Piaget - Desenho

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PIAGET, J.; INHELDER, B (1966). O desenho. In: A psicologia da criança. São Paulo, Diefel, 2003. o desenho é uma forma de função semiótica que se inscreve a meio-caminho entre o jogo simbólico, cujo mesmo prazer funcional e cuja mesma autotelia apre· senta, e a imagem mental, com a qual partilha o esforço de imitação do real. Luquet faz do desenho um jogo. mas acontece que, mesmo em suas formas iniciais, ele não assimila qualquer coisa a qualquer coisa e permanece, como a imagem mental, mais próximo da acomodação imitativa, Com efeito, constitui ora uma preparação, ora uma resultante desta última e, entre a imagem gráfica e a imagem interior (o "modelo interno" de Luquet) existem inumeráveis interações, pois as duas derivam diretamente da imitação (3"). Nos seus célebres estudos sobre o desenho infantil, Luquet (35) propôs estádios e interpretações que continuam válidos até hoje. Antes dele, sustentavam os autores duas opiniões contrárias: uns admitiam que os primeiros desenhos de crianças são essencialmente rea· listas visto que se limitam a modelos efetivos sem desenhos de imaginação até muito tarde: outros insistiam. pelo contrário, na idealização que revelam os desenhos primitivos. Luquet parece haver liquidado definitivamente a questão mostrando que o desenho da criança (34) A falar verdade, a primeira forma do desenho não parece imitativa e participa ainda de um jogo puro, porém de exercício: são as garatujas a que se entrega a criança de 2 a 2 1/2 anos, quando lhe fornecem um lápis. Não demora, porém, que o sujeito cuide reconhecer formas no que garatuja sem finalidade, de tal sorte que tenta, logo depois, repetir de memória um modelo, por menos semelhante que seja a sua expressão gráfica do ponto de vista objetivo: a partir dessa intenção o desenho é, portanto, imitação e imagem. (35) G. Luquet, Le dessin enfantin. Alcan. 1927. até 8-9 anos é essencialmente realista na intenção, mas que o sujeito começa desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes de exprimir graficamente o que nele vê: observação fundamental, cujo alcance total voltaremos a encontrar a propósito da imagem mental, que também é conceptualização antes de redundar em boas cópias perceptivas. O realismo do desenho passa, portanto, por diferentes fases. Luquet denomina "realismo fortuito" o da garatuja com significação descoberta em seu desenrolar. Vem depois o "realismo gorado" ou fase de incapacidade sintética, em que os elementos da cópia estão justapostos em vez de estarem coordenados num todo: um chapéu muito acima da cabeça ou botões ao lado do corpo. O badameca, que é um dos modelos predominantes no princípio, passa, aliás, por um estádio de grande interesse: o dos "badamecosgirinos" em que se representa apenas uma cabeça munida de apêndices filiformes, que são as pernas, ou munido de braços e de pernas, mas sem tronco. Vem, em seguida, o período essencial do "realismo intelectual", em que o desenho sobrepujou as dificuldades primitivas mas em que apresenta, essencialmente, os atributos conceptuais do modelo, sem preocupação de perspectiva visual. É assim que um rosto visto de perfil terá um segundo olho porque o badameco tem dois olhos ou o cavaleiro terá uma perna vista através do cavalo, além da perna visível; ver-se-ão, da mesma forma. batatas no interior da terra de um campo, se ainda lá estiverem, ou no estômago de um cidadão etc. (36). (36) A essa "transparência" se acrescentam misturas de pontos de vista ou pseudo- rebaixamento: Luquet cita o exemplo de um desenho de carro em que o cavalo é visto de perfil, ° in - terior do carro é visto de cima e as rodas caídas no plano horizontal. Cumpre mencionar, além disso, ° processo interessante de figuração das narrativas, Ao passo que a nossa imaginária adulta, pelo menos moderna, só figura uma secção de acontecimentos simultâneos" por desenho, sem introduzir nele ações cronologicamente sucessivas, a criança, como certos pintores primitivos, utilizará um único desenho para um desenvolvimento cronológico: ver-se-á, por exemplo, uma montanha com cinco ou seis badamecos que são o mesmo personagem em cinco ou seis posições sucessivas. (37) Piaget e B, Inhelder, La représentation de l'espace che1. l'enfant, Presses Universitaires de France, 1947.

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PIAGET, J.; INHELDER, B (1966). O desenho. In: A psicologia da criança. São Paulo, Diefel, 2003.

o desenho é uma forma de função semiótica que se inscreve a meio-caminho entre o jogo simbólico, cujo mesmo prazer funcional e cuja mesma autotelia apre· senta, e a imagem mental, com a qual partilha o esforço de imitação do real. Luquet faz do desenho um jogo. mas acontece que, mesmo em suas formas iniciais, ele não assimila qualquer coisa a qualquer coisa e per-manece, como a imagem mental, mais próximo da acomodação imitativa, Com efeito, constitui ora uma preparação, ora uma resultante desta última e, entre a imagem gráfica e a imagem interior (o "modelo interno" de Luquet) existem inumeráveis interações, pois as duas derivam diretamente da imitação (3").

