição dos estudos históricos ensina que a oposição entre contar e ler não se sustenta como prática de letramento. Assim como ouvir demanda atenção e falar pressupõe uma escuta, a leitura de um texto escrito não desqualifica a narração oral que porventura a anteceda”. Os antigos contadores foram esquecidos, mas os contos tradicionais foram incorporados em nossa cultura. Por meio do trabalho de coleta e registro dos contos da boca do povo, pelos Irmãos Grimm e Perrault, é possível ler e ouvir até hoje os contos daquela época, em nossa casa ou na escola.

Primeiramente, esse contato da criança com o texto acontece oralmente, pela voz de algum familiar, contando contos de fada, histórias bíblicas, histórias inventadas, lembranças da infância e tantas outras. A atual situação da contação de histórias no contexto familiar é revelada por meio de estudo realizado por Busatto (2011, p. 11), quando, ao questionar uma plateia a respeito de suas lembranças de ouvir histórias quando criança, apenas participantes de 40 a 50 anos as possuíam. Os jovens presentes não retinham nenhuma lembrança de momentos de contação: “- Quanto tempo faz que você não ouve um conto de fadas? E um deles respondeu: - 17 anos. – E que idade você tem? [...] - 17 anos. ”

Atribui-se a diminuição do hábito de contação de histórias nas famílias como consequência dos diferentes recursos tecnológicos que fazem parte da modernidade, como a televisão, videogames e o computador, além da falta de

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tempo dos pais. No entanto, o fascínio que as histórias exercem sobre nós não mudou, pois quando se conta uma história lança-se um fio invisível que vai entrelaçando o narrador ao ouvinte, pelas suaves tramas da narração.

Se, por um lado, a família diminuiu o hábito de contar histórias, compete à escola retomar esse espaço para resgatar esses momentos tão importantes na vida do ser humano, a prática mais prazerosa e usada entre as pessoas: o ato de contar/ ouvir histórias. Segundo Prieto (1999, p. 41), como educadores, o ato de contar histórias é uma postura a assumir:

Em plena virada de milênio, quando o professor se senta no meio de um círculo de alunos e narra uma história, na verdade cumpre um desígnio ancestral. Nesse momento, ocupa o lugar do xamã, do bardo celta, do cigano, do mestre oriental, daquele que detém a sabedoria e o encanto, do porta-voz da ancestralidade e da sabedoria. Nesse momento, ele exerce a arte da memória.

Por isso, além de o professor promover a recuperação das narrativas populares, a contação de histórias lidas, ouvidas, imaginadas, histórias de contos de fada, de terror e de suspense, assume a responsabilidade de transmitir a memória coletiva. Abramovich (1989, p. 16) salienta que “[...] é importante para a formação de qualquer criança ouvir muitas histórias. Escutá-las é o início da aprendizagem para ser leitor, é ter um caminho absolutamente infinito de descobertas e de compreensão do mundo”.

A leitura deve ser trabalhada de uma forma prazerosa nas escolas, a partir da utilização de recursos lúdicos, transformando-a em momentos de encantamento, suspense, surpresa e emoção, nos quais o enredo e personagens ganham vida, transformando tanto o narrador como o ouvinte, além de aproximar as crianças do universo literário.

É desejável que os professores trabalhem com frequência a literatura, a fim de que o aluno sinta, viva e descubra emoções que nem sempre podem ser experimentadas na realidade. Além de as histórias divertirem, elas atingem outros objetivos, como educar, instruir, socializar, desenvolver a inteligência e a sensibilidade. Ainda segundo Abramovich (1989, p. 17), ler “é ouvir, sentir e enxergar com os olhos do imaginário!”

Independentemente do propósito da leitura, só é possível fazê-la se o sujeito tiver sido alfabetizado, e, portanto, tiver o domínio desse mecanismo. E a escola é o espaço privilegiado de ensino e difusão desse conhecimento. Kleiman (2001), ao analisar a forma como a escola vem lidando com a leitura, assinala como principal causa a falta de formação teórica em leitura por parte dos professores.

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A esse respeito, Rizzatti (2008), ao discorrer a respeito da sua experiência com formação de professores na Pós-Graduação, relatou que, em um grupo de 250 pós-graduandos, apenas 18 pessoas estavam lendo obras de sua área de atuação.

Ler obras de sua área de atuação, em se tratando de pedagogos que atuam nas primeiras séries do processo de escolarização, parece implicar necessariamente ler sobre leitura e ler sobre escrita, afinal, nesse nível dá-se a consolidação da capacidade de leitura – decodificação – que, por sua vez, é parte da atividade de leitura – construção de sentidos (MORAIS, 1996), habilidades embrionárias nesses anos, sem mencionar que os alunos são apresentados e se familiarizam com o ato de escrever nas séries iniciais. (RIZATTI, 2008, p. 57)

A mesma autora afirma que para sermos capazes de desenvolver no outro o hábito de ler, deveremos ter desenvolvido esse hábito em nós mesmos e também a capacidade de atenção seletiva. Além disso, é preciso ressignificar o espaço ocupado pelo livro nas relações sociais contemporâneas dos brasileiros. No entanto, para construir o hábito é necessário compreender o material lido. Assim, a dificuldade ou a não compreensão é a causa de não gostar; não gostar impede a formação do hábito (RIZATTI, 2008). Portanto, um dos caminhos para habituar a criança com a leitura é promover o seu contato com materiais e situações leitoras com frequência.

Por se tratar de uma pesquisa que trabalha com narrativas de professores, escolhi a Pesquisa Narrativa como método, com base nos autores Connelly e Clandinin (1995) que acrescentam que a utilização das narrativas em pesquisas educacionais justifica-se porque os seres humanos são contadores de histórias que, individualmente e socialmente, vivem vidas relatadas; destacam que o estudo das narrativas representa a forma como nós seres humanos vivenciamos e experimen-tamos o mundo, ressaltam também que no contexto educativo aprendemos que a educação é a construção e reconstrução de histórias de pessoas, coletivas e indi-viduais dos atores que participam da construção do cotidiano da cultura escolar.

Dessa maneira, acredito que a pesquisa narrativa é um recurso teórico metodológico que permite a reconstrução da profissão docente, uma vez que faz emergir as trajetórias, as experiências, os valores, as concepções e os saberes docentes que permeiam as práticas dos professores, permitindo que as lembranças sejam reorganizadas à medida em que fatos passados são trazidos para o presente, a fim de serem reinterpretados, favorecendo, assim, o processo formativo realizado a partir da reflexividade acerca da prática pedagógica.

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A partir dessas considerações, cremos que a pesquisa narrativa contribuirá no contexto de nossa investigação, pois nos permitirá trabalhar com a dimensão subjetiva dos professores, estimulando-os a contarem suas histórias, o que favorece o fornecimento de informações referentes às suas angústias, situações conflituosas, construção de suas aprendizagens docentes e características de sua prática docente.

Diante do exposto, o objetivo geral da oficina aqui relatada foi manter um primeiro contato com os professores das escolas participantes da pesquisa do Grupo de Pesquisa em Políticas e Formação Docente (GEPForDoc) da Universidade Federal de Mato Grosso e ter acesso às suas narrativas, para posteriormente poder alcançar o objetivo da minha pesquisa que visa compreender a formação de professores que atuam nos anos iniciais, por meio da contação de histórias, como prática de leitura, pela observação do seu cotidiano de sala de aula, e pelas narrativas dos desafios e dilemas do trabalho da contação de histórias em sala de aula.

Realização da primeira oficina

A Oficina teve a duração de três horas, tendo iniciado com a contação da história: Qual o sabor da lua?, de Michael Grejniec, utilizando o recurso pedagógico “tapete em feltro” e personagens em EVA (Figura 1). Em seguida, realizamos a confecção do tapete e dos personagens e, por último, propusemos o reconto da história. Vale salientar que, como dispunha de apenas três horas para a realização da oficina, em virtude de outras atividades que seriam realizadas, entreguei os personagens da história riscados e o feltro recortado, pois normalmente essa oficina é ministrada em seis horas.

Durante a contação da história, os professores e demais participantes (alunos da Pós-Graduação, equipe pedagógica da escola, merendeiras e um porteiro de uma das escolas), ficaram atentos e observavam silenciosamente a contação da história. Alguns professores se aproximaram e outros permaneceram acomodados em suas carteiras. Após a contação da história, distribuí dez kits contendo um tapete e os personagens da história, a fim de que os professores confeccionassem em grupo o seu próprio tapete (Figura 2). Eles se organizaram em grupos, onde cada um realizava uma tarefa para realização do tapete e dos personagens. Fiz uma orientação geral de como deveriam proceder e em seguida passei nos grupos orientando individualmente e auxiliando no que era solicitado.

O clima durante a confecção era de total descontração. Cada um demonstrava mais ou menos habilidade na realização da atividade, porém, estavam sempre motivados.

Os tapetes confeccionados pelos professores foram doados para as escolas.

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Figura 1 - O tapete da história e personagens

Fonte: Acervo Pessoal

Figura 2 - Momento da confecção do tapete

Fonte: Acervo Pessoal

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Vale salientar que o tapete é um recurso didático para contação de histórias, e, nele, diferentes cenários são criados com elementos de diversas histórias infantis e os personagens podem transitar entre eles. Tal recurso cria um ambiente receptivo ao mundo imaginário das histórias infantis e à viagem proposta: uma história para escutar, ler e recontar. Na relação criança-livro-adulto cria-se o desejo de ler nas crianças que leem pouco ou não leem; oferece ao adulto um meio simples de conduzir a criança ao mundo da leitura e desenvolvimento da oralidade. As crianças e o narrador devem sentar-se ao redor do tapete e, na mesma simplicidade, o contador e seu jovem público tornam-se cúmplices. Ao contar a história os participantes podem assumir os personagens, imitando as suas vozes e trejeitos. Os fantoches podem ficar escondidos embaixo do tapete de uma forma que crie uma atmosfera de suspense ao retirá-lo para iniciar a história, ou ainda distribuídos, previamente, entre os participantes que irão narrar a história escolhida.

Após a confecção dos tapetes, solicitei que um grupo recontasse a história para a turma, e, para minha surpresa, uma professora presente no encontro, que havia levado a sua filha de oito anos por não ter com quem deixá-la, solicitou que ela fizesse o reconto. A partir de tal pedido, um grupo fez o reconto e em seguida à criança, mesmo não sendo o nosso foco de pesquisa a participação da criança.

Após a realização da oficina, com a participação de 23 professores e alguns alunos da Pós-Graduação e técnicos das escolas, em 14 de maio de 2016, no Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, foi possível esta-belecer o primeiro contato com os professores e ter acesso às suas primeiras nar-rativas acerca da participação na oficina e à contação de histórias em sala de aula.

Solicitei que respondessem, por escrito, as seguintes questões norteadoras: 1- A contação de histórias realizada hoje possibilitou alguma aprendizagem para você? O que desta oficina você faria na sua prática docente? 2- Como você utiliza a contação de histórias na sua prática docente?

Narrativas dos professores

Com relação à participação na oficina e às questões norteadoras, obtive as mais diversas narrativas. No entanto, o que mais me chamou atenção é que poucos professores responderam com clareza quais aprendizagens foram realizadas. Optamos por não identificar os professores, a fim de que se sentissem à vontade para responder às questões propostas. Vejamos algumas das narrativas dos professores que demonstram ter o entendimento a respeito do valor pedagógico da contação de histórias:

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A contação de história é um recurso que faz parte das nossas vidas em diferentes contextos e momentos, sobretudo na infância ela tem um sentido e significância maior. Destaco a oficina como uma aprendizagem na minha vida, os diferentes recursos, até mesmo a roupa da contadora, a entonação da voz são detalhes que juntos formam um contexto encantador, estimulante, e favorável para provocar aprendizagens prazerosas.

A declaração dessa professora demonstrou que ela conhece o papel da contação de histórias no universo infantil, além de perceber que todos os elementos que compõem o cenário da história são importantes. Isso ficou claro quando ela cita a minha roupa – que tinha bordado o cenário de uma história –, a entonação de voz – ao imitar os animais –, e o recurso utilizado – o tapete. Segundo Clandinin e Connelly (1988, p. 34), o conhecimento prático dos professores vai sendo construído a partir de várias dimensões de aprendizagens. Estes definem o conhecimento como o “[...] corpo de convicções e significados conscientes ou inconscientes, que surgem da experiência íntima, social ou tradicional, e que se expressam nas ações da pessoa”. O relato a seguir demonstra a falta de clareza dessa professora ao relatar a sua prática docente. Vejamos:

A contação foi muito gratificante. Colocarei em prática com meus alunos, estamos trabalhando a sequência didática onde tem os animais, a girafa trabalha a distância, irei colocar em prática na próxima semana.

Percebe-se que, ao narrar a sua prática em sala de aula, a professora não especificou a sequência didática que estava trabalhando em sala, mencionando apenas a existência de animais.

A narrativa a seguir revela a postura de um professor que segue à risca o programa estabelecido pela instituição, em detrimento de atividades que aparentemente fujam ao planejamento.

Tenho me prendido muito nos conteúdos que tenho que executar durante os trimestres, e hoje percebi o quanto é bom contar e ouvir histórias. A partir desta oficina vou tirar 30 minutos da minha aula para contar histórias mesmo as que não tem relação com os meus conteúdos. E pedir para meus alunos que contem da forma que eles entenderam.

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Percebe-se que a oficina, nesse caso, já contribuiu para a construção de um novo aprendizado, bem como a desconstrução de um modelo tradicional de prática em sala atrelado a um programa fechado que deve ser cumprido. A professora admite que introduzirá a contação de histórias em sala de aula e que proporcionará aos alunos o momento do reconto. Como lembra Nóvoa (1995), a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas, sim, através de um trabalho de reflexividade crítica a respeito das práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso, é tão importante investir na pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência.

O relato abaixo dá ênfase ao uso do recurso pedagógico – o tapete – que é utilizado para contação de história. Vejamos: “A contação foi de grande valia pois ainda não havia visto essa forma de contação no tapete. Confeccionaria com meus alunos esse tapete e incentivaria a contação por eles”

A sensação da descoberta de uma nova estratégia de contação de histórias demonstra que o professor precisa se atualizar sempre e as oficinas e cursos oferecidos são de grande importância para a formação docente, bem como em ter clareza da importância de envolver as crianças na confecção de recursos pedagógicos para a contação de histórias. Tal postura estimula a criatividade da criança, além de envolvê-la no momento da contação de histórias.

Como foi relatado acima, a oficina foi ministrada para os professores das escolas envolvidas no projeto de pesquisa. No entanto, uma professora trouxe a sua filha de sete anos para participar com ela da oficina. A presença dessa criança desencadeou uma experiência interessante e significativa, que foi revelada por meio da fala de algumas professoras. Após a contação da história, “Qual o sabor da lua?”, solicitei, a pedido da mãe e de outras professoras, que a criança fizesse o reconto, e ela o fez com uma timidez compreensível diante de uma plateia de adultos, mas com muita motivação e desenvoltura.

A narrativa abaixo demonstra o encantamento pelo recurso utilizado e a participação de uma criança no momento da oficina. “Novas formas de contar história. Adorei a criança contando história, colocaria meus alunos para apresentarem a história”.

Outro relato deixa claro que, apesar do desconhecimento do tapete como recurso de contação, a professora afirma que irá confeccioná-lo juntamente com os seus alunos em sala de aula. Acredito que a fala da professora indica um movimento lúdico de construção coletiva, bem como a valorização do potencial criativo das crianças.

No que se refere à utilização da contação de histórias na prática docente das professoras, obtive as seguintes narrativas: “Todos os dias com um gênero textual

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diferente no início da aula como uma história deleite”. “Utilizo diariamente na leitura deleite e sempre que meus alunos estão agitados. Sempre deixo um aluno na semana contar a leitura deleite”.

A maioria das professoras afirmou que faz leitura deleite diariamente, como uma prática integrante do planejamento das atividades de sala de aula. O termo “Leitura deleite” foi utilizado no PNAIC (Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa), durante os anos de 2014 e 2015. No entanto, uma professora mencionou que quando os alunos estão agitados ela faz leitura, entendendo que a leitura acalma. Essa afirmação nos leva mais uma vez para a prática de leitura com objetivo específico de prazer e como forma de manter a disciplina em sala. A narrativa abaixo dá ênfase à utilização do livro como o recurso mais presente na contação de histórias. Vejamos:

A contação de histórias está sempre presente na minha prática através do planejamento, porém o recurso mais usado é o livro. Através da oficina pude conhecer uma nova prática de contar histórias.

A narrativa abaixo apresenta um exemplo de um procedimento de ensino – sequência didática –, em que um conteúdo específico é focalizado em passos ou etapas encadeadas, a fim de mediar o processo de aprendizagem. A sequência didática permite o estudo nas várias áreas de conhecimento do ensino, de forma interdisciplinar. Mais uma vez, apareceu um termo de uma prática pedagógica trabalhada na formação do PNAIC (2012). “Na minha opinião foi muito importante e contaria sim aos alunos, pois a criança aprende a sequência didática”.

A narrativa da professora pressupõe que nós já sabíamos que ela utiliza sequência didática em sala de aula, associada à leitura. No entanto, isso não ficou claro. Não podemos esquecer que alguns programas deixam suas marcas na formação dos professores e que, às vezes, a sua prática em sala de aula ocorre de forma mecânica, deixando de lado outros aspectos relevantes da leitura, como, por exemplo, o simples prazer no ato de ler, respeitando a poética e a sensibilidade.

Finalmente, quero registrar o valor educacional das histórias como excelentes ferramentas de trabalho na tarefa de educar, uma vez que as crianças gostam muito; levam a uma obtenção da empatia com os alunos; a variedade de tema é praticamente inesgotável; pouca exigência de recursos materiais para sua aplicação e os vários aspectos educacionais que podem ser focados.

Além do mencionado acima, as histórias são bastante úteis para trabalhar vários aspectos internos da criança, tais como: o caráter, o raciocínio, a imaginação,

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a criatividade, o senso crítico e até mesmo a disciplina. Quando falo de disciplina não é como algo imposto, mas como algo aceito e praticado espontaneamente pela criança. No momento em que trabalhamos com algo que a criança realmente gosta, que sente que foi preparado com carinho para ela, as chances de ter uma postura atenta e participativa aumentam muito.

Segundo Yunes (2012), a prática da contação de histórias na escola não tem como objetivo formar professores profissionais de contação de histórias, mas fazer compreender que a prática da contação de histórias na escola disciplina os ouvidos, estimula a atenção e o imaginário, apresenta escritores, cativa leitores e, invariavelmente, com o tempo, conduz ao livro: “De quem é mesmo aquela história? Onde posso encontrá-la?”. Por conseguinte, o livro mostrado ou não, no ato da contação, não é perdido de vista.

Considerações finais

A oficina de contação de histórias e confecção de recurso pedagógico possibilitaram o primeiro contato com as narrativas dos professores das escolas municipais de Cuiabá, que compõem o grupo de escolas parceiras do GEPForDoc, em que foram abordadas questões relacionadas às suas práticas de leitura em sala, a possibilidade de utilização de diversos recursos didáticos para contação de histórias e as aprendizagens relacionadas à participação na oficina.

Durante a oficina, os professores demonstraram estar motivados para esse tipo de formação e abertos para novas práticas de leitura em sala de aula, utilizando diferentes recursos didáticos. O contato com as narrativas dos professores ampliou o meu olhar sobre a questão da contação de histórias nos anos iniciais, como prática de leitura, bem como servirá como norte para o planejamento das próximas oficinas que serão ministradas, e, consequentemente, para a condução da minha pesquisa.

Ao encerrar o encontro das escolas, um fato me emocionou, quando a criança que participou da oficina me procurou para agradecer ter participado da oficina, pois ela estava muito feliz e ansiosa para contar a história aos seus colegas de sala utilizando o tapete. Ela disse ainda que presentearia a sua professora com um tapete confeccionado pela sua mãe, e que queria um tapete só para ela contar histórias para toda a família.

Mesmo não sendo o objetivo da oficina trabalhar com crianças, e sim com os professores, a presença dessa criança durante a oficina deixou claro que nós professores, devemos buscar novas estratégias de leitura para encantar as crianças, e, com isso, tornar a nossa tarefa de incentivar a leitura bem mais prazerosa.

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Referências

ABRAMOVICH, F. Literatura Infantil: Gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1989.

BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa: Planejando a alfabetização; integrando diferentes áreas do conhecimento: projetos didáticos e sequências didáticas, ano 1, unidade 06/ Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, Diretoria de Apoio à Gestão Educacional. – Brasília: MEC, SEB, 2012, 48p.

BUSATTO, C. Contar & Encantar: pequenos segredos da narrativa. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

CONNELLY, F. M.; CLANDININ, J. Relatos de experiências e investigação narrativa. In: LARROSA. Jorge (Org.). Déjame que te cuente: ensayos sobre narrativa y educación. Barcelona; Editorial Lertes, 1995, p. 11-55.

CONNELLY, F. M.; CLANDININ, J. Teachers as Curriculum Planners. New York: Teachers College Press, 1988.

KLEIMAN, A. Oficina de leitura. 2 ed. São Paulo: Pontes, 2001.

NÓVOA, A. Os professores e as histórias da sua vida. In. NÓVOA, A. Vidas de professores. Porto. Porto Editora, 1995.

PRIETO, H. Quer ouvir uma história: Lendas e mitos no mundo da criança. São Paulo: Angra, 1999.

RIZZATTI, M.; CERUTTI, E. Implicações metodológicas do processo de formação do leitor e do produtor de textos na escola. Educação em Revista, Belo Horizonte, MG, n. 47, p. 55-82, jun. 2008.

YUNES, E. Contar para ler. A arte de contar histórias e as práticas de leitura. In. MORAES, F.; GOMES, L. (Org.). A arte de encantar: o contador de histórias contemporâneas e seus olhares. São Paulo: Cortez, 2012, p. 59-77.

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Compondo sentidos para o “tornar-se” universitário em um curso de Direito: ressignificações entre o

direito e o avesso

Éverton Neves dos Santos

Considerações iniciais: entre o direito e o avesso

A pesquisa trazida à baila é um recorte dos dados apresentados na dissertação “Experiências Pessoais e Formativas de Jovens Universitários no Curso de Direito: Vademecum, Vem Comigo”, defendida no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso.

Com aproximações teórico-metodológicas na pesquisa narrativa canadense, em Clandinin e Connelly (2000; 2007), Mello (1999; 2004) e outros, bem como em Spósito (2002; 2003), Larrosa (2001; 2002) e Dewey (1972), ao longo de um ano e cinco meses a pesquisa (com)viveu com seis jovens ingressantes no Curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT, campus “Francisco Ferreira Mendes”, na cidade de Diamantino-MT. No presente texto apresentamos as narrativas de três dos participantes, que experienciaram sessões/conversas narrativas presenciais, bem como por meio digital. Todavia, o presente texto dará ênfase às sessões narrativas experienciadas.

Entre o Direito – a escolha pelo curso do bacharelado em Direito – e o Avesso, isto é, os recuos, as tensões, os dilemas e as dificuldades na entrada e, sobretudo, na permanência, trazemos a questão: como são ressignificadas as experiências na recente vida universitária? De modo geral, os professores sabem muito pouco a respeito dos sonhos, dilemas e lutas dos jovens que almejam um curso superior, os concluintes do ensino médio. As trajetórias e experiências dos jovens que chegam às universidades, isto é, o “tornar-se” universitário, devem ser partilhadas para que o ambiente universitário entenda o universo dos jovens e provoque reflexões e ressignificações das políticas públicas.

Na contemporaneidade, as diversidades e desigualdades, cada vez mais visíveis, demonstram que “há uma diversidade de sujeitos que se torna cada vez mais evidente em nossas universidades” (CORROCHANO,

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2008, p. 24), tanto pelas políticas públicas de acesso à Educação Superior, bem como pelas implicações relacionadas ao mercado de trabalho, e aos aspectos sociais e culturais.

Advogamos pela imprescindível necessidade em compreender e (com)viver com as experiências pessoais e formativas dos jovens universitários, pois é um meio para que educadores possam compor sentidos pelas/nas histórias de vidas, sobretudo, nos itinerários de seu desenvolvimento profissional docente.

Como é sabido, há teorizações com fundamentos biológicos, bio-psíquicos, educacionais, trabalho e políticos, que tentam conceituar e categorizar o ser jovem. Aqui propomos trilhar pelo conceitual em que jovem é tido como fruto da construção social, diferenciando -se conforme o contexto social e aportes teóricos, nos quais “[...] conjugam, entre outros fatores, estereótipo, momentos históricos, múltiplas referências, além de diferentes e diversificadas situações de classe, gênero, etnia, grupo etc. (ABRAMOVAY; ANDRADE; ESTEVES, 2007, p. 21).

A pesquisa foi realizada no Curso de Direito da UNEMAT – Universidade Estadual do Estado de Mato Grosso – no campus de Diamantino, cidade polo, que reúne estudantes de dez cidades menores, as quais não têm faculdades. Diamantino é uma cidade distante 204 quilômetros da capital do estado de Mato Grosso, Cuiabá, com uma população de 19.206 habitantes, conforme dados do IBGE/2010.

Assim, o objetivo deste trabalho foi compreender como as narrativas dos participantes ajudam a entender as ressignificações a partir das experiências na academia, já na universidade, aqui entendida como tempo-espaço social para constituição da identidade.

O caminho teórico-metodológico tem como aproximações a Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2006; 2011), de sorte que a experiência vivida, por meio de histórias e da composição de sentidos (ELY et al. 2001), ajudam na compreensão pretendida, já que a realidade apresentada se constitui de representações construídas por meio das interações dos seres humanos “[...] em função de sua percepção de uma situação social modificam-se acompanhando as mutações sociais e o desenvolvimento do indivíduo, adequam-se aos espaços e aos lugares por eles ocupados” (PASSEGI, 2010, p. 112).

Diante deste contexto, no presente texto exponho considerações acerca da Pesquisa Narrativa e seu contexto e Jovens e a Universidade e, em seguida, exibo os seguintes eixos: 1) Tempos, contextos de uma escolha (que trata do papel da família, das inspirações, o status e os afetos); e 2) Ressignificações das experiências na Universidade: das influências à composição de sentidos.

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Pesquisa narrativa e seu contexto: entrecruzando paisagens1 e experiências

A pesquisa narrativa é uma concepção de paradigma que é fluída, desafiando àquelas majoritárias e as “suposições de representações”, e tem como ponto nodal a experiência, isto é, “uma forma de compreender a experiência” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 51), configurando-se como método e fenômeno de estudo. O fenômeno está atrelado à ideia de história ou relato, enquanto que a narrativa está ligada à investigação ou ao texto científico do pesquisador. Clandinin e Connelly (apud MELLO, 2004, p. 89) esclarecem que:

Narrativa é o fenômeno estudado na pesquisa. Pesquisa narrativa, o estudo de experiências como história, então, é primeiro e principalmente uma forma de pensar sobre a experiência. Pesquisa narrativa como uma metodologia insere uma visão do fenômeno. Usar a metodologia de pesquisa narrativa é adotar uma visão particular da experiência como fenômeno estudado.

Mello (2004, p. 85) escreve que a pesquisa narrativa está inserida “[...] dentro desse imenso guarda-chuva de pesquisa qualitativa existente”, por estar focalizada na experiência humana e trazer visões holísticas sobre o objeto de estudo. Nessa esteira, Clandinin e Connelly (1995, p. 16) asseveram que:

[...] a narrativa está relacionada com o trabalho de pesquisadores educacionais de orientação qualitativa, que lidam com a experiência a partir de filosofia, psicologia, teoria crítica, dos estudos do currículo e da antropologia.

Assim, é importante salientar que a pesquisa narrativa é salutar, tanto na educação, como fora, em qualquer área, visto que Connelly e Clandinin (1995, p. 11) ensinam que ela: “[...] é um estudo da forma pela qual, nós, os seres humanos experimentamos o mundo. Desta ideia geral deriva a tese de que a Educação é a construção e a reconstrução de histórias pessoais e sociais”.

1 O termo “Paisagens” é no sentido proposto por Connelly e Clandinin (1995), isto é, uma metáfora ao espaço, ao lugar e ao tempo em que o contexto está inserido e potencializam relacionamentos entre as pessoas, os objetos e eventos, no Espaço Tridimensional: os participantes, o lugar e o aspecto pessoal/temporal das/nas histórias contadas, ditos como os componentes centrais.

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A experiência é marca na teoria de Dewey, no que se refere principalmente “às noções de situação, continuidade e interação”2 (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 85). A pesquisa narrativa é uma possibilitadora de experiências, já que cria espaço que ecoam as vozes dos sujeitos sociais que participam da pesquisa, construindo, compondo sentidos e significados e entendendo seu papel e lugar nos mais diversos contextos. Nessa perspectiva, podemos considerar este contexto como um papel político.3

Quando se fala em compor sentidos, nos dizeres de Mello (2004), flagrante está a composição dos “eus” perante o fenômeno. São olhares, visões de mundo e seres diferentes. Mello (2004, p. 89) explica também que desenvolver a pesquisa narrativa pela vivência de histórias “[...] é feito quando o pesquisador vive a experiência com seus participantes de pesquisa e colaborativamente tentam construir significados para as histórias vividas”. A composição de significados é um esculpir na argila, é artesanal, por tal único, personalíssimo (ELY et al., 2001), sendo que os caminhos para instrumentalizar tal façanha são ricos e diversificados. Assentada na concepção teórica de Ely et al. (2001) a análise é realizada pelas lentes da composição de sentidos às experiências vividas.

Segundo Jovchelovitch e Bauer (apud BERNARDO, 2015), a entrevista narrativa pode ser entendida como uma forma de entrevista não estruturada, mas com profundidade, por ter características específicas. Isso se deve ao fato de que esse tipo de entrevista não corresponde àquelas formas preestabelecidas de se compor o gênero, com o segmento pergunta X resposta. Bernardo (2015) entende que a entrevista narrativa é um meio de produzir dados para a pesquisa de abordagem biográfica, uma vez que, segundo ele, a forma mais eficiente de se obterem narrativas de vida e formação se dá por meio da entrevista narrativa. Nessa modalidade de entrevista, as questões acabam por servir aos interesses do pesquisador, com o intuito de que as provocações feitas por eles gerem narrações dos participantes da pesquisa. Nelas, a ideia é sempre permitir que o participante siga com sua narrativa. Portanto, é preciso deixar que ele conte a sua história da forma mais espontânea possível.

2 Sob este ângulo, vejo que na pesquisa narrativa ao dar vozes aos participantes e ao pesquisador acontece o partilhamento, por meio do que Clandinin e Connelly (2011) denominam espaço tridimensional da pesquisa narrativa, ou seja, as três dimensões temporalidade, sociabilidade e lugar, as quais abordam questões temporais; focalizam o pessoal e o social; e acontecem em um lugar ou lugares determinados. São inspirados na teorização de Dewey (em suma: pessoal e social, relacionados à interação; passado, presente e futuro, relacionados à continuidade; os quais se integram à noção de lugar, que se relaciona à situação) (SILVA, 2014).

3 Nesse sentido, Mello (2004, p. 98) evidencia: “[...] o papel político da pesquisa narrativa: dar voz ao pesquisador e aos participantes de pesquisa. Clandinin e Connelly (2000) comentam a inquietação e questionamentos quanto às histórias dos participantes de pesquisas”.

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Realizamos o convite para jovens universitários dos primeiros semestres do Curso de Bacharelado em Direito – do primeiro ao segundo semestre. O chamamento foi feito pessoalmente nas salas de aula, após prévia autorização da Direção do campus da UNEMAT, em Diamantino-MT. Assim, todos os participantes da pesquisa assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, pois deveriam ter ciência de todo o itinerário da pesquisa. Após os dois primeiros encontros, de 13 participantes, restaram apenas sete, dos quais somente seis efetivamente participaram de toda a pesquisa, e, aqui recortamos os dados de três participantes. É importante explicitar que sessões e conversas narrativas são entendidas como o momento em que todos tiveram oportunidade de contar suas experiências de vida, dentro e fora da universidade. Aqui entendido como o contar de histórias, o narrativizar seriam os diálogos vivos, entre pesquisador e envolvidos na pesquisa, com pseudônimo de cada um dos três participantes do recorte da pesquisa, a idade, local onde nasceram e a modalidade de ensino a que tiveram acesso. Isso facilitará uma noção prévia a respeito de quem formou o corpus desta pesquisa.

