Peter Hunt Literatura Infantil

download Peter Hunt Literatura Infantil

of 9

Transcript of Peter Hunt Literatura Infantil

Crtica, teoria e literatura infantilhttp://editora.cosacnaify.com.br/ObraEntrevista/11234/57/Cr%C3%ADtica,-teoria-e-literatura-infantil.aspx

Lanado em: agosto/2010 - entrevista: Peter Hunt

Literatura infantil sem distines Por Livia Deorsola

Em qualquer parte do mundo, ao entrar numa livraria e perguntar por um livro para crianas, provavelmente voc ser encaminhado para uma seo diferenciada, parte dos chamados livros adultos. Compreensvel, afinal, o estabelecimento precisa se organizar com base em alguns critrios, embora questionveis. O problema quando crticos e tericos da literatura adotam parmetros semelhantes, com o agravante de confinarem as histrias infantis em categorias inferiores quando comparadas s produzidas para gente grande.

A questo minuciosamente tratada pelo britnico Peter Hunt em Crtica, teoria e literatura infantil, livro que ganhou uma reformulada e ampliada edio pela Cosac Naify, indita no Brasil. Fundador e professor de literatura infantil da Cardiff University, o primeiro curso do gnero na

Gr-Bretanha, Hunt discute o papel de escritores, educadores, editores e pesquisadores neste cenrio, alm de apresentar as mais importantes tendncias da teoria literria ao longo do sculo XX. "Estamos no ponto mais excitante do desenvolvimento da comunicao e da literatura dos ltimos quinhentos anos, e a literatura infantil lidera esta trajetria", ele afirma.

Na entrevista abaixo, Hunt - f de Lewis Carroll - comenta o desafio crtico diante das novas mdias, as interferncias no encontro entre os livros e as crianas e conta como ajudou a formar quatro filhas leitoras.

*

A primeira edio de Crtica, teoria e literatura infantil de 1991. Como foi a experincia de reeditar e atualizar a obra com uma editora estrangeira? Quais foram as principais mudanas?Este foi um processo muito interessante. O livro foi escrito numa poca na qual tnhamos que lutar arduamente para que as pessoas compreendessem quo importante so os livros infantis. Alm disso, desde 1991, muita coisa foi escrita na rea da teoria e da crtica, e percebo que a teoria tem se tornado menos relevante do que costumava ser. Consequentemente, fiz um balano do que sei agora com o que sabia na poca. De qualquer forma, a luta pela literatura infantil est longe de acabar e, em alguns pases (e algumas universidades do Reino Unido) ainda temos que defender esta causa. Assim, a primeira metade do livro mantm todos os argumentos; j a segunda foi alterada levando em considerao os desenvolvimentos recentes, especialmente na poesia e nas novas mdias.

O que foi preciso ser repensado para esta nova edio, tendo em vista o pblico brasileiro? O ponto principal este foi um grande aprendizado para mim foi perceber como a primeira edio estava estruturada na crtica literria inglesa e em livros infantis ingleses e norte-americanos. Muitos dos exemplos foram retirados de obras que caram na obscuridade, ento busquei novos exemplos, incluindo ttulos mais conhecidos. O livro original tinha por objetivo apenas a academia. A nova verso tem um pblico mais amplo em mente.

No captulo final Literatura e as novas mdias, escrito especialmente para a edio brasileira, voc trata da mudana da ideia de narrativa, ou melhor, da desconstruo de sua linearidade. Acredita que a anlise terica desta nova forma de expresso literria ser possvel ainda nesta gerao de crticos? Apenas se houver uma mudana de mentalidade. Parece-me que a crtica funciona como um terceiro elemento entre o livro e o leitor, e, em certa extenso, isto requer um texto esttico ou fixo. Igualmente, os crticos se valem de padres estabelecidos e aceitos aos quais relacionam seus julgamentos e interpretaes. Est colocado o problema para a crtica tradicional: no mundo de hoje, os textos se alteram; podem ser reescritos pelos leitores ou por mltiplos autores; perpassam diferentes mdias. O que fazer quando a audincia (especialmente se forem crianas) no partilha destes valores comuns? Eis a questo.

