Peugeot 206 na Índia

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PEUGEOT 206 NA ÍNDIA: ESTAREMOS CONDENADOS A CONSTRUIR A MARRETADAS UM SIMULACRO EUROPEU? Valéria Moura Venturella RESUMO: Este ensaio resulta da leitura crítica do anúnico publicitário The Sculptor, do automóvel francês Peugeot 206, com base na hermenêutica de Gadamer e à luz das idéias pós-estruturalistas de Foucault, Derrida e Bakhtin. O ensaio foca essencialmente a visão européia sobre os povos do hemisfério sul conforme expressa pela formação discursiva do texto televisivo estudado, e propõe uma reflexão a respeito de nossa postura em relação à nossa própria identidade e produção científica, acadêmica e cultural. Palavras-chave: hermenêutica – leitura crítica do texto televisivo – pós-estruturalismo – eurocentrismo Neste ensaio, apresento uma leitura crítica do filme The Sculptor, anúncio publicitário encomendado pela fábrica francesa de automóveis Peugeot para divulgar seu modelo 206 em canais de televisão da Europa em 2002. Partindo do princípio de que esse anúncio é uma formação discursiva, inspirei-me, neste processo de leitura crítica, na tríade hermenêutica compreensão–interpretação–aplicação tomadas como partes inter-atuantes de um processo que é único (GADAMER, 1999) e que tem como objetivo não apenas o conhecimento do que o texto diz, e da maneira como o faz, mas o alcance de uma auto-compreensão e de uma verdade que estão além do enunciado, e que residem na própria experiência hermenêutica. Para Gadamer, a compreensão do leitor faz parte do acontecimento originado pelo texto, sempre uma ruptura em relação ao já estabelecido que, como tal, requer uma interpretação. Ao buscar a compreensão, torno-me, assim, uma crítica do texto, mas também do contexto histórico em que esse texto se insere e da ideologia que o fundamenta. Assim, é com o intuito de buscar uma compreensão aprofundada desta mensagem televisiva – um objeto cultural que se tornou muito popular na Europa e foi premiado em diversos festivais publicitários – e do âmbito da realidade que o circunda, que realizo este exercício. É importante lembrar, no entanto, que a leitura que aqui apresento é uma das infinitas possibilidades de compreensão desta formação discursiva. Não pretendo apresentar uma verdade única e total – pois, mesmo que tal verdade existisse, isso não seria factível – mas uma verdade possível, e talvez apenas parte dela. Escolhi abordar o filme The Sculptor a partir do ângulo formado pela visão européia sobre os países do hemisfério sul e do modo como os habitantes de um desses países se comportam na obra abordada. Não realizo, aqui, uma reflexão sobre a imagem da

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Leitura crítica do premiado comercial de televisão The Sculptor, do Peugeot 206

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PEUGEOT 206 NA ÍNDIA: ESTAREMOS CONDENADOSA CONSTRUIR A MARRETADAS UM SIMULACRO EUROPEU?

Valéria Moura Venturella

RESUMO: Este ensaio resulta da leitura crítica do anúnico publicitário The Sculptor, do automóvel francês Peugeot 206, com base na hermenêutica de Gadamer e à luz das idéias pós-estruturalistas de Foucault, Derrida e Bakhtin. O ensaio foca essencialmente a visão européia sobre os povos do hemisfério sul conforme expressa pela formação discursiva do texto televisivo estudado, e propõe uma reflexão a respeito de nossa postura em relação à nossa própria identidade e produção científica, acadêmica e cultural.

Palavras-chave: hermenêutica – leitura crítica do texto televisivo – pós-estruturalismo – eurocentrismo

Neste ensaio, apresento uma leitura crítica do filme The Sculptor, anúncio

publicitário encomendado pela fábrica francesa de automóveis Peugeot para divulgar

seu modelo 206 em canais de televisão da Europa em 2002. Partindo do princípio de

que esse anúncio é uma formação discursiva, inspirei-me, neste processo de leitura

crítica, na tríade hermenêutica compreensão–interpretação–aplicação tomadas como

partes inter-atuantes de um processo que é único (GADAMER, 1999) e que tem como

objetivo não apenas o conhecimento do que o texto diz, e da maneira como o faz, mas

o alcance de uma auto-compreensão e de uma verdade que estão além do enunciado,

e que residem na própria experiência hermenêutica.