Quadro 1 - Dados dos participantes

Nome (Pseudônimo) Idade Naturalidade Domicílio Modalidade de

ensino

Arthur 17 Nortelândia/MT Nortelândia/MT Pública

Pitty 18 São José do Rio Claro/MT

São José do Rio Claro/MT Particular

Álvaro 18 Resplendor/MG Diamantino/MT Pública

Fonte: Dados da pesquisa levantados pelo autor, 2015

O primeiro participante é Arthur4, que se apresentou: “Tenho 17 anos, nasci, fui criado e moro atualmente em Nortelândia-MT. Tive uma infância normal, contudo, desde que me lembro, meus pais me incentivaram a criar o hábito de leitura. Meu pai é formado em Ciências Contábeis (acho que está terminando a Pós-Graduação dele) e minha mãe estudou, somente até o término do ensino médio. Meu pai espera que seus filhos estudem, passem em um concurso público (assim como ele) e desfrutem o resto da sua vida com sua esposa e filhos”.

4 Aqui, omitiu-se o nome verdadeiro do estudante, que doravante será identificado pelo pseudônimo “Arthur”.

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A segunda participante é Pitty5, que, naquela ocasião, apresentou-se: “Tenho 18 anos e nasci no dia 04/04/1996, sou uma ariana completa, me enquadro em todos os quesitos do meu signo, sou mandona, apaixonada intensamente por tudo que faço, teimosa e cabeça dura. Nasci em São José do Rio Claro onde vivo atualmente. Minha mãe é enfermeira, uma das primeiras enfermeiras-padrão de São José, nasci e cresci aqui, sou filha única e sempre tive uma relação muito boa e clara com minha mãe. Ela sempre conversou muito comigo em relação ao que é certo e errado, sexo, drogas e entre outros assuntos, sempre confiando em mim e não me proibindo nada dando apenas escolhas e me mostrando as consequências, acho que fiz a maioria das escolhas certas graças às orientações dela”.

O terceiro participante é Álvaro6, que assim se definiu: “Meu nome é Álvaro, tenho 18 anos. Nasci na cidade de Resplendor/MG, no dia 25 de abril de 1996. Minha infância foi dividida em dois países: Estados Unidos e Brasil. Nos Estados Unidos passei quatro anos da minha infância, dos quatro aos oito anos. No Brasil, passei uma parte da minha infância em Resplendor, minha terra natal, e mudei para São José do Rio Claro, cidade na qual vivo hoje. Meus pais sempre falaram que é para eu estudar para ter uma vida diferente da que eles tiveram. Sempre tive muito contato com o campo, sempre gostei dessa vida de fazenda, mas gosto para passear e não me vejo, de jeito nenhum, cuidando dessas coisas no futuro. Eu gosto é da cidade, gosto de tecnologia, de ter tudo por perto e na fazendo isso não dá”.

Explicada a metodologia da pesquisa narrativa – associada à técnica das entrevistas narrativas – bem como quem são os participantes do presente recorte da investigação, passamos agora a discorrer a respeito dos jovens e da Universidade.

5 Aqui, omitiu-se o nome verdadeiro da estudante, que doravante será identificada pelo pseudônimo “Pitty”. Segundo a participante o nome é “por causa da cantora [...] é minha referência. Sei todas dela, gosto, é bem profunda, doidinha como eu, num bom sentido neh [...] (risos). Sabe as músicas dela? Pulsos, Sete Vidas, Me adora, Memórias, Boca Aberta e claro tem Teto de Vidro.

6 Aqui, omitiu-se o nome verdadeiro do estudante, que, doravante, será identificado pelo pseudônimo “Álvaro”.

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Jovens e a universidade: marcas deixadas pela caminhada estudantil

A vida do jovem é marcada por fragmentariedades, nada lineares, constituídas por meio, processos (PAIS, 1993). É vida marcada por esperanças no amanhã, nos projetos do futuro, nas aspirações.

As narrativas da experiência de vida dos jovens universitários são laboradas na perspectiva de Larrosa (2002, p. 24), remetendo à ideia de que o “[...] que se adquire no modo como alguém vai respondendo ao que vai lhe acontecendo ao longo da vida e no modo como vamos dando sentido ao acontecer do que nos acontece”. O mesmo autor ajuda a conceber o jovem como autor, assim como Dubet (1994, p. 74), sujeito ativo de sua vida, não de “um indivíduo constituído por um todo social homogêneo”.

Na contemporaneidade, o jovem é pressionado a tornar-se universitário para ascender profissionalmente, em busca da sonhada mobilidade social, aspirações pelas vantagens sociais, relevando o conflito dos outsiders e estabelecidos, em um reconfigurar “entre os nós e o eles na encenação de jogos de poder” (ELIAS, 2000, p. 33), também visíveis na constituição dos cursos universitários, cada vez mais atrelados ao mercado de trabalho (CHAUÍ, 2001), não oportunizando espaços, tempos, paisagens de elevação do homem a novos horizontes, novas experiências consigo e com o outro, singularidades que deveriam fazer parte das vivências e experiências universitárias dos jovens.

Assim, o tempo-espaço Universidade deve respeitar a Educação como um bem social e não como um produto para a entrega da técnica, do conteúdo científico. Penso que muito mais do que o mero ensino, neste nível de conhecimento, devemos elevar o homem a novas culturas, novos horizontes, oportunizando novos olhares, transpassando o ensino, a pesquisa e a extensão, mas sedimentando pilares para uma educação para/pela formação humana. Sob este manto, a Universidade deve ser encarada como um espaço-tempo caracterizado pela caminhada estudantil, com itinerários antecessores. Assim, as narrativas demonstram as marcas deixadas em cada participante, cada aluno.

Neste momento apresento as palavras de Arthur, que ilustram bem a ideia da trajetória de estudo desses jovens e a estreita relação entre condição financeira e social e a educação básica e superior:

Ah, os estudos, tipo, estudei numa escolinha particular, em uma cidade vizinha. O preço era um pouco caro, estudava eu e meu irmão, daí a diretora da escola fazia

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um desconto na mensalidade, senão meu velho não conseguia pagar. Tipo, sempre gostei de ler, então não tive muito problema no desenvolver deste período letivo. Eu fazia amizade por causa das histórias em quadrinhos, fazia amizades contando fatos ou qualquer coisa que lia nos gibis, mas eu era tímido, mas isso me ajuda demais, prof. [...] Estudei nessa escola particular até a terceira série, tipo assim...escola oferecia até a quarta série. Daí meu irmão, concluindo os estudos, acabou o desconto na mensalidade e puts (sic) tiver que sair, portanto, passei para uma escola pública. O povo fala de escola pública e privada, eu acho que é verdade, tipo eu senti a diferença do ensino. Enquanto a maioria da sala estava aprendendo a ler, escrever, fazer operações de matemática, eu já tinha aprendido isso e ansiava por aprender mais, daí, no próximo ano, voltei para a escola particular, com alguns sacrifícios do meu pai, e concluí minha quarta série. Dinheiro é o que move até estudar num lugar melhor neh, daí depois da quarta série concluí o ensino fundamental em uma escola pública, sem maiores desafios.

[...] A partir do ensino médio (escola pública) é que começa a ficar interessante. Eu lembro que os conteúdos eram diversos e até desafiadores. Tinha matéria que eu levava pau, mas em outras, tais como português, literatura e outras, eu ia bem. Mas JESUS!!!! A tal matemática me matava. Às vezes nos reuníamos para estudar matemática, sempre um colega que sabia ensinava os mais fracos. O problema era, não tínhamos foco. Íamos para casa de alguns colegas, daí conversamos a tarde toda, jogávamos no videogame, comíamos feito gafanhoto (gargalhadas) e no final da tarde, faltando uns 30 minutos para as 17 horas é que lembrávamos da tal matemática (risos). Mas o fato mais marcante no ensino médio foi quando o Tribunal de Justiça do Estado fez um “negócio”, convênio, contrato do Menor Aprendiz (não sei bem o nome do acordo), com a minha escola, para que nós nos inscrevêssemos para fazer estágio no fórum local. Foi marcante, em razão disso, finalmente, decidi por cursar Direito. (Grifo nosso)

Ainda na esteira do histórico educacional dos participantes da pesquisa, Pitty narra:

Tipo, estudei do maternal ao 3º ano do ensino médio na ‘Escola Luterana Siegfried Buss’, a única escola particular da

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cidade. Além das apostilas, o maior diferencial da escola é que ela era companheira dos alunos. Ela possui um contato direto com os pais através de gincanas, cultos semanais, e aulas que já foram retiradas da grade como ensino religioso onde lá é obrigatório. Uma vez por semana íamos na igreja também para o devocional, onde ouvíamos a palavra de Deus e após isso a diretora dava os avisos da semana.

A respeito desse mesmo aspecto da relação sociofinanceira e estudantil, Álvaro explica:

Meus estudos se iniciaram nos Estados Unidos. Por ser um outro país, minhas primeiras impressões foram muito positivas por ter um ensino de qualidade, mas quando retornei ao Brasil, me decepcionei com a qualidade de ensino que era oferecida pelas escolas do país. Nos Estados Unidos, tudo era muito organizado, as pessoas eram comprometidas, educadas, até frias, às vezes, mas eram sempre muito competentes. Aqui no Brasil, eu via mais preguiça, parece que todo mundo deixava que a vida levasse eles, mas não buscavam dar o seu melhor. Isso me fez ver que ainda tem um abismo entre a educação americana e essa que a gente recebe no Brasil. [...] Tive bons professores no Ensino Médio. Não tive colegas, mas os que eu me lembro são Leonardo e Cosme. Na minha adolescência nunca fui de vivenciar coisas interessantes, a única que foi interessante foi eu ter morado nos Estados Unidos. Igual eu falei antes, o choque de realidade pra mim foi muito grande. Imagina, professor, você vive nos Estados Unidos e de repente volta pro Brasil e vê que o ensino, que é o ponto mais importante, é tão fraco e desorganizado [...] Dá uma tristeza lembrar. Meu ensino fundamental e médio foram tranquilos. Nunca tive muitas dificuldades nas matérias. Porém, sempre fui ruim em português.

Compondo sentidos para as narrativas de Arthur, Pitty e Álvaro, percebemos que os dois primeiros tiveram em sua trajetória contato com a escola particular, sendo que Álvaro conviveu por algum tempo com outra cultura, inclusive, a escolar, de outro país, qual seja, os Estados Unidos da América. Enquanto Arthur, por questões econômicas foi para a escola pública, Pitty estudou até o término do Ensino Médio em uma escola particular. Já Álvaro, retornando para o Brasil, demonstra a marca, o impacto negativo, da baixa qualidade nas escolas do Brasil, especialmente, no interior.

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Lembro-me neste ponto de Abramovay (2003), pois acredito no papel da escola como espaço de lutas e desenvolvimento do potencial de cada ser humano. Todavia, diante das realidades, sabemos que há certa tendência de os alunos das escolas públicas terem uma bagagem cultural menor do que aqueles advindos das privadas. Por tais motivos, alicerçado na perspectiva de Peralva (1997, p. 17), entendo que a juventude é uma fase particular da vida, “[...] não apenas uma construção cultural, mas uma categoria administrativa, jurídica, institucional, ainda que abrigando fortes diferenças sociais em seu interior”, razão pela qual compondo sentido diante das narrativas dos participantes da pesquisa, percebem-se claramente os vários itinerários não monolíticos, diversos, isto é, modos distintos nas dimensões identitárias do ser jovem (CARRANO, 2002).

Assim, as experiências pessoais e formativas são capazes de tocar profundamente a subjetividade dos participantes e do pesquisador, os quais com integridade e autenticidade, demonstram em suas narrativas a complexidade do “ser jovem”, das identidades e dos caminhos percorridos na vida, o que engloba, segundo Josso (2004, p. 51) “[...] em todos os seus aspectos, em todas as suas dimensões passadas, presentes e futuras e na sua dinâmica própria”.

Tempos, contextos de uma escolha

Diversas são as razões que levam essa parcela da sociedade a adentrar às salas do curso de Direito: status, reprodução das experiências maternas e paternas, ideologia de mudança social, entre outras. Muitos deles, ainda, acessam as universidades públicas – como é o caso dos participantes – por verem nela uma chance maior de preparação adequada para uma formação eficiente e por razões também econômicas. Há, ainda, aqueles que chegam às universidades privadas por conciliarem o desejo de uma futura carreira de sucesso e a possibilidade de permanecer em sua cidade de origem, uma vez que há poucas cidades de Mato Grosso que têm o curso de Direito ofertado em instituições públicas. Corrochano (2008) discute o quão variado é o perfil dos jovens que têm chegado aos bancos das universidades no século XXI. Cada vez mais, as instituições de ensino têm se mostrado como o lugar privilegiado, tanto para o conhecimento, quanto para a convivência entre os diferentes. É notório o aumento do número de jovens que têm conseguido, driblando toda sorte de dificuldades, chegar às universidades.

Nesse sentido, o participante Arthur relata que, em suas memórias, marcante no Ensino Médio “Foi o início de um estágio no fórum local, onde, finalmente, decidi por cursar direito”. Estaria ali o participante tendo seu primeiro contato

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profissional, mas também ocorria a abertura para o mundo jurídico, a estética, as narrativas e todo o status de um profissional tradicional.

Aproveitando o ensejo desse relato, perguntei neste momento: você acha que o estágio tem relação com sua escolha pelo curso de Direito?, ao que ele responde:

Na fé, acho que sim, na moral! O mundo jurídico pode ser representado por um círculo fechado, semelhante a um ‘clubinho secreto’. Afinal, mesmo a parte tendo acesso à tão esperada sentença do juiz através da consulta processual no site do Tribunal (o que é considerada uma medida de justiça célere) ela é dependente do advogado ou da secretária para interpretar e entender o que está escrito.

E, ainda complementa:

[...] meus pais ficaram felizes queriam um advogado, alguém do Direito na família é bom né, (risos). Eles me incentivam e muito na carreira, pois é sólida, exige muito estudo e tem reconhecimento, meu pai queria fazer direito, mas não teve jeito, era muito caro e nunca teve estudo suficiente para passar em uma faculdade pública. (Grifo nosso)

Ainda no que diz respeito às influências dessas escolhas, é preciso lembrar que estas não afetam apenas o jovem, mas toda a família, já que este pertence a uma família, que tem uma história e características próprias (BOCK; AGUIAR, 1995).

Essa concepção teórica se manifesta no trecho da fala de Arthur

[...] me incentivam e muito na carreira, pois é sólida, exige muito estudo e tem reconhecimento, meu pai queria fazer direito, mas não teve jeito, era muito caro e nunca teve estudo suficiente para passar em uma faculdade pública.

Aqui o participante Arthur deixa às claras que sua família exerceu certa influência e o incentivou pela escolha do curso, pelo critério da diferenciação, já que seu pai não pôde realizar o curso de Direito.

No mesmo caminho da busca por entender as influências na escolha desses jovens, trago à baila as palavras da participante Pitty, que mostra que o primeiro elemento decisivo para a escolha foi o desejo de dar orgulho à família:

[...] Sempre quis que minha família se orgulhasse de mim, pra quando eu fosse alguém na vida, pudesse dar a minha mãe a vida boa que ela me proporciona hoje, tipo, esse realmente é o maior motivo de eu querer cursar o ensino superior, quero que o povo me respeite algum dia por

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causa do que eu sou e ai, poder proporcionar uma vida boa pra minha mãe e minha vó.

Pelo relato, vejo que o ponto de partida para escolha de Pitty foi a vontade de devolver, retribuir aquilo que sua mãe e sua avó sempre lutaram para lhe oferecer, ou seja, proporcioná-las uma vida tranquila e confortável. Surge, neste ponto, o status ligado aos fatores emocionais determinantes da escolha: Pitty quer conforto para a família e para isso precisa ser respeitada e cursar uma faculdade. O conflito de interesses na escolha ficou latente. O desejo de dar orgulho à família e ser respeitada chocou-se com a realidade da reprovação inicial no processo de seleção para o curso. Nossa participante sequer desejava especificamente o curso de Direito. A Medicina lhe apetecia sobremaneira, mas as condições, à época, conduziram-na para o curso de Direito.

Bernardo (2015, p. 119;143) afirma que “família e a questões econômicas têm papel definitivo nos direcionamentos da trajetória de formação dos estudantes”. A mesma autora pondera que estas “são marcas importantes a serem consideradas no processo”.

Na mesma perspectiva, os diálogos deixam às claras a compreensão de que o Curso Superior é possibilitador de melhoramento da vida – qualidade de vida –, ascensão social, respeito e admiração dos outros. Destaco trecho da narrativa: “[...] pra quando eu fosse alguém na vida, pudesse dar a minha mãe a vida boa que ela me proporciona hoje. (Narrativas de Pitty). Ainda: [...] eu escolhi o curso pra ganhar dinheiro e também pra ser respeitado pelo povo, sabe, porque tipo, todo mundo respeita um juiz, um promotor, um advogado bem rico e competente, né? (risos)”. (Narrativas de Álvaro)

Nas narrativas há uma marca no tom do discurso: “ser alguém na vida”, depositando no curso superior, no caso o de Direito. A aposta é lançada nos estudos para o sucesso pessoal e profissional. Penso que isso é mito7. Mas, entendo que tal expressão em verdade está carregada de sentimentos, de quereres, não só do jovem, da luta das marcas que ficam na história de vida. Sob este ângulo, pode-se afirmar que a educação implica em uma perspectiva estratégia vital para manutenção ou melhoramento do status social, do poder – dentre os quais destacam-se o econômico e social –, comportando-se como uma variável para a posição no meio social e para se obter prestígio.

7 Mito, pois é uma interpretação ingênua, pueril, já que conclusão de um curso superior não implica em entrada no mercado de trabalho, tampouco no sucesso profissional e pessoal. É o que Pais (2006, p. 9) ensina: “os diplomas são cada vez mais vistos como cheques sem fundos, sem cobertura no mercado de trabalho, também ele sujeito a inconstâncias, flexibilizações, segmentações”.

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Ressignificações das experiências na universidade: das influências à composição de sentidos

Dialogando com os jovens universitários, participantes da pesquisa, cada qual narra de modo peculiar os primeiros passos na universidade e as implicações de tal tempo-espaço em suas identidades. É notório que os jovens compreendem os significados das vivencias neste lócus, primeiramente pelo contexto sociocultural inseridos, e não menos importante o alívio de serem aprovados no vestibular e começar novos capítulos na trajetória estudantil.

Por exemplo, em suas narrativas, Arthur revela o modo como se sente em relação ao ambiente universitário:

[...] durante o Ensino Médio no Fórum que despertou a minha vontade de fazer o Curso de Direito. Antes era muito idealizador, só na viagem. Mas hoje, dentro da Universidade, percebo que o bagulho é mais sério. Nem tudo é justo e nem tudo é maldade. Há sentido para todos os lados. O importante que eu consegui entrar por mérito próprio e vou curtir meu momento [...] Vou confessar uma coisa, mas espero que fique somente entre nós (risos) me sinto mais gente dentro deste ambiente. Sinto que posso transformar algo, não sei que algo posso transformar, tipo, acho que estou em transição. Antes pensava em usar o curso para ganhar dinheiro, hoje penso em ser um professor, mas dos bons (risos).

Eu, ainda, perguntei para o Arthur: qual é a percepção que tem deste momento da vida enquanto acadêmico de Direito?

Ele responde: “Bem tranquila, professor. Não esquento a cabeça não. Acho que tudo tem seu momento. Às vezes, minha cabeça gira, gira e gira. Mas, a questão de ordem é relaxar!!! Isso mesmo Professor, relaxar. O IBGE ‘fala’ que o povo brasileiro viverá mais que 80 anos. Logo, com a minha idade, estou um bebezinho neste mundão. Quero as coisas boas da vida, mas não vou me matar para conseguir nada, as coisas vêm”.

Nesta narrativa vemos a “transição de formação”, conforme Bernardo (2015, p. 46) explicita, pois o jovem está no processo “de continuidade da formação e da trajetória estudantil, agora um curso superior, em processo de constituição profissional específica”. Na mesma toada, Dubet (2008, p. 103) pontua: “É preciso, portanto, ser sensível à rentabilidade individual dos percursos escolares”.

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Com essa sensibilidade, chamo a atenção para a narrativa de Arthur, o qual testemunha a felicidade quando verbaliza que o bom foi “entrar por mérito próprio” e ter o entendimento de que é preciso ir além “Tentarei fazer o meu melhor. Sugar o que a faculdade e os professores podem me oferecer. Pois este tempo, como dizia Cazuza ‘o tempo não para’ (uma certa emoção)”.

Além disso, perguntei para Pitty se estava gostando do curso, da Universidade. De imediato, com um tom de voz animador respondeu: “Ainda quero ver o que vai dar, eu tipo, pretendo levar cada vez mais a sério o meu curso e espero me apaixonar mais e mais por ele. Mas não farei milagre não. Vou estudar conforme for dando. Essa coisa de perder noites e mais noites estudando isso não é pra mim. A vida é muito longa pra eu esquentar a cabeça (gargalhadas). Sabe professor, quero curtir o curso, fazer amizades e se possível arrumar um gatinho por aqui mesmo”.

Dialogando agora com a jovem Pitty, vejo que há certa convergência com a narração de Arthur. Quando perguntado acerca da identificação com o curso nestes primeiros meses, ela respondeu:

Quando iniciei o curso, affffffff... Socorro!!! Achei que fosse morrer de vergonha. O povo me observava o tempo todo. Acredita que eu tive (forçadamente) que participar do trote? Nossa, fiquei com tanta raiva. Uma indecência. Acho trote o fim da picada. No meu primeiro dia de aula, os veteranos nos trancaram em uma sala, passaram batom em nossos rostos e pegaram um pé do nosso calçado. Só pagando que teríamos nossos calçados de volta. Fora esse fato, sempre gostei muito da faculdade, do curso, estrutura, quadro de professores. É claro, há alguns que não se dedicam tanto e outros mais. Mas, em todos os lugares isso ocorre, não é mesmo?

Na verticalidade, tentando compreender com maior profundidade como a participante Pitty compreende este momento na universidade, lapidar é sua narração:

Gosto deste ambiente que a faculdade proporciona. Me sinto menos burra. Aqui consigo perceber que um dia terei uma chance. Acho que entrei na hora certa e no curso certo Professor. Antes de vir para a faculdade eu assistia muito novelas, mas agora, não. Nem quero mais. Estou em outro nível (gargalhadas). [...] Só que uma coisa importante é que caiu a minha ficha cedo. Vou te explicar, tem um povo aqui na Universidade que leva o curso na barriga, quando

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chega no nono semestre dá um desespero querendo salvar o mundo, daí ferrou!!!!! Esse tipo de gente é o tal do ‘malandro otário’, brinca a faculdade inteira, depois vai para cursinho tentar salvar o mundo (risos).

A participante demonstra integração com a Universidade, modificando gradualmente alguns hábitos e tendo responsabilidade para com os estudos ao seu modo pelas suas experiências de mundo, sentimentos, emoções e tudo que há na história de sua vida (DAYRELL, 1997). Os jovens, pelas suas vivências, da infância à juventude levam consigo aprendizagens, vivências, saberes, interações sociais e uma história que merece respeito. Ainda destaco trecho do participante Álvaro nos diz:

Tenho muuuuuuuuita vida pela frente. Pô, xou novinho (risos). Não fico encanado com isso, não! Sei que aproveitarei as oportunidades, mas não me matarei para isso. Tudo a seu tempo. Em Eclesiástico ou Eclesiastes, agora não sei ao certo, diz que tudo tem seu tempo. Sendo assim, meu tempo é de curtir (gargalhadas).

A narrativa pode levar a uma composição de sentidos fora de um contexto maior, segundo a qual o jovem enuncia algo particular de modo generalizante. Assim, a voz do jovem ecoa com um significante que demonstra uma crítica e certa rebeldia ao que é imposto hegemonicamente. Não é no tempo do outro que faço o meu, pelo contrário para o jovem Álvaro o seu tempo é grande, pois há “muuuuuuuuita vida pela frente”, mesmo aproveitando as oportunidades. Isso quer dizer que ao seu modo e tempo efetivar seu estudo, seu papel, mas respeitando a individualidade do seu tempo e modo de ser jovem e universitário.

Considerações finais

Os jovens participantes da pesquisa, ao tentar ressignificar suas experiências pessoais e formativas, transmitem-nas por meio do processo dialógico interativo das narrativas em seu tempo-espaço sociocultural, já que a vida de cada jovem é rica em experiências e merece ser compreendida pelo diálogo.

Para a formação do pesquisador, percebo que o ir-e-vir da pesquisa proporciona um belo exercício de composição de sentimentos a partir e além das experiências pessoais e formativas, nos movimentos de recontar das histórias no processo de reflexões de dentro e para fora, para trás e para frente.

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Assim, em meu processo identitário, sou tocado quando os participantes da pesquisa manifestam a respeito de sua existencialidade e importância de suas histórias, de si. Por exemplo, Arthur narrou que “eu nunca tinha parado para pensar no quanto minha vida escolar foi legal”. Pitty descreve sua surpresa para com a importância de sua história para outrem.

A volta ao campo oportunizou outra importante reflexão: nossa constante transformação, metamorfose, mudança de opinião, de quereres e visões. Álvaro afirma que, mesmo estando na juventude, em constante conflito, pode ter um futuro promissor. Ou isto ou aquilo, eis a questão! Ressignificando minha trajetória e as experiências pessoais e formativas percebo-me em constante conflito com o papel social do educador, em relação à forma utilizada para compor sentidos concernentes às minhas práticas em sala de aula e oportunizar espaços que socializem os conhecimentos, os saberes e os debates com visões plurais.

Zago (2006) e Dubet (2008) apontam para as possíveis dimensões de êxito, destacando os pontos de partidas distintos e oportunidades para os sujeitos, os quais compõem cenários desafiadores para os jovens universitários. Os jovens participantes da pesquisa partem de histórias de vida diferentes, vindo de famílias que passam por dramas, lutas, tramas, avanços e recuos em busca de oportunizar o melhor. Mas, a igualdade de condições é mantida para os jovens? Sabemos da importância do sujeito no processo de formação, e participação ativa. No entanto, é imprescindível tomar cuidado ao responsabilizar o jovem, o sujeito, em detrimento de formulação de políticas públicas que garantam atendimento pleno na educação e demais direitos sociais. Neste sentido, penso que a Universidade deve preocupar-se com “a sorte dos vencidos” (DUBET, 2008, p. 10), pois assim a educação verdadeiramente será para todos, respeitando a diversidade instalada em todas as universidades.

O ser jovem e universitário nas vivências e experiências demonstram sabores e dissabores em meio ao complexo educativo na Universidade. São realidades que ora corroboraram para os sonhos e anseios, e, em outros momentos, nem tanto. Porém, demonstram-se entusiasmados para encararem os desafios propostos nesta nossa fase da vida.

Vamos ver o que as narrativas nos dizem? Fundamentando-se nos preceitos freireanos, recorro a Larrosa (2001, p. 291), que leciona: “Dar a palavra é dar a possibilidade de dizer outra coisa diferente daquilo que já dizem. Dar a palavra é dar a alteridade constitutiva da palavra”. Como as narrativas apresentam claros eixos condutores, sensíveis para as singularidades narrativas de cada participante, demonstram que os jovens têm percursos de vida não-lineares, as dificuldades

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da vida, o papel da família e outros grupos de socialização, as inspirações e os afetos. Nesta conjuntura, o status e o simbolismo e os desejos compõem vários sentidos os quais implicam na escolha do curso, na maneira como se tornam universitários e nas ressignificações das experiências nos primeiros semestres do curso, momento de novas tensões, reflexões e possibilidades.

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Aprendizagens da docência na formação inicial: os sentidos sobre o ser professor a partir

da ideia do bom professor

Fábio Mariani

Introdução

Dominar um conjunto de conhecimentos específicos de uma determinada área científica não é suficiente para ser um bom professor. Sendo assim, os processos formativos em que os professores se envolvem, precisam ser de tal forma articulados, de modo que do professor possa se esperar que desenvolva capacidade de diagnosticar e compreender criticamente o mundo e os contextos em que atua. Além disso, anseia-se que saiba lidar com a diversidade, que consiga conceber e desenvolver projetos de intervenção na realidade, que se comprometa política e eticamente com o ensino e a aprendizagem dos alunos. Para isso, ambiciona-se que esteja atento e saiba utilizar novas metodologias e novas tecnologias, que seja protagonista de sua autoformação e que também esteja disponível e saiba trabalhar em equipe. Sua atuação implica em ter capacidade de gerir situações imprevistas, mover-se em contextos interativos, instáveis, em constantes processos de mudança. Portanto, espera-se que o professor seja um profissional capaz de refletir e investigar a sua realidade e seus contextos e, mais do que isso, seja capaz de propor projetos de intervenção que se materializam nos processos de ensino e aprendizagem em que se envolve (GONÇALVES, 2014).

Nesse sentido, a ideia central aqui defendida é a de que não podemos pretender que a formação inicial ofereça produtos acabados e suficientes para que os professores exerçam com êxito a sua profissão ao longo de toda a carreira. Isso se pontua, porque, antes disso, a formação inicial precisa ser pensada como uma etapa importante, com uma significativa contribuição para os professores, mas apenas como uma das etapas de um longo, complexo, dinâmico, multifacetado e multidimensional processo de desenvolvimento profissional (GARCIA, 1995).

Com essa perspectiva, o presente trabalho articula-se a partir de um recorte de uma pesquisa de Doutorado que tomou como temática de investigação os processos formativos de licenciandos e teve como questão central: como os licenciandos experienciam, concebem e constroem sentidos a respeito do ser

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professor no processo de formação inicial no contexto de um curso de licenciatura em Física? O recorte aqui proposto configura-se a partir das narrativas dos licenciandos referentes à ideia de bom professor que manifestaram a partir de suas experiências formativas ao longo do curso de licenciatura, e, mesmo antes deste, nas experiências como alunos da educação básica.

A opção teórico-metodológica que orientou a pesquisa pautou-se nos pressupostos da Pesquisa Narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011; MELLO, 2004), que tem na experiência o seu fundamento básico, sendo que “[...] a razão principal para o uso da narrativa na pesquisa em educação é que nós seres humanos, somos organismos que, individual e socialmente, vivemos vidas contadas” (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p. 11). No viver e contar suas histórias, as pessoas têm a oportunidade de refletir sobre si mesmas e, assim, compor sentidos que se tornam significativos para elas. Nesse movimento, constroem aprendizagens e identidades, avaliando e ressignificando posicionamentos, concepções e crenças.

Para os pesquisadores narrativos, o importante é a forma como as pessoas – os participantes da pesquisa e o próprio pesquisador – impingem um olhar atento para si próprios, para as suas histórias pessoais e experiências, e junto com os participantes constroem sentidos relacionados às experiências que estão historiando. Mas, o processo não termina neste ponto, uma vez que é necessário que reflitam sobre a forma como organizam, problematizam e interpretam tais experiências, de modo que ganhem significação para eles, pois tornando-se significativas, tornam-se formativas. Ainda nessa perspectiva, Clandinin e Connelly (1995, p. 12) argumentam que “[...] a educação é a construção e a reconstrução de histórias pessoais e sociais; tanto os professores quanto os alunos são contadores de histórias e também personagens nas histórias dos demais e nas suas próprias”. Portanto, as histórias vividas e narradas pelas pessoas envolvidas nos processos educativos tornam-se o fundamento essencial das pesquisas em educação, elas são o fenômeno que se toma para os estudos nas pesquisas narrativas.

Nesta conjuntura, a pesquisa se concretizou a partir de uma proposta de composição de um grupo de discussões e reflexões envolvendo uma turma de licenciandos. Assim, os licenciandos foram convidados a dialogar e refletir de forma individual e coletiva acercadas suas experiências vivenciadas ao longo do curso de licenciatura, em um processo em que as histórias narradas, uma vez partilhadas, se tornaram o caminho e o conteúdo para as discussões, as reflexões e a composição de narrativas carregadas dos sentidos concernentes às experiências vividas, que se tornam a base para o presente trabalho.

