Pessoa humana e direito huamanos na conscituição brasileira de 1988 a partir da persctiva...

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 UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO NÍVEL DOUTORADO FERNANDA FRIZZO BRAGATO PESSOA HUMANA E DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 A PARTIR DA PERSPECTIVA PÓS-COLONIAL SÃO LEOPOLDO 2009

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Direito e estudos pós-coloniais

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO NVEL DOUTORADO

    FERNANDA FRIZZO BRAGATO

    PESSOA HUMANA E DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988 A PARTIR DA PERSPECTIVA PS-COLONIAL

    SO LEOPOLDO 2009

  • FERNANDA FRIZZO BRAGATO

    PESSOA HUMANA E DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988 A PARTIR DA PERSPECTIVA PS-COLONIAL

    Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Direito, pelo Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos- Unisinos

    Orientao: Prof Dr. Vicente de Paulo Barretto

    SO LEOPOLDO 2009

  • Catalogao na Publicao: Bibliotecrio Eliete Mari Doncato Brasil CRB10/1184

    B813p Bragato, Fernanda Frizzo Pessoa humana e direitos humanos na Constituio brasileira

    de 1988 a partir da perspectiva ps-colonial / por Fernanda Frizzo Bragato. -- 2009.

    267 f. ; 30 cm.

    Tese (doutorado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Ps-Graduao em Direito, So Leopoldo, RS, 2009.

    Orientao: Prof. Dr. Vicente de Paulo Barretto, Cincias Jurdicas e Sociais.

    1. Direitos humanos. 2. Pessoa humana. 3. Constituio Brasileira - 1988. 4. Ps-colonialismo. 5. Eurocentrismo e modernidade. I. Ttulo. II. Barretto, Vicente de Paulo.

    CDU 342.7

  • Para Mario, por seu incansvel companheirismo.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo ao Professor Doutor Vicente de Paulo Barretto, principal orientador desta tese, pelo apoio decisivo em todas as etapas de construo do trabalho, mas acima de tudo, pela confiana e amizade que se sempre demonstrou.

    Meus agradecimentos so, tambm, para o Professor Doutor Alfredo Santiago Culleton, em razo das contribuies para a tese e, especialmente, para a realizao do estgio doutoral no exterior.

    No poderia deixar de externar a minha sincera gratido aos Professores Doutores Costas Douzinas e Oscar Guardiola-Rivera, cuja orientao, no Birkbeck College da University of London, provocou uma reviravolta no meu modo de compreender os direitos humanos, proporcionando-me momentos reveladores e um amadurecimento sem precedentes.

    Agradeo, tambm, ao Professor Doutor Michael Kirwan, do Heythrop College da University of London, por ter-me recebido e franqueado acesso biblioteca daquela instituio para importantes pesquisas desta tese.

    Por fim, registro meu agradecimento ao governo brasileiro que, por meio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), concedeu-me bolsa de estudos para o desenvolvimento de meus estudos no exterior.

  • Queremos a Revoluo Caraba. Maior que a Revoluo Francesa. A unificao de todas as revoltas eficazes na direo do homem. Sem ns a

    Europa no teria sequer a sua pobre declarao dos direitos do homem. (Manifesto Antropofgico Oswald de Andrade).

  • RESUMO

    Ao assumir expressamente o princpio da dignidade humana como fundamento da Repblica Federativa do Brasil, a Constituio de 1988 consagrou um corpo de direitos voltados proteo da pessoa humana que ocupa, portanto, posio central no ordenamento jurdico brasileiro. Compreender a razo de ser dos direitos humanos e da centralidade da pessoa humana no texto constitucional implica antes reconhecer que existe um discurso hegemnico que pressupe que o ocidente criou e desenvolveu essa idia e, aps t-la amadurecido suficientemente, exportou-a para os demais pases do mundo. Valores individualistas ganharam espao no mundo moderno e contemporneo, fundando um modelo de sociedade baseado na excluso, na agressividade e no estranhamento. Nesse sentido, os direitos humanos passaram a ser vistos como a continuidade de um processo de expanso de questionveis valores ocidentais, aps o fim do perodo colonialista que sucedeu a Segunda Guerra Mundial, constituindo, dessa forma, a derivao de um projeto genuinamente eurocntrico que os orientais rejeitam peremptoriamente e os ps-coloniais se esforam, sem muita convico, para seguir. Todavia, ao lado disso, uma longa tradio humanista afirmou-se na Amrica Latina a partir dos eventos da colonizao, quando eclodiram notveis debates filosficos e lutas polticas em torno da defesa dos povos colonizados. As teorias de Las Casas e de Poma de Ayala, a contribuio latino-americana para a consolidao do universalismo dos direitos humanos na arena internacional e a tradio dos direitos humanos nas Constituies brasileiras so alguns exemplos da tradio humanista no pensamento latino-americano. Resgatar elementos esquecidos desta histria significa desafiar o discurso eurocntrico dos direitos humanos e da centralidade da pessoa humana e, ao mesmo tempo, abrir novas possibilidades interpretativas para um tema cercado de controvrsias. O enriquecimento da linguagem dos direitos humanos a partir desta perspectiva insere-se nos propsitos dos estudos ps-coloniais, que pretendem legitimar a enunciao de conhecimentos por aqueles que se constituram, historicamente, como meros objetos de conhecimento. Isso permite ver a ideia de pessoa humana e de direitos humanos na Constituio como a afirmao de uma cultura humanista que gestamos e desenvolvemos em um processo de mtua reciprocidade com a filosofia moderna europeia.

    Palavras-chave: Direitos humanos. Pessoa humana. Constituio Brasileira de 1988. Ps-colonialismo. Eurocentrismo e modernidade.

  • ABSTRACT

    By taking explicitly the principle of human dignity as the foundation of the Federative Republic of Brazil, the Constitution of 1988 provided a body of rights aimed protecting the human person that holds a central position in the Brazilian legal system. Understanding the rationale of human rights and the centrality of the human person in the Constitution means rather recognize that there is a hegemonic discourse that assumes that the West has created and developed this idea, and after having it sufficiently mature, exported it to other the world. Individualist values have become predominant in modern and contemporary world, founding a model of society based on exclusion, aggression and alienation. In this sense, human rights were seen as the continuation of a process of expansion of questionable Western values, after the colonial period that followed World War II, and is thus the derivation of a Eurocentric project that 'Eastern' people categorically reject and post-colonial people struggle, without much conviction, to follow. However, alongside that, a long humanist tradition was said in Latin America since the events of colonization, when remarkable philosophical debates and political struggles in defense of colonized peoples took place. Theories of Las Casas and Poma de Ayala, the Latin American contribution to the consolidation of the universalism of human rights in the international arena and the tradition of human rights in the Brazilian Constitutions are some examples of the humanist tradition in Latin American thought. Redeem forgotten elements of the history of human rights means challenging its Eurocentric discourse and the centrality of human person and at the same time open new possibilities for interpreting a controvertible subject. Enrich the language of human rights from this perspective fits in with the purposes of post-colonial studies, which seek to legitimize the utterance of knowledge by those who have formed historically as mere objects of knowledge. This allows to see the idea of human rights and the Constitution as the expression of a humanistic culture that managed and developed in a process of mutual reciprocity with the modern European philosophy.

    Key-words: Human rights. Human person. Brazilian Constitution of 1988. Postcolonialism. Eurocentrism and modernity.

  • SUMRIO

    1 INTRODUO .......................................................................................................10 2 GENEALOGIA DA IDEIA OCIDENTAL DE PESSOA HUMANA..........................31 2.1 Pensar o conceito de direitos humanos, hoje ................................................32 2.2 Dignidade humana: um atributo realmente de todos?...................................40 2.3 Ideia de pessoa humana no pensamento ocidental pr-moderno................50 2.4 Centralidade da pessoa humana no jusnaturalismo moderno .....................67 3 LIMITAES DO DISCURSO HEGEMNICO DOS DIREITOS HUMANOS

    PARA ALM DAS FRONTEIRAS DO OCIDENTE...............................................75 3.1 Fundamentao do discurso hegemnico dos direitos humanos ...............75 3.2 Individualismo e modernidade.........................................................................83 3.3 Abstrao do conceito ocidental de pessoa humana....................................93 3.4 Blindagem oriental contra o discurso dos direitos humanos a partir da

    negao da ideia de centralidade do indivduo............................................105 3.5 Direitos humanos no contexto latino-americano .........................................116

    4 MODELO PADRO DE DIFUSO DO DIREITO ................................................125 4.1 Modelo tradicional de difuso do Direito ......................................................126 4.2 Limitaes do modelo padro de difuso do Direito ...................................136 4.3 Difuso do direito sob uma perspectiva global: a translegalidade ............145

    5 ELEMENTOS ESQUECIDOS PELO DISCURSO HEGEMNICO DOS DIREITOS HUMANOS ..........................................................................................................156

    5.1 Bartolom de Las Casas e os excludos da humanidade............................158 5.2 Guaman Poma de Ayala e o bom governo no Novo Mundo........................171 5.3 Contribuies latino-americanas para a universalizao dos direitos

    humanos..........................................................................................................180 5.4 Tradio constitucional brasileira e direitos humanos................................188

    6 CENTRALIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIO BRASILEIRA DE 1988.....................................................................................................................202

    6.1 Construo da pessoa humana na tradio humanista ..............................204

  • 6.2 Substancializao da ideia de pessoa humana na Constituio Brasileira e o resgate da alteridade para dentro do Direito.............................................221

    7 CONCLUSO ......................................................................................................233 REFERNCIAS.......................................................................................................254

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    1 INTRODUO

    A Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 inaugurou uma nova fase poltica para o pas, elegendo explicitamente, entre seus princpios fundamentais, a dignidade da pessoa humana, e, entre seus objetivos fundamentais, a construo de uma sociedade livre, justa e solidria, a erradicao da pobreza e da marginalizao, a reduo das desigualdades sociais e regionais, alm da promoo do bem de todos, sem preconceito de raa, cor, origem, sexo, idade ou qualquer outra forma de discriminao. O direito brasileiro ressignificado pela Constituio de 1988 influenciado direta e fortemente pelo princpio da dignidade humana, que vem sendo tratado como a aspirao maior da sua existncia. Basta lanar um olhar sobre os preceitos inaugurais do texto constitucional para perceber a dimenso que o princpio da dignidade humana ocupa ou deve ocupar no direito brasileiro, pois consubstancia, de forma expressa, um de seus fundamentos:

    PREMBULO Ns, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assemblia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrtico, destinado a assegurar o exerccio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a soluo pacfica das controvrsias, promulgamos, sob a proteo de Deus, a seguinte CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. TTULO I Dos Princpios Fundamentais Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo poltico. Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio. Art. 2 So Poderes da Unio, independentes e harmnicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judicirio. Art. 3 Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidria;

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    II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalizao e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao. Art. 4 A Repblica Federativa do Brasil rege-se nas suas relaes internacionais pelos seguintes princpios: I - independncia nacional; II - prevalncia dos direitos humanos; III - autodeterminao dos povos; IV - no-interveno; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - soluo pacfica dos conflitos; VIII - repdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperao entre os povos para o progresso da humanidade; X - concesso de asilo poltico. Pargrafo nico. A Repblica Federativa do Brasil buscar a integrao econmica, poltica, social e cultural dos povos da Amrica Latina, visando formao de uma comunidade latino-americana de naes.