Por tudo isso acho que estamos no ponto mais excitante do desenvolvimento da comunicao e da literatura dos ltimos quinhentos anos (desde a inveno dos caracteres mveis) e a literatura infantil est liderando a trajetria. Os crticos tero ainda um importante papel a cumprir, mas ser necessrio aprender novas habilidades e tcnicas.

No livro, voc comenta rapidamente sobre como incentivou suas quatro filhas a lerem. Como era o cotidiano familiar de leitura?No tnhamos televiso na Inglaterra de 20 anos atrs, esta era a nica alternativa mdia impressa e nossas crianas liam um bocado. Eu e minha mulher lamos diariamente para elas desde quando eram bebs e assim os livros se tornaram uma parte natural da casa. At mesmo durante as frias a famlia se reunia para ler. Claro, tnhamos a vantagem dos livros infantis serem objeto do meu trabalho, o que facilitou as coisas. Ainda temos cerca de 4 mil exemplares em casa.

Hoje todas elas so boas leitoras, alm de cinfilas. A mais velha adora chick-lit [literatura voltada ao pblico feminino] e romances; a segunda l vorazmente clssicos e filosofia e, aos 25 anos, de longe melhor leitora que eu.

Voc aponta as muitas mediaes at que um livro chegue s mos de uma criana, passando pelos pais, professores, bibliotecrios, editoras e livreiros. Quais os caminhos mais saudveis para que o encontro leitor-livro acontea?Penso que o caminho mais saudvel fazer com que o livro seja um objeto corriqueiro na sociedade e na vida familiar. Em alguns pases, est se tornando marginalizado pelas novas mdias: no lugar de livros, as crianas tm um computador ou uma TV em seus quartos. Se uma casa cheia de livros, ento o encontro se torna natural. Os pais deveriam ler para as crianas e com elas.

Mas, veja: no estou argumentando que livros so algo melhor que outras mdias, so apenas diferentes e produzem outras habilidades e prazeres.

Voc assinala as dificuldades dos adultos em ler as histrias ditas infantis, ao mesmo tempo em que essas histrias nascem de uma mente adulta. Por que to difcil de atingir toda a potencialidade que um livro infantil oferece? Ler um livro infantil simplesmente por prazer muito difcil para um adulto. A experincia confundida com memrias de infncia, com o desejo de ler em nome da criana, com a necessidade de fazer julgamentos sobre a adequao. Muitas vezes no se acredita que esta literatura pode oferecer o mesmo tipo de prazer intelectual que a adulta.

Por que em geral se imagina que a apreciao esttica seja algo fora do espectro infantil? Por que est vinculada ao conhecimento cultural e educao tcnica, e, geralmente, a um procedimento de seleo elitista e de dominao adulta. Presume-se que, a menos que voc tenha experincia cultural e possa articular seu pensamento em termos convencionalmente aceitos, voc incapaz de fazer interpretaes estticas. Obviamente, um leitor inexperiente ter uma maneira diferente de apreciar um livro, mas no significa que ele seja incapaz. Quo prejudicial pode ser a noo de utilidade como a preocupao em repassar ensinamentos morais atravs do texto, por exemplo quando aplicada literatura infantil? quase impossvel isto no acontecer, j que os autores de livros infantis invariavelmente tm pontos de vista ideolgicos. Quando a literatura infantil usada, por exemplo, como meio de alfabetizao, o dano mais comum que isso desestimule a criana para a leitura.

tentador para um liberal como eu sugerir que livros escritos com um propsito moral so menos ldicos ou menos bem escritos ou menos sutis que outros. Entretanto, basta olhar para a histria para perceber que obras com as mais bvias abordagens religiosas foram muito populares no passado. A infncia muda.

Ao citar exemplos de obras livres de reducionismos e amarras literrias, Lewis Carroll constantemente mencionado. Qual seu principal mrito?Carroll teve vrios mritos, mas o maior deles seu respeito pelo leitor infantil. Suas obras tm muitas camadas emotiva, poltica, lgica, entre outras , e tenho certeza de que ele acreditava que as crianas eram capazes de entend-las ou ao menos ficavam instigadas a fazer indagaes. Mesmo suas emoes pessoais esto presentes em seus textos, para que as crianas sentissem empatia ou as rejeitassem.