Para Gadamer, a compreensão do leitor faz parte do acontecimento originado

pelo texto, sempre uma ruptura em relação ao já estabelecido que, como tal, requer

uma interpretação. Ao buscar a compreensão, torno-me, assim, uma crítica do texto,

mas também do contexto histórico em que esse texto se insere e da ideologia que o

fundamenta. Assim, é com o intuito de buscar uma compreensão aprofundada desta

mensagem televisiva – um objeto cultural que se tornou muito popular na Europa e foi

premiado em diversos festivais publicitários – e do âmbito da realidade que o circunda,

que realizo este exercício.

É importante lembrar, no entanto, que a leitura que aqui apresento é uma das

infinitas possibilidades de compreensão desta formação discursiva. Não pretendo

apresentar uma verdade única e total – pois, mesmo que tal verdade existisse, isso

não seria factível – mas uma verdade possível, e talvez apenas parte dela. Escolhi

abordar o filme The Sculptor a partir do ângulo formado pela visão européia sobre os

países do hemisfério sul e do modo como os habitantes de um desses países se

comportam na obra abordada. Não realizo, aqui, uma reflexão sobre a imagem da

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mulher – que se deixa seduzir por um simulacro de um bem de consumo europeu –

apresentada no comercial, embora esse aspecto mereça também uma reflexão. Desse

modo, a tríade compreensão–interpretação–aplicação aqui exposta é parcial e

subjetiva, e está aberta a interpelações, que poderão originar debates que só virão a

enriquecer a reflexão.

No filme publicitário, a narrativa tem lugar na área central da pequena cidade

de Madras, no sul da Índia. É dia, e as pessoas passam, em suas roupas

características, a pé, de bicicleta, em burros ou em velhos ônibus, ocupadas de seus

afazeres diários. Essas primeiras imagens do comercial são levemente granuladas e

amareladas, dando a impressão de antiguidade. Ao fundo, escutamos os sons da

cidade – vozes de pessoas, ruídos dos velhos automóveis – e acordes de uma canção

indiana tradicional.

No centro da cena há um jovem solitário sentado em um banco da cidade. Ele

veste camisa e calça de algodão simples e sandálias. Seu olhar é forte e determinado.

Ele fixa os olhos em um velho carro, caminha até ele, se põe ao volante e, para a

surpresa dos transeuntes, começa a bater o veículo contra as paredes das

construções históricas da cidade, destruindo a frente e a traseira. Não satisfeito, faz

um elefante sentar na parte frontal do carro e, por fim, usa uma marreta para destruir o

que ainda está inteiro da carroceria do automóvel.

O garoto trabalha toda a noite, com martelo, talhadeira e soldador, modificando

a forma do antigo carro. Já de manhã, ao finalizar seu trabalho, ele compara o

resultado com a fotografia de um Peugeot 206 – duas páginas arrancadas de uma

revista, com marcas de dobras, que provavelmente estavam em seu bolso – e,

satisfeito, vê que seu produto final é muito semelhante. Sua postura muda

imediatamente. Ele passa a se mover com mais desenvoltura e seu olhar se torna

mais provocativo e espirituoso.

Na próxima cena é noite. Há uma festa popular no centro da cidade, e o jovem

atravessa o largo em seu veículo remodelado. As imagens, agora, são nítidas,

mostrando contrastes entre o escuro da noite e as luzes da cidade refletidas no carro,

e a música de fundo não é mais a tradicional indiana, mas uma música eletrônica que

ele ouve dentro de seu “novo” carro. Nesta cena, o garoto veste uma jaqueta Adidas e

usa óculos escuros no alto da cabeça. Ele também não está mais sozinho, mas leva

dois amigos em seu carro. As pessoas à sua volta – especialmente uma atraente

jovem indiana – têm seu olhar inevitavelmente aliciado para o homem que dirige um

carro que parece o Peugeot 206. Ele lhes olha com uma combinação de interesse e

superioridade.

