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Pesquisa Qualitativa e SubjetividadeOs processos de construo da informao

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

(CIP)

Fernando Gonzlez Rey

Gonzlez Rey, Fernando Pesquisa qualitativa e subjetividade : os processos de construo da informao / Fernando Gonzlez Rey ; [ traduo Mareei Aristides Ferrada Silva] . So Paulo : Pioneira Thomson Learning, 2005. Bibliografia. ISBN 35-221-0477-8 1. Pesquisa qualitativa 2. Subjetividade I. Titulo

Traduo: Marcj Aristides Ferrada Silva

05-1948 ndice para catlogo sistemtico:

CDD-001.4

THOMSON *

THOMSON

APRESENTAOReviso: Carla Montagner e Luicy Caetano de Oliveira Editorao Eletrnica: Know-how Editorial Capa: Ana Lima

Gerente Editorial: Adilson Pereira Supervisora de Produo Editorial: Patrcia La Rosa Editora de Desenvolvimento: Danielle Mendes Sales

Produtora Editorial: Ligia Cosmo Cantarelli Produtora Grfica: Fabiana Alencar Albuquerque Traduo: Mareei Aristides Ferrada Silva Copidesque: Fernanda Isabel Bitazi

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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gonzlez Rey, Fernando Pesquisa qualitativa e subjetividade: os processos de construo da informao/Fernando Gonzles Rey; [traduo Mareei Aristides Ferrada Silva]. - So Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. Bibliografia. ISBN 85-221-0477-8 1. Pesquisa qualitativa 2. Subjetividade I. Ttulo 05-1948 CDD-001.4ndices para catlogo sistemtico:

1. Pesquisa qualitativa 001.4

Este livro excepcional constitui um avano para o campo da psicologia, imprimindo-lhe a paixo de um manifesto. Estimula e energiza o leitor propondo-lhe a nova tarefa da compreenso do trabalho da mente, medida que esta se confronta com o mundo, por meio da explorao da subjetividade e da conscincia. A psicologia proposta por Nietzsche como "a cincia mestre", qual todas as outras deveriam submeter-se (Alm do bem e do mal*), transformou-se, sob o domnio do positivismo, em uma paisagem rida que tem desviado muitas mentes brilhantes. Esse imprio do tdio tambm tem sido ignorado pelas Cincias afins, como a histria, a filosofia, a sociologia e a antropologia, e tambm pelo campo literrio. Ao mesmo tempo, a necessidade de conhecer os fenmenos psicolgicos que perpassam todos esses campos mantm-se. Como resultado desastroso, a psicanlise foi adotada como representante de toda a psicologia. Curiosamente, por um sculo os sinais de alarme tm estado presentes - a exemplo disso, podem-se mencionar os ltimos trabalhos de Husserl e Lev Semenovich Vigotsky. O primeiro perguntava-se na sua obra Krisis por que o campo da subjetividade, que deveria ser considerado o objeto da psicologia, havia sido totalmente ignorado pelos psiclogos. No caso de Vigotsky, a crtica incisiva ao positivismo, desenvolvida em seus ltimos trabalhos, manteve-se oculta at recentemente por seus tradutores para a lngua inglesa. No Ocidente, somente os trabalhos iniciais e mais tradicionais de Vigotsky sobre o desenvolvimento infantil estavam disponveis. Nesta obra apresenta-se a Epistemologia Qualitativa como primeiro esforo abrangente no estudo cientfico da subjetividade. Mas o que a subjetividade? O professor Gonzlez Rey a descreve:

Nietzsche, F. Alm do bem e do mal. Traduo de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. (N.E)