    Tais princpios e objetivos servem como marcos interpretativo para adjudicao de sentido ao conjunto de normas que constituem o sistema jurdico Brasileiro, justamente por figurarem em seu Prembulo, princpios e objetivos fundamentais. No por acaso, no discurso de proclamao da nova Constituio, proferido em 05 de outubro de 1988, pelo Deputado Ulysses Guimares, ento presidente da Assemblia Nacional Constituinte, foi o cuidado com o homem, sujeito natural dos direitos humanos, que ocupou o centro das preocupaes e das motivaes da nova ordem constitucional que ento se anunciava:

    [...] A Constituio caracteristicamente o estatuto do homem. sua marca de fbrica. O inimigo mortal do homem a misria. O estado de direito, consectrio da igualdade, no pode conviver com estado de misria. Mais miservel do que os miserveis a sociedade que no acaba com a misria. Topograficamente hierarquizada a precedncia e a preeminncia do homem, colocando-o no umbral da Constituio e catalogando-lhe o nmero no superado, s no art. 5, de 77 incisos e 104 dispositivos. No lhe bastou, porm, defend-lo contra os abusos originrios do Estado e de outras procedncias. Introduziu o homem no Estado, fazendo-o credor de direitos e servios, cobrveis inclusive com o mandado de injuno. Tem substncia popular e crist o ttulo que a consagra: a

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    Constituio cidad. [...].1

    Ao assumir expressamente o princpio da dignidade humana como fundamento da Repblica Federativa do Brasil, a Constituio de 1988 consagrou um corpo de direitos voltados proteo da pessoa humana que ocupa, portanto, posio central no ordenamento jurdico brasileiro. A Carta Poltica no se resumiu a afirmar os direitos humanos como princpios e objetivos, mas tratou de enunci-los, principalmente, nos Ttulos I e II, que abrangem os artigos 1 a 17, entre aqueles denominados direitos fundamentais de aplicao imediata, ou seja, sem necessidade de lei posterior que os regulamente ( 1, do artigo 5). Em relao sua fora normativa, esses direitos tm como principal caracterstica, a impossibilidade de supresso ou alterao. Tendo em vista o temor ou a desconfiana com o legislador constituinte dotado de poder de modificar a Constituio, estabeleceu-se, no 4, do artigo 60, que a proposta de emenda tendente a abolir as clusulas constitucionais concernentes aos direitos e garantias individuais no sero objeto sequer de deliberao. Isso significa que o legislador constituinte originrio proibiu qualquer tentativa superveniente de supresso ou modificao daquelas normas instituidoras de direitos e garantias fundamentais, imunizando-as atravs do que se convencionou chamar de clusulas ptreas.

    O cenrio constitucional brasileiro mostra, pois, a explcita assuno do princpio da dignidade humana como condio de sentido para a compreenso e aplicao do Direito, tendo assumido, nessa perspectiva, uma concepo de pessoa humana especfica, j que a dignidade humana um atributo que se reconhece queles que ostentam esta qualidade. A tese de Ernst Tugendhat, segundo a qual a antropologia no uma disciplina filosfica entre outras, seno que deveria ser entendida como a filosofia primeira, na medida em que a pergunta o que somos como seres humanos? a pergunta em que se baseiam todas as outras perguntas

    1 GUIMARES, Ulysses. Discurso proferido na sesso de 5 de outubro de 1988. Publicado no DANC de 5 de outubro de 1988, p. 14380-14382. Disponvel em: . Acesso em: 10 nov. 2009.

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    e disciplinas filosficas2, demonstra a necessidade de uma anlise mais atenta dos pressupostos filosfico-antropolgicos da ordem constitucional brasileira. Compreender esses pressupostos passa pela investigao da ideia de pessoa humana adotada como premissa do conjunto de direitos consagrados constitucionalmente e que se constituem a partir de um ncleo de sentido especfico: a dignidade humana. Que conceito este, como ele se constituiu, de que modo se inseriu e influenciou o modo de ser do constitucionalismo brasileiro so as perguntas centrais da presente tese, na medida em que a ideia de dignidade humana, um dos fundamentos do Direito Brasileiro e do reconhecimento dos direitos humanos, aquela cuja compreenso depende ou pressupe a centralidade da pessoa humana no imaginrio de dada sociedade. Portanto, a preocupao da presente tese est dirigida aos fundamentos filosfico-antropolgicos da atual ordem constitucional brasileira, de modo que a pergunta qual se pretende responder : qual a dimenso da ideia de pessoa humana assumida pela Constituio Brasileira de 1988 e que fundamenta o rol de direitos humanos nela reconhecidos?.

    Ao me referir a fundamentos filosfico-antropolgicos, no pretendo com isso limitar-me a responder questo abstrata sobre "o que o homem", nos moldes metafsicos que perpassaram o pensamento moderno e, mais especificamente, segundo a filosofia personalista ocidental, segundo a qual as questes relacionadas ao significado de homem e de pessoa humana se confundiram desde que a tradio jurdica moderna assentou duas mximas que so vigentes at hoje, quais sejam, todo homem pessoa e s o homem pessoa, qualificando como homem ou pessoa o ser humano nascido vivo3. No se pretende, ainda, tentar deduzir apenas disso a razo pela qual devemos respeito uns aos outros, respeito esse que se converteu nas prticas subjacentes aos direitos humanos. O pensamento filosfico moderno prope-nos a resposta: a comum racionalidade dos seres humanos que fundamenta a moralidade (e, consequentemente, os direitos humanos) ou, como diz Kant, que torna os seres humanos fins em si mesmo e, por isso, portadores no de um valor relativo, mas de

    2 TUGENDHAT, Ernst. Antropologia como filosofia primeira. In: POMMER, A.; FRAGA, P.D.; SCHNEIDER, P.R. (Org.). Filosofia e crtica: Ferstschirift dos 50 anos do curso de filosofia da UNIJU. Iju: Ed. Uniju, 2007.

    3 MARTINS-COSTA, Judith. Biotica e dignidade da pessoa humana: rumo construo do biodireito. Revista da Faculdade da UFRGS, Porto Alegre, v. 18, p.153-170, 2000.

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    dignidade, que no se aliena e nem tem preo4. pacfico, conforme Charles Taylor5, que no ocidente, tanto a democracia quanto os direitos humanos tm sido fomentadas pelo avano de uma espcie de humanismo, que realou o modo como os seres humanos se distinguiram do resto do cosmos e adquiriram um estatuto mais elevado (ou uma dignidade) que qualquer outra coisa. A ideia de pessoa humana, segundo a qual a nossa habilidade para conhecer (ou racionalidade) nos faz humanos, est, de fato, envolvida no discurso hegemnico dos direitos humanos, que pressupe um indivduo possuidor de direitos e legitimado a reclam-los e a exerc-los contra quem quer que seja.

    Ocorre que essa noo, por mais relevante que seja para a consolidao dos direitos humanos, seja no contexto ocidental ou em seus espaos perifricos, como o caso latino-americano, no responde, por si s, pergunta proposta nessa tese e que se dirige ao especfico contexto brasileiro. Satisfazer-se com ela importaria em considerar que a incorporao dos direitos humanos e da pressuposta centralidade da pessoa humana na Constituio Brasileira de 1988 decorrncia pura e simples da recepo de um arcabouo conceitual do ocidente, para a qual nada contribumos. Alm de reforar um mal-entendido, continuaria deixando a questo aberta. E assim , por duas razes iniciais.

    Primeiro, porque o reconhecimento dos direitos de qualquer ser humano no foi motivado somente pela premissa abstrata de que devemos respeito uns aos outros em funo de uma mesma racionalidade compartilhada e que este atributo, por si s e automaticamente, nos faz efetivamente dignos. Como aponta Richard Rorty6 a histria recente tem dado conta de inmeros exemplos em que o termo "homem" tem sido usado para significar apenas "pessoas como ns"; refere-se ele aos nazistas, aos srvios, aos homens que fizeram a independncia dos Estados Unidos da Amrica, apenas para citar alguns, que, ao justificarem o no reconhecimento dos direitos, respectivamente, dos judeus, dos bsnios muulmanos

    4 KANT, Immanuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Martin Claret, 2003.

    5 TAYLOR, Charles. Conditions of an unforced consensus on human rights. In: HEYDEN, Patrick. The politics of human rights. St. Paul, MN: Paragon House, 2001. p. 111.

    6 RORTY, Richard. Human rights, rationality and sentimentality. In: Heyden, Patrick. The politics of

    human rights. St. Paul, MN: Paragon House: 2001. p. 67.

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    e dos negros escravos, os qualificaram como pseudo-humanos ou 'diferentes de ns'. Isso porque a linha que divide humanos de animais no simplesmente a linha entre os bpedes sem penas e todo o resto, seno uma linha que tem servido diviso entre os prprios bpedes sem penas, j que entre esses se tem considerado muitos como simples animais que se locomovem maneira dos humanides e no como autnticos seres humanos. Nesse sentido, Costas Douzinas tem alertado para o fato de que a histria poltica dos dois ltimos sculos foi marcada por lutas pela extenso do reconhecimento da cidadania a grupos de excludos, como pobres, mulheres, estrangeiros e tantos outros. De modo que o significante humano ou humanidade funciona no como um significante vazio, mas aberto a diferentes significados. Essa palavra, como diz o autor, "carrega uma enorme valor simblico, que cresce a cada nova luta por reconhecimento e proteo dos direitos humanos"7. A dignidade humana, que a Constituio Brasileira eleva ao patamar de fundamento da Repblica, pertence a e decorre de algo mais substancial que a pessoa humana abstratamente identificada ao indivduo racional.