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Colaboraram com a pesquisa quatro licenciandos em Física do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), do campus Pontes e Lacerda, que compuseram suas narrativas ao longo do ano de 2013, sendo que neste período encontravam-se no último ano da graduação – 7º e 8º semestres, respectivamente. As narrativas compostas pelos licenciandos se concretizaram a partir de vários textos de campo: questionários de caracterização, memorial de formação, relatórios de estágios, entrevistas narrativas, diários de campo, discussões em grupo filmadas e transcritas, além do caderno de campo do pesquisador.

Respeitando o acordo firmado com os licenciandos, por meio de Termos de Compromisso, em manter o anonimato para evitar mais exposição e por questões éticas que envolvem as pesquisas nas Ciências Humanas, os licenciandos serão identificados, neste trabalho, com nomes de físicos famosos que os próprios licenciandos escolheram para representá-los: Thomson (referência ao físico Joseph John Thomson), Maria Mayer (referência à física Maria Goeppert-Mayer), Tesla (referência ao físico Nikola Tesla) e Newton (referência ao físico Isaac Newton).

Aprendizagens docentes no processo de desenvolvimento profissional docente

Aprender a ensinar e a se tornar professor precisa ser compreendido não como um evento configurado e concebido dentro de um determinado tempo e espaço, mas como um longo, contínuo, complexo e multidimensional processo que se estende no decorrer de todo o percurso formativo do professor.

Pensar os processos formativos e as aprendizagens docentes nesta perspectiva implica em assumir a concepção de formação de professores como um contínuo ao longo da vida. Ou seja, os processos formativos tomam a conotação de evolução e continuidade, superando, portanto, uma ideia simplista de justaposição ou somatório de diferentes e distintas etapas formativas na lógica de uma linearidade estática e mecânica (GARCIA, 1995, 1999; MIZUKAMI et al., 2006; IMBERNÓN, 2009; VAILLANT; GARCIA, 2012). Ao contrário disso, o ponto de vista dos processos formativos contínuos, compreendidos a partir do contexto do desenvolvimento profissional, pressupõe uma dinâmica e complexa articulação de todas as etapas em que “[...] a formação vai e vem, avança e recua, construindo-se num processo de relação ao saber e ao conhecimento que se encontra no cerne da identidade pessoal” (NÓVOA, 1995, p. 25). Também se torna importante a compreensão de que fatores cognitivos, afetivos, éticos,

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crenças e valores, a própria atuação e o contexto, entre outros aspectos que influenciam as aprendizagens da docência ao longo da carreira, precisam ser tomados como fatores relevantes ao se pensar a formação de professores.

Portanto, mesmo que do ponto de vista curricular, a formação dos professores esteja composta por etapas claramente diferenciadas (VAILLANT; GARCIA, 2012), esta precisa manter o aspecto de processo, assegurando “[...] alguns princípios éticos, didáticos e pedagógicos comuns, independentemente do nível de formação em causa” (GARCIA, 1995, p. 55). Sendo assim, os professores estão em constante processo de aprendizagens profissionais e a docência se configura como uma profissão que vai se constituindo cotidianamente em espaços e contextos múltiplos, em experiências reflexivas diversas e nas relações que se estabelecem com os pares e com as instituições educativas nas quais se incorporam.

Essas aprendizagens se potencializam nos processos formativos diversos e se configuram como uma das dimensões do que se tem entendido como “processo de desenvolvimento profissional docente” que, por sua vez, congrega os conhecimentos, as experiências e as estratégias de formação construídos a partir de múltiplos contextos, e “tramados” nos “fios” que compõem as dimensões “pessoais, profissionais, institucionais, e organizacionais” (MONTEIRO, 2003, p. 08), nas quais se encontram envolvidos os professores (GARCIA, 1999, 2009; NÓVOA, 1999; IMBERNÓN, 2010; MIZUKAMI et al., 2006). Logo, é o conjunto desses elementos que vai dando forma e significado a certas maneiras de os professores viverem, compreenderem e desenvolverem a sua docência.

Neste sentido, encontramos as reflexões de Monteiro (2003, p. 239) quando argumenta “[...] ser necessário compreender os diferentes contextos e a natureza em que ocorrem os processos de aprendizagem da docência, considerando os conhecimentos dos sujeitos como elementos de uma prática individual e coletiva”. Isso se declara em virtude de que essas aprendizagens não se dão de forma linear e estáticas, mas se constroem:

[...] como uma aprendizagem plural e complexa, formada pelo conjunto de conhecimentos, crenças, valores, prove-nientes de vários contextos e circunstâncias entrelaçados às diversas experiências e interações vividas pelos sujeitos nas suas histórias pessoais e profissionais que se prolonga por toda a vida profissional. (MONTEIRO, 2003, p. 239)

Desse modo, as aprendizagens profissionais dos professores precisam ser compreendidas a partir de múltiplos contextos e diversas experiências teóricas, além das inúmeras práticas acumuladas ao longo dos seus percursos profissionais

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e pessoais. A vida profissional e os processos formativos que a envolvem estão estritamente imbricadas à vida pessoal de modo que “[...] um percurso de vida é assim um percurso de formação, no sentido que é um processo de formação” (MOITA, 2007, p. 115, grifos do autor).

Aprendizagens docentes evidenciadas na ideia do bom professor

Ao longo da experiência formativa, à medida em que as discussões acerca dos sentidos em torno da profissão de professor e do pensar-se professor foram avançando, os licenciandos foram narrando o que compreendiam a respeito das características de um bom professor. Suas narrativas, nesta perspectiva, trazem os condicionamentos dos sentidos atinentes ao ser professor que construíram ao longo da educação básica, como alunos e, também, novos sentidos arquitetados no processo formativo vivenciado no curso de licenciatura. Penso que esses sentidos nos ajudam a entender o movimento formativo e as aprendizagens docentes que cada licenciando foi construindo:

Então o professor tem que ter um domínio de conteúdo e precisa saber passar o conteúdo, não adianta você saber só para você. Tentar ter uma linguagem o mais clara possível, tentar aplicar as coisas do cotidiano ali [...]. Então é isso, um bom professor de Física tem que ter domínio e ter visão de ser professor e ver esse aluno lá do fundo, para ver o que está acontecendo. Então tem que ser esse conjunto: o domínio da matéria e uma didática boa. [...] eu vou falar o que um bom professor deve ter: quando identificar a dificuldade do aluno, tentar ir atrás dele e ver o que está acontecendo se ele quer fazer ou não. Durante o estágio aprendi que o professor deve ser um mediador do conhecimento, para isso tem de manter postura de respeito com os alunos, tem de ser interativo, dinâmico e dominar o conteúdo com total clareza para saber mediar o que sabe com os alunos. Uma das características muito importante que um professor deve ter é saber respeitar o ritmo da turma, sabendo identificar as dificuldades dos alunos e o andamento de cada um. (Newton)

Ser um bom professor é atuar com compromisso e responsabilidade e gostar do que faz e fazer com muito amor. Então eu penso que é isso, um bom professor é aquele

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que marca os alunos com seu ensinamento, é aquele que faz com que o aluno tenha prazer em ir às aulas dele. Um bom professor tem de saber formular estratégias com seus alunos. Precisa estar sempre se atualizando com novos métodos de aprendizagem e novas tecnologias voltadas para o ensino escolar. (Maria Mayer)

Eu acho assim, que um profissional, que ser um bom professor de Física, eu acredito que ele tem que tentar conseguir aproximar isso ao máximo com o mundo real, seja com uma experimentação, seja com exemplos do cotidiano. Porque se não fica meio vago, você estuda lá aquela coisa meio chata da matemática e você não tem uma conexão real com o dia-a-dia, com as discussões do mundo ecológico, social. Então eu acho que teve uma grande desconexão, porque se a gente pega os PCNs mesmo, eles falam que a Física tem que fazer os alunos entenderem o seu dia-a-dia, pra você poder aplicar, pra você poder pegar a embalagem de um produto eletrônico e você entender os processo físicos que tem ali e isso, infelizmente, não acontece. (Tesla)

Eu penso que para ser um bom professor, primeiramente tem que ter o conhecimento sobre a área de atuação, no meu caso a Física, e já para lidar com os alunos tem que ter conhecimentos em todas as áreas, porque dentro de uma sala de aula você se envolve com tudo desde a situação social dos alunos, psicológico, e muitas outras áreas. Para ser um bom professor, tem que dominar muito bem o conteúdo da sua área, ser muito bom em passar esse conhecimento que ele tem para os alunos, saber deixar as suas aulas mais dinâmicas para os alunos gostarem da sua disciplina. Ser um bom professor é tudo isso e amar muito, mas muito mesmo o que faz, amar a profissão. (Thomson)

Podemos observar que, em suas narrativas, os licenciandos manifestam compreensões e conhecimentos acerca do que entendem por um bom professor, que evidenciam suas aprendizagens docentes. Em linhas gerais, os licenciandos entendem que para ser um bom professor é necessário ter domínio do conteúdo específico, no caso, os conteúdos da Física, e apontam, também, para um conjunto de outros conhecimentos, características, posturas e atitudes por parte do professor que consideram necessários para “saber passar esse conteúdo”.

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No que diz respeito aos conhecimentos do conteúdo específico, os licenciandos não tecem grandes considerações, mesmo que seja o primeiro elemento apontado quando se referem ao bom professor. Importante ter presente que, ao longo de todo o processo da pesquisa, a questão dos conhecimentos específicos sempre foi tratada com muita naturalidade pelos licenciandos e sempre deixaram claro que se sentiam seguros quanto ao seu domínio. Talvez em função disso, em suas narrativas, tornou-se recorrente apontarem como pressuposto o seu domínio e a não necessidade de discuti-lo com mais detalhamentos. Prova disso, é que no período do estágio, por diversas vezes, frisaram que estavam tranquilos quanto aos conteúdos específicos da Física.

Para pensar essa questão busco referências na “base de conhecimento para o ensino” de Shulman (2005, p. 11), para quem o “conhecimento do conteúdo” aparece como a primeira categoria indispensável para a formação do professor. Nessa perspectiva, não há como pensar que um professor possa ser bem-sucedido em sua atuação profissional se não tiver domínio desses conteúdos. Nisso, todos temos de estar de acordo: só conseguirá contextualizar, interagir e problematizar os conteúdos junto aos alunos se tiver os pressupostos teóricos, metodológicos e científicos relacionados a esses conteúdos. Ainda, só poderá empreender as relações da sua área de conhecimento com outras áreas, com os contextos de vivência dos alunos, se tiver a clareza quanto a esses conhecimentos básicos. Afinal, “[...] professores com insuficiente domínio do conteúdo específico com certeza ensinam, mas precariamente, quando não ensinam errado” (MIZUKAMI; REALI, 2010, p. 19).

Por outro lado, o simples fato de o professor ter sólido conhecimento de seu conteúdo específico não garante, necessariamente, que ele se converterá em um professor de excelência, tampouco afiança que esse conhecimento será ensinado pelo professor e aprendido pelos alunos com sucesso. O conhecimento de conteúdo específico “é necessário, mas não suficiente” (MIZUKAMI; REALI, 2010, p. 26), sendo que outros tipos de conhecimento precisam ser construídos conjuntamente com o conhecimento de conteúdo específico e esses outros tipos de conhecimentos são os que compõem a base de conhecimentos e que aqui encontro aproximações como o que os licenciandos sinalizam como os conhecimentos necessários para que o professor possa “passar o seu conhecimento”, nas palavras dos próprios licenciandos.

Quando os licenciandos apontam em suas narrativas para o fato de que um bom professor precisa ter mais do que o domínio dos conhecimentos do conteúdo específico, que precisa “saber passar esse conteúdo”, eles se referem a um conjunto de conhecimentos, características, posturas e atitudes por parte

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dos professores, reconhecidos por teóricos da educação como essenciais para a formação de professores. No entanto, entendo que essas percepções apresentadas pelos licenciandos são oriundas mais de uma perspectiva intuitiva e de uma aprendizagem pela observação reforçada pela vivência das práticas durante o estágio, do que propriamente a partir de um processo organizado e sistematizado com reflexões mais aprofundadas quanto aos seus fundamentos, à sua estrutura, organização, dinâmica e funcionalidade. Um conhecimento construído mais pelo que Vaillant e Garcia (2012) apontam como um processo de “ensaio e erro” do que por um processo consciencialmente articulado. Logicamente que os processos intuitivos não acontecem no vazio, e essas percepções dos licenciandos quanto a esses conhecimentos necessários para “passar um determinado conteúdo”, tenham elementos das disciplinas cursadas ao longo processo formativo. Todavia, suas narrativas explicitavam que esses processos não tinham sido suficientemente propostos ao longo do curso.

Nessa conjuntura, entendo que a fragilidade de compreensão evidenciada está muito atrelada às fragilidades do curso no sentido de que este não trouxe elementos mais consistentes para dar suporte à construção desses conhecimentos com bases mais sólidas. O curso, por mais que fosse uma licenciatura, não estava estruturado sobre a perspectiva da formação do professor, mas traduzia ainda a histórica separação entre área específica e área pedagógica – entre a formação bacharelesca e a licenciatura – com clara ênfase para os conhecimentos específicos da Física.

Por outro lado, é importante ter presente também que esses conhecimentos não poderiam estar plenamente construídos, uma vez que muitos deles só se potencializam efetivamente quando ocorre a inserção e socialização profissional. Ademais, é necessário observar que emanam das experiências da prática, da dinâmica da sala de aula, dos processos de formação contínua e dos contextos da escola para serem continuamente construídos e ampliados. Afinal, as experiências da prática que os licenciandos tiveram contato se resumem àquelas proporcionadas pelos estágios que se configuram como importantes. No entanto, são ainda simulações da prática e não a prática propriamente dita (VAILLANT; GARCIA, 2012). Também são conhecimentos que vão ganhar estrutura e consistência pelos processos de formação contínua que se darão a partir dos processos de inserção e socialização na profissão. Porém, a formação inicial precisa dar conta minimamente de um repertório de conhecimentos nessa direção que possibilite aos futuros professores bases iniciais para se inserirem na profissão, bem como refletir criticamente sobre e a partir desses conhecimentos. É necessário que tenham clareza epistemológica acerca desses conhecimentos e não apenas intuições a respeito deles.

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Mesmo com essas fragilidades apresentadas, no decorrer das suas narrativas, os licenciandos vão apontando para o que entendem serem conhecimentos necessários para o professor “saber passar o conhecimento” e que encontro possíveis aproximações entre essas percepções dos licenciandos com a base de conhecimentos para o ensino de Shulman (2005), recategorizada por Mizukami (2004) no que chama de “conhecimento de conteúdo pedagógico”:

É o conhecimento que transcende uma área específica. Inclui conhecimentos de teorias e princípios relacionados a processos de ensinar e aprender; conhecimentos dos alunos (características dos alunos, processos cognitivos e desenvolvimentais de como os alunos aprendem); conhecimento de contextos educacionais envolvendo tanto os contextos micro, tais como grupos de trabalho ou sala de aula e gestão da escola, até os contextos macro como o de comunidades e de culturas, de manejo de classe e de interação com os alunos, conhecimentos de outras disciplinas que podem colaborar com a compreensão dos conceitos de sua área, do currículo como política em relação ao conhecimento oficial e como programas e materiais destinados ao ensino de tópicos específicos e da matéria em diferentes níveis e conhecimento de fins, metas e propósitos educacionais e de seus fundamentos filosóficos e históricos. (MIZUKAMI, 2004, p. 05)

Evidentemente, as narrativas dos licenciandos revelam que suas compreensões não dão conta de uma apropriação aprofundada desse “conhecimento de conteúdo pedagógico”, tanto é que ficou explicitado que essas fragilidades e inconsistências foram fatores que contribuíram significativamente para o desencadeamento de muitas angústias, tensões e desestabilizações no momento das experiências da prática durante o estágio. A convicção de que o simples domínio do conteúdo específico, segundo suas visões, não seria garantia para uma boa atuação profissional, os colocava na expectativa de compreenderem o que mais seria necessário para uma atuação docente de forma efetiva e eficiente. E, neste contexto, suas narrativas deixam implícito de que não tinham clareza e segurança em relação a esses conhecimentos, da mesma forma que manifestavam ter acerca dos conhecimentos específicos da área da Física.

Para além disso, ao pensar nas narrativas dos licenciandos, o que se mostra com maior ênfase é uma compreensão do processo de ensino e aprendizagem ainda bastante marcado pela centralidade do professor ou, pelo que Lima e Grillo (2008) denominam de “pedagogia centrada no professor” em que este entende

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que sua responsabilidade está pautada no esforço de encontrar a melhor forma, a melhor metodologia, o uso da tecnologia se for preciso, usando a linguagem mais clara, buscando exemplos do cotidiano. Todo este esforço e empreendido para conseguir “passar o seu conhecimento” ao aluno.

Ao longo de suas narrativas, os licenciandos vão apresentando expressões que dão indícios dessa compreensão mais transmissiva do conhecimento: “passar o conhecimento”; “transmitir o seu conhecimento para os alunos”; “estão todos ali com um só objetivo que é de repassar seu conhecimento aos alunos”. Ao discutir o que caracteriza e distingue o trabalho do professor ou a especificidade profissional do professor, Roldão (2004; 2005; 2007) argumenta que é a ação de ensinar ao que, logo em seguida, chama a atenção para a necessidade, nessa perspectiva, de se discutir o que se entende, especificamente, por “ensinar”. Concernente a essa questão, a autora pontua que “[...] no que respeita à representação do conceito de ensinar, a sua leitura é ainda hoje atravessada por uma tensão profunda entre o ‘professar um saber’ e o ‘fazer outros se apropriarem de um saber’” – ou melhor, “fazer aprender alguma coisa a alguém” (ROLDÃO, 2007, p. 94).

Tomando um posicionamento a partir de uma análise histórica, a autora afirma que o entendimento de “[...] ensinar como sinônimo de transmitir um saber deixou de ser socialmente útil” (ROLDÃO, 2007, p. 95), uma vez que as sociedades evoluíram e alargaram as formas de acesso ao conhecimento de modo que em seu entendimento, nas sociedades atuais “ensinar configura-se essencialmente como a especialidade de fazer aprender alguma coisa a alguém” (ROLDÃO, 2007, p. 95) no sentido de se criar condições para que o outro aprenda e se aproprie de algo. O simples fato de se disponibilizar informações não garante aprendizado, é necessário que alguém – o professor – organize e construa uma estrutura de ação para que o outro – o aluno – possa aprender no engajamento ativo com o processo. Para isso, é necessário que o professor construa um vasto campo de conhecimentos a fim de que possa desempenhar com êxito a sua ação de ensinar. Para a autora, o professor, compreendido como profissional do ensino, é “aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar” (ROLDÃO, 2007, p. 101). Longe de estar superada, a compreensão de ensinar como “professorar”, passar ou transmitir um conhecimento para alguém, ainda está muito presente nas concepções e ações pedagógicas dos professores e os licenciandos manifestam ainda, em muitos momentos, essa compreensão.

Muito embora, é preciso deixar claro que, também, em muitos momentos as narrativas dos licenciandos apontavam para outras concepções de ensino, de alunos, do próprio papel do professor e da escola, que dão indícios de que viviam

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um período de ressignificações conceituais em que a miscelânea conceitual ora os colocava com posturas mais conservadoras e tradicionais, em perspectivas mais transmissivas do conhecimento, ora com posturas mais progressistas em relação ao processo educativo com ênfase mais na perspectiva do que Roldão (2007) defende, ou seja, dos processos de ensino compreendidos como espaço de mediação e construção de conhecimentos.

Penso ser importante chamar atenção ainda, a partir das discussões relacionadas ao bom professor, para o fato de os licenciandos mencionarem como característica deste a preocupação com a aprendizagem dos alunos demonstrada pelo professor, ficando atento às dificuldades que apresentam e se dedicando a resolvê-las a partir de uma relação mais próxima com esses alunos. Preocupação e atenção que, em alguns momentos, vão além da questão da aprendizagem e se estendem às questões sociais e psicológicas dos mesmos.

Tais posturas podem indicar em um primeiro momento uma atitude paternalista em relação aos alunos, remetendo ainda à concepção de ensino da “pedagogia centrada no professor”. Esta é uma compreensão que acaba por construir uma estrutura de dependência nos alunos, enfraquecendo os processos de desenvolvimento de sua autonomia na busca e construção do conhecimento. Também pode denotar que os licenciandos estão internalizados do “transbordamento da escola” apontado por Nóvoa (2010), quando o professor é convocado a assumir tantas funções na educação das crianças e jovens que acaba por deixar de cumprir aquilo que seria o elementar na profissão de professor que é a garantia do ensino e da aprendizagem de um conjunto de conhecimentos formais proposto por um currículo pensado a partir de um determinado contexto social.

Por outro lado, ao tomar novamente a “base de conhecimento do professor” proposta por Shulman (2005), encontraremos em uma de suas categorias, ou um dos conhecimentos que compõe essa base, o “conhecimento dos alunos e suas características” (SHULMAN, 2005, p. 11). O autor destaca a importância de os professores construírem um conjunto significativo de informações acerca dos alunos com os quais trabalham para que o seu ensino atinja maior efetividade. Quando, ao longo das narrativas, os licenciandos insistem na necessidade de os professores terem certo “cuidado” para com os alunos, buscando compreendê-los em suas dimensões sociais e psicológicas, compreender suas motivações pelo ensino ou sua falta de motivação, e buscar “dar o melhor de si para os seus alunos”, entendo que os licenciandos se aproximam do que Shulman (2005) aponta como um dos conhecimentos a compor sua base de conhecimentos para o ensino.

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Nessa mesma direção, os licenciandos ainda apontam para uma discussão que remete para a questão de que ser um bom professor implica amar a profissão e gostar do que faz. Essa questão apareceu em muitos momentos das discussões que construíamos a respeito do ser professor, e, em muitos momentos, foram encaminhadas no sentido de tratar-se de algo um pouco messiânico. Em outras vezes, trazia o sentido de que, diante a precarização das condições de trabalho e desvalorização social que a profissão vem sofrendo, ser uma forma de encontrar algum “conforto”, alguma justificativa para a profissão e isso se concretizava justamente em um suposto “amor incondicional” que é capaz de superar as adversidades em prol do seu inegável contributo para a vida das pessoas e para a sociedade. (GATTI et al., 2010; ALMEIDA; NUNES; TARTUCE, 2009).

Por outro lado, as narrativas dos licenciandos me levam a pensar, também, nas discussões propostas por Day (2004) a partir do que entende pela “paixão pelo ensino” em que tomando as suas experiências formativas ao longo da vida, se dá conta de que dentre os professores que lhe tinham marcado significativamente estavam “alguns que tentavam, de forma apaixonada, entusiasmar os seus alunos com um amor pela aprendizagem, notando quando algo estava errado nas pessoas e agindo em conformidade” (DAY, 2004, p. 22). Para o autor, esses professores estavam preocupados em “assegurar, da melhor forma possível, uma comunicação que conseguisse ir ao encontro dos interesses e necessidades dos alunos” (DAY, 2004, p. 22). A partir dessas percepções, o autor, de forma crítica, resgata a componente emocional no processo de desenvolvimento profissional dos professores e encontra na “paixão” pela profissão um dos requisitos para tornar-se um bom professor. Um dos desafios que lança é justamente, diante de todas as adversidades que envolvem a profissão de professor nos contextos atuais, como construir condições que possibilitem manter essa paixão ao longo da carreira. Entende que:

Os professores apaixonados pelo ensino têm consciência do desafio que enfrentam nos contextos sociais em que ensinam, têm um sentido de identidade claro e acreditam que podem fazer a diferença na aprendizagem e no aproveitamento escolar de todos os seus alunos. Interessam-se profundamente por eles e gostam deles. Interessam-se, também, por aquilo que ensinam e como ensinam, e têm sempre a curiosidade de aprender sobre estes aspectos para poderem tornar-se, e continuarem a ser, mais do que meramente competentes. (DAY, 2004, p. 23)

A questão desse cuidado e interesse pela aprendizagem dos alunos e a preocupação para com o aluno enquanto ser humano, demonstrada pelos

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professores, foi evidenciada pelos licenciandos. Ao longo das discussões, percebi que os licenciandos tinham essa questão como algo fundamental para o seu entendimento profissional e assumiam como característica de sua identidade docente. Manifestam-se, também, a esse respeito quando percebem no professor regente um cuidado especial e uma confiança depositada em suas atuações no estágio que os encorajava a desenvolver suas atividades com segurança. Levam essa percepção para o seu trabalho durante o estágio, e, por diversas vezes, suas narrativas demonstram essa atitude em relação aos seus alunos.

Por outro lado, entendo que essas percepções por parte dos licenciandos se deram, também, fundamentalmente pela experiência, marcada mais pela intuição do que por bases teóricas que lhes permitissem realizar reflexões fundamentadas a esse respeito. No fundo, esse cuidado é algo construído a partir da visão de alunos que tinham, da falta que sentiram desse cuidado de seus professores ou então, da satisfação por sentirem esse cuidado que seus professores – tanto da educação básica, quanto do curso de licenciatura e até mesmo do professor regente no estágio – e que incorporam agora como características do bom professor. O sentir-se no lugar do aluno e experimentar situações nessa direção os levou a incorporar esses sentidos em suas posturas agora como futuros professores. Não fazem referências a construções teóricas a esse respeito porque talvez não estiveram engajados em discussões nessa perspectiva ao longo de seu processo formativo.

A esse respeito, Gatti (2014), ao propor uma grande síntese relacionada às pesquisas a respeito da formação inicial no Brasil, argumenta que na análise das grades curriculares dos cursos de licenciatura “há quase ausência nesses cursos de formação em conhecimentos sobre o desenvolvimento cognitivo e socioafetivo de crianças, adolescentes e jovens, suas culturas e motivações e suas implicações para o ensino” (GATTI, 2014, p. 39). Quando os licenciandos falam dos alunos, das relações estabelecidas com eles, essencialmente, estão se referindo à necessidade de se estabelecer uma boa convivência para organizar a sala de aula e criar um ambiente propício para o ensino e a aprendizagem, incentivando os alunos a se engajarem no processo, e, por conseguinte, se sentirem aceitos e bem acolhidos pelos professores. Todavia, não fazem referência à questão de compreenderem o desenvolvimento cognitivo desses alunos para então, como professores, desenvolverem ações e estratégias que levem em consideração essas condições e processos cognitivos e sejam pensadas a partir delas para se garantir a aprendizagem. Silenciam-se em relação a essa questão, muito provavelmente porque não tenham elementos para pensarem a respeito delas, o que evidencia fragilidades em seu processo formativo.

Aprendizagens da docência na formação inicial: os sentidos sobre o ser professor a partir da ideia do bom professor

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Considerações finais

Em linhas gerais, as narrativas dos licenciandos revelam o intenso, complexo e multidimensional processo de aprendizagens profissionais nos quais estavam envolvidos e que se potencializavam em suas primeiras experiências na docência durante os estágios. Tal contexto endossa, uma vez mais, a importância dessa etapa formativa na vida profissional desses futuros professores. Isso porque manifestam significativas aprendizagens profissionais quando sinalizam para as características, atitudes, posturas, competências que identificam como caracterizadoras dos bons professores, daqueles que, em suas palavras, “sabem passar o conteúdo” e também na compreensão da docência como uma profissão essencialmente relacional.

No entanto, é importante ter presente também, que os conhecimentos da e para a docência, evidenciados pelos licenciandos, não poderiam estar plenamente construídos, uma vez que muitos deles só se potencializam efetivamente quando ocorre a inserção e socialização profissional. São conhecimentos que emanam das experiências da prática, da dinâmica da sala de aula, dos processos de formação contínua e dos contextos da escola para serem continuamente construídos e ampliados. Também são conhecimentos que vão ganhar estrutura e consistência pelos processos de formação contínua que se darão a partir dos processos de inserção e socialização na profissão. Porém, a formação inicial precisa dar conta minimamente de um repertório de conhecimentos nessa direção que possibilite aos futuros professores conhecer as bases iniciais para se inserirem na profissão, bem como refletir criticamente sobre e a partir desses conhecimentos.

Nesse sentido, as discussões a partir deste trabalho, nos remetem, enquanto professores formadores de professores, a nos engajarmos na proposição de projetos de formação inicial que realmente oportunizem aos licenciandos sólidos conhecimentos com os quais possam se inserir na profissão e sirvam de base para as suas investidas em processos formativos contínuos ao longo da carreira.

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História da educação profissional da Escola Técnica Federal de Mato Grosso

Flavia Geane dos Santos

Introdução

O presente texto é resultado parcial de uma pesquisa de Mestrado que está em andamento, na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e que objetiva estudar a Escola Técnica Federal de Mato Grosso (ETFMT), uma das instituições que deram origem ao atual Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT), instituição de ensino centenária que ministra educação profissional pública, e que tem assumido seu papel de relevância no contexto educacional mato-grossense.

Desse modo, este estudo busca contribuir com o entendimento acerca dos processos de constituição e desenvolvimento da escola, no período de 1968 a 2002. Este recorte temporal, que compreende 35 anos, é o período em que a escola vigorou com essa denominação, quando, em 2002, sofreu uma nova reestruturação, transformando-se em CEFET Mato Grosso.

As investigações partiram da perspectiva histórica, no âmbito da História da Educação, especificamente, da Educação Profissional, no contexto de Mato Grosso, por ser a única instituição pública que oferece ensino profissional no estado.

A instituição já foi tema da pesquisa de Nádia Cuiabano Kunze, que se dedicou a estudar o período demarcado entre a sua gênese, em 1909, com a denominação de Escola de Aprendizes Artífices de Mato Grosso (1909-1941), até sua configuração como Escola Industrial Federal de Mato Grosso (1942-1968). Em 1968, com sua elevação à condição de Técnica, uma nova fase é iniciada; novas implicações e desdobramentos se apresentam, assim como a necessidade de entender esse novo momento institucional.

Desta forma, os indícios apontam que sua elevação à condição de Técnica resultou de um projeto governamental que percorreu as escolas que denominavam Industriais, para reestruturá-las e transformá-las em Técnicas, elegendo-as como caminho para a modernização do país, em decorrência da consolidação da indústria e do próprio Estado por meio de suas empresas, para promover o desenvolvimento econômico do país e moldá-la à ideologia dos países capitalistas que haviam conquistado a supremacia na economia mundial.

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Estudar a ETFMT, na perspectiva da História da Educação, fornecerá novos subsídios históricos concernentes ao seu funcionamento e poderá dar visibilidade institucional, na comunidade, ao destacar a sua relevância social na qualidade de instituição formadora referenciada de quadros técnicos para a região. Além disso, contribui com o campo da História da Educação, em especial, a da Educação Profissional.

Resolvemos, então, dar continuidade ao trabalho pioneiro de Kunze (2011), no sentido de fazer o registro desse novo momento histórico que abarca o regime ditatorial e o esforço de redemocratização do país. A vida da Escola Federal Técnica, marcada por metamorfoses, reflete, com evidência, as políticas educacionais implementadas, desde o regime ditatorial, iniciado em 1964, até seu ocaso, ao começo da era Lula, em 2002. Como não poderia deixar de ser, temos o cuidado de vincular nosso trabalho de pesquisa ao contexto político e social da época pesquisada.

A Escola Técnica Federal de Mato Grosso teve sua criação no ano de 1968. Porém, sua gênese remete ao ano de 1909, com a criação da Rede Federal de Educação Profissional, instituindo a Ensino Técnico no Brasil, fundada, a princípio, pelas escolas nomeadas como Escola de Aprendizes e Artífices, modificada para Escola Industrial em 1942, e em seguida, em Escola Técnica Federal no ano de 1968, depois em 2001, em Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET, e em 2008, em Instituto Federal de Mato Grosso, campus Cuiabá, o qual vigora até a atualidade.

Assim, em seguida, será apresentado o histórico da instituição, recorrendo à pesquisadora Nádia Cuiabano Kunze, que trabalhou a historicidade da escola desde sua criação em 1909 até 1968.

O florescer da escola: Escola de Aprendizes Artífices (1909-1942)

De acordo com Kunze (2006), a instituição teve sua gênese com a criação da Rede Federal de Educação Profissional por meio do Decreto nº 7.566 de 23 de setembro de 1909, pelo então presidente Nilo Procópio Peçanha, que criou 19 “Escolas de Aprendizes Artífices”, estabelecendo uma escola em cada capital, com a intenção de oferecer o ensino básico, primário e gratuito aos filhos dos ‘desfavorecidos da fortuna’.

