PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA -...

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36 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002 Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química A seção “Pesquisa no Ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitação dos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados. Recebido em 5/6/02, aceito em 28/10/02 PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA J á há algum tempo, a literatura aponta problemas na formação docente em Química/Ciências, advindos do modelo de licenciatura usualmente vigente nas universi- dades (Maldaner, 2000; Carvalho e Gil-Pérez, 1995; Schnetzler, 2000; Rosa, 2000, entre outros). De uma maneira geral, os currículos são pau- tados em uma divisão clara entre disciplinas de natureza específica relacionadas à ciência básica e disciplinas pedagógicas, configuran- do o conhecido modelo 3+1 (Carva- lho e Gil-Pérez, 1995) 1 . Neste traba- lho 2 , delineamos, por meio de uma metodologia qualitativa, uma investi- gação, ainda em caráter exploratório, de elementos que caracterizam a construção de parcerias entre pro- fessores universitários de institutos/ departamentos de Química (ciência básica) e professores de faculdades de Educação, tendo como objeto o desenvolvimento de processos didá- ticos junto a alunos da licenciatura. Nosso referencial teórico apóia-se nos conceitos de Carr e Kemmis (1988) e Habermas (1989) de desenvolvi- Maria Inês de Freitas Petrucci Santos Rosa e Adriana Vitorino Rossi Apresentamos uma investigação qualitativa das possibilidades de parcerias entre formadores oriundos de diferentes áreas de pesquisa, tendo como objeto a criação de processos didáticos com licenciandos. Identificamos alguns elementos característicos desta aproximação, como: a assimetria de concepções; o diálogo sustentado pela episteme própria da Química; e a preocupação em superar estereótipos de diferentes áreas. formação docente, projeto de ensino, licenciatura mento profissional, emancipação dos sujeitos e produção de conhecimento, que apontam para a valorização da interlocução na construção de saberes práticos validados pelo grupo, sem perder de vista a objetividade das situações e o es- clarecimento dos envolvidos nelas. Entendemos aqui, como parti- cipantes da co- municação, os sujeitos envolvi- dos neste traba- lho: as duas pro- fessoras e os três alunos da licen- ciatura, que argumentam sobre o projeto didático, que pretendemos seja validado e criticado. A questão que norteia esta investi- gação é: quais são os elementos que caracterizam a aproximação entre for- madores/pesquisadores da ciência bá- sica Química e formadores/pesquisa- dores educacionais, tendo como centro processos de aprendizagem de alunos da licenciatura? A metodologia da investigação Para desenvolver esta investigação qualitativa, tomamos como objeto um conjunto de ações desenvolvidas no âmbito da disciplina Di- dática Aplicada ao Ensino de Química e de Física, mi- nistrada na Faculdade de Educação da UNICAMP, que envolveu alunos do 6 o semestre da licenciatura integrada de Química/ Física. Preocupado com a ela- boração de um projeto de ensino que abordasse re- lações entre ciência, tecnologia e sociedade, um grupo de três alunos escolheu o tema Efeito Estufa. A partir daí, o projeto foi orientado por duas professoras, aqui designadas como P.I (professora de Didática) e P.II (profes- sora de Química Geral e Química Ana- lítica). O conjunto de dados foi siste- matizado a partir dos depoimentos dos participantes da elaboração do projeto, registrados em áudio e transcritos na íntegra. Foram feitos recortes nessa transcrição, que nos auxiliam na com- preensão da questão de investigação posta. De uma maneira geral, os currículos são pautados em uma divisão clara entre disciplinas de natureza específica relacionadas à ciência básica e disciplinas pedagógicas, configurando o conhecido modelo 3+1 (ciclo de 3 anos, seguido de outro de 1 ano)

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química

A seção “Pesquisa no Ensino de Química” inclui investigações sobre problemas no ensino de Química, com explicitaçãodos fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na análise de resultados.