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A subjetividade no substitui os outros sistemas complexos do homem (bioqumico, fisiolgico, ecolgico, laborai, sade etc.) que tambm encontram, nas diferentes dimenses sociais, um espao sensvel para seu desenvolvimento, mas transforma-se em um novo nvel na anlise desses sistemas, os quais, por sua vez, se convertem em um novo sistema que historicamente tem sido ignorado em nome do subjetivismo, do mentalismo e do individualismo (p. 14). Ou seja, o principal objeto da psicologia foi eliminado quando esta rea ficou sob o dominao do positivismo. Uma das vias pelas quais o positivismo tem construdo seu imprio foi pela inveno e a aplicao ilimitada do dogma da cientificidade. Aos estudantes de psicologia foram e ainda so ensinadas as regras que eles chamaram de "cincia dura", e esse dogma foi passado de gerao a gerao. Eles foram levados a crer que estavam fazendo o mesmo que os mdicos: coletar e medir evidncias observveis e replicveis. Seguindo essas regras, o mistrio da psicologia seria, um dia, resolvido. Como esse dogma falso, no surpreende que o positivismo no tenha conseguido cumprir essa promessa. O positivismo evitou tratar do problema epistemolgico que consiste em saber qual o modelo de cincia apropriado ao estudo dos fenmenos psicolgicos. Dada sua natureza como expresso da subjetividade humana, como se pode construir teorias e desenvolver mtodos apropriados compreenso dos fenmenos psicolgicos? Para entender o que est em jogo, pode-se comparar a construo imaginativa do que se requer para estudar cientificamente a natureza dos fenmenos psicolgicos que este livro nos apresenta com a "jia da coroa" do positivismo, o conceito de construto hipottico. Murray, na introduo de seu livro sobre Personalidade (Themy A. Murray e C. Kluckhohn, Personality in nature, Society, and culture, Nova York, Alfred A. Knopf, 1953), descreve esse construto como fico til. Seria realmente til? Pode uma cincia se construir baseada na fico? De forma pomposa, ;i produo de construtos hipotticos tem sido descrita como abstrao generalizada. O que isto quer dizer? Observam-se algumas ocorrncias empricas no nvel mais superficial; e seguida, inventa-se um nome que capture algo comum entre essas ocorrncias: necessidades,

motivos, atitudes etc. Assim obtm-se o construto hipottico. Isso uma fico, se mantm vias instrumentais para medi-lo e transforma-se essa fico (reificao) em algo que se cr real. Isso no fazer cincia, mas espalhar uma estranha religio que se cr til. til de que forma? Um historiador da psicologia tem argumentado que a razo pela qual o positivismo aceito universalmente na psicologia porque permite profissionalizar a rea fornecendo regras simples que possam ser assimiladas pelo aluno mdio. Esse fato permitiu criar departamentos de psicologia que ofereciam a seus alunos formas de ganhar a vida em uma variedade de domnios aplicados desta disciplina, algo que no se poderia sustentar se ela se confrontasse com a complexidade de seu prprio objeto. Ao introduzir o conceito de medida, poderia ser invocada uma relao com a cincia; assim, os instrumentos de medio foram importados da rea da engenharia agronmica. Fisher, seu inventor, promoveu grande lobby nos departamentos de psicologia para que esses instrumentos fossem adotados. A. Newell e A. Simon (Human Problems Solving, Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1974) perguntavam-se por que, para construir a psicologia, os pesquisadores voltavam-se para os modelos da agricultura, e no, por exemplo, para a neurobiologia ou mesmo a meteorologia. O contexto histrico evocado pode ser a resposta. A pesquisa qualitativa emergiu como meio de romper com o ponto de vista estreito e opressivo do positivismo, no entanto, nem sempre tem-se confrontado com a necessidade de desenvolver uma fundamentao epistemolgica slida. O professor Gonzlez Rey argumenta com razo que os problemas surgem quando os investigadores aderem pesquisa qualitativa sem conscincia epistemolgica. Se esse for o caso, a perspectiva positivista tradicional, todavia, ser dominante na conduo da pesquisa qualitativa. O autor afirma: A revitalizao do epistemolgico , pois, uma necessidade diante da tentativa de monopolizar o cientfico a partir da relao dos dados com a validade e a confiabilidade dos instrumentos que os produzem. Esse instrumentalismo corrompeu o objetivo da cincia e levou reificao do emprico, provocando profundas deformaes ao usar a teoria. Por esse motivo, falar de metodologia qualitativa implica um debate terico-epistemolgico, sem o

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qual impossvel superar o culto instrumental derivado da hipertrofia que considera os instrumentos vias de produo direta de resultados na pesquisa" (p. 3). Neste livro, fornece-se uma epistemologia baseada em uma profunda preocupao por descrever o que necessrio para construir uma cincia da psicologia realisticamente fundamentada, uma psicologia que possa ter sentido para as cincias afins e as humanidades e que interaja criativamente com elas. A esse respeito, deve-se observar que o autor acertadamente enfatiza o erro que implicou o fato de a psicologia se afastar do ponto de vista epistemolgico-filosfico ao pensar suas prprias questes epistemolgicas. Assim, ele se posiciona em relao a um dos aspectos da subjetividade: a complexidade. Quanto ao fato de a epistemologia qualitativa estar relacionada com a complexidade do seu objeto de estudo, o autor escreve: impossvel falar de complexidade em abstrato. As caractersticas gerais de um sistema complexo devem adquirir valor heurstico para construir o conhecimento dentro do campo por ns estudado (p. 17). Ele enfatiza ainda: A complexidade expressa uma tenso constante entre organizao e processo, entre continuidade e ruptura, que rompe com o determinismo mecanicista(p. 18). A Epistemologia Qualitativa representa um modo totalmente novo de conceber os princpios gerais de uma perspectiva metodolgica apropriada ao estudo dos processos psicolgicos. Ao reconhecer que a realidade " um domnio infinito de campos inter-relacionados", tem-se de pensar o conhecimento como imbudo de um carter construtivo-interpretativo, conforme o professor Gonzlez Rey afirma: (...) quando nos aproximamos desse complexo sistema por meio de nossas prticas, as quais, nesse caso, concernem pesquisa cientfica, formamos