    A segunda razo reside no fato de que a formao social e poltica da Amrica Latina e, em especial, do Brasil, no permite compreender o aparecimento dos direitos humanos na Constituio Brasileira como simples decorrncia da aceitao da ideia moderna e ocidental de pessoa humana, profundamente identificada ao sujeito moderno autnomo e racional. Ao lado dos aportes da filosofia personalista de matriz europeia, o discurso dos direitos humanos tem adquirido, no contexto latino-americano coloraes prprias e distintas que tm contribudo para a prpria afirmao dos direitos humanos no mundo. Nossa condio multitnica, multicultural e miscigenada desafia os discursos unitrios da modernidade e abre espao para pens-los de forma mais abrangente, sob o signo da diversidade, da tolerncia e da substancial igualdade de todos. A peculiaridade do nosso contexto histrico e social e as caractersticas que o fazem prprio difere profundamente das condies sob as quais os direitos humanos foram gestados durante longo perodo da histria europeia e isso tem conseqncias sobre a prpria ideia de pessoa humana e, consequentemente, de dignidade humana, que subjaz ao reconhecimento dos direitos humanos na Constituio do Brasil. Mostra-se, portanto,

    7 DOUZINAS, Costas. The end of human rights. Oxford: Hart Publishing, 2000. p. 255.

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    limitado deduzir que por trs desse reconhecimento subjaza apenas uma ideia de pessoa humana importada da tradio ocidental moderna.

    certo que a Constituio Brasileira insere-se na nova era do constitucionalismo, caracterstico de muitos pases no mundo hoje, especialmente latino-americanos8, que se consolidou aps a Segunda Guerra Mundial. O constitucionalismo contemporneo caracteriza-se por ser um constitucionalismo de direitos, onde a noo de direitos naturais, inalienveis e imprescritveis, prprios da tradio jusnaturalista europeia, foi, de certa forma, retomada, no sculo XX, no contexto das Declaraes e Constituies do ps-guerra sob a denominao de direitos humanos ou direitos fundamentais. A assuno dos direitos humanos como condio de sentido do constitucionalismo do sculo XX e tambm do sculo XXI, justamente nesse contexto do ps-guerra, foi uma tentativa de responder s atrocidades cometidas contra certos grupos humanos durante os regimes nazista e fascista e a Segunda Guerra Mundial, muitas delas sob os auspcios da prpria lei. Todavia, incorreto afirmar que a idia de direitos do homem que se afirmou na modernidade europeia, e que ingressou nas Declaraes de Direitos Americana (1776) e Francesa (1789), seja a expresso contempornea desta nova fase dos direitos humanos, especialmente no caso brasileiro. Dizer que a Constituio Brasileira insere-se no movimento constitucional do segundo ps-guerra no significa dizer que a incorporao dos direitos humanos (e, de certo modo, nas demais constituies latino-americanas, que datam do mesmo perodo) obedeceu a um processo de recepo passiva da concepo "ocidental" (europeia) de direitos humanos.

    8 A ttulo de exempo, tanto a Constituio argentina, quanto a uruguaia, a peruana e a chilena foram recentemente promulgadas ou emendadas com vistas incluso dos chamados direitos e garantias fundamentais. A Constituio Nacional da Argentina, em vigor desde 1994, prev, em sua Primeira Parte (captulo primeiro), direitos e garantias fundamentais, tais como o de trabalhar, de peticionar s autoridades, de dispor de sua propriedade, de livre culto, ao devido processo legal, alm de proibir prticas como a escravido, prises sem ordem da autoridade competente, entre outros. A Constituio da Repblica do Uruguai, promulgada em 1967, mas modificada nos anos de 1989, 1994, 1996 e 2004, tambm elenca, no captulo I da Seo II, uma srie de direitos, deveres e garantias, como o gozo da vida, a honra, a liberdade, a segurana, o trabalho e a propriedade. J a Constituio peruana, em vigor desde 1979, assegura a defesa da pessoa e de sua dignidade, assim como seu direito vida, integridade fsica, psquica e moral, identidade, igualdade perante a lei, liberdade de informao, expresso e religio e muitos outros no mesmo sentido. Por fim, uma srie de direitos e garantias individuais, muitas delas relativas ao devido processo legal e a limitaes ao poder de governar, a partir da dcada de 90 at o ano de 2005 foram inseridas no texto constitucional chileno.

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    Ao longo da maturao histrica dos direitos humanos, sensveis transformaes debilitaram a caracterstica liberal legada pelo pensamento europeu moderno, as quais, hoje, vm refletidas em inmeros textos constitucionais e nas Declaraes Internacionais de Direitos. A noo abstrata de racionalidade como atributo suficiente para a titularidade de certos direitos bsicos, ainda considerada, por muitos, como o fundamento dos direitos humanos, foi profundamente desafiada pelos mais atrozes crimes durante este perodo e, por si s, no assegurou o respeito ao direito de milhes de seres humanos ainda hoje, em toda as partes do mundo. A forma convencional de se estudar a histria e a fundamentao dos direitos humanos, e isso valeria, em tese, tambm, para os direitos humanos que esto previstos na Constituio Brasileira, pressupe que o ocidente criou e desenvolveu essa idia que, aps ter se tornado suficientemente madura, foi exportada para os demais pases do mundo, sob duas formas: primeiro atravs da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 10/12/1948 e, aps, por meio de sucessivas legislaes domsticas, pelas quais os mais diversos pases passaram a reconhecer os direitos humanos ocidentais, seja em nvel constitucional, seja em nvel meramente infraconstitucional.

    Contrariamente a isto, lutas histricas, valores e concepes latino-americanos tm contribudo, de forma significativa, para a construo e a consolidao do discurso de direitos humanos, sobretudo porque falar deles como categoria universal s faz sentido depois da Segunda Guerra Mundial e no depois da Revoluo Francesa, que s garantiu direitos parcela proprietria da sociedade, como Marx j havia registrado em sua crtica no sculo XIX (A questo judaica). Muitos aspectos confirmam o protagonismo latino-americano nessa seara, mas, por inmeras razes eles foram esquecidos pelo discurso hegemnico dos direitos humanos. Um deles so as teorias de Bartolom De Las Casas sobre a "dignidade" dos ndios americanos durante o perodo da conquista hispnica da America, que se constituiu, nas palavras de Carozza9, no primeiro anncio claro da moderna linguagem dos direitos humanos, que prenunciou a

    9 CAROZZA, Paolo. From conquest to Constitutions: retrieving a Latin American tradition of the idea of

    human rights. Human Rights Quarterly, l Baltimore/USA, v. 25, n. 2, May. Disponvel em: . Acesso em: 18 ago. 2009. p. 292.

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    dinmica de como estes direitos se desenvolveriam no sculo XX. De forma diferente da de Las Casas, Guaman Poma de Ayala, ndio inca do sculo XVII, tambm legou sua contribuio consolidao do discurso dos direitos humanos, apresentando uma concepo poltica permeada pela ideia de limitao do poder e de respeito aos direitos dos sditos. Alm disso, marcante, embora praticamente esquecido, o pioneirismo latino-americano em relao proclamao de uma declarao internacional de direitos humanos, na medida em que a Declarao Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem de abril de 1948 precede a Declarao Universal proclamada pela ONU em dezembro de 1948 e, diferentemente desta, estabelece, a cada indivduo, uma srie de deveres.

    Portanto, alcanar os objetivos desta tese demanda resgatar alguns elementos esquecidos na forma como o surgimento e o desenvolvimento dos direitos humanos contada.

    Ponto de partida dos estudos

    O ttulo da tese indica que o tema pessoa humana e direitos humanos na Constituio Brasileira de 1988 ser analisado desde a perspectiva ps-colonial.

    Ps-colonialismo um termo usado como uma categoria conceitual originada nas discusses sobre a descolonizao das colnias africanas e asiticas aps a Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto, o termo ps-colonial era usado mais frequentemente como um adjetivo, por socilogos e cientistas polticos, para caracterizar as mudanas nos Estados e nas economias das ex-colnias que passaram a fazer parte do Terceiro Mundo, uma categoria criada neste mesmo perodo10. Portanto, como explica Mellino, a expresso ps-colonial difundiu-se, neste perodo, dentro da sociologia do subdesenvolvimento, com o objetivo de compreender e analisar as causas e motivos do atraso socioeconmico destas sociedades. A difuso dos processos de descolonizao favoreceu a consolidao

    10 CORONIL, Fernando. Elephants in the Amricas? Latin America Postcolonial studies and Global Decolonization. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 396-8.

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    da disciplina, que passou a tratar essencialmente da situao social, poltica e econmica dos Estados recm descolonizados11.

    Aliado ao crescente processo de descolonizao, a obra de Frantz Fanon contribuiu significativamente para a configurao dos estudos ps-coloniais. Segundo a anlise de Fanon, o processo de colonizao da frica, como de resto em todas as partes do mundo, produziu o que o autor chama de um mundo cindido em dois compartimentos:

    Este mundo dividido em compartimentos, este mundo cindido em dois, habitado por espcies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econmicas, as desigualdades, a enorme diferena dos modos de vida no logram nunca mascarar as realidades humanas. Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo , antes de mais nada, o fato de pertencer ou no a tal espcie, a tal raa. Nas colnias a infraestrutura econmica igualmente uma superestrutura. A causa conseqncia: o indivduo rico porque branco, branco porque rico. (...) Nas colnias, o estrangeiro vindo de qualquer parte se imps com o auxlio de seus canhes e de suas mquinas. A despeito do sucesso da domesticao, malgrado a usurpao, o colono continua sendo um estrangeiro. No so as fbricas nem as propriedades nem a conta no banco que caracterizam em primeiro lugar a classe dirigente. A espcie dirigente , antes de tudo, a que vem de fora, a que no parece com os autctones, os outros12.