Voc j escreveu fico infantojuvenil. Por que interrompeu esta atividade? Ainda se reconhece como escritor? Sim, ainda me considero um escritor o que tenho feito desde os oito anos. A escrita acadmica algo que tive que fazer para me sustentar. No parei de escrever para crianas, apenas parei de ser publicado. Escrevi seis livros em quatro anos e senti que isto era tudo o que tinha para dizer: acredito plenamente na ideia de que um escritor deveria escrever apenas os livros que realmente precisa. H muito tempo tentei publicar mais livros, mas meu editor, muito acertadamente, os rejeitou.

Depois de 20 anos, voltei a escrever para crianas porque ainda queria me expressar. Mas meu novo romance no foi publicado por que os editores alegaram que est fora de moda gentil demais, intelectual demais. No fiquei surpreso com a resposta, afinal no posso esperar que seja popular um livro que satiriza um outro tipo de literatura infantil.

Voc tem alguma livraria ou biblioteca predileta que costuma frequentar? Sou um entusiasta das livrarias locais. H uma cidadezinha perto de Cardiff [Pas de Gales, onde Hunt mora] onde existe uma que muda de dono a cada dois anos, ento fao minhas compras l sempre que posso. Para adquirir livros infantis, vou at Hay-on-Wye, a 100 quilmetros de distncia: so mais de 50 livrarias para 2 mil habitantes!

Minhas bibliotecas favoritas so a British Library em Londres e a Bodleian Library em Oxford, mas tenho um carto que me permite o acesso a qualquer biblioteca universitria na Gr-Bretanha; so 130, aproximadamente.

Linguagem oral, leitura e escritaEntrevista com Peter Hunt

Pesquisador britnico destaca a complexidade e a riqueza dos textos feitos para crianas e fala sobre a validade de livros-brinquedo e daqueles que no tm sequer uma linha escrita

Rita Trevisan ([email protected])http://revistaescola.abril.com.br/creche-pre-escola/entrevista-peter-hunt-639898.shtml

Ele foi um dos primeiros crticos contemporneos a levantar a voz contra os preconceitos sobre os livros elaborados especialmente para as crianas. Professor emrito da Cardiff University, onde criou e ministra a disciplina de Literatura Infantil, a primeira do gnero na Gr-Bretanha, Peter Hunt lanou diversas obras sobre o assunto e recebeu prmios importantes, como o International Brothers Grimm Award, concedido pelo International Institute for Childrens Literature, no Japo, para estudiosos de todo o mundo que fazem contribuies significativas para o progresso da pesquisa sobre a literatura infantil.

Em sua produo, o britnico vem contribuindo para elevar o nvel da discusso sobre o tema, na tentativa de que ele passe a ser encarado com mais seriedade e rigor terico pelos adultos - em especial, pelos autores e crticos da rea, que muitas vezes subestimam a inteligncia das crianas.

Durante recente visita ao Brasil, em virtude do lanamento do livro Crtica, Teoria e Literatura Infantil, Hunt concedeu esta entrevista NOVA ESCOLA.

Para muitos, a literatura infantil sinnimo de livros com letras grandes e vrias figuras. Isso faz sentido?PETER HUNT De maneira alguma. Essa concepo existe porque, em diversas situaes, os pequenos so subestimados pelos adultos. Entendo que, quando se est comeando a ler, letras grandes e figuras podem facilitar a tarefa. Mas muita gente pensa que a literatura infantil tem de ser simples e objetiva s porque para ser consumida pelos pequenos. Ainda hoje, as pessoas olham as obras infantis com certa indiferena, como se elas fossem inferiores. As nicas pessoas que as respeitam so aquelas que esto realmente prximas das crianas e sabem muito bem que elas no so criaturas estpidas e sem opinio.