um novo campo de realidade em que as prticas so inseparveis dos aspectos sensveis dessa realidade estudada. So precisamente esses os aspectos suscetveis de serem significados em nossa pesquisa. impossvel pensar que temos um acesso ilimitado e direto ao sistema do real, portanto tal acesso sempre parcial e limitado a partir de nossas prprias prticas (p. 5). Por orientar-se pela complexidade dos fenmenos psicolgicos, este livro oferece uma viso inspiradora a todos aqueles que se preocupam com essas questes, propiciando insights sobre como comunicar o esforo criativo do estudo do funcionamento da psique. Novos conceitos so introduzidos, e cada um deles poderia constituir um novo domnio de pesquisa. Temos, por exemplo, as ideias de sentido subjetivo e de "zona de sentido como espaos de inteligibilidade produzidos na pesquisa cientfica". O pesquisador no deve guiar-se por respostas fceis: A nica tranquilidade que o pesquisador pode ter nesse sentido se refere ao fato de suas construes lhe permitirem novas construes e novas articulaes entre elas capazes de aumentar a sensibilidade do modelo terico em desenvolvimento para avanar na criao de novos momentos de inteligibilidade sobre o estudado, ou seja, para avanar na criao de novas zonas de sentido (p. 7). Tampouco pode depender de regras simples, que possam ser ensinadas s massas: Onde h pensamento devem existir especulao, fantasia, desejo e todos os processos subjetivos envolvidos na criatividade do pesquisador como sujeito. Creio que o perigo no est na especulao, mas sim na sua separao em relao ao momento emprico, na reifcao do especulativo (...) (p. 8). Sobre o aspecto metodolgico, o autor, de forma muito importante, enfatiza "a legitimao do singular como instncia de produo de conhecimento cientfico" (p. 10). Neste ponto, ele faz eco aos argumentos introduzidos por Newell e Simon (op. cit.) em favor da aproximao ideogrfica ao objeto de estudo, em contraste com a aproximao nomottica do

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positivismo, na qual o indivduo aparece somente como fragmento em uma compilao estatstica. S uma aproximao ideogrfica permite o acesso aos processos psicolgicos, e a complexidade inerente a essa tarefa no pode ser negligenciada. Ao propor a fundao de uma nova psicologia, este livro oferece uma maneira criativa de colocar o perspectivismo de Nietzsche em ao. Estou me referindo ao que o professor Gonzlez Rey chama de construtivo-interpretativo:Ao afirmar que nosso conhecimento tem um carter construtivo-interpretativo, estamos tentando superar a iluso de validade ou a legitimidade de um conhecimento por sua correspondncia linear com uma realidade, esperana essa que se converteu, contrariamente ao que pensam e sentem seus seguidores, em uma construo simplificada e arbitrria a respeito da realidade, ao fragment-la em variveis suscetveis de procedimentos estatsticos e experimentais de verificao, mas que no possuem o menor valor heurstico para produzir "zonas de sentido" sobre o problema que estudam, afastando-se, dessa forma, da organizao complexa da realidade estudada (p. 6, Cap. 1). Outra questo que presumivelmente propiciar intensas trocas no campo da psicologia o lugar que se atribui comunicao na Epistemologia Qualitativa ao se considerar a pesquisa como processo de