    Tendo como pano de fundo a luta de independncia da Arglia nos anos cinquenta e sessenta, Fanon denuncia as formas de produo de aniquilamento da subjetividade dos povos negros e rabes, levadas a cabo pelo empreendimento colonialista na frica, caracterizado por este mundo dividido em dois compartimentos. Isto teve como conseqncia a disseminao das formas mais brutais de violncia, como a nica alternativa capaz de propiciar a estes povos o resgate da sua humanidade. As reflexes de Os Condenados da Terra sobre o genocdio europeu representaram, nas palavras de Sartre - no prefcio da mesma obra -, o strip-tease do humanismo europeu: ei-lo inteiramente nu e no nada

    11 MELLINO, Miguel. La crtica poscolonial: descolonizacin, capitalismo y cosmopolitismo en los estudios poscoloniales. Buenos Aires: Paids, 2008. p. 33.

    12 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968. p. 29.

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    belo: no era seno uma ideologia mentirosa, a requintada justificao da pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agresses13. Diante da situao especfica da Arglia, Fanon chamou a ateno no somente para a amplitude dos efeitos do colonialismo e dos processos de descolonizao, mas sobre os traos fundamentais do que seria o mundo ps-colonial constitudo a partir da marca da violncia.

    Da por diante, o escopo dos estudos ps-coloniais foi-se tornando cada vez mais amplo e variado: vai desde a crtica literria at os estudos sociais, a histria e a antropologia. Alm disso, a sua natureza interdisciplinar denota uma variedade de interesses e temticas. Isso, no entanto, no pode induzir falsa ideia de que estes estudos possam se referir a qualquer coisa. O primeiro critrio que vem mente na hora de delimitar o significado equvoco do termo ps-colonial o histrico-cronolgico, porm, como adverte Mellino, tom-lo exclusivamente em considerao implicaria mal entendidos. Segundo referido critrio, ps-colonial designa o perodo sucessivo ao processo de descolonizao formal das colnias modernas, marcado pelas profundas mudanas nas relaes globais. Todavia, o perodo subsequente descolonizao ou liberao formal do poderio metropolitano ocidental extremamente longo, pois teve seu incio no incio do sculo XIX (no caso das colnias americanas), enquanto que, na dcada de setenta, muitas colnias africanas recm estavam obtendo suas independncias. Deste modo, designar o escopo dos estudos ps-coloniais somente a partir do critrio histrico-cronolgico no suficiente, seja pela extenso do perodo, seja porque ele no significou o fim da hegemonia poltica e econmica das metrpoles coloniais ocidentais. Ou seja, limitar o ps-colonialismo expresso de um dado perodo pode sugerir que os fenmenos relativos ao colonialismo e dependncia j fazem parte do passado. Nas palavras de Aschroft, Griffiths e Tiffin, ps-colonial designaria no apenas um perodo que sucedeu a outro, mas toda a cultura condicionada pelo processo colonial desde o momento da colonizao at o presente, uma vez que existe uma

    13 SARTRE, Jean-Paul. Prefcio. In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968. p. 15.

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    continuidade nos temas e nas preocupaes durante todo o processo iniciado com a expanso imperial europeia14. Assim:

    Definir como poscoloniales a ciertas situaciones o condiciones histricas, o a ciertos sujetos, autores o literaturas no significa colocarlos en un perodo histrico cronolgicamente posterior ao del colonialismo. El adjetivo poscolonial se presenta bajo otros ropajes epistemolgicos: el objetivo es mantener viva la memoria del colonialismo, evitar su remocin en algunas reas de las disciplinas humansticas, en cuanto fenmeno central de la historia, vale decir en cuanto acontecimiento fundamental en la historia de las relaciones entre Occidente e el resto del mundo15.

    Esta perspectiva permite que os estudos ps-coloniais no fiquem circunscritos apenas ao mbito da situao das ex-colnias que adquiriram sua independncia aps a Segunda Guerra Mundial, para cuja anlise, efetivamente, surgiram, mas alarg-los de modo a incluir em seus objetivos tambm o contexto latino-americano. Apesar de a Amrica Latina ter sido considerada parte do Terceiro Mundo e a despeito de uma longa histria das reflexes crticas sobre o moderno colonialismo originadas em reao conquista e colonizao da Amrica, foi apenas tangencialmente mencionada nessas discusses sobre descolonizao, que, inicialmente, se centraram nas naes cujas independncias haviam sido mais recentes (na sia e na frica). Neste perodo, a palavra-chave no pensamento social latino-americano no era, portanto, ps-colonialismo, mas dependncia. Apesar de focar a anlise nas causas do subdesenvolvimento econmico e em pensar formas de modernizao para a Amrica Latina, que constitui um escopo mais estreito que o dos estudos ps-coloniais, Coronil entende que os estudos latino-americanos sobre dependncia deram significativos aportes para a configurao do ps-colonialismo16.

    O pensamento ps-colonial inicia uma segunda fase em torno de trs dcadas aps o fim da Segunda Guerra Mundial, no campo acadmico do mundo

    14 MELLINO, Miguel. La crtica poscolonial: descolonizacin, capitalismo y cosmopolitismo en los estudios poscoloniales. Buenos Aires: Paids, 2008. p. 25-26.

    15 Ibid., p. 53.

    16 CORONIL, Fernando. Elephants in the Amricas? Latin America Postcolonial studies and Global Decolonization. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 396-8.

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    anglossaxnico, em conexo com estudos de colonialismo e de literatura colonial sob a influncia de perspectivas ps-modernas. As causas da emergncia deste novo campo acadmico se devem, segundo Coronil, a uma srie de fatores, a saber: a crescente deficincia dos projetos de desenvolvimento nacional do Terceiro Mundo; o ocaso do socialismo; a ascendncia da poltica conservadora no Reino Unido (Thatcherismo) e nos Estados Unidos da Amrica (Reaganismo); e o irresistvel aparecimento do capitalismo neoliberal como o nico horizonte histrico vivel. A distintiva identidade adquirida por estes estudos marcada pela incomum combinao entre a localizao metropolitana de sua produo e a postura anti-imperial de seus autores, muitos deles ligados ao Terceiro Mundo por laos pessoais ou por opo poltica. Mas apesar do impacto da colonizao na Amrica Latina e de inmeros trabalhos nesta rea, desenvolvidos por pensadores como Enrique Dussel, Anbal Quijano e Walter Mignolo, foi s tardiamente que ela foi formalmente includa como objeto dos estudos ps-coloniais. Por isso, ainda no h, na academia latino-americana, um conjunto de trabalhos comumente reconhecidos como ps-coloniais, mas estes vm sendo desenvolvidos, inclusive no que respeita ao contexto da Amrica Latina, precipuamente na academia anglossaxnica17.

    A inteno de adotar o ps-colonialismo como paradigma para a anlise do tema no voltar os olhos para o passado na tentativa de atribuir aos colonizadores europeus a responsabilidade pela mazelas de que ainda padecem o Brasil e a Amrica Latina. O objetivo , por outro lado, ver e avaliar o objeto de pesquisa desde outro ponto de vista que no aquele ao qual estamos acostumados a olhar. Trata-se, antes, de um esforo hermenutico no sentido de identificar e suspender os pr-juzos na busca da compreenso. Quem interpreta est exposto s confuses de seus prprios pr-conceitos, que podem no estar adequados com a coisa mesma. Por isso, a atitude hermenutica exige a conscincia dos conceitos prvios para que se possa confront-los com o que vem fala, pondo prova a sua origem e validez.

    17 CORONIL, Fernando. Elephants in the Amricas? Latin America Postcolonial studies and Global Decolonization. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 396-8.

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    Os pr-juzos a que me refiro so aqueles que nos fazem observar os fenmenos de um ngulo desde o qual o vemos distorcidamente ou ento apenas parte dele, sem nos darmos conta de que o que estamos vendo apenas uma face do todo e no o todo. E isso tem como consequncia anlises distorcidas, falsas compreenses e reproduo do senso comum. De qualquer forma, os juzos prvios do indivduo so a realidade histrica do seu ser, pois constituem a base da capacidade que se tem para compreender os fatos. O conhecimento forja-se sempre no interior da tradio, pois no pode haver compreenso sem pressupostos e, portanto, a noo de interpretao objetiva e racionalmente correta, um ideal impensvel, uma impossibilidade18. No h grau zero; ns estamos, desde sempre, imersos em pr-compreenses que nos acompanham em funo de nossa condio de ser no mundo, como Heidegger deixa claro. Por isso, sempre que falamos, o fazemos partindo ou estando situados em algum lugar. Mesmo sem saber, sempre adotamos um ponto de vista, sempre partimos de um dado paradigma.

    A funo da pesquisa acadmica tambm a de identific-los e avali-los, a fim de definir se ele adequado para a compreenso daquilo que nos propomos analisar. Nesse processo de discusso dos pr-juzos, no s o intrprete sai diferente aps ampliar seu horizonte de compreenso com a abertura efetivada, como a coisa mesma ganha outra possibilidade de ser compreendida e ressignificada, pelo novo olhar lanado. Em relao aos direitos humanos, existe um discurso hegemnico em que a viso ocidental predominante e, como tal, vincula a sua gnese e o seu desenvolvimento aos movimentos polticos e filosficos produzidos no contexto europeu moderno. Refiro-me no somente s lutas polticas inglesas, francesas e norte-americanas, mas tradio terica racionalista expressa nas obras dos grandes pensadores europeus da modernidade. Sobre a constituio de discursos hegemnicos, Eduardo Mendieta observa que a produo de conhecimento pressupe a existncia de sujeitos autorizados a enunci-los e outros que so sujeitados, isto , que ocupam a posio de espectadores ou que so relegados condio de objetos do conhecimento. Nesse contexto, alguns tm credibilidade epistmica e outros no possuem legitimao para reflexes tericas vlidas. Deste modo, quem fala e quem est autorizado a falar sobre os outros

    18 PALMER, Richard E. Hermenutica. Rio de Janeiro: Edies 70, 1989-1997. p. 187.

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    ocupa um lugar epistemologicamente privilegiado, cujo conhecimento, por sua vez, posto disposio para uso19. possvel observar que a produo do conhecimento no campo dos direitos humanos reflete justamente esta lgica que se pode designar como eurocntrica, razo por que se convencionou pens-los como produto da cultura e do esforo poltico do ocidente e, portanto, pouco ou nada tem a ver com a histria dos povos no-ocidentais.