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A única fala do filme fecha o anúncio: “Peugeot 206: enfant térrible”.

Não há diálogos nesse filme publicitário, apenas imagens: imagens da cidade,

do garoto, de seus movimentos, do carro antigo e da cópia resultante de seu trabalho,

de seus amigos, do homem que o inveja e da jovem que ele quer impressionar. E

essas imagens são fortes e expressivas. A música final, Heaven Is A Place On Earth,

foi composta por Raja Mushtaq, um músico nascido em Delhi, especialmente para o

comercial, com o objetivo explícito de “refletir uma sensação indiana contemporânea”

(Carpages, 2003).

O filme recebeu diversos prêmios em importantes festivais publicitários na

Europa, entre eles o Grand Prix do Eurobest 2002 e o Gold Lion do Cannes Lion 2003,

os maiores troféus concedidos a filmes publicitários do continente. Uma nota publicada

na revista eletrônica Carpages – especializada em automóveis – em fevereiro de 2003

noticiou que o anúncio chegou ao primeiro lugar na lista dos favoritos dos participantes

de uma pesquisa promovida pelo programa You and Yours da estação BBC Radio 4,

de Londres, com 37% da preferência nacional. A nota descreve o comercial do

seguinte modo:

O anúncio do 206, denominado O Escultor oferece uma abordagem altamente original e alternativa para comerciais de carro. Em vez de mostrar cenários bonitos e cenas focadas no automóvel em movimento, o comercial se concentra em um carro dos anos 1950 que é ‘redesenhado’ para imitar o 206, com a ajuda de um elefante, por um jovem que sonha ter um 206 e impressionar as garotas. A impressão de bem-estar e satisfação no final do filme reforça a mensagem de que o 206 é o carro em que se deve ser visto.

Nessa descrição, o filme é considerado inovador e anti-convencional, uma vez

que, em vez de mostrar as características do automóvel em si – tais como conforto,

design contemporâneo e motor potente e econômico – e a possibilidade de viajar e

explorar lugares atraentes com o veículo, aborda o efeito que o carro pode ter sobre

seu proprietário e sobre sua posição social – mesmo que seja uma mera imitação. Ter

um Peugeot 206, segundo a mensagem, pode nos fazer sentir mais autoconfiantes e,

por conseguinte, nos tornar mais atraentes e mais populares. Possuir o carro certo,

afirma a mensagem não-verbal do filme, pode mudar nossa vida, e para melhor.

Essa mudança é retratada, na narrativa, de diferentes modos: as diferenças,

entre a primeira e a última cena, na qualidade e no conteúdo das imagens, na música,

nas roupas do garoto, em sua postura e, especialmente, no modo como as pessoas

lhe olham.

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As imagens iniciais mostram a desordenação da vida na pequena cidade:

prédios antigos e malcuidados, placas de rua esmaecidas, pessoas caminhando para

todos os lados, veículos motorizados e de tração animal trafegando junto aos

pedestres e aos feirantes e vendedores de rua que anunciam seus produtos,

originando uma espécie de sinfonia interiorana desconexa, em que múltiplas vozes e

sons se misturam à música tradicional da região. A impressão geral é de caos e de

subdesenvolvimento.

Essas descrições visuais e auditivas da cidade indiana parecem feitas sob

medida para os olhos de um público europeu que aprendeu, desde o início das

grandes navegações, a ver a Índia e outros países fora do continente Europeu com

superioridade. Já no século XXIII, naturalistas como Georges Buffon (apud Duchet,

1975) afirmavam a supremacia dos europeus sobre os “selvagens” com base na

diferença entre as relações estabelecidas com a natureza. Enquanto os incultos se

limitavam a usufruir dos recursos naturais brutos, os europeus se esforçavam por

superar esse estado, conhecendo, classificando e transformando a natureza para

atender a suas necessidades. Essa visão iluminista – que ignora diferenças de valores

e propósitos – perdurou na mentalidade européia e na sua visão a respeito do resto do

mundo e acabou por ser disseminada também entre os povos colonizados.