Essa modalidade de ensino é marcada por características e traços assistencialistas presentes na legislação, as quais mostram que essa modalidade de ensino é direcionada às “classes menos favorecidas”, para os “desvalidos da sorte”, para os “abandonados”, dentre outras denominações. De acordo com Kuenzer (1985), as classes mais favorecidas gozariam da educação geral,

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propedêutica, e, ao término dos estudos, ocupariam as posições de poder em função do conhecimento adquirido. Além disso, a criação dessa rede teve intenção política de sedimentar a nova forma de governo vigente “República”, com o ideário de que por meio do oferecimento de educação para a população mais carente, considerada ociosa, evitaria a vadiagem, rebeliões e levantes contra o governo, afastando as ideias socialistas que surgiam naquela época no país.

Em relação à instalação de uma dessas escolas em Mato Grosso, sua criação estaria voltada para ocupar a juventude, pois não havia necessidade de formação de mão de obra, visto que a economia regional na época era predominantemente agrícola. Essa ideia é corroborada por Cunha (1975) e Kuenzer (1988) que acreditam que, pela distância geográfica e uma indústria inexpressiva nas cidades, a finalidade de sua criação estaria voltada para ‘contenção dos jovens desocupados’, que para os legisladores, se apresentavam como problema relacionado à perturbação da ordem e da paz.

Esses vestígios marcam a educação profissional no Brasil, sua característica dualista e paternalista, resultado do processo de formação social do país, marcado pelo preconceito na maneira divisória do trabalho manual em oposição ao trabalho intelectual. Esses princípios contraditórios acompanharam a legislação educacional, que é resultado da sociedade e reflete as desigualdades e preconceitos existentes no país, e são reproduzidos até os dias de hoje por meio do marco divisório entre educação profissional e educação geral (KUENZER, 2007).

Sua instalação em Mato Grosso, como Escola de Aprendizes Artífices de Mato Grosso (EAAMT), ocorreu em 1º de janeiro de 1910, em imóvel do Estado, locado, pela falta de prédios do governo na região. O então diretor foi indicado pelo governo local e nomeado pelo Presidente da República, sendo escolhido o bacharel em Letras João Pedro Gárdes, personalidade conhecida nos contextos políticos e educacionais do Estado.

Para o regime escolar foi feita opção pelo externato, por não gerar muitas despesas, uma vez que os alunos estariam na escola apenas em período do dia, reduzindo gastos com alimentação, vestuário, dormitório, entre outros. A modalidade de ensino foi o ofício, gratuito e primário, voltado para a formação de trabalhadores, que advinha da herança colonial que inseriu a ideia do ensino do trabalho manual para os mais pobres e o ensino das letras aos seus filhos para direção dos rumos do país, herança da época da colonização.

Assim, se havia a destinação do trabalho pesado e sujo (manual, evidentemente) ao escravo, havia, ao mesmo tempo, atividades manuais que os brancos livres queriam que ficassem preservadas para si. (CUNHA, 2000, p. 90).

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Dentre os cursos escolhidos para serem ofertados, foram selecionados os de alfaiataria, carpintaria, ferraria e sapataria, e, algum tempo depois, os de selaria e tipografia, justificados em razão da necessidade de mão de obra para comércio nas cidades de Mato Grosso que estavam em crescimento em meados do século XIX. Os alunos que frequentavam a escola precisavam preencher alguns requisitos para lá estudarem, como idade mínima de 10 anos e máxima de 13 anos, entrega de requerimento de matrícula, em que era necessário comprovar as informações com auxílio de atestado de autoridade competente, com exceção dos casos em que o diretor da escola conhecesse pessoalmente as condições dos candidatos. Os cursos sofreram alteração de denominação em 1926 passando para: feitura de vestuário (alfaiataria), trabalhos de madeira (marcenaria), feitura de calçados (sapataria), trabalhos de metal (ferraria), trabalhos de couro (selaria) e artes gráficas (tipografia) (KUNZE, 2006).

Com a ascensão de Getúlio Vargas, em 1930, ao governo do país, diversas providências econômicas são adotadas, como a política do café, o mercado interno, o capitalismo internacional e o incentivo à industrialização (FAUSTO, 2015). No ano de 1934, com a nomeação de Gustavo Capanema para o Ministério da Educação e Saúde Pública, a criação do Estado Novo, a modernização da industrial, demandaram restruturações na educação profissional, resultando na expedição da Lei n.º 378, de 13 de janeiro de 1937, que inseriu grandes reestruturações no ensino: primeiramente, alterou a denominação de Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) para Ministério da Educação e Saúde (MES). Em segundo lugar, classificou o ensino em vários ramos: industrial, agrícola, comercial e doméstico. A reformulação do ensino industrial e seus desdobramentos serão apresentados a seguir. O terceiro ato transformou as Escolas de Aprendizes Artífices em Liceus Industriais:

Art. 37. A Escola Normal de Artes e Officios Wencesláo Braz e as escolas de aprendizes artífices, mantidas pela União, serão transformadas em lyceus, destinados ao ensino profissional, de todos os ramos e gráos.

Com essa nova denominação, as escolas iniciaram uma mudança do ensino de ofícios para o ensino industrial, decorrente da modernização da produção em avanço no país. A implantação desse novo tipo de ensino ocorreu apenas em 1941, por meio da Lei Orgânica do Ensino Industrial nº 4.073 de janeiro de 1942.

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Uma nova fase: o Liceu Industrial de Mato Grosso (1942-1965)

Em Mato Grosso, a transformação da EAAMT em Liceu Industrial de Mato Grosso (LIMT) não foi imediata com a edição da lei. Levou cinco anos para que sua mudança ocorresse por meio da Circular nº 1.971, de 5 de setembro de 1941.

Internamente, as mudanças advindas da legislação se limitaram às formas de produção e compilação da formação humana e profissional de Ofícios (manuais) para Industrial (maquinário), e esta reestruturação não alterou as estruturas físicas, os cursos, o espaço, os servidores, etc. A escola, enquanto Liceu Industrial de Cuiabá, vigorou por apenas um ano, quando no ano seguinte, em 1942, com a Reforma Capanema, mais uma vez, as escolas da Rede de Educação Profissional passaram por novas reestruturações, apresentadas em sequência.

Em 1942, o antigo LIMT se transformou em Escola Industrial de Cuiabá, por meio do Decreto-Lei n° 4.127, de 25 de fevereiro de 1942, que reorganizou as escolas da Rede Federal de Educação Profissional, dividindo-as em Técnicas e Industriais de acordo com sua localização regional. Como a região do estado de Mato Grosso naquela época era considerada como de pequena expressão industrial, sendo sua economia, em grande parte baseada na pecuária, com incidência de produção açucareira, extração de borracha e ervateira, a escola recebeu a denominação de Industrial.

Foram aproveitadas as mesmas estruturas do antigo LIMT e mantido também o diretor Orlando Nigro. A sede da escola era arrendada até o ano de 1945, quando por meio do interventor Júlio Muller, utilizando-se do Decreto-lei nº 643, de 19 de fevereiro de 1945, desapropriou o terreno, doando-o à escola, e iniciando a construção do prédio próprio. Tal obra foi finalizada apenas em 1958. Os alunos ainda mantinham as mesmas características da primeira configuração como EAA, formados por meninos pobres, com idade entre 12 e 19 anos, sendo a maioria de cor parda, nascida no próprio estado, vindos da capital e regiões próximas.

Com a promulgação da reforma do ensino industrial ministrado nas instituições da Rede Federal e do seu novo regulamento em 19591, os variados cursos industriais básicos e os de mestrias se extinguiram e, em substituição a eles, concebeu-se um único curso ordinário de orientação profissional – o Industrial Básico – pertencente ao Primeiro Ciclo do Ensino Médio.

O tipo de ensino foi o de mestria, do Primeiro Ciclo, até a criação do novo regulamento em 1959, que extinguiu os cursos de mestria e industrial

1 Lei n. 3.552, de 16 de fevereiro de 1959 e Decreto n. 47.038, de 16 de outubro de 1959, respectivamente.

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básico, sendo implantado na EIC, em 1962, com a denominação de curso do ginásio industrial.

A Escola Industrial de Cuiabá ministrará os seguintes cursos de formação profissional: I. Ensino industrial básico: 1. Curso de serralheria. 2. Curso de marcenaria. 3. Curso de artes do couro. 4. Curso de alfaiataria. 5. Curso de tipografia e encadernação. II. Ensino de mestria: 1. Curso de mestria de serralheria. 2. Curso de mestria de marcenaria. 3 Curso de mestria de artes do couro. 4. Curso de mestria de alfaiataria. 5. Curso de mestria de tipografia e encadernação. (KUNZE, 2011, p. 152)

Em 1965, o Decreto-Lei nº 4.759, de 20 de agosto de 1965, inseriu o termo Federal para as Universidades e Escolas Técnicas Federais. Regulamentada na EIC pela Portaria ministerial nº 239 de 3 de setembro de 1965, como Escola Industrial Federal de Mato Grosso; essa denominação teve seu ocaso em 1968, em decorrência de reestruturação interna advinda da instância superior para alcançar o patamar de Técnica, fatos que serão apresentados a seguir.

Transição entre a Escola Industrial Federal e a Escola Técnica Federal de Mato Grosso

As primeiras informações apontam que o período de transição entre a EIFMT e a ETFMT iniciou com a chegada de Juscelino Kubitschek à presidência do Brasil em 1956, que desenvolveu um plano de metas para diferentes setores do país, com 31 objetivos, divididos em seis grupos: energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e a construção de Brasília. (FAUSTO, 2015). Essa nova realidade proporcionou um momento considerado de estabilidade política e crescimento econômico. As facilidades oferecidas pela abertura ao país ao capital estrangeiro atraíram as indústrias automobilísticas que se instalaram em São Paulo na década de 1960.

O reflexo do crescimento industrial, e o desenvolvimento e a modernização das industriais e dos meios de produção, bem como a modernização da produção e o aumento da demanda por mão de obra especializada nas fábricas denunciavam a necessidade de reformulação da formação do trabalhador, exigindo que o ensino industrial acompanhasse esse desenvolvimento, o que não estava ocorrendo com as escolas industriais, criadas para serem referência nessa modalidade de ensino, em especial as da Rede Federal de Educação Profissional.

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Segundo Kunze (2011), em Brasília aconteceu a I Mesa Redonda Brasileira de Educação Industrial, em três momentos, em São Paulo, Belo Horizonte e Salvador. Nesse evento foram debatidas questões de ordem organizacional do ensino industrial, tais como falhas, acertos, conteúdos, etc. Estavam presentes diversas autoridades, como Ministro, representantes da Diretoria de Ensino Industrial (DEI) e da Comissão Brasileiro-Americano de Ensino Industrial (CBAI) e os diretores das Escolas Industriais da Rede Federal.

Em resposta às discussões, houve a expedição da Lei n 3.552, de 16 de fevereiro de 1959, que as transformava em autarquias, com autonomia financeira, administrativa e didática. A partir desse momento, as escolas da rede não tinham mais um currículo único, nem a centralização das decisões pela DEI e MEC, sendo assumidas as decisões por um órgão executivo da escola que coordenava as atividades escolares, composta por conselheiros. Oriundo de um projeto de reestruturação para melhorias e adaptações das Escolas, no ano de 1963, a DEI enviou seu supervisor de Escolas Federais, Jeremias Pinheiro da Câmara Filho, à EIFMT, avaliando as condições da escola para uma possível transformação em Escola Técnica. Após averiguação por parte do inspetor, foram apresentados alguns pontos que precisavam ser adequados para a elevação à condição de técnica da escola, o que rapidamente foi priorizado pelo Conselho de Representantes e Diretor Executivo.

Com isso, iniciaram a revisão do Regimento Interno e a inserção de normas reguladoras que permitiram a criação e implementação de cursos técnicos, que era uma das condições necessárias para sua elevação. A criação de uma comissão de estudos para oferecimento de cursos técnicos via Resolução nº 4 de 26 de maio de 1965, que levantou a necessidade de dois cursos: Técnico de Estradas e Técnico de Eletrotécnica, e foi feita a opção pelo Curso de Técnico de Eletrotécnica devido ao limitado orçamento e pelo contexto do estado de Mato Grosso em que “[...] a energia elétrica começava a receber investimentos para a resolução do secular problema de insuficiência desse recurso”. (KUNZE, 2011, p. 17). Nesse mesmo ano, foi expedida a Lei nº 4.759 de 20 de agosto de 1965, que alterava a denominação qualificando-as como federais. A referida lei foi ratificada por meio da portaria nº 239 de 3 de setembro de 1965, que a transformou em Escola Industrial Federal de Mato Grosso.

Em 1966, assume o diretor da EIC, Dr. José Augusto de Almeida, devido a desentendimentos internos entre o membro do conselho, professor Darwin Monteiro da Silva, e o então Diretor, Orlando Nigro, que chegando ao MEC solicitou a ambos o ressarcimento do erário, culminando na renúncia do Diretor Orlando Nigro e na renúncia do professor Darwin do conselho, ficando apenas com o cargo de professor (KUNZE, 2006).

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Então, foi procedida a visita à escola do Supervisor das escolas industriais da DEI da quarta região, Rafael Vandolfo, em 31 de maio de 1968, para avaliar as novas condições da escola, que em resumo, apontou que a escola possuía as condições necessárias para a promoção, e em seguida, foi expedida a portaria nº 331 de 17 de junho de 1968, transformando-a em Escola Técnica Federal de Mato Grosso. Nessa mesma portaria foram alteradas as denominações de mais oito escolas da rede.

Esses acontecimentos e seu contexto político marcam uma série de ações para reestruturar as escolas da rede, tornando-as Técnicas para promover a modernização do país por meio das escolas técnicas, devido ao momento político, econômico, elegendo as Escolas Técnicas Federais como um dos caminhos para esse desenvolvimento. Para alcançar esses objetivos, como aponta Machado (1989), foram consolidados mediante esses decretos do Estado Ditatorial para guiar a política educacional em favor das metas de segurança e de desenvolvimento que se apresentavam por meio do controle, na repressão, e na promoção social.

Considerações iniciais

Ao se realizar a pesquisa acerca da história da Escola Técnica Federal de Mato Grosso, percebe-se que ela está ligada com a própria história da Rede Federal de Educação profissional, pelo fato de a escola ser um reflexo da sociedade, percebemos que ela acompanhou as mudanças, ora advindas da política, ora oriundas da sociedade com toda a qualidade.

Mesmo que a ETFMT esteja localizada em uma região predominantemente agrícola, voltada para o Agronegócio, conseguiu alcançar a condição de técnica, resultado do esforço coletivo para cumprimento das exigências da estância superior de ensino ao qual estava subordinada. Todas as transformações e mudanças ao longo de mais de um século de vida, reafirmam o comprometimento da escola na qualidade de suas ofertas educacionais de mão de obra capacitada para responder às necessidades do mundo do trabalho.

A nova condição de Técnica inseriu novas reestruturações para dar conta dos desafios e necessidades do processo educacional, demonstrando sua dedicação e capacidade no percurso dessas novas mudanças emergentes e sua entrega para alcançá-los.

É assim que a Escola Técnica de Federal de Mato Grosso, atual IFMT, se insere durante sua existência, e tem assumido o papel de destaque no contexto educacional mato-grossense desde sua criação até a atualidade. Sendo que nunca

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abandonou seu verdadeiro papel de formar profissionais para atuar no mercado e na sociedade em geral, colaborando com a formação de cidadãos cientes de seus deveres e direitos na busca de uma sociedade mais justa.

Finalmente, é preciso destacar que essas são as primeiras informações levantadas, passíveis de diferentes interpretações. Todavia, ao nos voltarmos intimamente, vê-se que, desde sua criação até os dias de hoje, a escola impõe respeito e ocupa lugar de destaque na memória e coração dos que nela vivenciaram e vivenciam sua história.

Referências

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PIBID de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso:

contribuições dos portfólios

Lilian Auxiliadora Maciel Cardoso

Este artigo toma como base a experiência de um grupo de Licenciandas em Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá em processo de iniciação à docência e remete-nos a uma investigação realizada no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação dessa instituição de ensino superior, cuja problemática investigada foi: como o processo formativo foi significado/ressignificado por esse grupo vinculado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) da UFMT?

A abordagem metodológica adotada na investigação realizada aproxima-se da pesquisa narrativa de Connelly e Clandinin (2011), em que a narrativa é fenômeno e método de estudo, e contou com a colaboração de nove estudantes bolsistas da área de Pedagogia. Neste espaço, o recorte feito focaliza os portfólios produzidos durante a iniciação desse grupo para destacar algumas de suas contribuições e significações construídas no processo formativo. Entre essas, podemos citar a produção de portfólio como uma estratégia formativa capaz de fomentar a reflexão, a avaliação das próprias experiências e de dar visibilidade a processos específicos e coletivos vividos com o grupo.

Identificada como um período de intensas relações e aprendizagens, que possibilitou exercitar a reflexão como estratégia para ações mais consequentes, como possibilidade de produzir conhecimento pessoal e profissional, a iniciação docente para esse grupo foi um momento importante no processo de mudança pessoal e na transição de aluna para professora.

O cenário

O PIBID, cenário em que a autora deste artigo e as alunas do curso de Pedagogia protagonizaram processos formativos, surgiu no Brasil no contexto da formulação da Política de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, marcado por políticas públicas que buscavam reformular os processos educativos no Brasil tendo em vista a melhoria da educação. Em

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2009, com a ampliação das áreas de abrangência do programa, a Pedagogia foi inserida no Projeto Institucional de Iniciação à Docência da UFMT. A expansão desse programa no tocante às bolsas ofertadas e áreas contempladas foi gradativa.

Como destacado em Cardoso (2016), a experiência é um elemento central, tanto no PIBID, quanto na metodologia da pesquisa desenvolvida. Esta toma como base a concepção de experiência de Dewey (1971, p. 29), o qual compreende como tarefa do educador experiente “ver em que direção marcha a experiência”. Assim, considerando a experiência como uma força em marcha, que afeta e é afetada pelas condições internas de seus protagonistas e externas do lugar em que se passa, retomo aqui a experiência com o grupo PIBID/Pedagogia/UFMT no campus de Cuiabá com o uso de portfólio como estratégia de formação e de pesquisa.

A formação de professoras, entendida como um processo contínuo de desenvolvimento (GARCIA, 1999), abarca em seu “continuum experiencial” (DEWEY, 1971, p. 23) os processos específicos vividos na formação acadêmico-profissional (DINIZ-PEREIRA, 2015), na indução/iniciação docente e na formação em serviço. Com esse grupo, pude viver experiências novas, tanto como formadora de professores, quanto como pesquisadora. Embora já tivesse uma história no campo da formação de professores, esse programa era algo novo para mim, para as colaboradoras da pesquisa e para a área de Pedagogia. Era nossa experiência inaugural.

A melhoria da formação de professores dos diferentes níveis de ensino, assim como hoje, era apresentada como estratégia necessária à melhoria da qualidade da educação. Docentes universitários vinham buscando conquistar maior titulação, com decorrente ascensão na carreira, melhoria no salário e possibilidades de atuação mais ampla no ensino e na pesquisa, o que vai repercutir nas condições de trabalho.

Movida por injunções de ordem pessoal e profissional, após alguns meses vinculada ao PIBID, como coordenadora da área de Pedagogia no campus de Cuiabá, ingressei no Programa de Pós-Graduação em Educação/UFMT para Doutoramento. Nesse processo, fui me aproximando e sendo seduzida pela abordagem teórico-metodológica da “Narrative inquiry” (CLANDININ; CONNELLY, 2011). Investi esforços buscando compreender as significações/ressignificações do processo formativo do grupo de licenciandas do curso de Pedagogia no PIBID da UFMT, que resultaram na tese “Os processos formativos no Programa de Iniciação à Docência da UFMT: a experiência de um grupo de Licenciandas em Pedagogia” (CARDOSO, 2014).

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Esse grupo era constituído só por mulheres, entre as quais, nove estudantes do curso de Licencitaura em Pedagogia que colaboraram com a pesquisa, uma pedagoga/professora da rede municipal de ensino em exercício na sala de apoio (destinada ao atendimento específico das dificuldades de aprendizagem dos alunos do ensino fundamental), que assumiu a função de supervisora, e uma pedagoga/coordenadora de área no PIBID, que ora reconta uma parte das histórias protagonizadas por esse grupo ímpar.

A dedicação exclusiva das estudantes de licenciatura ao programa de iniciação, sem prejuízos às outras atividades discentes regulares, era uma das exigências para participar quando a pesquisa foi realizada. A escola lócus da iniciação do grupo integra a rede municipal de ensino de Cuiabá, com oferta de turmas de Educação infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, possíveis campos de atuação do pedagogo. Até aquele momento, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB/anos iniciais) daquela unidade escolar não correspondia ao padrão mínimo dos países desenvolvidos, como a maioria das escolas brasileiras.

Na perspectiva teórico-metodológica que procuramos seguir para entender a experiência, vamos compondo sentido (ELY; VINZ; DOWNING; ANZUL, 2006), construindo as relações e os nexos entre as experiências correntes e pretéritas, entre pessoas que se relacionam em tempos e situações diversas. Essa composição é processual, implica escolhas, negociação (CLANDININ, 2010) com as colaboradoras, reflexão profunda e contínua da pesquisadora.

O trabalho contínuo de autoconfrontação, inerente à investigação dessa natureza, é também característico do processo de construção de portfólios, uma das estratégias formativas utilizadas com este grupo de iniciação para estimular processos de reflexão relacionados com o percurso formativo na iniciação no PIBID.

Como já destaquei anteriormente (CARDOSO, 2014), o portfólio vem sendo utilizado em vários países, com finalidades diversas, podendo assumir diferentes formatos. No contexto brasileiro, ele tem sido utilizado na formação e na iniciação de professores com bons resultados. Tomando como base experiências vividas com aquele grupo até então, e, para além dele, minhas e de outros formadores e pesquisadores do campo da formação de professores que utilizaram esse procedimento, propus no final de 2010 que as bolsistas PIBID/Pedagogia construíssem o portfólio reflexivo (TRINDADE, 2010) da iniciação à docência.

Antes de ser um instrumento de heteroavaliação, no âmbito deste grupo, ele foi situado no processo formativo como estratégia para promover a reflexão

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pessoal de suas integrantes acerca de seus próprios processos formativos e em relação aos sentidos atribuídos às experiências de iniciação docente que estavam protagonizando. Na fase de preparação, ficou definido com o grupo que seria uma produção individual, em que cada uma deveria refletir sobre as experiências vividas como bolsista PIBID. Durante sua construção deveriam se perguntar: quais as experiências vividas na iniciação à docência que foram mais significativas e gratificantes e por quê?, a fim de selecionar o que e como incluir, avaliar a pertinência dos materiais, registros, documentos incluídos.

Retomarei no próximo tópico os sentidos que construímos a partir da experiência com portfólio junto com esse grupo, tomando como base os portfólios produzidos por Celina, Izaura, Lilian F., Sirlene, Marli e Natasha1, os quais foram disponibilizados para a apreciação do grupo e da pesquisadora, e compuseram o conjunto de “textos de campo” (CLANDININ, 2010) da pesquisa.

Cabe, ainda, na composição do cenário, retomar onde elas se encontram no curso de Pedagogia, no período em que se deu a construção do portfólio. Celina, Izaura e Lilian F. estavam no último ano da graduação, momento de fechamento de uma etapa de formação. Minha homônima, que já era bacharel no campo da Engenharia, vinha da turma matutina de Pedagogia, Celina e Izaura, da turma vespertina. Sirlene, Marli e Natasha estavam no terceiro ano de Pedagogia, e ainda não tinham passado pelo estágio de regência.

Sentidos construídos

Para este estudo retomei os portfólios produzidos, e, utilizando um recurso gráfico denominado “nuvem de palavras”, busquei sintetizar os registros contidos no portfólio de cada participante do PIBID/Pedagogia colaboradora da pesquisa. Para apresentá-los seguiu-se a ordem alfabética, já que eram várias as possibilidades de articular os percursos individuais e as histórias pessoais desse grupo.

1 Optei por identificá-las pelos seus próprios nomes, com a permissão delas, para que sejam reconhecidas como colaboradoras da pesquisa e não meras informantes.

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Nuvem de palavras 1 – Dúvidas, leitura e reflexão norteando aprendizagens

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Celina

Em seu portfólio, Celina revela que a expectativa que tinha era de que o 4º ano do curso de Pedagogia seria um ano especial em sua vida, e assim o foi. As dúvidas e indagações iniciais relacionadas a “como interpretar e intervir no processo de aprendizagem dos alunos”, e aquelas surgidas nas atividades realizadas no PIBID, no curso de Pedagogia, ou na relação com o seu filho, geraram necessidade e desejo de realizar tantas leituras quanto “sequer havia pensado, precisado e desejado” fazer. Os relacionamentos pessoais e profissionais (acadêmicos, como bolsista PIBID) em conjunto, requereram dela a intensificação da busca por conhecimentos e vão compondo o seu currículo de formação. Pelos materiais incluídos no portfólio, pode-se concluir que foram leituras de produções de alunos, de referenciais teóricos já estudados e outros que pudessem contribuir para elucidar suas dúvidas ou que geraram novas indagações.

O livro “O diálogo entre o ensino e a aprendizagem” foi uma dessas leituras realizadas por minha indicação ao grupo. Neste caso, não foi a leitura em si, mas o “estudo do livro”– que incluiu diálogos desencadeados nas reuniões do grupo, relatos de experiências de professores que viveram situações, problemáticas semelhantes à que estava vivendo – que a fizeram refletir acerca do que estava fazendo, observando e pensando, tornando essa atividade significativa para ela. A importância dos registros, do diálogo, da reflexão sobre a prática, destacada nessa obra como fator importante para aprendizagem, foram marcantes para Celina. Registros que podem ser de diferente natureza, como por exemplo, as

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filmagens feitas na sala de apoio, que foram objeto de estudo, análise e reflexão, posteriormente socializadas em trabalhos apresentados em eventos, os quais foram incluídos no portfólio de Celina. As integrantes do grupo se viram em ação, o grupo problematizava, analisava, refletia conjuntamente sobre o trabalho realizado, favorecendo o movimento ação-reflexão-ação com vistas a promover melhorias no ensino e nas aprendizagens.

As análises feitas do desempenho obtido pelos alunos na Provinha Brasil, de textos produzidos por eles, ambas em parceria com outras iniciantes na docência e professores mais experientes, tudo isso foi considerado formador por Celina e incluído no portfólio, pois promoveu uma melhor compreensão da realidade da escola, da docência, da avaliação, ampliando seus conhecimentos, melhorando sua capacidade de análise. Pelos registros feitos, foi possível notar a parceria e proximi-dade construída por Celina com algumas integrantes do grupo – Patrícia e Izaura.

Fazendo uma retrospectiva da sua participação no PIBID, Celina destaca que, inicialmente, pensava que eu deveria “dar as respostas que ela buscava”, e não lhe fazer outras perguntas, provocações para levá-la a refletir sobre o que estava sentindo, fazendo e pensando. “Hoje vejo como é importante que eu encontre essas respostas, ou pelo menos tente encontrá-las”, afirmou Celina ao final. As leituras e a reflexão, mediadas pelas dúvidas e discussões, foram fundamentais para que ela encontrasse algumas respostas, por exemplo, como auxiliar determinado aluno a avançar no processo de aquisição da escrita, para aprender a dialogar.

Nuvem de palavras 2 – Interações e discussões potencializando aprendizagens

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Izaura

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Izaura escreveu uma carta para apresentar seu portfólio às demais integrantes do grupo. Essa escolha, a meu ver, já aponta para a importância da interação – elemento fundamental em uma experiência – que ela buscou estabelecer com as integrantes do PIBID e da sua permanência – ou seja, da continuidade da experiência – no grupo para o seu processo formativo. As discussões, que para ela foram fundamentais nesse processo, implicam pessoas em interação. Mas, essas ocorrem em lugares e situações específicos, e são contextualizadas.

Pelo que foi apresentado em seu portfólio, o grupo PIBID foi um lugar privilegiado de interações e aprendizagens para esta iniciante na docência. Ao olhar para sua trajetória de formação, Izaura registra: “O grupo PIBID trouxe-me muitas coisas boas, pois conheci pessoas maravilhosas que me fizeram crescer, como pessoa, também ampliou meus conhecimentos gerais e específicos da profissão docente [...]”. E, assinala que a pessoa e o profissional não se separam, que os processos formativos protagonizados articulam as dimensões individuais e coletivas, subjetivas e intersubjetivas, pessoais e relacionais (NÓVOA, 1997).

Ao longo do portfólio, ela registra que as relações, as trocas e a intersubjetividade promovidas em vários contextos e situações foram o diferencial para sua aprendizagem, por exemplo, no curso de extensão para “compreender as principais características das figuras planas e sólidos geométricos [...]. Além da discussão teórica, a socialização nos encontros das atividades realizadas em sala com os alunos contribuiu para minha aprendizagem, pois ainda não havia pensado na possibilidade de trabalhar geometria em linguagem”.

Izaura também incluiu no portfólio a participação em eventos, com trabalhos relacionados à pesquisa realizada para mais bem conhecer os alunos da sala de apoio. E, ademais, assinalou o caráter relacional do processo de aprendizagem, e, de modo particular, o seu, ao ressaltar que nos diferentes momentos que tal participação implica, da elaboração de resumo e produção de textos à apresentação, “possibilitam uma interação e aproximação, oportunidade de conhecer melhor a colega”, “troca de ideias e conhecimentos”, socialização de “ideias interessantes que somam e amplia nosso conhecimento”.

As relações com o outro – bolsista iniciante na docência, supervisora, coordenadora, alunos, professores – com quem ela se encontrou nos percursos feitos durante a iniciação, “dispostas a ajudar e a colaborar”, foram importantes no processo formativo de Izaura. Com alguns, parece ter estabelecido interações mais intensas, uma vez que foram mais citadas nos registros (Marli, a Supervisora, Anne e Izabel).

No conjunto de registros agrupados sob o título “estudos reflexivos” foram incluídos: caso de ensino e o estudo do livro “O diálogo entre o ensino e a

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aprendizagem”. Estes estudos “foram momentos de muita aprendizagem para o grupo”, registrou Izaura, e aqui ela situa as discussões feitas e a minha participação nessas ocasiões como tendo desencadeado processos reflexivos que ajudaram o grupo a se olhar por outro ângulo, a “enxergar os próprios erros”. A acolhida que ela teve no grupo, tendo se inserido nele após alguns meses em atividade, o apoio da supervisora e das colegas, as aprendizagens fizeram com que a insegurança inicial desse lugar à alegria e ao prazer de aprender e de sentir-se capaz de ensinar leitura, escrita, matemática, entre outras coisas.

Nuvem de palavras 3 – A matemática no centro dos processos

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Lilian F.

Lilian F. apresentou seu portfólio encadeando as ideias em uma narrativa de formação em que vai comentando as escolhas e decisões tomadas durante a vigência da bolsa PIBID. Embora ela reconheça que tudo que realizou no PIBID, em 2011 – leituras e discussões, planejamento e execução de curso, análises, trabalhos produzidos e apresentados em eventos, reflexões – tenham influenciado sua formação, pois as ações complementa-se, algumas foram determinantes em processos de escolhas feitos por ela.

As experiências que vivemos estão de tal forma relacionadas que uma influencia a outra, mas, em determinadas situações e momentos da vida, algumas podem ter mais influência. Por exemplo, para Lilian F., que naquele momento estava com 33 anos, no final de uma segunda graduação, o relato da

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“prova de fogo” de Telma Weiz (autora do livro “O diálogo entre o ensino e a aprendizagem”) na educação foi determinante para sua decisão de continuar estudando, agora em nível de Mestrado, para depois assumir uma sala de aula. A preocupação com a aprendizagem dos alunos era comum a ambas.

Esta colaboradora almejava constituir família, e entendia que as condições que tinha naquele momento – solteira, vivendo com a mãe – possibilitariam cumprir as exigências do Mestrado com mais facilidade. Sabemos que não é simplesmente o fato de ser solteiro ou casado, mas, também a situação financeira, emocional, afetiva e outras dimensões que vão interferir de modo a facilitar ou dificultar o cumprimento das exigências do processo formativo no Mestrado.