Recebido em 5/6/02, aceito em 28/10/02

PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

Já há algum tempo, a literaturaaponta problemas na formaçãodocente em Química/Ciências,

advindos do modelo de licenciaturausualmente vigente nas universi-dades (Maldaner, 2000; Carvalho eGil-Pérez, 1995; Schnetzler, 2000;Rosa, 2000, entre outros). De umamaneira geral, os currículos são pau-tados em uma divisão clara entredisciplinas de natureza específicarelacionadas à ciência básica edisciplinas pedagógicas, configuran-do o conhecido modelo 3+1 (Carva-lho e Gil-Pérez, 1995)1. Neste traba-lho2, delineamos, por meio de umametodologia qualitativa, uma investi-gação, ainda em caráter exploratório,de elementos que caracterizam aconstrução de parcerias entre pro-fessores universitários de institutos/departamentos de Química (ciênciabásica) e professores de faculdadesde Educação, tendo como objeto odesenvolvimento de processos didá-ticos junto a alunos da licenciatura.

Nosso referencial teórico apóia-senos conceitos de Carr e Kemmis (1988)e Habermas (1989) de desenvolvi-

Maria Inês de Freitas Petrucci Santos Rosa e Adriana Vitorino Rossi

Apresentamos uma investigação qualitativa das possibilidades de parcerias entre formadores oriundosde diferentes áreas de pesquisa, tendo como objeto a criação de processos didáticos com licenciandos.Identificamos alguns elementos característicos desta aproximação, como: a assimetria de concepções; odiálogo sustentado pela episteme própria da Química; e a preocupação em superar estereótipos de diferentesáreas.

formação docente, projeto de ensino, licenciatura

mento profissional, emancipação dossujeitos e produção de conhecimento,que apontam para a valorização dainterlocução na construção de saberespráticos validados pelo grupo, semperder de vista aobjetividade dassituações e o es-clarecimento dosenvolvidos nelas.E n t e n d e m o saqui, como parti-cipantes da co-municação, ossujeitos envolvi-dos neste traba-lho: as duas pro-fessoras e os três alunos da licen-ciatura, que argumentam sobre oprojeto didático, que pretendemosseja validado e criticado.

A questão que norteia esta investi-gação é: quais são os elementos quecaracterizam a aproximação entre for-madores/pesquisadores da ciência bá-sica Química e formadores/pesquisa-dores educacionais, tendo comocentro processos de aprendizagem dealunos da licenciatura?

A metodologia da investigação

Para desenvolver esta investigaçãoqualitativa, tomamos como objeto umconjunto de ações desenvolvidas no

âmbito da disciplina Di-dática Aplicada ao Ensinode Química e de Física, mi-nistrada na Faculdade deEducação da UNICAMP,que envolveu alunos do 6o

semestre da licenciaturaintegrada de Química/Física.

Preocupado com a ela-boração de um projeto deensino que abordasse re-

lações entre ciência, tecnologia esociedade, um grupo de três alunosescolheu o tema Efeito Estufa. A partirdaí, o projeto foi orientado por duasprofessoras, aqui designadas como P.I(professora de Didática) e P.II (profes-sora de Química Geral e Química Ana-lítica). O conjunto de dados foi siste-matizado a partir dos depoimentos dosparticipantes da elaboração do projeto,registrados em áudio e transcritos naíntegra. Foram feitos recortes nessatranscrição, que nos auxiliam na com-preensão da questão de investigaçãoposta.

De uma maneira geral, oscurrículos são pautados em

uma divisão clara entredisciplinas de natureza

específica relacionadas àciência básica e disciplinaspedagógicas, configurandoo conhecido modelo 3+1(ciclo de 3 anos, seguido

de outro de 1 ano)

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química

Foram realizados encontros entreos alunos envolvidos e as professoras(três com P.I, dois com P.II e um com P.Ie P.II), nos quais foram discutidas ques-tões relacionadas à elaboração do pro-jeto de ensino. A partir da literatura eda leitura minuciosa da transcrição dagravação em áudio, as seguintes cate-gorias3 emergiram no desenvolvimentoda análise: linguagem e concepçõesde ensino-aprendizagem.

O tema Efeito Estufa é muito amploe relaciona-se com vários conceitos. Aseqüência didática foi planejada pelosalunos, sem a participação das profes-soras, de acordo com a delineação detrês fases, como exposto a seguir.