quem se aplicam, nem do cenrio social em que essa aplicao se realiza. Os processos subjetivos e sociais implicados na pesquisa foram totalmente desconhecidos, o que caracterizou no apenas a pesquisa cientfica, como tambm os diferentes espaos institucionalizados de produo e aplicao do conhecimento, como sade, escola e os diferentes tipos de instituies da vida poltica e social (p. 16). Num momento seguinte, o autor mostra seu real interesse pela dialogicidade, interesse que no tem sido acompanhado por uma reflexo epistemolgica relevante na literatura sobre o tema. Por exemplo, h muita nfase sobre o dialogismo como constitutivo de uma ontologia humana. Porm, o intuito de investigar essa questo tem consistido em observar o intercmbio dialgico, mas no o observador interagir com os dados, a partir de seu prprio ponto de vista. Tampouco o sujeito pode se reduzir a um fragmento de um intercmbio. Nesse campo, ainda aberto e em desenvolvimento, o livro proporciona uma profunda reflexo, como no trecho: A Epistemologia Qualitativa (...) precisamente o ato de compreender a pesquisa, nas cincias antropossociais, como um processo de comunicao, um processo dialgico, caracterstica essa particular das cincias antropossociais, j que o homem, permanentemente, se comunica nos diversos espaos sociais em que vive (p. 13). Tambm a Epistemologia Qualitativa reconsidera a bandeira fatal do que tem sido chamado, provavelmente de forma inapropriada, construcionismo social, caracterizado pela "desconsiderao do sujeito como produtor de pensamento e sentido, deixando-o reduzido convergncia de vozes ou 'efeitos' discursivos de uma sociedade reduzida a uma metfora discursiva". Essa perspectiva que tem sido apresentada em si mesma como uma alternativa ao positivismo tem suprimido a mente no s como objeto de pesquisa, mas tambm como realidade. Para um behaviorista, a mente era uma caixa-preta impossvel de ser decifrada, e para um construcionista social ela simplesmente no existe. Faanha que no foi sequer sonhada pelos behavioristas. Outro importante conceito introduzido nesta obra a epistemologia da resposta, o que :

comunicao:Considerar a comunicao um princpio epistemolgico conduz a reconsiderar o espao social da pesquisa em sua significao para a qualidade da informao produzida. O instrumentalismo ingnuo, que tem caracterizado a pesquisa social e sido criticado por diferentes socilogos, psiclogos e antroplogos (Bourdieu, Touraine, Ferrarotti, Koch, Gergen, Ibanez, Spink, Gonzlez Rey e outros), considerou que a validade, a confiabilidade e a padronizao dos instrumentos, em determinada populao, era condio necessria suficiente para legitimar essa informao; portanto, a legitimao produz-se por processos instrumentais padronizados, nos quais o intelecto do pesquisador intervm pouco. Essa representao instrumentalista no se ocupou nem do sentido que tais instrumentos tm para as pessoas a

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4.2 Processos e categorias para a produo de informao na perspectiva da pesquisa qualitativa apoiada na epistemologia qualitativa 125 4.2.1 A dinmica conversacional 126 4.2.2 Completamento de frases 139 4.2.3 A construo de informao em questionrios abertos . . . . 176 4.2.4 Instrumento de conflito de dilogos: os processos de construo da informao 192 4.3 Consideraes finais 200 Bibliografia 203

CAPITULO 1O Compromisso Ontolgico na Pesquisa QualitativaA PESQUISA QUALITATIVA NAS CINCIAS SOCIAIS IMPLICAES TERICASJ EPISTEMOLGICASDefinir hoje o que significa a pesquisa qualitativa uma tarefa difcil. Sempre que sob esse rtulo so desenvolvidas tendncias muito diferentes, tanto nas cincias naturais de modelao matemtica como nas cincias sociais. por essa razo que preferi situar (Gonzlez Rey, 1997) a anlise do qualitativo em uma perspectiva epistemolgica, definindo as bases epistemolgicas de uma aproximao qualitativa no campo da psicologia, aproximao esta que considero legtima para qualquer uma das cincias antropossociais. Essa proposta epistemolgica foi por mim denominada Epistemologia Qualitativa (Gonzlez Rey, 1997). O sentido do termo ficou definido pelo status epistemolgico que cobrou nas cincias sociais o modelo quantitativo, emprico e descritivo, o qual se caracterizou por um positivismo aterico, cujos protagonistas careciam completamente de conscincia epistemolgica, mas impunham um conceito de cincia centrado na acumulao de dados quantificveis suscetveis de atos de verificao imediata, por meio de evidncias observveis e/ou estatsticas. O positivismo que tomou vida nas cincias sociais e que at hoje continua dominando o imaginrio da pesquisa cientfica nessa rea ignorou tudo o que significa produo terica, ideias modelos e reflexes. Nesse ponto representou a recusa de qualquer filosofia^ mais do que uma apropriao dela.