Nos seus célebres estudos sobre o desenho infantil, Luquet (35) propôs estádios e interpretações que continuam válidos até hoje. Antes dele, sustentavam os autores duas opiniões contrárias: uns admitiam que os primeiros desenhos de crianças são essencialmente rea· listas visto que se limitam a modelos efetivos sem desenhos de imaginação até muito tarde: outros insistiam. pelo contrário, na idealização que revelam os desenhos primitivos. Luquet parece haver liquidado definitivamente a questão mostrando que o desenho da criança

(34) A falar verdade, a primeira forma do desenho não parece imitativa e participa ainda de um jogo puro, porém de exercício: são as garatujas a que se entrega a criança de 2 a 2 1/2 anos, quando lhe fornecem um lápis. Não demora, porém, que o sujeito cuide reconhecer formas no que garatuja sem finalidade, de tal sorte que tenta, logo depois, repetir de memória um modelo, por menos semelhante que seja a sua expressão gráfica do ponto de vista objetivo: a partir dessa intenção o desenho é, portanto, imitação e imagem.

(35) G. Luquet, Le dessin enfantin. Alcan. 1927.

até 8-9 anos é essencialmente realista na intenção, mas que o sujeito começa desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes de exprimir graficamente o que nele vê: observação fundamental, cujo alcance total voltaremos a encontrar a propósito da imagem mental, que também é conceptualização antes de redundar em boas cópias perceptivas.

O realismo do desenho passa, portanto, por diferentes fases. Luquet denomina "realismo fortuito" o da garatuja com significação descoberta em seu desenrolar. Vem depois o "realismo gorado" ou fase de incapacidade sintética, em que os elementos da cópia estão justapostos em vez de estarem coordenados num todo: um chapéu muito acima da cabeça ou botões ao lado do corpo. O badameca, que é um dos modelos predominantes no princípio, passa, aliás, por um estádio de grande interesse: o dos "badamecosgirinos" em que se representa apenas uma cabeça munida de apêndices filiformes, que são as pernas, ou munido de braços e de pernas, mas sem tronco.

Vem, em seguida, o período essencial do "realismo intelectual", em que o desenho sobrepujou as dificuldades primitivas mas em que apresenta, essencialmente, os atributos conceptuais do modelo, sem preocupação de perspectiva visual. É assim que um rosto visto de perfil terá um segundo olho porque o badameco tem dois olhos ou o cavaleiro terá uma perna vista através do cavalo, além da perna visível; ver-se-ão, da mesma forma. batatas no interior da terra de um campo, se ainda lá estiverem, ou no estômago de um cidadão etc. (36).

(36) A essa "transparência" se acrescentam misturas de pontos de vista ou pseudo-rebaixamento: Luquet cita o exemplo de um desenho de carro em que o cavalo é visto de perfil, ° in - terior do carro é visto de cima e as rodas caídas no plano horizontal. Cumpre mencionar, além disso, ° processo interessante de figuração das narrativas, Ao passo que a nossa imaginária adulta, pelo menos moderna, só figura uma secção de acontecimentos simultâneos" por desenho, sem introduzir nele ações cronologicamente sucessivas, a criança, como certos pintores primitivos, utilizará um único desenho para um desenvolvimento cronológico: ver-se-á, por exemplo, uma montanha com cinco ou seis badamecos que são o mesmo personagem em cinco ou seis posições sucessivas.

(37) Piaget e B, Inhelder, La représentation de l'espace che1. l'enfant, Presses Universitaires de France, 1947.

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Aos 8-9 anos, pelo contrário, a esse "realismo intelectual” sucede um "realismo visual", que exibe duas novidades. De um lado, o desenho já não representa o que é visível de um ponto de vista perspectiva particular: um perfil não fornece mais do que o que se mostra de perfil, as partes escondidas dos objetos já não são figuradas atrás dos objetos que as escondem (dessa maneira, só se verá a copa de uma árvore atrás de uma casa e não mais a árvore inteira) e os objetos de segundo plano são gradualmente apequenados (fugentes) em relação aos do primeiro plano. Por outro lado, o desenho toma em consideração a disposição dos objetos segundo um plano de conjunto (eixos de coor-denadas) e de suas proporções métricas.

O interesse desses estádios de Luquet é duplo, Constituem, primeiro, uma introdução notável ao estudo da imagem mental, a cujo respeito veremos (§ IV) que ela também obedece a leis mais próximas das da conceptualização do que das da percepção. Mas

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revelam, sobretudo, notável convergência com a evolução da geometria espontânea da criança, como buscamos estudá·la desde então (37). As primeiras intuições especiais da criança são, com efeito, topológicas antes de serem projetivas ou de se conformarem com a métrica euclidiana. Existe, por exemplo, um nível em que os quadrados, retângulos, círculos, elipses etc. " são uniformemente re-presentados por uma mesma curva fechada, sem retas nem ângulos