Fase I - Nesta primeira fase, poderiaser apresentada aos alunos umaanimação de um software educativo,que aborda o tema Efeito Estufa, paraque eles explicitassem suas explica-ções sobre o fenômeno, discutindo-asentre os pares. A partir daí, as questõeslevantadas pelos alunos seriam organi-zadas e transformadas em problemasde investigação.

Fase II – Seriam tratados váriosassuntos relacionados ao tema, envol-vendo conceitos como: energia; calor;temperatura; entalpia; reações endo-térmicas e exotérmicas; fenômenos na-turais e fenômenos antropogênicos; ra-pidez das reações; e equilíbrio químico.Seriam também abordados aspectosreferentes à composição do ar atmos-férico; aos ciclos biogeoquímicos; àemissão de poluentes; à chuva ácida;às doenças provocadas pela poluição;à fotossíntese e respiração; e àsrelações entre biodiversidade e super-aquecimento do planeta. Para otratamento de tais conceitos e aspec-tos, seriam utilizados textos, elabo-rados pelos próprios licenciandos, ten-do como referência a literatura química.

Fase III – Nesta fase, os alunosapresentariam trabalhos que contem-plassem explicações acerca das ques-tões de investigação propostas na faseI. Os alunos poderiam levantar maisquestões ou dúvidas sobre o tema, queainda não tivessem sido abordadas.Uma forma de avaliação da aprendi-zagem seria a confrontação entre asquestões iniciais e os problemas apon-tados pelos próprios alunos nesta fase,o que denotaria a evolução das suas

idéias em relação ao tema.Essas três fases sintetizam as

ações planejadas para o desenvolvi-mento do projeto de ensino, mas aindanão retratam o processo de mediaçãopromovido por P.I e P.II junto aos trêslicenciandos. A seguir, apresentamosos dados e sua análise, focalizando es-se processo de mediação e os elemen-tos que sustentaram a aproximaçãoentre os sujeitos envolvidos.

Neste trabalho, não analisaremosos limites e as possibilidades didáticasdo planejamento das fases, mas simo processo de mediação pedagógicaocorrido durante a construção do pro-jeto e os elementos que sustentarama aproximação entre os sujeitos envol-vidos.

Analisando o processo deinterlocução

Considerando as interações ocor-ridas nesse processo de mediação in-terdisciplinar, as intervenções das for-madoras estiveram centradas emalgumas preocupações específicas.No diálogo com os licenciandos, a pro-fessora de Didática (P.I) procurou dis-cutir as relações possíveis entre osníveis fenomenológico, teórico-concei-tual e representacional no tratamentodo conhecimento químico (Johnstone,1982), além de pro-blematizar a seqüên-cia de atividades fo-calizando o aprofun-damento na aborda-gem dos conceitosquímicos.

Por outro lado, aprofessora de Quí-mica Analítica (P.II)procurou ressaltar aimportância de evitarimprecisões no trata-mento das informa-ções químicas. Além disso, questionouos licenciandos acerca da relaçãoconteúdo/tempo presente na ela-boração da seqüência didática, pro-blematizando também a pertinência dedeterminados conteúdos abstratos noEnsino Médio, tais como comprimentode onda, freqüência e isomeria.

A partir da delimitação das catego-rias já citadas, apresentamos extratos

de diálogos correspondentes e sua in-terpretação, o que nos auxilia na com-preensão da natureza das relaçõesestabelecidas.

LinguagemEm nossa pesquisa, a apropriação

de um conhecimento sobre como en-sinar a partir do tema Efeito Estufa ocor-reu a partir da mediação propiciada porP.I e P.II, por meio do compartilhamentode signos próprios às suas áreas deconhecimento (Vygotsky, 1991).

Nesse contexto, P.I intervém naconstrução do projeto didático pormeio de uma mediação caracterizadapor signos próprios do campo da Didá-tica, explicitando uma forma própria delinguagem. Analogamente, P.II, aomediar o acesso a um conhecimentosobre como ensinar, procurou fazê-loapropriando-se dos signos próprios docampo da ciência básica Química, pormeio de um outro tipo específico delinguagem.