O jovem protagonista do filme, sentado sozinho e pensativo, embora se vista

com simplicidade e pareça um indiano comum, não é retratado como um homem como

os outros. Isso é algo que podemos perceber em sua atitude e em seu olhar. Enquanto

as pessoas comuns estão andando para lá ou para cá, levando suas vidas medíocres,

ele faz planos. Esse é um homem sonhador, mas ambicioso e resoluto, que fará o que

for necessário para alcançar seus propósitos.

Esse jovem simboliza, no anúncio, a própria imagem do homo economicus, tão

divulgada nas sociedades capitalistas ocidentais (PARETO, 1987). O homo

economicus é uma representação do ser humano – geralmente do sexo masculino –

racional e individualista, que deseja o conforto e a riqueza e toma as decisões e as

atitudes – com base nos recursos de que dispõe e nos impedimentos que enfrenta –

que são necessárias para alcançar seus objetivos, com o mínimo possível de esforço

e dispêndios. O bem-estar, nessa perspectiva, é definido pela otimização dos meios e

das oportunidades.

Nessa mensagem, o mito essencialmente europeu do homo economicus é

mostrado como uma representação universal. É como se, em meio aos tantos que

vivem qualquer parte do mundo, sempre haja alguns bravos homens que carregam em

si a centelha necessária para fazer o “progresso” acontecer. O europeu, aqui, atribui a

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si próprio a prerrogativa de falar pela Terra como um todo, como se suas concepções

fossem válidas para o resto do mundo. Lembremos que o “universalismo” – um

universalismo que tem os valores europeus como fundamento – não é gerado por todo

o universo, mas por uma pequena parte muito poderosa dele, e é difundido como se

fosse de e para todos.

O arremedo de homo economicus apresentado na mensagem quer o conforto e

a riqueza oferecidos por uma reprodução do Peugeot 206, um carro que ele viu

apenas através de um anúncio de uma revista européia. A Índia não produz essa

marca ou modelo de automóvel. E – é importante lembrar – a fotografia publicitária

que ele tem nas mãos provavelmente não estava em uma revista que ele comprou. O

que ele tem em suas mãos não é a publicação inteira, mas páginas arrancadas,

dobradas e guardadas. O filme publicitário mostra, subliminarmente, que jovens

indianos pobres moradores de cidades do interior não conhecem carros como esse

através de experiência direta, nem têm condições financeiras para comprar revistas

européias.

E é para ter algo parecido com o carro do anúncio – o mais perto que ele pode

chegar da “coisa real” – que ele se põe, então, a trabalhar. Ele destrói um carro que

está, aparentemente, em ótimas condições. Ele não se importa com o incômodo que

pode estar causando às outras pessoas, ao jogar o carro repetidas vezes contra os

prédios ou ao trazer um elefante para aquela área, para que o animal sente no carro.

Ele não demonstra qualquer preocupação com os danos que pode estar causando nas

paredes ou na estrutura dos edifícios de sua cidade. Tudo isso porque ele tem clareza

de objetivos. Ele sabe o que quer.

Aqui perpassam pelo menos duas idéias. A primeira, compatível com o mito de

homo economicus, é a de que para atingir seu propósito, o garoto deve fazer o que for

necessário, doa a quem doer, perturbe a quem perturbar. A segunda é a falta de

apreço atribuído ao antigo e ao tradicional, e o desprezo demonstrado pela herança

cultural local. Para fazer o novo, e para difundir a cultura “superior”, então, qualquer

esforço e qualquer destruição são justificados. Ambas as idéias compõem a

mentalidade colonizadora européia, que embasou a missão “civilizatória” posta em

prática nos demais continentes a partir do século XVII (ROMANO, 1995), que não

poupou povos ou culturas.