Por que a concepo de que a literatura infantil inferior perdura?HUNT Muitas vezes, no se acredita que ela possa oferecer o mesmo tipo de prazer intelectual que a adulta. Alm disso, em geral, presume-se que, por no ter uma vasta experincia cultural, a criana seja incapaz de fazer interpretaes estticas. Obviamente, um leitor inexperiente ter uma maneira diferente de apreciar um livro, as ilustraes e a histria. Mas isso no significa que seja incapaz de faz-lo.Como definir literatura infantil?HUNT aquela que contm alguma representao do autor a respeito da infncia. Quem escreve faz isso pensando em uma criana real que conhece e em si prprio durante a infncia ou baseia-se em vrias ideias que formou sobre como so os pequenos em geral ou como poderiam ou deveriam ser. Porm, ainda que tente adaptar ou alterar seu estilo ou o contedo de um livro para uma linguagem que as crianas entendam, ele no pode deixar de ser um adulto enquanto escreve. a que est a misso desafiadora de fazer literatura infantil com qualidade.

Qual a misso dela?HUNT Basicamente, expandir o universo dos pequenos em termos de conhecimento, de experincia e de emoes - o que j uma tarefa rdua. Acredito que a literatura seja mais uma ferramenta para ajud-los a crescer e se desenvolver com plenitude.

Diversos ttulos clssicos, como Romeu e Julieta e Dom Quixote, tm sido reeditados em verses simplificadas para a crianada. Na sua opinio, isso interessante?HUNT Eu costumava pensar que alterar o contedo e a linguagem de um texto clssico para torn-lo acessvel aos pequenos era uma coisa natural a fazer, afinal os clssicos so bens pblicos e parte importante da nossa cultura compartilhada. H tempos, os livros tm de competir com vdeos e outras mdias. Alm disso, a garotada est habituada a leituras mais simples e textos curtos, ou seja, o modo de ler os livros tambm est mudando. Portanto, se os leitores precisam ter algum conhecimento dos clssicos, eles tm de ser alterados, simplificados. Caso contrrio, existe o perigo de eles no serem mais lidos at pelos adultos. Nessa perspectiva, qualquer verso melhor do que nada. Porm, de uns tempos para c, tenho repensado isso tudo. Acho cada vez mais que, ao simplificar um clssico, perdemos a essncia da obra. O melhor seria ento encontrar um caminho para ensinar as crianas a ler as verses originais, de modo que elas possam entend-las no contexto em que foram escritas. O maior erro que podemos cometer pensar os clssicos como atemporais, imaginar que eles permanecem atuais com o passar dos anos. Na realidade, eles so produtos do tempo em que foram escritos. Assim, todos vo precisar de informaes a respeito deles para l-los de maneira satisfatria. E nossa misso como educadores fazer os estudantes perceberem como esse processo pode ser interessante e desafiador, no apenas um trabalho rduo.

A crtica literria de obras infantis costuma ser muito rebuscada e severa, deixando tanto as crianas quanto os adultos desnorteados na hora de escolher livros para ler. O que uma boa resenha deve considerar?HUNT A crtica literria positiva deve transmitir certo entusiasmo porque fundamental que ela desperte o interesse do leitor em conhecer a obra. No entanto, escrever esse tipo de texto uma das coisas mais difceis do mundo porque preciso discorrer de modo geral, para diversas pessoas desconhecidas, sobre uma experincia particular. A opinio sobre uma obra algo que varia de uma pessoa para outra. Quando lemos uma crtica, estamos lendo a pessoa que est por trs dela. Da, precisamos saber quem ela, se um crtico com experincia, se tem filhos e que idade eles tm, por exemplo. Afinal, a leitura de um mesmo livro pode ser feita de maneiras diferentes, a depender de quem o l. Alm disso, interessante considerar que a crtica literria geralmente feita por adultos e eles levam em conta as ideias que tm sobre as crianas, tal como ocorre com a escrita das obras.

E quanto s crticas escritas pelo pblico infantil?HUNT Elas so importantes e vlidas e representam um grande desafio para quem as escreve. Esse tipo de texto envolve anlise e julgamento, ou seja, uma produo sofisticada e complexa at para adultos. As crianas so capazes de responder bem a uma pergunta, mas nem sempre conseguem explicar as respostas que formulam. Dizem gostar de algo, mas no conseguem expressar o motivo. Nesse ponto, o maior perigo elas tentarem copiar as ideias dos adultos. Portanto, quando entregamos um livro a um pequeno e pedimos que elabore uma crtica, temos de ser cuidadosos e simplesmente pedir "conte-me um pouco sobre ele". Assim, poderemos obter uma resposta verdadeira e a cabe ao adulto interpret-la. Por isso, reforo que preciso saber escutar a garotada. Como muitas coisas sobre a literatura infantil, esse outro aspecto que primeira vista parece fcil, mas no .