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O prprio Comte foi consciente da contradio ao tentar produzir um conhecimento sem bases tericas, apesar de no ter podido resolver esse problema em sua obra. Assim, em seu Curso de Filosofia Positiva, comenta (1983):Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observaes, igualmente perceptvel de outro que, para entregar-se a observao, nosso esprito necessita de uma teoria qualquer. Se contemplando os fenmenos no os relacionarmos de imediato a algum pressuposto, no s nos seria impossvel combinar essas observaes isoladas, por conseguinte tirar de a algum fruto, seno que seramos completamente incapazes de ret-las; a maioria dos fatos passaram despercebidos a nossas vistas (p. 24).

usado como critrio de afirmao conclusiva, com o qual os processos de pesquisa, de avaliao e de diagnstico no passam de processos classificatrios em que o pesquisador, mais que produzir, procura aplicar um conjunto de conhecimentos preestabelecidos. Conforme assinala Ferrarotti (1990): provvel que o retorno aos clssicos do mesmo pensamento cientfico fizesse muito rpido justia quelas posies intelectualmente frgeis apesar dos esforos triunfalistas, que tendem a empobrecer a pesquisa cientfica no sentido estrito, ao enfatizar suas tcnicas especficas e os procedimentos em detrimento dos conceitos propriamente tericos (p. 88). O desenvolvimento de uma posio reflexiva, que nos permita fundamentar e interrogar os princpios metodolgicos, identificando seus limites e possibilidades, coloca-nos de fato diante da necessidade de abrir uma discusso epistemolgica que nos possibilite transitar, com conscincia terica, no interior dos limites e das contradies da pesquisa cientfica. Isso nos leva a romper com a conscincia tranquila e passiva com a qual muitos pesquisadores se orientam no campo da pesquisa, apoiados no princpio de que pesquisar aplicar uma sequncia de instrumentos cuja informao se organiza, por sua vez, em uma srie de procedimentos estatsticos sem precisar produzir uma s ideia. A revitalizao do epistemolgico uma necessidade diante da tentativa de monopolizar o cientfico a partir da relao dos dados com a validade e a confiabilidade dos instrumentos que os produzem. Esse instrumentalismo corrompeu o objetivo da cincia e levou reificao do emprico, provocando profundas deformaes ao usar a teoria. Por esse motivo, falar de metodologia qualitativa implica um debate terico-epistemolgico, sem o qual impossvel superar o culto instrumental derivado da hipertrofia que considera os instrumentos vias de produo direta de resultados na pesquisa. Sem uma reviso epistemolgica, corremos esse risco, como de fato vem ocorrendo at hoje, de manter uma posio instrumentalista na pesquisa qualitativa ao legitimar o qualitativo por meio dos instrumentos utilizados na pesquisa, e no pelos processos que caracterizam a produo do conhecimento. Nas ltimas dcadas, tm proliferado diferentes propostas de pesquisa qualitativa, entre as quais se destacam a fenomenologia, a anlise do

Comte era consciente da necessidade da teoria, apesar de no ter conseguido explicar a forma como essa importncia podia concretizar-se no conjunto de princpios que defendeu em considerao cincia. evidente que o principal problema da quantificao no est referido na operao como tal, operao que totalmente legtima na produo do conhecimento; o principal problema est naquilo que quantificamos, dentro de que sistema terico os aspectos quantificados vo adquirir significado. Esse tem sido um aspecto totalmente ignorado por causa da utilizao, de forma inadequada, da quantificao que guia importantes setores da pesquisa nas cincias sociais. A metodologia conduziu a um metodologismo, no qual os instrumentos e as tcnicas se emanciparam das representaes tericas convertendo-se em princpios absolutos de legitimidade para a informao produzida por eles, as quais no passavam pela reflexo dos pesquisadores. nessa direo que a medio e a quantificao se elevam como um fim em si mesmas, deixando de lado os processos de construo terica acerca da informao que aparece nos instrumentos. O instrumentalismo tem hegemonizado o processo de coleta de informao nas cincias sociais. Os instrumentos, segundo essa tradio, tm sido associados a categorias universais atravs das quais se estabelecem relaes diretas e universais entre certos significados e formas concretas de expresso do sujeito. Partindo dessa forma de uso, a aplicao de tais instrumentos no passa de uma rotina classificatria. O instrumento