E também é notável o fato de que os recursos de que ele dispõe são tão

rústicos quanto o resultado de seu trabalho: paredes de prédios, elefante, marra,

martelo, talhadeira e máquina de soldar. Ele não trabalha em uma oficina, mas na rua,

ao sol durante o dia e ao relento sob a luz de um poste de iluminação pública à noite.

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Para esse homem indiano, embora não faltem sonhos e determinação, falta a

tecnologia. Esse aspecto do filme reforça, para os europeus, a idéia da incapacidade

tecnológica dos países do hemisfério sul.

Todo o trabalho do garoto indiano, por fim, lhe traz as recompensas esperadas,

a começar pelo modo como ele se sente, agora que seu velho carro as semelha a um

Peugeot 206. Ele parece mais seguro, mais descontraído, mais requintado, e até mais

atraente. Ele decide que sua vestimenta deve acompanhar essa nova auto-imagem e

troca as roupas de algodão por uma moderna jaqueta esportiva da marca alemã

Adidas, provavelmente falsificada, uma vez que a Adidas não exporta para a Índia,

mas facilmente identificável pelas três listras características. Amigos lhe aparecem,

pessoas que agora se orgulham de estar com ele. Pela cidade, outros homens lhe

olham com inveja e mulheres, com admiração.

A própria paisagem visual e auditiva da cidade parece ter se tornado mais rica

e atual. Na cena final, as luzes são mais fortes e os tons mais contrastantes. Em

roupas ocidentais, as pessoas bebem, conversam e dançam sob um conjunto de

luminárias coloridas, no ritmo da música vibrante que emana do carro modificando.

Tudo parece mais urbano, mais contemporâneo, mais “civilizado”.

A própria atitude das pessoas em relação ao jovem, ocasionada pela posse de

seu bem, demonstra claramente o modo como as pessoas são avaliadas na sociedade

ocidental moderna. Valemos não pelo que somos, mas pelo que temos. Nessa cultura

do consumo, da posse e do exibicionismo, somos procurados, invejados e admirados

pelas outras pessoas não por nosso caráter ou nossa inteligência, mas por nossas

posses e por nossa imagem, mesmo que seja uma imagem superficial ou até mesmo

falsa.

Já no século XVIII, Rousseau (1999) defendia a noção de que a sociedade

européia da época – com seus padrões artificiais de riqueza e suas relações

hierarquizadas e competitivas – corrompia felicidade inata de todo ser humano, e que

o progresso da civilização, tal como ocorria na Europa, acabava por minar a liberdade

humana natural. Nesse processo, segundo o pensador suíço, a importância atribuída a

aos bens materiais nos desconecta das qualidades que nos definem como humanos: a

liberdade e a autonomia. Podemos perceber na cena final do comercial que a

mentalidade criticada por Rousseau ainda vigora nas sociedades européias atuais, e é

disseminada como um padrão de bem-viver a ser imitado pelo resto do mundo.

A fala que encerra o filme é emblemática. O Peugeot 206, um carro da

categoria supermini, ou seja, um automóvel pequeno, econômico e barato, dirigido ao

público de jovens motoristas europeus, é alcunhado de enfant terrible. É importante

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lembrar que a Peugeot é uma fábrica francesa de automóveis, e o apelido não permite

que a audiência o esqueça. Enfant terrible, em francês, significa, literalmente, criança

terrível, e denota uma pessoa jovem cuja maneira anti-convencional de pensar e agir

acaba por causar embaraço e desconforto nos mais tradicionais. É isso que o Peugeot

206 faz, em primeiro lugar como o jovem “escultor” e, depois, com a pequena cidade

em que o Peugeot 206 falsificado circula. Sua aparição não deixa as pessoas

indiferentes. Ao contrário, ela as desloca e estimula, causando-lhes ambição, inveja e

admiração.

Mas o elemento mais marcante do filme é o fato de que o garoto indiano não

tem um Peugeot 206, mas um simulacro. O que ele consegue é uma cópia grosseira,

forjada à custa de muito trabalho braçal, e noites sem dormir, com o uso irrefletido de

elementos da tradição e da cultura de seu país e escassos recursos tecnológicos. E,

por debaixo da lataria amassada do arremedo, o que existe ainda é o velho automóvel.