Atualmente h muitos livros-brinquedo e do tipo pop-up. Alguns tm mais acessrios do que histria. O que acha deles?HUNT Acredito que recursos como luzes, sons, ilustraes que saltam das pginas e gravuras com texturas so vlidos na medida em que servem para aumentar o interesse pelo suporte livro. Minha nica ressalva que eles pressupem um tipo de experincia de leitura muito diferente da convencional. A leitura de um livro-brinquedo proporciona um contato com trs dimenses (altura, largura e profundidade) - e no apenas a decodificao de palavras. uma experincia complexa. De qualquer forma, ele pode levar a criana a se interessar pelo modelo convencional, somente escrito e ilustrado, que oferece uma vivncia diferente ao leitor.

Os livros que no tm texto so literatura tambm?HUNT claro! No entanto, preciso seguir regras e convenes especficas para l-los. Eles no so, de forma alguma, simples de ler. Ao contrrio. Quando h s imagens, so exigidas habilidades mais sofisticadas do leitor para a imaginao e a interpretao da histria, quando ela existe, claro.

O que um educador que trabalha com turmas de creche e pr-escola precisa considerar para escolher boas obras para os pequenos?HUNT As caractersticas e as preferncias do grupo. No existem simplesmente bons livros para a crianada. Existem ttulos interessantes para cada turma. Recomendo que os docentes tenham coragem e confiana para fazer a seleo de acordo com o conhecimento que possuem sobre as crianas com quem convivem diariamente. Quais assuntos chamam a ateno delas? Quais so seus heris? Elas gostam de animais ou preferem criaturas fantsticas?

Em seu livro Crtica, Teoria e Literatura Infantil, h a seguinte afirmao "as oraes terminam com pontos finais. As histrias, no". Qual o sentido dela?HUNT Que uma aspirao impossvel saber com certeza como uma criana l uma determinada histria e como far a interpretao dela. Nesse sentido, tambm afirmo que nenhuma histria termina na ltima pgina. Da mesma forma, julgo no mnimo arbitrrio supor que os pequenos desejam sempre histrias com final feliz para todos os personagens. A fantasia deles muito maior que a dos adultos, alm de ter alguns toques de insubordinao.

Quer saber mais?BIBLIOGRAFIA Crtica, Teoria e Literatura Infantil, Peter Hunt, 316 pgs., Ed. Cosac Naify, tel. (11) 3218-1452, 59 reais

A infncia sem clichsO ingls Peter Hunt, especialista em literatura infantil, critica o discurso politicamente correto no gnero e defende que os livros deixem as crianas pensar por si prprias

Edgard Murano

Apesar da popularidade, a literatura infantil continua alvo de preconceitos dos que a julgam uma forma literria inferior, simplificada. contra essa viso reducionista que se ope o crtico e escritor britnico Peter Hunt, cuja obra publicada no Brasil - Crtica, Teoria e Literatura Infantil (Cosac Naify, 2010) - oferece um debate aprofundado sobre o gnero, para alm do senso comum e dos preconceitos literrios.

Professor de ingls na British University e autor de A Step off the Path (1985) - classificado pela imprensa britnica como "o primeiro livro infantil ps-modernista" -, Hunt j foi traduzido para lnguas como rabe, chins, grego, japons e persa. Dos prmios que recebeu por servios prestados literatura para crianas, destaque para o Brothers Grimm Award, concedido em 2003 pelo Institute for Children's Literature de Osaka, no Japo.

Hunt contra o discurso politicamente correto, que assola a produo literria infantil, e valoriza obras "subversivas" para crianas, uma vez que a maioria dos livros infantis escritos hoje tenta "direcionar o pensamento delas", sem deixar que pensem por si mesmas. Alm disso, dirige duras crticas ao que ele chama de "comoditizao" dessa literatura, com a produo de livros em srie visando apenas o lucro, e avalia o impacto das novas tecnologias na narrativa infantil.