O gosto pela matemática era nutrido há muito tempo, mas foi a partir da participação no planejamento e execução do curso de extensão oferecido pelo PIBID aos docentes da escola parceira que Lilian F. definiu essa área como foco para aprofundamento de estudos. Nessa atividade de extensão, proposta com base no diagnóstico feito pela referida escola indicando a necessidade de investir na atualização de conhecimentos e metodologias para o ensino de geometria, ela realizou um levantamento acerca da docência em matemática, cujos resultados deram origem à produção de trabalhos para apresentação em eventos, bem como a proposta de um minicurso sobre “O uso do geoplano no ensino da geometria nos anos iniciais”, ambos em parceria com a acadêmica Anne. No curso de extensão, Lilian F. pode se aproximar mais das outras integrantes do grupo.

Durante esse curso, interagindo com alunos do 3º ano do Ensino Fundamental, ela percebeu a importância da utilização da malha pontilhada no trabalho com o geoplano. Em outro momento que trabalhou com geoplano, registrou que ficou nervosa e com dúvidas, pois estava interagindo com adultos professores no minicurso ofertado em evento científico. Embora o domínio de conteúdo seja necessário, tanto para ensinar crianças, quanto adultos, a forma de encaminhar o trabalho varia, dependendo do contexto. Ela avaliou que “o saldo foi positivo”.

A preocupação com as reais dificuldades dos alunos em matemática culminou no seu trabalho de conclusão do curso de Pedagogia e na decisão de aprofundar os estudos nessa direção em nível de Mestrado. Conforme os registros feitos neste porftólio, as observações na sala de apoio, os estudos e reflexões feitos a partir dessas por Lilian F. permitiram compreender que há muitos outros fatores relacionados às dificuldades de aprendizagem em matemática, além da baixa autoestima e do comportamento dos alunos. E, ademais, ela destaca a importância dos estudos de caso para que pudesse repensar o processo de ensino e de aprendizagem.

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Nuvem de palavras 4 - Das aulas aos alunos desafios e avanços

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Marli

Abrindo o portfólio de Marli encontramos Carlos Drumond por meio do poema “Professor”, que retrata uma situação de aula. Voltando o foco para a sala de apoio, Marli relata como foi seu primeiro dia na sala de apoio: “foi assustador, programamos uma aula que à nossa mínima experiência e conhecimento dos alunos parecia dinâmica. Quando iniciamos tudo que parecia ser dinâmico e curioso virou uma bagunça sem sentido. “[...] Fiquei me perguntando como controlá-los”. O sentimento foi de frustração.

Para encarar o desafio de apoiar crianças com dificuldades de aprendizagem, o caminho escolhido pelo grupo foi trabalhar com leitura e escrita, utilizando jogos, brincadeiras, músicas e histórias infantis. Os alunos começaram a demonstrar gosto pelas suas aulas “com o passar do tempo”, e, no final, ela conseguiu observar avanços na leitura e na escrita daqueles alunos.

Entendo que não foi o simples passar do tempo que propiciou tais mudanças, mas as experiências que eles puderam viver nesse tempo. Como a própria Marli registra, as análises das amostras de escrita dos alunos possibilitaram planejar e realizar atividades que ajudaram no desenvolvimento das crianças e das iniciantes na docência. Marli declara no portólio sua paixão pela pesquisa. No PIBID, ela se dedicou ao levantamento de dados, buscando conhecer a realidade dos alunos, sentiu-se instigada a ir a campo observar se esse conhecimento auxilia os professores na gestão do ensino voltado para a aprendizagem de todos os alunos, o que foi feito posteriormente, como parte do seu trabalho de conclusão de curso. Os resultados do levantamento realizado foram socializados em trabalhos apresentados em eventos científicos. Segundo registrou Marli, as

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parcerias comigo, com a supervisora e com a Izaura foram muito importantes, pelas orientações, “companheirismo” e “aprendizado”, que a ajudaram a sair do senso comum, a significar algumas atividades realizadas por ela no grupo.

O curso de extensão, considerado “um dos mais desafiantes” que já havia participado, propunha desenvolver o pensamento geométrico e até aquele momento ela “ainda não havia estudado geometria”. Então, como ensinar algo que lhe era desconhecido, que não tinha desenvolvido? O desafio tornou-se “oportunidade de conhecer os fundamentos da geometria e como ensinar geometria”, proporcionando o sentimento de satisfação pessoal.

A dinâmica desse curso envolveu estudos teóricos e vivência de situações reais de ensino, dentre as quais, ela destacou duas que considerou mais marcantes, por terem sido um aprendizado para ela e para os alunos, pelo prazer que sentira. Uma foi a aula sobre trajeto e localização, em que “apesar das falhas e dificuldades para desenvolver um conteúdo novo”, os registros dos alunos demonstraram compreensão do que ela e suas parcerias (Natasha, Sirlene e a supervisora) buscaram ensinar-lhes. A outra ocasião citada foi a aula com Tangram, sua primeira em turma de primeiro ano do Ensino Fundamental.

A análise de textos dos alunos foi outro desafio para Marli. Eles estavam apresentando dificuldades na produção de textos, e ajudá-los a avançar impunha identificar quais eram suas dificuldades para depois intervir. No processo de análise daqueles textos, Marli se surpreendeu ao perceber que as teorias estudadas ao longo do curso eram como “ferramentas” que precisamos aprender a utilizar.

Nuvem de palavras 5 – Registros da docência e dos discentes impulsionando reflexões

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Sirlene

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Ao apresentar o portfólio, Sirlene destaca que considerou a sua produção formativa, pois “a prática de registrar [...] nos faz re(organizar) as ideias buscando compreender o que deu certo e refletir sobre a aprendizagem”. Entre os registros incluídos neste portfólio encontrei: fotos em lugares e situações diversas (reuniões do grupo na UFMT, na sala de apoio trabalhando com alunos, de atividades realizadas pelos alunos, da apresentação de trabalho em evento); textos estudados, textos produzidos por alunos; planos de aulas e reflexões sobre elas; amostras de escrita de alunos e análises feitas; gráficos, tabelas, apontamentos relacionados à Provinha Brasil e resumo do trabalho acerca dessa avaliação apresentado em evento científico.

Ela começa retomando a participação na Provinha Brasil, avaliação em larga escala que teve sua primeira edição em 2008, tendo em vista auxiliar os professores no monitoramento da alfabetização com vistas à melhoria desse processo. Esta foi a primeira atividade do grupo na escola parceira. Buscando ampliar o diagnóstico da provinha, junto com a supervisora, as iniciantes na docência coletaram amostra de escrita do grupo de alunos a serem acompanhados no apoio. Era preciso analisar tais amostras, e isso foi feito.

Eis que surgem as primeiras dúvidas e indagações: “e agora, o que fazer e como fazer?”, que foram sendo sanadas “assim, com discussões e trocas de ideias com minha parceira [Natasha], com a supervisora e a orientadora [coordenadora do grupo]”, lembra Sirlene. Na primeira aula, “fiquei muito nervosa e queria seguir a aula como estava no plano”. Tal situação é comum em iniciantes na docência, o que, do ponto de vista de Marli, podiam estar relacionadas ao fato de estar sendo filmada, e, posteriormente, ser vista pelo grupo.

Sabemos que nem tudo pode ser controlado na sala de aula. Sendo assim, imprevistos acontecem e requerem decisões rápidas, que estariam expostas no vídeo. Quando somos iniciantes na área, como neste caso, o repertório de ações para lançar mão nesses momentos é pequeno, baseia-se mais nas experiências que vivemos como alunos. Então, procuramos apoio no script feito previamente, na tentativa de manter o controle da situação, uma vez que o conhecimento da realidade escolar, do ponto de vista da docência, em geral, ainda é frágil, e, algumas vezes, o próprio conhecimento do conteúdo de ensino é superficial.

Após cada aula de apoio, Sirlene fazia anotações no “diário de bordo”. Pelos registros incluídos no portfólio, durante aproximadamente dois meses, ela “registrava de forma muito ampla como tinha sido a aula”, mas, dessa forma, não conseguia identificar o que tinha dado certo, tampouco conseguia perceber os avanços dos alunos. A partir do momento que passou a fazer

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registros mais individualizados, contextualizando as pessoas e as relações que elas estabeleciam na aula, aí sim pode identificar dificuldades sentidas por cada aluno, e averiguar os avanços e conquistas alcançadas por eles. Algumas dessas conquistas podem ser identificadas a partir dos textos produzidos pelos alunos e na narrativa de Sirlene inseridos no portfólio.

A importância dos registros foi tema de trabalho apresentado em evento por Sirlene e Natasha, o qual, segundo comentou, a fez rever e refletir sobre seus próprios registros e sobre os registros dos alunos que estava acompanhando na sala de apoio. Foi destacado que os registros feitos proporcionaram “momentos de reflexão das nossas ações como docentes e do processo como a criança aprende a escrever”. Eles também me instigaram a refletir a respeito das potencialidades formativas dos registros narrativos. Assim, concordo com a afirmação de Sirlene, segundo a qual “os registros foram fundamentais tanto na nossa formação docente quanto na formação dos nossos alunos”.

Além da parceria com Natasha, ela considerou “que deu certo” a que foi estabelecida para a realização do curso de extensão de matemática, pois isso contribuiu tanto na “formação das futuras pedagogas” quanto da “equipe da escola”. A incerteza e a insegurança marcaram presença no processo formativo desta, mas nesses momentos, ela lembra que pode contar com o apoio de professores mais experientes que prestaram “esclarecimentos”, “orientações” que foram importantes para a reorganização de suas ideias e ações. Retomando o modo como lhe ensinaram matemática no ensino fundamental e a experiência que teve nesta extensão, ela conclui que a aprendizagem ocorre de forma mais prazerosa quando somos desafiados, questionamos, trocamos experiências, ou seja, quando as condições (pessoais e sociais) permitem interações entre pessoas e com o ambiente que fazem refletir.

Sirlene sentia-se desafiada a “fazer diferente”, a fazer a diferença na vida daquelas crianças, alunas(os) da sala de apoio. E, o caminho seguido foi propor situações que promoveram a interação com o meio e com as pessoas envolvidas, “levando os alunos a refletirem”, a atribuírem sentido ao que estavam vivendo e aprendendo. Reconhece, então, que a reflexão é fundamental no processo de aprendizagem, independentemente da idade de quem aprende. As oportunidades de “vivenciar, de planejar e de atuar em sala de aula” na iniciação foram, para Sirlene, oportunidades para aprender pela experiência e fazer a experiência da reflexão sobre suas práticas.

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Nuvem de palavras 6 – Registros de relações e resultados obtidos nos processos

Fonte: Nuvem de palavras construída pela autora a partir do portfólio de Natasha

Natasha era a integrante mais jovem daquele grupo de iniciação. Como tinha experiências anteriores no campo da informática, ficou responsável pela organização do banco de imagens (fotos e vídeos) do grupo, algumas das quais ela incluiu no portfólio – fotos de aulas, com integrantes do grupo (nestas Sirlene sempre está ao seu lado, e Marli é presença constante) em eventos que socializou experiências relacionadas à Provinha Brasil e aos registros de aula. A participação no PIBID aproximou Sirlene e Natasha de tal forma, que a parceria nos trabalhos foi se transformando em amizade. “Minha amiga” é como Natasha a identifica no portfólio.

Ela começa retomando a preparação para a inserção na escola, com a pesquisa de estudos feitos em 2010 sobre a Provinha Brasil, a participação no teste 1 dessa edição na escola parceira. “A princípio eu não conhecia esta ferramenta de avaliação e nem suas finalidades, percebi o quanto os resultados desta podem auxiliar os professores na sala de aula”, registrou Natasha.

“A primeira aula com os alunos” do apoio, na qual buscaram identificar gostos e preferências, práticas de leitura daquele grupo de alunos, foi destacada neste portfólio. No título desse registro ela enfatiza ao caráter relacional do ensino. No espaço/tempo dessa aula, Natasha destacou a última atividade, devido ao interesse e envolvimento dos alunos – “Todos foram bem participativos. [...] A brincadeira foi tão boa que os alunos ficavam na maior

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torcida para que a letra do animal que tinham em mãos saísse”. Era uma brincadeira com imagens de animais que envolvia leitura, identificação deles pelo nome e a respectiva letra inicial.

Em outro momento, uma aula na qual trabalhou com rótulos, o que fez “a diferença na atividade” foi terem trabalho com “coisas que fazem parte do cotidiano dos alunos. [...] Simular uma compra no supermercado, por exemplo, deixou os alunos bastante animados”. No registro feito, Natasha parece reconhecer que o ensino fica mais interessante quando conhecemos os alunos, aproveitamos o que eles já sabem e intencionalmente propomos situações que tenham que organizar fatos e ideias. Não foi à toa que na simulação colocou produtos sem rótulo e ninguém pegou esses para comprar. “A interação dos alunos na atividade, a participação foi muito importante” no processo.

“Sempre fui muito interessada pela matemática, ao longo dos meus estudos tive professores excelentes e muitas experiências positivas”, conta Natasha no portfólio, revelando-nos que seu interesse por essa área tinha relação com suas experiências como aluna. As relações que construíra até então com os professores de matemática parecem ter sido educativas, pois não criaram barreiras entre ela e os conhecimentos dessa área. Ao contrário, davam-lhe ânimo para buscar “aprender mais” contribuindo, assim, para a experiência que estava vivendo como iniciante na docência no curso de extensão.

Os bons resultados obtidos com aquele grupo de alunos foram, para Natasha, fruto das oportunidades criadas para que novas relações fossem estabelecidas entre as pessoas e entre essas e o conhecimento matemático. Mudando a “rotina de sala de aula”, indo com eles para a rua, deixando-os manusear e construir objetos, ideias, procurando “conversar com os alunos” foi o caminho seguido. Ela vai tentando apontar aos leitores do portfólio que “a maneira como se ensina matemática precisa ser revista”.

Ocupar o lugar de professora naquela sala de aula e “ensinar aos alunos sobre as formar geométricas [por exemplo] era bem diferente de aprender sobre elas, como aconteceu no meu tempo de escola e também no curso de extensão”, registrou Natasha. De fato, ensinar e aprender são experiências distintas, mas que se complementam ao longo do processo formativo, e envolvem conhecimentos diversos e reflexões variadas. Nas horas de dúvida, medo, receio e insegurança, ela buscou o apoio das colegas e da supervisora. Esse apoio do grupo foi fundamental no processo formativo de Natasha. No final, ela ficou satisfeita com os resultados alcançados e por “poder compartilhar com eles [os alunos da escola parceira] todos esses momentos” de aprendizagem para todos nós, protagonistas dessas experiências de iniciação, conclui Natasha.

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Rumo a novas experiências com portfólio

A retomada dos portfólios de Celina, Izaura, Lilian F., Marli, Sirlene e Natasha, ao mesmo tempo em que evidencia percursos específicos feitos pelas iniciantes na docência vinculadas ao PIBID/UFMT, permite identificar o percurso e investimento desse grupo em atividades de ensino, pesquisa e extensão. Em diferentes momentos dos processos formativos protagonizados, o ensino, a pesquisa e a extensão se entrecruzam, assim como as experiências vividas no curso de Pedagogia e na iniciação à docência. (CARDOSO; PALMA; MONTEIRO, 2012; CARDOSO, 2014). Esses portfólios nos permitem conhecer um pouco da história do grupo, de suas integrantes e de como foi a implementação desse programa na área da Pedagogia em Cuiabá.

Pelo que foi registrado nos portfólios, ao longo do período de iniciação, as interações estabelecidas com os pares, com professores e com alunos foram intensas e produtivas. Mas, essas interações, o lugar ocupado por cada uma, as condições variaram (CARDOSO, 2016), de modo que as influências de umas sobre as outras, os movimentos que cada uma foi fazendo ao protagonizar experiências da docência diversificam-se, assim como as reflexões desencadeadas e suas repercussões nos processos em curso na escola parceira e na iniciação (CARDOSO, 2014).

Alguns movimentos realizados puderam ser identificados, como por exemplo, na direção de mais aprofundamento no que tange ao ensino de leitura e escrita; do ensino da matemática; do conhecimento dos alunos e da docência por meio da pesquisa; do olhar para a própria trajetória de formação e recontá-la narrativamente. No movimento inerente ao processo formativo, histórias pessoais se cruzaram, ensinamos, aprendemos, criamos redes de apoio (emocional, pedagógico, técnico, cognitivo).

A experiência vivida com esse grupo me fez pensar e ressaltar, neste momento, a necessidade e importância de se oportunizar, ao longo da construção de portfólios, momentos para apresentações parciais dessa produção, que possibilitem apoiar, potencializar as ações e reflexões. A produção de portfólio, na perspectiva adotada, mostrou-se uma estratégia formativa interessante, tanto por fomentar a reflexão e a avaliação das práticas pedagógicas, quanto por dar visibilidade a processos específicos e coletivos vividos com o grupo. De modo geral, a iniciação à docência no cenário apresentado reafirmou o desejo de assumir a docência como profissão nas estudantes de Pedagogia pertencentes ao grupo em foco.

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Referências

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CARDOSO, L. A. M. Os processos formativos no Programa de Iniciação à Docência da UFMT: a experiência de um grupo de Licenciandas em Pedagogia. 2014. 254 f. Tese (Doutorado em Educação). Instituto de Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2014.

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Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso:

narrativas de professores

Lineuza Leite Moreira

A compreensão do saber docente e das relações diversas existentes na escola só é possível a partir do estabelecimento de um diálogo com os professores. O desenvolvimento da docência é marcado pela diversidade de culturas, seja entre os pares ou entre os alunos, e é constituído também pelas classes sociais, raças, gêneros, etc. Dessa forma, se faz necessária a realização de estudos que aprofundem na sensibilização para a diversidade cultural no âmbito escolar como forma de reconhecimento das identidades plurais que permeiam a escola.

No exercício docente, de acordo com Shulman (1986), aprendizagens diversas são significadas/ressignificadas, uma vez que se constituem pela articulação de diferentes conhecimentos que se interrelacionam, e que são provenientes de diversas fontes. Para Monteiro (2014), a prática docente passa sempre por contextualização e recontextualização devido aos conhecimentos que podem ser construídos e reconstruídos no entrelaçar de diferentes culturas em um contexto específico, nesse caso, a escola. Nesta conjuntura, o desenvolvimento profissional é processual e contínuo e congrega os saberes, as experiências e as estratégias de formação construídos a partir de múltiplos contextos, e “tramados” nos “fios” que compõem as dimensões “pessoais, profissionais, institucionais e organizacionais” (MONTEIRO, 2003, p. 08).

Candau (2008) afirma que toda forma de educação estaria imersa em processos culturais do contexto ao qual pertencem. Para Canen e Santos (2006, p. 341), no campo da educação, o multiculturalismo estaria voltado para a “centralidade da cultura e da desconstrução dos discursos educacionais”, no sentido de resgatar e/ou construir discursos alternativos de reconhecimento do outro, como respostas concretas à diversidade cultural. A perspectiva multicultural favorece o diálogo entre diversos saberes e conhecimentos, nasce por assim dizer um saber “híbrido”, que assume outro significado cultural no qual reconhece a relevância dos outros saberes. No ensino de ciências podemos dizer que implicará em uma formação voltada à ciência e aos conhecimentos de uma cultura específica, nesse caso, a cultura local. Nas palavras de Tardif

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(2002, p. 36), implica dizer que a relação dos docentes com os saberes não é restrita a transmitir conhecimentos já constituídos, uma vez que a prática docente integra diferentes saberes e que mantém diferentes relações com eles, se tratando, portanto, de um “saber docente plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”.

Desta forma, devemos pensar no multiculturalismo como movimento social que permite o reconhecimento da diversidade das culturas, a investigação a respeito das questões de identidade, dos direitos e tolerâncias entre os povos e como subsídio para entender de acordo com Canen e Canen (2005), que lecionam que os atores educacionais são sujeitos portadores de cultura, circulando no contexto de identidades institucionais ou organizacionais plurais, e que os professores são atores inseridos na pluralidade cultural representada pela comunidade escolar e a sociedade mais ampla.

O conhecimento prático dos professores, segundo Connelly e Clandinin (1988), vai sendo construído a partir de várias dimensões de aprendizagens; estes definem o conhecimento como o “corpo de convicções e significados, sejam eles conscientes ou inconscientes, que emergem da experiência (íntima, social e tradicional) e são expressos pela prática do indivíduo” (CLANDININ; CONNELLY, 1995 apud TELLES; OSORIO, 1999, p. 33). O cotidiano escolar se torna um campo que se destaca para pesquisas baseadas no referencial multicultural, permitindo o questionamento do fazer e saber escolar (CANEN; CANEN, 2005).

Este trabalho é desenvolvido dentro da abordagem qualitativa, tendo como metodologia inicial uma aproximação à pesquisa narrativa, com destaque para os processos do multiculturalismo.

Clandinin e Connelly (2011, p. 85) afirmam que a origem da pesquisa narrativa se fundamenta no conceito de experiência de Dewey, o qual afirma que ela fornece um esboço para pensarmos a experiência além da noção de experiência sendo irredutível de forma que não se pode investigá-la. Com Dewey, pode-se dizer mais, experiencialmente, do que “por causa da sua experiência” quando se responde por que uma pessoa faz o que faz. E compreendem que, além da experiência, outros termos essenciais são pessoal e social, que se fundam na interação entre passado, presente e futuro, assentes na continuidade, e, finalmente, quanto à noção de lugar. Assim,

[...] este conjunto de termos cria um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao

Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso: narrativas de professores

Pesquisa, formação e docência: processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional docente em diálogo • 231

longo da segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira. (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 85)

A pesquisa narrativa favorece a formação dos professores, uma vez que:

[...] uma das principais premissas a nortear tais investigações se encontra na valorização das histórias e experiências de vida, e formação dos sujeitos narradas pelos próprios sujeitos, promovendo, assim, a aproximação entre investigação e processos de formação. (MONTEIRO; FONTOURA; CANEN, 2014, p. 638-646).

Neste contexto, as autoras supracitadas mencionam que:

[...] quando propomos aos professores pensarem sobre suas ações e percursos formativos, levamos ao desvendar e conhecer sua própria história e a dar sentido às suas experiências e representações pessoais e profissionais plurais, valorizando toda a diversidade presente. (MONTEIRO; FONTOURA; CANEN, 2014, p. 642)

Os caminhos da pesquisa: da proposta à aproximação

O campo de pesquisa escolhido para esta investigação foi uma escola estadual urbana, localizada em uma cidade no estado de Mato Grosso. A unidade escolar atende alunos da cidade, bem como estudantes oriundos das glebas1, e alunos indígenas.

O primeiro contato com a escola se deu no segundo semestre do ano de 2015 e nesse contato algumas informações obtidas contribuíram para a caracterização da referida unidade escolar. Esta conta com estrutura composta por 22 salas de aula e quatro salas anexas, e além das salas conta também com outras oito salas onde funcionam a secretaria escolar, biblioteca, auditório que funciona como sala de vídeo e reuniões, direção, coordenação, laboratório de informática, sala para professores, cozinha com refeitório e despensa para merenda, além dos banheiros masculinos e femininos destinados aos alunos e banheiros privativos a professores e merendeiras/zeladoras.

1 Nesse caso as glebas representam pequenos lotes que apresentam significativo número de pequenos proprietários e posseiros, devido à ocupação antiga dos afrodescendentes e as ocupações das últimas décadas pelos sem-terra que chegaram de outros estados. (PUHL, 2003) Os técnicos do INCRA e a população local denominam “gleba” uma área de terra subdividida em vários pequenos lotes.

Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso: narrativas de professores

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A escola apresenta professores distribuídos nos três períodos de aula: matutino, vespertino e noturno. Estes professores atendem alunos da Educação Infantil; 1º e 2º Ciclo do Ensino Fundamental; Ensino Fundamental II; Ensino Médio; Educação de Jovens e Adultos (Fundamental e Médio).

Após a caracterização da escola, entrei em contato com um grupo de profes-sores da escola no primeiro semestre de 2016, entre eles professores da Educação Infantil; do Primeiro e Segundo Ciclo; Fundamental II e Ensino Médio.

Este trabalho apresenta uma investigação com quatro professores com uma breve caracterização destes com dados obtidos a partir do preenchimento de uma ficha e as narrativas destes; essas narrativas foram obtidas a partir de uma proposta inicial feita individualmente a esses professores para que realizassem um relato escrito no qual deveriam narrar suas impressões e reflexões a respeito do multiculturalismo e de sua prática pedagógica. Essa aproximação se pauta no complexo processo de negociação que a pesquisa narrativa pressupõe, corroborando com tal afirmação, Clandinin e Connelly (2011 apud MONTEIRO, 2014, p. 121) indicam a:

[...] necessidade de se negociar relacionamentos, propósitos, transições e modos de ser útil, visto que o que se busca é a interpretação/compreensão das experiências enquanto fenômenos historiados e narrados, conforme as significações de quem os narra.

Com base no exposto acima trago alguns elementos do que foi inicialmente construído, ressaltando que se trata mais de uma apresentação do que propriamente de uma interpretação, uma vez que trazemos dados iniciais de caracterização e de narrativas destes professores (Quadro 1). No decorrer das discussões dos dados sobre a caracterização irei dialogando com esses dados com as narrativas dos professores.

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Todos os professores possuem formação em nível superior e em relação ao curso de Pós-Graduação, dois realizaram curso lato-sensu, um está cursando e um não prosseguiu com os estudos após a graduação. Entretanto, o professor que não possui curso de Pós-Graduação relata: “não fiz nenhuma especialização, porém tenho algumas experiências de vida em relação à educação”. Tal narrativa indica que tanto este professor, quanto os demais, encontram-se em um processo contínuo de busca de conhecimento e compreendem que as experiências se compõem como um processo formativo.

Em relação ao vínculo empregatício, apenas P4 não é efetivo na rede estadual de ensino, mas esse frisa que seus 17 anos de experiência na docência se dão na escola pesquisada:

Sempre dei aulas, no ensino fundamental, de 5ª a 8ª, e no segundo grau, nas disciplinas de Filosofia, Ciências e Saberes quilombolas, trabalhando Práticas agrícolas, Práticas e tecnologias sociais e Práticas em culturas artesanais [...] eu trabalho com as adversidades. (P1)

Ao mencionar as disciplinas que ministram, os professores que atuam no Ensino Fundamental II e Ensino Médio revelam como foram construindo sentidos a respeito da experiência formativa na qual estão envolvidos. Um desses relatos se manifesta na seguinte narrativa:

[...] a princípio me escrevi no curso de Letras mas não preencheu as vagas e tive que optar por outro curso [...] escolhi história pelo seguinte motivo: cheguei no final do ensino médio e percebi que não sabia nada de história então quis fazer para aprender e quando falei com a professora ela me disse que isso acontecia com a maioria das pessoas que cursaram o ensino médio até a década de 90, então comecei a buscar auxílio nos livros didáticos para compreender melhor o que estava vendo mas graças a Deus e o meu esforço venci a barreira e me dediquei hoje adoro história e dar aulas de história. (P3)

Tal narrativa remete à compreensão de que, a despeito dos desafios enfrentados, mesmo que a opção pelo curso não tenha sido feita em um primeiro momento, os obstáculos foram superados e a escolha pelo novo curso serviu de superação para uma dificuldade/conflito que fazia parte de sua vida. Sua narrativa aponta uma reflexão referente às razões e as origens que a motivaram para optar pela docência em história, reforçando a ideia de que a opção pela docência é marcada pelos:

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[...] raciocínios construídos social, subjetiva e discursivamente sobre a docência. [...] pela força constitutiva da linguagem na produção das experiências vividas pelos sujeitos em suas trajetórias de escolarização. (CHAVES, 2006, p. 175)

De acordo com Pacheco e Flores (1999, apud Monteiro, 2014, p. 126), existe “[...] forte influência das primeiras experiências de ensino na trajetória do professor, o que implica em processos de reanálise e de ressignificação, tanto de suas crenças inicias, como de suas práticas”. Essa fala corrobora com Fontoura (2010, p. 106) ao comentar que “a história profissional de cada um de nós está interligada à nossa vida pessoal, afirmamos que o pessoal e o profissional são inseparáveis”; a autora ressalta, ainda, que “ao narrarmos partes de nossa trajetória de vida, passamos por processos de reflexão, compreendendo melhor o percurso vivido no passado, relacionando-o ao momento presente”.

Ao serem convidados a escrever a respeito do multiculturalismo e da sua prática pedagógica, trazem algumas narrativas de suas percepções concernentes ao conceito de multiculturalismo, das experiências vividas e da diversidade cultural no cotidiano escolar.

[...] a minha experiência em sala de aula com relação ao multiculturalismo em sala de aula esta pautada, relacionada à Lei 10639/03, da qual procuro trabalhar de forma multidisciplinar incorporando a diversidade. Étnico racial. No ano passado trabalhei um teatro o pequeno príncipe preto para mostrar para as crianças que os príncipes e princesas tem a cor que nós queremos. Criei um reinado todo negro e inclusive um aluninho que tinha problema de não aceitação com relação a sua cor aceitou ser o príncipe. Foi muito gratificante convencer uma criança depois de tantos debates a se aceitar. (P2)

As falas dos professores ressaltam a importância das mudanças na ideia de dominação e homogeneização cultural que orientava a educação escolar. A Lei 10.639/03 tornou obrigatório o estudo sobre a cultura e história Afro-Brasileira e Africana nas instituições públicas e privadas de ensino, e alterou a Lei 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) com o objetivo de assegurar (em todos os níveis educacionais) o reconhecimento e valorização da identidade negra, bem como o reconhecimento da pluralidade étnico-racial, na tentativa de identificar e superar as manifestações de racismo, preconceitos e discriminações, e, consequentemente, produzir nas instituições educacionais

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uma nova relação entre os diferentes grupos étnico-raciais (BRASIL, 2004), é vista por esses professores como algo que lhes permite e/ou permitiu uma reflexão sobre sua postura ética e acerca da condução de suas ações educativas.

Quando foi nos apresentada a Lei 10639/03 pra nossa escola eu fui pioneira em buscar preparação para que fosse cumprida e a escola me apoiou foi plantada a sementinha foi um projeto formiguinha e hoje nossa escola é referência na educação escolar quilombola, ganhamos o selo da Educação da diversidade étnico racial em Brasília, foi um trabalho com muitas barreiras, mas continuamos na luta de uma educação de igualdade racial. Sempre trabalho em sala de aula a história do negro brasileiro de forma positiva para que os pertencentes da raça ou etnia possa assumir o pertencimento da mesma. Trabalho o assunto e ensino na prática sobre o cabelo, o uso do lenço ou turbante, falo da comida típica de uso pelos negros, a tapioca do Nordeste e ensino aos alunos a fazerem, ensino fazer bonecas negras e incentivo ao empreendedorismo, também trabalhamos com eles as danças, desfiles com trajes afro para que os mesmos possam achar normal, tudo isso no começo era meio difícil, mas hoje todos aceitam numa boa as propostas dos professores. (P3)

Um fato importante ao se observar as falas dos professores P2 e P3 é o reconhecimento do ser negro, o reconhecimento, a valorização e o respeito, Santos (apud MOREIRA; CANDAU, 2013, p. 82) aponta que crianças, adolescentes, jovens e adultos brancos e negros devem receber como orientação uma visão afirmativa que lhes sirva como “instrumento para libertação das amarras do racismo, que fortaleça o conhecimento da história e cultura africana e afro-brasileiras”. Outro aspecto importante na narrativa de P3 consiste na compreensão das possibilidades de construção de projetos pedagógicos interdisciplinares.

A narrativa de P2 ressalta, ainda, a importância da contextualização da diversidade cultural e étnico-racial na aceitação e autoestima dos alunos, a professora demonstra um aspecto afetivo, e um trabalho preocupado com a diversidade cultural. Para Marques (2004, p. 135), a “[...] discussão sobre o papel da educação e sua relação com a auto-estima da criança negra, assim como outros temas relacionados à questão racial, requer alguns cuidados”. Já Romão (2001, p. 162) considera que “[...] só é possível discutir a auto-estima da criança negra quando se conhece a história desse sujeito e do seu grupo-étnico”. Moreira e Candau (2013, p. 26), por sua vez, ressaltam que:

Docência e diferenças culturais em uma escola de Mato Grosso: narrativas de professores

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A socialização entre os/as alunos/as dos relatos sobre a construção de suas identidades culturais em pequenos grupos tem-se revelado uma experiência profundamente vivida, muitas vezes carregada de emoção, que dilata a consciência dos próprios processos de formação identitária do ponto de vista cultural, assim como a capacidade de ser sensível e favorecer este mesmo dinamismo nas respectivas práticas educativas. Estes exercícios podem ser introduzidos desde os primeiros anos da escolarização, orientados a identificar as raízes culturais das famílias, do próprio contexto de vida – bairro, comunidades –, valorizando-se as diferenças características e especificidades de cada pessoa e grupo.