Mas, como a reação das pessoas demonstra, essa imitação mal-acabada do novo

carro europeu ainda é melhor que o que o jovem possuía antes.

A suprema ironia apresentada pelo filme, no entanto, reside no carro que é

destruído: um antigo carro indiano, o Hindustan Ambassador, que foi fabricado nos

anos 1950 pela Hindustan Motors da Índia, inspirado no Morris Oxford, originalmente

produzido pela Morris Motor Company do Reino Unido (Carpages, 2003). O que o

“escultor” indiano, na verdade, faz é destruir uma reprodução antiga para fazer, e

muito mal, uma cópia do novo, sempre tendo a Europa como modelo no qual se

espelhar.

Toda a narrativa aqui descrita parte de um desejo distorcido: o desejo,

destacado na primeira parte da mensagem comercial, de um indiano – que poderia ser

latino-americano, africano ou de qualquer outra parte do hemisfério sul – de adquirir

um bem de consumo que lhe faça se sentir parte de uma cultura que ele considera

mais sofisticada e mais vanguardista do que a sua. Para satisfazer esse desejo, o

garoto faz o que pode. E o que ele pode não é muito, dados o parco conhecimento

técnico de que dispõe. Tanto que os resultados que obtém são uma mera reprodução

tacanha da “coisa verdadeira”.

O processo de fabricação da reprodução do Peugeot 206 mostrado nessa

mensagem publicitária pode ser visto como uma metáfora. Um garoto indiano tem sua

vida transformada ao dirigir um carro que é uma cópia tosca dos carros que os jovens

europeus têm, do mesmo modo como as sociedades “periféricas” são imitações

improvisadas, baratas e fajutas do modo de vida europeu. O filme mostra o modo geral

como os europeus vêem o processo de desenvolvimento dos países austrais (países

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da Ásia, da África e da América Latina): como uma transcrição rude, feita a brutas

marretadas, da experiência européia. E isso não vale apenas para a produção

industrial, mas também para a produção acadêmica e para a construção de costumes

e valores.

Lembremos que essa mensagem publicitária televisiva foi comissionada por

uma fábrica francesa de automóveis, produzida por publicitários italianos, dirigida por

um holandês e veiculada na Europa. Lembremos também que ela recebeu todos os

prêmios mais cobiçados nos festivais de filmes publicitários da Europa. Esse anúncio,

aclamado pelo público e pela crítica, é a sintetização clara, em um filme de 45

segundos, de uma arraigada visão européia binária segundo a qual ser não-europeu

significa ser bárbaro, bronco e subdesenvolvido. E que todo o esforço de progresso

dos povos mais “rudes” deve estar voltado para a tentativa de se aproximar, mesmo

que de um modo primitivo e bruto, do modelo oferecido pelo centro do planeta.

Não podemos considerar que esta mensagem televisiva, dirigida a uma massa

de espectadores europeus, seja destituída de intencionalidade. Ao contrário, a

verdade que ela tenta instaurar chega a ser cristalina, e o valor estético atribuído a ela

demonstra tanto a ignorância e o desrespeito dos europeus por especificidades de

outros povos quanto toda a força da ideologia ainda colonizadora, ainda hegemônica,

ainda normatizadora que vigora na Europa.

Embora vista por olhos europeus, narrada em uma linguagem européia e, em

muitos aspectos, falaciosa, não podemos dizer que a narrativa apresentada pelo

comercial seja totalmente destituída de fundamentos. Infelizmente, em muitos

aspectos, a realidade dos países do sul tende a condizer com o olhar europeu. Muitos

de nós, em uma postura acrítica, lutamos para nos igualar aos países “desenvolvidos”

e “avançados” em nossa criação científica, técnica e intelectual, em nossas produções

culturais e em nosso estilo de vida. Não esculpimos nossa própria história, mas

tentamos modelar à força, com nossas “minguadas” aptidões, uma imitação da história

européia. Medimos nosso sucesso e nossos avanços com uma régua europeizada,

sem sequer questionar se seu padrão é adequado às nossas necessidades e

interesses.