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discurso e os processos de construo das prticas discursivas. Nossa proposta no est centrada apenas na construo das prticas discursivas que caracterizam as diferentes atividades humanas, assim como tampouco, e tambm no compartilha da nfase nos procedimentos descritivo-indutivos que caracterizam a abordagem fenomenolgica. Nossa proposta da Epistemologia Qualitativa foi introduzida com o objetivo de acompanhar as necessidades da pesquisa qualitativa no campo da psicologia, pois, de modo geral, as referncias epistemolgicas alternativas ao positivismo se limitavam a um nvel de princpios muito gerais, sem se articularem essencialmente s necessidades dos diferentes momentos concretos da pesquisa, os quais sem dvida requeriam uma fundamentao para se legitimar diante dos critrios dominantes do positivismo. Perante a ausncia de reflexo epistemolgica que, durante anos, marcou o desenvolvimento das cincias antropossociais no af de cientificidade e de independncia da filosofia, a busca por alternativas epistemolgicas guiava-se, paradoxalmente, por posies j desenvolvidas na filosofia, as quais em seus aspectos mais gerais so importadas, por alguns pesquisadores, do campo das cincias particulares. Tal fato vem ocorrendo, por exemplo, no campo da fenomenologia, onde os autores que compartilham alguns princpios gerais dessa filosofia em um campo particular do saber, se declaram fenomenlogos, importando acriticamente das cincias particulares princpios cuja significao est associada a discusses filosficas que no caracterizam necessariamente o espao da cincia particular a qual so impostos de forma totalmente pr-elaborada, esses princpios epistemolgicos gerais. Penso que a relao entre a filosofia e as cincias particulares deve apoiar-se na criao e no na importao. Os cientistas sociais encontram na filosofia um pensamento vivo e um conjunto de representaes tericas que se convertem em pontos de partida essenciais para a construo dos problemas associados a cada cincia. o que assinala Vigotsky, com quem concordo plenamente (1982):A aplicao direta da teoria do materialismo dialtico aos problemas da cincia natural e, em particular, ao grupo das cincias biolgicas ou a psicologia impossvel, como impossvel aplic-lo diretamente histria e sociologia. Entre ns, h quem pense que o problema da "psicologia e o marxismo" se reduz a criar uma psicologia que responda ao marxismo; mas, na realidade, esse problema muito mais complexo (p. 491).

Partindo da Epistemologia Qualitativa, tento desenvolver uma reflexo aberta e sem ncoras apriorsticas em relao s exigncias e s necessidades de produzir conhecimento em uma perspectiva qualitativa; tento buscar uma posio quanto s novas perguntas e respostas criadas ao implementar um processo diferente de construo do conhecimento, evitando assim transitar por novas opes utilizando princpios j estabelecidos por representaes epistemolgicas anteriores que no respondem aos novos desafios. Essa tentativa tem tambm em sua base o apelo de Bachelard pelo desenvolvimento de epistemologias particulares nos diferentes campos do conhecimento, fato que considero a nica forma real de enfrentar os desafios epistemolgicos que vo aparecendo nos campos metodolgicos particulares de cada cincia. A Epistemologia Qualitativa enfatiza princpios gerais da produo do conhecimento que sustentam nossa proposta metodolgica concreta. Apesar do livro dedicado ao tema (1997) e das minhas publicaes posteriores em relao ao tema (1999, 2000, 2001, 2002), considero importante aprofundar os significados de alguns desses princpios, por causa da dificuldade que, na prtica, tm os pesquisadores para implement-los e principalmente por causa do imaginrio dominante no campo da pesquisa das cincias antropossociais.A Epistemologia Qualitativa defende o carter construtivo interpretati-

vo do conhecimento, o que de fato implica compreender o conhecimento como produo e no como apropriao linear de uma realidade que se nos apresenta. A realidade um domnio infinito de campos inter-relacionados independente de nossas prticas; no entanto, quando nos aproximamos desse complexo sistema por meio de nossas prticas, as quais, neste caso, concernem pesquisa cientfica, formamos um novo campo de realidade em que as prticas so inseparveis dos aspectos sensveis dessa realidade. So precisamente esses os aspectos suscetveis de serem significados em nossa pesquisa. impossvel pensar que temos um acesso ilimitado e direto ao sistema do real, portanto, tal acesso sempre parcial e limitado a partir de nossas prprias prticas. O pensamento ocidental tem se inclinado a dicotomias, a partir das quais temos concebido o mundo como externo e independente em relao a ns, como se no fssemos parte dele e como se no estivssemos implicados, de maneira orgnica, em seu prprio funcionamento. Essa