Conforme a narrativa dos professores, a escola é compreendida como um local de respeito e de valorização da diversidade cultural. Esse fato é primordial na educação e no contexto escolar, uma vez que possibilita desenvolver “[...] atitudes de tolerância à diversidade cultural, enfatizando currículos multiculturais e estratégias para promover a aceitação cultural nas relações interpessoais” (CANEN, 2001, p. 211).

Ao fazer suas narrativas atinentes à escola e ao professor em relação à diversidade cultural, P1 corrobora com a ideia proposta por Canen (2001), ao sublinhar que:

[...] o papel da escola e do professor, em relação ao preconceito racial na escola, mediador da aprendizagem deve tomar cuidado para que as posturas e as ações, não sejam indicativas de preconceito, respeitando os sentimentos de cada ser em relação a crença, conduta, comportamento, postura e posição social de cada um na sala de aula, assim como também no estabelecimento escolar. As aulas devem ser ministradas sem ferir os princípios daqueles que estão nos ouvindo, e que são de religião diversificada. Desta forma desempenharemos as nossas funções e atingiremos os nossos objetivos que é levar as diversidades multiculturalismo aos nossos alunos. (P1)

Os professores demonstram um posicionamento crítico frente à diversidade cultural presente na escola e buscam desenvolver em suas práticas pedagógicas ações que trabalhem tais diferenças, como resposta à pluralidade presente no contexto escolar. Dessa forma, é importante compreender a escola como um espaço formativo plural e o professor como:

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[...] ator plural e sujeito sócio cultural, constrói/reconstrói, continuamente, à medida que recorre aos conhecimentos incorporados por ele ao longo da trajetória de vida, conforme necessidade da demanda do contexto histórico e social e de seus percursos formativos e profissionais. (MONTEIRO; FONTOURA; CANEN, 2014, p. 639)

Eu trabalho com pesquisas em campo, visitando as pessoas antigas, fazendo entrevistas sobre as plantas medicinais [...]. Sobre o parto [...]. Levo pessoas antigas da comunidade para dar palestras no auditório da escola aos alunos. (P1)

Ao observarmos a narrativa de P1 a respeito dos trabalhos desenvolvidos com os alunos fora do ambiente escolar, ou com pessoas da comunidade convidadas a ir até a escola, somos levados à compreensão de experiência proposta por Dewey (1938), na qual a educação passa a assumir um papel de reconstrução da experiência, com caráter contínuo por meio dos sentidos e significados oriundos da própria experiência.

Bieluczyk e Casagrande (2015, p. 51) mencionam que a educação como reconstrução da experiência consiste em desenvolver a:

[...] capacidade de atribuir significados, amparado pela linguagem comum e pela interação dos membros da comunidade, que o conteúdo torna-se válido pela possibilidade do desacordo ou pela consonância de motivações e interesses que protegem o conteúdo da experiência.

Em relação à experiência e às narrativas, Cunha (1997, p. 188) leciona que “as pessoas vão contando suas experiências, crenças e expectativas e, ao mesmo tempo, vão anunciando novas possibilidades, intenções e projetos. [...] Experiência e narrativa se imbricam e se tornam parte da expressão de vida de um sujeito”.

Diante disso, percebe-se que as narrativas dos professores apresentadas nesse trabalho permitem a reflexão acerca dos processos multiculturais implicados no cotidiano escolar, e se constituem como contribuições significativas, uma vez que demonstram que eles compreendem que o ambiente escolar é constituído por identidades plurais e tais professores caminham na busca por práticas pedagógicas que valorizam a diversidade cultural. A partir do momento em que estes vivem juntos uma experiência e, juntos, tentam construir seus sentidos, podem realizar suas práticas com foco na vivência de histórias.

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Educação ambiental: da teoria à prática no contexto do IFMT, Campus Bela Vista

Paulino Ferreira Filho

Introdução

Esta investigação está sendo realizada no âmbito do Curso de Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Campus São Gonçalo, que ocorre por meio de um convênio firmado entre o Instituto Federal de Mato Grosso/IFMT e a UERJ, como parte da política de capacitação de servidores do IFMT. Como Licenciado em Ciências Biológicas, fundamenta-se a especificidade dessa pesquisa na temática da Educação Ambiental (EA), interesse que me acompanha desde o período da Universidade, ou seja, ainda em minha formação inicial. Sendo assim, esperamos com esse artigo contribuir com algumas reflexões para a construção de uma EA viável, ancorada em um posicionamento ético e na busca pela justiça socioambiental.

A presente investigação tem por objetivo levantar informações a respeito de como a Educação Ambiental é contemplada no Curso Técnico de Nível Médio Integrado em Meio Ambiente, IFMT, Campus Bela Vista, por meio da análise da percepção dos professores acerca da sua formação, das suas práticas pedagógicas e dos reflexos dessas práticas na formação dos alunos.

No contexto de emergência do movimento ecológico no Brasil e no mundo, diversos segmentos sociais começaram a buscar soluções para os problemas ambientais e a Educação Ambiental passou a se constituir como uma possibilidade de transformação do quadro de degradação do ambiente (PALMIERI, 2011).

Nesta conjuntura, o trabalho com a temática da EA mostra-se como um dos mecanismos para sensibilizar a comunidade escolar a respeito da necessidade da tomada de uma posição crítica frente aos desafios impostos quanto à utilização racional dos recursos naturais, “[...] mas ainda temos muito que pensar nas questões relativas à degradação ambiental, que tanto comprometem a qualidade de vida da humanidade e a sobrevivência de futuras gerações” (PEREIRA; FONTOURA, 2014, p. 103).

Será que as pessoas se perguntam: qual ambiente natural deixarei para meus filhos/netos? Até quando a vida poderá existir em meio a tanta degradação?

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Qual minha responsabilidade nisso? O que eu posso fazer hoje para um amanhã efetivamente melhor?

As futuras gerações certamente não são alvo da preocupação da grande maioria das pessoas, ou pelo menos isso não se reflete em atitudes/hábitos que venham ao encontro de cuidado com o meio ambiente e também no cuidado com o ambiente social. Isso se pontua, pois mesmo sabendo que este apresenta reflexos diretos no ambiente natural, que pode repercutir, por exemplo, no lixo jogado em rios e córregos, na falta de esgotamento sanitário adequado, trazendo problemas de saúde e interferindo na qualidade de vida das pessoas. É como se tudo fizesse parte de uma grande engrenagem na qual nenhuma ação passa despercebida, mas sim em que tudo traz reflexos em alguma parte do sistema.

Um ponto importante na construção desse olhar crítico é fazer com que os indivíduos se compreendam como parte do ambiente e que possam refletir sobre medidas que possibilitem uma nova forma de se relacionar com a natureza, não a vendo apenas do ponto de vista utilitarista, na resolução de problemas, mas como tendo um valor em si mesma que precisa ser respeitado.

Um problema que encontramos na sociedade é a ideia de excluir o homem como componente do meio natural. Pereira (2009, p. 62) nos traz isso claramente ao dizer que “O ser humano é entendido como excluso e não como parte do ambiente, como se este fosse apenas um ser social, não é um ser natural, e a natureza sim, é uma coisa natural”. Isso é algo que está massificado nas diferentes culturas e que precisa ser trabalhado para um novo olhar que situe o homem no mesmo nível que os demais seres vivos, no meio natural e também cultural.

Entretanto, precisamos ter a clareza que “[…] não há sociedade fora da natureza; ela é constituída na e com a natureza, sofrendo influências dela e a influenciando. Por mais que alguns fatos socioambientais possam parecer isolados, todos estão de alguma forma, conectados e inter-relacionados” (DICKMANN, 2010, p. 43). Portanto, a sociedade está imersa nesse mundo-natureza e precisa respeitá-lo, principalmente em busca de seu próprio benefício, pois padecendo a natureza, também perece o ser humano. Isso “[...] pode demonstrar que o mundo humano está estritamente ligado ao mundo natural por um polo contraditório em que de um lado o equilíbrio da natureza está na submissão do ser humano as suas leis e do outro a submissão do mundo natural” (PEREIRA, 2009, p. 91). A autora esclarece a dependência que temos da natureza e de suas leis para a manutenção de nossas vidas, ou seja, para a perpetuação de nossa espécie. Além disso, destaca que a natureza se submete ao querer, vontades e ações humanas. Todavia, nossa atuação sobre a natureza deveria pelo menos vir

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acompanhada de reflexão do ponto de vista ético, pois somos responsáveis pelo nosso estar no mundo.

Neste contexto, Pereira (2009) sublinha que os jovens estão imersos em uma cultura em que a mídia exerce papel preponderante, inclusive, na globalização de expressões e estilos que circulam estética e socialmente entre estes. Até mesmo os anúncios vêm, segundo a autora, com uma imagem de natureza relacionada à venda de produtos tecnológicos, incentivando o consumo de computadores, televisores, carros, dentre outros itens.

Mesmo tendo a clareza que a comunicação se utiliza de uma grande variedade de aportes para atingir/conquistar o consumidor, Pereira (2009) ressalta que, ao mesmo tempo em que se dá essa sensibilização em torno do produto/serviço, o consumidor tem também a possibilidade de fazer comparações, podendo então escolher aquilo que mais atenda às suas necessidades. Uma opção seria que os consumidores, em momentos de compra, buscassem produtos com componentes menos poluentes, atentando-se para as condições ambientais de fabricação do mesmo, até mesmo exigindo o selo ambiental que diferenciam os produtos no mercado, informando ao consumidor aqueles que atendem condições ambientais próprias (BOREGGIO NETO, 2008).

De acordo com Palmieri (2011), o fato de as pessoas consumirem mais os produtos que carregam a imagem de “ecologicamente corretas” por conta desta classificação, faz com que ocorra aumento no consumo, e a regra é que fiquem se sentido ainda como se estivessem “fazendo sua parte”. Acrescenta também que é possível perceber que por trás de “boas ações” direcionadas à causa ambiental praticada, principalmente por grandes grupos empresariais, coloca-se à nossa frente um emaranhado de subterfúgios que nos impedem de apreender a realidade que está posta, na qual deixamos, por vezes, de lado também nosso poder de reflexão em relação à realidade concreta e de nossa capacidade de mobilização, deixando, por consequência, de cobrar providências como sociedade que somos.

Assim, é preciso “desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado” (FREIRE, 1996, p. 38). Neste contexto, constituindo-se como fator de elevada importância problematizar, juntamente com os alunos, todas essas informações que chegam por meio de canais, como a publicidade, onde:

Os conceitos de ambiente, natureza e cultura, dentre muitos outros, são disputados pela educação popular e pelo exercício dos meios de comunicação haja vista que os meios têm acirrado uma disputa com seus conteúdos

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e temas que apreendem o sujeito pelos sentidos e utiliza de sistemas simbólicos no desenvolvimento de posturas e ideias. (PEREIRA, 2009, p. 109)

Para a autora, faz-se necessário um posicionamento genuíno por parte de todos os educadores, desvelando o conteúdo das imagens, fazendo com que os alunos possam também enxergar as estratégias de incentivo ao consumo exagerado por trás da mídia com suas belas imagens e propagandas comerciais. A autora acrescenta, ainda, que a forma como os produtos são ofertados também vai se diversificando e os consumidores buscam obter renda e têm necessidade de desfrutar de maior conforto, saúde, bem-estar, socialização, entre outras coisas. Assim sendo, as pessoas, a partir da influência da mídia, muitas vezes, compram uma necessidade que, possivelmente, elas nem tenham.

Quanto mais mercadorias adquirem, mais recursos naturais são consumidos; com o aumento do consumo, mais lixo é gerado; muito desse lixo fica armazenado nos lixões, que podem contaminar as águas subterrâneas, ou seja, o lençol freático. Portanto, é preciso que haja investimentos para a sensibilização das pessoas para a já conhecida regra dos três “R”, a qual todos nós devemos trabalhar em nosso dia a dia como consumidores, que, por sua vez, se resume em Reduzir, Reutilizar e Reciclar.

Todavia, não é uma tarefa fácil trabalhar com mudanças de hábitos das pessoas, principalmente quando se diz respeito àqueles maus hábitos já incorporados. Segundo Mungo (2008, p. 13), “[...] comportamentos são considerados altamente mutáveis quando estão em estágio inicial ou apenas incorporados, superficialmente, aos padrões culturais ou a um determinado estilo de vida”.

Neste raciocínio, é possível compreender o motivo pelo qual se torna complexo e difícil o processo de reformulação de paradigmas em uma percepção que se traduz de forma antropocêntrica, quando colocamos o homem no centro, onde a natureza seria preservada por conta de satisfazer a qualidade de vida desse homem; utilitarista, ao enxergar a natureza como total objetivo de satisfazer as necessidades humanas; e romântica, que sugere a manutenção de uma natureza intocada, sendo que tal padrão também mostrasse inviável, pois o ser humano é também componente desse meio natural, sendo parte integrante deste (PEREIRA, 2009).

Contudo, cabe ressaltar que é preciso ter cuidado com a valorização da educação e, especificamente, no caso do tema do presente trabalho, da educação ambiental como uma força capaz de resolver todos os problemas (PALMIERI, 2011). Assim, entendemos como sendo fundamentais os investimentos do

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poder público e das parcerias público/privadas, com propostas de transformação claras e atuação transparente, que não apenas venham mascarar a realidade dos problemas ambientais, e, por vezes, até tentando minimizá-los, mas com propostas de combatê-los e por que não os superar.

Para Gomes (2009), tratar de Educação Ambiental torna-se um grande desafio para educadores e ambientalistas. Segundo a autora, no âmbito formal da sala de aula é um desafio para os professores trabalharem atividades socioambientais. Ela acrescenta que, por vezes, no Ensino Médio ou Fundamental, os docentes usam recursos como fotos, vídeos, músicas e histórias. Entretanto, as atividades são soltas, ou seja, não são trabalhadas de forma crítica e pedagógica. Sendo assim, Gomes (2009, p. 50) sublinha que após “trabalhar com esses recursos, deve-se garantir a intencionalidade de possibilitar aos professores e alunos a análise crítica dos mesmos”.

Além de tratar do meio ambiente, o currículo pode também, de forma crítica, discutir assuntos como erradicação da miséria, qualidade de vida, justiça social e ambiental, degradação da fauna e da flora, saúde, buscando a sustentabilidade social e ecológica, e, contribuindo, assim, para a construção de uma sociedade menos excludente e mais justa.

Partindo da colocação de Freire (1996), o educador que respeita a dignidade do educando não subestima o conhecimento que esse aluno traz consigo para a escola. Sendo assim, o trabalho em Educação Ambiental também deve perpassar o respeito do conhecimento socioambiental prévio dos estudantes, para só então atingir a construção do um conhecimento mais elaborado. Freire (1996) chama isso de um saber ingênuo que vai sendo superado e substituído pelo saber mais crítico produzido pelo processo cognitivo do educando. Isso não significa que aquilo que o aluno traz consigo para o dia a dia da escola tenha menor valor, ou menor importância, mas pelo contrário, reconhecendo esse valor produzido nos locais de inserção desses sujeitos, problematizar esses cotidianos e, de um saber menos elaborado, produzir um conhecimento mais crítico e reflexivo acerca das suas próprias realidades, partindo do local para entender também a realidade do ponto de vista global.

Palmieri (2011, p. 59), por sua vez, ao analisar as dissertações e teses publicadas no Brasil no período de 1988 a 2008, abordando a temática da Educação Ambiental desenvolvidas em escolas por meio do trabalho com projetos, observou que a maioria destes projetos era advinda de propostas dos próprios professores: 14 (58%), seguidos por Órgãos Governamentais/Prefeitura (Secretarias Municipais de Meio Ambiente e Educação), Secretaria Estadual de Educação; 8 (33%), ONGs 5 (21%), empresas/ Empresas do

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setor energético e de saneamento 5 (21%) e Direção da escola 3 (13%) (p. 58). Para a autora, os docentes

[...] são motivados, principalmente, a partir da identificação de problemas e/ou oportunidades de intervenção na realidade, da participação em cursos, do interesse dos estudantes ou mesmo do fato de o tema ser parte do conteúdo da disciplina Ciências [...].

Não há muitas informações, nas pesquisas, em relação à contrapartida dessas instituições no desenvolvimento de projetos. Porém, algumas das formas mencionadas são: doação de mudas, de recursos financeiros e/ou de materiais educativos, bem como apoio técnico. Em seus resultados, conclui que “[...] os principais temas abordados nos projetos de educação ambiental desenvolvidos nas escolas brasileiras e analisados nas dissertações e teses são: recursos hídricos e resíduos sólidos, presentes em 83% e 71% das pesquisas, respectivamente”, entre outros. A autora destaca ainda que, devido a essa diversidade de frente de atuações, a expressão “educação ambiental” é constituída por uma multiplicidade de significados, seja dentro ou fora da escola, o que ela chama de diferentes “educações ambientais”, se expressando em uma grande variedade de concepções e práticas (PALMIERI, 2011).

Entendemos que a participação do cidadão é fundamental para a superação da crise ambiental que vivemos. Somente as autoridades públicas não dispõem de recursos financeiros e de pessoal para tal demanda que é muito grande. O sujeito deve sim ser chamado à responsabilidade para, calcado na ética, se engajar nessa grande e primordial tarefa de preservar a natureza, e, assim, nos preservarmos também, lembrando sempre que somos parte constituinte.

Pereira e Fontoura (2014, p. 103-104), acrescentam que é relevante que o trabalho em Educação Ambiental seja desenvolvido através de “métodos interdisciplinares de atuação pedagógica”, e problematizam as reais possibilidades de sua realização ao considerarem o modelo atual de formação docente. Segundo elas, “[...] a institucionalização da EA não foi acompanhada por discussões amplas e profundas com os educadores, cuja formação acadêmica, na maioria das vezes conservadora, não prepara para a abordagem interdisciplinar e contextualizada”.

Sendo assim, existe a possibilidade de o trabalho em sala de aula ser articulado de forma que não aborde o conteúdo pelo conteúdo, mas a problematização aconteceria tomando como ponto de partida as necessidades da própria comunidade. Neste raciocínio, torna-se primordial, então, que o aluno lance um olhar crítico sobre os problemas sociais, políticos, ambientais, enfim, sobre

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a realidade que o cerca e possa, de forma autônoma, buscar soluções para os problemas que enfrenta. Justifica-se isso quando Pereira (2009, p. 91) argumenta que a “[...] aproximação concreta do sujeito com sua realidade é capaz de gerar um conhecimento e experiência autêntica, a consciência de si mesmo e a partilha dessas percepções num momento de reflexão com o foco da educação ambiental pode ser um caminho para educadores e educandos” (p. 91).

No que diz respeito a esse trabalho problematizador em sala de aula, Freire (1996, p. 27) fala da figura do “professor crítico”, e do professor “mecanicamente memorizador”. Ao discorrer acerca destes sujeitos, o autor diz que o “professor crítico” é problematizador, por isso mesmo, ensina a pensar certo; já o “mecanicamente memorizador” “lê horas a fio, domesticando-se ao texto temeroso de arriscar-se, [...] não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no seu país, na sua cidade, no seu bairro”.

Contudo, percebe-se que é preciso também que a prática docente venha acompanhada de uma reflexão sobre a mesma, em um fazer dialético, e isso pode ser à base de um caminho interessante onde devemos estimular a implantação e desenvolvimento da educação ambiental em nossas escolas, não de forma isolada e engessada em uma ou outra disciplina, mas de maneira que perpasse por diferentes saberes e produza diversos sabores por meio de atividades interdisciplinares, que essa junção seja a força e traga uma essência positiva e sólida para a prática da educação ambiental (PALMIERI, 2011).

É o que Freire (1996, p. 39) definiu como “[...] o fazer e o pensar sobre o fazer”. O autor acrescenta que ação/reflexão sobre a prática é fundamental também para a formação continuada dos professores, pois “[...] pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”. Entretanto, a educação ambiental não pode ser fundamentada mediante uma “[...] visão comportamentalista da educação ambiental” (PALMIERI, 2011, p. 82), na qual se analisa apenas o problema e não há uma reflexão concernente à sua causa, ou seja, não ocorre uma análise global da amplitude de tal questão.

Através da visão dinâmica e holística do ambiente os alunos poderão “mudar o contexto e a realidade onde vivem como sujeitos históricos e protagonistas de um novo mundo” (DICKMANN, 2010, p. 131). Partindo da realidade local, o conhecimento passa a ser algo significativo e com potencial transformador, podendo ocasionar mudanças de posturas e hábitos já arraigados nas nossas práticas diárias como cidadãos.

Além disso, devemos estar atentos também a respeito de que tipo de professor queremos ser e que tipo temos sido em sala de aula, pois todos deixarão um pouco de si na vida de seus alunos, qual seja:

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O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca. (FREIRE, 1996, p. 66)

Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos (FREIRE, 1996). É essa ética que deve nortear nossas posturas e comportamentos. Uma orientação idêntica se aplica aos nossos educandos, a de nos constituirmos como sujeitos, e nos tornando responsáveis pelo nosso estar e agir no mundo. O autor destaca ainda que “É por isso também que não me parece possível nem aceitável a posição ingênua ou, pior, astutamente neutra de quem estuda, seja o físico, o biólogo, o sociólogo, o matemático, ou o pensador da educação” (FREIRE, 1996, p. 77). É preciso que, o quanto antes, entendamos de forma maciça e extensiva, o valor que a natureza representa em nossas vidas, e a importância que tem para nossa própria sobrevivência, e passemos a investir esforços no sentido de atingir uma educação socioambiental possível, ou estaremos sentindo cada vez mais os efeitos advindos de nossas escolhas negativas (BOREGGIO NETO, 2008).

Ao discorrer acerca do papel e responsabilidade de cada um em relação ao ambiente que nos cerca, Mungo (2008) afirma que a realidade das pessoas se aproxima por meio da Educação Ambiental, possibilitando, assim, que elas percebam o quanto o meio está arraigado em suas vidas. Nisso consiste nossa necessidade, pois precisamos adquirir a preocupação e o cuidado com o meio ambiente do qual nós também fazemos parte. Assim que nos reconhecermos como pertencentes ao ambiente, talvez tenhamos mais respeito e responsabilidade com sua manutenção.

Entretanto, Pereira (2009, p. 105) destaca que o domínio cultural é um grande desafio de nossa sociedade cercada por vários discursos, cada qual com uma construção própria da imagem da natureza, e essa linguagem traz seu caráter ideológico que além de traduzir o social, vai um pouco além, ao também representá-lo. A autora acrescenta que “A educação ambiental pode ser expressa no imaginário, nas crenças, no simbolismo, modos de vida, semelhanças e divergências, proporcionando o contato com possíveis mundos e visões [...]”.

Segundo a Constituição Federal (BRASIL, 1988, Art. 225, § 1º, inciso VI), cabe ao Ensino Médio, “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do

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meio ambiente” (FILIPETTO, 2010). Esse é um grande desafio, pois ao atendermos tal indicação já não caberia, nas atividades escolares, apenas eventos pontuais em educação ambiental, tais como dia da água, dia do meio ambiente, plantio de hortas, entre outros, mas, sim, atividades organizadas/planejadas de forma consistente no currículo escolar, por meio de processos interdisciplinares.

Da mesma forma, é importante ter clareza que os problemas sociais também refletem diretamente nas questões ambientais e devem sempre ser problematizados com a comunidade escolar de uma forma geral. Filipetto (2010) destaca a força que a Educação Ambiental tem para contribuir, além do desenvolvimento ambiental, para o desenvolvimento social sustentável. Ela acrescenta, ainda, a necessidade de formar profissionais em Educação Ambiental, pois acredita que eles atuarão como influenciadores de hábitos e costumes, sendo fundamental uma sólida formação com respeito e responsabilidade com as questões ambientais.

Atualmente, a Educação Ambiental já conta com uma força política que atraiu olhares de diversos grupos de nossa sociedade, tais como: “líderes políticos, associações, camponeses, trabalhadores, jovens e mulheres, entre outros” (CATHARINO, 2007, p. 43). Em se tratando do meio educacional, a autora destaca o fato de que professores/as buscam compreender melhor como se constitui essa Educação Ambiental, levantando mecanismos da forma mais adequada para ser trabalhada em sala de aula. As mudanças passarão por novas posturas e valores, caminhando, assim, na busca por mecanismos viáveis, que possam se apresentar como solução adequada as nossas necessidades e problemas ambientais (BEZERRA, 2010).

Trabalhar a Educação Ambiental é um grande desafio para a escola e para os professores, principalmente, para aqueles que, em sua formação inicial, podem nem ao menos ter discutido e refletido tal temática. Isso certamente será ruim quando em suas práticas tiverem que abordar tal assunto. Pode ocorrer até mesmo de alguns optarem pela não abordagem do tema em sala de aula, advindo da insegurança que terão em relação a tais conhecimentos.

Pereira e Fontoura (2014, p. 110), ao realizarem uma análise bibliográfica exploratória abordando uma Educação Ambiental Crítica e realidade escolar, ancoradas na temática Lixo-Água-Saúde, puderam observar que, enquanto as aulas tradicionais foram citadas pelos alunos como pouco interessantes e pouco atrativas, o interesse dos mesmos era alterado quando o formato de aula se modificava mediante uma mudança nas práticas docentes, com incorporação de atividades mais lúdicas em sua atuação. As autoras concluíram

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[...] que a utilização de atividades lúdicas e interativas dentro do contexto do educando, com o objetivo de informar, promover e estimular o debate acerca de um determinado tema pode promover a deflagração de um processo cognitivo questionador.

Elas ressaltam que a mudança não foi apenas sentida no comportamento dos alunos, mas também pelos professores que, anteriormente, se achavam até mesmo incapazes de desenvolver atividade de Educação Ambiental passando pelo viés do lúdico. Pereira e Fontoura (2014, p. 110) acrescentam, ainda, que tal insegurança, por parte dos docentes, em usarem recursos pedagógicos mais lúdicos, reside na afirmação segundo a qual “os cursos de graduação não os prepararam efetivamente para atuarem no ensino de Ciências, cuja abordagem não deve ser compartimentada/estática, muito menos para a EA”.

“Reconhecemos que o aprender Ciências constitui uma forma de conhecer o mundo, como também de instrumentalizar os indivíduos para atuarem de maneira consciente, utilizando os conhecimentos de natureza científica e tecnológica” (FIGUEIRA; FONTOURA, 2014, p. 656). Entretanto, Pereira (2009, p. 105) destaca que o domínio cultural é um grande desafio de nossa sociedade cercada por vários discursos cada qual com uma construção própria da imagem da natureza, e essa linguagem traz seu caráter ideológico que além de traduzir o social, vai um pouco além, ao também representá-lo. A autora acrescenta que “A educação ambiental pode ser expressa no imaginário, nas crenças, no simbolismo, modos de vida, semelhanças e divergências, proporcionando o contato com possíveis mundos e visões [...]”.

Destacando a importância de aproveitar a experiência dos próprios alunos para o trabalho em sala de aula, Freire (1996, p. 30) sublinha que se pode “[...] discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Por que não há lixões no coração dos bairros ricos [...]”. A escola deve estar atenta a tais demandas, pois tem sua parcela de responsabilidade. É a forma que devemos usar para problematizar a realidade que cerca o aluno, seja por meio de suas necessidades, anseios, e como buscar a satisfação deles. Ademais, buscar entender por que alguns têm mais e outros têm menos ou nada, isso são bases para que seja lançado um olhar atento e reflexivo.

Entretanto, formar vai muito além do que puramente treinar para desempenho de tarefas repetitivas e sem reflexão, mas constitui-se em preparar para o mundo. É preciso preparar os alunos para a compreensão e atuação política frente a uma sociedade mutável e repleta de contradições que precisam ser superadas através de um posicionamento ético e responsável (FREIRE, 1996).

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De acordo com Gomes (2009), o “importante é sabermos que não cabe apenas ao biólogo ou bióloga o ofício de trabalhar com educação ambiental, seja no âmbito escolar ou não, mas sim, cabe a todos (as) nós, independentemente de nossa formação acadêmica”. Palmieri (2011, p. 68) encontra essa mesma postura por parte dos educadores em projetos de educação ambiental que analisou. A partir da análise dos dados levantados ela observou que “apesar de alguns projetos envolverem toda a escola, os autores das pesquisas apontam que ainda predomina a ideia de que os professores de Ciências (principalmente), Geografia e Biologia devem ser os responsáveis pelo desenvolvimento da educação ambiental”. A autora chama atenção que esse fato “é citado por 46% dos autores das pesquisas, os quais afirmam que mesmo quando os projetos envolvem toda a escola, geralmente são coordenados por esses professores, especialmente pelos de Ciências”. Entretanto, nosso entendimento é que, de forma interdisciplinar, todos os profissionais da educação (professores e técnicos) devem atuar de forma a implementar a EA no âmbito escolar. As escolas, além das Secretarias de Educação e das Universidades, atentas a tais demandas, poderiam propiciar ambientes de formação em EA, seja na formação inicial ou continuada desses profissionais, para que os conceitos e os conhecimentos possam ser apreendidos pelos docentes.

Defendemos a ideia de que os servidores técnicos também devem ser incluídos em campanhas, treinamentos, comissões e outras atividades relacionadas à EA. Um exemplo simples seria o uso consciente de material de escritório e papelaria, tais como descartar cartuchos de tonner usados. Para onde encaminhar as lâmpadas queimadas no setor? O que fazer com papel que não tem mais utilidade na instituição, nem mesmo como rascunho? Como sugerir aos docentes que ao invés de imprimir apostilas de trabalho para cada aluno poderia ser dada a oportunidade de trabalharem em grupo quando em sala de aula e todos receberiam o material por e-mail. Essa seria uma forma eficaz para proceder à redução dos gastos com papel, tonner e com a manutenção das impressoras.

Nosso objetivo é refletir como a temática da EA tem sido abordada no Curso Técnico de Nível Médio Integrado em Meio Ambiente, IFMT, Campus Bela Vista, por meio da percepção dos professores. Para isso, analisaremos o histórico de formação dos docentes do curso, com intuito de levantar quais atividades foram desenvolvidas, seja em sua graduação ou Pós-Graduação, que servem de mecanismo de capacitação para o trabalho com/em EA (Formação Docente). Estaremos refletindo também, na percepção dos professores, se os mesmos se sentem preparados para discutir/trabalhar com os alunos temas voltados à EA (Formação Docente).

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A metodologia dar-se-á por meio de uma avaliação dos Planos de Ensino das disciplinas do Curso Técnico de Nível Médio Integrado em Meio Ambiente, mais especificamente, os documentos do último ano do curso (4º Ano). A análise do Plano de Ensino das disciplinas terá por finalidade levantar o enfoque que os professores atribuem à temática da EA, verificando se é abordada em tal documento e como será trabalhada em sala de aula.

Em se tratando de uma pesquisa qualitativa, os dados serão analisados pelo método de Tematização, que de acordo com Fontoura (2011), consiste em mecanismos de coletar os dados por meio de entrevistas, depoimentos orais de diferentes formatos, ou até mesmo na forma escrita, utilizando perguntas abertas mediante a aplicação de questionários, garantindo aos dados uma sistematização que refletirá em entendimento e aproveitamentos adequados do material, em busca da análise dos pressupostos da pesquisa. A autora cita ainda que as entrevistas podem ser registradas em áudio ou vídeo gravação, passando pela autorização dos colaboradores, o que ela cita como de fundamental importância e demonstra respeito pelos parceiros da pesquisa, além de que torna viável a observação da linguagem não verbal, mediante os gestos e expressões, etc. Logo após a tematização, a autora destaca que se faz a reconstrução dos textos analisados e se passa a fazer as interpretações e ligações com a literatura pertinente aos temas encontrados, em um novo texto, buscando sempre a verdade dita pelos informantes e nunca o que pensa o pesquisador.