Em entrevista por e-mail revista Lngua, o professor britnico admite no conhecer autores brasileiros de livros infantis, exceo feita a Monteiro Lobato, o que ele atribui baixa permeabilidade do mercado editorial ingls a livros estrangeiros. Mas suas vises e opinies, embora embebidas pela realidade inglesa, so perfeitamente aplicveis a outras literaturas, como a brasileira.

Voc escreveu que a literatura infantil no inferior. Por que a crtica nutre preconceitos assim?

H trs razes. Primeiro, os crticos no pensam com muita clareza sobre livros infantis, e creem que, pelo fato de os textos serem escritos para crianas, precisam ser simples. Isso mostra uma falta de entendimento sobre como a lngua funciona - toda lngua complexa - e ignora o fato de que os livros infantis so escritos por adultos, no podendo existir "fora" da ideologia. Em segundo lugar, alguns adultos tm uma relao bastante ruim com a prpria infncia e temem que possam ser considerados "pueris" se levarem seus livros infantis a srio. Mas, como C. S. Lewis disse, um sinal de desenvolvimento truncado o medo de ser pueril! E em terceiro (o pior de todos) que uma poro de crticos pensa que alguns livros so melhores ou mais importantes do que outros: eles no conseguem definir POR QUE esses livros so melhores, mas como eles so as pessoas que decidem o que "bom", no admitem que certos livros (como os infantis, por exemplo) tenham valor e sejam importantes (e "bons") de uma forma que eles no compreendem ou no querem compreender!

Qual a diferena entre a literatura infantil e a "adulta", para alm do pblico-alvo?

Muito pouco, no sentido de que voc pode encontrar exemplos em quase todos os gneros e tipos de livros - longo/curto, complexo/simples, moral/amoral, ilustrado/no ilustrado, inteligente/estpido, popular/intelectual - que so voltados para crianas ou adultos. Contudo, os livros infantis usam mais imagens (um meio bastante complexo) do que os livros adultos, e h sempre uma luta pelo poder entre o escritor adulto e a criana leitora. De maneira geral, os livros infantis sentem que deveriam ter finais felizes, positivos ou otimistas, e frequentemente fazem da moral algo positivo. Mas alm disso, a maior diferena que todo livro infantil contm uma ideia do que vem a ser uma criana - uma criana real, ideal ou imaginada... O pblico um fator vital.

Qual o maior problema na literatura infantil mundial?

A predominncia das pessoas do marketing e do dinheiro. No Reino Unido, mais de 90% dos livros infantis so "comissionados", isto , os publishers decidem o que deve ser escrito e ento alugam autores para escrever essas obras. Essa a razo pela qual todo publisher tem os mesmos tipos de livros em suas listas. H milhares de "clones", imitaes de outros livros tentando fazer dinheiro em cima da mesma frmula. Cada vez menos livros so mantidos no catlogo. Um livro deve lucrar em seu primeiro ano, e ento ser substitudo por um novo, da at bons autores serem forados a escrever mais livros do que deveriam. Novos autores tambm tm poucas chances de ver seus livros publicados. Uma coisa boa que h mais publishers menores, assim alguns livros pouco usuais e individuais esto sendo publicados. E por haver tantos livros, h uma poro de boas obras por a.

Conhece a literatura infantil brasileira?

Tenho vergonha de dizer que menos de 2% dos livros infantis publicados na Inglaterra so tradues, e no conheo escritores brasileiros, embora devam existir vrios. Nem Lobato traduzido, at onde eu saiba.

Como avalia a literatura infantil hoje?

Apesar do que eu disse antes sobre a questo do marketing e do dinheiro, tenho a impresso de que, ao redor do mundo, a literatura para crianas est prosperando no que diz respeito s ilustraes, livros de gravuras e textos grficos. Basta dar uma olhada para o catlogo infanto-juvenil da Cosac Naify, quantos talentos! Apesar das presses comerciais, h muitos trabalhos bons sendo feitos. A maior parte deles est se deparando com os desafios das novas mdias, e h um monte de excelentes trabalhos experimentais. O elemento mais fraco provavelmente o romance, mas talvez seja porque a narrativa ou contao de histrias est mudando com os novos meios.

As crianas interagem com os livros da mesma maneira que as do passado?