Será que devemos mesmo nos espelhar na Europa para produzir sombras

deformadas? Arnaldo Jabor (1995) acredita que não necessitamos sequer tentar,

porque nunca vamos conseguir. "Nunca chegaremos ao Primeiro Mundo”, diz o

jornalista. Ele acrescenta, no entanto, que ao invés de nos afligir, devemos serenar, e

buscar alternativas que melhor nos caibam: “já que nunca chegaremos ao futuro deles,

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vamos programar nosso futuro brasileiro" sugere, manifestando uma forma de pensar

que poderia ser aceita por todos os países e regiões do planeta.

Reflitamos a respeito da ideologia ocidental nortista, de seus modelos

econômico e social, de sua política de relacionamento intra e intercontinental, de sua

conduta na utilização dos recursos naturais, da maneira como têm utilizado seu

poderio militar para impor os valores e crenças que fundamentam seu estilo de vida,

do modo como mascaram essa campanha por domínio econômico e político em uma

“missão civilizatória”. São esses os padrões que nos são adequados? É essa a

sociedade por que ansiamos? Não será possível a construção de uma autenticidade

no hemisfério sul do mundo? Ou melhor, não será possível a construção de

autenticidades locais, específicas, adequadas a cada diferente região do planeta, com

suas histórias e suas culturas? E, acima de tudo, como podemos construir esta

autenticidade que hoje existe apenas em seus germes (MIGNOLO, 2000)?

Necessitamos fazer a ruptura acontecer, buscando construir nosso próprio

modelo de crescimento e desenvolvimento, adequado a nossas especificidades.

Precisamos partir da lógica binária para a lógica do suplemento (DERRIDA, 1972), em

que o novo se agrega ao velho preenchendo lacunas em um modelo que se julgava

total. Enquanto na lógica binária a estrutura pressupõe um modelo – uma forma

original e essencial – e seu duplo, que nenhum valor tem em si, além do valor que lhe

é emprestado pelo modelo, na lógica do suplemento não há um modelo ou um duplo,

mas um segundo termo que se acrescenta a um primeiro, ambos sendo modificados

nessa relação. No suplemento, não há uma oposição ou uma equivalência entre os

dois termos, mas o que há é uma relação de différance1 entre eles.

A ruptura que proponho aqui não significa abolir o velho, o que já existe, mas

agregar a ele o novo, sempre em uma perspectiva crítica. A Europa continuará sendo

um centro produtor de conhecimentos que não poderão ser ignorados pela

humanidade. A transgressão da lógica binária não significa uma negação total da

produção européia, o que seria um disparate. Mas exprime uma busca de

discernimento que permita avaliar o que nos é apropriado e o que não é, em que

aspectos, para, aos poucos, re-construirmos nossa auto-imagem e a imagem que o

resto do mundo tem de nós, não através de simulacros feitos à força da marra, mas

1 Différance é um neologismo francês homófono à palavra différence (diferença), e utilizada no contexto da desconstrução. A palavra francesa différer significa simultaneamente deferir ou adiar e diferir. Derrida (1972) indica que a différance aponta para características distintas que regulam a produção de significado em um texto. A primeira – relacionada com deferição – é a noção de que palavras e sinais jamais podem evocar o que eles significam, mas podem apenas ser definidos através de sua relação com outras palavras das quais diferem. Assim, o significado é sempre deferido ou adiado através de uma cadeia infinita de significantes. A segunda – relacionada com diferença – tem a ver com a força que diferencia os elementos uns dos outros e, desse modo, engendra oposições binárias e hierarquias que autenticam o significado em si.

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através de modelos autenticamente locais, esculpidos com base no conhecimento de

nossa própria história e de nossa cultura, na consciência de nossas particularidades.