Por meio de um olhar reflexivo, poderemos observar as práticas que podem ser classificadas como positivas para crescimento dos professores e desenvolvimento dos alunos. Posteriormente, essas práticas podem ser divulgadas e até mesmo implementadas, respeitando as devidas particularidades, em outros campi do IFMT.

Acreditamos ser uma oportunidade para o professor falar a respeito de suas dificuldades e também facilidades em trabalhar a EA com seus alunos, refletindo também ainda sobre sua formação inicial e continuada em relação a essa temática.

Referências

BEZERRA, S. H. L. De professor para professor: a prática da educação ambiental na sala de aula. 2010. 101 f. Dissertação (Mestrado em Educação Agrícola). Instituto de Agronomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2010.

BOREGGIO NETO, A. Consumo sustentável e educação ambiental: um diálogo necessário. 2008. 99p. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Educação, 2008.

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BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Geográfico, 1988.

CATHARINO, R. C. A. S. Imagética dos livros didáticos nas relações de gênero e educação ambiental. 2007. 92 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá.

DICKMANN, I. Contribuições do Pensamento Pedagógico de Paulo Freire para a Educação SocioAmbiental a partir da Obra Pedagogia da Autonomia. 2010. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Paraná, Curitiba.

FIGUEIRA, S. T. S. A.; FONTOURA, H. A. Do Aprender ao Ensinar Ciências: Possibilidades Formativas para Docentes dos anos iniciais. IV Seminário de Justiça Ambiental, Igualdade Racial e Educação. Duque de Caxias, RJ – São Gonçalo, RJ – Rio Grande, RS, 18 a 22 de agosto de 2014.

FONTOURA, H. A. Analisando dados qualitativos através da tematização. In: FONTOURA, H. A. (Org.) Formação de Professores e Diversidades Culturais: múltiplos olhares em pesquisa. Niterói, Intertexto, 2011, p. 61-82.

FILIPETTO, L. M. A educação ambiental como forma de desenvolver a cidadania: investigação sobre a percepção ambiental dos estudantes do curso técnico em Enologia do IFRS – Bento Gonçalves (RS). 2010. 94 f. Dissertação (Mestrado em Educação Agrícola). Instituto de Agronomia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2010.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GOMES, G. R. N. S. Educação ambiental escolarizada na rede pública de ensino em Mato Grosso. 2009. 80 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2009.

MUNGO, E. L. L. Meio Ambiente e educação: um olhar para a prática pedagógica no ensino fundamental da escola Dr. Estevão Alves Correa, Cuiabá – MT. 2008. 95 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, 2008.

PALMIERI, M. L. B. Os projetos de educação ambiental desenvolvidos nas escolas brasileiras: análise de dissertações e teses. 2011, 189 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP/ SP, 2011.

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PEREIRA, A. S. O Ambiente e a Publicidade: Elos para a Educação Ambiental. 2009. 114 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Educação, 2009.

PEREIRA, E. G. C.; FONTOURA, H. A. Educação Ambiental e o Ensino de Ciências: Discutindo a Ação Docente. IV Seminário de Justiça Ambiental, Igualdade Racial e Educação. Duque de Caxias, RJ – São Gonçalo, RJ – Rio Grande, RS, 18 a 22 de agosto de 2014.

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Didática transdisciplinar: pesquisa e análise de possibilidades

Rodolfo Carli de AlmeidaAna Paula Carli de Almeida

Introdução

Com o surgimento de instrumentos como o microscópio, telescópio e barômetro, a matemática ganhou enorme destaque no século XVII, marcando a origem da ciência moderna. Neste período, René Descartes (1595-1650) tenta explicar todos os fenômenos a partir do raciocínio lógico e sugere que os problemas seriam mais facilmente resolvidos se fossem particionados em pequenos problemas – movimento denominado cartesianismo. Desde então, o conhecimento foi fragmentado em disciplinas. No século XIX a ciência se distanciou da teologia e filosofia dando início à universidade moderna, com departamentos, faculdades e objetivos ligados ao momento socioeconômico.

Com currículos engessados, a universidade se rotinizou, domesticou o pensamento, treina para aumentar a eficiência do sistema, castra a criatividade (JAPIASSU, 2006) e vem formando docentes como peças em série, como se estivessem em uma linha de montagem. Cada vez mais especializados em áreas específicas, quando vão lecionar, os docentes se deparam com a seguinte pergunta dos alunos: por que eu estou aprendendo isso?

O pesquisador francês Edgar Morin traz uma resposta para esta questão. Ele, que influenciou muitos autores neste trabalho, explorou o que seria uma educação complexa e planetária. Mostrou que a transdisciplinaridade não está somente na sociologia, mas na economia, na educação, na política, e em tudo que permeia a nossa vida. Em seu discurso, o teórico abre nossos olhos para uma educação que, ao invés de relacionar, separa para simplificar, e isso nos leva a não compreender o todo.

A transdisciplinaridade, fundamento deste artigo, remete à ideia de transcendência para uma tomada de consciência, pois compreendendo o mundo de forma que “[...] as relações e as qualidades da natureza por meio da práxis, o ser humano põe em desenvolvimento suas próprias capacidades [...]” (NEFFA, 2010, p. 181), construindo conhecimento significativo, tanto para as relações profissionais, quanto humanas para um processo evolutivo e de sujeitos preocupados com o outro.

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O prefixo “trans” (para além de) chama-nos para uma passagem qualitativa a um estágio superior de articulação disciplinar (POMBO; LEVY; GUIMARÃES, 1993), no que se tem em questão o que está entre as disciplinas. A intervenção, nesse caso, é coletiva. O transdisciplinar, então, é o conjunto de todas as percepções somadas às transições entre elas. (DIB-FERREIRA, 2010).

O artigo em tela é fruto da pesquisa para a dissertação de Mestrado “Perspectivas sobre a tecnologia num projeto transdisciplinar” (ALMEIDA, 2016), realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Faculdade de Formação de Professores (UERJ-FFP), com o objetivo de investigar as possibilidades formativas do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC para desenvolver práticas transdisciplinares no contexto do projeto “Uma prática pedagógica multidisciplinar em ambientes naturais: contribuindo para uma visão sistêmica a trajetória humana em relação à natureza”, no curso Técnico de Nível Médio Integrado em Meio Ambiente, no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – IFMT.

De acordo com Filipecki (2010, p. 70), além do conteúdo científico da pesquisa, em que o docente tem compromisso em ensinar, “na lógica transdisciplinar, convivem múltiplas verdades, múltiplos níveis de visão, múltiplas oportunidades de percepção” Sendo assim, ao mesmo tempo, ele valoriza a especialização das disciplinas que unem o saber científico e os outros saberes; ainda aposta que há uma educação científica orientada para a paz, que “[...] só pode acontecer na medida em que as disciplinas especializadas se complementam e se entrelaçam na busca de soluções”, ou seja, nada impede que os cientistas se reúnam e construam um conhecimento global, ou que professores desenvolvam projetos que conectem o conhecimento à vida prática.

Didática transdisciplinar

À medida que o educador se compromete com uma das peças importantes do processo de aprendizagem com o aluno, fica estabelecida uma interação aluno-professor, uma interação ensino-aprendizagem que evolui para o maior interesse do aluno em aprender. O desafio é transformar a profissão docente em uma profissão do conhecimento. (LEITE; FONTOURA, 2013, p. 09)

Ao discutir didática e formação docente transdisciplinar deve-se ter em mente que estamos falando de justiça social, pois segundo Libâneo (2013, p. 79) “[...] a escola ainda é o melhor lugar e o melhor caminho para a luta política pela

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igualdade e pela inclusão social”, e, neste contexto, democracia está relacionada a assegurar ao aluno qualidade cognitiva, entre outras prerrogativas. Portanto, ao assumir a carreira docente, não se deve pensar no aluno formado como um produto final, pois a aula não é um ritual de normas, mas, sim, pensar o aluno como uma pessoa que está em formação cultural e intelectual para uma vida em sociedade, já que se trata de um ser humano cheio de necessidades e medos. Por isso, devemos retomar a atenção para este tema, pois no cotidiano das rotinas diárias do professor, por vezes, perdemos a perspectiva do que realmente estamos fazendo em sala de aula (NAVAS, 2010).

Optar por la persona, antes que por el alumno, significa por tanto entender que el componente principal de toda acción de educar y de enseñar, es sobre todo ayudar a que las personas de nuestros alumnos crezcan, se desarrollen, maduren, lo cual no es otra cosa que hacerse autónomos en el más amplio sentido del término. (NAVAS, 2010, p. 71)

É natural que em nossas salas de aula utilizemos técnicas e estratégias didáticas que nossos professores usaram em nossa formação. Todavia, neste momento de reflexão é notório que a situação planetária, social e humana exige uma mudança de paradigma. As perguntas que trazemos são as mesmas de Arnt (2010, p. 111-112) “[...] como podemos educar para sermos mais sábios e não somente mais talentosos ou especialistas em determinadas áreas de conhecimento. Como educar para o discernimento ético, para a compreensão humana, para a cidadania planetária? Como educar para ser o que não somos?”, sendo que esta última pergunta incomoda qualquer leitor, não há dúvidas. Em uma sábia síntese, o mesmo autor sugere que “[...] se aprendemos a conhecer, conhecemos como reconhecer e aprendemos como aprender, não precisamos reinventar o mundo”, e, partindo deste pensamento, seguimos mapeando como a didática transdisciplinar nos permite chegar a este entendimento de aprendizado e vida.

Por que falar de didática se sabemos que tudo se reduz a passar em exames e provas? Este foi o questionamento de Navas (2010) ao iniciar sua desconstrução didática. Esta pergunta ronda as reuniões pedagógicas e capacitações. O professor que entende seu papel social acaba por se sentir sozinho nesta luta por qualidade na educação, e, por vezes, abandona a batalha quando pensa que somente ele não conseguirá mobilizar e sensibilizar os alunos. Para o autor, nosso papel docente está em fazer o aluno questionar-se até que encontre as respostas. Então, nossa responsabilidade não está em ensiná-lo a responder questionários, mas sim, a refletir a respeito do problema:

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Un hacer pedagógico em que el poder del professorado es generalmete arbitrario y omnímodo y por tanto cómplice y responsable de la naturalización y normalización de un modelo que sistemáticamente há venido ignorando los principios más elementares de aprendizaje que se conocen desde Sócrates descubrió la mayeútica. (NAVAS, 2010, p. 67)

A maiêutica é prática transdisciplinar e está implícita quando Japiassu (2006) explica que o mais eficaz é o pensamento livre e crítico, quando se permite abandonar preconceitos e questionar as verdades e o dogmatismo. Tudo isso consiste em interrogar-se constantemente, e neste intuito, enfrentar as incertezas, permitir e estar aberto para aceitar as mudanças conceituais em nossas vidas, a partir de uma atitude filosófica:

[...] uma aprendizagem bem-sucedida só pode ser uma mudança de concepções, um processo complexo e frequentemente desagradável para o educando, posto que cada modificação é percebida com uma ameaça suscetível de alterar o sentido de suas experiências passadas, o erro devendo ser integrado no cerne mesmo do processo de aprendizagem. A pretensa maturidade intelectual, orgulho de tantos sistemas de ensino, constitui apenas um obstáculo entre outros. (JAPIASSU, 2006, p. 48)

Essa maturidade que Japiassu (2006) trata no olhar docente se refere à forma didática de viver e planejar como a complexidade será abordada na sala de aula e, conforme Suanno (2013, p. 33), isso é possível se as universidades desenvolverem nos novos professores a tríade que ela propõe: “[...] a) autoformação, coformação e ecoformação; b) compreender, atuar e refletir; e c) formação, ação e investigação”.

Cabe aqui explicar a primeira tríade formativa. Segundo Braga (2013), autoformar-se não significa uma egoformação, pois a formação não é individualista. Ao contrário, ela está relacionada com as histórias de vida do docente que sensibilizam sua formação pedagógica. O coformar está associado ao fazer concomitante, simultaneamente ao trabalho, à família, à vida, pois não há tempo para um pausa e reflexão tranquilos. E, por fim, a ecoformação está instalada no ato de perceber-se como parte do planeta, sendo responsável pelo clima, atuando como produtor de culturas, influenciador social e político e praticante do exercício da sensibilidade com os outros.

Nas pesquisas relacionadas à didática transdisciplinar nos deparamos com duas situações: a dos docentes que já estão em sala de aula e como explicar e

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fazer com que eles abracem a ideia e desenvolvam uma ecoformação, com menos conflito, porém de maneira concreta e efetiva, e a da formação do novo docente que está ainda na universidade e logo ingressará para o mercado de trabalho.

Inicialmente, pensando a partir da origem, voltamos o olhar para as possibilidades na formação docente. Assim, conforme Fernández (2010 apud SUANNO, 2013), é necessário que a formação assegure um diálogo entre: a) autorreferência (eu só posso ver o que eu quero ver; eu só posso ver o que eu posso ver); b) incompletude (não é possível escapar da incerteza, jamais alcançamos um saber total); c) indeterminação (a precisão da visão do indivíduo é seletiva).

Nesta perspectiva existe a opção da formação docente aberta, ou seja, um currículo livre que permita que cada acadêmico escolha cursar disciplinas diversas dentro das optativas da sua universidade ou também de outras faculdades. Assim, será possível se formar um profissional melhor, um docente transdisciplinar que sensivelmente escolheu o caminho da sua formação, que o diferencia da massa de professores. Na visão de Fernández (2010, apud SUANNO, 2013) e também de Moraes (2010), uma formação didática transdisciplinar direciona o universitário para: uma consciência em matéria de investigação (saber encontrar as respostas); usar sua criatividade a partir dos novos saberes, também discutido como sendo a dimensão do desenvolvimento do pensamento alternativo na produção de novos olhares; a ecoformação (autopromoção humana), ou simplesmente: aprender a aprender; desenvolver habilidades sociais e de cooperação, explorando as capacidades dialógicas e de não discriminação, estimulando o senso de justiça; enfrentar a falta de informação já que devido ao volume e à velocidade das mídias nos vemos sufocados e se torna difícil filtrar fatos das opiniões, resultados das intensões e isso gera uma desinformação; aprender a amar, atitudes e habilidades de respeito, conceder aos outros o direito de ser e pensar diferentes, porque amar é cuidar de algo. Para que todas essas dimensões sejam desenvolvidas, a universidade deve promover a investigação de práticas formativas e pedagógicas emergentes.

O termo universidade aberta popularizou-se na década de 1970 com o surgimento da Open University do Reino Unido, além das prerrogativas mais conhecidas como: acesso gratuito, material didático pensado no aluno, espaço e tempo livre de acordo com a disponibilidade do aluno, estudo presencial ou a distância, uso de recursos tecnológicos (plataformas, mídias, etc.). Santos (2012) esclarece que a universidade aberta permite ao aluno escolher as disciplinas que quiser, pois há uma flexibilidade dos cursos. Deste modo, ele traça seu caminho acadêmico a fim de cumprir os créditos necessários para a conclusão e formação

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docente. Em sua pesquisa de Mestrado acerca da Universidade Aberta do Brasil, Cruz (2007) apresenta como característica básica que a autoaprendizagem está relacionada à flexibilidade de currículos oferecida por essas instituições.

Como exemplo, podemos citar a Universidade Federal do ABC – UFABC e a análise de seu Projeto Pedagógico do Curso – PPC, de Bacharel em Ciência da Computação que é composto por 256 créditos, em que 124 são disciplinas obrigatórias de um eixo central que padroniza a formação e corresponde a 48,4% do curso (UFABC, 2015). Neste currículo há 120 créditos de disciplinas optativas limitadas que permitem ao aluno escolher disciplinas de outros cursos já pré autorizadas pelo colegiado e sugeridas pelo próprio PPC do curso. As disciplinas ofertadas fazem parte do currículo dos cursos de Matemática, Engenharia de Gestão, Engenharia da Informação, Neurociência e Engenharia de Automação e Robótica. Ainda há 12 créditos de disciplinas de opção livres para o aluno cursar qualquer disciplina oferecida em qualquer curso da UFABC.

Todas essas opções não são propostas para facilitar a vida do acadêmico, e sim proporcionar que ele escolha sua ecoformação, uma formação transdisciplinar que será um diferencial no mercado de trabalho, que lhe permita conectar cognitivamente o conhecimento científico com o que simboliza para seu projeto de vida e de profissionalização.

Além da estrutura do curso facilitar essa formação transdisciplinar, uma das formas para que isso seja possível é a criação de novos cenários, cenários vivos, “lugares permanentes de trocas e debates permitindo aos diversos ‘especialistas’ colocar em comum suas experiências e interrogações sobre a ciência que fazem”. (JAPIASSU, 2006, p. 25) e como também explicam Moraes e Navas (2010, p. 55):

Ambiente de aprendizagem como espaços onde interagem professores, alunos e representantes da comunidade, instrumentos e tecnologias digitais, geradores de circunstâncias para que a aprendizagem aconteça e os objetivos sejam alcançados. São espaços relacionais, vivos, criativos, por onde fluem e confluem informações, emoções, sentimentos, intuições, desejos, linguagens de diferentes naturezas e procedências, materializadas de formas diferentes.

Independentemente das pessoas envolvidas, não se pode retirar a responsabilidade da instituição escolar de disponibilizar os recursos, propiciar os meios, promover e incentivar esta sensibilização de uma ecoformação. Mesmo assim, ainda corremos o risco de encontrar cientistas que coabitam harmoniosamente sem interagirem (JAPIASSU, 2006).

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Ao pensar no docente que já está em sala de aula, é comum usarmos o termo formação continuada, mas os autores transdisciplinares preferem falar em autoformação ou ecoformação, que sugere um questionamento constante e reflexivo a respeito das ações desenvolvidas, que buscam transformar do nosso cotidiano entrópico em uma oportunidade de autopoesia. Fazer da necessidade de crescer profissionalmente como docente um momento de desenvolvimento pessoal como é o caso de se cursar mestrado e doutorado na vida de muitos de nós. Trata-se, portanto, de mesclar a formação com o desejo, o sonho, a vida. É importante considerar que a realização profissional está relacionada à satisfação do fazer, e, como alertam Tardif e Lessard (2013, p. 17), precisamos interrogar nossa própria humanidade, valorizar a formação docente e não deixar que o ensino seja visto como uma “ocupação secundária ou periférica em relação ao trabalho material e produtivo”. Esta realidade precisa ser mudada.

Com a alternativa de grupos de pesquisa, projetos de extensão, trabalhos escolares transdisciplinares, e até mesmo na capacitação pedagógica das semanas de planejamento, é possível trazer a comunidade acadêmica para uma reflexão coletiva acerca de uma educação planetária e transdisciplinar, como sugere Suanno (2013, p. 28):

De acordo com o Manifesto1, trata-se, inicialmente de os professores tomarem consciência e assumirem-se como protagonistas na mudança do modelo pedagógico vigente, a fim de criar novas condições de transformação social, das relações, das interações, de forma que as pessoas e as instituições educativas possam trabalhar em favor de uma educação para a vida, a serviço da vida e seguindo as leis internas da vida.

Como poderá se observar no desenvolvimento desta pesquisa, uma reunião de estudos já pode ser o início de um novo olhar reflexivo a respeito da educação. Nenhuma mudança social na história da humanidade aconteceu instantaneamente ou abruptamente. Ainda mais quando se fala na tradição secular da educação; sendo assim, na escola não se pode pensar em mudanças drásticas para que os docentes aceitem e compreendam a didática transdisciplinar. Devemos “pensar a educação para uma sociedade em transição, estabelecendo e construindo novos significados para o contexto histórico, social, político, econômico, ambiental, existencial e educacional” (SUANNO, 2013, p. 28).

1 Suanno (2013) se refere ao Manifesto Madri – UNESCO / 2009 que trata da sugestão de um modelo pedagógico transdisciplinar.

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Portanto, nesta conjuntura, a simples atitude de ouvir, refletir e estar menos fechados para o novo, já será um passo em direção à reeducação transdisciplinar. Em um primeiro olhar em relação ao discurso transdisciplinar é comum interpretar que a especialização é negativa, mas o que precisa ser compreendido é que cabe ao docente ser articulador e usar de sua especialidade para “religar, fazer convergir, contextualizar, representar os vínculos e as interações do que percebemos ou conhecemos” (JAPIASSU, 2006, p. 25).

É difícil compreender porque a experimentação ou a mudança é tão lenta, mas, independentemente de estarmos em uma escola pública ou particular, o trabalho docente sempre será comparado por padrões estabelecidos há muitos anos. A repetição dos padrões nos leva ao ‘kumonismo’, que é a antítese da criatividade. Como afirma D’Ambrósio (1997, p. 96), “a velha ideia de quanto mais vezes faz, melhor faz, é insustentável”; o mesmo autor explica que até as empresas já perceberam que o funcionário não deve executar a mesma função por mais de cinco anos, pois sua capacidade criativa se esgota. Contudo, para os docentes, como mudar esse sistema dominante? Como não se sentir mais uma engrenagem da educação padronizadora?

Não há receita ou forma correta de fazer a educação, mas no pensamento de Moraes (2010, p. 19) visualizamos um norte inspirador para a vida docente:

Pressupõe o entendimento de que a vida é um permanente processo-projeto sempre novo e cheio de inventividade, de realização amorosa, de acolhida generosa, de convivência, de percepção e decodificção das múltiplas realidades existentes, momentos de encontro, de cooperação e de comunhão, um projeto no qual cada um oferece o que tem de melhor a partir de sua experiência pessoal e profissional.

Que no futuro os docentes extrapolem a racionalização. E que esta pesquisa traga um recorte educacional que nos permita contribuir para uma reorganização de produção de sentidos, enfrentando as situações problemáticas com sabedoria, paciência, muito estudo e escolhas orientadas pela ética.

Algumas considerações

Na visão transdisciplinar, o fato de termos professores especialistas e/ou conhecedores profundos de suas ciências não os torna vilões do ensino. A situação atual da educação é um problema de políticas públicas. Como já citado no texto, se os docentes não tomarem consciência de seu papel social, os

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paradigmas da educação cada dia mais levarão a escola a ser apenas um espaço de reprodução e não de construção do conhecimento.

Reproduzir a forma como se aprendia há 30 anos não é como passar um bastão em uma prova de revezamento. Este não é o papel do profissional da educação. Educar, na visão transdisciplinar, consiste em ir além do conteúdo formal. Significa trazer os alunos para refletir sobre o que se aprende e qual sua relação com a vida. Para isso, os docentes devem estar imbuídos, tais como agentes de mudança social, com um espírito de seres modificadores e construtores de uma consciência planetária.

Quando não há uma formação universitária ou de Pós-Graduação transdisciplinar, as alternativas são as capacitações na escola, em eventos, semanas pedagógicas, cursos e treinamentos. A equipe pedagógica deve estar sempre atenta para estes momentos e vivências, em que, mesmo que lentamente, pode-se plantar a semente transdisciplinar, sempre pautada nos conceitos da ecoformação, autoformação e conformação, discutidos neste trabalho.

Em uma realidade escolar com docentes sem dedicação exclusiva, o processo de capacitação continuada é de difícil execução. Encontrar um espaço livre simultaneamente na agenda de todos parece ser uma missão impossível, posto que atuam em várias escolas e/ou trabalhos diversos. De outro modo, deve-se ter em mente que a formação é um processo individual e que cada docente, assim como pensamos a formação do aluno, irá se abrir e refletir para a transdisciplinaridade no seu espaço/tempo. A pressão nunca funcionou com os alunos e não será com os docentes que irá dar certo. O processo de mudança, naturalmente, é lento, mas não é impossível.

Mesmo em face das dificuldades da educação brasileira, é possível que pequenos grupos promovam o desenvolvimento de projetos práticos, oficinas ou eventos pautados nos princípios da transdisciplinaridade. E, assim, acreditamos que o bom exemplo será sempre um bom professor de todos.

Referências

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Inclusão escolar de crianças com necessidades educacionais especiais no 1º Ciclo do Ensino

Fundamental: narrativas de professoras

Sandra Pavoeiro Tavares Carvalho

Pensar a educação de crianças com necessidades educacionais especiais – NEE junto a professoras do 1º Ciclo do Ensino Fundamental tem sido um grande desafio. Para iniciar nosso diálogo, apresento um excerto da narrativa de duas docentes participantes de minha pesquisa de Doutorado, as quais explicitam a preocupação existente frente ao processo de inclusão escolar.

É o primeiro ano que pego uma criança especial na minha sala e de início assim, pra mim, foi um pouco assustador (Professora Rosângela).

Eu comecei a trabalhar com crianças especiais no ano passado. Nunca tinha trabalhado [...] não tinha nenhuma experiência (professora Paula).

Os relatos das professoras apontam que, com a garantia do direito à educação para todos, as crianças com NEE passaram a compor o cotidiano das unidades escolares, fazendo com que elas, assim como muitos docentes, tenham que aprender a conviver e a lidar com as diferenças em sala de aula.

As escolas, orientadas por vários documentos internacionais e nacionais norteadores da educação, devem favorecer o acolhimento e a aprendizagem de todos os alunos e encontrar maneiras de educá-los com êxito, assegurando o atendimento de suas necessidades específicas (UNESCO, 1994). Assim, precisam fazer o exercício de imaginar-se de outra maneira – não estratificadas pela capacidade, não apegadas a um currículo fixo, bem equipadas, com professores inovadores, engajados, bem apoiados, assumindo que uma ampla reforma escolar só é possível a partir do entendimento de que o ajuste das escolas a algumas crianças significa o ajuste das escolas para todas as crianças, pois “boas escolas são boas escolas para todos os alunos” (SHAFFNER; BUSWELL, 1999, p. 69).

Independentemente das necessidades educacionais especiais existentes – facilidades ou dificuldades, talentos, deficiências, origem sócio econômica ou origem cultural – as escolas, mediante constatação dessas condições, ficam

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obrigadas a oferecer recursos, adaptações que atendam aos diferentes ritmos de aprendizagem e apoio pedagógico especializado em sala comum ou em sala de recursos multifuncionais (BRASIL, 2001). Deste modo, as NEE, embora sejam consideradas uma condição individual e específica dos alunos, se manifestam na experiência de escolarização a que eles são submetidos. Assim, para aprender o que é esperado para seu grupo-referência é preciso identificar como se dá a interação entre os alunos e a realidade educativa. É preciso conhecer quais são suas demandas específicas e oferecer:

[...] diferentes formas de interação pedagógica e/ou suportes adicionais: recursos pedagógicos, metodologias e currículos adaptados, bem como tempos diferenciados para aprender os mesmos conteúdos que os demais, durante todo o seu percurso escolar ou parte dele. (GLAT; PLETSCH, 2012, p. 21)

Devido à necessidade de ter que adotar novas formas de interação e de convivência e propor estratégias pedagógicas que visam à reorganização do contexto educativo, as escolas precisarão contar com o compromisso de todos os profissionais que nela atuam, para que possam promover a ressignificação das práticas educacionais (GLAT; BLANCO, 2007; MANTOAN, 2011).

Durante a pesquisa de Doutorado, ao conviver com professoras de uma Escola Municipal de Educação Básica – EMEB, de Cuiabá-MT, observei que, embora elas tentem acolher os alunos com NEE, encontram dificuldades para atender às especificidades que estes estudantes apresentam quanto ao ritmo diferenciado na realização das atividades, formas de comunicação não usuais, comportamentos não esperados e inadaptação. Os docentes relatam que muito ainda precisa ser feito para que o ensino seja considerado de qualidade, e que várias situações vivenciadas na rotina escolar causam tensões e conflitos.

Inúmeros documentos afirmam que os professores que possuem alunos com NEE em suas salas de aula devem ter como base da sua formação inicial e continuada conhecimentos gerais para o exercício da docência e conhecimentos específicos da área. No entanto, não é isso que as pesquisas têm apontado; Bueno e Marin (2011), após consultar estudos relacionados à formação docente, indicam que os cursos de Graduação e de Pós-graduação oferecidos pelas universidades brasileiras, apresentam certo distanciamento das demandas que são específicas do alunado com NEE. Zeichner (2009), ao se referir à realidade educacional americana, encontra situação similar e aponta que a temática também tem sido pouco explorada, e deveria merecer atenção, visto que a maior parte dos professores trabalha com esses alunos em suas salas de aula.

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Tidos como o centro do processo educativo, conforme Day (2001, p. 16), “os professores se constituem no maior trunfo da escola”; são sujeitos ativos que com seu potencial de desenvolvimento, aprendizado e participação na tomada de decisões coletivas, são, portanto, peças-chave para o alcance dos objetivos escolares. Nesse sentido, o autor alerta que é preciso pensar a respeito do papel do professor, da sua formação e do seu desenvolvimento profissional, pois as salas de aula estão repletas de alunos provenientes de meios socioculturais diversos, que apresentam distintas capacidades, motivações, disposições para aprender. Ademais, destaca que o ato de ensinar se constitui em um processo complexo, tanto em termos organizacionais, como pessoais e que um ensino eficaz para além de adaptações na infraestrutura escolar, exige do professor “destrezas, quer intrapessoais, interpessoais e um empenhamento pessoal e profissional” (DAY, 2001 p. 17).

A apropriação da nova realidade face às mudanças existentes no contexto escolar, no comportamento dos alunos, no atendimento às suas especificidades e mudanças nas expectativas dos próprios professores, traz como implicações para os docentes a necessidade de que eles se engajem em um processo de aprendizagem contínua que deve se dar ao longo de toda a sua carreira (NÓVOA, 1995; GARCIA, 1999; DAY, 2001).

Na tentativa de compreender como a escola tem se organizado para atender às crianças que apresentam NEE, indagamos: o que as professoras têm a contar sobre como lidam com essas crianças em suas salas de aula? Como tem sido a rotina junto a elas? Como tem se dado o processo formativo? Para tal investigação, busco amparo nos princípios da pesquisa narrativa (CLANDININ; CONNELLY, 2011), entendendo que o fenômeno educativo por ser dinâmico e complexo deve ser estudado em suas particularidades, a partir das experiências historiadas, das histórias que as pessoas vivem e contam.

Para Clandinin e Connelly (2011), os sentidos que são atribuídos a essas histórias vão se constituindo a partir de um espaço que é criado no entrelaçamento de assuntos que são temporais, e que estão focados em aspectos pessoais, em aspectos sociais e que ocorrem em lugares específicos. Assim, a dimensão temporal, espacial e de outras pessoas está sempre presente na pesquisa narrativa, formando um contexto que é considerado elemento indispensável para dar sentido à vida de qualquer ser humano, evento ou coisa. Ao dar ênfase às experiências das pessoas, a pesquisa narrativa pressupõe também a existência de uma situação relacional que se dá na interação e colaboração entre pesquisador e participantes ao longo de um tempo, em um dado lugar ou série de lugares. Tais aspectos são essenciais para a compreensão das histórias contadas.

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Para contextualizar o estudo realizado, apresento inicialmente neste texto uma síntese da produção acadêmica referentes a Inclusão Escolar e Educação Inclusiva, seguida da caracterização do lugar onde a pesquisa foi desenvolvida, e a análise de um recorte das narrativas construídas pelas professoras participantes.

Achados sobre Inclusão Escolar e Educação Inclusiva

Conhecer um pouco a respeito da produção acadêmica existente acerca da Inclusão Escolar e da Educação Inclusiva auxilia na compreensão das mudanças educacionais que vêm ocorrendo nas escolas frente à implementação de ações previstas em políticas públicas, pois é a partir delas que as professoras da EMEB começam a contar as suas histórias e atribuir sentidos às experiências que vivenciam. Os estudos relacionados ao assunto são considerados recentes e têm merecido a atenção de pesquisadores que, ao analisarem a produção discente de Programas de Pós-graduação em Educação, identificam as temáticas investigadas, os paradigmas epistemológicos adotados, os procedimentos metodológicos em uso, detectando as tendências e lacunas existentes no conhecimento referente à área (MENDES; NUNES; FERREIRA, 2002).