Aqueles que leem livros interagem da mesma maneira. Na Inglaterra, estatsticas sugerem que a porcentagem de crianas que so leitoras de livros no mudou nos ltimos 20 anos. Todavia, pela razo de os livros agora competirem com outros meios, pode ser que as crianas no tenham tanta habilidade com as palavras ou em usar a imaginao sem estmulo visual. Alm disso, no Reino Unido e nos EUA pais gastam menos tempo lendo para os seus filhos e interagindo com eles, de modo que as crianas no tm o hbito da leitura nem a fascinao pela palavra que se costumava ter. Voc pode achar que isso ruim, mas algumas pessoas argumentam que as crianas tm uma dieta de histrias muito mais rica do que tinham antes - e o livro s uma parte dela.

H tendncia de os infantis apresentarem recursos no verbais, como texturas, tecidos, dobraduras etc.

O que acha disso?

Vejo isso como um desdobramento muito saudvel, possvel graas tecnologia. Na minha opinio, as crianas deveriam interagir com os livros e a arte de todas as formas possveis - tocando, sentindo - at mesmo provando - e lendo tambm.

Voc acha importante que os livros infantis sejam politicamente corretos?

No. Eu pessoalmente acho o contrrio, pois acredito que as pessoas deveriam abrir suas mentes e pensar por elas mesmas. Porm, entendo que muitas pessoas (o que tem sido verdade) vejam os livros infantis como uma oportunidade de direcionar o pensamento das crianas e mostr-los do jeito que os adultos querem. E tem sido verdadeiro (como resultado disso) que os livros infantis tm sido mais "politicamente corretos" do que os livros para o pblico adulto. No acho que isso ir mudar, mas sempre existiro livros "no politicamente corretos", e h uma longa tradio de livros infantis subversivos.

Como os pais podem reconhecer um bom livro para os filhos?

Procurando com afinco! Ningum conhece melhor os filhos do que os prprios pais, ento ningum pode aconselh-los. Eles devem examinar cada livro com seriedade e perguntar coisas como "esta obra partilha dos valores que eu desejo passar aos meus filhos?". "Meus filhos reagiro de um jeito que eu goste?". Isto , ser que eles vo dar gargalhadas ou ficaro com medo - e se vo ficar com medo, ser que eu quero que eles fiquem assim? "Este livro est funcionando para a criana?". S os pais podem julgar o que eles querem para os seus filhos. Leva tempo, mas os pais no deveriam deixar essa tarefa na mo de outras pessoas. Crticos podem indicar a direo certa (se escolherem seus crticos com cuidado), mas os livros escolhidos pelos pais tm de combinar com seus filhos - o que demanda cuidado e um bocado de amor - e, o mais importante, os pais tm de reconhecer a importncia da literatura infantil. E esta questo sugere que no existe essa coisa de um "bom livro", mas um livro que seja bom para determinada pessoa.

De que forma os infantis contribuem para tornar a infncia uma commodity?

Se a literatura infantil parte do processo de vender produtos, de fazer cada criana a mesma, e talvez at pior, de fazer cada histria a mesma, ento sim, a literatura infantil pode ser considerada um fator maior de "comoditizao" da infncia. Mas alguns dos melhores livros da literatura para crianas foram escritos por rebeldes, e ainda acho que livros infantis, por serem subversivos e rebeldes, podem ajudar a libertar a infncia, isto , dar s crianas a chance de se tornarem adultos que pensam de forma livre.

Muitos produtos culturais visam falar para pais e filhos. No se corre o risco de infantilizar a narrativa como um todo?

Esta uma pergunta estranha para mim - porque em ingls, "infantilizing" significa "simplicar de uma forma ruim" - com a implicao de que infantil uma coisa ruim. Eu argumentaria o contrrio: livros e filmes que fingem ser para crianas, tendo os pais como pblico secundrio, esto de fato degradando a infncia e insultando as crianas. Livros e filmes voltados para esses dois pblicos (como Shrek) so geralmente voltados para adultos (que tm o dinheiro) e as crianas so secundrias. Outra resposta seria "o que h de errado com a infantilizao?". Melhor do que a "adultizao"!

Link original da matria

fonte: http://revistalingua.uol.com.br/