    A impossibilidade de compreender razoavelmente o porqu dos direitos humanos e o significado da pessoa humana no contexto brasileiro, dentro deste paradigma, levou-me ao questionamento dos seus pressupostos, os quais vm sendo frequentemente reproduzidos pela literatura jurdica nacional. Ou bem os direitos humanos no tm sentido entre ns ou bem esta forma de compreend-los inadequada. H quem possa sustentar que os direitos humanos realmente no fazem sentido entre ns e que a ineficcia das normas que os preveem so a prova disto; ocorre que a ineficcia do direito um problema difundido no ordenamento jurdico brasileiro e no afeta somente a realizao daqueles. Por outro lado, a positivao dos direitos humanos neste mesmo ordenamento jurdico um fenmeno que vem se reproduzindo em propores geomtricas, desde 1988. Portanto, a cultura jurdica brasileira permeada pelo discurso hegemnico dos direitos humanos que, por sua vez, no fornece elementos adequados para compreender a sua razo de ser na Constituio de 1988 e a consequente proliferao no ordenamento jurdico do pas.

    O pensamento ps-colonial prope uma alternativa aos discursos estabelecidos (sobretudo eurocntricos), no com o propsito de contest-los ou de desconstru-los, mas de ampliar o conhecimento com outra perspectiva: a daqueles que, at agora, foram apenas objeto de conhecimento e no seus protagonistas. No entanto, o ps-colonialismo uma categoria fluida e polissmica, cujo poder deriva em parte de sua habilidade de condensar mltiplos significados e de se referir a

    19 MENDIETA, Eduardo. Remapping Latin American studies: postcolonialism, subaltern studies, post-occidentalism, and globalization theory. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and Postcolonial Debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 293.

    19 PALMER, Richard E. Hermenutica. Rio de Janeiro: Edies 70, 1989-1997. p. 294.

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    diferentes localizaes20. A proposta do ps-colonialismo abrir novas possibilidades para o conhecimento, de modo a liber-lo da necessidade de se referir a um locus privilegiado e pr-concebido de enunciao, a saber, ocidental, como condio para sua legitimidade. Trata-se de descolonizar o conhecimento, no sentido de permitir a incluso de outras falas, variadas vises de mundo, histrias esquecidas, outros valores que no somente os ocidentais, e, assim, propor alternativas ao eurocentrismo. A respeito disso, Quijano observa:

    Eurocentrismo , tal como o utilize aqui, o nome da perspectiva de conhecimento cuja sistemtica formao comeou na Europa Ocidental antes do meio do sculo XVII, muito embora algumas de suas razes seja, sem dvida, muito mais antigas. Nos sculos seguintes, esta perspectiva tornou-se globalmente hegemnica, percorrendo o mesmo curso percorrido pela dominao da classe burguesa europeia. Sua constituio foi associada especfica secularizao do pensamento europeu e com as experincias e necessidade do modelo global capitalista (colonial/moderno) e o poder eurocntrico estabelecido desde a colonizao da Amrica. [] uma racionalidade especfica ou perspectiva de conhecimento que se tornou globalmente hegemnica, colonizando e conquistando outras formaes conceituais prvias ou diferentes e seus respectivos conhecimentos concretos, tanto na Europa, quanto no resto do mundo21.

    Lyotard observa que saber e poder so as duas faces de uma mesma questo e que, por isso, o conhecimento objeto de disputa22, ao mesmo tempo em que as formas de dominao esto e estiveram, ao menos desde o incio da colonizao da Amrica, ligadas ao poder de produzir, difundir e decidir o que e o

    20 CORONIL, Fernando. Elephants in the Amricas? Latin America Postcolonial studies and Global Decolonization. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 416.

    21 Eurocentrism is, as used here, the name of a perspective of knowledge whose systematic formation began in Western Europe before the middle of the seventeenth century, although some of its roots are, without doubt, much older. In the following centuries this perspective was made globally hegemonic, traveling the same course as the domination of European bourgeois class. Its constitutions was associated with the specific bourgeois secularization of European thought and with the experiences and necessities of the global model of capitalist (colonial/modern) and Eurocentered power established since the colonization of America. [] It is a specific rationality or perspective of knowledge that was made globally hegemonic, colonizing and overcoming other previous or different conceptual formations and their respective concrete knowledges, as much in Europe as in the rest of the world. In: QUIJANO, Anbal. Coloniality of power, eurocentrism, and social classification. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 197.

    22 LYOTARD, Jean-Franois. A condio ps-moderna. Traduo de Ricardo Corra Barbosa. 8. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2004. p. 14.

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    que no conhecimento. Por isso, a inteno de Lyotard , como observa Mellino, destacar o carter mitolgico das grandes narrativas da Modernidade. Por outro lado,

    la teoria poscolonial, segn Spivak, concentra su mirada crtica en los mitos del colonialismo occidental, en el proceso de violencia espistemolgica condensado en la (re)escritura occidental de S, del Outro y por lo tanto de la Historia. Una tarea que, desde la ptica de los proprios autores poscoloniales, no puede ser considerada de hecho como secundaria o atinente a reas restringidas o especializadas de la teora social23.

    Assumir o paradigma ps-colonial assumir reservas quanto racionalidade ocidental, por ser ela uma matriz uniformizante (pois se arroga na condio de nica possvel), mas no universal, j que ignora a existncia de outras formas de pensamento, racionalidades e valores. Trata-se da necessidade de diversificar o locus epistemolgico de enunciao, substituindo-o por um campo interdiscursivo e intercultural complexo, ocupado por muitos atores (no apenas o imprio e seus sujeitos ou o centro e suas periferias)24. Isso porque, de acordo com Mellino, o objetivo fundamental da crtica ps-colonial no uma mera descrio do contexto sociopoltico das ex-colnias, mas o de, um lado, restituir la subjectividad y autoridad a la voz del otro rechazando su sujecin em las proprias categorias cognitivas e, de outro, descentrar e descolonizar tanto el discurso imperialista estructurado a partir de la contraposicin nosotros/ellos, com la relacin centro/periferia en torno a la cual se h configurado el saber occidental25.

    Isso implica ver os direitos humanos e a ideia de pessoa humana como uma construo global na qual h mais de um agente, de uma sociedade que aceita e que pratica essa ideia, ou de algum especfico que inaugurou ou acelerou esse processo. Esta construo envolve uma pluralidade de agentes, tanto cultural,

    23 MELLINO, Miguel. La crtica poscolonial: descolonizacin, capitalismo y cosmopolitismo en los estudios poscoloniales. Buenos Aires: Paids, 2008. p. 50.

    24 CHANADY, Amaryll. The Latin American postcolonialism debate in a comparative context. In: DUSSEL, Enrique et al. Coloniality at large: Latin America and postcolonial debate. Durham, USA: Duke University Press, 2008. p. 424.

    25 MELLINO, op. cit., p. 50.

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    quanto social que transforma, de modo imprevisvel, as direes e as finalidades dos direitos humanos.

    Apresentao do plano de trabalho

    Para alcanar o objetivo desta tese, que investigar a razo de ser da centralidade da pessoa humana e, portanto, dos direitos humanos na Constituio Brasileira de 1988, indo alm de seus pressupostos hegemnicos, o trabalho foi dividido em cinco captulos.

    No primeiro deles, intitulado genealogia da ideia ocidental de pessoa humana, discuto como o conceito de direitos humanos vem sendo, atualmente, pensado em sua relao constitutiva com a ideia de dignidade humana e o alcance que ela tem em relao a seus possveis titulares. Para elucidar essa relao, apresento os contornos da noo de pessoa humana no pensamento ocidental pr-moderno e a centralidade por ela adquirida no jusnaturalismo moderno, como forma de demonstrar que, antes de se considerar a dignidade humana uma premissa autoevidente da existncia dos direitos humanos, a ideia de pessoa humana que deve ser compreendida. O objetivo dos temas escolhidos o de compreender a formao do discurso dos direitos humanos e, sobretudo, de seus aspectos hegemnicos, que entendo estar implicado na genealogia da ideia de pessoa humana no pensamento ocidental at a virada antropocntrica moderna. Isso porque, na modernidade ocidental, a forte influncia do pensamento cristo operou profundas mudanas no conceito clssico de pessoa, tornando-o independente dos vnculos sociais para abranger indistintamente todos os seres humanos. Isso teve como efeito o reconhecimento da titularidade indistinta de certos direitos a ns, humanos, na medida em que a relao privilegiada com Deus fez da humanidade a espcie em destaque no mundo da vida. Este fenmeno se converteu no novo paradigma de compreenso da relao dos seres humanos com o mundo e impactou diretamente na construo do discurso dos direitos humanos.

    Todavia, as leituras que se fazem desse fenmeno levam, ao menos, a duas concluses distintas. Os crticos da modernidade entendem que a reviravolta antropocntrica da modernidade levou emergncia do sujeito autocentrado e

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    individualista e de sociedades baseadas em valores destrutivos. Outro entendimento tem aqueles para quem o reconhecimento da dignidade de cada ser humano o valor que norteia o ideal de vida boa de qualquer sociedade e, como tal, o paradigma antropocntrico moderno no deve ser considerado uma herana perversa. Assim, vises antagnicas vm determinando a prpria compreenso dos direitos humanos e comprometendo a aceitao de sua validade como um patamar tico mnimo de validade universal. Fato no desprezvel foram as consequncias da radicalizao do paradigma antropocntrico nos dois ltimos sculos, que levou construo de uma sociedade baseada no extremo individualismo, negando, talvez, os propsitos emancipatrios que animaram o humanismo. Alm disso, as afirmadas superioridade e centralidade da figura humana acabaram, na prtica, convertendo-se na superioridade de um padro especfico de existncia humana e, desde o momento em que a racionalidade foi identificada como o fundamento da natureza humana, grande parte da humanidade passou a ser excluda dessa categoria. Automaticamente, a filiao dos direitos humanos a esta tradio acarretou a sua ligao a pressupostos bastante problemticos, advindos das distores que a tradio humanista sofreu.