Um levantamento atinente à produção do Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ e da UFSCar, no período de 1981 a 1995, efetuado por Nunes et al. (1999) apontou que 197 dissertações de Mestrado tiveram como alvo a Educação Especial, a educação de crianças com NEE e exploraram, particularmente, o processo de ensino aprendizagem da criança e do adolescente com deficiência mental. Estes estudos, predominantemente descritivos, apresentaram indícios de mudanças da concepção de ensino aprendizagem – do modelo clínico para o modelo psicoeducacional – anunciando a existência de aproximação com as discussões pedagógicas desencadeadas pela educação regular, assim como pontuaram a necessidade de valorização do cotidiano escolar e das relações e estabelecidas neste espaço.

Posteriormente, a produção acadêmica disponibilizada pelo Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, entre os anos de 1997 e 2003 foi analisada por Bueno (2008b) que utilizou para tal investigação a Educação como área de conhecimento e os descritores Inclusão Escolar e Educação Inclusiva para a seleção dos trabalhos. O mapeamento de Bueno (2008b) permitiu o acesso a 127 pesquisas, sendo 109 dissertações de Mestrado e 18 teses de Doutoramento. Tal quantitativo de estudos está apresentado na Tabela 1.

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Tabela 1 - Distribuição anual dos descritores – 1997 – 2003

Ano Inclusão Escolar Educação Inclusiva Ambos

1997 1 0 01998 1 0 01999 0 3 12000 3 7 02001 9 9 42002 19 19 72003 17 20 7TOTAL 50 58 19

Fonte: BUENO (2008a, p. 48)

Os dados apontam que o termo Inclusão Escolar começou a ser utilizado nos estudos em 1997 e o termo Educação Inclusiva foi referenciado somente a partir de 1999. Embora as orientações contidas na Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) acerca da educação de crianças com NEE já utilizasse essa terminologia, percebe-se que ela só foi adotada após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei 9394/96 (BRASIL, 1996). Segundo Bueno (2008a, p. 49), apesar de existir diferença entre os dois termos, uma vez que “Inclusão Escolar se refere à proposição política em ação, de incorporação de alunos que tradicionalmente têm sido excluídos da escola e Educação Inclusiva refere-se a um objetivo político a ser alcançado”, os trabalhos consultados não deixaram evidente essa distinção.

As teses e dissertações analisadas foram classificadas como predominante-mente qualitativas e apresentaram como temáticas mais incidentes os aspectos centrais da problemática educacional: organização do trabalho escolar, políticas educacionais e alunado, com destaque especial para a docência, que ao ser abor-dada, em 40% das pesquisas, parece refletir que “[...] o nó da questão da inclu-são escolar reside na formação e na prática docente” (BUENO, 2008a, p. 59).

Conquanto o alvo dos estudos tenha sido os chamados alunos especiais tradicionalmente atendidos pela Educação Especial, ora classificados pela própria deficiência, ora classificados como alunos que apresentam NEE, Bueno (2008b, p. 44) ressalta que:

[...] são raros os estudos que procuram investigar efetivamente o que está ocorrendo com esses alunos no ensino regular e

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que procuram identificar possíveis dificuldades/obstáculos em razão de aspectos específicos dessa população.

Ademais, o autor considera que há uma quantidade expressiva de estudos acerca da Inclusão Escolar e da Educação Inclusiva, porém, ainda é preciso verificar se os estudos que dizem respeito à docência e à organização escolar têm contribuído efetivamente para o acúmulo de conhecimentos, auxiliando a promover mudanças. Além disso, alerta que existe uma lacuna no que se refere às temáticas que exploram a relação saúde-educação e escola-comunidade, tidas como de grande importância e que há grande dispersão entre as temáticas, entre as instituições e Programas de Pós-graduação, sugerindo que as universidades precisam promover e manter o diálogo, na tentativa de evitar a realização de muitos estudos semelhantes e sem a profundidade esperada.

Como forma de conhecer a produção acadêmica dos Programas de Pós-Graduação em Educação, busquei, em 2014, os trabalhos existentes no Banco de Teses da CAPES, a partir do ano de 2004. Por encontrar-se temporariamente indisponível, a consulta foi realizada junto ao acervo do Portal Domínio Público – CAPES, considerando as produções disponíveis no período 2004-2010, correspondentes ao início dessa Biblioteca Virtual e ao ano final de registros nela existente. O período 2004-2010 dá continuidade ao período de análise realizado por Bueno (2008a; 2008b), o que me fez adotar a mesma sistemática de trabalho utilizada por ele. Assim, com a busca efetuada por área de conhecimento – Educação, e palavras-chave Educação Inclusiva e Inclusão Escolar, localizei 149 trabalhos acadêmicos que se encontram distribuídos na Tabela 2.

Tabela 2 – Distribuição anual dos descritores 2004 - 2010

Ano Inclusão escolar Educação inclusivaTeses Dissertações Teses Dissertações

20042005 01 022006 01 08 02 052007 04 12 03 112008 04 12 03 132009 04 23 05 132010 02 11 01 09TOTAL 15 67 14 53

Fonte: dados organizados pela autora

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Os dados indicam que o registro relacionado à temática no Portal Domínio Público teve início em 2005 com apenas três produções oriundas de cursos de Mestrado. Porém, os estudos se tornaram crescentes entre os anos de 2006 e 2010, com destaque para o ano de 2009 que registrou 45 pesquisas, sendo nove teses e 36 dissertações. Indicam também que o termo Inclusão Escolar foi utilizado com maior frequência (84), o que nos permite inferir que no período contemplado pelo levantamento existiu uma preferência por essa nomenclatura quando comparada ao termo Educação Inclusiva (70). Embora esse dado se diferencie do apresentado por Bueno (2008a), o autor já havia alertado acerca da tendência em utilizá-los como sinônimos, e tal tendência continua existindo.

Com a leitura dos resumos, notei que as pesquisas prosseguem tendo como prioridade os alunos com deficiências ou com NEE, e estão amparadas, em sua maioria, pela abordagem qualitativa, fazendo uso, principalmente, de instrumentos como entrevistas, observações e questionários para a coleta das informações.

Considerando neste momento a análise apenas das 29 teses produzidas entre 2004-2010, percebi que a docência e suas especificidades continuam sendo priorizadas pela maioria das pesquisas. Os aspectos investigados dizem respeito a: 1) Formação inicial explorada por meio da análise de projetos de curso de Pedagogia (03); 2) Formação continuada de professores com vistas ao atendimento de alunos com deficiências e NEE (08); 3) Prática docente junto a crianças com deficiência (06), sendo um desses estudos voltado à Educação Infantil; 4) Estudo sobre concepções de professores acerca da inclusão (01); 5) Implementação de políticas públicas e organização escolar para a inclusão (05); 6) Gestão escolar (02). Assim como Bueno (2008a; 2008b), ressalto a necessidade de se realizar estudos que explorem a relação saúde-educação, pois foram encontradas apenas três teses acerca do assunto. Sendo que uma delas relacionava-se à articulação entre essas áreas e duas diziam respeito à consultoria colaborativa e ao trabalho integrado entre professor/fisioterapeuta e entre professor/psicólogo.

Vale mencionar que, das 29 teses catalogadas, apenas uma utilizou como suporte teórico metodológico os princípios da pesquisa narrativa segundo orientações feitas por Clandinin e Connelly (2011), a qual foi localizada pela palavra-chave Inclusão Escolar e teve por objetivo narrar a trajetória de reconstrução de uma escola que gradativamente está conseguindo tornar-se inclusiva. Tal investigação foi elaborada por Gessinger, no ano de 2006, e está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre.

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Os achados relacionados à Inclusão Escolar e à Educação Inclusiva reforçam que a temática continua despertando interesse e preocupação por parte dos profissionais da Educação e pesquisadores da área. Essa afirmação encontra respaldo não somente em autores que se dedicam ao estudo do assunto, mas também nas informações obtidas junto à unidade escolar em que desenvolvi a pesquisa e nas narrativas das professoras que lá atuam.

A EMEB: que lugar é esse? Como se organiza para acolher as crianças com NEE?

Pertencente à rede pública de ensino e situada em um bairro da região oeste de Cuiabá-MT, a EMEB oferece o 1º Ciclo do Ensino Fundamental direcionado especificamente a crianças de seis a nove anos de idade, que se encontram em uma fase da infância que considero peculiar, visto que precisam aprender a ler, a escrever, a fazer contas, a conviver e a interagir com outras crianças e adultos. Além disso, precisam também internalizar novas formas de organização do tempo e do espaço escolar, ter independência pessoal e tentar atender às expectativas de pais e professores acerca do seu desempenho acadêmico.

Tornam-se a partir de agora alunos... estudantes! É por volta dos seis anos que a criança se inicia no mundo das letras e vai se introduzindo, progressivamente, e formalmente nesta dimensão humana, uma vez que a entrada na escola e a aquisição da leitura a inscreve no mundo da transmissão formal dos conhecimentos e pensamentos. A criança sai da proteção parental direta e das aquisições estruturadas em planos lúdicos, para vivenciar as realizações sociais exteriores, tendo que cumprir tarefas, horários e a integrar modelos de relações sociais. Neste momento, a escola passa a ser um ponto de múltiplas cobranças e realizações. A entrada nesse novo contexto caracteriza-se por um período em que o processo de socialização e os interesses da criança são ampliados; sua curiosidade é estimulada favorecendo a aprendizagem de habilidades que lhe serão úteis no futuro. Somado a essas questões, as expectativas dos pais e dos professores acerca do seu desempenho escolar se ampliam e ela passa a perceber que sua aceitação ou rejeição social dependerá também de suas realizações (RAPPAPORT, 1982; CÓRIA-SABINI, 2001).

Com a criança que apresenta NEE, as expectativas em torno de seu processo de escolarização não são diferentes. No entanto, para que suas especificidades sejam atendidas, o sistema de ensino precisará assegurar que as escolas possam contar com professores capacitados, professores especializados, serviços de apoio

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pedagógico, atendimento educacional especializado – AEE, mediante atuação colaborativa com o professor de sala comum e rede de apoio, com a participação de profissionais da área de saúde e da promoção social (BRASIL, 2001).

Ao iniciar a pesquisa, busquei, por meio da análise de documentos, observação e conversas com as gestoras da EMEB conhecer como se dá a organização do trabalho escolar, e, particularmente, como a unidade escolar atende crianças que apresentam NEE. Assim, obtive que a unidade escolar norteia suas ações pelos princípios da gestão democrática e pelo trabalho coletivo. Avaliada como uma escola de qualidade pela Secretaria Municipal de Educação – SME, atende 523 alunos e com mais três escolas municipais, compõe a “comunidade educacional” da região (CUIABÁ, 2014). Essas escolas adotam como meio de organização pedagógica os Ciclos de Formação Humana, agrupam os estudantes por faixa etária, e trabalham com a proposta de continuidade, de complementariedade e garantem o direito à educação desde a Educação Infantil ao Ensino Fundamental.

No tocante aos termos pedagógicos, o trabalho amparado pelo Ciclo de Formação Humana requer que todos os profissionais assumam o compromisso frente ao processo de ensino e aprendizagem das crianças, e que implementem práticas que respeitem a diversidade e valorizem o potencial dos alunos. Nesse sentido, o Projeto Político Pedagógico da EMEB concebe o currículo como algo desafiador, cuja construção deve se dar continuamente, visando o atendimento das necessidades de aprendizagem que se fizerem presentes (CUIABÁ, 2014).

Conforme relato da equipe gestora, a EMEB acolhe crianças tanto de nível socioeconômico baixo, como de classe média. Dentre as crianças atendidas, estão aquelas que vivem em situação precária e de vulnerabilidade social, exigindo que as professoras consigam encontrar formas de promover a aprendizagem, mesmo diante de situações que, muitas vezes, são consideradas por elas como desfavoráveis.

Existem ainda as crianças que apresentam NEE decorrentes de Transtorno Global de Desenvolvimento ou de deficiências, as quais frequentam a sala de aula comum em um período e no contraturno são encaminhadas para a sala de recursos multifuncionais, situada em outra EMEB do bairro. Na sala de recursos multifuncionais o processo de escolarização dessas crianças é complementado por meio do Atendimento Educacional Especializado – AEE, desenvolvido por professor especializado, que deve trabalhar de forma articulada e em interlocução efetiva com o professor da sala comum. Porém, a equipe gestora afirma que essa interlocução não acontece como previsto, e as professoras da sala comum acabam não se beneficiando com as orientações que poderiam auxiliá-las no atendimento das especificidades desse alunado.

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Convocadas pela SME a aderir ao Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa – PNAIC, em 2014, as docentes da EMEB assumiram o compromisso de participar de cursos de formação continuada, de desencadear ações pedagógicas a partir das orientações recebidas e buscar o alcance de metas de alfabetização propostas para o 1º Ciclo. No entanto, críticas foram tecidas pelas professoras a esse projeto, visto que ele não contemplou discussões relacionadas aos tipos de NEE, tampouco foram apresentadas estratégias diversificadas que deveriam ser dirigidas para essas crianças. Com a implantação do PNAIC, observei indícios de desestabilização institucional, de aumento no volume de trabalho e de certa crise identitária. Com o amparo de Day (2001), pude compreender que esses aspectos são esperados, uma vez que acontecem diante de situações em que há imposição externa do currículo, ou inovações administrativas, as quais, muitas vezes, são implementadas de forma deficiente e sem consulta prévia aos profissionais envolvidos.

Para a equipe gestora, ocupar-se com as exigências externas advindas da implantação de políticas públicas, de novos projetos, lidar com vários tipos de deficiência, com situações de vulnerabilidade social, problemas familiares, não é algo simples, assim como não é fácil lidar com as concepções, crenças e valores cultuados pelas professoras. No trato com as crianças, há porém, a preocupação frente às demandas apresentadas por elas, como pode ser visto nas narrativas contadas a seguir.

Nunca tinha trabalhado... Não tinha nenhuma experiência... Não estamos preparadas... É tanta coisa que aparece...

Cinco professoras participaram deste estudo e se dispuseram a narrar como tem sido a experiência de atuarem junto a alunos que apresentam NEE. Estes estudantes passaram pelo processo de avaliação diagnóstica e frequentam no contraturno da sala de aula comum, a sala de recursos multifuncionais. Por entenderem que as histórias contadas são únicas e possuem sentidos particulares, elas autorizaram que as narrativas fossem identificadas por meio de seus nomes reais.

As docentes que colaboraram com esta investigação se encontram na faixa etária entre 29 e 52 anos, são licenciadas em Pedagogia e cursaram Pós-graduação lato sensu em Educação. No entanto, nenhuma é especialista em Educação Especial. Trabalham com turmas formadas por aproximadamente 26 alunos e atuam no 1º Ciclo por um período superior a cinco anos. Portanto,

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são consideradas experientes, e, provavelmente, estão vivenciando uma fase do seu desenvolvimento profissional tida como de maturidade, atingida por meio de um processo evolutivo da carreira profissional (GARCIA, 2009). Das cinco professoras, apenas uma está vinculada à EMEB por um período superior a dez anos. As demais passaram a integrar o corpo docente da unidade em 2014, e estão em fase de apropriação dos projetos institucionais, da cultura organizacional, formando e fortalecendo vínculos com a comunidade interna e externa. Embora trabalhem com o 1º Ciclo, lidam com situações muito diferentes em função das especificidades dos seus alunos, visto que o atendimento às demandas de cada um traz implicações também diferentes quanto ao modo de organização da sala de aula, das atividades e da rotina escolar.

A Professora Marcilene, conta que, ao trabalhar com o 1º ano, tem como meta favorecer a inserção e adaptação dos seus alunos na unidade escolar, bem como realizar a internalização da rotina e empreender o desenvolvimento inicial do processo de aprendizagem da leitura, escrita e do cálculo. Ao recebê-los no início do ano letivo, se depara com um menino caracterizado no ato da matrícula como cadeirante. Sendo assim, imaginou que as adaptações necessárias para sua inclusão seriam feitas apenas na estrutura física da escola. Para sua surpresa, a criança é tetraplégica. Em decorrência disso, não coordena os movimentos, apresentando comprometimento da oralidade, o que exige que ela encontre meios para estabelecer um canal de comunicação entre eles. Ademais, a docente precisaria aprender a entender o significado de suas reações e quais são suas necessidades específicas para poder atendê-las. Em relação a esta situação, ela narra:

Quando recebi J. M. ele é cadeirante, ele [...] tem essa deficiência, é paralisia cerebral [...] eu fiquei assim muito agoniada, preocupada de como eu ia entender e como ia preparar as atividades. Eu fiquei [...] meu Deus e agora? Como eu vou fazer isso? Como eu vou conseguir conciliar outros alunos e ele? (Professora Marcilene)

Diferentemente da professora Marcilene, as professoras Lindsley e Rosângela trabalham com turmas de 2º ano e dão continuidade ao processo de alfabetização. Elas receberam, respectivamente, em suas salas uma criança com deficiência intelectual e uma com problemas motores ocasionados por hipotonia congênita. Estas crianças já estudavam na EMEB. Portanto, tiveram acesso a informações repassadas pelas professoras do ano anterior em relação à maneira de ser de cada criança, mesmo assim contam que:

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A K. é diferente, ela não para, não fica na sala [...] Eu percebo que ela em termos de aprendizagem não consegue assimilar nada, o problema dela é mental! É uma lesão, a mãe dela fala que é uma lesão leve. É o que está no laudo dela. Então tudo que é de pensar, de raciocinar, tudo que precisa ter uma atenção maior a K. não [...] ela não consegue. (Professora Lindsley).

É o primeiro ano que pego uma criança especial na minha sala e de início assim pra mim foi um pouco assustador. Fiquei um pouco apreensiva e aí fui procurar saber qual era o problema dela, pra poder trabalhar. (Professora Rosângela)

Duas professoras – Larissa e Paula – atuam com crianças do 3º ano, e tem por objetivo dar continuidade ao processo de alfabetização e se preocupam também em prepará-las para o desligamento da EMEB, o que ocorrerá no final do período letivo, visto que a escola atende somente ao 1º Ciclo. Para elas, esse aspecto gera sofrimento, uma vez que o vínculo afetivo formado com colegas, professores e unidade escolar é intenso. Particularmente, se preocupam com a adaptação e aprendizagem de dois alunos que apresentam autismo, devido à maneira como cada um se expressa, se comporta e executa as atividades propostas. Eles, juntamente com os demais, serão encaminhados para outra escola do bairro. No que diz respeito à atuação junto a esses alunos, narram:

Eu comecei a trabalhar com crianças especiais, no caso o A. autista no ano passado, nunca tinha trabalhado e também não tinha nenhuma experiência... nenhuma! Fiquei até desesperada, falei meu Deus [...] porque eu pesquisei na internet que os autistas eram muito agressivos, mas A. é bem calmo. Eu entrei em choque... eu falei meu Deus eu nunca trabalhei com autista, o que eu vou fazer? (Professora Paula)

Assim [...] é novo! Eu nunca trabalhei com aluno autista então a primeira experiência que estou tendo é com o L. E aí a Greice (coordenadora pedagógica) me explicou, conversou que eu teria um aluno autista, então.... eu não tinha [...] não tenho [...] falar que eu tenho conhecimento... não! O que eu sei é do coração, é das coisas que eu vou buscando agora. (Professora Larissa)

As narrativas indicam que diante da notícia de terem em sala de aula uma criança com NEE, as professoras vivenciam reações de medo e receio. Tais sentimentos

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são traduzidos em palavras como: agoniada, preocupada, desesperada, assustador, despreparada, que indicam ansiedade frente a algo que para elas é novo. Alfabetizar alunos que apresentam deficit motor, oralidade prejudicada, deficit intelectual, dificuldade de socialização, de interação, se constitui em tarefa que não é costumeira para essas professoras e como Schaffner e Buswell (1999, p. 78) explicam que:

[...] quando os educadores são solicitados a implementar práticas educacionais que se afastam significativamente de suas abordagens e práticas tradicionais, podem sentir-se inadequados e carentes de formação, informações e apoio,

Deste modo, vê-se que a insegurança e as incertezas se instalam. Assim, como forma de se apropriarem da realidade, elas buscam informações junto à coordenação pedagógica, aos professores que trabalharam anteriormente, efetuam a leitura do laudo diagnóstico na tentativa de conhecer as patologias, os transtornos apresentados, as possíveis causas das deficiências e suas características. Embora se apoiem em um discurso clínico-terapêutico, que analisa as especificidades de aprendizagem desses alunos a partir dos seus problemas orgânicos e comportamentais, no tocante às suas limitações, reconhecem que o atendimento escolar deve trabalhar com o potencial de desenvolvimento, de aprendizagem da criança, e que, para tal, é preciso tanto diferenciar o ensino, quanto adotar recursos educacionais que possibilitem uma evolução satisfatória.

Para Marchesi (2004), colocar em prática a educação de alunos com NEE tem sido um dos problemas a ser enfrentado pelos professores, pois é deles a atribuição de organizar a sala de aula – contexto esse que influencia de forma direta e intensa o desenvolvimento dos alunos, de planejar as atividades pedagógicas e escolher diferentes estratégias de intervenção – para que se possa criar condições que favoreçam a aprendizagem personalizada. Em suas narrativas, as professoras reconhecem como legítimas tais atribuições, mas expressam que há dificuldade para colocá-las em prática, pois trabalham em salas de aula lotadas e com alunos com diferentes demandas. Relatam, inclusive, que durante a jornada de trabalho é preciso “dedicar um pouquinho de tempo... tirar um tempinho” para atender aos alunos com NEE e que o apoio da Auxiliar de Desenvolvimento Infantil - ADI em sala de aula é vital durante a execução das atividades pedagógicas.

É evidente que diante das implicações decorrentes da educação de crianças que apresentam NEE, a ressignificação do papel do professor se faz necessária e para promovê-la um dos caminhos encontrados é o da formação docente, aqui entendida na perspectiva do desenvolvimento profissional docente (NÓVOA, 1995; GARCIA, 1999; DAY, 2011).

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As professoras foram unânimes em afirmar que a formação que possuem é insuficiente, e que conteúdos referentes às NEE não foram contemplados no curso de Pedagogia. Portanto, elas precisam buscar meios para aprender a lidar com as situações novas que se apresentam no contexto escolar. Ao caracterizarem o trabalho como “um desafio muito grande” dão pistas de que há interesse pela participação em cursos, receptividade frente à troca de experiências e desejo de conhecer as especificidades clínicas e as possibilidades de aprendizagem das crianças com autismo, com deficiência física, deficiência intelectual, como forma de subsidiar a adequação das atividades a serem desenvolvidas em sala de aula.

As narrativas apontam que, aparentemente, não há resistência frente à busca de conhecimento, e que as professoras estão dispostas a empreender um processo de aprendizagem ao longo da sua carreira, com indicativos da existência de motivação para tal. Para suprir as lacunas existentes, utilizam a internet como recurso e buscam apoio junto à coordenação pedagógica da EMEB.

Comecei pesquisar e ver como fazer, porque tenho pouco curso. Formação eu quase não tenho, participei de alguns cursos, palestras, mas... a Greice (coordenadora pedagógica) é que me ajuda! Na internet procurava atividades diferenciadas... E se eu fico fechada e não vou atrás? Não tenho vergonha de perguntar, de pedir. (Professora Marcilene)

Eu não tenho formação nenhuma em educação especial. Não sei se estou fazendo certo, se estou fazendo errado, se é a maneira correta, se não é. Pra mim tudo isso é novo e às vezes eu fico me cobrando, porque sei que estou em falta, fico um pouco preocupada. Será que estou fazendo o que deveria ser feito pra ela? Não sei! (Professora Rosângela)

Falar que eu tenho conhecimento [...] não. O que eu sei é do coração, das coisas que eu vou buscando. Mas [...] se os professores estão prontos para lidar com as diferenças que existem em sala, eu acho que não, eu acho que nós ainda não estamos [...] preparados. O que a gente sabe é do coração, a gente vai atrás, busca uma coisa que você acha que valeu e continua, entendeu? (Professora Larissa)

Eu nunca fiz nenhum curso pra trabalhar com autista. Aí eu fui pesquisando pela internet, fui vendo como é que trabalhava com eles, como que podia forçar em algum lado, em outro não. Eu queria saber sobre o conceito, o que é o autismo, quais as características, como que se

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trabalha, se pode forçar, se não pode, os graus do autismo, tudo isso [...]. (Professora Paula)

Apenas uma professora relatou ter participado de um curso de formação específico. No entanto, revelou que os cursos de formação que são oferecidos para todos os professores do 1º Ciclo, como o PNAIC, embora reconheçam a existência de crianças com NEE nas salas de aula, não contemplam essa discussão.

Eu sempre participei de cursos oferecidos pela rede. [...] Pensa bem, você vai faz a formação, todinha, mas lá na formação eles não falam pra você, como você vai trabalhar com aquela criança pra ela ter o resultado das outras crianças... e lá eles sabem que tem tal criança em todas as salas... que tem... mas eles não dão formação pra você, assim não dá! (Professora Lindsley)

Ao apresentarem detalhes acerca de sua atuação, as professoras indicam que carecem de orientações, encaminhamentos ou reflexões sobre o que fazem e como fazem, para poder respaldar a continuidade do trabalho, uma vez que ele é permeado por conflitos e dilemas do “não sei fazer”, pois o medo do desconhecido e a insegurança se fazem presentes. As narrativas apontam que os alunos que apresentam NEE não aprendem da mesma forma que os outros. E, que, por conta disso, os professores responsáveis pelo processo de ensino aprendizagem destes alunos precisam aprender a ensiná-los.

Nesse sentido, podemos inferir que professores e alunos apresentam as mesmas necessidades: precisam aprender. Embora os professores solicitem cursos de formação, compactuamos com Nóvoa (1995), que acredita que a formação não se constrói pelo acúmulo de conhecimentos, técnicas e cursos, mas, sim, por meio de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente da identidade pessoal, que se dá por meio de um processo interativo, dinâmico, de troca de experiências e partilha de saberes.

Portanto, estratégias formativas devem ser pensadas tendo como referência as dimensões coletivas que contribuem para a emancipação profissional, com vistas à preparação de professores reflexivos, os quais, ao assumirem a responsabilidade do seu próprio desenvolvimento profissional, passam a participar como protagonistas na implementação de mudanças e de políticas educativas, pois as atividades de trabalhar e formar não podem ser encaradas separadamente (NÓVOA, 1995; GARCIA, 1999; DAY, 2001).

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Algumas considerações

Como lidar com as crianças que apresentam NEE em sala de aula comum? Essa é uma pergunta que continua circulando entre os profissionais que atuam na EMEB. Quando dizem “Não sei [...] nunca tinha trabalhado antes [...]”, compreendo que indicam que a escola é dinâmica, que o processo de aprendizagem é complexo e a implementação de ações em prol da inclusão escolar se constitui em um processo desafiador. Ademais, percebo que já internalizaram que para lidar com a diversidade, com as crianças que possuem necessidades educacionais especiais, não há receita pronta.

Tendo em vista que a inclusão escolar não se resume em garantir o acesso à escola, mas, acima de tudo, garantir o direito à aprendizagem, conflitos, tensões e inseguranças, se farão presentes e no entrelaçamento desses aspectos, a escola e seus profissionais terão a oportunidade de rever suas concepções e papéis. Nesta perspectiva, a disposição para aprender e investir esforços em ações formativas que favoreçam o processo de desenvolvimento profissional parece que já se instalou entre as docentes.

A EMEB tem traçado seus caminhos, e, ao percorrê-los, se depara, ora com facilidades, ora com dificuldades, que fazem com que a instituição escolar busque alternativas e encontre formas para alcançar os objetivos propostos: acolher as crianças que a procuram e cumprir com a tarefa de alfabetizá-las. Os caminhos escolhidos são guiados pelas políticas públicas em vigor. No entanto, a maneira de colocar em prática as ações pedagógicas tem a marca do órgão normativo – SME, a marca da própria EMEB, da maneira de ser das pessoas que lá atuam, do lugar onde a escola se situa e das crianças que lá estudam.

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Sobre os autores

Ana Paula Carli de AlmeidaTécnica Educacional da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, no município de Alta Floresta, Mato Grosso. Nutricionista e Mestre em Biociências. E-mail: [email protected].

Carlos Alberto CaetanoProfessor da Educação Básica – SEDUC-MT. Presidente do Conselho Estadual de Educação-MT. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Mestre em Educação e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. E-mail: [email protected].

Dejacy de Arruda AbreuProfessora Adjunta do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Contemporâneas de Currículo e Formação Docente. Pedagoga, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected]@gmail.com.

Deusodete Rita da Silva AimiParticipante do Conselho Municipal de Direito da Criança e do adolescente e do Conselho Municipal de Educação de Vilhena, Rondônia. Membro do Grupo de Estudos em Política em Formação Docente – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Pedagoga, Mestre em Psicologia e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected].

Edson Gomes EvangelistaProfessor de Língua Portuguesa e Língua Espanhola no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia-IFMT, campus São Vicente. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente: Educação Infantil e Ensino Fundamental – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Pedagogo, Graduado em Língua Espanhola, Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas, Mestre em Educação e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected].

Eliane das Neves MouraProfessora Adjunta do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Graduada em Letras, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected].

Sobre os autores

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Éverton Neves dos SantosProfessor Assistente e Coordenador Pedagógico de Área dos Cursos de Ciências Jurídicas da Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT e do Núcleo de Estudos em Direito, Justiça e Sociedade – NEDJUS/UFSCAR. Matemático, Bacharel em Direito, Mestre em Educação e Doutorando em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos. E-mail: [email protected].

Fábio MarianiProfessor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso-IFMT. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Filósofo, Mestre em Educação e Doutor em Educação pela UFMT. E-mail: [email protected].

Filomena Maria de Arruda MonteiroProfessora Associada da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Pedagoga, Mestre em Educação, Doutora em Educação e Pós-Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos. Coordenadora de Ensino de Graduação em Pedagogia na UFMT. E-mail: [email protected].

Flavia Geane dos SantosBibliotecária do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso-IFMT, campus Várzea Grande. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Seraphicus. Mestranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ. E-mail: [email protected].

Helena Amaral da FontouraProfessora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Faculdade de Formação de Professores. Líder do Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Processos e Práticas Pedagógicas. Pedagoga, Mestre em Educação, Doutora em Saúde Pública, Pós-Doutora em Educação pela Universidade de Barcelona e Pós-Doutoranda pela UFMT. E-mail: [email protected].

Lilian Auxiliadora Maciel CardosoProfessora Adjunta do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Pedagoga, Mestre em Educação e Doutora em Educação pela UFMT. E-mail: [email protected].

Sobre os autores

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Lineuza Leite MoreiraProfessora da Faculdade de Agronomia da Universidade de Cuiabá-UNIC. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Bióloga, Mestre em Agricultura Tropical, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected].

Paulino Ferreira FilhoTécnico em Assuntos Educacionais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso-IFMT, campus Cuiabá. Biólogo, Especialista em PROEJA e Mestrando em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ. E-mail: [email protected].

Ricardo Antonio Castaño GaviriaMembro do Grupo de Pesquisa em Antropologia Pedagógica e Histórica/ FORMAPH, Universidade de Antioquia. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Sociólogo, Mestre em Motricidade e Desenvolvimento Humano, Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade Estadual do Ceará-UECE e Pós-Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected].

Rodolfo Carli de AlmeidaProfessor Adjunto do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso-IFMT. Membro do Grupo de Pesquisa Formação de Professores, Processos e Práticas Pedagógicas. Graduado em Ciências da Computação, Especialista em E-Business, Mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

Sandra Pavoeiro Tavares CarvalhoProfessora Adjunta do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Formação Docente: Educação Infantil, Fundamental e Superior – GEPForDoc/PPGE/UFMT. Psicóloga, Mestre em Educação e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMT. E-mail: [email protected].

Formato gráfico: 15,5x22,5 Tipologias utilizadas: Adobe Garamond e Helvetica Neue

Papel da capa: Supremo 250 g. Papel do miolo: Sulfite 75 g

Este livro foi organizado mediante um processo colaborativo

firmado entre vários autores de diversas instituições de ensino

brasileiras e estrangeiras. Tais pesquisadores apresentam

aqui relatos de pesquisa, e ensaios teóricos com o intuito de

contribuir com as pesquisas circunscritas em torno da temática

formação de professores, docência e currículo. Para tanto, se

guiam por olhares plurais, buscando apontar novos caminhos

de compreensão das contradições presentes no exercício do

desenvolvimento profissional em diferentes níveis.

Filomena Maria de Arruda Monteiro

788567 7701789

ISBN 978-85-67770-17-8