Em relação às diferentes lingua-gens, Bakhtin entende a linguagem co-mo um conjunto de enunciados típicosde determinado grupo social, que evi-denciam as construções de suas prá-ticas sociais (Mortimer, 1998). Assim,o discurso é determinado e deter-minante das práticas sociais. Nestainvestigação, P.I e P.II são sujeitos oriun-

dos de diferentes gru-pos sociais, a saber: ogrupo dos educadorese o grupo dos quími-cos. Portanto, desen-volvem suas media-ções na construção doprojeto didático expli-citando seus enuncia-dos próprios e típicosde suas comunidadesde origem. Isto é evi-denciado no depoi-mento de L.I:

“...eu senti que a fala de P.II éa parte prática, não é? Agora P.Ivem e fala: ‘o que vocês estãoquerendo dizer ao propor is-so?’...”

Com essa intervenção mais “práti-ca”, como foi denominada por L.I, P.IIprocurou também ajustar a linguagemda escrita do projeto didático, aproxi-

Em nossa pesquisa, aapropriação de um

conhecimento sobre comoensinar a partir do tema

Efeito Estufa ocorreu a partirda mediação propiciada

por professoras de Didáticae de Química Geral e

Química Analítica, por meiodo compartilhamento de

signos próprios às suas áreasde conhecimento

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mando-a do discurso próprio de seugrupo social: o dos químicos. Isto podeser evidenciado na fala de L.I:

“...eu senti esse choque por-que P.II falava o tempo todo: ‘eunão escreveria frases desse ta-manho, como vocêsestão escrevendo. É anossa tendência (dosquímicos): escrever tu-do numa estrutura defrases curtas e aí o lei-tor vai juntando asidéias...’ É justamenteo contrário do que P.Ifalava...”

A linguagem própria dos químicoscaracteriza-se por uma aparente neu-tralidade, pela ausência de um sujeito,o que parece lhe conferir mais clareza,mais fluidez. Parece ser mais “prática”,como afirmou L.I. Nos textos químicos,usualmente emprega-se a voz passiva,esconde-se o sujeito das frases, o queparece proporcionar maior rigor doponto de vista científico.

Esse embate provocado pelasdiferenças de linguagem nos remeteàs palavras de Lazlo, que afirma, sobrea linguagem da Química:

Toda a linguagem começacom uma imobilização, arbitrária,do sentido. A Química desliga-se da alquimia quando, desimples descrição, se torna des-crição sistemática. Isso só épossível com a condição de dis-por de um léxico e de uma sinta-xe. O falar químico é um fazer.(Lazlo, 1995, p. 75)

Em suas observações, P.II pretendiachamar a atenção para a diferença en-tre os estilos de textos característicosde cada área (“telegráfico” para os quí-micos e “extenso” para os educadores)e a inadequação desses extremos paraa prática do ensino, cujo equilíbrio aser atingido representa a habilidadeque o professor de Química precisacriar, como salientou P.I.

Concepções de ensino-aprendizagemAs mediações desenvolvidas a par-

tir das interações entre formadores elicenciandos na construção do projeto

também foram permeadas pela explici-tação de diferentes concepções de en-sino-aprendizagem, que pareceramestar predominantemente relacionadascom abordagens tradicionais ou cons-trutivistas de ensino. A abordagem tra-dicional, marcada pelo modelo de

transmissão deconhecimentos,foi explicitada porP.II da seguinte for-ma:

“...uma fra-se que memarcou muito(no projeto) foia que indicava

a eficiência de trocarem o mo-delo tradicional pelo modeloproposto pelas teorias mais re-centes. E aí foi isso que a genteparou para discutir: eu aprendido modo mais tradicional eaprendi muito bem...”

De fato, a sugestão para que tro-cassem o modelo tradicional por umconstrutivista4 tinha partido de P.I:

“Tentei resgatar um pouco is-so nas coisas que eu tratei comeles, por exemplo, na constru-ção dos projetos. Bom, quandodigo assim: ‘você vai investigaro que os alunos pensam’, estouapresentando umaabordagem de in-teração dos alu-nos... quer dizer, deconstrução do co-nhecimento.”