    No segundo captulo, parto da premissa de que existe um discurso hegemnico dos direitos humanos e discuto as limitaes desse mesmo discurso para alm das fronteiras do ocidente. Trata-se, portanto, de um discurso cujo privilgio da enunciao , justamente, ocidental e que afirma que os direitos humanos so um produto das circunstncias favorveis e da viso de mundo que se consolidaram na Europa e nos Estados Unidos no sculo XVIII. As crticas a esse discurso consistem no seu atrelamento a uma ideia individualista e, portanto, abstrata de pessoa humana, que levou valorizao de um estilo de vida agressivo e competitivo que no se adequa a valores comunitrios dos povos orientais ou que leva desintegrao social nas sociedades latino-americanas. Sendo assim, a existncia dos direitos humanos fora do ocidente no somente contestvel, mas tambm o resultado de um transplante jurdico posterior, inclusive na Amrica Latina. Essa postura hegemnica ocidental sugere que a histria, os valores e as prticas de outras culturas no tiveram, e continuam no tendo, qualquer relevncia para a construo desta ideia, subestimando, especialmente, as importantes contribuies latino-americanas para a edificao do potencial emancipatrio da modernidade.

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    Implica, ainda, autoerigir-se na condio de guardies dos direitos humanos, enquanto o resto do mundo continua a viol-los e a ignor-los.

    A seguir, no terceiro captulo, proponho-me a discutir um aspecto que, a meu ver, contribui de forma decisiva para a consolidao desta posio hegemnica do ocidente. Trata-se do modo como, tradicionalmente, se compreende a formao e o desenvolvimento dos sistemas jurdicos de muitos pases, que, segundo William Twining26, consiste no seu mapeamento e na sua identificao em duas grandes categorias do Direito ocidental, quais sejam, as famlias da Civil e da Common Law. Isso s possvel uma vez que muitos pases europeus foram, at a segunda metade do sculo XX, potncias colonizadoras, estendendo seus domnios sobre dois teros da humanidade. Este modelo de difuso do direito , assim, resultado do impacto do colonialismo que situa as ex-colnias na posio subalterna de importadores e receptores de instituies e modelos jurdicos para cuja construo pouco ou nada contriburam. No campo dos direitos humanos, o modelo padro de difuso do Direito refora ainda mais a lgica do discurso hegemnico, que so includos nesse pacote como mais um artigo de exportao. Desse patamar, partirei para a discusso da limitao deste modelo como retrato do fenmeno de difuso do direito. Para tanto, buscarei em Twining os argumentos para refutar a tese segundo a qual a difuso dos modelos e institutos jurdicos mundo afora se do ou se deram aos moldes do direito comparado tradicional. Defenderei que esta obedece muito mais a um processo multidirecional, de mtua influncia e que obedece a diferentes variveis para se adaptar, do que a um simples processo de recepo ou imitao inautntico. Isso se reflete, naturalmente, na ideia de direitos humanos e de pessoa humana no contexto constitucional brasileiro que, como demonstrarei, no aparece em 1988 por meio de gerao espontnea, mas se consolida como resultado de uma longa tradio na qual o Brasil est inserido.

    Consequentemente, no quarto captulo, farei o resgate de algumas contribuies latino-americanas para uma forma diferente de se pensar a pessoa humana e, portanto, para o enriquecimento da linguagem dos direitos humanos, que se fez sentir, de forma contundente, na consolidao da viso universalista dos

    26 TWINING, William. General jurisprudence: understanding law from a global perspective. New York: Cambridge University Press, 2009. p. 269.

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    direitos humanos, mas, antes disso, no pensamento de Las Casas e de Poma de Ayala. Foram eles que reconheceram e defenderam a humanidade daqueles que no se incluam nos critrios de respeitabilidade europeus. No entanto, estes constituem elementos esquecidos da histria dos direitos humanos e este esquecimento s ajudou a reforar a hegemonia do poder de enunciao ocidental e a posio secundria dos povos latino-americanos no que se refere a ele.

    Por fim, no ltimo captulo, discutirei o sentido da centralidade da pessoa humana e, por conseguinte, a dimenso dos direitos humanos na Constituio Brasileira de 1988, sob uma perspectiva diversa daquela que est implcita no discurso hegemnico dos direitos humanos. Isso porque considero insatisfatrio pensar que os direitos humanos ingressaram em nossa Constituio como meros transplantes, porque supostamente somos tributrios da herana moderna europeia. Assim, rediscutirei a dimenso emancipatria e igualitria dos valores e conceitos modernos, afirmando que eles no se constituram apenas como expresso do sentimento moral genuinamente europeu, mas que, ao contrrio, prticas, vises de mundo, discursos e valores alm do ocidente convergiram para a sua afirmao. A outra face da modernidade o colonialismo e, desde essa perspectiva, foi possvel desafiar a abstrao e a estreiteza da percepo europeia sobre a condio humana dos no-europeus e, assim, substancializar e alargar a ideia de igualdade e de dignidade. A tradio latino-americana e sua vasta contribuio para a compreenso de que a centralidade da pessoa humana implica a aceitao da diferena, e no a sua assimilao como inferioridade, foram cruciais para determinar que a Constituio Brasileira de 1988 no s a consagrasse como um princpio, mas permitisse a incluso de seres humanos historicamente excludos da fruio de direitos humanos.

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    2 GENEALOGIA DA IDEIA OCIDENTAL DE PESSOA HUMANA

    Jack Donnelly sustenta que a teoria e a prtica dos direitos humanos, como uma questo de fato, comeou no ocidente e se tornou, em muitas formas politicamente definidas, parte central das sociedades ocidentais contemporneas27. A mesma posio defendida por Micheline Ishay ao sustentar que nossa moderna concepo de direitos, onde quer se manifeste, predominantemente europia em suas origens28. Essa percepo est to profundamente arraigada que as crticas pretenso de universalidade dos direitos humanos tm nesse fato o seu principal sustentculo. Peter Fitzpatrick e Even Darian-Smith29 entendem que o comprometimento da credibilidade dos direitos humanos mundo afora se deve ao fato de sua identificao ao particular ponto de vista ocidental sobre o que seja universal, negando, por via de conseqncia, as particularidades e as diferenas daqueles que no compartilham os mesmos valores e costumes que caracterizam esse ponto de vista. Nesse sentido, os direitos humanos so vistos como a continuidade de um processo de expanso dos valores ocidentais aps o fim do perodo colonialista nas dcadas subsequentes Segunda Guerra Mundial, constituindo, dessa forma, a derivao de um projeto genuinamente europeu que os orientais rejeitam peremptoriamente e os ps-coloniais se esforam, sem muita convico, para seguir.

    Compreender a formao do discurso dos direitos humanos e, sobretudo, de seus aspectos hegemnicos, implica percorrer a genealogia da ideia de pessoa humana no pensamento ocidental at a virada antropocntrica moderna. A mudana na forma de conceber o homem determinou a radical alterao das relaes entre os prprios seres humanos e tambm com o mundo, representando a emergncia de um novo paradigma. Esse paradigma, que nasceu da elevao da figura humana condio de destaque no mundo da vida, constituiu-se principalmente a partir da viso crist de mundo e ajudou a construir o discurso dos direitos humanos. Todavia,

    27 DONNELLY, Jack. Universal human rights in theory and practice. 2nd ed. Ithaca: Cornell University Press, 2003. p. 63.

    28 ISHAY, Micheline R. The history of human rights: from ancient times to the globalization era. Berkeley: University of California Press, 2008. p. 5.

    29 FITZPATRICK, Peter; DARIAN-SMITH, Even. Laws of the postcolonial. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1999. p. 4-10.

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    no h uma leitura unvoca desse fenmeno, pois enquanto alguns entendem que a reviravolta antropocntrica da modernidade levou emergncia do sujeito autocentrado e individualista e de sociedades baseadas em valores destrutivos, outros entendem que serviu ao reconhecimento de que a dignidade de cada ser humano o valor que norteia o ideal de vida boa de qualquer sociedade. Assim, a prpria compreenso dos direitos humanos vem sendo determinada por leituras antagnicas, que s a rediscusso dos pressupostos que lhe deram origem podem ajudar a elucidar.

    2.1 Pensar o conceito de direitos humanos, hoje

    Segundo a concepo da Declarao Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, a partir da qual se inaugurou a atual fase universalista dos direitos humanos30, estes so vistos como uma forma de direitos morais, que diferem de outros direitos desta mesma dimenso por serem eles de todos os povos em todos os tempos. Mas a sua caracterstica universal determina, em grande parte, o problema em justific-los no marco de um mundo multicultural, multitnico, ps-colonial e marcado por diferentes vises de mundo.

    Em geral, os direitos individuais so justificados, arguindo-se que os mesmos so adquiridos por liberalidade, compra ou mesmo por fora de algum contrato. E, ao lado dos direitos morais de um indivduo em particular, h direitos morais que pertencem a uma dada classe de pessoas, como pais, trabalhadores, profissionais, consumidores etc. Todavia, os direitos humanos tm uma particularidade: so os direitos de todos os seres humanos em todos os tempos, como estabelece o primeirssimo dispositivo da Declarao Universal dos Direitos Humanos: todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.

    30 O advento da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948 simbolizou o surgimento de uma nova concepo de direitos humanos, a que Flvia Piovesan denominou concepo contempornea. PIOVESAN, Flvia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas. In: BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 60.

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    Eles so providos de razo e conscincia e devem agir uns em relao aos outros em esprito de fraternidade.

    Portanto, eles no podem ser justificados da mesma forma que se justifica direitos que so obtidos por meio de atos legais ou contratuais. Por direitos humanos, consideram-se aqueles direitos que no surgem ou so criados por nenhum ato contratual especfico31. Sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, a noo de que cada ser humano merece um tratamento respeitoso e que no pode ser sujeito tortura, escravido, servido ou a qualquer outro tratamento degradante, consolidou-se como fonte de criao de deveres para o legislador e como marco para a ao estatal32. Isso porque uma convico que subjaz maioria das concepes acerca dos direitos humanos aquela segundo a qual todos os indivduos humanos tm um valor intrnseco simplesmente porque so indivduos humanos. Essa convico articulada de diversas formas: s vezes, expressa-se por meio da ideia de dignidade humana; outras, pela frmula respeito s pessoas; em alguns momentos, por meio da formulao kantiana segundo a qual os seres racionais devem ser tratados sempre como fins em si mesmos e jamais apenas como meios para a realizao deste ou daquele fim particular33. Mas todas tm em comum o reconhecimento de um valor intrnseco e irrevogvel que apenas os seres humanos tm e que se convencionou chamar de dignidade humana.