O que devemos buscar é uma alteridade radical e não especular (BAKHTIN, 1990), ou

seja, procuremos não o espelhamento de um modelo, mas o exercício de uma

identidade própria.

Lembremos, no entanto, que o eu, nunca é uma entidade absoluta, unitária ou

isolada, pois é sempre atravessada por diferentes outros, num jogo contínuo de inter-

influências. Não existe, assim, uma identidade plena e acabada, mas um constructo,

um processo permanente de organização de uma imagem. Não devemos buscar

transformar a cultura em uma totalidade homogênea, em que as diferenças e as

especificidades de interesses e necessidades se fundam, mas uma totalidade

complexa, que pressupõe a inter-relação das heterogeneidades e das

contraditoriedades, que não devem ser encaradas como uma ameaça, mas como uma

riqueza. A cultura não deve ser o resultado de um consenso, mas, ao contrário, uma

convivência sempre conflituosa das diferentes concepções e práticas.

Somos efeitos de nossos discursos (FOUCAULT, 1996). Como sujeitos, somos

a instância onde discursos se agregam e, ao mesmo tempo, são os veículos e os

instrumentos de divulgação de nossos conhecimentos. O exercício discursivo, assim, é

um ato de poder, e as relações entre o discurso e o poder são estabelecidas no

mesmo gesto. Toda vez que tomamos a palavra, exercemos nosso poder. E o mesmo

vale para os outros. Nossos discursos interpelam os outros do mesmo modo como

somos inquiridos pelos discursos dos outros. E nesse jogo, tentamos exercer nossa

subjetividade, ao mesmo tempo em que tentamos, não-ingenuamente, neutralizar as

diferenças.

Sou professora da disciplina de Educação e Multimídia no Curso de Pedagogia

da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e uma das unidades de

aprendizagem dessa disciplina envolve a leitura crítica – em uma perspectiva teórico-

prática – do texto televisivo. Acredito que, ao incitar os estudantes de Pedagogia – que

são futuros ou já atuantes educadores nos níveis mais básicos de ensino – a

estabelecer um distanciamento que lhes permita discernir e avaliar as formações

discursivas explícitas e implícitas nos programas e comerciais veiculados em nossas

redes de televisão, posso estar contribuindo para a ruptura e para a construção

identitária que defendo neste ensaio. Com nossa postura crítica, talvez não possamos

impedir que os discursos sejam proferidos, mas podemos ao menos estabelecer

obstáculos à circulação livre e desimpedida das ideologias impostas por eles,

desafiando-as e contrapondo-as com alternativas que nos sejam mais próprias .

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John Goodman, diretor de marketing da Peugeot, afirmou que o 206 foi o carro

mais vendido na Inglaterra em 2002. “Esse resultado positivo nos leva a crer que o

comercial auxiliou nas vendas”, disse o executivo (Carpages, 2003). E acrescentou

que as premiações publicitárias recebidas colocam à empresa o desafio de continuar

criando comerciais atraentes para o espectador. Ou seja, o discurso da Peugeot não

se encerrou com o filme The Sculptor. Podemos inferir que a missão civilizatória que

Europa arrogou ainda continua.

Estaremos preparados para o que está por vir?

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. O discurso no romance. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2. ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.

CARPAGES: UK Motoring Search Engine. 5 fev. 2003. [On line]. Disponível em: <http://www.carpages.co.uk/peugeot/peugeot_tv_ad_is_nations_favourite_05_02_03.asp> Acesso em: 11 jun. 2007.

DERRIDA, Jacques. La dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972.

DUCHET Michèle. Antropologia e historia en el siglo de las Luces: Buffon, Rousseau, Voltaire, Helvecio, Diderot. Ciudad de México: Siglo Ventiuno, 1975.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

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THE SCULPTOR. Direção e Roteiro: Roberto Greco, Giovanni Porro. Produção: Philippe Dupuy Mandel. Música: Original Music. Milan: Euro RSCG Mezzano Costantini Mignani, 2002. 1 bobina cinematográfica (45 seg), son., color., 35 mm.