Do ponto de vistados licenciandos, afala de L.II ilustra comoesse aspecto foi percebido:

“... de repente eu entro nadisciplina de Didática e a gentecomeça a discutir coisas quetêm a ver com a realidade dasala de aula e como abordar osconceitos, de como tratar con-ceitos químicos com os alunosque não conseguem ter uma vi-são do que é a Química, paraque ela serve, que acham que

Química na escola é “decore-ba”. Então, tudo aquilo que eutinha pensado para quando euestivesse em sala de aula, de re-pente, veio a Didática e mepassou a maior rasteira, enten-de? Não é bem assim... entãoeu vejo hoje que eu tenho quemudar minha visão, tudo o queeu pensei não pode ficar assimna sala de aula. Eu conseguiisso na Didática. Para mim, dáum cutucão e me põe para pen-sar um pouquinho mais sobrecomo fazer as coisas, porquefazer certas coisas...”

É importante ressaltar que a “ras-teira” ou o “cutucão” a que L.II se referesão momentos de desestabilização deidéias proporcionados pela mediaçãovinda principalmente de P.I, professoraresponsável pela disciplina de Didática.Esse aspecto foi o que P.II quis trazerpara a discussão com sua colocaçãoprovocativa.

Não estamos aqui tentando fazeruma apologia de um ou outro modelode ensino, mas sim buscando de-monstrar que, muitas vezes, o queconfronta e afasta formadores oriundosde diferentes áreas, como a ciência bá-sica e a Educação, é a visão simplistade que o ensino de Química pode serestereotipado e congelado em mo-delos, que servem como exemplos ou

contra-exemplos paraos futuros professoresde Química.

Parece ser umacaracterística dospesquisadores da ci-ência básica umaatuação pedagógicamais centrada no con-teúdo conceitual,

posto que nos cursos de formaçãoexiste uma preocupação importantecom a quantidade de conteúdos aserem trabalhados e a precisão cientí-fica das informações. Contudo, no diá-logo entre os formadores, é precisoajustar as concepções de ensino-aprendizagem, para reconhecer aspossibilidades de mediação presentesem cada modelo, sem criar estereó-tipos.

Para P.II, o ensino por transmissão

Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química

O que confronta e afastaformadores oriundos dediferentes áreas, como a

ciência básica e aEducação, é a visão

simplista de que o ensinode Química pode ser

estereotipado e congeladoem modelos

A linguagem própria dosquímicos caracteriza-se poruma aparente neutralidade,

pela ausência de umsujeito, o que parece lheconferir mais clareza, mais

fluidez

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não pode ser simplesmente descarta-do numa aparente seqüência de subs-tituição por um novo modelo maiseficiente. Sua provocação visava des-tacar a necessidade de reflexão sobrea adequação dos modelos de ensino,inclusive para habilitar o licenciando aexplicar como era possível ensinar eaprender antes daspropostas construti-vistas, quando só sepraticava o ensinotradicional. Para P.I, épreciso haver a opor-tunidade de diálogoentre as idéias préviasdos alunos e as idéiascientíficas a seremapresentadas.

O conhecimento produzido validadopelos interlocutores

A grande contribuição desse con-fronto de concepções configuradodiante de L.I, L.II e L.III foi propiciar umaimportante oportunidade de argumen-tação entre os sujeitos envolvidos e deuma conscientização por parte deles, oque parece ser evidenciado na fala deL.II:

“Eu não sei como explicar issoagora, mas de repente em umasala de aula, eu vou ter mais fer-ramentas para poder pensar nasconseqüências dos meus atoscom os alunos. Se eu ensinar detal maneira, pode ser que acon-teça isso, ou aconteça aquilo...”

Essa reflexão explicitada por L.II pa-rece ter sido favorecida por uma atitudepresente nos sujeitos envolvidos queDewey chama de “abertura de espí-rito”, que:

inclui um desejo ativo de pres-tar ouvidos a várias vozes, e nãoa uma só; de pôr sentido nos fa-tos de qualquer fonte que ve-nham; de conceder inteira aten-ção a possibilidades alternativas;de reconhecer a probabilidade deerro mesmo nas crenças que nossão mais caras. (Dewey, 1959)

Acreditamos que tal atitude favore-ça a qualidade das interações pos-

síveis entre formadores oriundos dediferentes áreas disciplinares e de pes-quisa, nos processos de formação deprofessores, especialmente de Quí-mica ou de Ciências.