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dimenso do real, que se produz a partir da nossa ao nos diferentes domnios do mundo, a que ganha visibilidade em nossas prticas cientficas o que no significa nem que a realidade seja desconhecida, nem que possamos nos descentrar de nossa subjetividade e de seus efeitos sobre nossas intervenes na realidade; essas so as duas aspiraes universais que, por um lado, tm sustentado o relativismo radical e, por outro, o positivismo. Segundo Atlan (1993): H uma grande diferena entre afirmar que existe uma realidade e conhec-la. (...) No nego que exista uma realidade, apenas nego o fato de que uma teoria ou tradio, permitindo uma concepo exclusiva de realidade, defina esta com o qualificativo de "ltima", como se no pudesse ir mais longe. Na minha opinio sempre possvel se aprofundar nas coisas. E por isso mesmo no se pode falar de "realidade ltima". A realidade algo a interpretar, ela feita daquilo que se pode chamar "interpretando" (p. 66). Quando afirmamos o carter construtivo-interpretativo do conhecimento, desejamos enfatizar que o conhecimento uma construo, uma produo humana, e no algo que est pronto para conhecer uma realidade ordenada de acordo com categorias universais do conhecimento. Disso surgiu o conceito de "zona de sentido" (1997), definido por ns como aqueles espaos de inteligibilidade que se produzem na pesquisa cientfica e no esgotam a questo que significam, seno que pelo contrrio, abrem a possibilidade de seguir aprofundando um campo de construo terica. Tal conceito tem, ento, uma profunda significao epistemolgica que confere valor ao conhecimento, no por sua correspondncia linear e imediata com o "real", mas por sua capacidade de gerar campos de inteligibilidade que possibilitem tanto o surgimento de novas zonas de ao sobre a realidade, como de novos caminhos de trnsito dentro dela atravs de nossas representaes tericas. O conhecimento legitima-se na sua continuidade e na sua capacidade de gerar novas zonas de inteligibilidade acerca do que estudado e de articular essas zonas em modelos cada vez mais teis para a produo de novos conhecimentos. Ao afirmar que nosso conhecimento tem um carter construtivointerpretativo, estamos tentando superar a iluso de validade ou a legitimidade de um conhecimento por sua correspondncia linear com uma realidade, esperana essa que se converteu, contrariamente ao que pensam

e sentem seus seguidores, em uma construo simplificada e arbitrria a respeito da realidade, ao fragment-la em variveis suscetveis de procedimentos estatsticos e experimentais de verificao, mas que no possuem o menor valor heurstico para produzir "zonas de sentido" sobre o problema que estudam, afastando-se, dessa forma, da organizao complexa da realidade estudada. O conhecimento um processo de construo que encontra sua legitimidade na capacidade de produzir, permanentemente, novas construes no curso da confrontao do pensamento do pesquisador com a multiplicidade de eventos empricos coexistentes no processo investigativo. Portanto, no existe nada que possa garantir, de forma imediata no processo de pesquisa, se nossas construes atuais so as mais adequadas para dar conta do problema que estamos estudando. A nica tranquilidade que o pesquisador pode ter nesse sentido se refere ao fato de suas construes lhe permitirem novas construes e novas articulaes entre elas capazes de aumentar a sensibilidade do modelo terico em desenvolvimento para avanar na criao de novos momentos de inteligibilidade sobre o estudado, ou seja, para avanar na criao de novas zonas de sentido. A significao de cada registro emprico durante o desenvolvimento de um sistema terico , necessariamente, um ato de produo terica., pois inseparvel do sistema terico, o qual, em seu conjunto, est por trs desse ato de inteligibilidade. Afirmar o carter construtivo-interpretativo do conhecimento implica tambm estabelecer uma diferena entre os termos interpretao e construo, j que toda interpretao realmente uma construo. No entanto, ao estabelecermos essa distino entre ambos os termos, a construo pode no estar associada, de modo imediato e intencional, a nenhum referencial emprico; a categoria de sujeito, por exemplo, uma construo por trs da qual h mltiplos referenciais empricos na histria do pesquisador, mas que no se afunilam na representao intencional no momento de construir a categoria. Portanto, a categoria tem um carter especulativo que, em seu momento atual, tem como fundamento somente a construo terica de quem a defende. A construo um processo eminentemente terico. Penso que a construo nos permite superar um dos maiores fantasmas da pesquisa tradicional que ameaa constantemente os pesquisadores: a

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0 compromisso ontolgico na pesquisa qualitativa