    Porm, ao se falar em dignidade, vem tona uma srie de dificuldades na hora de estabelecer o seu significado, o que acaba resultando na prpria dificuldade de compreenso dos direitos humanos, quando eles so justificados a partir dessa ideia. Dignidade, propriamente dita, pode ser definida como status ou condio que atribui a determinado ser um conjunto de direitos decorrentes de caractersticas relevantes que necessitam ser protegidas e resguardadas contra a ao de outrem ou de si mesmo. Na modernidade, pela primeira vez, uniu-se o termo dignidade ao homem, atravs de Pico Della Mirandola. Posteriormente, Kant conceituou a dignidade como valor incondicional, incomparvel para o qual s a palavra respeito

    31 CRANSTON, Maurice. What are human rights? London: Bodley Head, 1973. p. 21-23.

    32 FOSTER, Steve. Human rights and civil liberties. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2008. p. 8.

    33 JONES, Peter. Rights. Houndmills, Basingstoke, Hampshire: Macmillan, 1994. p. 98.

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    confere a expresso conveniente da estima que um ser racional deve lhe tributar e concluiu que a autonomia o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional34. A partir desses conceitos, surgiu a dificuldade de se definir a que humano se refere o termo dignidade humana.

    Mas antes de entrar nessa controversa questo, preciso esclarecer que a prpria noo de dignidade comporta alguns desdobramentos conceituais se analisado como uma posio numa escala de valores atravs de sua relao com as noes de direito, respeito e auto-respeito. Sob essa perspectiva, Lennart Nordenfelt visualiza tipos de dignidade, que pode, assim, se desdobrar em dignidade de mrito, dignidade de estatura moral, dignidade de identidade e dignidade da menschenwrde35, mas nem todos estes tipos de dignidade, que podem ser ostentadas pelos seres humanos, so a referncia para a ideia de direitos humanos.

    Segundo a autora, a dignidade de mrito depende de status social ou de alguma posio formal que o ser humano ocupe na vida, portanto, pode ser perdida e adquirida. Representa o sentido antigo de dignidade, que se referia a algum tipo de excelncia ou distino, propriedade tipicamente pertencente aos senadores e pessoas de alta posio social na Repblica Romana. Nesse sentido, um rei, um presidente da Repblica, um profissional de destaque em sua rea, um grande empresrio e assim por diante ostentam esse tipo de dignidade. A dignidade de estatura moral resultado das aes do sujeito, sendo reconhecida queles seres humanos cujos pensamentos e aes ostentam alto valor moral. Portanto, tambm no atribuda de forma igual a toda espcie humana, mas a pessoas cumpridoras de seus deveres e seguidoras de princpios morais. Assim, um criminoso perde sua dignidade moral, do mesmo modo que uma pessoa egosta. J a dignidade de identidade ligada integridade e autonomia do corpo e da mente do ser humano e, em muitos casos, a sua prpria auto-imagem. Este tipo de dignidade pode no estar presente em todos os seres humanos, podendo ser adquirida, perdida ou, ainda, readquirida. Nesse caso, pode-se dizer que a dignidade de uma pessoa em

    34 KANT, Imannuel. Fundamentao da metafsica dos costumes. So Paulo: Martin Claret, 2003. p. 66.

    35 NORDENFELT, Lennart. The varieties of dignity. Healthy Care Analysis, v. 12, n. 2. p. 71, June 2004.

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    estado vegetativo permanente est mitigada, ou at mesmo, temporariamente perdida, em funo das limitaes que essa deficincia lhe acarreta na vida em sociedade. Os trs tipos de dignidade acima tm em comum o fato de serem variveis de acordo com posio social, estatura moral ou nvel de integridade fsico-mental e, ainda, o fato de poder ser perdida ou adquirida (ir e vir)36.

    Estes significados que o termo dignidade pode assumir determinam, de fato, diversas consequncias prticas que se refletem na atribuio ou na perda de direitos, seja esfera civil, seja na esfera penal, mas no esto relacionados titularidade dos direitos humanos. Considerando-se que a prtica de um crime implica geralmente a adoo de uma conduta imoral, a punio advinda, que representa a perda de direitos de ordem moral ou patrimonial (via de regra, liberdade e/ou patrimnio), resulta, em ltima anlise, da perda ou da severa mitigao da dignidade moral do indivduo criminoso. A defesa da funo tica da punio, como vem sustentando o Professor Vicente Barretto37, pode, portanto, ser explicada como a necessidade de recuperao desta dignidade moral perdida ou mitigada pela prtica de um ato criminoso e, portanto, imoral. Outra forma de visualizar a expresso das formas de dignidade no mundo jurdico a consequncia que a condio social do indivduo determina para o balizamento do valor da indenizao em casos de reparao de dano moral. Nesse caso, a dignidade advinda da posio social pode tornar o indivduo merecedor de indenizao maior ou menor. Por fim, claramente visualizvel o desvalor social causado queles que, de alguma forma, no possuem ou perdem sua integridade fsica ou psquica, a ponto de ser necessria a adoo de medidas legais afirmativas tendentes garantia de direitos, como o caso do direito ao trabalho e educao, que, de outra forma, no seria necessrio38.

    Existe, porm, uma quarta variao do termo dignidade, do qual falamos quando nos referirmos quilo que justifica a condio dos beneficirios dos direitos

    36 NORDENFELT, Lennart. The varieties of dignity. Healthy Care Analysis, v. 12, n. 2, p. 71-6, June, 2004.

    37 BARRETTO, Vicente de Paulo. Por que punir? In: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, Jos Luis Bolzan (Org.). Constituio, Sistemas Sociais e Hermenutica: programa de ps-graduao em Direito da UNISINOS Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 249.

    38 A legislao brasileira trata da promoo dos direitos das pessoas portadoras de deficincia em diversos instrumentos legais. Cita-se, como exemplo, as Leis n 7. 853/89 e 10.098/2000.

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    humanos. Ela est ligada dignidade pertencente a todo ser humano na mesma medida e extenso, a qual no pode ser perdida enquanto esse ser estiver vivo. A ela, deu-se o nome de dignidade da menschenwrde39. Esse tipo de dignidade igual em todos os seres humanos e no se perde pelo fato de algum ter cometido um crime, por mais atroz que possa ter sido, pelo fato de ter perdido sua conscincia e se tornado um paciente em estado terminal, por ter sofrido um acidente de carro e perdido a mobilidade ou, ainda, por ter perdido um cargo importante ou toda a fortuna. A dignidade humana, segundo essa manifestao, um atributo que qualquer ser humano tem, independente de cor, raa, credo, nacionalidade, gnero, lngua, integridade fsica, psquica ou moral, orientao sexual, idade ou classe social, resultando no fundamento nico, que exige a observncia de valores comuns. Como observa Bielefeldt, a sua inegociabilidade implica a exata igualdade de dignidade humana, mesmo que haja diferenciao social por prestgio ou posio. A moderna busca por igualdade encontra seu fundamento tico na conscientizao dessa dignidade que se sobrepe a todas as posies 40.

    Por essa razo, compreende-se a expresso dignidade humana como uma qualidade integrante e, em princpio, irrenuncivel da condio humana, que pode e deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, nunca admitindo, contudo, a possibilidade de ser criada, concedida ou perdida, j que existe na pessoa como algo intrnseco41. Nesse sentido, independe de circunstncias concretas, como traos culturais especficos, estatura moral, integridade fsica e mental ou status social. Ela subsiste, mesmo que inexistentes esses traos e determina, na mesma extenso, os mesmos direitos para todo e qualquer indivduo. que pressupe que todos possuem certos interesses humanos incondicionais que justificam os mesmos direitos humanos.

    A maioria das interpretaes contemporneas sobre dignidade humana decorre da clebre formulao kantiana que eleva a dignidade ao nvel do

    39 NORDENFELT, Lennart. The varieties of dignity. Healthy Care Analysis, v. 12, n. 2, p. 78, June, 2004.

    40 BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. Traduo de Dankwart Bernsmler. So

    Leopoldo: Unisinos, 2000. p. 84. 41

    SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Dicionrio de filosofia do direito. So Leopoldo: Editora da Unisinos, 2006. p. 218.

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    incondicionado (mesmo que com ela no concordem em relao ao elemento subjetivo). Em Kant, a autonomia o fundamento da dignidade humana, justamente porque o conceito kantiano de pessoa est diretamente ligado ao de moralidade, estabelecendo-se, com isso, uma diferenciao entre os conceitos de pessoa e de ser humano. Isso porque os seres humanos no se encontram, ao longo de toda sua existncia, aptos a agirem segundo a representao de leis e, mesmo aqueles que assim se encontrem, podem ter a sua capacidade de autodeterminao e conscincia suprimida ou afetada. Portanto, a dignidade em Kant decorre da autonomia, que, por outro lado, tambm caracterstica fundamental do conceito de pessoa que tem estreita relao com a ideia de direitos humanos.

    Reportando-se a Kant e tradio da qual ele tributrio, os juristas brasileiros vm delimitando o conceito de dignidade humana que, aps a Constituio de 1988, ganhou destaque no cenrio jurdico nacional. Ingo Sarlet a define como qualidade intrnseca e distintiva que faz de cada ser humano merecedor do mesmo respeito e considerao por parte do Estado e da comunidade, que lhe acarreta uma variedade de direitos e deveres fundamentais. Estes direitos tm o objetivo, tanto de proteger a pessoa de atos degradantes e desumanos, quanto o de garantir as condies mnimas para uma vida saudvel, alm de propiciar e promover sua participao ativa e corresponsvel nos seus prprios destinos e nos da vida em comunho com os demais seres humanos42.

    Maria Celina Bodin de Moraes no prope um conceito de dignidade, mas enuncia aquele ao qual se filia e que no difere, substancialmente, do conceito antes mencionado. Para a autora, a dignidade um valor intrnseco s pessoas humanas, sendo que a sua humanidade decorre do fato de serem elas seres racionais, dotados de livre-arbtrio e de capacidade para interagir com os outros e com a natureza43. Ricardo Lobo Torres no prope uma conceitualizao de dignidade humana, mas lhe atribui duas caractersticas - a abertura para a ponderao e a irradiao para os direitos de liberdade e da justia -, afirmando que, em razo disto,

    42 SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituio Federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 59.

    43 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 85.