Segundo as formadoras, a análisedos depoimentos dos envolvidos naconstrução do projeto didático com o

tema Efeito Estufa per-mitiu a identificaçãode alguns elementosque caracterizaramessa aproximação,tais como:• a assimetria dasconcepções explici-tadas torna bastantefecunda a oportunida-de de desenvolver a

capacidade de argumentaçãoentre os sujeitos;

• a episteme própria da ciência Quí-mica sustenta o diálogo entre osformadores em torno do objetode estudo do grupo, no caso, oprojeto didático;

• a aproximação entre os sujeitosparece ser favorecida, à medidaque surge uma preocupação emsuperar estereótipos típicos desuas áreas de pesquisa.

Tais aspectos emergentes da aná-lise dos dados indicam-nos possibili-dades de aprofundamento nessecampo de investigação. Assim, aconstituição de gruposin terd isc ip l inares,envolvendo formado-res de diferentes árease licenciandos, pode-ria ser acompanhada,tendo como referên-cias os elementosacima identificados, apartir desse trabalho. Acreditamos quea aproximação de tais grupos com omundo da prática escolar possibiliteimportantes reflexões acerca do papelprofissional do professor de Químicana realidade da escola brasileira.

Parece que as diferenças entre osmembros do grupo são pilares quesustentam novas possibilidades deargumentação, de redimensionamentoe de reflexão na e sobre a prática. Des-ta forma, interações, como as explici-tadas neste trabalho, podem favorecera possibilidade de formar professores

de Química mais capazes de estar nomundo da prática, comparando, deci-dindo, transgredindo princípios, encar-nando-os, rompendo, optando, sendoprofissionais mais emancipados.

AgradecimentosAs autoras agradecem a partici-

pação dos alunos Sônia Fanelli, EniltonCamargo e Lincoln Kutihara, da Licen-ciatura Integrada de Química e Física daUNICAMP. Agradecimentos especiaistambém à Prof.ª Roseli PachecoSchnetzler, pelas sugestões que muitocontribuíram para a finalização do texto.

Notas1. Carvalho e Gil-Pérez definem o

modelo 3+1 como aquele que divideos estudos universitários para forma-ção de professores de Ciências emdois ciclos. O primeiro ciclo contémdisciplinas de conteúdo específico deQuímica, Física, Biologia, Matemáticae o segundo disciplinas pedagógicas,incluindo a Didática e o estágio super-visionado. Esse último ciclo geralmenteabrange o último ano da licenciatura,enquanto o primeiro é desenvolvidonos três primeiros anos de formação.

2. Este trabalho foi apresentado par-cialmente na 25ª Reunião Anual daSociedade Brasileira de Química, ten-do sido premiado pela Divisão deEnsino de Química.

3. Entendemos, aqui, categoria co-mo unidade de signifi-cação de um discursoepistemológico.

4. Estamos aquinos referindo às abor-dagens tradicional econstrutivista, tendocomo base modelosdistintos de ensino.

Na primeira dessas abordagens, oconhecimento é transmitido, supondoque a mente do aluno é “tabula-rasa”.Na segunda, a construção dosconceitos é possível a partir dolevantamento das idéias prévias dosalunos sobre determinado tema.

Maria Inês de Freitas Petrucci Santos Rosa ([email protected]), bacharel e licenciada em Química edoutora em Educação pela UNICAMP, é docente naFaculdade de Educação da UNICAMP. Adriana VitorinoRossi ([email protected]), bacharel e licenciadaem Química e doutora em Química Analítica pela UNI-CAMP, é docente no Instituto de Química da UNICAMP.

Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química

Parece que as diferençasentre os membros dogrupo são pilares que

sustentam novaspossibilidades deargumentação, de

redimensionamento e dereflexão na e sobre a

prática

A grande contribuição doconfronto de concepções

das professoras foipropiciar uma importante

oportunidade deargumentação entre os

sujeitos envolvidos

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Abstract: Interdisciplinar Mediation in the Construction of a Chemistry Learning Project: an Analysis Based on the Dialog between Distinct Knowledges - A qualitative investigation of partnershippossibilities between educators from different scientific research areas in order to create a didactic process with pre-service teachers is presented. Some characteristic principles of this approach wereidentified, such as: asymmetry of conceptions, dialogs sustained by the episteme of chemistry itself, and the concern about overcoming stereotypes from different areas.Keywords: teaching education, learning project, teacher education

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VYGOSTKY, L.S. Pensamento e lingua-gem. 3a ed. Trad. J.L. Camargo. SãoPaulo: Editora Martins Fontes, 1991.

Alternativa ao Currículo Dominante noEnsino de Química de Nível Médio

O campo de pesquisa em Educa-ção Química no Brasil engloba impor-tantes trabalhos que analisam e ques-tionam, sob diferentes aportes teóricos,os livros didáticos comercializados nopaís e dirigidos ao nível médio de en-sino.

A despeito das profundas diferençasentre esses trabalhos, eles convergempara a compreensão de que os livrosdidáticos usualmente comercializadosapresentam tanto inconsistências teó-ricas quanto metodológicas, seja doponto de vista químico ou educacional.Além disso, tais trabalhos convergempara a identificação de uma notável (masnão incompreensível) homogeneidadeentre os diferentes textos existentes nomercado há décadas. Reedições dosmesmos livros se repetem com poucasalterações ou com alterações que ape-nas consistem em um resumo de ver-sões anteriores mais completas. No queconcerne à seleção e à organização dosconteúdos de Química para o EnsinoMédio, os livros didáticos são muito se-melhantes, para não dizer iguais,especialmente nos princípios educacio-nais que os orientam. Não é possívelresponsabilizar tais livros por todos osproblemas identificados no ensino deQuímica; todavia, eles constituem umcurrículo escrito com significativo podersobre o currículo em ação nas escolas.

Certamente as mudanças necessá-rias para resolver os inúmeros proble-mas do ensino de Química e da educa-ção de uma forma mais ampla nãoacontecerão simplesmente com a mu-dança do livro didático utilizado em salade aula, mas a qualidade inegável deQuímica para o ensino médio contribuiefetivamente para que parte dessasmudanças possa se efetivar.

(Alice Casimiro Lopes, Professora daFaculdade de Educação da UFRJ)

Química para o Ensino Médio. Eduar-do Fleury Mortimer e Andréa HortaMachado. São Paulo: Scipione, 2002,volume único (série parâmetros). ISBN:85-2624456-6 (www.scipione. com.br)

ResenhaAssim sendo, é certamente de gran-

de relevância a publicação do livro Quí-mica para o Ensino Médio, de EduardoFleury Mortimer e Andréa Horta Macha-do. Esse livro - em um volume único com16 capítulos visando às três séries doEnsino Médio - é radicalmente diferenteda grande maioria dos livros-texto nomercado. Os autores sintetizam nessetexto sua trajetória de pesquisa e de prá-tica em ensino de Química, apresentan-do efetivamente, em um texto claro,acessível, lógico e coerente, uma pro-posta curricular atualizada e consistentepara o ensino da Química.

Nessa proposta, o ensino de Quími-ca parte de questões, ora associadas àvida cotidiana de todos nós, ora ineren-tes ao contexto do conhecimento quí-mico, que podem ser respondidas peloconhecimento das teorias da Química.Com os textos, atividades propostas eexercícios, o professor não tem um ma-nual a ser seguido sem questionamento,mas um orientador preciso de seu tra-balho em sala de aula. Sobretudo, o pro-fessor passa a contar com uma alterna-tiva ao modelo ainda dominante deensino de Química.

Para facilitar a compreensão dos prin-cípios pedagógicos que embasam aproposta desse livro, o volume é acom-panhado por um exemplar de AssessoriaPedagógica. Nele, os professores podemencontrar também referências de outrostrabalhos que subsidiam a proposta eque permitem seu desenvolvimento.

Mediação interdisciplinar na construção de um projeto de ensino de Química