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especulao. Onde h pensamento devem existir especulao, fantasia, desejo e todos os processos subjetivos envolvidos na criatividade do pesquisador como sujeito. Creio que o perigo no est na especulao, mas sim na sua separao em relao ao momento emprico, na reificao do especulativo que termina sendo uma forma de rotulao acrtica como a que caracteriza os artefatos instrumentais, os quais se tornam a-histricos e universais. Sentir medo da especulao um fato institucionalizado e pblico de um medo oculto na instituio cientfica e acadmica: o medo das ideias. A especulao uma operao do pensamento que nos permite novos acessos ao aspecto emprico da realidade estudada. A especulao parte inseparvel da construo terica, e a partir dela retornarmos ao momento emprico e passamos a desenvolver sensibilidade para novos elementos nesse nvel, os quais somente podero adquirir inteligibilidade graas a uma representao terica que nos permita visibiliz-los. Assim, a partir do desenvolvimento da prpria categoria do sujeito, sobre a qual comentamos anteriormente como exemplo de construo, se abriram novos campos empricos de pesquisa, como o do sujeito que aprende (Gonzlez Rey, 2003). Historicamente, a aprendizagem se conceituava em categorias do intelecto, a cognio ou bem era visto sob uma perspectiva mais pedaggica, nos mtodos e meios usados no ensino. Contudo, o aluno como sujeito que aprende e a aula como espao de relacionamento eram omitidos nas pesquisas sobre o tema, simplesmente porque no havia representaes tericas que apoiassem sua incluso na pesquisa. Quando se inclui no repertrio da pesquisa emprica o sujeito que aprende, comea-se a gerar inteligibilidade sobre novos processos que intervm na aprendizagem, como o da produo de sentidos por parte do sujeito. Enfatizar o carter construtivo-interpretativo da pesquisa significa que um atributo essencial dessa proposta de metodologia qualitativa seu carter terico. Tal metodologia orientada para a construo de modelos compreensivos sobre o que se estuda. Mais adiante iremos nos estender na significao do modelo terico para a construo do conhecimento dentro desta proposta metodolgica. A afirmao do carter terico desta proposta no exclui o emprico, nem o considera em um lugar secundrio, mas

sim o compreende como um momento inseparvel do processo de produo terica (Gonzlez Rey, 1991). Assim, pretendemos romper definitivamente a dicotomia entre o emprico e o terico, na qual o emprico se situa como atributo de uma realidade externa e o terico considerado uma mera especulao ou um simples rtulo para nomear o emprico. Se rompermos com a ideia de que a realidade um sistema externo, conforme afirmamos anteriormente, e considerarmos nossas prticas como algo constitutivo, mas tambm constituinte dos campos por ns estudados, a nica maneira de construir um espao da realidade como conhecimento valer-se de nossas prticas cientficas, as quais so fundadoras de novos campos da realidade; nesses campos, a infinita complexidade da realidade suscetvel, por meio de tais prticas cientficas, de multiplicarse em vrias formas de inteligibilidade as quais, embora nos permitam visualizar a realidade, o fazem de modo limitado por causa dos prprios meios que usamos. Dessa forma rompe-se a expectativa racionalista de que o mundo pode ser conhecido de forma completa e progressiva pela razo humana. Aracionalidade , ao contrrio, a forma que temos para produzir inteligibilidade em sistemas, os quais, por sua complexidade, escapam dos meios utilizados por ns para conhec-los. A proliferao progressiva da pesquisa qualitativa nas ltimas quatro dcadas, nos diferentes campos das cincias sociais, respondeu sem dvida necessidade de emancipao do modelo positivista dominante diante das necessidades da prtica investigativa, por um lado, e, por outro, diante dos questionamentos e das novas representaes aportadas pelos diferentes campos da filosofia. Isso tem levado os autores de distintos campos das cincias antropossociais a se afiliarem ao qualitativo, sem que essa afiliao representasse necessariamente um ato de conscincia epistemolgica, o que, em parte, explica a conservao de uma epistemologia positivista tradicional por trs de muitas pesquisas assumidas desde uma intencionalidade qualitativa. No campo da psicologia, que meu campo de atuao, tenho observado uma tendncia dos pesquisadores a buscar uma nova forma que legitime a coleta emprica de dados, sem se aprofundar na articulao de todos os novos processos que deve legitimar uma proposta de pesquisa realmente alternativa, o que, inevitavelmente, passa por uma reflexo epistemolgica. Desse modo, questes como a generalidade dos resultados,

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Pesquisa qualitativa e subjetividat

O compromisso ontolgico n