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    ela o fundamento para que os direitos sociais sejam entendidos como mnimos existenciais (proteo negativa contra a incidncia de tributos sobre os direitos sociais mnimos de todas as pessoas e de prestaes materiais em favor dos pobres)44.

    Entretanto, a concepo de Ricardo Lobo Torres no resolve o problema, pois ao a analisarmos detidamente, encontraremos consequncias questionveis que restringem sobremaneira seu contedo45. Por sua vez, as concepes de Maria Celina Bodin de Moraes e de Ingo Sarlet deixam em aberto trs questes fundamentais: por que, afinal, o homem se destaca em relao aos demais seres vivos no mundo da vida? Se a racionalidade a resposta, em que medida este atributo assegura, ao homem, a condio de fim em si mesmo e uma srie de direitos da decorrentes? Por fim, o que ser racional? Responder questo sobre quem o humano que adjetiva o substantivo dignidade, tomado evidentemente sob acepo de dignidade da menschenwrde, implica deparar-se com uma srie de dificuldades que as anlises contemporneas, sobretudo em nosso pas, parecem ignorar. Todas padecem da deficincia de tratar a dignidade humana como uma verdade autoevidente. Isso porque, em relao aos seres humanos nascidos vivos, deixou de existir qualquer divergncia quanto sua incluso na condio humana, desde que os documentos jurdicos nacionais e internacionais do segundo ps-guerra reconheceram que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que estes direitos sero gozados sem distino de qualquer espcie, seja de raa, cor, sexo, lngua, religio, opinio poltica ou de outra

    44 TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos Direitos Sociais em mnimo existencial. In: SARLET, Ingo W. Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 14.

    45 No Estado Democrtico de Direito, a concepo de direitos sociais superou da Poor Law inglesa do sculo XIX, pois assumiu feio totalmente distinta do assistencialismo. De modo que promover direitos sociais vai alm de assegurar prestaes aos pobres ou imunizar da incidncia de tributos os bens que sirvam sua garantia. O mnimo existencial consiste em um desdobramento da teoria da reserva do possvel, em que o custo dos direitos sociais impediria a sua efetivao por insuficincia de recursos. Como observa Vicente Barreto, essa compreenso esvazia a amplitude e a magnitude dos direitos sociais, pois deixa ao arbtrio do governante, decidir o que abrange o mnimo existencial, retirando, do princpio da dignidade humana, a sua dimenso social e econmica. Alm disso, compromete a efetividade dos direitos humanos, como um todo, pois sendo eles indivisveis e interdependentes, tornar os direitos sociais quase uma opo do legislador tornar impossvel a realizao dos direitos de liberdade e, por consequncia, inviabilizar o prprio Estado Democrtico de Direito. In: BARRETTO, Vicente de Paulo. Reflexes sobre os Direitos Sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (ORg.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 122.

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    natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condio. No entanto, se se admite que todo e qualquer ser humano, ao menos o nascido vivo, pode ser includo na categoria de humano a que se refere a expresso dignidade humana, preciso esclarecer as bases sobre as quais essa ideia se assenta. necessrio tornar claro como e por qu se constituiu a noo de que o indivduo humano um ser intrinsecamente digno e como esse processo evoluiu ao longo do lento processo de gestao dos direitos humanos.

    At bem recentemente o adjetivo humano exclua mais do que inclua seres da espcie humana. Teriam, portanto, estes seres humanos, adquirido dignidade ao longo do tempo? No obstante, se certo que, atualmente, os seres humanos nascidos vivos se incluem, sem grandes divergncias, na categoria de seres humanos, ainda subsiste o problema relativo dignidade ou no daqueles que ainda no nasceram, daqueles que esto nas zonas limtrofes entre a vida e a morte ou ainda dos que se encontram na linha que divide humanidade de animalidade e que constituem os problemas suscitados pela biotica. justamente este problema que instiga Costas Douzinas a formular suas perguntas:

    Ser que podemos ter um conceito de direitos sem ter uma definio de quem ou o que humano? E mesmo se fssemos assumir que podemos responder questo da humanidade, quando comea e quando termina a existncia de um ser humano e dos direitos associados? E quanto s crianas, aos portadores de distrbios mentais, de doenas terminais ou aos prisioneiros? Se eles so totalmente humanos e tm assegurados todos os direitos que pertencem humanidade ou so apenas parcialmente humanos, uma vez que seus direitos so drasticamente reduzidos? Desfrutam eles de um nmero menor de direitos por serem menos humanos ou por contar com alguma outra qualidade? E quanto aos animais? [...] A linha divisria entre humanidade e animalidade se manteve, mas foi cedendo. Na outra extremidade, a prpria diviso desafiada e os humanos so vistos como uma espcie nica e no-privilegiada no orgnico contnuo do Universo46.

    46 Can we have a concept of rights without having a definition of who or what is human? And even if we were to assume that we can answer the question of humanity, when does the existence of a human being and the associated rights begin and when does it end? What about children, the mentally or terminal ill, prisoners? Are they fully human, entitled to all rights that belong to humanity or, are they only partially human since their rights ae severely restricted? Do they enjoy fewer rights because they are lesser human or on account of some other quality? What about animals? [] The dividing line between humanity and animality is maintained but moved along. At the other deep end, the divide itself is challenged and humans are seen as one, non-privileged species in the organic in the organic continuum of the cosmos. DOUZINAS, Costas. The end of human rights. Oxford: Hart Publishing, 2000. p. 184.

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    Muito embora este problema biotico no seja especificamente o objeto da presente tese, a sua meno se justifica porque a compreenso do processo de como se deu a incluso dos seres humanos nascidos vivos na ideia de humano depende largamente de tomarmos conscincia de que esta no uma concepo autoevidente como fazem crer os estudiosos da dignidade humana na atualidade.

    2.2 Dignidade humana: um atributo realmente de todos?

    Os direitos humanos passaram por um longo processo de gestao e teoricamente se consolidaram quando se reconheceu a definitiva identificao entre as ideias de ser humano e pessoa humana, determinando, com isso, a afirmao de que todos os seres humanos so iguais em dignidade e direitos. Tratarei desse problema na prxima seo. Antes, porm, discutirei em que medida a ideia de dignidade humana desafia noes tradicionais da antropologia personalista quando estamos diante de situaes limtrofes da vida humana. comum se observar, nos textos jurdicos e filosficos, referncias ora pessoa humana, ora ao ser humano, como titulares do direito vida, liberdade, a uma vida digna, a certos bens materiais bsicos e assim por diante. Ocorre que a ideia de pessoa humana menos abrangente que a noo de ser humano, e, quanto condio de dignidade de muitos membros da espcie humana, persistem dvidas insolveis. Esses so os desafios da biotica, que lida com os problemas de acesso a direitos, como vida, queles que no foram tradicionalmente includos no mbito de incidncia dos direitos humanos, por no serem considerados pessoas.

    A expresso dignidade humana no autoexplicativa, como sugere grande parte da doutrina, pois no h uma definio precisa a respeito do humano. Isso porque a sua definio transita, nas palavras de Nino, entre: 1) caracterizar o conceito de homem sobre a base de propriedades que se apresentam, prima facie, como moralmente relevantes racionalidade e capacidade de propor-se fins que Kant toma em conta -, cuja conseqncia considerar que h homens que so em menor grau que outros, posto que aquelas propriedades so tipicamente de ndole gradual; 2) caracterizar o conceito de homem em termos de traos biolgicos muito

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    elementares tais como a estrutura cromossomtica de suas clulas que todos os seres humanos apresentam em igual grau, caso em que no se vislumbra claramente como esses traos biolgicos possam servir de nico fundamento para conceder tais direitos47.

    Diante disso, as opinies se dividem e ainda no h consenso, como foi possvel observar no julgamento da Ao Direta de Inconstitucionalidade n 3.510, que tramitou no Supremo Tribunal Federal Brasileiro e foi considerado o mais importante e controvertido caso j apreciado por aquela Corte. Nesta ao, discutiu-se a constitucionalidade do artigo 5, da Lei de Biossegurana n 11.105, de 24 de maro de 2005, que permitia a utilizao de embries fertilizados in vitro e no implantados no tero materno para a extrao de clulas-tronco com finalidade teraputica, desde que estes embries estivessem congelados h mais de trs anos e fossem considerados inviveis. Por meio dessa ao, o Procurador Geral da Repblica arguiu a inconstitucionalidade do referido dispositivo, sob o argumento de que a utilizao destes embries implicaria violao do direito vida, assegurado pelo caput do artigo 5, da Constituio Brasileira de 1988. Por seis votos contra cinco, o Supremo Tribunal Federal julgou-a improcedente, ao entender que a vida dos embries humanos no est sob proteo constitucional.

    Questes como estas se tornaram frequentes no debate pblico desde que impressionantes avanos da cincia e da tcnica, sobretudo nos ltimos cinquenta anos, tm alcanado domnios at ento intocveis pela ao do homem48. Portanto, no campo biotico, tem-se motivado intenso debate sobre os limites semnticos da dignidade humana e sobre suas consequncias prticas. Para algum ser considerado digno e, portanto, titular de direitos humanos bsicos, basta ser humano, ou seja, ser dotado de natureza humana, ou para s-lo deve estar no gozo atual das capacidades da autoconscincia, linguagem, pensamento etc?49 No primeiro caso, entende-se que a dignidade decorre do simples fato de algum

    47 NINO, Carlos Santiago. tica y derechos humanos. 2. ed. Buenos Aires: Astrea, 1989. p. 44.

    48 BARRETO, Vicente de Paulo. O vaso de pandora da biotecnologia: impasses ticos e jurdicos. In: TORRES, Heleno Tavares. Direito e poder nas instituicoes e nos valores do pblico e do privado contemporneos: estudos em homenagem a Nelson Saldanha. So Paulo: Manole, 2005. p. 667.

    49 CATTORINI, Paolo; REICHLIN, Massimo. Persistent vegetative state: a presumption to treat. Theoretical Medicine, Netherlands, n. 18, p. 263-4, 1997.

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    pertencer espcie humana (do simples fato de ser humano) e, no segundo, como resultado do fato de algum ostentar caractersticas moralmente relevantes, cujo gozo atual e pleno seria conditio sine qua non para a caracterizao da pessoa. A primeira corrente chamada, por Cattorini e Reichlin, de personalismo tico e a segunda, de atualista.

    O personalismo tico tem dois desdobramentos, que